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Texto de pré-visualização
A Grande TRANSFORMAÇÃO As origens da nossa época Karl Polanyi Uma obra vital para a melhor compreensão do mundo em que vivemos 2 A Grande TRANSFORÇÃO As origens da nossa época TRADUÇÃO Fanny Wrobel Revisão Técnica Ricardo Benzaquen de Araújo CPDOCFGV e PUCRJ 3 A Grande TRANSFORMAÇÃO Karl Polanyi 2ª Ed EDITORA CAMPUS UM DOS 100 LIVROS MAIS IMPORTANTES DO SÉCULO FOLHA DE S PAULO 4 Do original The Great Transfarmatian Karl Polonyi Tradução autorizado do idioma inglês do edição publicado por Rinehart Company Copyright 1944 Korl Polanyi Copyrigh 1972 Marie Polanyi 2000 Editora Compus Ltda A grande transformação as origens de nosso época Karl Polanyi tradução de Fanny Wrabel 2 ed Ria de Janeiro Compus 2000 1 História econômica 175019182 História social Economia Histório I Título P816g 2 ed 000425 ClPBrasil Calalagaçãanafanle Sindicoto Nacional dos Editores de livros RJ 5 À minha esposa muito Amada Ilona Duezynska Dedico este livro que só foi possível graças à sua ajuda e à sua crítica 6 A Grande TRANSFORMAÇÃO Análise minuciosa e criativamente a formação da economia capitalista de mercado Desvenda os processos através dos quais o mercado separouse das demais instituições sociais até se tornar uma esfera autônoma auto regulável que pretende dominar o resto da sociedade pela transformação do trabalho da terra e do dinheiro em mercadoria Polanyi baseia as suas conclusões em um estudo da Inglaterra na época da Revolução Industrial contrastandoa com sociedades primitioas e arcaicas li em uma análise comparativa que enfatiza o caráter singular e destrutiuo da moderna economia de mercado Integrando contribuições da História da Antropologia e da Economia Política este livro é um trabalho magistral constituindose em leitura indispe vel para todos os interessados em Ciências Sociais 7 AGRADECIMENTOS Este livro foi escrito na América do Norte durante a Segunda Guerra Mundial Na verdade porém ele começou e terminou na Inglaterra onde o autor foi ProfessorConferencista da Extramural Delegacy da Universidade de Oxford e das instituições correspondentes da Universidade de Londres Sua tese principal foi desenvolvida durante o ano acadêmico 19391940 em conjunto com seu trabalho nos Cursos Tutoriais organizados pela Associação Educacional dos Trabalhadores no Morley College Londres em Canterbury e em Bexhill A história deste livro é a história de amizades generosas E grande a dívida para com os amigos ingleses do autor principalmente Irene Grant a cujo grupo esteve associado Estudos em comum ligaramno a Felix Schafer de Viena um economista atualmente em Wellington Nova Zelândia Na América do Norte John A Kouwenhoven ajudouo como verdadeiro amigo através da leitura e edição do original muitas das suas sugestões foram incorporadas ao texto Entre outros amigos que ajudaram contamse os colegas do autor em Bennington Horst Mendershausen e Peter F Drucker Este último e sua mulher foram uma fonte constante de encorajamento não obstante seu completo desacordo com as conclusões do autor A simpatia total do primeiro muito acrescentou a seus úteis conselhos O autor também deve agradecimentos a Hans Zeisel da Rutgers University por uma leitura cuidadosa A edição deste livro ficou inteiramente a cargo de Kouwenhoven com a ajuda de Drucker e Mendershausen e o autor se sente profundamente grato por este fato de amizade Tem também uma dívida de gratidão com a Fundação Rockefeller pela bolsa de dois anos 19411943 que lhe foi concedida e que lhe permitiu complementar o livro no Bennington College Vermont em seguida a um convite que lhe foi feito por Robert D Leigh então presidente daquele colégio Os planos para esta obra foram feitos numa série de conferências públicas e num seminário ocorrido durante o ano acadêmico 19401941 As facilidades de pesquisa foram gentilmente cedidas pela Biblioteca do Congresso em Washington D C assim 8 como pela Biblioteca da Universidade de Colúmbia Nova York A todos eles devemos os nossos agradecimentos O Sr Polanyi não teve a oportunidade de dar os retoques finais no seu manuscrito antes de voltar à Inglaterra em época de guerra dispõese de muito pouco tempo em relação às datas de viagem e quando essa data é fixada não se pode adiáIa a belprazer Também não foi possível ao editor ou aos amigos do autor que supervisionaram a edição do livro consultálo devidamente através de correspondência ou telegrama pelos mesmos motivos de demoras e extravios em tempo de guerra Tivemos portanto que fazer um certo número de modificações e supressões nas anotações e algumas no texto sem a orientação ou a permissão do autor Apesar de a maioria delas terem sido feitas com a convicção racional da sua necessidade lamentamos dizer que algumas o foram à base da intuição J A K 9 APRESENTAÇÃO Este é um livro que torna todos os outros já editados sobre o assunto parecerem obsoletos ou desgastados Um acontecimento tão raro é um prodígio dos tempos Aqui numa hora crucial está uma nova compreensão da forma e do significado dos assuntos humanos O Sr Polanyi não se propõe a escrever a História ele a está reescrevendo Ele não acende uma vela para iluminar um dos seus cantos escuros e nem se dispõe possivelmente a tornáIa a escritura pública da sua fé pessoal Ao contrário com uma visão apurada e com conhecimento apresenta um novo enfoque sobre os processos e as revoluções de toda uma era de mudança jamais vista O objetivo imediato do Sr Polanyi é ressaltar o que faz com notável discernimento as implicações sociais de um sistema econômico particular a economia de mercado que atingiu a sua plenitude no século XIX Chegou a hora em que a sabedoria retrospectiva pode avaliáIa inteiramente pois como disse Aristóteles só podemos compreender a natureza de qualquer coisa quando ela alcança e supera a sua maturação Acontecimentos e processos teorias e ações surgem sob uma nova perspectiva Muito do que parece meramente episódico ao escritor comum da História se investe de um significado mais profundo muito do que parece apenas bizarro merece uma avaliação mais justa A redução do homem à mãodeobra e da natureza à terra sob o impulso da economia de mercado transforma a História em um drama profundo no qual a sociedade a protagonista acorrentada finalmente rompe seus grilhões Esta nova orientação sugerida em outras obras mas ainda não desenvolvida dá novas proporções a homens e idéias Tomemos por exemplo o Movimento Cartista e o espírito profético de Robert Owen Ou tomemos a famosa recomendação de Speenharnland como o Sr Polanyi mergulha muito mais profundamente no seu significado histórico Quão inteligível se torna o quadro dos juízes senhoriais ditando princípios de gabinete a uma força que nem eles nem os mais esclarecidos da sua época podiam ainda compreender Testemunhamos com uma nova compreensão a batalha das ideologias em torno da economia que crescia inexoravelmente alguns se opondo cegamente outros procurando retardar seus golpes mais impiedosos contra o tecido social outros ainda aplaudindo 10 cada um dos seus avanços sinceramente ou simploriamente Vemos a atuação de retaguarda dos defensores da antiga ordem o desconforto impotente dos mantenedores do Cristianismo tradicional o fácil triunfo dos economistas ortodoxos que conseguiam explicar tudo Entretanto a frente de batalha avança e deixa ruínas no seu caminho e as defesas apressadamente levantadas ruem perante ela Vemos como de uma nova libertação surge uma nova servidão e podemos medir o desafio que enfrenta a nossa própria época O Sr Polanyi deixa muito atrás tanto os dogmáticos de Karl Marx como os apólogos da reação Ele se preocupa com o processo econômico na civilização moderna mas não oferece qualquer doutrina de determinismo econômico Ao contrário ele nos oferece a análise penetrante de uma transformação histórica particular na qual a supressão de um sistema econômico por outro desempenha um papel decisivo Isto aconteceu não porque a relação econômica é sempre básica mas porque neste caso e apenas neste caso o sistema ideal na nova economia exigia uma abnegação impiedosa do status social do ser humano Habilmente ele menciona a situação colonial e as sociedades de povos primitivos invadidas industrialmente a fim de mostrar não o que esse sistema ideal significava para elas mas principalmente o que ele também importava para nós Os moinhos satânicos descartavam todas as necessidades humanas menos uma inexoravelmente eles começaram a triturar a própria sociedade em seus átomos Assim os homens tiveram que descobrir a sociedade Para o Sr Polanyi a última palavra é a sociedade O principal espectador da tragédia da Revolução Industrial foi convocado não pela insensibilidade e ganância dos capitalistas em busca de lucro embora isto registrasse uma grande desumanidade mas pela devastação social de um sistema incontrolado a economia de mercado Os homens não puderam compreender o que significava a coesão da sociedade O sacrário mais íntimo da vida humana foi despojado e violado Não se apreciou em todo o seu potencial o problema do controle social de uma mudança revolucionária filosofias otimistas o obscureceram filantropos sem visão conspiraram com interesses poderosos para escondêlo e a sabedoria da época ainda não havia nascido Entretanto ao apresentar este argumento o Sr Polanyi não está lançando olhares saudosos a algum passado mais feliz ele não está defendendo a causa da 11 reação Não há um caminho de volta e nenhuma solução poderá surgir na busca de tal caminho O que a nossa época precisa é a reafirmação pelas suas próprias condições e pela suas próprias necessidades dos valores essenciais da vida humana A tradição nos faltará e não trairá se confiarmos nela Não podemos abandonar o princípio da liberdade individual porém devemos recriálo Não podemos restaurar uma sociedade passada mesmo que a cortina da História esconda de nós os seus males temos que reconstruir a sociedade para nós mesmos aprendendo com o passado todas as lições e advertências que formos capazes de aprender Fazendo isto talvez possamos ter em mente também que a causa de todos os assuntos humanos está profundamente envolvida para ser totalmente desenrolada pelas mentes mais sábias Há sempre um ponto no qual temos que confiar em nossos valores atuantes de forma que as forças iminentes do mundo atual possam se libertar em novas direções para novos objetivos Um livro tão estimulante e tão profundo deve excitar controvérsias e ser questionado em vários pontos Alguns podem duvidar se o papel da economia de mercado foi tão absoluto se a lógica do sistema foi tão rigorosa e constrangedora por si mesma Eles podem não desejar ir tão longe quanto o autor quando num determinado ponto ele observa que as nações e os povos eram apenas bonecos numa exibição inteiramente além do seu controle Alguns poderão querer atribuir valorações diferentes às diferentes formas de proteção contra o mercado auto regulável e podem se sentir contrafeitos quandoo ordenador das tarifas e o legislador social parecem surgir como irmãos em armas E assim por diante Todavia todos terão que reconhecer seguramente a clara irrefutabilidade do argumento total Estamos agora num novo ponto vantajoso olhando para baixo após o terremoto para os templos arruinados dos nossos deuses queridos Vemos a fraqueza das fundações expostas talvez possamos aprender agora e de que maneira a reconstruir o tecido institucional de forma que ele possa suportar melhor os choques da mudança É de primordial importância hoje a lição que ele transmite àqueles que elaborarão a próxima organização internacional Pelo menos ele mostra que fórmulas liberais tais como paz mundial por meio do comércio mundial não são suficientes Se nos contentamos com tais fórmulas somos as vítimas de uma simplificação perigosa e ilusória 12 Nenhum sistema nacional ou internacional pode depender de reguladores automáticos Orçamentos equilibrados livre empresa comércio mundial câmaras internacionais de compensação e moedas ao par não garantirão uma ordem internacional Só a sociedade poderá garantiIa uma sociedade internacional também tem que ser descoberta E aqui também o tecido institucional deverá manter e controlar o esquema econômico das coisas Assim a mensagem deste livro não é apenas para o economista embora lhe transmita uma mensagem poderosa nem apenas para o historiador embora abra novas perspectivas nem apenas para o sociólogo embora lhe transmita um sentido mais profundo do que significa a sociedade nem apenas para o cientista político embora o ajude a reexpor antigas questões e avaliar antigas doutrinas ela se destina a cada homem inteligente que se preocupa em se aprimorar além do seu estágio atual de educação social a cada homem que se preocupa em conhecer a sociedade em que vive a crise por que passou e as crises que ora se avolumam Aqui ele poderá adquirir novos lampejos de uma fé mais profunda Aqui ele poderá aprender a olhar além das alternativas inadequadas que lhe são oferecidas habitualmente a do liberalismo que só vai até o ponto atual a do coletivismo total ou nenhum a da simples negação do individualismo pois todas elas tendem a fazer de algum sistema econômico desideratum básico e somente quando descobrimos o primado da sociedade a unidade coerente inclusive da interdependência humana é que podemos esperar transcender as perplexidades e as contradições de nossos tempos R M MacIver 13 SUMÁRIO Primeira Parte O sistema internacional 15 Capítulo 1 Cem anos de Paz 17 Capítulo 2 A década de 1920 conservadora A década de 193 revolucionária 36 Segunda Parte Ascensão e uqeda da economia de mercado 49 I O moinho satânico 49 Capítulo 3 Habitação versus progresso 51 Capítulo 4 Sociedades e sistemas econômicos 62 Capítulo 5 Evolução do padrão de mercado 76 Capítulo 6 O mercado autoregulável e as mercadorias fictícias trabalho terra e dinheiro 89 Capítulo 7 Speenhamland 1795 99 Capítulo 8 Antecedentes e conseqüências 109 Capítulo 9 Pauperismo e utopia 128 Capítulo 10 A economia política e a descoberta da sociedade 137 II Autoproteção da sociedade 159 Capítulo 11 Homem natureza e organização produtiva 161 Capítulo 12 O nascimento do credo liberal 166 Capítulo 13 O nascimento do credo liberal continuação o interesse de classe e a mudança social 184 Capítulo 14 Mercado e homem 198 Capítulo 15 Mercado e natureza 214 Capítulo 16 Mercado e organização produtiva 228 Capítulo 17 Autoregulação imperfeita 237 Capítulo 18 Forças de ruptura 246 14 Terceira Parte Transformação em progresso 259 Capítulo 19 Governo popular e economia de mercado 261 Capítulo 20 A história na engrenagem da mudança social 276 Capítulo 21 A liberdade numa sociedade complexa 289 Apêndice Notas sobre as fontes 302 1 O equilíbrio de poder como política lei histórica princípio e sistema 302 2 Cem anos de paz 306 3 Partese o fio dourado 307 4 Os balanços do pêndulo após a Primeira Guerra Mundial 308 5 Finanças e paz 308 6 Referências selecionadas à evolução do padrão mercado 313 7 Referências selecionadas à evolução do padrão de mercado 313 8 Literatura sobre Speenhamland 317 9 Speenhamland e Viena 322 10 Por que não o Whitbreads Bill 323 11 As duas nações de Disraeli e o problema das raças de cor 324 12 Nota adicional Poor Law e a organização do trabalho 327 O autor 337 Índice 339 15 PRIMEIRA PARTE O SISTEMA INTERNACIONAL 16 FOLHA EM BRANCO 17 1 CEM ANOS DE PAZ A civilização do século XIX ruiu Este livro se preocupa com as origens política e econômica desse acontecimento bem como com a grande transformação que daí decorreu A civilização do século XIX se firmava em quatro instituições A primeira era o sistema de equilíbrio de poder que durante um século impediu a ocorrência de qualquer guerra prolongada e devastadora entre as Grandes Potências A segunda era o padrão internacional do ouro que simbolizava uma organização única na economia mundial A terceira era o mercado autoregulável que produziu um bemestar material sem precedentes A quarta era o estado liberal Classificadas de um certo modo duas dessas instituições eram econômicas duas políticas Classificadas de outra maneira duas delas eram nacionais duas internacionais Entre si elas determinavam os contornos característicos da história de nossa civilização Dentre essas instituições o padrãoouro provou ser crucial sua queda revelouse a causa mais aproximada da catástrofe Por ocasião da sua derrocada a maior parte das outras instituições tinham sido sacrificadas num vão esforço para salváIa Todavia a fonte e matriz do sistema foi o mercado autoregulável Foi essa inovação que deu origem a uma civilização específica O padrãoouro foi apenas uma tentativa de ampliar o sistema doméstico de mercado no campo internacional o sistema de equilíbrio de poder foi uma super estrutura erigida sobre o padrãoouro e parcialmente nele fundamentada o estado liberal foi ele mesmo uma criação do rnercado auto regulável A chave para o sistema institucional do século XIX está nas leis que governam a economia de mercado 18 Nossa tese é que a idéia de um mercado autoregulável implicava uma rematada utopia Uma tal instituição não poderia existir em qualquer tempo sem aniquilar a substância humana e natural da sociedade ela teria destruído fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto Inevitavelmente a sociedade teria que tomar medidas para se proteger mas quaisquer que tenham sido essas medidas elas prejudicariam a autoregulação do mercado desorganizariam a vida industrial e assim ameaçariam a sociedade em mais de uma maneira Foi esse dilema que forçou o desenvolvimento do sistema de mercado numa trilha definida e finalmente rompeu a organização social que nela se baseava Uma tal explicação de uma das crises mais profundas na história do homem pode parecer demasiado simples Nada pareceria mais inepto do que tentar reduzir uma civilização sua substância e ethos a um número rígido de instituições selecionar uma delas como fundamental e passar a argumentar sobre a inevitável auto destruição da civilização em conseqüência de alguma qualidade técnica de sua organização econômica As civilizações como a própria vida resultam da interação de um grande número de fatores independentes os quais como regra não se reduzem a instituições circunscritas Na verdade procurar traçar o mecanismo institucional da queda de uma civilização pode parecer uma tarefa irrealizável Todavia é isto o que estamos nos propondo Ao fazêlo estamos conscientemente ajustando nosso objetivo à extrema singularidade do assunto A civilização do século XIX foi única de fato precisamente porque ela se centralizou num mecanismo institucional definido Nenhuma explicação poderá satisfazer se não levar em conta a rapidez do cataclisma Como se as forças da mudança estivessem sendo contidas durante um século uma torrente de acontecimentos se precipita sobre a humanidade Uma transformação social de alcance planetário é coroada por guerras de um tipo sem precedente nas quais uma série de estados entra em colapso e os contornos de novos impérios se delineiam num mar de sangue Entretanto esse fato de violência demoníaca é apenas sobreposto numa corrente rápida e silenciosa de mudança que engole o passado muitas vezes sem sequer uma marola na superfície Uma análise racional da catástrofe deve levar em conta tanto a ação tempestuosa como a tranqüila dissolução Este não é um trabalho histórico o que estamos buscando não é uma seqüência convincente de acontecimentos importantes mas uma explicação da sua orientação em termos de instituições humanas Sentimonos 19 pois à vontade em lidar com as cenas do passado com o único objetivo de lançar luz sobre assuntos do presente faremos analises detalhadas de períodos críticos e abandonaremos quase que por completo os períodos de tempo que os ligaram invadiremos o campo de diversas disciplinas perseguindo este simples objetivo Trataremos primeiro do colapso do sistema internacional Tentaremos mostrar que o sistema de equilíbrio de poder não poderia assegurar a paz uma vez fracassada a economia mundial sobre a qual repousava Isto responde pela forma abrupta com que a ruptura ocorreu a inconcebível rapidez da dissolução Entretanto se a queda da nossa civilização foi regulada pelo fracasso da economia mundial ela certamente não foi causada por ela Suas origens estão há mais de cem anos atrás na convulsão social e tecnológica a partir da qual surgiu na Europa Ocidental a idéia de um mercado autoregulável O fim dessa aventura ocorreu em nossa época ela encerra um estágio na história da civilização industrial Na parte final do livro trataremos do mecanismo que governou a mudança social e nacional em nossa época De um modo mais amplo acreditamos que a condição atual do homem pode ser definida em termos das origens institucionais da crise O século XIX produziu um fenômeno sem precedentes nos anais da civilização ocidental a saber uma paz que durou cem anos 1815 1914 Além da Guerra da Criméia um acontecimento mais ou menos colonial a Inglaterra a França a Prússia a Áustria a Itália e a Rússia estiveram em guerra uns com os outros apenas durante dezoito meses Computando as cifras comparativas dos dois séculos anteriores temos uma média de sessenta a setenta anos de grandes guerras para cada um Entretanto mesmo a mais violenta dentre as conflagrações do século XIX a Guerra Franco Prussiana de 18701871 terminou em menos de um ano e a nação derrotada teve condições de pagar uma soma sem precedentes como indenização de guerra sem que isto incidisse em qualquer perturbação para as moedas existentes Esse triunfo de um pacifismo pragmático certamente não foi o resultado de uma ausência de causas graves do conflito Alterações quase que contínuas nas condições internas e externas de nações poderosas e grandes impérios acompanharam esse cortejo conciliador Durante a primeira parte do século guerras civis intervenções revolucionárias e antirevolucionárias estavam na ordem do dia Na Espanha milhares de tropas sob a direção do Duque dAngoulème invadiram Cádiz na Hungria a revolução magiar ameaçou derrotar o próprio 20 imperador numa batalha regular e só foi vencida finalmente por um exército russo que lutou em solo húngaro Intervenções armadas nas regiões germânicas na Bélgica Polônia Suiça Dinamarca e Veneza marcaram a onipresença da Santa Aliança Durante a segunda metade do século foi instaurada a dinâmica do progresso o império otomano o egípcio e o xerifado ruiram ou oram desmembrados a China foi forçada a abrir suas portas ao estrangeiro por exércitos invasores e num assalto gigantesco o continente da África foi partilhado Simultaneamente duas potências assumem importância mundial os Estados Unidos e a Rússia A unidade nacional foi alcançada na Alemanha e na Itália Bélgica Grécia Rumânia Bulgária Sérvia e Hungria assumiram ou reassumiram seus lugares de estados soberanos no mapa da Europa Uma série quase incessante de guerras abertas acompanharam o trajeto da civilização industrial nos domínios das culturas ultrapassadas ou dos povos primitivos As conquistas militares da Rússia na Ásia Central as inúmeras guerras da Inglaterra na Índia e na África as explorações da França no Egito Argélia Túnis Síria Madagáscar Indochina e Sião levantaram entre as Potências questões que normalmente só seriam arbitradas pela força Entretanto cada um desses conflitos em particular foi circunscrito e numerosas outras situações de mudança violenta foram resolvidas pela ação conjunta ou amortecidas num compromisso tácito entre as Grandes Potências O resultado era o mesmo independendo da mudança dos métodos Enquanto na primeira parte do século o constitucionalismo foi banido e a Santa Aliança suprimiu a liberdade em nome da paz durante a outra metade e novamente em nome da paz as constituições foram impingidas a déspotas turbulentos por banqueiros de visão comercial Assim sob as formas variadas e ideologias mutáveis às vezes em nome do progresso e da liberdade às vezes pela autoridade do trono e do altar às vezes graças às bolsas de valores e aos livros de cheque às vezes por corrupção e suborno às vezes por argumentos morais e apelos iluministas às vezes à custa de bordoadas e de baionetas o resultado conseguido era sempre o mesmo e a paz foi preservada Esse acontecimento quase miraculoso foi conseqüência do equilíbrio do poder que aqui atingiu um resultado normalmente estranho a ele Pela sua natureza esse equilíbrio geralmente resulta em algo inteiramente diferente isto é sobrevivência das unidades de poder envolvidas De fato ele apenas postula que três ou mais unidades capazes de exercer poder atuarão sempre de forma a combinar o poder das unidades mais fracas contra qualquer incremento de poder do mais forte Na 21 esfera da história universal o equilíbrio de poder se preocupava com os estados cuja independência lhe convinha manter Entretanto esse objetivo só era atingido por guerras contínuas entre sócios mutáveis A prática dos antigos gregos ou das cidadesestado da Itália do norte constituem um bom exemplo foram as guerras entre grupos mutáveis de combatentes que mantiveram a independência desses estados durante longos períodos O mesmo princípio resguardou por mais de duzentos anos a soberania dos estados que formaram a Europa à época do Tratado de Münster e de Westpbalia 1648 Quando setenta e cinco anos mais tarde pelo Tratado de Utrecht os signatários declararam sua adesão formal a esse princípio eles o incorporaram a um sistema estabelecendo assim garantias mútuas de sobrevivência tanto para o forte como para o fraco por meio de guerra O fato de que no século XIX o mesmo mecanismo tenha resultado em paz ao invés de guerra é um problema que desafia o historiador O fator inteiramente novo calculamos foi a emergência de um forte interesse peJa pazTradicionalmente tal interesse era visto como externo ao escopo do sistema estatal A paz com os seus corolários de artes e engenhos fazia parte dos simples adornos da vida A Igreja podia orar tanto pela paz como por uma colheita abundante mas na esfera de atuação do estado ela iria defender uma intervenção armada Os governos subordinavam a paz à segurança e soberania isto é a intentos que não podiam ser alcançados a não ser recorrendose a meios drásticos Poucas coisas eram vistas como mais prejudiciais a uma comunidade do que a existência em seu meio de um interesse organizado pela paz Ainda na segunda metade do século XVIII JJ Rousseau denunciava as corporações de ofício por falta de patriotismo sob suspeita de que elas preferiam a paz à liberdade Após 1815 a mudança é súbita e completa A repercussão da Revolução Francesa reforçou a maré montante da Revolução Industrial estabelecendo os negócios pacíficos como um interesse universal Metternich proclamava que o que os povos da Europa desejavam não era a liberdade mas a paz Gentz chamava os patriotas de novos bárbaros A Igreja e o trono iniciaram a desnacionalização da Europa Seus argumentos encontravam apoio tanto na ferocidade das recentes formas populares de revolta como no realce tremendo do valor da paz sob a economia nascente Os que apoiavam o novo interesse pela paz eram como de hábito aqueles que mais se beneficiavam com ela isto é aquele cartel de dinastias e feudalistas cujas posições patrimoniais eram ameaçadas pela 22 onda revolucionária de patriotismo que avassala o continente Desta forma por um período aproximado de um terço de século a Santa Aliança forneceu a força coerciva e o ímpeto ideológico necessário a uma política de paz atuante seus exércitos percorriam a Europa em todas as direções esmagando minorias e reprimindo maiorias De 1846 até cerca de 1871 um dos quartos de século mais confusos e atravancados da história européias1 a paz foi estabelecida com menos segurança enquanto a força declinante da reação enfrentava a crescente força da industrialização No quarto de século que se segue à Guerra FrancoPrussiana encontramos redivivo o interesse pela paz representado por aquela nova e poderosa entidade o Concerto da Europa Entretanto os interesses como as intenções permanecem necessariamente platônicos a menos que sejam transladados para a política por meio de algum instrumental social Aparentemente faltava um tal veículo de realização tanto a Santa Aliança como o Concerto da Europa eram na verdade meros agrupamentos de estados soberanos independentes e portanto sujeitos ao equilíbriodepoder e seu mecanismo de guerra Como foi mantida a paz então É verdade que qualquer sistema de equilíbriodepoder procurará impedir guerras como as que ocorrem quando uma nação deixa de prever o realinhamento de poderes que resultará da sua tentativa de alterar o status quo Foram exemplos famosos a tentativa de dissuasão de Bismarck na campanha da imprensa contra a França em 1875 quanto à intervenção russa e britânica o auxílio da Áustria à França era contado como certo Nesta ocasião o Concerto da Europa agiu contra a Alemanha que se viu isolada Em 18771878 a Alemanha foi incapaz de impedir a Guerra RussoTurca mas teve sucesso em circunscrevêIa apoiando o ciúme da Inglaterra quanto à movimentação russa em direção aos Dardanelos a Alemanha e a Inglaterra apoiaram a Turquia contra a Rússia e assim salvaram a paz No Congresso de Berlim foi elaborado um plano a longo prazo para a liquidação das possessões européias do Império Otornano isto resultou no impedimento de guerras entre as Grandes Potências a despeito de todas as mudanças subseqüentes no status quo uma vez que todas as partes envolvidas podiam estar certas antecipadamente das forças com as quais iriam se defrontar numa batalha Nestes exemplos a paz era um subproduto bemvindo do sistema de equilíbriodepoder 1 Sontag R J European Diplomatic History 18711932 1933 23 Algumas vezes evitavamse as guerras removendo deliberadamente as suas causas se isto envolvia apenas o destino de potências pequenas Controlavamse as pequenas nações e impediase que perturbassem o status quo de qualquer forma que pudesse precipitar uma guerra A invasão holandesa da Bélgica em 1831 levou à neutralização daquele país na ocasião Em 1855 a Noruega também foi neutralizada Em 1867 o Luxemburgo foi vendido à França pela Holanda a Alemanha protestou e o Luxemburgo foi neutralizado Em 1856 a integridade do Império Otomano foi declarada essencial para o equilíbrio da Europa e o Concerto da Europa procurou sustentar aquele império após 1878 quando sua desintegração foi considerada essencial para aquele equilíbrio promoveuse o seu desmembramento da mesma maneira ordenada embora em ambos os casos a decisão significasse vida e morte para inúmeros pequenos povos Entre 1852 e 1863 foi a Dinamarca e entre 1851 e 1856 foram as Alemanhas que ameaçaram perturbar o equilíbrio e em cada um dos casos os pequenos estados foram forçados a se conformar pelas Grandes Potências Nesses exemplos a liberdade de ação a elas oferecida pelo sistema foi usada pelas Potências para alcançar um interesse conjunto que aconteceu ser a paz Mas existe uma diferença muito grande entre evitar ocasionalmente as guerras quer pelo esclarecimento oportuno da situação de poder quer pela coação aos pequenos estados e o fato concreto da Paz dos Cem Anos O desequilíbrio internacional pode ocorrer por inúmeras razões desde um romance dinástico até o aterro de um estuário desde uma controvérsia teológica a uma invenção tecnológica O simples crescimento da riqueza e da população ou eventualmente o seu decréscimo pode pôr as forças políticas em movimento e o equilíbrio externo refletirá o interno invariavelmente Mesmo um sistema organizado de equilíbriodepoder só pode assegurar a paz sem a ameaça permanente da guerra se puder atuar diretamente sobre esses fatores internos e impedir o desequilíbrio in status nascendi Uma vez que esse desequilíbrio tome impulso só a força poderá endireitálo É apenas senso comum afirmar que para se garantir a paz devese eliminar as causas da guerra entretanto nem sempre se compreende que para fazêlo o fluxo da vida tem que ser controlado na sua fonte A Santa Aliança conseguir realizar isto com a ajuda de instrumentos peculiares a ela Os reis e as aristocracias da Europa formaram uma internacional de parentesco e a Igreja Católica forneceulhes um serviço civil voluntário que ia do nível mais alto até o mais baixo na escala social da 24 Europa do Sul e Central As hierarquias de sangue e de direito divino se fundiram num instrumento de governo localmente efetivo que precisava apenas ser suplementado pela força para garantir a paz continental Entretanto o Concerto da Europa que a substituiu que substituiu não dispunha dos tentáculos feudais e clericais quando muito chegava a ser uma federação frouxa que não se comparava em coerência à obraprima de Metternich Uma reunião das Potências só podia ser organizada em raras ocasiões e seus ciúmes davam grande margem a intrigas a contradições e à sabotagem diplomática uma atuação militar conjunta passou a ser rara E no entanto o que a Santa Aliança como toda a sua unidade de pensamento e propósitos só conseguiu alcançar na Europa com a ajuda de freqüentes intervenções armadas foi alcançado aqui em escala mundial por uma entidade difusa chamada Concerto da Europa com a ajuda muito menos freqüente e opressiva do uso da força Para tentar explicar este feito surpreendente temos que procurar algum poderoso instrumental social ainda não descoberto atuante nesse novo ambiente e que podia desempenhar o papel anterior as dinastia e dos episcopados e tornar efetivo o interesse pela paz Esse fator anônimo foi a haute finance Ainda não foi levada a efeito qualquer pesquisa mais ampla sobre a natureza do banco internacional no século XIX essa instituição misteriosa emergiu pouco no chiaroscuro da mitologia políticoeconômica2 Alguns alegaram que ela era apenas a ferramenta dos governos outros que os governos eram os instrumentos da sua inesgotável sede de lucros outros ainda que se tratava da semente da discórdia interna cional outros que era o veículo de um cosmopolitismo efeminado que minava a força das nações viris Nenhum desses argumentos é totalmente errado A haute finance uma instituição sui generis peculiar ao último terço do século XIX e ao primeiro terço do século XX funcionou nesse período como o elo principal entre a organização política e a econômica do mundo Ela forneceu os instrumentos ara um sistema internacional de paz que foi elabora o com a ajuda das Potências mas que essas mesmas potências não poderiam ter estabelecido ou mantido Enquanto o Concerto da Europa atuava apenas durante intervalos a haute finance funcionava como agência permanente do tipo elástico Em inglês banking com o sentido de negócios bancários N do R 2 Féis H Europe the Worlds Banker 18701940 1930 uma obra que seguimos textualmente muitas vezes 25 Independente de governos particulares mesmo os mais poderosos estava em contato com todos independente dos bancos centrais mesmo do Banco da Inglaterra estava estreitamente ligada a eles Havia um contato íntimo entre a finança e a diploma nenhuma delas levava em consideração planos a longo prazo tanto de paz como de guerra sem ter a certeza da boa vontade do outro Todavia o segredo do sucesso na manutenção de uma paz geral repousava sem dúvida na posição organização e técnicas de finança internacional Tanto o pessoal como as motivações desse organismo singular investiamno de um status cujas raízes estavam seguramente cravadas na esfera privada do interesse estritamente comercial Os Rothschilds não estavam submetidos a nenhum governo como família eles incorporavam o princípio abstrato do internacionalismo sua lealdade era para com uma firma cujo crédito se tornara o único elo supranacional entre o governo político e o esforço industrial numa economia mundial em rápido crescimento Em última instância sua independência se originava das necessidades da época que exigia um agente soberano digno da confiança tanto dos estadistas nacionais como do investidor internacional Para esta necessidade vital a extraterritorialidade metafísica de uma dinastia de banqueiros judeus domiciliada nas capitais da Europa oferecia uma solução quase perfeita Eles não eram realmente pacifistas haviam feito sua fortuna financiando guerras eram impermeáveis a qualquer consideração moral não faziam objeção a qualquer número de guerras pequenas breves ou localizadas Entretanto seu negócio seria prejudicado se uma guerra generalizada entre as Grandes Potências interferisse com as fundações monetárias do sistema Pela lógica dos fatos coube a eles manter os requisitos da paz geral em meio à transformação revolucionária a que foram submetidos os povos do planeta Organizacionalmente a haute finance foi o núcleo de uma das mais complexas instituições que a história do homem já produziu Apesar de transitória ela só é comparável em universalidade e pela profusão de formas e instrumentos com o montante das atividades humanas na indústria e no comércio do qual se tornou de alguma forma o espelho e o reverso Além do centro internacional a haute finance propriamente dita havia uma meia dúzia de centros nacionais gravitando em torno dos seus bancos de emissões e bolsas de valores Os banqueiros internacionais não se limitavam a financiar governos suas aventuras de guerra e paz faziam investimentos externos na indústria nos serviços públicos e bancos bem como empréstimos a longo prazo a corporações públicas 26 e particulares fora do país A finança nacional por sua vez era um microcosmo Só a Inglaterra contava com meia centena de tipos diferentes de bancos a organização bancária da França e da Alemanha também era específica Em cada um desses países as práticas do seu Tesouro e suas relações com a finança particular variavam nas forças mais marcantes e muitas vezes as mais sutis no que se referia aos detalhes O mercado de dinheiro lidava com uma quantidade de contas comerciais aceites estrangeiros documentos financeiros propriamente ditos bem como títulos nominais e outras facilidades nas bolsas de valores O padrão era controlado por uma variedade infinita de grupos nacionais e personalidades cada um deles com seu tipo peculiar de prestígio e destaque autoridade e lealdade sua capacidade de dinheiro e contato de patronato e de aura social A haute finance não foi instituída como instrumento de paz essa função lhe foi atribuída por acidente como diriam os historiadores enquanto os sociólogos talvez preferissem chamáIa lei da disponibilidade O objetivo da haute finance era o lucro para atingilo era necessário um bom relacionamento com os governos cujo objetivo era o poder e a conquista Podemos deixar de lado neste estágio e com bastante segurança a distinção entre poder político e econômico entre objetivos econômicos e políticos por parte dos governos Com efeito era uma característica dos estadosnação desse período que havia muito pouca realidade numa tal distinção pois quaisquer que fossem os seus objetivos os governos procuravam atingiIos através da utilização e do incremento do poder nacional A organização da haute finance por sua vez era internacional entretanto não podia se considerar inteiramente independente da organização nacional A haute finance como centro atuante de participação bancária nos sindicatos e consórcios nos grupos de investimento de empréstimos estrangeiros ou outras transações de escopo ambicioso tinha que procurar a cooperação dos bancos nacionais do capital nacional da finança nacional Embora a finança nacional como regra fosse menos subserviente ao governo do que a indústria nacional ela o era o suficiente para fazer com que a finança internacional tivesse interesse em manter contato com os próprios governos Todavia na medida em que em virtude da sua posição e dos seus membros da sua fortuna particular e de suas filiações ela era realmente independente de qualquer governo particular podia servir a um novo interesse que não possuía qualquer órgão específico próprio a cujo serviço não havia qualquer outra instituição e que no entanto era de vital importância para a comunidade a paz 27 Não uma paz a qualquer preço nem sequer uma paz ao preço de qualquer ingrediente da independência soberania glória adquirida ou aspirações futuras dos poderes envolvidos mas simplesmente a paz se fosse possível atingiIa sem um tal sacrifício E não podia ser de outra maneira O poder tinha precedência sobre o lucro Por mais estreitamente que seus domínios se interpenetrassem era sempre a guerra que estabelecia as leis dos negócios Desde 1870 por exemplo a França e a Alemanha eram inimigas Isto não impedia transações sem compromisso entre elas Ocasionalmente formavamse sindicatos bancários para fins de transação havia uma participação privada de bancos de investimento alemães em empresas alémfronteira que não apareciam nas folhas de balanço no mercado financeiro de empréstimos a curto prazo ocorria o desconto de letras de câmbio e a garantia de empréstimos a curto prazo sobre papéis cola ter ais e comerciais por parte de bancos franceses Havia o investimento direto como no caso da união entre o ferro e o coque ou da fábrica Thyssen na Normandia porém tais investimentos se restringiam a áreas definidas na França e estavam sob o fogo permanente da crítica tanto de nacionalistas como de socialistas O investimento direto era mais freqüente nas colônias como se exemplifica pelos esforços tenazes dos alemães em garantir minérios de teor elevado na Argélia ou pela estória complicada das participações no Marrocos Todavia permanece ainda como fato concreto que depois de 1870 em nenhum momento foi levantada a interdição oficial embora tácita sobre os títulos alemães na Bolsa de Paris A França simplesmente escolheu não correr o risco de ter a força do capital emprestado3 voltada contra ela A Áustria também era suspeita na crise do Marrocos de 19051906 a interdição foi estendida à Hungria Os círculos financeiros de Paris pediram a admissão dos títulos húngaros mas os círculos industriais apoiaram o governo na sua sólida oposição a qualquer concessão a um possível antagonista militar A rivalidade políticodiplomática continuava inquebrantável Qualquer atuação que pudesse aumentar o presumível potencial inimigo era vetada pelos governos Superficialmente mais de uma vez pareceu que o conflito foi dominado porém os círculos internos estavam convictos de que ele havia sido apenas empurrado para lugares mais profundos sob a superfície de amabilidade 3 Féis H opcit p 201 28 Tomemos por exemplo as ambições da Alemanha quanto ao Leste Aqui também a política e a finança se misturavam no entanto a política prevaleceu Após um quarto de século de disputas perigosas a Alemanha e a Inglaterra assinaram um acordo razoável sobre a ferrovia de Bagdá em junho de 1914 tarde demais para impedir a grande Guerra dizem muitas vezes Outros argumentaram pelo contrário que a assinatura do acordo provou de forma concreta que a guerra entre Inglaterra e Alemanha não foi causada por um confronto de expansionismo econômico Nenhuma dessas opiniões se baseia em fatos Na verdade o acordo deixou sem resolução o tema mais relevante A ferrovia alemã não podia prosseguir além de Basra sem o consentimento do governo britânico e as zonas econômicas do tratado cedo ou tarde levariam a urna colisão frontal Enquanto isto as Potências continuavam a prepararse para o Dia D que estava mais próximo do que elas mesmas imaginavam4 A finança internacional tinha que enfrentar as ambições conflitantes e as intrigas das grandes e pequenas potências Seus planos eram subvertidos pelas manobras diplomáticas seus investimentos a longo prazo eram comprometidos e seus esforços construtivos prejudicados pela sabotagem política e as obstruções em surdina As organizações bancárias nacionais sem as quais ela era impotente agiam muitas vezes como cúmplices de seus respectivos governos e não se considerava seguro qualquer plano que não levasse em conta antecipadamente os despojos de cada participante Entretanto o poder financeiro muitas vezes não era vitima mas o beneficiário da diplomacia do dólar a qual fornecia o aguilhão de aço para a luva de veludo da finança O sucesso nos negócios sempre envolvia o uso impiedoso da força contra os países mais fracos a corrupção desenfreada nos escalões administrativos e o uso de quaisquer meios para atingir os fins familiares à selva colonial e semicolonial E no entanto por determinação funcional coube à haute finance Impedir as guerras mais generalizadas A grande maioria dos portadores de títulos governamentais assim como outros investidores e negociantes seriam os primeiros perde dores com tais guerras principalmente se as moedas fossem afetadas A influência que a haute finance exercia sobre as Potências era sempre favorável a urna paz européia Essa influência foi atuante na medida em que os próprios 4 Cf Notas sobre as Fontes 29 governos dependiam da sua cooperação em mais de um sentido Em conseqüência nunca houve época em que o interesse pela paz não estivesse representado nos conselhos do Concerto da Europa Se a isto acrescentamos o crescente interesse pela paz dentro de cada nação onde o hábito do investimento havia deitado raízes começaremos a ver por que pode ocorrer a surpreendente inovação de uma paz armada de dúzias de estados praticamente mobilizados na Europa de 1871 até 1914 sem chegarem ao ponto de uma conflagração esmagadora A finança um dos seus canais de influência agia como poderoso moderador nos conselhos e na política de uma série de pequenos estados soberanos Os empréstimos e a renovação dos empréstimos se articulavam com o crédito e este dependia do bom comportamento Uma vez que sob um governo constitucional e os governos inconstitucionais não eram vistos com bons olhos o comportamento se reflete no orçamento e o valor externo da moeda não pode ser isolado da apreciação do orçamento os governos em débito eram aconselhados a vigiar cuidadosamente seu câmbio e evitar políticas que pudessem se refletir na solidez da posição orçamentária Essa máxima bastante útil tornavase uma regra de conduta convincente uma vez que o país adotasse o padrãoouro que limitava ao mínimo as flutuações permitidas O padrão ouro e o constitucionalismo eram os instrumentos que tornaram conhecida a voz da City de Londres em muitos dos países menores que adotaram esses símbolos de adesão à nova ordem internacional Às vezes a Pax Britannica mantinha esse equilíbrio através dos canhões dos seus navios entretanto mais freqüentemente ela prevalecia puxando os cordéis da rede monetária internacional A haute finance assegurava a sua influência ainda através da administração não oficial das finanças de vastas regiões semicoloniais do mundo inclusive os impérios decadentes do Islã na zona altamente inflamável do Oriente Próximo e do Norte da África Era justamente aqui que O dia de trabalho dos financistas tocava os fatores sutis dos subterrâneos da ordem internacional e fornecia uma administração de facto para essas regiões conflituosas onde a paz era mais vulnerável Foi assim que se pôde garantir os numerosos prérequisitos de investimentos de capital a longo prazo nessas áreas a despeito de obstáculos quase intransponíveis A épica história da construção de ferrovias nos Bálcãs Anatólia Síria Pérsia Egito Marrocos e China é a história da persistência e de reviravoltas absurdas que lembram um feito semelhante ao do continente norteamericano O maior perigo que ameaçava os capitalistas da Europa porém não era o fracasso tecnológico ou financeiro e sim 30 a guerra não uma guerra entre pequenos países que podia ser facilmente circunscrita nem a guerra de uma Grande Potência contra um pequeno país uma ocorrência bastante comum e freqüentemente conveniente mas uma guerra generalizada entre as próprias Grandes Potências A Europa não era um continente vazio e sim o lar de milhões de povos velhos e novos cada nova ferrovia tinha que abrir seu caminho através de fronteira de solidez variável e que podiam ser fatalmente enfraquecidas ou vitalmente reforçadas com o contato Somente o punho de aço da finança sobre os fracos governos das regiões atrasadas podia impedir a catástrofe Quando a Turquia fugiu às suas obrigações financeiras em 1875 imediatamente romperam conflagrações militares que duraram de 1876 até 1878 quando da assinatura do Tratado de Berlim A paz foi mantida durante trinta e seis anos a partir daí Essa paz assombrosa foi implementada pelo Decreto de Muharrem de 1881 que estabeleceu a Dette Ottomane em Constantinopla Os representantes da haute finance se encarregaram da administração do grosso das finanças turcas Em numerosos casos eles arquitetaram compromissos entre as Potências em outros eles impediram a Turquia de criar dificuldades por sua própria conta em outros ainda eles atuaram simplesmente como agentes políticos das Potências de um modo geral serviram aos interesses monetários dos credores e se assim se pode dizer dos capitalistas que tentavam auferir lucros naquele país Essa tarefa se complicou muito com o fato de a Comissão de dívida não ser um organismo representativo dos credores privados mas um órgão da lei pública européia no qual a haute finance só tinha representação nãooficial Mas foi justamente nessa capacidade ambígua que ela se tornou capaz de estreitar o abismo existente entre as organizações política e econômica da época O comércio se unira definitivamente à paz No passado a organização do comércio fora militar e guerreira era um conjunto de piratas e bucaneiros era a caravana armada o caçador e o que colocava armadilhas o mercador com a espada a burguesia armada das cidades os aventureiros e os exploradores os plantadores e os conquistadores os caçadores de homens e os comerciantes de escravos os exércitos coloniais e os navios fretados Tudo isto já havia sido esquecido O comércio dependia agora de um sistema monetário internacional que não podia funcionar numa guerra generalizada Ele exigia a paz e as Grandes Potências se esforçavam por mantêIa Todavia o sistema de equilibrodepoder como vimos não podia garantir a paz por si mesmo Isto foi conseguido pela finança internacional cuja própria existência incorporava o princípio de uma nova dependência do comércio à paz 31 Acostumamonos demasiado a pensar na difusão do capitalismo como um processo que pode ser tudo menos pacífico e no capital financeiro como o principal instigador de inumeráveis crimes coloniais e agressões expansionistas A associação desse capital com as indústrias pesadas levou Lenin a afirmar que o capital financeiro era responsável pelo imperialismo principalmente na luta por esferas de influência concessões direitos extraterritoriais e as inumeráveis formas de que se valeram as Potências Ocidentais nas regiões atrasadas a fim de investir em ferrovias serviços públicos portos e outros setores permanentes nos quais as suas indústrias pesadas poderiam auferir lucros É verdade que os negócios e as finanças foram responsáveis por muitas guerras coloniais mas eles também foram responsáveis pelo fato de ter sido evitada uma grande conflagração A sua associação com a indústria pesada embora muito estreita apenas na Alemanha é responsável por ambas a guerra e a paz O capital financeiro como organizaçãochave da indústria pesada associavase aos vários ramos da indústria de forma muito entrelaçada para permitir que um único grupo determinasse a sua política A cada interesse favorecido pela guerra correspondiam dezenas de outros que poderiam ser afetados de forma adversa O capital internacional seria certamente o perdedor em caso de guerra porém mesmo a finança nacional só poderia lucrar excepcionalmente embora auferisse o suficiente freqüentemente para financiar as dezenas de guerras coloniais enquanto permanecessem circunscritas Quase todas as guerras foram organizadas pelos financistas mas eles também organizaram a paz A natureza precisa desse sistema estritamente pragmático que se resguardava com extremo rigor contra uma guerra generalizada enquanto oferecia negócios pacíficos em meio a uma seqüência interminável de pequenas guerras fica mais bem demonstrada pelas modificações que ele introduziu na lei internacional Enquanto o nacionalismo e a indústria tendiam a tornar as guerras mais ferozes e totais foram criadas salvaguardas efetivas para a continuidade do comércio pacífico em tempo de guerra Frederico o Grande se notabilizou por ter recusado em represália em 1752 honrar o empréstimo silesiano devido aos súditos britânicos5 Não foi feita qualquer outra tentativa dessa espécie desde então disse Hershey As guerras da Revolução Francesa nos fornecem os últimos exemplos importantes de confisco de propriedade 5 Hershey AS Essentials of International Public Law and Organization 1927 pp 56569 32 privada de súditos inimigos encontrados em território beligerante quando do rompimento das hostilidades Quando irrompeu a Guerra da Criméia permitiuse aos comerciantes inimigos abandonar o porto uma prática à qual aderiram Prússia França Rússia Turquia Espanha Japão e os Estados Unidos durante os cinqüenta anos seguintes Desde o inicio dessa guerra usouse de grande indulgência no comércio entre os beligerantes Assim na Guerra HispanoAmericana navios neutros com carregamentos de propriedade americana e que não eram contrabando de guerra destinavamse a portos espanhóis A opinião de que as guerras do século XVIII foram menos destrutivas do que as do século XIX em todos os aspectos é um simples preconceito No que diz respeito ao status de estrangeiros inimigos o serviço de empréstimos mantidos por cidadãos inimigos a propriedade inimiga ou o direito de comerciantes inimigos deixarem os portos o século XIX revelou uma mudança decisiva em favor de medidas para salvaguardar o sistema econômico em tempo de guerra Foi no século XX que se reverteu essa tendência Assim a nova organização da vida econômica forneceu o pano de fundo para a Paz dos Cem Anos No primeiro período as classes médias nascentes eram principalmente uma força revolucionária que ameaçava a paz como testemunhamos no levante napoleônico Foi justamente contra este novo fato de perturbação nacional que a Santa Aliança organizou a sua paz reacionária No segundo período a nova economia estava vitoriosa As classes médias eram agora elas mesmas o sustentáculo do interesse na paz muito mais poderoso do que o de seus predecessores reacionários e alimentado pelo caráter nacional internacional da nova economia Entretanto em ambos os casos o interesse pela paz só se tornou efetivo porque foi capaz de fazer o sistema de equilíbriodepoder servir à sua causa fornecendo àquele sistema os órgãos sociais capazes de lidarem diretamente com as forças internas ativas na área da paz Sob a Santa Aliança esses órgãos eram o feudalismo e as casas reinantes apoiados pelo poder espiritual e material da Igreja sob o Concerto da Europa eles foram a finança internacional e o sistema bancário nacional a ela aliados Não há necessidade de exagerar esta distinção Durante a paz dos Trinta Anos 18161846 a GrãBretanha já pressionava pela paz e pelos negócios e mesmo a Santa Aliança não desdenhava ajuda dos Rothschilds Sob o Concerto da Europa por sua vez a finança internacional teve que recorrer muitas vezes a seus associados dinásticos e aristocráticos Todavia tais fatos apenas servem para fortalecer nosso argumento de que em cada um 33 dos casos a paz se manteve não apenas através das chancelarias das Grandes Potências mas com a ajuda de agências concretamente organizadas que agiam a serviço de interesses generalizados Em outras palavras o sistema de equilíbriode poder só pôde evitar uma conflagração generalizada com o pano de fundo de uma nova economia Mas a façanha do Concerto da Europa foi incomparavelmente maior do que a da Santa Aliança Esta última só manteve a paz numa região limitada num continente imutável enquanto a primeira realizou a mesma tarefa em escala mundial enquanto o progresso social e econômico revolucionava o mapa do globo Esse grande feito político resultou da emergência de uma entidade específica a haute finance que foi o elo entre a organização política e a econômica da vida internacional Neste ponto deve ficar claro que a organização da paz repousava sobre a organização econômica Todavia as duas eram de consistência muito diferente Só se pode falar de uma organização de paz política mundial no sentido mais amplo do termo pois o Concerto da Europa em sua essência não era um sistema de paz mas apenas de soberanias independentes protegidas pelo mecanismo da guerra O oposto é verdadeiro em relação à organização econômica do mundo A menos que nos submetamos à prática nãocrítica de restringir o termo organizaçãoa organismos dirigidos de forma centralizada que atuam através de funcionários próprios temos que concordar que nada poderia ser mais definido do que os princípios universalmente aceitos sobre os quais essa organização repousa e nada mais concreto do que seus elementos factuais Orçamentos e armamentos comércio exterior e matériasprimas independência nacional e soberania eram agora funções da moeda e do crédito Já no último quarto do século XIX os preços mundiais das mercadorias constituíam a realidade principal das vidas de milhões de camponeses continentais as flutuações do mercado monetário de Londres eram anotadas diariamente pelos negociantes de todo o mundo e os governos discutiam os planos para o futuro à luz da situação dos mercados de capitais mundiais Só um louco duvidaria de que o sistema econômico internacional era o eixo da existência material da raça humana Como o sistema precisava de paz para funcionar o equilíbriodepoder era organizado para servilo Se se retirasse esse sistema econômico o interesse pela paz desapareceria da política Além disso não havia causa suficiente para esse interesse nem a possibilidade de salvaguardálo mesmo que existisse O sucesso do Concerto da Europa surgiu da necessidade da nova organização internacional da economia e terminaria inevitavelmente com a sua dissolução 34 A era de Bismarck 18611890 viu o Concerto da Europa na sua melhor forma Nas duas décadas que se seguiram imediatamente à ascensão da Alemanha à categoria de Grande Potência ela foi a principal beneficiária do interesse pela paz Ela forçara seu caminho até as primeira fileiras à custa da Áustria e da França era vantajoso para ela manter o status quo e evitar a guerra que poderia ser apenas uma guerra de retaliação contra ela mesma Bismarck patrocinou deliberadamente a noção de paz como elaboração conjunta das Potências e evitava compromissos que pudessem forçar a Alemanha para fora da sua posição de poder de paz Ele se opôs a ambições expansionistas nos Bálcãs e no alémmar utilizou de modo consistente a arma do livre comércio contra a Áustria e até mesmo contra a França frustrou as ambições da Rússia e da Áustria nos Bálcãs com o auxílio do jogo de equilíbriodepoder mantendo a harmonia com aliados em potencial e evitando situações que poderiam envolver a Alemanha numa guerra O agressor astuto de 18631870 transformouse no correto honesto de 1878 e no depreciador das aventuras coloniais Conscienciosamente ele passou a liderar o que considerava ser a tendência pacífica da época a fim de servir os interesses nacionais da Alemanha Entretanto no final da década de 1870 o episódio do livre comércio 184679 estava no final a utilização do padrãoouro pela Alemanha marcou o início de uma er de protecionismo e expansão colonial6 Alemanha passava agora a reforçar sua posição através de uma aliança precipitada com a ÁustriaHungria e a Itália um pouco mais tarde Bismarck perdeu o controle da política do Reich A partir daí a GrãBretanha passou a ser o líder do interesse pela paz numa Europa que ainda permanecia um grupo de estados soberanos independentes e portanto sujeitos ao equilíbriodepoder Na década de 1890 a haute finance estava no seu apogeu e a paz parecia mais segura do que nunca Os interesses britânicos e franceses diferiam na África os britânicos e os russos competiam uns com os outros na Ásia o Concerto embora capengando continuava a funcionar A despeito da Tríplice Aliança ainda havia mais de duas potências independentes para vigiar uma a outra ciumentamente Mas isto não durou muito tempo Em 1904 a GrãBretanha fez um acordo espetacular com a França sobre Marrocos e o Egito alguns anos mais tarde entrou em acordo com a Rússia sobre 6 Eulenburg F Aussenhandel und Aussenhandelspolitik em Grundriss der Sozialökonomik vol VIII 1929 p 209 35 a Pérsia e estava formada a contraaliança O Concerto da Europa essa federação frouxa de potências independentes foi finalmente substuído por dois agrupamentos de poder hostis o equilibriodepoder como sistema chegara a seu final Com apenas dois grupos de poder em competição seu mecanismo deixara de funcionar Não havia mais um terceiro grupo que se unisse a um ou outro para frear aquele que buscasse aumentar o seu poder Praticamente na mesma época os sintomas de dissolução das formas existentes de economia mundial rivalidade colonial e competição por mercados exóticos tornaramse agudos A habilidade da haute finanbe em contornar a disseminação das guerras diminuía rapidamente A paz ainda se arrastou durante os sete anos seguintes mas era apenas uma questão de tempo para que a dissolução da organização econômica do século XIX terminasse com a Paz dos Cem Anos À luz desse reconhecimento a verdadeira natureza da organização econômica altamente artificial sobre a qual repousava a paz assume um significado maior para o historiador 36 2 A DÉCADA DE 1920 CONSERVADORA A DÉCADA DE 1930 REVOLUCIONÁRIA O colapso do padrãoouro internacional foi o elo invisível entre a desintegração da economia mundial na virada do século e a transformação de toda uma civilização na década de 1930 Enquanto não se avaliar devidamente a importância vital deste fator não é possível apreciar corretamente tanto o mecanismo que conduziu a Europa ao seu destino como as circunstâncias responsáveis pelo fato estarrecedor das formas e conteúdos de uma civilização repousarem sobre alicerces tão precários Não se percebeu a verdadeira natureza do sistema internacional sob o qual vivíamos senão quando ele entrou em colapso Quase ninguém compreendeu a função política do sistema monetário internacional e a terrível rapidez da transformação tomou o mundo completamente de surpresa E no entanto o padrãoouro era o único pilar remanescente da economia mundial tradicional quando ele ruiu o resultado teria que ser imediato Para os economistas liberais o padrãoouro era uma instituição puramente econômica eles se recusavam a vêlo sequer como parte do mecanismo social Os países democráticos foram assim os últimos a compreender a verdadeira natureza da catástrofe e os mais demorados no combate ao seus efeitos O cataclisma já desabava sobre eles e seus líderes ainda não conseguiam entender que por trás do colapso do sistema internacional existia um longo desenvolvimento no interior dos países mais avançados que tornava anacrônico um tal sistema Em outras palavras a falência da própria economia de mercado ainda lhes escapava 37 A transformação chegou ainda mais abruptamente do que se poderia imaginar A Primeira Guerra Mundial e as revoluções de pósguerra faziam parte do século XIX O conflito de 19141918 apenas precipitou e agravou desmesuradamente uma crise que ele não havia criado Mas o cerne do dilema ainda não havia sido descoberto nessa época horrores e as devastações da guerra pareceram aos sobreviventes a fonte óbvia dos obstáculos a uma organização internacional que havia emergido tão inesperadamente De repente nem o sistema econômico nem o sistema político mundial pareciam funcionar e a explicação parecia estar nos terríveis sofrimentos infligidos à substância da humana pela Primeira Guerra Mundial Na realidade os obstáculos à paz e à estabilidade no pósguerra derivavam das mesmas fontes qual brotara a própria guerra A dissolução do sistema econômico mundial que se processava desde 1900 foi responsável pela tensão política que explodiu em 1914 a guerra e os tratados posteriores diminuíram superficialmente a tensão eliminando a competição alemã embora agravassem as causas da tensão e aumentassem ainda mais acentuadamente os obstáculos políticos e econômicos para a paz Do ponto de vista político os tratados incluíam uma contradição fatal Com o desarmamento unilateral das nações derrotadas eles impediam qualquer reconstrução do sistema de equilíbriodepoder uma vez que o poder é requisito indispensável para um tal sistema Genebra procurou em vão a restauração de um tal sistema nesse Concerto da Europa mais amplo e aperfeiçoado que se chamou a Liga das Nações Foram vãs as facilidades de consulta e de ação conjunta oferecidas no Pacto da Liga faltava a precondição essencial das unidades de poder independentes A Liga nunca chegou a ser realmente instituída nem o Artigo 16 sobre o cumprimento dos tratados nem o Artigo 19 sobre a sua revisão pacífica chegaram a entrar em vigor A única solução viável para o incandescente problema da paz a restauração sistema de equilíbriodepoder estava assim completamente fora do alcance e tanto isto é real que o verdadeiro objetivo dos estadistas mais construtivos da década de 1920 não foi sequer compreendido público que continuava num estado quase indescritível de confusão Ante o fato estarrecedor do desarmamento de um grupo de nações enquanto o outro continuava armado uma situação que impossibilitava qualquer passo construtivo para a organização da paz prevaleceu a atitude emocional de ser a Liga de alguma forma misteriosa a precursora de uma era de paz que necessitava apenas de freqüentes encorajamentos verbais para se tornar permanente Na América do 38 Norte se difundiu amplamente a idéia de que se a América tivesse feito parte da Liga as coisas seriam totalmente diferentes Não existe melhor prova do que esta para a falta de compreensão das fraquezas orgânicas do assim chamado sistema do pósguerra assim chamado porque se as palavras têm algum sentido a Europa não tinha então qualquer sistema político Um simples status quo como esse só pode durar enquanto dura a exaustão física das partes envolvidas não é de admirar portanto que a volta ao sistema do século XIX parecesse o único caminho a seguir Enquanto isto o Conselho da Liga poderia ter funcionado ao menos como uma espécie de diretório europeu semelhante ao Concerto da Europa no seu apogeu não fosse a regra fatal da unanimidade que indicou o pequeno Estado obstinado como árbitro da paz mundial O projeto absurdo do desarmamento permanente dos países derrotados impossibilitava qualquer solução construtiva A única alternativa para essa situação desastrosa era estabelecer uma ordem internacional imbuída de um poder organizado que transcendesse a soberania nacional Uma tal perspectiva porém estava inteiramente fora de cogitação naquela época Nenhum país da Europa para não mencionar os Estados Unidos submeterseia a um tal sistema Do ponto de vista econômico a política de Genebra era muito mais consistente quando pressionava pela restauração da economia mundial como segunda linha de defesa da paz Mesmo um sistema de equilíbriodepoder restabelecido com sucesso só trabalharia pela paz se fosse restaurado o sistema monetário internacional Na falta de câmbios estáveis e liberdade de comércio os governos das várias nações como no passado veriam a paz como um interesse menor pelo qual lutariam apenas enquanto ela não interferisse com seus interesses maiores Woodrow Wilson foi o primeiro entre os estadistas da época que parece ter compreendido a interdependência entre a paz e o comércio não apenas como garantia do comércio mas também da paz Não admira pois que a Liga lutasse persistentemente para reconstruir a moeda internacional e a organização do crédito como a única salvaguarda possível da paz entre os estados soberanos e que o mundo dependesse como nunca antes da haute finance J P Morgan havia substituído N M Rothschild como o demiurgo do século XIX rejuvenescido De acordo com os padrões daquele século a primeira década do pósguerra surgiu como era revolucionária à luz da nossa experiência atual ocorreu precisamente o contrário A intenção daquela época era profundamente conservadora e expressava a convicção quase universal 39 de que somente com o restabelecimento do sistema pré1914 agora sobre fundações sólidas poderseia restaurar a paz e a prosperidade Na verdade foi justamente pelo fracasso desse esforço de volta ao passado que surgiu a transformação da década de 1930 Embora as revoluções e contrarevoluções dos pósguerra fossem espetaculares elas apenas representavam reações mecânicas à derrota militar ou no máximo uma reencenação do usual drama liberal e constitucionalista de civilização ocidental no cenário da Europa Central e Oriental Foi somente na década de 1930 que elementos inteiramente novos penetraram no padrão da história ocidental Os levantes e os contralevantes da Europa Central e Oriental na década de 1917 a 1920 a despeito do seu cenário foram apenas caminhos oblíquos para reerguer regimes que haviam sucumbido nos campos de batalha Quando se dissolveu a fumaça da contrarevolução os sistema políticos de Budapeste Viena e Berlim não eram muito diferentes do que tinham sido antes da guerra O mesmo ocorreu com a Finlândia os Estados Bálticos Polônia Áustria Hungria Bulgária e até mesmo a Itália e a Alemanha até meados da década de 1920 Em alguns países ocorreu um grande progresso em relação à liberdade nacional e à reforma agrária realizações bastante comuns já na Europa Ocidental desde 1789 Nesse sentido a Rússia não constitui exceção A tendência da época era simplesmente estabelecer ou restabelecer o sistema comumente associado com os ideais das revoluções inglesa americana e francesa Não apenas Hindenburg e Wilson mas também Lenin e Trotski estavam nesse sentido amplo na linha da tradição ocidental No início da década de 1930 a mudança surgiu abrupta Seus marcos foram o abandono do padrãoouro pela GrãBretanha os Planos Qüinqüenais na Rússia o lançamento do New Deal a Revolução NacionalSocialista na Alemanha o colapso da Liga em favor de impérios autárquicos Enquanto no final da guerra os ideais do século XIX eram predominantes e sua influência dominou a década seguinte já em 1940 havia desaparecido qualquer vestígio do sistema internacional e à parte enclaves as nações viviam uma conjuntura internacional inteiramente nova A causa primordial da crise calculamos foi o trágico colapso do sistema econômico internacional Desde a virada do século ele vinha funcionando precariamente e a guerra e os Tratados finalmente destruíramno Isto tornouse aparente na década de 1920 quando dificilmente uma crise interna na Europa não alcançava seu clímax em termos de economia externa Os estudantes de política agrupavam então 40 os vários países não em termos de continentes mas de acordo com o grau de aderência deles a uma moeda estável A Rússia havia assombrado o mundo com a destruição do rublo cujo valor havia sido reduzido a zero através simplesmente da inflação A Alemanha repetirá esse gesto desesperado de enganar o Tratado a expropriação da classe dos arrendatários que ocorreu na sua esteira colocou as fundações para a revolução nazista O prestígio de Genebra deveuse ao seu sucesso em ajudar a Áustria e a Hungria a restaurarem suas moedas e Viena tornouse a Meca dos economistas liberais em virtude de uma operação brilhantemente bemsucedida no Krone austríaco à qual o paciente infelizmente não sobreviveu Na Bulgária Grécia Finlândia Letônia Lituânia Estônia Polônia e Rumânia a restauração da moeda deu condições à contra revolução de exigir uma participação no poder Na Bélgica França e Inglaterra a esquerda foi alijada em nome dos padrões de segurança da moeda Uma seqüência quase ininterrupta de crises monetárias ligava os indigentes Bálcãs aos afluentes Estados Unidos através da conexão elástica de um sistema internacional de crédito que transmitiu a tensão de moedas imperfeitamente restauradas primeiro da Europa Oriental para a Europa Ocidental depois da Europa Ocidental para os Estados Unidos Finalmente os próprios Estados Unidos foram engolfados pelos efeitos de uma estabilização prematura das moedas européias Começara o colapso final O primeiro choque ocorreu dentro de esferas nacionais Algumas moedas como a russa a alemã a austríaca a húngara desapareceram no espaço de um ano À parte uma taxa sem precedente de câmbio no valor das moedas ocorreu a circunstância de que esse câmbio tinha lugar numa economia completamente monetarizada Havia sido introduzido um processo celular na sociedade humana cujos efeitos estavam fora do alcance da experiência Tanto interna como externamente moedas de valor minguante significavam umaruptura As nações se viam separadas de seus vizinhos como por um abismo enquanto ao mesmo tempo os vários estratos da população eram afetados de modos inteiramente diferentes e muitas vezes opostos A classe média intelectual foi literalmente pauperizada os tubarões financeiros acumulavam fortunas chocantes Entrara em cena um fator de uma força incalculável simultaneamente integradora e desintegradora A fuga do capital era um novum Nem em 1848 nem em 1866 e nem mesmo em 1871 registrouse um tal acontecimento No entanto ficou patenteo papel vital que ele desempenhou na queda dos governos 41 liberais na França em 1925 e novamente em 1938 bem como no desenvolvimento do movimento fascista na Alemanha em 1930 A moeda tornouse o pivô da política nacional Sob uma economia monetária moderna ninguém podia deixar de experimentar diariamente o encolhimento ou a expansão do bastão financeiro as populações tornaramse conscientes de que significava o dinheiro o efeito da inflação na renda real era descontado adiantadamente pela massas em todos os lugares homens e mulheres pareciam ver o dinheiro estável como a necessidade suprema da sociedade humana Todavia essa conscientização era inseparável do reconhecimento de que os alicerces da moeda podiam depender de fatores políticos fora das fronteiras nacionais Assim o bouleversement social que abalou a confiança na estabilidade inerente ao meio monetário abalou também o conceito ingênuo da soberania financeira numa economia interdependente Daí em diante as crises internas associadas à moeda tenderiam a levantar graves problemas externos A crença no padrãoouro tornouse a religião daquele tempo Para alguns ela representava um credo ingênuo para outros uma crença crítica para outros ainda um credo satânico que implicava a aceitação da carne e na rejeição do espírito E no entanto a crença em si era a mesma isto é de que as notas bancárias tinham valor porque elas representavam o ouro Não fazia diferença então se o próprio ouro tinha valor pelo fato de incorporar trabalho como diziam os socialistas ou pelo fato de ser útil e escasso como afirmava a doutrina ortodoxa A guerra entre o céu e o inferno ignorava o tema dinheiro deixando milagrosamente unidos capitalistas e socialistas Onde Ricardo e Marx tinham a mesma opinião o século XIX não conheceu a dúvida Bismarck e Lassalle John Stuart Mill e Henry George Philip Snowden e Calvin Coolidge Misese Trotski aceitaram igualmente essa fé Karl Marx usou de grande empenho para demonstrar que os talões de trabalho utópicos de Proudhon que deveriam substituir a moeda eram baseados numa autoilusão e o Das Kapital apresentou a teoria da mercadoriadinheiro na sua forma ricardiana O russo bolchevista Sokolnikoff foi o primeiro estadista pósguerra a restaurar o valor da moeda do seu país em termos de ouro o socialdemocrata alemão Hilferding pôs seu partido em perigo ao defender ardorosamente os princípios da moeda estável o socialdemocrata austríaco Otto Bauer apoiou os princípios monetários subjacentes à restauração do Krone tentada pelo seu implacável adversário Seipel o socialista inglês Philip Snowden voltouse contra o trabalhismo acreditando que a libra esterlina 42 não estava a salvo nas suas mãos e o Duce manteve o valorouro da lira em 90 gravado em pedra e afirmou que morreria em sua defesa Seria difícil encontrar qualquer divergência a esse respeito entre os pronunciamentos de Hoover e Lenin Churchill e Mussolini Na verdade a essencialidade do padrãoouro para o funcionamento do sistema econômico internacional da época era o dogma primeiro e único comum aos homens de todas as nações de todas as classes de todas as religiões e filosofias sociais Era a única realidade invisível à qual podia se apegar a vontade de viver quando a humanidade se encontrava a braços ela mesma com a tarefa de restaurar sua existência em frangalhos O esforço que fracassou foi o mais compreensivo a que o mundo já assistiu A estabilização de moedas praticamente arrasadas na Áustria Hungria Bulgária Finlândia Rumânia ou Grécia não foi apenas um ato de fé por parte desses países pequenos e fracos que literalmente passaram fome para alcançar as margens do ouro mas foi também uma aprovação severa para seus poderosos e ricos patrocinadores os vitoriosos da Europa Ocidental Enquanto as moedas dos vitoriosos flutuavam a pressão não se tornou aparente eles continuavam a fazer empréstimo externos como antes da guerra e assim ajudavam a manter as economias das nações derrotadas Entretanto quando a GrãBretanha e a França reverteram ao ouro a carga dos seus câmbios estabilizados passou a contar Eventualmente uma preocupação silenciosa quanto à segurança da libra passou a ser marcante no principal país do ouro os Estados Unidos Essa preocupação que atravessou o Atlântico acabou trazendo a América inesperadamente para a zona de perigo O ponto parece apenas técnico porém deve ser entendido claramente O apoio americano à libra esterlina em 1927 significava baixas taxas de juros em Nova York a fim de impedir grandes movimentos de capital de Londres para Nova York O Federal Reserve Board assumiu um compromisso com o Banco da Inglaterra para manter baixos os seus juros Mas chegou o momento em que a própria América precisou de juros altos pois o seu próprio sistema de preços começou a ser perigosamente inflacionado esse fato foi obscurecido pela existência de um nível de preços estável mantido a despeito de custos tremendamente diminuídos Quando o balanço habitual do pêndulo após sete anos de prosperidade resultou no crack de 1929 já longamente retardado as coisas se agravaram intensamente pelo estado vigente de criptoinflação Os devedores extenuados pela deflação puderam ver o colapso do credor inflado Foi um portento A América num gesto instintivo de libertação abandonou 43 o padrãoouro em 1933 desaparecendo assim o último vestígio da economia mundial tradicional Embora muito pouca gente pudesse discernir naquela época o significado mais profundo do acontecimento a história imediatamente reverteu a sua tendência Durante mais de uma década a restauração do padrãoouro havia sido o símbolo da solidariedade mundial Realizaramse inúmeras reuniões de Bruxelas a Spa e Genebra de Londres a Locarno e Lausanne para atingir as precondições políticas necessárias a moedas estáveis A própria Liga da Nações foi acrescida da uma Organização Internacional do Trabalho em parte para uniformizar as condições de competição entre as nações de tal forma que o comércio pudesse ser liberado sem perigo para os padrões de vida A moeda estava no cerne das campanhas lançadas por Wall Street para superar o problema das transferências e para primeiro comercializar e depois mobilizar as reparações Genebra atuou como o patrocinador de um processo de reabilitação no qual a pressão conjunta da City de Londres e dos puristas monetários neodássicos de Viena foi posta a serviço do padrãoouro Todo o esforço internacional foi dirigido a esse objetivo finalmente enquanto os governos nacionais como regra acomodavam suas políticas à necessidade de salvaguardar a moeda particularmente aquelas políticas que se preocupavam com o comércio exterior empréstimos assuntos bancários e câmbio Embora todos concordassem que as moedas estáveis dependiam em última instância do comércio exterior todos a não ser os adeptos dogmáticos do livre comércio sabiam também que deveriam ser tomadas medidas imediatas as quais iriam restringir inevitavelmente o comércio exterior e os pagamentos externos na maioria dos países Desenvolveramse cotas de importação moratórias e acordos imobilizados sistemas de compensação e tratados comerciais bilaterais acordos de permuta embargos de exportações de capital controles do comércio exterior e equalizações dos fundos cambiais para fazer face ao mesmo conjunto de circunstâncias O incubus da autosuficiência no entanto perseguia as medidas tomadas para a proteção da moeda Embora a intenção fosse a liberdade de comércio o resultado foi seu estrangulamento Ao invés de ganhar acesso aos mercados do mundo os governos por seus próprios atos estavam barrando seus países de qualquer nexo internacional e sacrifícios cada vez maiores passaram a ser exigidos para manter pelo menos um fluxo mínimo de comércio Os esforços frenéticos para proteger o valor externo da moeda como meio de comércio exterior levaram os povos mesmo contra a sua vontade a uma economia autárquica Todo o arsenal 44 de medidas restritivas que se constituía num afastamento radical da economia tradicional foi na verdade o resultado dos propósitos conservadores do livre comércio Essa tendência reverteu abruptamente com a queda final do padrãoouro Os sacrifícios feitos para restaurálo tinham que ser feitos novamente para que pudéssemos viver sem ele As mesmas instituições que haviam sido destinadas a reprimir a vida e o comércio para manter um sistema de moedas estáveis eram agora utilizadas para ajustar a vida industrial à ausência permanente de um tal sistema Talvez seja por isto que a estrutura mecânica e tecnológica da indústria moderna tenha sobrevivido ao impacto do colapso do padrãoouro Assim na luta para preserválo o mundo vinha se preparando inconscientemente para o tipo de esforço e o tipo de organização necessários para se adaptar à sua perda Entretanto a intenção agora era inteiramente oposta nos países que mais sofreram durante a prolongada luta pelo inatingível forças titânicas se desprenderam como reação Nem a Liga das Nações nem a haute finance internacional sobreviveram ao padrãoouro com o seu desaparecimento tanto o interesse organizado pela paz representado pela Liga como os seus instrumentos principais de atuação os Rothschilds e os Morgans desapareceram da política A ruptura do fio de ouro foi o sinal de uma revolução mundial Entretanto a quebra do padrãoouro nada mais fez do que estabelecer a data de um acontecimento demasiado grande para ser causado por ele Nada menos do que uma destruição completa das instituições da sociedade do século XIX acompanhou a crise em grande parte do mundo e em todos os lugares essas instituições foram modificadas e reformuladas além de todo o reconhecimento Em muitos países o estado liberal foi substituído por ditaduras totalitárias e a instituição central do século produção baseada em mercados livres foi substituída por novas formas de economia Enquanto grandes nações reconstruíram o próprio molde do seu pensamento e se lançavam à guerra para escravizar o mundo em nome de concepções até então desconhecidas sobre a natureza do universo nações ainda maiores corriam em defesa da liberdade que passou a adquirir em suas mãos um significado igualmente ainda nãoconhecido fracasso do sistema internacional embora tivesse acionado a transformação certamente não poderia ter sido responsável pela sua profundidade e conteúdo Embora possamos compreender por que tudo aconteceu subitamente ainda estamos no escuro quanto ao que motivou tudo isto 45 Não foi por acidente que a transformação se fez acompanhar de guerras numa escala sem precedentes A história estava acionada para uma mudança social o destino das nações estava ligado a seu papel numa transformação institucional Uma tal simbiose não é excepcional na história embora os grupos nacionais e as instituições sociais tenham origens próprias eles tendem a se acoplarem uns aos outros na sua luta pela sobrevivência Um exemplo famoso de uma tal simbiose uniu o capitalismo e as nações marítimas do Atlântico A Revolução Comercial tão estreitamente ligada à ascensão do capitalismo tornouse o veículodepoder para Portugal Espanha Holanda França Inglaterra e Estados Unidos e cada uma delas se beneficiou das oportunidades oferecidas por aquele movimento amplo e bem arraigado enquanto de outro lado o próprio capitalismo se expandia pelo planeta através da instrumentalidade dessas Potências ascendentes A lei se aplica também ao seu reverso Uma nação pode ser prejudicada na sua luta pela sobrevivência pelo fato de suas instituições ou algumas delas pertencerem a um tipo que pode estar em declínio o padrãoouro na Segunda Guerra Mundial foi um exemplo de um tal organismo antiquado Por outro lado países que por razões próprias se opõem ao status quo podem descobrir rapidamente as fraquezas da ordem institucional vigente e antecipar a criação de instituições mais bem adaptadas a seus interesses Tais grupos estariam empurrando aquilo que está caindo e se apoiando naquilo que vem chegando com as suas próprias forças Poderia parecer então que eles teriam dado origem ao processo de mudança social quando na verdade eles foram apenas os seus beneficiários e poderiam até estar desviando a tendência ara servir a seus próprios objetivos Assim a Alemanha uma vez derrotada estava em posição de reconhecer as falhas ocultas na ordem do século XIX e empregar esse conhecimento para apressar a destruição de tal ordem Podese atribuir até uma espécie de superioridade intelectual sinistra àqueles dentre os seus estadistas da década de 1930 que se voltaram para essa tarefa de destruição e essa tarefa algumas vezes abrangeu o desenvolvimento de novos métodos de finanças comércio guerra e organização social no decurso da sua tentativa de forçar as coisas a ingressarem no caminho da sua política Todavia esses problemas definitivamente não foram criados pelos governos que os encamparam como vantagens eles eram reais dados objetivamente e permanecerão conosco qualquer que seja o destino dos países individuais Mais uma vez tornase aparente a distinção entre a Primeira e Segunda Guerras Mundiais a primeira 46 ainda era fiel ao tipo do século XIX um simples conflito de poderes acionado pelo colapso do sistema de equilíbriodepoder A última já faz parte do levante mundial Isto permitirnosá destacar as pungentes histórias nacionais do período da transformação social então em progresso Será fácil ver de que maneira a Alemanha e a Rússia a GrãBretanha e os Estados Unidos como unidades de poder foram ajudados ou estorvados pela sua relação com o processo social subjacente O mesmo é verdadeiro também quanto ao próprio processo social o fascismo e o socialismo encontraram um veículo na ascensão de Potências individuais que ajudaram a difundir O seu credo A Alemanha e a Rússia respectivamente tornaramse os verdadeiros representantes do fascismo e do socialismo no mundo O escopo real desses movimentos sociais só pode ser avaliado se o seu caráter transcendental para o bem ou para o mal é reconhecido e visto como desligado dos interesses nacionais alistados a seu serviço Os papéis que a Alemanha ou a Rússia a Itália ou o Japão a GrãBretanha ou os Estados Unidos estão desempenhando na Segunda Guerra Mundial embora formem parte da história universal não são a preocupação direta deste livro O fascismo e o socialismo porém foram forças vivas na transformação institucional que é o seu tema principal O élan vital que produziu o ímpeto inescrutável dos povos alemão e russo em reclamar uma parcela maior no registro da raça humana deve ser considerado como documento factual das condições sob as quais nossa história se desenrola enquanto que o teor do fascismo e do socialismo ou do New Deal é a parte da própria história Isto nos leva à nossa tese que ainda precisa ser provada que as origens do cataclisma repousam na tentativa utópica do liberalismo de estabelecer um sistema de mercado autoregulável Uma tese como esta parece investir esse sistema de poderes quase místicos implica nem mais nem menos que o equilíbriodepoder o padrãoouro e o estado liberal esses elementos fundamentais da civilização do século XIX em última análise foram todos eles modelados por uma matriz comum o mercado autoregulável A afirmativa parece extrema ou pelo menos chocante em seu materialismo crasso Todavia a peculiaridade da civilização cujo colapso testemunhamos foi precisamente o fato dela se basear em fundamentos econômicos Sem dúvida outras sociedades e outras civilizações também foram limitadas pelas condições materiais da sua existência este é um traço comum a toda vida humana na verdade a toda a vida quer religiosa ou nãoreligiosa materialista ou espiritualista 47 Todos os tipos de sociedades são limitados por fatores econômicos Somente a civilização do século XIX foi econômica em um sentido diferente e distinto pois ela escolheu basearse num motivo muito raramente reconhecido como válido na história das sociedades humanas e certamente nunca antes elevado ao nível de uma justificativa de ação e comportamento na vida cotidiana a saber o lucro O sistema de mercado auto regulável derivou unicamente desse princípio O mecanismo posto em movimento com a motivação do lucro foi comparável em eficiência apenas à mais violenta irrupção de fervor religioso na história No prazo de uma geração toda a humanidade estava sujeita à sua influência integral Como é do conhecimento de todos ele adquiriu a sua maturidade na Inglaterra na esteira da Revolução Industrial durante a primeira metade do século XIX Alcançou o continente e a América do Norte cerca de cinqüenta anos mais tarde Na Inglaterra no continente e até mesmo na América do Norte posteriormente alternativas similares modelaram os acontecimentos diários em um padrão cujos traços principais eram idênticos em todos os países de civilização ocidental Para determinar as origens do cataclisma temos que nos voltar para a ascensão e queda da economia de cercado A sociedade de mercados nasceu na Inglaterra porém foi no continente que a sua fraqueza engendrou as mais trágicas complicações Para podermos compreender o fascismo alemão temos que reverter à Inglaterra ricardiana Nunca é demais enfatizar que o século dezenove foi o século da Inglaterra a Revolução Industrial foi um acontecimento inglês A economia de mercado o livre comércio e o padrãoouro foram inventos ingleses Essas instituições irromperam em todos os lugares durante a década de 1920 na Alemanha na Itália ou na Áustria o acontecimento foi simplesmente mais político e mais dramático Entretanto qualquer que seja o cenário e a temperatura dos episódios finais os fatores que em última análise destruíram essa civilização devem ser estudados no berço da Revolução Industrial a Inglaterra 48 FOLHA EM BRANCO 49 SEGUNDA PARTE ASCENSÃO E QUEDA DA ECONOMIA DE MERCADO 50 I O MOINHO SATÂNICO 51 3 HABIT AÇAO VERSUS PROGRESSO No coração da Revolução Industrial do século XVIII ocorreu um progresso miraculoso nos instrumentos de produção o qual se fez acompanhar de uma catastrófica desarticulação nas vidas das pessoas comuns Tentaremos desenredar os fatores que determinam as formas dessa desarticulação que teve a sua pior fase na Inglaterra há cerca de um século Que moinho satânico foi esse que triturou os homens transformandoos em massa Quanto pode se atribuir como causa às novas condições físicas E quanto se pode atribuir às dependências econômicas que funcionavam sob novas condições Qual foi o mecanismo por cujo intermédio foi destruído o antigo tecido social e tentada sem sucesso uma nova integração homemnatureza A filosofia liberal jamais falhou tão redondamente como na compreensão do problema da mudança Animada por uma fé emocional na espontaneidade a atitude de senso comum em relação à mudança foi substituída por uma pronta aceitação mística das conseqüências sociais do progresso econômico quaisquer que elas fossem As verdades elementares da ciência política e da arte de governar foram primeiro desacreditadas e depois esquecidas Não é preciso entrar em minúcias para compreender que um processo de mudança nãodirigida cujo ritmo é considerado muito apressado deveria ser contido se possível para salvaguardar o bemestar da comunidade Essas verdades elementares da arte de governar tradicional que muitas vezes refletiam os ensinamentos de uma filosofia social herdada dos antepassados foram apagadas do pensamento dos mestres do século XIX pela ação corrosiva de um utilitarismo cru aliada a uma confiança nãocrítica nas alegadas propriedades auto curativas de um crescimento inconsciente 52 O liberalismo econômico interpretou mal a história da Revolução Industrial porque insistiu em julgar os acontecimentos sociais a partir de um ponto de vista econômico Para ilustrar este ponto voltaremos a um assunto que poderá parecer remoto a uma primeira vista os cercamentos dos campos abertos enclosures e as conversões da terra arável em pastagem durante o primeiro período Tudor na Inglaterra quando os campos e as áreas comuns foram cercados pelos senhores e condados inteiros se viram ameaçados de despovoamento Ao evocar a desgraça do povo provocada pelos cercamentos e conversões nosso propósito será de um lado demonstrar o paralelo existente entre as devastações causadas pelos cercamentos finalmente benéficos e as que resultaram na Revolução Industrial e de outro lado de uma forma mais ampla esclarecer as alternativas enfrentadas por uma comunidade no paroxismo de um progresso econômico nãoregulado Os cercamentos seriam um progresso óbvio se não ocorresse a conversão às pastagens A terra cercada valia duas ou três vezes a nãocercada Nos lugares onde se continuou a cultivar a terra não diminuiu o emprego e o suprimento de alimentos aumentou de forma marcante O rendimento da terra elevouse consideravelmente principalmente onde a terra era alugada Mesmo a conversão de terras aráveis em pastagens de carneiros não foi inteiramente prejudicial à circunvizinhança a despeito da destruição de habitações e da restrição de empregos que ela acarretou A indústria caseira já se difundia na segunda metade do século XV e um século mais tarde ela já era um aspecto marcante no campo A lã produzida na fazenda de carneiros dava empregos a pequenos posseiros e agricultores sem terra e os novos centros de indústria de lã garantiam a renda a uma quantidade de artesãos Entretanto e este é o ponto é somente numa economia de mercado que tais efeitos compensadores podem ser tomados como certos Na falta de uma tal economia a ocupação altamente lucrativa de criar carneiros e vender sua lã poderia arruinar o país Os carneiros que transformavam areia em ouro podiam muito bem ter transformado o ouro em areia como ocorreu com as riquezas da Espanha do século XVII cujo solo erodido jamais se recuperou da expansão excessiva da criação de carneiros Um documento oficial de 1607 preparado para uso dos pares do Reino colocou o problema em uma única frase poderosa O homem pobre terá satisfeito o seu objetivo Habitação e o nobre não ficará prejudicado em seu desejo Progresso Esta fórmula parece tomar 53 como certa a essência do puro progresso econômico que alcançara o seu aperfeiçoamento à custa da desarticulação social Todavia ela aponta também para a trágica necessidade que faz com que o homem pobre se apegue à sua choupana arruinado pela ânsia de progresso do homem rico que o beneficia em particular Os cercamentos foram chamados de uma forma adequada de revolução dos ricos contra os pobres Os senhores e os nobres estavam perturbando a ordem social destruindo as leis e os costumes tradicionais às vezes pela violência às vezes por pressão e intimidação Eles literalmente roubavam o pobre na sua parcela de terras comuns demolindo casas que até então por força de antigos costumes os pobres consideravam como suas e de seus herdeiros O tecido social estava sendo destruído aldeias abandonadas e ruínas de moradias humanas testemunhavam a ferocidade da revolução ameaçando as defesas do país depredando suas cidades dizimando sua população transformando seu solo sobrecarregado em poeira atormentando seu povo e transformandoo de homens e mulheres decentes numa malta de mendigos e ladrões Embora isto ocorresse apenas em determinadas áreas os ponto negros ameaçavam fundirse numa catástrofe uniforme7 O Rei e seu Conselho os Chanceleres e os Bispos defendiam o bemestar da comunidade e na verdade a substância humana e natural da sociedade contra essa espoliação Sem qualquer intermitência durante uni século e meio desde a década de 1490 no máximo até a década de 1640 eles lutaram contra o despovoamento Somerset Lorde Protetor perdeu sua vida nas mãos da contra revolução que aboliu as leis do cercamento do livro de estatutos e estabeleceu a ditadura dos senhores de pastagens depois que a rebelião de Kett foi derrotada com o rnorticínio de alguns milhares de camponeses durante o processo Somerset foi acusado não sem alguma razão de ter encorajado os camponeses rebeldes com a sua corajosa denúncia dos cercamentos Decorreu mais uma centena de anos até que ocorresse um segundo encontro de forças entre os mesmos contendores mas nessa ocasião os cercamentos eram muito mais propriedade de ricos agricultores e mercadores do que dos senhores e nobres O uso deliberado que a Coroa fazia de sua prerrogativa de impedir cercamentos e que envolvia a alta política leiga e eclesiástica e o uso não menos deliberado do tema dos 7 Tawney R H The Agrarian Problem in the 16th Century 1912 54 cercamentos para fortalecer sua posição contra a pequena nobreza gentry numa luta constitucional foi o que acarretou a morte de Strafford e Laud nas mãos do Parlamento Todavia sua política não era reacionária apenas industrialmente mas também politicamente além disso naquela ocasião os cercamentos se destinavam mais ao cultivo da terra do que às pastagens A onda da Guerra Civil acabou por submergir definitivamente a política pública dos Tudors e dos primeiros Stuarts Os historiadores do século dezenove são unânimes em condenar a política dos Tudors e dos primeiros Stuarts como demagógica se não inteiramente reacionária Suas simpatias se inclinam naturalmente para o Parlamento e esse organismo era a favor dos cercamentos H de B Gibbins embora amigo fervoroso do povo comum escreveu Tais encenações protetoras foram inteiramente vãs como sempre acontece com as encenações protetoras8 Innes foi ainda mais definitivo A prática habitual de punir a vagabundagem e tentar forçar a atividade em campos nãoadequados e dirigir o capital para investimentos menos lucrativos a fim de prover empregos fracassou como sempre9 Gairdner não hesitou em apelar para as noções de livre comércio como lei econômica As leis econômicas certamente não foram compreendidas escreveu ele e foram feitas tentativas para impedir que as moradias dos lavradores fossem destruídas pelos senhores de terra Estes achavam mais proveitoso transformar terras aráveis em pastagens para aumentar a produção de lã A repetição freqüente desses decretos apenas demonstra quão ineficientes eles eram na prática10 Mais recentemente um economista como Heckscher enfatiza a sua convicção de que o mercantilismo no seu cerne deveria ser explicado através de uma compreensão insuficiente das complexidades do fenômeno econômico um assunto que a mente humana obviamente precisa de mais alguns séculos para dominar11 Com efeito a legislação anticercamento parece jamais ter conseguido impedir o curso do movimento de cercamentos nem parece mesmo têlo obstruído seriamente John Hales que não fica abaixo de ninguém em seu fervor pelos princípios dos homens do Commonwealth admitiu ter sido impossível obter provas contra os cercadores pois na maioria das vezes seus empregados prestavam 8 Gibbins H de B The Industrial History of England 1895 9 Innes A D England under the Tudors 1932 10 Gairdner J Henry VIII Cambridge Modern History vol II 1918 11 Heckscher EF Mercantilism 1935 p 104 55 testemunho nos júris e era tal o número de seus partidários e agregados que nenhum júri podia realizarse sem eles Ás vezes o simples expediente de cavar um sulco no meio do campo podia salvar o senhor acusado de qualquer penalidade Um prevalecimento tão fácil de interesses privados sobre a justiça é visto muitas vezes como um sinal certo da ineficácia da legislação e a vitória da tendência inutilmente obstruída é citada subseqüentemente como evidência conclusiva da alegada futilidade de um intervencionismo reacionário Todavia tal opinião parece perder de vista o ponto principal Por que a vitória final de uma tendência deve ser tomada como prova de ineficácia dos esforços para diminuir o ritmo do seu progresso E por que o propósito dessas medidas não pode ser visto precisamente naquilo que elas alcançaram i e a diminuição do ritmo da mudança Aquilo que é ineficaz para parar uma linha de desenvolvimento não é por isto mesmo totalmente ineficaz O ritmo da mudança muitas vezes não é menos importante do que a direção da própria mudança mas enquanto essa última freqüentemente não depende da nossa vontade é justamente o ritmo no qual permitimos que a mudança ocorra que pode depender de nós A crença no progresso espontâneo pode cegarnos quanto ao papel do governo na vida econômica Este papel consiste muitas vezes em alterar o ritmo da mudança apressandoo ou diminuindoo conforme o caso Se acreditarmos que tal ritmo é inalterável ou o que é pior se acreditarmos ser um sacrilégio interferir com ele então não existe mesmo um campo para qualquer intervenção Os cercamentos oferecem um bom exemplo Em retrospecto nada pode parecer mais claro do que a tendência de progresso econômico da Europa Ocidental o qual objetivava eliminar uma uniformidade artificial das técnicas de agricultura faixas de cultura entrelaçadas e a instituição primitiva das áreas comuns no campo No que se refere à Inglaterra é certo que o desenvolvimento da indústria lanígera foi um recurso para o país levando como o fez ao estabelecimento da indústria têxtil o veículo da Revolução Industrial Além disso é claro também que o incremento da tecelagem doméstica dependia do aumento do fornecimento doméstico de lã Esses fatos são suficientes para identificar a mudança da terra arável para a pastagem e o movimento de cercamentos que a acompanhou como a tendência do progresso econômico Entretanto não fosse a política conseqüente mantida pelos estadistas Tudors e os primeiros Stuarts o ritmo desse progresso poderia ter sido ruinoso transformando o próprio desenvolvimento em um acontecimento degenerativo ao 56 invés de construtivo Justamente desse ritmo dependia principalmente saber se os despojados poderiam ajustarse às condições modificadas sem danificar fatalmente a sua substância humana e econômica física e moral se eles encontrariam novos empregos nas áreas de oportunidades indiretamente ligadas à mudança e se os efeitos do incremento de importações induzido pelo aumento das exportações permitiria àqueles que perderam seus empregos com a mudança encontrar novas fontes de subsistência Em cada um dos casos a resposta dependia dos ritmos relativos de mudança e ajustamento As habituais considerações em última instância da teoria econômica são inadmissíveis elas iriam prejulgar o tema admitindo que o acontecimento ocorreu numa economia de mercado Por mais que nos pareça natural fazer essa suposição ela é injustificada a economia de mercado é uma estrutura institucional e sempre nos esquecemos disto que nunca esteve presente a não ser em nosso tempo e mesmo assim ela estava apenas parcialmente presente No entanto além desta suposição as considerações em última instância não têm qualquer significado Se o efeito imediato de uma mudança é deletério então até prova em contrário o efeito final também é deletério Se a conversão das terras aráveis em pastagens envolve a destruição de um certo número de casas a abolição de um número definido de empregos e a diminuição dos suprimentos de alimentos disponíveis no local então esses efeitos devem ser encarados como um efeito final até que se apresente uma prova em contrário Isto não exclui a consideração dos possíveis efeitos do aumento de exportações na renda do proprietário da terra das possíveis oportunidades de empregos criadas por um aumento eventual no suprimento local de lã ou a forma na qual os proprietários de terras podiam empregar suas rendas aumentadas seja em novos investimentos ou em despesas de luxo A comparação entre o ritmo da mudança e o ritmo do ajustamento decidirá o que deve ser visto como resultado líquido da mudança Em nenhum caso porém podemos presumir sobre o funcionamento das leis de mercado a menos que se demonstre a existência de um mercado autoregulável As leis de mercado só são relevantes no cenário institucional de uma economia de mercado não foram os estadistas da Inglaterra dos Tudors que se afastaram dos fatos e sim os economistas modernos cujas observações a respeito deles deixaram implícita a existência anterior de um sistema de mercado A Inglaterra suportou sem grandes danos a calamidade dos cercamentos apenas porque os Tudors e os primeiros Stuarts usaram o poder da Coroa para diminuir o ritmo do processo de desenvolvimento econômico 57 até que ele se tornou socialmente suportável utilizando o poder do governo central para socorrer as vítimas da transformação e tentando canalizar o processo de mudança de forma a tornar o seu curso menos devastador Suas chancelarias e cortes de prerrogativas não foram nada conservadoras elas representavam o espírito científico da nova arte de governar favorecendo ai imigração de artesãos estrangeiros implantando zelosamente novas técnicas adotando métodos estatísticos e hábitos precisos de relatórios escarnecendo dos costumes e tradições opondose a direitos consagrados cerceando as prerrogativas eclesiásticas ignorando a Lei dos Comuns Se a inovação faz o revolucionário eles foram os revolucionários do seu tempo Seu compromisso era com o bemestar da plebe glorificada no poder e na grandeza do soberano No entanto o futuro pertencia ao constitucionalismo e ao Parlamento O governo da Coroa cedeu lugar ao governo de uma classe a classe que levava avante o desenvolvimento industrial e comercial O grande princípio do constitucionalismo se consorciou com a revolução politica que despojou a Coroa esta na ocasião já esgotara todas as suas faculdades criativas e a sua função protetora já não era mais vital para um país que já vencera a tempestade da transição A política financeira da Coroa restringia agora indevidamente o poder do país e começara a restringir o seu comércio Com o fito de manter suas prerrogativas a Coroa se excedia nos abusos e conseqüentemente prejudicava os recursos da nação Sua brilhante administração da mãodeobra e dos empreendimentos e o controle circunspecto do movimento de cercamentos foram a sua última realização Todavia isto foi rapidamente esquecido uma vez que os capitalistas e empregadores da classe média ascendente foram as principais vítimas de suas atividades protecionistas Dois séculos se passaram antes que a Inglaterra gozasse novamente de uma administração social tão efetiva e bem ordenada como aquela que a Commonwealth destruiu Na verdade uma administração desse tipo paternalista já não era mais tão necessária Mas num certo sentido essa ruptura causou um dano infinito pois ajudou a obliterar da memória da nação os horrores do período dos cercamentos e as realizações do governo para superar perigo do despovoamento Talvez isto ajude a explicar por que a natureza real da crise não foi compreendida quando cerca de 150 anos mais tarde uma catástrofe similar sob a forma de Revolução Industrial ameaçou a vida e o bem estar do país Nessa ocasião o acontecimento foi também peculiar à Inglaterra e nessa época o comércio marítimo foi também a fonte de um movimento que afetou o país como um todo Nesse período foi ainda o progresso 58 na sua escala mais grandiosa que acarretou uma devastação sem precedentes nas moradias do povo comum Antes que o processo tivesse ido suficientemente longe os trabalhadores já se amontoavam em novos locais de desolação as assim chamadas cidades industriais da Inglaterra a gente do campo se desumanizava em habitantes de favelas a família estava no caminho da perdição e grandes áreas do país desapareciam rapidamente sob montes da escória e refugos vomitados pelos moinhos satânicos Escritores de todas as opiniões e partidos conservadores e liberais capitalistas e socialistas referiamse invariavelmente às condições sociais da Revolução Industrial como um verdadeiro abismo de degradação humana Ainda não surgiu qualquer explicação satisfatória para o acontecimento Os contemporâneos imaginaram descobrir a chave para a danação nos férreos regulamentos que governavam a riqueza e a pobreza aos quais chamavam lei dos salários e lei da população eles não foram comprovados A exploração foi apresentada como uma outra explicação tanto para a riqueza como para a pobreza porém ela não foi capaz de encontrar outra explicação tanto para a riqueza como para a pobreza porém ela não foi capaz de encontrar resposta para o fato de os salários nas favelas industriais serem mais altos do que os de quais quer outras áreas e eles continuaram a subir durante mais um século Na maioria das vezes falavase em um conjunto de causas o que também não é satisfatório A solução que apresentamos não é mais simples e na verdade ela ocupa a maior parte deste livro Calculamos que uma avalanche de desarticulação social superando em muito a que ocorreu no período dos cercamentos desabou sobre a Inglaterra que esta catástrofe foi simultânea a um vasto movimento de progresso econômico que um mecanismo institucional inteiramente novo estava começando a atuar na sociedade ocidental que seus perigos que atacaram até a medula quando primeiro apareceram na verdade jamais foram superados e que a história da civilização do século XIX consistiu na sua maior parte em tentativas de proteger a sociedade contra a devastação provocada por esse mecanismo A Revolução Industrial foi apenas o começo de uma revolução tão extrema e radical quanto as que sempre inflamavam as mentes dos sectários porém o novo credo era totalmente materialista e acreditava que todos os problemas humanos poderiam ser resolvidos com o dado de uma quantidade ilimitada de bens materiais A história já foi contada inúmeras vezes como a expansão dos mercados a presença do carvão e do ferro assim como de um clima 59 úmido propício à indústria do algodão a multidão de pessoas despojadas pelos novos cercamentos do século XVIII a existência de instituições livres a invenção das máquinas e outras causas interagiram de forma tal a ocasionar a Revolução Industrial Já se demonstrou conclusivamente que nenhuma causa única merece ser destacada da cadeia e colocada à parte como a causa daquele acontecimento súbito e inesperado Mas como pode essa mesma Revolução ser definida Qual foi sua característica básica Será que foi o aparecimento de cidades fabris a emergência de favelas as longas horas de trabalho das crianças os baixo salários de certas categorias de trabalhadores o aumento da taxa populacional ou a concentração das indústrias Imaginamos que todos esses elementos foram apenas incidentais em relação a uma mudança básica o estabelecimento da economia de mercado e que a natureza dessa instituição não pode ser inteiramente apreendida até que se compreenda o impacto da máquina numa sociedade comercial Não pretendemos afirmar que foi a máquina que causou esta mudança mas insistimos que quando as máquinas complicadas e estabelecimentos fabris começaram a ser usados para a produção numa sociedade comercial começou a tomar corpo a idéia de um mercado autoregulável A utilização de máquinas especializadas numa sociedade agrária e comercial deve produzir efeitos típicos Uma sociedade como essa consiste de agricultores e mercadores que compram e vendem o produto da terra A produção com a ajuda de ferramentas e fábricas especializadas complicadas dispendiosas só pode se ajustar a uma tal sociedade tornando isto incidental ao ato de comprar e vender O mercador é a única pessoa disponível para assumir isto e ele estará disposto a desempenhar essa atividade desde que ela não importe em prejuízo Ele venderá as mercadorias da mesma forma como já vinha vendendo outras àqueles que delas precisavam Entretanto ele vai procuráIas de modo diferente isto é não mais adquiriuas já prontas mas comprando o trabalho necessário e a matériaprima Esses dois elementos combinados sob as instruções do mercador mais o tempo de espera em que ele poderá incorrer resultam em um novo produto Esta não é a descrição apenas de uma indústria doméstica ou de fazerse ao mar mas de qualquer espécie de capitalismo industrial inclusive o do nosso tempo Seguemse importantes conseqüências para o sistema social 60 Uma vez que as máquinas complicadas são dispendiosas elas só são rentáveis quando produzem grande quantidade de mercadorias12 Elas só podem trabalhar sem prejuízo se a saída de mercadorias é razoavelmente garantida e se a produção não precisar ser interrompida por falta das matériasprimas necessárias para alimentar as máquinas Para o mercador isto significa que todos os fatores envolvidos têm que estar à venda isto é eles precisam estar disponíveis nas quantidades necessárias para quem quer que esteja em condições de pagar por eles A menos que essa condição seja preenchida a produção com a ajuda de máquinas especializadas tornase demasiado arriscada para ser empreendida tanto do ponto de vista do mercador que empata seu dinheiro como da comunidade como um todo que passa a depender de uma produção contínua para conseguir renda emprego e provisões Ora numa sociedade agrícola tais condições não surgiram naturalmente elas teriam que ser criadas O fato de terem sido criadas gradualmente de maneira alguma afeta a natureza surpreendente das mudanças envolvidas A transformação implica uma mudança na motivação da ação por parte dos membros da sociedade a motivação do lucro passa a substituir a motivação da subsistência Todas as transações se transformam em transações monetárias e estas por sua vez exigem que seja introduzido um meio de intercâmbio em cada articulação da vida industrial Todas as rendas devem derivar da venda de alguma coisa e qualquer que seja a verdadeira fonte de renda de uma pessoa ela deve ser vista como resultante de uma venda É isto o que significa o simples termo sistema de mercado pelo qual designamos o padrão institucional descrito Mas a peculiaridade mais surpreendente do sistema repousa no fato de que uma vez estabelecido tem que se lhe permitir funcionar sem qualquer interferência externa Os lucros não são mais garantidos e o mercador tem que auferir seus lucros no mercado Os preços devem ter a liberdade de se auto regularem É justamente esse sistema autoregulável de mercados o que queremos dizer com economia de mercado A transformação da economia anterior para esse sistema é tão completa que parece mais a metamorfose de uma lagarta do que qualquer alteração que possa ser expressa em termos de crescimento contínuo e desenvolvimento Contrastemos por exemplo as atividades de venda do mercadorprodutor e suas atividades de compra suas vendas são 12 Clapham J H Economic history of Modern Britain vol III 61 apenas de artefatos e se ele tiver ou não sucesso em encontrar compradores o tecido da sociedade não precisa ser afetado Mas o que ele compra são matériasprimas e trabalho natureza e homem Na verdade a produção das máquinas numa sociedade comercial envolve uma transformação que é a da substância natural e humana da sociedade em mercadorias Embora fantástica a conclusão é inevitável nada menos do que isto servirá os seus propósitos Obviamente a desarticulação causada por tais engenhos deve desorganizar as relações humanas e ameaçar de aniquilamento o seu habitat E de fato tal perigo foi iminente Poderemos perceber o seu verdadeiro caráter se examinarmos as leis que governam o mecanismo do mercado autoregulável 62 4 SOCIEDADES E SISTEMAS ECONÔMICOS Antes de prosseguirmos na discussão das leis que governam a economia de mercado como as que o século XIX tentava articular precisamos ter um firme controle dos extraordinários pressupostos subjacentes a um tal sistema Uma economia de mercado significa um sistema autoregulável de mercados em termos ligeiramente mais técnicos é uma economia dirigida pelos preços do mercado e nada além dos preços do mercado Um tal sistema capaz de organizar a totalidade da vida econômica sem qualquer ajuda ou interferência externa certamente mereceria ser chamado autoregulável Essas condições preliminares devem ser suficientes para revelar a natureza inteiramente sem precedentes de um tal acontecimento na história da raça humana Vamos tornar mais preciso o que queremos dizer Nenhuma sociedade poderia sobreviver durante qualquer período de tempo naturalmente a menos que possuísse uma economia de alguma espécie Acontece porém que anteriormente à nossa época nenhuma economia existiu mesmo em princípio que fosse controlada por mercados Apesar da quantidade de fórmulas cabalísticas acadêmicas tão persistentes no século XIX o ganho e o lucro feitos nas trocas jamais desempenharam um papel importante na economia humana Embora a instituição do mercado fosse bastante comum desde a Idade da Pedra seu papel era apenas incidental na vida econômica Temos boas razões para insistir nesse ponto com toda a ênfase de que dispomos Um pensador do quilate de Adam Smith sugeriu que a divisão do trabalho na sociedade dependia da existência de mercados 63 ou como ele colocou da propensão do homem de barganhar permutar e trocar uma coisa pela outra Esta frase resultou mais tarde no conceito do Homem Econômico Em retrospecto podese dizer que nenhuma leitura errada do passado foi tão profética do futuro Na verdade até a época de Adam Smith essa propensão não se havia manifestado em qualquer escala considerável na vida de qualquer comunidade pesquisada e quando muito permanecia como aspecto subordinado da vida econômica Uma centena de anos mais tarde porém já estava em pleno funcionamento um sistema industrial na maior parte do planeta e prática e teoricamente isto significava que a raça humana fora sacudida em todas as suas atividades econômicas se não também nas suas buscas políticas intelectuais e espirituais por essa propensão particular Na segunda metade do século XIX Herbert Spencer com um conhecimento muito superficial de economia pôde equacionar o princípio da divisão do trabalho com a barganha e a troca e cerca de cinqüenta anos mais tarde Ludwig vêm Mises e Walter Lippmann puderam repetir a mesma falácia Nessa ocasião não havia necessidade de argumentos Uma série de escritores de economia política história social filosofia política e sociologia em geral havia seguido na esteira de Smith e estabelecido o seu paradigma do selvagem barganhador com axioma das suas respectivas ciências Na realidade as sugestões de Adam Smith sobre a psicologia econômica do homem primitivo eram tão falsas como as de Rosseau sobre a psicologia política do selvagem A divisão do trabalho um fenômeno tão antigo como a sociedade originase de diferenças inerentes a fatos como sexo geografia e capacidade individual A alegada propensão do homem para a barganha permuta e troca é quase que inteiramente apócrifa A história e a etnografia conhecem várias espécies de economia a maioria delas incluindo a instituição do mercado mas elas não conhecem nenhuma economia anterior à nossa que seja controlada e regulada por mercados mesmo aproximadamente Isto tornarseá perfeitamente claro numa rápida visão da história dos sistemas econômicos e mercados apresentados separadamente O papel desempenhado pelos mercados na economia interna de vários países parece foi insignificante até época recente e a mudança total para uma economia dominada por padrões de mercados ficará ainda mais ressaltada Para começar temos de colocar de lado alguns preconceitos do século XIX que sustentavam a hipótese de Adam Smith sobre a alegada predileção do homem primitivo por ocupações lucrativas Uma vez que seu axiomafoi muito mais relevante para o futuro imediato do que 64 para o passado obscuro ele induziu seus seguidores a uma atitude estranha em relação à história primitiva do homem Baseada nela a evidência parece indicar que o homem primitivo longe de ter uma psicologia capitalista tinha na verdade uma psicologia comunista mais tarde também isto foi provado como erro Em conseqüência os historiadores econômicos tendiam a confinar seus interesses àquele período da história comparativamente recente no qual a permuta e a troca foram encontradas em alguma escala considerável e a economia primitiva foi relega da à préhistória Inconscientemente isto levou a um peso na balança em favor de uma psicologia de mercado pois no período relativamente curto dos últimos séculos tudo poderia ser considerado como tendendo para o estabelecimento daquilo que foi eventualmente estabelecido e é um sistema de mercado a despeito de outras tendências que foram temporariamente submersas Para corrigir essa perspectiva tão estreita faziase mister obviamente ligar a história econômica à antropologia social passo esse consistentemente evitado Hoje em dia não podemos continuar nesse caminho O hábito de olhar para os últimos dez anos assim como para o conjunto de sociedades primitivas como mero prelúdio da verdadeira história da nossa civilização que começou aproximadamente com a publicação da Riqueza das Nações em 1776 é para dizer o mínimo inteiramente fora de moda Com este episódio que chega a seu final em nossos dias e tentando calcular as alternativas do futuro vamos refrear nossa inclinação natural de seguir as predisposições de nossos pais Mas a mesma tendência que levou a geração de Adam Smith a ver o homem primevo como inclinado à barganha e à permuta induziu seus sucessores a descartar todo interesse no homem primitivo uma vez que já se sabia que ele não se inclinava para essas louváveis paixões A tradição dos economistas clássicos que tentaram basear a lei do mercado na alegada propensão do homem no seu estado natural foi substituída por um abandono de qualquer interesse na cultura do homem nãocivilizado como irrelevante para se compreender os problemas da nossa era Uma tal atitude de subjetivismo em relação a civilizações primitivas não deveria fazer parte da mente científica As diferenças que existem entre povos civilizados e nãocivilizados foram demasiado exageradas principalmente na esfera econômica De acordo com os historiadores até bem pouco tempo as formas de vida industrial na Europa agrícola não eram muito diferentes daquelas que existiram há alguns milhares de anos Desde o aparecimento do arado basicamente uma 65 grande enxada puxada por animais os métodos de agricultura permaneceram substancialmente inalterados na maior parte da Europa Ocidental e Central até o início da era moderna Na verdade progresso da civilização nessas regiões foi principalmente político intelectual e espiritual quanto às condições materiais a Europa Ocidental de 1100 aD ainda não havia sequer alcançado o mundo romano de milhares de anos atrás Mesmo mais tarde a mudança ocorreu mais facilmente nos canais da arte de governar na literatura e nas artes principalmente religiosas e de conhecimentos do que nos da indústria Do ponto de vista econômico a Europa medieval se situava no nível da Pérsia antiga da Índia ou da China e certamente não podia rivalizar em riqueza e cultura com o Novo Império do Egito de dois mil anos atrás Max Weber foi primeiro entre os historiadores da economia moderna a protestar contra o fato de se deixar de lado as economias primitivas como irrelevantes para a questão das motivações e mecanismos das sociedades civilizadas O trabalho subseqüente da antropologia social comprovou que ele estava inteiramente certo e qualquer conclusão pode ser destacada com mais clareza que as outras no estudo recente das sociedades primitivas é justamente a não modificação do homem como ser social Seus dotes naturais reaparecem com uma constância marcante nas sociedades de todos os tempos e lugares e as precondições necessárias para a sobrevivência da sociedade humana parecem ser as mesmas sem mutações A descoberta mais importante nas recentes pesquisas históricas e antropológicas é que a economia do homem como regra está submersa em suas relações sociais Ele não age desta forma para salvaguardar seu interesse individual na posse de bens materiais ele age assim para salvaguardar sua situação social suas exigências sociais seu patrimônio social Ele valoriza os bens materiais na medida em que eles servem a seus propósitos Nem o processo de produção nem o de distribuição está ligado a interesses econômicos específicos relativos à posse de bens Cada passo desse processo está atrelado a um certo número de interesses sociais e são estes que asseguram a necessidade daquele passo É natural que esses interesses sejam muito diferentes numa pequena comunidade de caçadores ou pescadores e numa ampla sociedade despótica mas tanto numa como noutra o sistema econômico será dirigido por motivações nãoeconômicas Em termos de sobrevivência a explicação é simples Tomemos o caso de uma sociedade tribal O interesse econômico individual só raramente é predominante pois a comunidade vela para que nenhum 66 de seus membros esteja faminto a não ser que ela própria seja avassalada por uma catástrofe em cujo caso os interesses são ameaçados coletiva e não individualmente Por outro lado a manutenção dos laços sociais é crucial Primeiro porque infringindo o código estabelecido de honra ou generosidade o indivíduo se afasta da comunidade e se torna um marginal segundo porque a longo prazo todas as obrigações sociais são recíprocas e seu cumprimento serve melhor aos interesses individuais de darereceber Essa situação deve exercer uma pressão contínua sobre o indivíduo no sentido de eliminar do seu consciente o autointeresse econômico a ponto de tornáI o incapaz em muitos casos mas certamente não em todos de compreender até mesmo as implicações de suas próprias ações em termos de um tal interesse Essa atitude é reforçada pela freqüência das atividades comunais tais como partilhar do alimento na caça comum ou participar dos resultados de alguma distante e perigosa expedição tribal O prêmio estipulado para a generosidade é tão importante quando medido em termos de prestígio social que não compensa ter outro comportamento senão o de esquecimento próprio O caráter pessoal nada tem a ver com o assunto O homem pode ser tão bom ou mau sociável ou insociável avaro ou generoso a respeito de um conjunto de valores como a respeito de outro Na verdade não permitir a ninguém ter motivos de ciúme é um princípio aceito da distribuição cerimonial da mesma forma como é importante elogiar publicamente um hortelão diligente habilidoso e bemsucedido a menos que ele seja demasiado bemsucedido em cujo caso podese permitir que ele definhe sob a ilusão de ser vítima de magia negra As paixões humanas boas ou más são apenas dirigidas para finalidades nãoeconômicas A exibição cerimonial só serve para incentivar a emulação até o máximo possível e o costume do trabalho comunal tende a elevar ao máximo ambos os padrões quantitativo e qualitativo A execução de todos os atos de troca como presentes gratuitos cuja reciprocidade é aguardada embora não necessariamente pelos mesmos indivíduos um procedimento articulado minuciosamente e perfeitamente salvaguardado por complicados métodos de publicidade através dos ritos mágicos e do estabelecimento de dualidades nas quais os grupos estão unidos por obrigações mútuas deve explicar por si mesma a ausência da noção de lucro e até mesmo de riqueza a não ser a que consiste em objetos que ressaltam tradicionalmente o prestígio social Neste esboço dos traços gerais característicos de uma comunidade da Melanésia Ocidental não levamos em conta a sua organização sexual 67 e territorial em relação às quais o costume a lei a magia e a religião exercem influência pois pretendemos apenas mostrar a maneira pela qual as assim chamadas motivações econômicas se originam no contexto da vida social E é justamente nesse ponto negativo que os etnógrafos modernos concordam a ausência da motivação de lucro a ausência do princípio de trabalhar por uma remuneração a ausência do princípio do menor esforço e especialmente a ausência de qualquer instituição separada e distinta baseada em motivações econômicas Mas então como se garante a ordem na produção e na distribuição A resposta é fornecida em sua maior parte por dois princípios de comportamento não associados basicamente à economia reciprocidade e redistribuição13 Para os ilhéus de Trobriand da Melanésia Ocidental que servem como ilustração deste tipo de economia a reciprocidade atua principalmente em relação à organização sexual da sociedade isto é família e parentesco A redistribuição é importante principalmente em relação a todos aqueles que têm uma chefia em comum e têm assim um caráter territorial Tomemos esses princípios em separado A subsistência da família a mulher e os filhos é tarefa de seus parentes matrilineares O homem que sustenta sua irmã e a família dela entregandolhe os melhores produtos da sua colheita ganhará crédito principalmente pelo seu bom comportamento porém terá em troca muito pouco benefício material imediato Se ele for preguiçoso sua reputação será a primeira a ser atingida O princípio da reciprocidade atuará principalmente em benefício da sua mulher e de seus filhos compensandoo assim economicamente por seus atos de virtude cívica A exibição cerimonial dos alimentos tanto em sua própria horta como ante o depósito da que recebe é uma garantia de que todos conhecerão a elevada qualidade da sua atividade como hortelão Tornase aparente aqui que a economia hortelã e doméstica é parte das relações sociais ligadas à posição de bom marido e ótimo cidadão O amplo princípio da reciprocidade ajuda a salvaguardar tanto a produção como a subsistência familiar O princípio da redistribuição não é menos efetivo Uma parte substancial de toda a produção da ilha é entregue pelo chefe da aldeia ao chefe geral que a armazena Entretanto como toda a atividade comunal se centraliza em festas danças e outras ocasiões quando os ilhéus 13 Cf Notas sobre as Fontes Os trabalhos de Malinowski e Thurnwald foram extensamente utilizados neste capítulo 68 entretêm uns aos outros assim como aos vizinhos de outras ilhas ocasião em que são distribuídos os resultados do comércio em áreas distantes presentes são entregues e reciprocados de acordo com as regras de etiqueta e o chefe distribui a todos os presentes habituais tornase aparente a extrema importância do sistema de armazenamento Do ponto de vista econômico é parte essencial do sistema vigente de divisão do trabalho do comércio exterior da taxação para finalidades públicas das provisões de defesa Entretanto essas funções de um verdadeiro sistema econômico são inteiramente absorvidas pelas experiências intensamente vividas que oferecem uma superabundante motivação nãoeconômica em cada ato executado no quadro do sistema social como um todo Princípios de comportamento como esse contudo não podem ser efetivos a menos que os padrões institucionais existentes levem à sua aplicação A reciprocidade e a redistribuição são capazes de assegurar o funcionamento de um sistema econômico sem a ajuda de registros escritos e de uma complexa administração apenas porque a organização das sociedades em questão cumpre as exigências de uma tal solução com a ajuda de padrões tais como a simetria e a centralidade A reciprocidade é enormemente facilitada pelo padrão institucional da simetria um aspecto freqüente da organização social entre os povos iletrados A marcante dualidade que encontramos em subdivisões tribais colabora para a união de relações individuais ajudando assim o tomaredar de bens e serviços na ausência de registros permanentes As metades da sociedade selvagem que tendem a criar um pendant em cada subdivisão acabam resultando de e ajudando a executar os atos de reciprocidade sobre os quais o sistema repousa Pouco se conhece a respeito da origem da dualidade porém cada aldeia da costa nas Ilhas Trobriand parece ter a sua contrapartida numa aldeia do interior de forma que a importante troca de frutapão e peixe embora disfarçada sob a forma de distribuição recíproca de presentes e na verdade deslocada no tempo pode ser perfeitamente organizada Também no comércio de Kula cada indivíduo tem o seu parceiro em uma outra ilha personalizando assim numa extensão marcante a relação da reciprocidade Não fosse a freqüência do padrão simétrico nas subdivisões da tribo na localização dos povoados bem como nas relações intertribais seria impraticável uma ampla reciprocidade baseada na atuação em última instância de atos isolados de dare tomar O padrão institucional da centralidade por seu lado que está presente de alguma forma em todos os grupos humanos fornece um conduto para a coleta armazenagem e redistribuição de bens e serviços 69 Os membros de uma tribo de caçadores geralmente entregam a caça ao chefe para a redistribuição É da própria natureza da caça que o rendimento seja irregular além de ser o resultado do esforço coletivo Sob condições como essas não seria praticável qualquer outro método de partilha a não ser que o grupo se desfaça após cada expedição Assim em todas as economias desse tipo existe uma necessidade semelhante seja o grupo numeroso ou não Quanto maior for o território e quanto mais variado o produto mais a redistribuição resultará numa efetiva divisão do trabalho uma vez que ela ajudará a unir grupos de produtores geograficamente diferenciados A simetria e a centralidade vão de encontro na metade do caminho às necessidades da reciprocidade e da redistribuição os padrões institucionais e os princípios de comportamento se ajustam mutuamente Enquanto o organização social segue a sua rotina normal não há razão para a interferência de qualquer motivação econômica individual não é preciso temer qualquer evasão do esforço pessoal a divisão do trabalho fica assegurada automaticamente as obrigações econômicas serão devidamente desempenhadas e acima de tudo estão assegurados os meios materiais para uma exibição exuberante de abundância em todos os festivais públicos Numa tal comunidade é vedada a idéia do lucro as disputas e os regateios são desacreditados o dar graciosamente é considerado como virtude não aparece a suposta propensão à barganha à permuta e à troca Na verdade o sistema econômico é mera função da organização social De forma alguma devese concluir que os princípios socioeconômicos desse tipo são restritos a produtores primitivos ou pequenas comunidades e que uma economia sem lucro e sem mercado deve ser simples necessariamente O circuito Kula da Melanésia Ocidental com base no princípio da reciprocidade é uma das mais completas transações comerciais já conhecidas pelo homem e a redistribuição esteve presente em escala gigantesca na civilização das pirâmides As Ilhas Trobriand pertencem a um arquipélago que forma aproximadamente um círculo e parte importante da população desse arquipélago despende um proporção considerável do seu tempo em atividades do comércio Kula Descrevernolo como um comércio embora ele não envolva qualquer lucro quer em dinheiro ou em espécie As mercadorias não são acumuladas nem mesmo possuídas permanentemente o gozo dos bens recebido está justamente em poder dálos em seguida não existe nenhuma disputa ou controvérsia e nem barganha permuta ou troca Todo o processo é regulado inteiramente pela etiqueta e 70 pela magia Todavia tratase de um comércio e periodicamente os nativos desse arquipélago em forma aproximada de anel organizam grandes expedições a fim de levar um determinado tipo de objeto valioso aos povos que vivem em ilhas distante como que seguindo os ponteiros de um relógio enquanto outras expedições são organizadas para levar outro tipo de objeto valioso às ilhas do arquipélago situadas na ordem inversa à dos ponteiros de um relógio Em última instância ambos os conjuntos de objetos braceletes de madrepérola e colares de contas vermelhas de artesanato tradicional movemse em torno do arquipélago um trajeto que pode levar até dez anos para ser completado Além disso existem parceiros individuais no Kula que como regra reciprocam os presentes Kula com braceletes e colares igualmente valiosos de preferência aqueles que pertenceram anteriormente a pessoas importantes Ora um tomaládácá sistemático e organizado de objetos valiosos transportados a grandes distâncias é descrito justamente como comércio Entretanto essa totalidade complexa é dirigida exclusivamente em termos de reciprocidade Um intrincado sistema de tempoespaçopessoa que cobre centenas de milhas e diversas décadas e que liga muitas centenas de pessoas em relação a milhares de objetos estritamente individuais é aqui manipulado sem que existam registros ou administração e também sem qualquer motivação de lucro ou permuta que domina não é a propensão à barganha mas à reciprocidade no comportamento social O resultado no entanto é uma realização organizacional estupenda na área econômica Com efeito seria interessante considerar se até mesmo um moderna organização de mercado adiantada baseada numa contabilidade exata seria capaz de assumir uma tal tarefa no caso de lhe ser atribuída É de se recear que os infelizes comerciantes ao enfrentar os inumeráveis monopólios da compra e venda de objetos individuais e as restrições extravagantes ligadas a cada transação deixariam de realizar sequer um lucro comum e prefeririam sair do negócio A redistribuição também tem uma longa e variada história que leva até quase os tempos modernos Dos Bergdama que voltam da sua excursão de caça ou da mulher que volta da sua busca de raízes frutas ou folhas esperase que ofereçam a maior parte do seu espólio em benefício da comunidade Naprática isto significa que o produto da sua atividade é partilhado com as outras pessoas que estão vivendo com eles A idéia da reciprocidade prevalece até este ponto o que se dá hoje é recompensado pelo que se toma amanhã Entre algumas tribos 71 porém existe um intermediário na pessoa do chefe ou outro membro proeminente do grupo é ele quem recebe e distribui os suprimentos especialmente se eles precisam ser armazenados Esta é a verdadeira redistribuição Obviamente as conseqüências sociais de um tal método de distribuição podem ser de longo alcance uma vez que nem todas as sociedades são tão democráticas como as dos caçadores primitivos Seja a redistribuição feita por uma família influente ou por um indivíduo importante uma aristocracia dominante ou um grupo de burocratas o fato é que eles muitas vezes tentarão aumentar seu poder político através da maneira pela qual redistribuem os bens No potlatch dos Kwakiutl é ponto de honra para o chefe exibir sua riqueza em peles e distribuíIas Entretanto ele assim procede também para colocar os recebedores sob obrigação para fazêlos seus devedores e finalmente seus apaniguados Todas as economias desta espécie em grande escala foram dirigidas com a ajuda do princípio da redistribuição O reinado de Hammurabi na Babilônia e em particular o Novo Império do Egito eram despotismos centralizados do tipo burocrático fundados numa economia como essa A casa da família patriarcal é aqui reproduzida numa escala enormemente ampliada enquanto a sua distribuição comunista era classificada envolvendo rações agudamente diferenciadas Havia um grande número de armazéns prontos a receber o produto da atividade do camponês fosse ele criador de gado caçador padeiro cervejeiro oleiro tecelão ou o que quer que seja O produto era registrado minuciosamente e desde que não fosse consumido no local era transferido de pequenos para grandes armazéns até alcançar a administração central localizada na corte do faraó Havia armazéns especiais para tecidos obras de arte objetos ornamentais cosméticos prataria guardaroupa real havia armazéns enormes para cereais arsenais e adegas de vinho Mas a redistribuição na escala praticada pelos construtores das pirâmides não se restringia a economias que não conheciam o dinheiro Na verdade todos os reinos arcaicos fizeram uso de moedas metálicas para o pagamento de impostos e salários mas no restante dependiam de pagamentos em espécie dos celeiros e armazéns de todo o tipo a partir dos quais eles distribuíam as mais variadas mercadorias para uso e consumo principalmente à parte nãoprodutiva da população isto é às autoridades aos militares à classe ociosa Este era o sistema em vigor na antiga China no império dos Incas nos reinos da Índia e também na Babilônia Nestas como em muitas outras civilizações de 72 grande desenvolvimento econômico foi elaborada uma complexa divisão do trabalho através do mecanismo da redistribuição Esse princípio também se manteve sob condições feudais Nas sociedades da África etnicamente estratificadas acontece às vezes que o estrato superior consiste de criadores de gado estabelecidos entre agricultores que ainda utilizam a pá ou a enxada Os presentes cobrados pelos criadores são principalmente agrícolas cereais e cerveja enquanto os presentes por eles distribuídos podem ser animais especialmente carneiros ou cabras Nestes casos existe um divisão de trabalho embora geralmente desigual entre os vários estratos da sociedade a distribuição pode às vezes implicar uma medida de exploração enquanto que ao mesmo tempo a simbiose beneficia os padrões de ambos os estratos graças às vantagens de uma divisão do trabalho melhorada Do ponto de vista político tais sociedades vivem sob um regime de feudalismo seja o gado ou a terra o valor privilegiado Existem feudos reguladores de gado na África Oriental Thurnwald a quem seguimos de perto quanto ao tema da redistribuição pôde dizer assim que o feudalismo foi em todos os lugares um sistema de redistribuição Foi somente em condições muito desenvolvidas e em circunstâncias excepcionais que esse sistema se tornou predominantemente político como aconteceu na Europa Ocidental onde a mudança surgiu da necessidade de proteção do vassalo e onde os presentes se converteram em tributos feudais Esses exemplos mostram que a redistribuição também tende a enredar o sistema econômico propriamente dito em relações sociais Como regra encontramos o processo de redistribuição como parte do regime político vigente seja ele o de urna tribo de uma cidadeestado do despotismo ou do feudalismo do gado ou da terra A produção e a distribuição de mercadorias são organizadas principalmente através da arrecadação do armazenamento e da redistribuição sendo o padrão focalizado o chefe o templo o déspota ou o senhor Uma vez que as relações do grupo dominante com os dominados são diferentes de acordo com os fundamentos em que repousa o poder político o princípio da redistribuição envolverá motivações individuais tão diferentes como a partilha voluntária da caça pelos caçadores e o medo do castigo que impulsiona os fellaheen a pagarem seus impostos em espécie Deixamos de lado nesta apresentação deliberadamente a distinção vital entre sociedades homogêneas e estratificadas ie sociedades socialmente unificadas na sua totalidade e sociedades divididas entre dominantes e dominados Embora a posição relativa de escravos e 73 senhores possa ser totalmente distinta daquela dos membros livres e iguais de algumas tribos de caçadores e conseqüentemente as motivações nas duas sociedades serão consideravelmente diferentes a organização do sistema econômico ainda pode se basear nos mesmos princípios embora acompanhados por traços culturais muito diferentes de conformidade com as relações humanas muitos diferentes com as quais o sistema econômico se entrelaça O terceiro princípio destinado a desempenhar um grande papel na história e ao qual chamaremos o princípio da domesticidade consiste na produção para uso próprio Os gregos chamavamno oeconomia étimo da palavra economia No que diz respeito aos registros etnográficos não devemos presumir que a produção para a própria pessoa ou para um grupo seja mais antiga que a reciprocidade ou a redistribuição Pelo contrário tanto a tradição ortodoxa como algumas teorias mais recentes sobre o assunto foram refutadas enfaticamente O selvagem individualista que procura alimentos ou caça para si mesmo ou para sua família nunca existiu Na verdade a prática de prover as necessidades domésticas próprias tornouse um aspecto da vida econômica apenas em um nível mais avançado da agricultura Mesmo então ela nada tinha em comum com a motivação do ganho nem com a instituição de mercados O seu padrão é o grupo fechado Tanto no caso de entidades de família muito diferentes como no povoamento ou na casa senhorial que constituíam unidades autosuficientes o princípio era invariavelmente o mesmo a saber o de produzir e armazenar para a satisfação das necessidades dos membros do grupo O princípio é tão amplo na sua aplicação como o da reciprocidade ou da redistribuição A natureza do núcleo institucional é indiferente pode ser sexo como na família patriarcal localidade como nas aldeias ou poder político como no castelo senhorial E também não importa a organização interna do grupo Pode ser tão despótica como a família romana ou tão democrática como a zadruga suleslava tão grande como os imensos domínios dos magnatas Carolíngios ou tão pequenas como a propriedade camponesa média da Europa Ocidental A necessidade de comércio ou de mercados não é maior do que no caso da reciprocidade ou da redistribuição Foi justamente esta situação que Aristóteles tentou estabelecer como norma há mais de dois mil anos Pesquisando o passado das altitudes rapidamente declinantes de uma economia de mercado de caráter mundial temos que concordar que a famosa distinção que ele faz entre a domesticidade propriamente dita e o ato de se ganhar dinheiro 74 moneymaking no capítulo introdutório da sua política foi provavelmente o indicador mais profético jamais feito no campo das ciências sociais Ainda continua sendo a melhor análise do assunto que possuímos Aristóteles insiste na produção para uso contra a produção visando lucro como essência da domesticidade propriamente dita Assim um produção acessória para o mercado argumenta ele não precisa destruir a auto suficiência doméstica uma vez que a colheita seja reinvestida na fazenda para sustento seja como gado ou cereal A venda dos excedentes não precisa destruir a base da domesticidade Somente um gênio do senso comum poderia afirmar como ele o fez que o ganho era uma motivação peculiar à produção para o mercado e que o fator dinheiro introduzira um novo elemento na situação No entanto enquanto os mercados e o dinheiro fossem meros acessórios de uma situação doméstica autosuficiente o princípio da produção para uso próprio poderia funcionar Nesse sentido ele estava inteiramente certo embora deixasse de ver como era impraticável ignorar a existência de mercados numa época em que a economia grega tinha se tornado dependente do comércio atacadista e do capital de empréstimos Esse foi o século em que Delos e Rhodes se desenvolveram em empórios de seguros de fretes empréstimos marítimos e bancos de capital de giro comparados aos quais a Europa Ocidental de mil anos depois foi o próprio retrato do prirnitivismo No entanto Jowett Mestre em Balliol se enganou redondamente quando considerou correta a suposição de que a Inglaterra vitoriana tinha uma noção muito mais clara do que Aristóteles sobre a natureza da diferença entre o setor doméstico e o que ganha dinheiro Ele desculpava Aristóteles alegando que os temas do conhecimento ligados ao homem se entrelaçam uns com os outros e na época de Aristóteles eles não se distinguiam facilmente É verdade que Aristóteles não reconheceu claramente as implicações da divisão do trabalho e sua ligação com os mercados e o dinheiro assim como não compreendeu as utilizações do dinheiro como crédito e capital Nesse ponto as restrições de Jowett são justificadas Entretanto foi o mestre de Balliol e não Aristóteles que se tornou insensível às implicações humanas de se ganhar dinheiro Ele não viu que a distinção entre o princípio do uso e o princípio do ganho era a chave para a civilização inteiramente diferente cujos contornos Aristóteles acertadamente previu dois mil anos antes do seu advento Um colégio de Oxford N do R 75 baseandose para isso nos simples rudimentos de uma economia de mercado disponível na época enquanto Jowett já com o espécime inteiramente pronto diante dele ignorou a sua existência Ao denunciar o princípio da produção visando lucro como não natural ao homem por ser infinito e ilimitado Aristóteles estava apontando na verdade para o seu ponto crueial a saber a separação de uma motivação econômica isolada das relações soeiais nas quais as limitações eram inerentes De forma mais ampla essa proposição sustenta que todos os sistemas econômicos conhecidos por nós até o fim do feudalismo na Europa Ocidental foram organizados segundo os princípios de reciprocidade ou redistribuição ou domesticidade ou alguma combinação dos três Esses princípios eram institucionalizados com a ajuda de uma organização social a qual inter alia fez uso dos padrões de simetria centralidade e autarquia Dentro dessa estrutura a produção ordenada e a distribuição dos bens era assegurada através de uma grande variedade de motivações individuais disciplinadas por princípios gerais de comportamento E entre essas motivações o lucro não ocupava lugar proeminente Os costumes e a lei a magia e a religião cooperavam para induzir o indivíduo a cumprir as regras de comportamento as quais eventualmente garantiam o seu funcionamento no sistema econômico O período grecoromano a despeito do seu conteúdo altamente desenvolvido não representou qualquer ruptura nesse sentido ele se caracterizou pela redistribuição de cereais em grande escala feita pela administração romana numa economia em tudo doméstica e ele não se constituiu em exceção à regra vigente de que até o final da Idade Média os mercados não desempenharam papel importante no sistema econômico prevaleciam outros padrões institucionais A partir do século XVI os mercados passaram a ser mais numerosos e importantes Na verdade sob o sistema mercantil eles se tornara a preocupação principal dos governos Entretanto não havia ainda sinal de que os mercados passariam a controlar a sociedade humana Pelo contrário Os regulamentos e os regimentos eram mais severos do que nunca estava ausente a própria idéia de um mercado auto regulável Para compreender a súbita mudança para um tipo inteiramente novo da economia no século XIX devemos nos voltar agora para a história do mercado uma instituição que praticamente negligenciamos em nosso resumo dos sistemas econômicos do passado 76 5 EVOLUÇÃO DO PADRÃO DE MERCADO Se queremos deixar de lado as superstições econômicas do século XIX14 a parte dominante desempenhada pelos mercados na economia capitalista juntamente com o significado básico do princípio de permuta ou troca nessa economia exige uma pesquisa cuidadosa da natureza e origem dos mercados A permuta a barganha e a troca constituem um princípio de comportamento econômico que depende do padrão de mercado para sua efetivação Um mercado é um local de encontro para a finalidade da permuta ou da compra e venda A menos que este padrão esteja presente pelo menos em parte a propensão à permuta não terá escopo suficiente ela não poderá produzir preços15 Assim como a reciprocidade é auxiliada por um padrão simétrico de organização a redistribuição é facilitada por alguma medida de centralização e a domesticidade tem que ser baseada na autarquia assim também o princípio da permuta depende para sua efetivação do padrão de mercado Todavia da mesma forma como tanto a reciprocidade como a redistribuição ou a domesticidade podem ocorrer numa sociedade sem nela ocupar um lugar primordial o princípio da permuta também pode ocupar um lugar 14 Cf Notas sobre as Fontes 15 Hawtrey G R The Economic Problem 1925 p 13 A aplicação prática do princípio do individualismo depende inteiramente da prática da troca Entretanto Hawtrey se enganou em presumir que a existência de mercados seguiuse simplesmente à prática da troca 77 subordinado numa sociedade na qual os outros princípios estão em ascendência Em alguns outros sentidos porém o princípio da permuta não está em paridade estrita com os três outros princípios O padrão de mercado com o qual ele está associado é mais específico do que a simetria a centralidade ou a autarquia os quais em contraste com o padrão de mercado são meros traços e não criam instituições designadas para uma função apenas A simetria nada mais é do que um arranjo sociológico que não dá origem a instituições isoladas mas apenas padroniza as já existentes se uma tribo ou uma aldeia é ou não simetricamente padronizada isto não envolve qualquer instituição distinta A centralidade embora crie freqüentemente instituições distintas não implica motivação que particularizaria a instituição resultante para uma função específica única o chefe de uma aldeia ou qualquer outra autoridade central pode assumir por exemplo uma série de funções política militar religiosa ou econômica indiscriminadamente Finalmente a autarquia econômica é apenas um traço acessório de um grupo fechado existente Por outro lado o padrão de mercado relacionandose a um motivo peculiar próprio o motivo da barganha ou da permuta é capaz de criar uma instituição específica a saber o mercado Em última instância é por isto que o controle do sistema econômico pelo mercado é conseqüência fundamental para toda a organização da sociedade significa nada menos dirigir a sociedade como se fosse um acessório do mercado Em vez de a economia estar embutida nas relações sociais são as relações sociais que estão embutidas no sistema econômico A importância vital do fator econômico para a existência da sociedade antecede qualquer outro resultado Desta vez o sistema econômico é organizado em instituições separadas baseado em motivos específicos e concedendo um status especial A sociedade tem que ser modelada de maneira tal a permitir que o sistema funcione de acordo com as suas próprias leis Este é o significado da afirmação familiar de que uma economia de mercado só pode funcionar numa sociedade de mercado Na verdade foi crucial o passo que transformou mercados isolados numa econômica de mercado mercados reguláveis num mercado autoregulável O século XIX aclamando o fato como o ápice da civilização ou deplorandoo como um crescimento canceroso imaginava ingenuamente que um tal desenvolvimento era o resultado natural da difusão dos mercados Não se compreendeu que a engrenagem de mercados num sistema autoregulável de tremendo poder não foi o resultado de 78 qualquer tendência inerente aos mercados em direção à excrescência e sim o efeito de estimulantes altamente artificiais administrados ao corpo social a fim de fazer frente a uma situação criada pelo fenômeno não menos artificial da máquina Não foi reconhecida a natureza limitada e não expansiva do padrão de mercado como tal e no entanto é este o fato que emerge com toda clareza da moderna pesquisa Os mercados não são encontrados em todos os lugares a sua ausência embora indicando um certo isolamento e uma tendência à reclusão não está associada a qualquer desenvolvimento particular e o mesmo também pode ser auferido da sua presença Essa frase incolor transcrita do Economics in Primitive Communities de Thurnwald resume os resultados significativos da moderna pesquisa sobre o assunto Um outro autor repete em relação ao dinheiro o que Thurnwald diz a respeito dos mercados O simples fato de uma tribo usar dinheiro diferenciase muito pouco do ponto de vista econômico de quaisquer outras tribos do mesmo nível cultural que não o utilizam Não precisamos mais do que salientar algumas das implicações mais importantes dessas afirmativas A presença ou a ausência de mercados ou de dinheironâoafera necessariamente o sistema econômico de uma sociedade primitiva Isto refuta o mito do século XIX de que o dinheiro foi uma invenção cujo aparecimento transformava inevitavelmente uma sociedade com a criação de mercados forçando o ritmo da divisão de trabalho liberando a propensão natural do homem à permuta à barganha e à troca Com efeito a história econômica ortodoxa se baseou numa perspectiva imensamente exagerada do significado dos mercados como tais Um certo isolamento ou talvez uma tendência à reclusão é o único traço econômico que pode ser indeferido corretamente da ausência de mercados no que diz respeito à organização interna de uma economia sua presença ou ausência não faz necessariamente qualquer diferença As razões são simples Os mercados não são instituições que funcionam principalmente dentro de um economia mas fora dela Eles são locais de encontro para um comércio de longa distância Os mercados locais propriamente ditos são de pouca importância Além disso nem os mercados de longa distância nem os mercado locais são essencialmente competitivos Conseqüentemente tanto num como noutro caso é pouca a pressão para se criar um comércio territorial o assim chamado mercado interno ou nacional Cada uma dessas afirmativas chocase com algum pressuposto axiomático dos economistas clássicos entretanto elas seguem muito de perto os fatos que aparecem à luz da pesquisa moderna 79 De fato a lógica do caso é quase o oposto do que subentende a doutrina clássica O ensino ortodoxo partiu da propensão do indivíduo à permuta deduziu daí a necessidade de mercados locais bem como a divisão do trabalho inferiu finalmente a necessidade do comércio eventualmente do comércio exterior incluindo até mesmo o comércio de longa distância À luz do nosso conhecimento atual podíamos quase reverter a seqüência do argumento o verdadeiro ponto de partida é o comércio de longa distância um resultado da localização geográfica das mercadorias e da divisão do trabalho dada pela localização O comércio de longa distância muitas vezes engendra mercados uma instituição que envolve atos de permuta e se o dinheiro é utilizado de compra e venda Eventualmente porém não necessariamente isto oferece a alguns indivíduos a oportunidade de utilizar a sua alegada propensão para a barganha e o regateio O aspecto dominante desta doutrina é a origem do comércio numa esfera externa não relacionada com a organização interna da economia A aplicação dos princípios observados na caça para obter bens encontrados fora dos limites do distrito levou a certas formas de troca que nos pareceram mais tarde como comércio3 Procurando as origens do comércio nosso ponto de partida deveria ser a obtenção de bens distantes como numa caça Os Dieri da Austrália Central todos os anos em julho ou agosto fazem uma expedição ao sul para conseguir o ocre vermelho que eles usam para pintar seus corpos Seus vizinhos os Yantruwunta organizam empreendimentos semelhantes para conseguir o ocre vermelho e blocos de arenito para moer sementes em Flinders Hills distante oitocentos quilômetros Em ambos os casos era às vezes necessário lutar pelos artigos desejados quando o povo local oferecia resistência à sua remoção Esta espécie de requisição ou caça ao tesouro é claramente tão semelhante ao roubo e à pirataria quanto aquilo que costumamos ver como comércio basicamente é um negócio unilateral Ele se torna bilateral ie uma certa forma de troca apenas através da chantagem praticada pelos poderes locais ou também através de acordos de reciprocidade como no anel Kula nas cerimônias de visita dos Pengwe da África Ocidental ou com os Kpelle onde o chefe monopoliza o comércio exterior insistindo em entreter todos os hóspedes É verdade que tais visitas não são acidentais e sim em nossos termos não deles genuínas viagens de negócios 3 Thurnwald R C Economics in Primitive Communities 1932 p 147 80 a troca de bens porém é sempre feita sob o disfarce de presentes recíprocos e sob a forma ainda de retribuição de visitas Chegamos à conclusão assim de que embora as comunidades humanas nunca tenham deixado de lado inteiramente o comércio exterior esse comércio nem sempre envolvia mercados necessariamente Originalmente o comércio exterior sempre esteve mais ligado à aventura exploração caça pirataria e guerra do que à permuta Ele pode implicar tanto em paz como em bilateralidade porém mesmo quando implica ambos ele é baseado habitualmente no princípio da reciprocidade e não da permuta A transição para a permuta pacífica pode se orientar em duas direções a saber na da troca e na da paz Como acima indicado uma expedição tribal pode ter que cumprir as condições estabelecidas pelos poderes locais os quais podem exigir dos estrangeiros um tipo de contrapartida Esse tipo de relacionamento embora não inteiramente pacífico pode dar origem à permuta uma transação unilateral será transformada em bilateral O outro tipo de desenvolvimento é o de comércio silencioso que ocorre nas selvas africanas onde se evita o risco do combate através de uma combinação organizada com o qual se introduz na própria transação com a devida circunspecção um elemento de paz aceitação e confiança Como sabemos num estágio posterior os mercados se tornaram predominantes na organização do comércio exterior Entretanto do ponto de vista econômico os mercados externos são algo inteiramente diferente tanto dos mercados locais quanto dos mercados internos Eles não diferem apenas em tamanho são instituições de função e origem diferentes O mercado externo é uma transação a questão é a ausência de alguns tipos de mercadorias naquela região A troca de lãs inglesas por vinhos portugueses constitui um exemplo O comércio local é limitado às mercadorias da região as quais não compensa transportar porque são demasiado pesadas volumosas ou perecíveis Assim tanto o comércio exterior quanto o local são relativos à distância geográfica sendo um confinado às mercadorias que não podem superáIa e o outro às que podem fazêlo Um comércio desse tipo é descrito corretamente como complementar A troca local ente cidade e campo e o comércio exterior entre diferentes zonas climáticas baseiamse neste princípio Um tal comércio não implica competição necessariamente e se a competição levasse à desorganização do comércio não haveria contradição em elimináIa Em contraste com o comércio externo e o local o comércio interno por seu lado é essencialmente competitivo 81 Além das trocas complementares ele inclui um número muito maior de trocas nas quais mercadorias similares de fontes diferentes são oferecidas em competição umas com as outras Assim somente com a emergência do comércio interno ou nacional é que a competição tende a ser aceita como princípio geral de comércio Esses três tipos de comércio os quais diferem acentuadamente na sua função econômica também são distintos na sua origem Já falamos sobre o começo do comércio externo A partir dele os mercados se desenvolveram naturalmente em todos os lugares onde os transportadores tinham que parar nos vaus portos marítimos cabeceiras de rios ou onde as rotas das expedições se encontravam Os portos se desenvolveram nos locais de transbordo4 O breve florescimento das famosas feiras da Europa constitui um outro exemplo de um tipo definido de mercado produzido pelo comércio de longa distância Os empórios da Inglaterra são um outro exemplo Entretanto enquanto as feiras e os empórios desapareceram de forma abrupta desconcertando o evolucionista dogmático o portus desempenhou um papel importantíssimo no estabelecimento de cidades na Europa Ocidental Entretanto mesmo nos locais em que as cidades foram fundadas em sítios de mercados externos os mercados locais freqüentemente permaneceram separados não apenas em relação à sua função mas também à sua organização Nem o porto nem a feira nem o empório foi o pai dos mercados internos ou nacionais Onde então poderemos procurar a sua origem Poderia parecer natural presumir que em função dos atos individuais de permuta os mercados locais se desenvolveriam no correr do tempo e que tais mercados uma vez existindo levariam naturalmente ao estabelecimento de mercados internos ou nacionais Entretanto nem um nem outro aconteceu Atos individuais de permuta ou troca esta é a verdade não levam como regra ao estabelecimento de mercados em sociedades onde predominam outros princípios de comportamento econômico Tais atos são comuns em quase todos os tipos de sociedades primitivas porém são considerados incidentais uma vez que não preenchem as necessidades da vida Nos amplos sistemas antigos de redistribuição os atos de permuta e os mercados locais eram uma constante porém apenas em caráter subordinado O mesmo se aplica onde a reciprocidade é a regra aqui os atos de permuta são geralmente inseridos em relações de longo alcance que implicam aceitação 4 Pirenne H Medieval Cities 1925 p 148 nota 12 82 e confiança uma situação que tende a obliterar o caráter bilateral da transação Os fatores limitantes surgem de todos os pontos do compasso sociológico o costume e a lei a religião e a magia contribuem igualmente para o resultado que é restringir os atos de troca em relação a pessoas e objetos tempo e ocasião Como regra aquele que permuta apenas entra em um tipo de transação já determinado no qual tanto os objetos como as quantias a eles equivalentes já são dados Utu na linguagem dos Tikopia5 denota tal equivalente tradicional como parte da troca recíproca Aquilo que parece como o aspecto essencial da troca para o pensamento do século XVIII o elemento voluntário da barganha e do regateio tão expressivo como motivação presumida da permuta tem realmente um objetivo muito limitado na verdadeira transação Mesmo que seu motivo fosse subjacente ao ato raramente se lhe permite atingir a superfície A forma costumeira de comportamento ao contrário é dar oportunidade a uma motivação oposta O doador pode simplesmente largar o objeto no chão e o receptor fingirá apanháIo acidentalmente ou deixará que um dos seus seguidores o faça por ele Nada pode ser mais contrário ao comportamento aceito do que examinar a contrapartida recebida Como temos toda a razão para crer que esta atitude sofisticada não é o resultado de uma falta genuína de interesse pelo lado material da transação podemos descrever a etiqueta da permuta como um desenvolvimento contraditório destinado a limitar o escopo da transação Com efeito em face da evidência seria audacioso afirmar que os mercados locais se desenvolveram a partir de atos individuais de permuta Embora seja muito obscuro o início do mercado local podemos afirmar com segurança que desde o princípio essa instituição foi cercada por uma série de salvaguardas destinadas a proteger a organização econômica vigente na sociedade de interferência por parte das práticas de mercado A paz do mercado era garantida ao preço de rituais e cerimônias que restringiam seu objetivo enquanto asseguravam sua capacidade de funcionar dentro dos estreitos limites dados O resultado mais significativo dos mercados o nascimento de cidades e a civilização urbana foi de fato o produto de um desenvolvimento paradoxal As cidades as crias dos mercados não eram apenas as suas protetoras mas também um meio de impedilos de se expandirem pelo campo e assim incrustaremse na organização econômica corrente da sociedade 5 Firth R Primitive Polynesian Economics 1939 p 347 83 Os dois significados da palavra conter talvez expressem melhor esta dupla função das cidades em relação aos mercados que elas tanto envolviam corno impediam de se desenvolver Se a permuta era cercada de tabus destinados a impedir que esse tipo de relação humana abusasse das funções da organização econômica propriamente dita a disciplina do mercado era ainda mais restrita Eis aqui um exemplo do país Chaga O mercado deve se visitado regularmente nos dias de mercado Se qualquer ocorrência impedir a abertura do mercado por alguns dias os negócios não serão retomados até que a praça do mercado tenha sido purificada Qualquer ocorrência na praça do mercado que envolva derramamento de sangue exige a imediata expiação A partir desse momento não é permitido a qualquer mulher abandonar a praça do mercado e nenhuma mercadoria pode ser tocada tudo tem que ser muito bem limpo antes de ser levado para fora e usado corno alimento Pelo menos um bode tem que ser sacrificado imediatamente Se urna mulher der à luz ou abortar na praça do mercado é necessária urna expiação mais séria e mais dispendiosa Nesse caso é necessário o sacrifício de um anirnalleiteiro Além disso o ambiente doméstico do chefe tem que ser purificado com o sangue do sacrifício de uma vaca leiteira Todas as mulheres do campo têm que ser aspergidas distrito por distrito6 Regras corno estas não tornariam mais fácil a difusão dos mercados O mercado local típico no qual as donas de casa vão comprar algumas de suas necessidades domésticas diárias e nos quais os agricultores de cereais ou verduras assim corno os artesãos locais oferecem Seus artigos à venda revelam uma impressionante indiferença quanto a tempo e lugar Reuniões desse tipo são não só bastante generalizadas nas sociedades primitivas como também permanecem praticamente imutáveis até meados do século XVIII nos países mais adiantados da Europa Ocidental Elas constituem um acessório da o existência local e diferem muito pouco quer façam parte da vida tribal centroafricana que de urna cité da França merovíngia ou de urna aldeia escocesa da época de Adam Smith O que é verdadeiro em relação à aldeia é também verdadeiro em relação à cidade Os mercados locais são essencialmente mercados de vizinhança e embora importantes para a vida das comunidades em nenhum lugar revelam indícios de reduzir o sistema econômico vigente a seus padrões Eles não foram pontos de partida do comércio interno ou naciona 6 Thurnwald RC op Cit pp 162164 84 Na Europa Ocidental o comércio interno foi criado na verdade por intervenção do estado Até a época da Revolução Comercial o que pode nos parecer como comércio nacional não era nacional e sim municipal Os hanseáticos não eram mercadores germânicos eles eram uma corpo ração de oligarcas comerciais sediados em diversas cidades do Mar do Norte e do Báltico Longe de nacionalizarem a vida econômica germânica a Hansa deliberadamente isolava o interior do comércio O comércio da Antuérpia ou Hamburgo Veneza ou Lyon não era de forma alguma holandês ou germânico italiano ou francês Londres não era exceção ela era tão pouco inglesa como Luebeck era germânica O mapa comercial da Europa nesse período mostraria corretamente apenas cidades deixando em branco o campo este pareceria não existir no que concerne ao comércio organizado As assim chamadas nações eram apenas unidades políticas na verdade bastante frouxas e que consistiam economicamente de inúmeros ambientes domésticos autosuficientes maiores ou menores e insignificantes mercados locais nas aldeias O comércio limitavase a distritos organizados que o praticavam localmente como comércio de vizinhança ou como comércio de longa distância os dois eram estritamente separados e a nenhum deles era permitido infiltrarse no campo indiscriminadamente Um separação tão constante entre o comércio local e de longa distância dentro da organização da cidade deve parecer mais um choque para o evolucionista para quem as coisas sempre parecem se imiscuir facilmente umas nas outras E no entanto este fato peculiar constitui a chave da história social da vida urbana na Europa Ocidental Isto comprova claramente nossa afirmativa a respeito da origem dos mercados que inferimos a partir das condições existentes nas economias primitivas A acentuada distinção entre o comércio local e de longa distância pode parecer demasiado rígida especialmente porque ela nos leva à conclusão um tanto surpreendente de que nem o comércio de longa distância nem o comércio local foi o pai do comércio interno dos tempos modernos não nos deixando aparentemente outra alternativa senão voltarmonos a título de explicação para o deus ex machina da intervenção estatal Veremos em seguida que outras investigações recentes apóiam nossas conclusões a esse respeito Todavia queremos fazer primeiro um rápido esboço da história da civilização urbana conforme foi modelada pela separação peculiar entre o comércio e a longa distância dentro dos limites da cidade medieval 85 Essa separação foi na verdade o cerne da instituição dos centros urbanos medievais7 A cidade era uma organização de burgueses Só eles tinham direito à cidadania e o sistema repousava na distinção entre burgueses e não burgueses Nem os camponeses nem os mercadores de outras cidades eram burgueses naturalmente Entretanto enquanto a influência militar e política da cidade tornava possível lidar com os camponeses das redondezas tal autoridade não podia ser exercida em relação ao mercador estrangeiro Em conseqüência os burgueses se encontravam numa posição inteiramente diferente em relação ao comércio local e ao comércio a longa distância No que se refere ao suprimento de alimentos a regulamentação envolvia a aplicação de métodos tais como a publicidade obrigatória das transações e a exclusão de intermediários a fim de controlar o comércio e impedir a elevação dos preços Tal regulamentação porém só era efetiva no comércio que era levado a efeito entre a cidade e suas cercanias A situação era inteiramente diferente no comércio de longa distância As especiarias o peixe salgado ou o vinho tinham que ser transportados de longa distância e constituíam assim o domínio do mercador estrangeiro e dos seus métodos de comércio atacadista capitalista Esse tipo de comércio fugia à regulamentação local A proibição total da venda a varejo pelos mercadores estrangeiros se destinava a alcançar essa finalidade À medida que crescia o volume do comércio atacadista capitalista mais estrita se tornava a sua exclusão dos mercados locais reforçado ainda no que concernia às importações No que diz respeito aos artefatos industriais a separação entre o comércio local e o de longa distância era ainda mais profunda pois neste caso toda a organização de produção para exportação era afetada A razão disto estava na própria natureza das guildas e corporações artesanais nas quais se organizava a produção industrial No mercado local a produção era regulada de acordo com as necessidades dos produtores restringindo a produção a um nível remunerativo Este princípio não se aplicava naturalmente às exportações onde os interesses dos produtores não estabeleciam limites à produção Em conseqüência enquanto o comércio local era estritamente regulado a produção para exportação da época era apenas formalmente controlada pelas corporações de artesãos A indústria de exportação da época o comércio de tecidos era organizada na verdade na base capitalista do trabalho assalariado A separação crescente mente estrita entre o comércio local e o de exportação foi a reação da vida urbana à ameaça do capital móvel de 7 Nossa formulação segue as obras bem conhecidas de H Pirenne 86 desintegrar as instituições da cidade A cidade medieval típica não tentou evitar o perigo diminuindo o abismo entre o mercado local controlável e as incertezas do um comércio de longa distância incontrolável mas ao contrário enfrentou o perigo reforçando com o máximo rigor aquela política de exclusão e proteção que era o rationale da sua existência Na prática isto significa que as cidades levantaram todos os obstáculos possíveis à formação daquele mercado nacional ou interno pelo qual pressionava o atacadista capitalista Mantendo o princípio de um comércio local nãocompetitivo e um comércio a longa distância igualmente nãocompetitivo levado a efeito de cidade a cidade os burgueses dificultaram por todos os meios a seu dispor a inclusão do campo no compasso do comércio e a abertura de um comércio indiscriminado entre as cidades e o campo Foi esse desenvolvimento que forçou o estado territorial a se projetar como instrumento da nacionalização do mercado e criador do comércio interno A ação deliberada do estado nos séculos XV e XVI impingiu o sistema mercantil às cidades e às municipalidades ferrenhamente protecionistas O mercantilismo destruiu o particularismo desgastado do comércio local e intermunicipal eliminando as barreiras que separavam esses dois tipos de comércio nãocompetitivo e assim abrindo caminho para um mercado nacional que passou a ignorar cada vez mais a distinção entre cidade e campo assim como as que existiam entre as várias cidades e províncias O sistema mercantil foi na verdade uma resposta a vários desafios Do ponto de vista político o estado centralizado era uma nova criação estimulada pela Revolução Comercial que mudara o centro de gravidade do mundo ocidental do Mediterrâneo para as costas do Atlântico compelindo assim os povos atrasados de grandes países agrários a se organizarem para o comércio e os negócios Na política externa o estabelecimento de um poder soberano era a necessidade do dia a nova política estatal mercantilista envolvia a disciplina dos recursos de todo território nacional para os objetos de poder nos assuntos externos Na política interna a unificação de países fragmentados pelo patticularismo feudal e municipal foi o subproduto necessário a um tal empreendimento Do ponto de vista econômico o instrumento de unificação foi o capital ie os recursos privados disponíveis sob a forma de dinheiro acumulado e portanto peculiarmente adequado para o desenvolvimento do comércio Finalmente a técnica administrativa subjacente à política econômica do governo central foi fornecida pela ampliação do sistema municipal tradicional ao território mais amplo do estado Na 87 França onde as corporações artesanais tendiam a se tornar órgãos do estado o sistema de guildas foi simplesmente ampliado para todo o território do país Na Inglaterra onde a decadência das cidades fortificadas havia enfraquecido fatalmente aquele sistema o campo foi industrializado sem a supervisão de guildas enquanto em ambos os países os negócios e o comércio se espalhavam por todo o território da nação e se tornavam a forma dominante da atividade econômica Nesta situação reside a origem da política comercial interna do mercantilismo A intervenção estatal que havia liberado o comércio dos limites da cidade privrlegiada era agora chamada a lidar com dois perigos estreitamente ligados os quais a cidade havia contornado com sucesso a saber o monopólio e a competição Já se compreendia naquela época que a competição levaria em última instância ao monopólio mas o monopólio era ainda mais temido do que posteriormente pois ele muitas vezes estava ligado às necessidades da vida e portanto podia tornarse facilmente um perigo para a comunidade O remédio encontrado foi a total regulamentação da vida econômica só que agora em escala nacional e não mais apenas municipal O que para a mente moderna pode facilmente parecer como uma imprevidente exclusão da competição foi na realidade um meio de salvaguardar o funcionamento dos mercados naquelas circunstâncias Qualquer intrusão temporária de compradores ou vendedores no mercado poderia destruir o equilíbrio e decepcionar os compradores e vendedores regulares e o resultado seria a cessação do funcionamento do mercado Os fornecedores antigos deixaram de oferecer suas mercadorias por não terem uma garantia de preço e o mercado sem suprimentos suficientes tornarseia uma presa do monopólio Numa escala menor o mesmo perigo estava presente no lado da demanda onde uma queda rápida poderia ser seguida por um monopólio da demanda Cada passo que o estado tomava para livrar o mercado de restrições particularistas tributos e proibições punha em perigo o sistema organizado de produção e distribuição o qual se via agora ameaçado por uma competição não regulada e pela intrusão de aventureiros que esvaziavam o mercado mas não ofereciam nenhuma garantia de permanência Ocorreu assim que embora os novos mercados nacionais até certo ponto fossem competitivos inevitavelmente o que prevalecia era o aspecto tradicional da regulamentação e não o novo elemento de cornpetiçâo8 A domesticidade autosuficiente do 8 Montesquieu Lesprit de Lois 1748 O inglês restringe o mercador mas é em favor do comércio 88 camponês que trabalhava para sua subsistência continuou sendo a base mais ampla do sistema econômico que agora se integrava em grandes unidades nacionais através da formação do mercado interno Este mercado nacional assumiu o seu lugar ao lado dos mercados local e estrangeiro às vezes sobrepujandoos em parte A agricultura era suplementada agora pelo comércio interno um sistema de mercados relativamente isolados inteiramente compatível com o princípio da domesticidade ainda dominante no campo Isto conclui nossa sinopse da história do mercado até a época da Revolução Industrial O estágio seguinte na história da humanidade como sabemos acarretou uma tentativa de estabelecer um grande mercado autoregulável Nada no mercantilismo essa política distinta do estadonação ocidental deixava prever um desenvolvimento tão singular A libertação do comércio levada a efeito pelo mercantilismo apenas liberou o comércio do particularismo porém ao mesmo tempo ampliou o escopo da regulamentação O sistema econômico estava submerso em relações sociais gerais os mercados eram apenas um aspecto acessório de uma estrutura institucional controlada e regulada mais do que nunca pela autoridade social 89 6 O MERCADO AUTOREGULÁVEL E AS MERCADORIAS FICTíCIAS TRABALHO TERRA E DINHEIRO O rápido esboço dos sistemas econômicos e dos mercados tomados em separado mostra que até a nossa época os mercados nada mais eram do que acessórios da vida econômica Como regra o sistema econômico era absorvido pelo sistema social e qualquer que fosse o princípio de comportamento predominante na economia a presença do padrão de mercado sempre era compatível com ele O princípio da permuta ou troca subjacente a esse padrão não revelava qualquer tendência de expandirse às expensas do resto do sistema Mesmo quando os mercados se desenvolveram muito como ocorreu sob o sistema mercantil eles tiveram que lutar sob o controle de uma administração centralizada que patrocinava a autarquia tanto no ambiente doméstico do campesinato como em relação à vida nacional De fato as regulamentações e os mercados cresceram juntos O mercado autoregulável era desconhecido e a emergência da idéia da autoregulação se constituiu numa inversão completa da tendência do desenvolvimento Assim somente à luz desses fatos é que podem ser inteiramente compreendidos os extraordinários pressupostos subjacentes à economia de mercado Um economia de mercado é um sistema econômico controlado regulado e dirigido apenas por mercados a ordem na produção e distribuição dos bens é confiada a esse mecanismo autoregulável Uma economia desse tipo se origina da expectativa de que os seres humanos se comportem de maneira tal a atingir o máximo de ganhos monetários Ela pressupõe mercados nos quais o fornecimento dos bens disponíveis 90 incluindo serviços a um preço definido igualarão a demanda a esse mesmo preço Pressupõe também a presença do dinheiro que funciona como poder de compra nas mãos de seus possuidores A produção será então controlada pelos preços pois os lucros daqueles que dirigem a produção dependerão dos preços pois estes formam rendimentos e é com a ajuda desses rendimentos que os bens produzidos são distribuídos entre os membros da sociedade Partindo desses pressupostos a ordem na produção e na distribuição de bens é assegurada apenas pelos preços A autoregulação significa que toda a produção é para venda no mercado e que todos os rendimentos derivam de tais vendas Por conseguinte há mercados para todos os componentes da indústria não apenas pata os bens sempre incluindo serviços mas também para o trabalho a terra e o dinheiro sendo seus preços chamados respectiva mente preços de mercadorias salários aluguel e juros Os próprios termos indicam que os preços formam rendas juro é o preço para o uso do dinheiro e constitui a renda daqueles que estão em posição de fornecêlo Aluguel é o preço para o uso da terra e constitui a renda daqueles que a fornecem Salários são os preços para o uso da força de trabalho que constitui a renda daqueles que a vendem Finalmente os preços das mercadorias contribuem para a renda daqueles que vendem seus serviços empresariais sendo a renda chamada de lucro na verdade a diferença entre dois conjuntos de preços o preço dos bens produzidos e seus custos ie o preço dos bens necessários para produzilos Se essas condições são preenchidas todas as rendas derivarão das vendas no mercado e as rendas serão apenas suficientes para comprar todos os bens produzidos Seguese um outro conjunto de pressupostos em relação ao estado e à sua política A formação dos mercados não será inibida por nada e os rendimentos não poderão ser formados de outra maneira a não ser através das vendas Não deve existir ainda qualquer interferência no ajustamento dos preços às mudanças das condições do mercado quer sejam preços de bens trabalho terra ou dinheiro Assim é preciso que existam não apenas mercados para todos os elementos da indústria1 como também não deve ser adotada qualquer medida ou política que possa influenciar a ação desses mercados Nem o preço nem a oferta 1 Henderson H D Supply and Demand 1922 A prática do mercado é dupla a divisão de fatores entre os diferentes usos e a organização das forças que influenciam o fornecimento agregado de fatores 91 nem a demanda devem ser fixados ou regulados só terão validades as políticas e as medidas que ajudem a assegurar a autoregulação do mercado críando condição para fazer do mercado o único poder organizador na esfera econômica Para compreender inteiramente o que isto significa vamos voltar por um momento ao sistema mercantil e aos mercados nacionais que ele tanto concorreu para desenvolver Sob o feudalismo e o sistema de guildas a terra e o trabalho formavam parte da própria organização social o dinheiro ainda não se tinha desenvolvido no elemento principal da indústria A terra o elemento crucial da ordem feudal era a base do sistema militar jurídico administrativo e político seu statús e função eram determinados por regras legais e costumeiras Se à sua posse era transferível ou não e em caso afirmativo a quem e sob quais restrições em que implicavam os direitos de propriedade de que forma podiam ser utilizados alguns tipos de terra todas essas questões ficavam à parte da organização de compra e venda e sujeitas a um conjunto inteiramente diferente de regulamentações institucionais O mesmo também se aplicava à organização do trabalho Sob o sistema de guildas como sob qualquer outro sistema econômico na história anterior as motivações e as circunstâncias das atividades produtivas estavam inseridas na organização geral das sociedades As relações do mestre do jornaleiro e do aprendiz as condições do artesanato o número de aprendizes os salários dos trabalhadores tudo era regulamentado pelo costume e pelas regras da guilda e da cidade O que o sistema mercantil fez foi apenas unificar essas condições quer através de estatutos como na Inglaterra quer através de nacionalização das guildas como na França Quanto à terra seu status feudal só foi abolido naquilo que estava ligado aos privilégios provinciais no restante a terra permaneceu extra commercium tanto na Inglaterra como na França Até a época da Grande Revolução de 1789 a propriedade fundiária continuou sendo fonte de privilégios sociais na França e mesmo depois dessa época a lei comum sobre a terra na Inglaterra era basicamente medieval O mercantilismo com toda a sua tendência em direção à comercialização jamais atacou as salvaguardas que protegiam estes dois elementos básicos da produção trabalho e terra e os impedia de se tornarem objetos de comércio Na Inglaterra a nacionalização da legislação do trabalho por meio do Statute of Artificers Estatuto dos Artífices 1563 e da Poor Law Lei dos Pobres 1601 retirou o trabalho da zona de perigo e a política anticercamento dos Tudors e dos primeiros Stuarts foi um protesto concreto contra o princípio do uso lucrativo da propriedade fundiária 92 O mercantilismo por mais que tivesse insistido enfaticamente na comercialização como política nacional pensava a respeito dos mercados de maneira exatamente contrária à economia de mercado o que fica bem demonstrado pela amplitude da intervenção estatal na indústria Neste ponto não havia diferença entre mercantilistas e feudalistas entre planejadores coroados e interesses investidos entre burocratas centralizadores e particularistas conservadores Eles discordavam apenas quanto aos métodos de regulamentação as guildas as cidades e as províncias apelavam para a força dos costumes e da tradição enquanto a nova autoridade estatal favorecia o estatuto e as leis Todos eles porém eram igualmente avessos à idéia da comercialização do trabalho e da terra a precondição da economia de mercado As guildas artesanais e os privilégios feudais só foram abolidos na França em 1790 na Inglaterra o Statute of Artificers só foi revogado entre 1813 e 1814 e a Poor Law elisabetana em 1834 O estabelecimento do mercado livre de trabalho não foi sequer discutido em ambos os países antes da última década do século XVIII e a idéia da auto regulação da vida econômica estava inteiramente fora de cogitação nesse período O mercantilismo se preocupava com o desenvolvimento dos recursos do país inclusive o pleno emprego através dos negócios e do comércio e levava em conta como um dado certo a organização tradicional da terra e do trabalho Neste ponto ele estava tão afastado dos conceitos modernos como do campo da política onde a sua crença nos poderes absolutos de um déspota esclarecido não continha quaisquer laivos Ae democracia A transição para um sistema democrático e uma política representativa significou a total reversão da tendência da época e da mesma forma a mudança de mercados regulamentados para autoreguláveis ao final do século XVIII representou uma transformação completa na estrutura da sociedade Um mercado autoregulável exige no mínimo a separação institucional da sociedade em esferas econômica e política Do ponto de vista da sociedade como um todo uma tal dicotomia é com efeito apenas um reforço da existência de um mercado autoregulável Podese argumentar que a separação dessas duas esferas ocorra em todos os tipos de sociedade em todos os tempos Um tal inferência porém seria baseada numa falácia É verdade que nenhuma sociedade pode existir sem algum tipo de sistema que assegure a ordem na produção e distribuição de bens Entretanto isto não implica a existência de instituições econômicas separadas Normalmente a ordem econômica é apenas uma função da social na qual ela está inserida Como já demonstramos não 93 havia um sistema econômico separado na sociedade seja sob condições tribais feudais ou mercantis A sociedade do século XIX revelouse de fato um ponto de partida singular no qual a atividade econômica foi isolada e imputada a uma motivação econômica distinta Um tal padrão institucional não poderia funcionar a menos que a sociedade fosse subordinada de alguma forma às suas exigências Uma economia de mercado só pode existir numa sociedade de mercado Chegamos a esta conclusão de uma maneira geral em nossa análise do padrão de mercado Podemos especificar agora as razões desta nossa afirmativa Uma economia de mercado deve compreender todos os componentes da indústria incluindo trabalho terra e dinheiro Numa economia de mercado este último é também um elemento essencial da vida industrial e a sua inclusão no mecanismo de mercado acarretou como veremos adiante conseqüências institucionais de grande alcance Acontece porém que o trabalho e a terra nada mais são do que os próprios seres humanos nos quais consistem todas as sociedades e o ambiente natural no qual elas existem Incluílos no mecanismo de mercado significa subordinar a substância da própria sociedade às leis do mercado Estamos agora em posição de desenvolver numa forma mais concreta a natureza institucional de uma economia de mercado e os perigos que ela acarreta para a sociedade Em primeiro lugar procuraremos descrever os métodos através dos quais o mecanismo de mercado fica capacitado a controlar e dirigir os elementos reais da vida industrial em seguida tentaremos avaliar a natureza dos efeitos de um tal mecanismo sobre a sociedade que está sujeita à sua ação É com a ajuda do conceito de mercadoria que o mecanismo do mercado se engrena aos vários elementos da vida industrial As mercadorias são aqui definidas empiricamente como objetos produzidos para a venda no mercado por outro lado os mercados são definidos empiricamente como contatos reais entre compradores e vendedores Assim cada componente da indústria aparece como algo produzido para a venda pois só então pode estar sujeito ao mecanismo da oferta e procura com a intermediação do preço Na prática isto significa que deve haver mercado para cada um dos elementos da indústria que nesses mercados cada um desses elementos é organizado num grupo de oferta e procura Esses mercados e eles são numerosos são interligados e constituem Um Grande Mercado2 2 Hawtrey G R op cit Hawtrey vê a sua função tornando mutuamente consistente os valores relativos de mercado de todas as mercadorias 94 O ponto crucial é o seguinte trabalho terra e dinheiro são elementos essenciais da indústria Eles também têm que ser organizados em mercados e de fato esses mercados formam uma parte absolutamente vital do sistema econômico Todavia o trabalho a terra e o dinheiro obviamente não são mercadorias O postulado de que tudo o que é comprado e vendido tem que ser produzido para venda é enfaticamente irreal no que diz respeito a eles Em outras palavras de acordo com a definição empírica de urna mercadoria eles não são mercadorias Trabalho é apenas um outro nome para atividade humana que acompanha a própria vida que por sua vez não é produzida para venda mas por razões inteiramente diversas e essa atividade não pode ser destacada do resto da vida não pode ser armazenada ou mobilizada Terra é apenas outro nome para a natureza que não é produzida pelo homem Finalmente o dinheiro é apenas um símbolo do poder de compra e como regra ele não é produzido mas adquire vida através do mecanismo dos bancos e das finanças estatais Nenhum deles é produzido para a venda A descrição do trabalho da terra e do dinheiro como mercadorias é inteiramente fictícia Não obstante é com a ajuda dessa ficção que são organizados os mercados reais do trabalho da terra e do dinheiro3 Esses elementos são na verdade comprados e vendidos no mercado sua oferta e procurá são magnitudes reais e quaisquer medidas ou políticas que possam inibir a formação de tais mercados poriam em perigo ipso facto a autoregulaçâo do sistema A ficção da mercadoria portanto oferece um princípio de organização vital em relação à sociedade como um todo afetando praticamente todas as suas instituições nas formas mais variadas Isto significa o princípio de acordo com o qual não se pode permitir qualquer entendimento ou comportamento que venha a impedir o funcionamento real do mecanismo de mercado nas linhas de ficção da mercadoria Ora em relação ao trabalho à terra e ao dinheiro não se pode manter um tal postulado Permitir que o mecanismo de mercado seja o único dirigente do destino dos seres humanos e do seu ambiente natural e até mesmo o árbitro da quantidade e do uso do poder de compra resultaria no desmoronamento da sociedade Esta suposta mercadoria a força de trabalho não pode ser impelida usada indiscriminadamente 3 A afirmativa de Marx do caráter fetichista do valor das mercadorias se refere ao valor de troca de mercadorias genuínas e não tem nada em comum com as mercadorias fictícias mencionadas no texto 95 ou até mesmo nãoutilizada sem afetar também o indivíduo humano que acontece ser o portador dessa mercadoria peculiar Ao dispor da força de trabalho de um homem o sistema disporia também incidentalmente da entidade física psicológica e moral do homem ligado a essa etiqueta Despojados da cobertura protetora das instituições culturais os seres humanos sucumbiriam sob os efeitos do abandono social morreriam vítimas de um agudo transtorno social através do vício da perversão do crime e da fome A natureza seria reduzida a seus elementos mínimos conspurcadas as paisagens e os arredores poluídos os rios a segurança militar ameaçada e destruído o poder de produzir alimentos e matériasprimas Finalmente a administração do poder de compra por parte do mercado liquidaria empresas periodicamente pois as faltas e os excessos de dinheiro seriam tão desastrosos para os negócios como as enchentes e as secas nas sociedades primitivas Os mercados de trabalho terra e dinheiro são sem dúvida essenciais para uma economia de mercado Entretanto nenhuma sociedade suportaria os efeitos de um tal sistema de grosseiras ficções mesmo por um período de tempo muito curto a menos que a sua substância humana natural assim como a sua organização de negócios fosse protegida contra os assaltos desse moinho satânico A extrema artificialidade da economia de mercado está enraizada no fato de o próprio processo de produção ser aqui gozado sob a forma de de compra e venda Numa sociedade comercial não é possível outra forma de organizar a produção para o mercado Durante a Idade Média a produção industrial para exportação foi organizada por burgueses ricos e levada a efeito sob sua supervisão direta em sua cidade natal Mais tarde na sociedade mercantil a produção foi organizada por mercadores e não se restringia mais às cidades Esta foi a época dos deslocamentos quando a indústria doméstica era provida de matériasprimas pelo capitalista mercador o qual controlava o processo de produção como uma empresa puramente comercial Foi nessa ocasião que a produção industrial se colocou definitivamente e em grande escala sob a liderança organizadora do mercador Ele conhecia o mercado o volume e a qualidade da demanda e podia se encarregar também dos suprimentos que incidentalmente consistiam apenas em lã tinturas e às vezes molduras ou teares usados pela indústria doméstica Se não houvesse suprimentos o aldeão era o mais prejudicado pois perdia seu emprego durante algum tempo O caso não envolvia nenhuma fábrica dispendiosa e o mercador não incorria em risco sério ao assumir a responsabilidade da produção Durante séculos esse sistema cresceu em 96 poder e objetivo até que finalmente num pais como a Inglaterra a indústria da lã produto básico nacional atingiu grandes setores do pais onde a produção era organizada pelo negociante de tecidos A propósito aquele que comprava e vendia provia também a produção não era preciso uma outra motivação A criação de bens não envolvia atitudes recíprocas de ajuda mútua não havia a preocupação do chefe de família por aqueles cujas necessidades provia nem o orgulho do artesão no exercício da sua profissão nem a satisfação do elogio público nada além do motivo simples do lucro tão familiar ao homem cuja profissão é comprar e vender Até o final do século XVIII a produção industrial na Europa Ocidental já era um mero acessório do comércio Enquanto a máquina foi uma ferramenta barata e nãoqualificada não houve qualquer mudança nesta situação O simples fato do tecelão doméstico poder produzir quantidades maiores do que antes no mesmo espaço de tempo poderia induzilo a usar máquinas para aumentar seus ganhos porém este fato em si mesmo não afetava necessariamente a organização da profissão O fato da maquinaria barata ser propriedade do trabalhador ou do mercador fazia alguma diferença quanto à posição social das partes e sem dúvida influía nos ganhos do trabalhador que ficava em melhor situação enquanto proprietário das suas ferramentas de trabalho Entretanto isto não obrigava o mercador a tornarse um capitalista industrial ou o limitava a emprestar seu dinheiro às pessoas interessadas O fluxo de bens raramente se expandia a dificuldade maior continuava a ser o fornecimento de matériasprimas às vezes inevitavelmente interrompido Mesmo em tais casos o prejuízo do mercador proprietário das máquinas não era substancial Não foi o aparecimento da máquina em si mas a invenção de maquinarias e fábricas complicadas e portanto especializadas que mudou completamente a relação do mercador com a produção Embora a nova organização produtiva tenha sido introduzida pelo mercador fato esse que determinou todo o curso da transformação a utilização de maquinarias e fábricas especializadas implicou o desenvolvimento do sistema fabril e com ele ocorreu uma alteração decisiva na importância relativa do comércio e da indústria em favor dessa última A produção industrial deixou de ser um acessório do comércio organizado pelo mercador como proposição de compra e venda ela envolvia agora investimentos a longo prazo com os riscos correspondentes e a menos que a continuidade da produção fosse garantida com certa margem de segurança um tal risco não seria suportável 97 Quanto mais complicada se tornou a produção industrial mais numerosos passaram a ser os elementos da indústria que exigiam garantia de fornecimento Três deles eram de importância fundamental o trabalho a terra e o dinheiro Numa sociedade comercial esse fornecimento só podia ser organizado de uma forma tornandoos disponíveis à compra Agora eles tinham que ser organizados para a venda no mercado em outras palavras como mercadorias A ampliação do mecanismo de mercado aos componentes da indústria trabalho terra e dinheiro foi a conseqüência inevitável da introdução do sistema fabril numa sociedade comercial Esses elementos da indústria tinham que estar à venda Isto estava de acordo com a exigência de um sistema de mercado Sabemos que num sistema como esse os lucros só podem ser assegurados se se garante a auto regulação através de mercados competitivos interdependentes Como o desenvolvimento do sistema fabril se organizara como parte de um processo de compra e venda o trabalho a terra e o dinheiro também tiveram que se transformar em mercadorias para manter a produção em andamento É verdade que eles não puderam ser transformados em mercadorias reais pois não eram produzidos para venda no mercado Entretanto a ficção de serem assim produzidos tonouse o princípio organizador da sociedade Dos três elementos um se destaca mais trabalho mãodeobra é o termo técnico usado para os seres humanos na medida em que não são empregadores mas empregados Seguese daí que a organização do trabalho mudaria simultaneamente com a organização do sistema de mercado Entretanto como a organização do trabalho é apenas um outro termo para as formas de vida do povo comum isto significa que o desenvolvimento do sistema de mercado seria acompanhado de uma mudança na organização da própria sociedade Seguindo este raciocínio a sociedade humana tornarase um acessório do sistema econômico Relembremos nosso paralelo entre as devastações dos cercamentos na história inglesa e a catástrofe social que se seguiu à Revolução Industrial Dissemos que como regra o progresso é feito à custa da desarticulação social Se oritmo desse transtorno é exagerado a comunidade pode sucumbir no processo Os Tudors e os primeiros Stuarts salvaram a Inglaterra do destino da Espanha regulamentando o curso da mudança de forma a tornáIa suportável e puderam canalizar seus efeitos por caminhos menos destruidores Nada porém foi feito para salvar o povo comum da Inglaterra do impacto da Revolução Industrial Um fé cega no progresso espontâneo havia se apossado da mentalidade 98 das pessoas e com o fanatismo de sectários os mais esclarecidos pressionavam em favor de uma mudança na sociedade sem limites nem regulamentações Os efeitos causados nas vidas das pessoas foram terríveis quase indescritíveis A sociedade humana poderia ter sido aniquilada de fato não fosse a ocorrência de alguns contramovimentos protetores que cercearam a ação desse mecanismo autodestrutivo A história social do século XIX foi assim o resultado de um duplo movimento a ampliação da organização do mercado em relação às mercadorias genuínas foi acompanhada pela sua restrição em relação às mercadorias fictícias Enquanto de um lado os mercados se difundiam sobre toda a face do globo e a quantidade de bens envolvidos assumiu proporções inacreditáveis de outro uma rede de medidas e políticas se integravam em poderosas instituições destinadas a cercear a ação do mercado relativa ao trabalho à terra e ao dinheiro Enquanto a organização dos mercados mundiais de mercadorias dos mercados mundiais de capitais e dos mercados mundiais de moedas sob a égide do padrãoouro deu um momentum sem paralelo ao mecanismo de mercados surgiu um movimento bem estruturado para resistir aos efeitos perniciosos de uma economia controlada pelo mercado A sociedade se protegeu contra os perigos inerentes a um sistema de mercado autoregulável e este foi o único aspecto abrangente na história desses período 99 7 SPEENHAMLAND 1795 A sociedade do século XVIII resistiu inconscientemente a qualquer tentativa de transformáIa em mero apêndice do mercado Não era concebível uma economia de mercado que não incluísse um mercado de trabalho mas estabelecêlo especialmente na civilização rural da Inglaterra significava nada menos do que destruir totalmente o tecido tradicional da sociedade Mesmo durante o período mais ativo da Revolução Industrial de 1795 a 1834 impediuse a criação de um mercado de trabalho na Inglaterra através da Speenharnland Law Lei Speenhamland Com efeito o mercado de trabalho foi o último dos mercados a ser organizado sob o novo sistema industrial e esse passo final só foi tomado quando a economia de mercado foi posta em marcha e a ausência de um mercado de trabalho provou ser um mal ainda maior para o próprio povo comum do que as calamidades que acompanhariam a sua introdução No final o mercado livre de trabalho a despeito dos métodos desumanos empregados na sua criação provou ser financeiramente benéfico para todas as partes envolvidas Entretanto só agora surgia o problema crucial As vantagens econômicas de um mercado livre de trabalho não podiam compensar a destruição social que ele acarretaria Tiveram que ser introduzidas regulamentações de um novo tipo para mais uma vez proteger o trabalho só que agora contra o funcionamento do próprio mecanismo de mercado Embora as novas instituições protetoras sindicatos e leis fabris fossem adaptadas tanto quanto possível às exigências do mecanismo econômico elas interferiam com a sua autoregulação e finalmente destruíram o sistema 100 Dentro da ampla lógica desse desenvolvimento a Speenharnland Law ocupou uma posição estratégica Na Inglaterra tanto a terra como o dinheiro foram mobilizados antes do trabalho Este se viu impedido de formar um mercado nacional pelas restrições estritamente legais impostas à sua mobilidade física o trabalhador estava praticamente restrito à sua paróquia O Act of Settlement Decreto de Domicílio de 1662 que estabeleceu as regras da assim chamada servidão paroquial só foi abrandado em 1795 Esse passo tornaria possível o estabelecimento de um mercado nacional de trabalho se não tivesse surgido no mesmo ano a Speenharnland Law ou sistema de abonos A intenção dessa lei tinha um sentido oposto isto é o de reforçar poderosamente o sistema paternalista da organização de trabalho nos moldes herdados dos Tudors e dos Stuarts Os juízes de Berkshire num encontro no Pelikan Inn em Speenharnland próximo a Newbury em 6 de maio de 1795 numa época de grande perturbação decidiram conceder abonos em aditamento aos salários de acordo com uma tabela que dependeria do preço do pão Assim ficaria assegurada ao pobre uma renda mínima independente dos seus proventos A famosa recomendação dos magistrados dizia Quando o preço do quilo de pão de uma determinada qualidade custar 1 shilling qualquer pessoa pobre e diligente terá 3 shillings por semana para seu sustento quer ganhos por ela própria ou pelo trabalho de sua família quer como um abono proveniente do imposto dos pobres e 1 shilling e 6 pence para o sustento de sua mulher e qualquer outro membro da sua família Quando o quilo de pão custar 16 4 shillings por semana mais 110 A cada pence acima de 1 shilling no aumento do preço do pão corresponderão 3 pences para ele e 1 pence para os demais Essas cifras variavam em alguns condados mas na maioria dos casos adotavase a tabela de Speenharnland Isto foi feito como uma medida de emergência introduzida informalmente Embora chamada comumente de lei a própria tabela nunca foi promulgada Passou porém vigorar como lei na maior parte do campo e mais tarde até mesmo em alguns distritos manufatureiros Na verdade ela introduziu uma inovação social e econômica que nada mais era que o direito de viver e até ser abolida em 1834 ele impediu efetivamente o estabelecimento de um mercado de trabalho competitivo Desde 1832 dois anos antes portanto a classe média vinha forçando seu caminho em direção ao poder em parte para remover esse obstáculo à nova economia capitalista Com efeito nada poderia ser mais óbvio do que o fato de o sistema de salários exigir imperativamente a abolição do direito de viver conforme proclamada pela Speenharnland sob o 101 novo regime do homem econômico ninguém trabalharia por um salário se pudesse sobreviver sem fazer nada Um outro aspecto da anulação do método Speenharnland revelouse menos óbvio para a maioria dos escritores do século XIX a saber que o sistema de salários teria que se tornar universal no interesse dos próprios assalariados embora isto significasse privá los da sua exigência legal à subsistência O direito de viver provara ser uma armadilha mortal O paradoxo foi apenas aparente Através da Speenhamland pretendiase que a Poor Law fosse administrada liberalmente porém ela se transformou de fato no oposto do seu intento original Sob a lei elisabetana os pobres era forçados a trabalhar com qualquer salário que pudessem conseguir e somente aqueles que não conseguiam trabalho tinham direito a assistência social nunca se pretendeu e nem se concedeu qualquer assistência sob a forma de abono salarial Durante a vigência da Speenharnland Law o indivíduo recebia assistência mesmo quando empregado se seu salário fosse menor do que a renda familiar estabelecida pela tabela Ora nenhum trabalhador tinha qualquer interesse material em satisfazer seu empregador uma vez que a sua renda era a mesma qualquer que fosse o seu salário A situação era diferente apenas no caso dos saláriospadrão ie quando os salários pagos excediam a tabela ocorrência esta muito pouco comum no campo uma vez que o empregador podia conseguir trabalhadores a qualquer preço Por menos que ele pagasse o subsídio auferido através dos impostos sempre elevava a renda do trabalhador até o nível determinado pela tabela Em poucos anos a produtividade do trabalho começou a declinar até o nível do trabalho indigente oferecendo aos empregadores mais um motivo para não elevar os salários além da tabela Depois que a intensidade do trabalho o cuidado e a eficiência com o qual era executado caíram abaixo de um nível definido ele chegou quase a inutilidade a um simulacro de trabalho apenas para salvar as aparências Apesar de o trabalho ainda ser obrigatório em princípio na prática a assistência externa se tornou geral e mesmo quando prestada nos asilos de indigentes dificilmente se poderia chamar de trabalho a ocupação obrigatória a que se entregavam os seus internos Isto resultou no abandono da legislação Tudor não em nome de um menor paternalismo mas de um ainda maior A ampliação da assistência externa a introdução de abonos salariais suplementados ainda por abonos separados para a mulher e os filhos e que aumentavam ou diminuíam de acordo com o preço do pão significavam em relação ao 102 trabalho uma renovação dramática do mesmo princípio regulador que se estava eliminando rapidamente na vida industrial como um todo Nenhuma outra medida se popularizou mais amplamente1 Pais não precisavam cuidar dos filhos filhos não dependiam mais dos pais os empregadores podiam reduzir os salários a belprazer e os trabalhadores não passavam fome quer fossem diligentes ou preguiçosos Os humanitaristas aplaudiam a medida como ato de piedade senão de justiça e os egoístas se consolavam com o pensamento de que se tratava de um gesto de caridade e não de um ato liberal Mesmo os contribuintes dos impostos custaram a compreender o que aconteceria a esses impostos num sistema que proclamava o direito de viver quer um homem trabalhasse por um salário vivo ou não A longo prazo o resultado foi estarrecedor Embora levasse algum tempo até que o respeito próprio do homem comum descesse a um nível tão baixo a ponto dele preferir a assistência aos pobres ao salário a verdade é que esse salário subsidiado através de fundos públicos chegou a um ponto tal que ele se viu forçado a recorrer à assistência dos impostos Pouco a pouco o pessoal do campo foi se pauperizando o adágio uma vez por conta dos impostos sempre por conta deles passou a ser uma verdade incontestável Seria impossível explicar a degradação humana e social do capitalismo primitivo sem os prolonga dos efeitos do sistema de abonos O episódio de Speenharnland revelou ao povo do principal país do século a verdadeira natureza da aventura social na qual estavam embarcando Dirigentes e dirigidos jamais esqueceram a lição daquele paraíso de todos Se o Reform Bill projeto de Reforma de 1832 e a Poor Law Amendment Emenda da Lei dos Pobres de 1834 foram vistos como pontos de partida do capitalismo moderno é porque puseram um ponto final no domínio do latifundiário benevolente seu sistema de abono A tentativa de criar uma ordem capitalista sem um mercado de trabalho falhara redondamente As leis que governavam uma tal ordem já se haviam afirmado e manifestavam seu antagonismo radical ao princípio do paternalismo Seu rigor era visível e sua violação acarretava sanções cruéis contra aqueles que a tentavam Sob a Speenhamland Law a sociedade se debatia entre duas influências opostas a que emanava do paternalismo e que protegia a mãodeobra dos perigos de um sistema de mercado e a que organizava 1 Meredith H O Outlines of the Econômicas History of England 1908 103 os elementos da produção inclusive a terra sob um sistema de mercado afastando a gente comum do seu status anterior compelindoa a ganhar a vida oferecendo seu trabalho à venda enquanto ao mesmo tempo privava esse trabalho do seu valor de mercado Criavase uma nova classe de empregadores mas não se podia constituir uma classe correspondente de empregados Uma nova onda gigantesca de cercamentos mobilizava a terra e produzia um proletariado rural enquanto a má administração da Poor Law impedia esse proletariado de ganhar a vida com o seu trabalho Não é de admirar que os contemporâneos se sentissem estarrecidos diante da aparente contradição entre um aumento quase miraculoso na produção e uma quase inanição das massas Já em 1831 havia a convicção geral e uma convicção apaixonante para muitas pessoas de responsabilidade de que qualquer coisa era preferível à continuação da Speenhamland Law Ou as máquinas teriam que ser desmontadas como os Ludistas tentaram fazer ou tinha que ser criado um mercado de trabalho regular Assim a humanidade se viu forçada a ingressar no caminho de uma experiência utópica Este não é o lugar para se discorrer sobre a economia da Speenharnland será oportuno fazêlo mais adiante Em face do teor dessa tal lei o direito de viver deveria ter acabado de vez com o trabalho assalariado Os saláriospadrão deveriam ter baixado gradualmente até o nível zero ficando totalmente por conta da paróquia o pagamento dos salários Se isto ocorresse ficaria patente o absurdo desse dispositivo Esse porém era um período essencialmente précapitalista em que as pessoas comuns ainda pensavam de modo tradicional e ainda não pautavam seu comportamento apenas por motivações monetárias A grande maioria do pessoal do campo era de posseiros proprietários ou foreiros vitalícios que preferiam qualquer tipo de vida à situação de indigente ainda que esta não fosse deliberadamente sobrecarregada por limitações penosas e ignominiosas como aconteceu posteriormente Se os trabalhadores tivessem a liberdade de fazer combinações para favorecer seus interesses o sistema de abonos talvez pudesse ter causado efeito contrário no padrão de salários a assistência aos empregados implícita numa administração tão liberal da Poor Law teria ajudado muito a ação dos sindicatos Talvez esta tenha sido uma das razões da promulgação das AntiCombination Laws Leis Anticornbinação de 17991800 tão injustas pois seria difícil explicáIas de outra maneira uma vez que tanto os magistrados de Berkshire como os membros do Parlamento se preocupavam de modo geral pela condição econômica dos pobres e após 104 1797 a agitação política já havia diminuído Podese argumentar de fato que a intervenção paternalista da Speenhamland contribuiu para o aparecimento das Anti Combination Laws uma intervenção posterior e se não fosse por elas a Speenharnland poderia ter atuado no sentido de elevar os salários em vez de rebaixálos como realmente ocorreu Vigorando em conjunto com as AntiCombination Laws que não foram revogadas por mais um quarto de século Speenharnland culminou no resultado irônico de arruinar eventualmente as pessoas a que ela ostensivamente se destinava socorrer através do direito de viver financeiramente implementado Para as gerações mais velhas ficou claramente patente a incompatibilidade mútua entre instituições tais como o sistema de salários e o direito de viver em outras palavrasja impossibilidade do funcionamento de uma ordem capitalista enquanto os salários fossem subsidiados por fundos públicos Os contemporâneos não compreendiam porém qual o tipo de ordem para a qual preparavam o caminho Só quando a grave deterioração da capacidade produtiva das massas se fez sentir uma verdadeira calamidade nacional que obstruía o progresso da civilização da máquina é que se impôs à consciência da comunidade a necessidade de abolir o direito incondicional do pobre à assistência A complicada economia da Speenhamland transcendia a compreensão até mesmo dos observadores mais atentos da época A conclusão a que se chegou porém não deixava margem de dúvidas o abono salarial só podia ser inerentemente falho pois prejudicava miraculosamente até mesmo aqueles que o recebiam As ciladas do sistema de mercado não eram prontamente visíveis Para compreender isto com mais clareza temos que distinguir entre as várias vicissitudes a que os trabalhadores estiveram expostos na Inglaterra desde o aparecimento da máquina Primeiro aquelas do período Speenharnland 1795 a 1834 Segundo as dificuldades causadas pela Poor Law Reform na década que se seguiu a 1834 Terceiro os efeitos deletérios de um mercado de trabalho competitivo após 1834 até que o reconhecimento dos sindicatos nos anos 1870 passou a oferecer a necessária proteção Cronologicamente a Speenharnland antecedeu a economia de mercado a década do Poor Law Reform Act representou o período de transição para essa economia O último período que superou este foi o da economia de mercado propriamente dita Os três períodos diferiram acentuadamente O da Speenhamland se destinou a impedir a proletarização do homem comum ou pelo menos diminuir o seu ritmo O resultado foi apenas a 105 pauperização das massas que quase perderam a sua forma humana no decorrer do processo A Poor Law Reform de 1834 acabou com essa obstrução do mercado de trabalho foi abolido o direito de viver A crueldade científica desse decreto foi tão chocante para o sentimento público nos anos 18301840 que os protestos veementes dos contemporâneos obscureceram o quadro aos olhos da posteridade É verdade que muitos dos pobres mais necessitados foram abandonados à sua sorte quando se retirou a assistência externa e entre aqueles que sofreram mais amargamente estavam os pobres merecedores orgulhosos demais para se recolherem aos albergues que se haviam tornado um abrigo vergonhoso Em toda a história moderna talvez jamais se tenha perpetrado um ato mais impiedoso de reforma social Ele esmagou multidões de vidas quando pretendia apenas criar um critério de genuína indigência com a experiência dos albergues Defendeuse friamente a tortura psicológica e ela foi posta em prática por filantropos benignos como meio de lubrificar as rodas do moinho de trabalho O comum das queixas porém relacionavase realmente com a erradicação abrupta de uma instituição tão antiga ao mesmo tempo que se efetuava uma transformação tão radical Disraeli denunciou essa revolução inconcebível na vida do povo Entretanto se se levasse em conta apenas a renda monetária a condição do povo logo poderia ser considerada como melhor Os problemas do terceiro período foram incomparavelmente mais profundos As atrocidades burocráticas cometidas contra os pobres durante a década seguinte a 1834 pela nova autoridade centralizada da Poor Law foram apenas esporádicas e quase nulas quando comparadas aos efeitos gerais da mais potente de todas as instituições modernas o mercado de trabalho Quanto à extensão era similar à ameaça representada pela Speenhamland com a diferença significativa de que a fonte de perigo era agora não a ausência mas a presença de um mercado de trabalho competitivo Se a Speenharnland impedira a emergência de uma classe trabalhadora agora os trabalhadores pobres estavam sendo formados nessa classe pela pressão de um mecanismo insensível Se durante a vigência da Speenharnland cuidavase do povo como de animais não muito preciosos agora esperavase que ele se cuidasse sozinho com todas as desvantagens contra ele Se a Speenhamland significava a miséria da degradação abrigada agora o trabalhador era um homem sem lar na sociedade Se a Speenhamland havia sobrecarregado os valores da comunidade da família e do ambiente rural agora o homem estava afastado do lar e da família arrancado das suas raízes e de todo o ambiente de significado 106 para ele Resumindo se a Speenhamland significava a decomposição da imobilidade agora o perigo era a morte pela exposição Um mercado de trabalho competitivo só foi estabelecido na Inglaterra após 1834 assim não se pode dizer que o capitalismo industrial como sistema social tenha existido antes desta data Quase imediatamente porém a autoproteção da sociedade se manifestou surgiram leis fabris e uma legislação social assim como a movimentação política e industrial da classe trabalhadora Foi justamente com essa tentativa de evitar os perigos totalmente novos do mecanismo de mercado que a ação protetora entrou em conflito fatal com a autoregulação do sistema Não é exagero dizer que a história social do século XIX foi determinada pela lógica do sistema de mercado propriamente dito após ter sido ele liberado pelo Poor Law Reform Act de 1834 O ponto de partidadessa dinâmica foi a Speenhamland Law Se sugerimos que o estudo da Speenhamland é o estudo do nascimento da civilização do século XIX não temos em mente exclusivamente seus efeitos econômicos e sociais nem mesmo a influência determinante desses efeitos sobre a moderna história política mas o fato de que a nossa consciência social foi fundida nesse molde fato esse desconhecido da atual geração A figura do indigente quase esquecida desde então dominava uma discussão que deixou marcas tão profundas como as dos acontecimentos mais espetaculares da história Se a Revolução Francesa muito deveu ao pensamento de Voltaire e Diderot Quesnay e Rousseau a discussão em torno da Poor Law formou as mentes de Bentham e Burke Godwin e Malthus Ricardo e Marx Robert Owen e John Stuart Mill Darwin e Spencer que partilharam com a Revolução Francesa a paternidade espiritual da civilização do século XIX Durante as décadas que se seguiram à Speenhamland e à Poor Law Reform foi que a mente do homem se voltou para a sua própria comunidade com um nova angústia e preocupação a revolução que os juízes de Berkshire em vão tentaram frear e que a Poor Law Reform eventualmente liberou modificara a visão dos homens em relação a seu ser coletivo como se a sua presença tivesse sido esquecida até então Descobriuse um mundo de presença insuspeitada o das leis que governam uma sociedade complexa Embora a emergência da sociedade neste sentido novo e característico tenha ocorrido no campo econômico seu referencial foi muito mais abrangente universal A realidade nascente chegou à nossa consciência através da economia política Com efeito suas regularidades surpreendentes e contradições assombrosas tinham que ser enquadradas num esquema de filosofia 107 e teologia para poderem ser assimiladas como significados humanos Os fatos obstinados e as leis brutais e inexoráveis que surgiram para abolir nossa liberdade tinham que se reconciliar de uma forma ou de outra com essa mesma liberdade Isto se tornou a mola mestra das forças metafísicas que secretamente sustentaram os positivistas e os utilitaristas A resposta ambivalente da mente a essas terríveis limitações foi uma esperança irrestrita e um desespero ilinútado que se voltavam para as regiões ainda nãoexploradas das possibilidades humanas Do pesadelo da população e das leis salariais destilouse a esperança a visão do aperfeiçoamento e ela se materializou num conceito de progresso tão inspirado r que parecia justificar as enormes e dolorosas distorções por vir O desespero provaria ser um agente ainda mais poderoso da transformação O homem foi forçado a resignarse à perdição secular seu destino era limitar a procriação da sua raça ou condenarse irremediavelmente à liquidação através da guerra e da peste da fome e do vício A pobreza representava a sobrevivência da natureza na sociedade A limitação dos alimentos e a ilimitação dos homens chegaram a um impasse justamente quando surgia a promessa de um aumento ilimitado de riqueza o que apenas tornava a ironia mais amarga Foi assim que a descoberta da sociedade integrouse ao universo espiritual do homem Mas de que forma essa nova realidade da sociedade seria traduzida em termos de vivência Como guias para a prática os princípios morais da harmonia e do conflito tinham atingido seu limite e pelejavam dentro de um padrão de completa contradição Diziase que a harmonia era inerente à economia pois em última instância os interesses do indivíduo e da comunidade eram idênticos Todavia uma tal autoregulação harmoniosa exigia que o indivíduo respeitasse a lei econômica mesmo que ela o destruísse O conflito também parecia inerente à economia seja como competição entre indivíduos seja como luta de classes mas esse conflito poderia transformarse apenas no veículo de uma harmonia mais profunda imanente numa sociedade atual ou talvez futura O pauperismo a economia política e a descoberta da sociedade estavam estreitamente interligados O pauperismo fixou a atenção no fato incompreensível de que a pobreza parecia acompanhar a abundância Este porém foi apenas o primeiros dos surpreendentes paradoxos com os quais a sociedade industrial confrontou o homem moderno Este penetrara no seu novo domínio pela porta da economia e essa circunstância fortuita envolveu o período com a sua aura materialista Para 108 Ricardo e Malthus nada parecia mais real do que os bens materiais As leis do mercado significavam para eles o limite de as possibilidades humanas Godwin acreditava em possibilidades ilimitadas e portanto tinha que negar as leis do mercado O fato de as possibilidades humanas serem ilimitadas não pelas leis do mercado porém da própria sociedade foi um reconhecimento reservado a Owen e somente ele discerniu a realidade emergente por trás do véu da economia de mercado a sociedade Sua visão porém foi perdida de novo por um século Enquanto isto foi em relação ao problema da pobreza que as pessoas começaram a explorar o significado da vida numa sociedade complexa A introdução da economia política no reino do universal aconteceu em duas perspectivas opostas a do progresso e do aperfeiçoamento de uma lado e a do determinismo e da perdição do outro A sua tradução para a prática também foi alcançada por dois caminhos opostos através do princípio da harmonia e da autoregulação de um lado e da competição e do conflito do outro O liberalismo econômico e o conceito de classe foram moldados dentro dessas contradições Foi com a finalidade de um acontecimento elementar que um novo conjunto de idéias penetrou a nossa consciência 109 8 ANTECEDENTES E CONSEQÜÊNCIAS O sistema Speenharnland nada mais foi originalmente do que um paliativo No entanto poucas instituições modelaram mais decisivamente o destino de toda uma civilização do que esta que teve de ser abandonada antes de se iniciar um nova era Ela foi o produto típico de uma época de transformação e merece a atenção de qualquer estudioso de assuntos humanos hoje em dia Sob o sistema mercantil a organização de trabalho na Inglaterra baseavase na Poor Law e no Statute of Artificers A Poor Law conforme aplicada às leis de 1536 até 1601 pode ser considerada um verdadeiro equívoco mas foi ela e as emendas subseqüentes que se constituíram a meta do código de trabalho da Inglaterra A outra metade consistiu no Statute of Artificers de 1563 Este dizia respeito àqueles que estavam empregados enquanto a Poor Law aplicava àqueles que podemos chamar de desempregados e incapazes de se empregarem além de velhos e crianças Posteriormente como já vimos foi acrescentado a essas medidas o Act of Settlement de 1662 relativo ao domicílio legal das pessoas que restringia ao máximo a sua mobilidade A distinção clara entre empregado desempregado e incapaz de ser empregado é naturalmente anacrônica pois ela implicaria a existência de um sistema moderno de salários que não existiu por mais de 250 anos aproximadamente Utilizamos esses termos como forma de simplificar as coisas nesta apresentação bastante ampla A organização do trabalho segundo o Statute of Artificers baseavase em três pilares obrigatoriedade do trabalho sete anos de aprendizado e um salário anual determinado pela autoridade pública A lei e isto tem de ser enfatizado aplicavase tanto aos trabalhadores agrícolas 110 como aos artesãos e era imposta igualmente aos distritos rurais e às cidades Durante 80 anos o Statute foi seguido estritamente mais tarde as cláusulas referentes ao aprendizado caíram parcialmente em desuso ficando restritas a profissões tradicionais Elas simplesmente não se aplicavam às novas indústrias como a do algodão A avaliação dos salários anuais baseada no custo de vida também foi suspensa em grande parte do país após a Restauração 1660 Formalmente as cláusulas de avaliação do Statute só foram revogadas em 1813 e as cláusulas de salário em 1814 Em muitos sentidos porém a regra do aprendizado sobreviveu ao Statute e ainda é uma prática generalizada na Inglaterra nas profissões especializadas A obrigatoriedade do trabalho no campo foi abandonada pouco a pouco Podese dizer porém que durante os dois séculos e meio em questão o Statute of Artificers preparou o esboço de uma organização nacional do trabalho baseada nos princípios da regulamentação e do paternalismo O Statute of Artificers foi suplementado pela Poor Law um termo muito confuso aos ouvidos modernos para os quais pobre e indigente soam muito semelhantes Na verdade os cavalheiros da Inglaterra julgavam pobres todas as pessoas que não possuíam renda suficiente para mantêIas ociosas Assim pobre era praticamente sinônimo de povo comum e no povo comum estavam incluídos todos menos as classes fundiárias dificilmente um mercador bemsucedido deixava de adquirir alguma terra um propriedade fundiária Daí o termo pobre significar todas as pessoas que passavam necessidades e o povo em geral se e quando sofriam necessidades Naturalmente isto incluía os indigentes mas não apenas eles Os velhos os enfermos os órfãos deviam receber cuidados numa sociedade que proclamava haver lugar para qualquer cristão no seu âmbito Acima de todos porém estavam os pobres capacitados a quem poderíamos chamar de desempregados presumindo que poderiam ganhar a vida com seu trabalho manual se pudessem encontrar emprego A mendicância era severamente punida a vagabundagem era uma ofensa capital em caso de reincidência A Poor Law de 1601 decretou que os pobres capacitados deveriam trabalhar para ganhar seu sustento e a paróquia deveria providenciar esse trabalho Toda a carga da assistência recaiu sobre a paróquia através de impostos ou taxações locais Estes incidiam sobre todos os donos de casas e arrendatários ricos ou não de acordo com o aluguel das terras ou casas que ocupavam O Statute of Artificers e a Poor Law juntos formavam o que pode ser chamado de Código de Trabalho Todavia a Poor Law tinha administração 111 local cada paróquia unidade insignificante dispunha de seus próprios meios para empregar os homens capazes para manter um asilo de pobres para o aprendizado de órfãos e de crianças carentes para tomar conta de velhos e dos enfermos para o enterros dos indígenas e cada paróquia tinha sua própria tabela de impostos Tudo isto soa muito mais grandioso do que a realidade muitas paróquias não tinham asilos de pobres e grande número delas não dispunha de recursos razoáveis para ocupar de forma útil os homens capazes Havia uma variedade infindável de formas de burlar a lei evasão dos contribuintes locais de impostos indiferença dos fiscais dos pobres a insensibilidade dos interesses centralizados no pauperismo viciava o funcionamento da lei Entretanto de um modo geral as quase dezesseis mil autoridades do país ligadas à Poor Laws conseguiram manter intacto e ileso o tecido social da vida na aldeia Sob um sistema nacional de trabalho porém a organização local do desemprego e de assistência social tornouse uma anomalia patente Quanto maior a variedade de recursos locais para os pobres maior era o perigo de uma paróquia bemsucedida ser invadida por indigentes profissionais Após a Restauração foi decretado o Act of Settlement and Rernoval para proteger as paróquias melhores contra o fluxo de indigentes Mais de um século mais tarde Adam Smith denunciou essa lei porque imobilizava o povo impedindoo de encontrar emprego útil da mesma forma que impedia os capitalistas de encontrar empregados Um homem só podia ficar fora da sua paróquia se contasse com a boa vontade do magistrado local e das autoridade paroquiais Em qualquer outro lugar ele era passível de expulsão mesmo estando em boa situação e empregado O status legal do povo era portanto o de liberdade e igualdade mas sujeito a limitações incisivas Eles eram iguais perante a i e livres como pessoas mas não eram livres para escolher suas ocupações ou a de seus filhos não eram livres para se estabelecer onde quisessem e eram forçados a trabalhar Os dois grandes Statutes elisabetanos e Act of Settlement juntos compunham um quadro de liberdade para o povo comum mas ao mesmo tempo estabeleciam a sua incapacidade A Revolução Industrial já estava a caminho quando em 1795 sob a ressão das necessidades da indústria o decreto de 1662 foi parcialmente revogado foi abolida a servidão paroquial e restaurada a mobilidade física do trabalhador Assim pôde ser estabelecido um mercado de trabalho em escala nacional No mesmo ano porém como já vimos foi introduzida uma prática na administração da Poor Law que significava o inverso do princípio elisabetano do trabalho obrigatório A Speenhamland 112 garantia o direito de viver Os abonos salariais passaram a ser gerais os abonos familiares foram aumentados e tudo isto fazia parte de um assistência social externa ie sem o compromisso do indivíduo de permanecer no asilo de indigentes Embora a tabela de assistência social fosse exígua ela era suficiente para a mera subsistência Isto significou um retorno à regulamentação e ao paternalismo como uma vingança justamente quando parecia que a máquina a vapor clamava por liberdade e as máquinas reclamavam o emprego de braços humanos A Speenhamland Law coincidiu no tempo com a revogação do Act of Settlement A contradição era patente o Act of Settlement estava sendo abolido porque a Revolução Industrial exigia um suprimento nacional de trabalhadores que poderiam trabalhar em troca de salários enquanto a Speenharnland proclamava o princípio de que nenhum homem precisava temer a fome porque a paróquia o sustentaria e à sua familia por menos que ele ganhasse Havia contradição marcante entre as duas políticas industriais Que se poderia esperar da aplicação simultânea e continuada dessas práticas a não ser uma monstruosidade social Entretanto a geração da Speenhamland não tinha consciência do que estava a caminho Às vésperas da maior Revolução Industrial da história não surgiram quaisquer indícios ou presságios o capitalismo chegou sem se anunciar Ninguém havia previsto o desenvolvimento de uma indústria de máquinas ela chegou como uma surpresa total Na verdade durante algum tempo a Inglaterra vivia na expectativa de uma recessão permanente do comércio exterior quando o dique estourou e o velho mundo foi colhido por onda inabalável no caminho de uma economia planetária Antes de 1850 porém ninguém poderia afirmar tal coisa com total segurança A chave para compreender a recomendação dos magistrados da Speenharnland está justamente no fato de eles ignorarem as implicações mais amplas do desenvolvimento que vinham enfrentando Em retrospecto pode parecer que eles estavam tentando não apenas o impossível mas através de meios cujas contradições internas já deveriam ser aparentes na ocasião De fato eles conseguiram atingir seu objetivo de proteger a aldeia contra a desarticulação mas os efeitos dessa sua política foram os mais desastrosos possíveis em outras direções não previstas A política da Speenharnland foi o resultado de uma fase definida no desenvolvimento de um mercado para a força de trabalho e ela só pôde ser compreendida em face das concepções sobre a situação assumidas por aqueles que estavam em posição de formular essa política Visto desse ângulo o sistema de abonos pode parecer um artifício maquinado 113 pela classe dos proprietários rurais para enfrentar uma situação em que já não se podia mais negar a mobilidade física à mãodeobra enquanto os proprietários queriam evitar uma perturbação das condições locais inclusive salários mais elevados o que seria uma decorrência natural da aceitação de mercado nacional livre para o trabalho A dinâmica da Speenharnland se fundamentava assim nas circunstâncias da sua origem O aumento do pauperismo rural foi o primeiro sintoma da convulsão social iminente Na época porém ninguém conseguia imagináIa A ligação entre a pobreza rural e o impacto do comércio mundial não era suficientemente óbvia Os contemporâneos não tinham qualquer motivo que os levasse a ligar a quantidade de pobres nas aldeias com o desenvolvimento do comércio nos Sete Mares O aumento inexplicável no número de pobres era geralmente atribuído ao método de administração da Poor Law e sem dúvida havia razão para isso Na verdade oculto sob a superfície o crescimento ameaçador do pauperismo rural se ligava diretamente à tendência da história econômica geral Todavia essa conexão ainda era pouco perceptível Muitos autores tentavam investigar os caminhos que levavam tantos pobres às aldeias e era surpreendente o número e a variedade de razões citadas como explicações Mas apenas alguns autores contemporâneos focalizaram esses sintomas de desarticulação que costumamos associar à Revolução Industrial Até 1785 o público inglês desconhecia qualquer mudança importante na vida econômica a não ser um aumento intermitente no comércio e o crescimento do pauperismo De onde vêm tantos pobres era a questão levantada por uma quantidade de panfletos que crescia no decorrer do século É claro que as causas do pauperismo e os meios de combatêlo não poderiam se manter afastados de uma literatura inspirada na convicção de que se os males mais aparentes do pauperismo pudessem ser suficientemente aliviados ele deixaria de existir Parecia haver um consenso geral em relação a um ponto a saber a grande variedade de causas responsáveis por esse aumento Entre elas estava a escassez de cereais os salários agrícolas muito elevados que aumentavam o preço dos alimentos salários agrícolas muito baixos salários urbanos muito altos irregularidade no emprego urbano o desaparecimento dos posseiros a inaptidão do trabalhador urbano nas ocupações rurais a relutância dos fazendeiros em pagar salários mais altos o receio dos senhores de terra de que os aluguéis teriam que ser reduzidos se pagassem salários mais altos o fracasso dos albergues na competição com a maquinaria a falta de uma economia doméstica habitações inconvenientes dietas intoleráveis o consumo 114 de drogas Alguns autores atribuíam a culpa a um novo tipo de carneiros bem desenvolvidos outros à necessidade dos bois substituírem os cavalos e outros ainda achavam que se deveriam manter menos cães Alguns autores acreditavam que o pobre deveria comer menos pão ou não cornêlo enquanto outros pensavam que mesmo o melhor pão não deverlhesia ser cobrado Alguns alegavam que o chá prejudicava a saúde dos pobres enquanto a cerveja doméstica a restaurava Eles insistiam até que o chá não era melhor que a bebida mais ordinária Quarenta anos mais tarde Harriet Martineau ainda pregava as vantagens de se abandonar o hábito do chá como forma de aliviar o pauperisrno1 Muitos autores na verdade reclamavam dos resultados instáveis dos cercamentos e vários outros insistiam no prejuízo que as altas e as baixas das manufaturas causavam ao emprego rural De modo geral porém prevalecia a impressão de que o pauperismo era visto como um fenômeno sui generis uma doença social provocada por uma série de razões cuja maior parte se ativou apenas porque a Poor Law falhou na aplicação do remédio certo A resposta correta seria com certeza que o agravamento do pauperismo e os impostos mais elevados se deviam ao aumento daquilo que hoje chamaríamos desemprego invisível Tal fato não poderia ser aparente numa época em que até mesmo o emprego no geral era invisível como necessariamente o foi até certo ponto sob a indústria caseira Todavia estas questões ainda ficam de pé como justificar esse aumento no número de desempregados e subempregados Por que os indícios de mudanças iminentes na indústria escaparam à visão até mesmo dos contemporâneos observadores Em primeiro lugar a explicação se baseia nas fluruaçôes excessivas do comércio na sua época inicial o que levava a encobrir o aumento absoluto no comércio Enquanto este último era o responsável pelo aumento dos empregos as flutuações justificavam um aumento muito maior no desemprego Além disso enquanto o aumento do emprego era lento em nível geral o aumento do desemprego e do subemprego tendia a ser rápido Assim a formação daquilo que Friedrich Engels chamou de exército industrial de reserva ultrapassou em muito a criação do exército industrial propriamente dito Isto teve como conseqüência importante o fato de escapar facilmente à observação a conexão entre o desemprego e o incremento do 1 Martineau H The Hamlet 1833 115 comércio total Embora se observasse freqüentemente que o aumento do desemprego era devido às grandes flutuações no comércio não se notou que essas flutuações eram parte de um processo subjacente de amplitude ainda maior isto é um incremento geral do comércio crescentemente com base nas manufaturas Para os contemporâneos parecia não haver conexão entre as manufaturas principalmente urbanas e o grande aumento no número de pobres no campo O aumento no conjunto do comércio expandia naturalmente o volume de empregos enquanto a divisão territorial do trabalho em combinação com as agudas flutuações do comércio era responsável pela severa desarticulação das ocupações tanto na aldeia como na cidade o que resultava no rápido crescimento do desemprego O boato distante de salários elevados tornava os pobre insatisfeitos com aqueles que a agricultura podia oferecer e criava aversão por um trabalho tão mal remunerado As regiões industriais daquela época se assemelhavam a um novo país a uma outra América atraindo imigrantes aos milhares A migração se faz acompanhar geralmente por uma remigração acentuada E parece que esse refluxo para a aldeia realmente ocorreu o que encontra comprovação também no fato de não ter se verificado uma diminuição absoluta na população rural Ocorria assim um deslocamento cumulativo da população à medida que diferentes grupos se integravam na esfera do emprego comercial e manufatureiro por períodos variáveis e depois abandonados voltavam ao seu habitat rural original Grande parte do dano social ocorrido no campo inglês se originou inicialmente nos efeitos desarticuladores que o comércio exerceu diretamente no campo A Revolução Agrícola antecedeu definitivamente à Revolução Industrial Tanto os cercamentos das terras comuns quanto as consolidações dos arrendamentos compactos que acompanharam o novo e grande avanço nos métodos agrícolas acarretavam resultados muito perturbadores A guerra contra as habitações do campo a absorção das hortas e terrenos que rodeavam essas habitações o confisco dos direitos sobre as terras comuns privaram a indústria doméstica de seus dois esteios os rendimentos familiares e o pano de fundo agrícola Enquanto a indústria doméstica era suplementada pelas facilidades e amenidades de um canteiro de horta um pedaço de terra ou direitos de pastagem a dependência do trabalhador aos rendimentos monetários não era absoluta Fazia uma diferença enorme ter um lote de batatas ou de gansos teimosos uma vaca ou até mesmo um burro pastando nas terras comuns e os ganhos familiares eram uma espécie 116 de seguro contra o desemprego A racionalização da agricultura desenraizou inevitavelmente o trabalhador e solapou a sua segurança social No cenário urbano eram manifestos os efeitos do novo nível de emprego flutuante A indústria era vista geralmente como uma ocupação esporádica Os operários que hoje estão empregados podem muito bem estar nas ruas amanhã mendigando o pão escreveu David Davies e acrescentou A incerteza quanto às condições de trabalho é o resultado mais perverso destas inovações Quando uma cidade empregada em uma manufatura é dela privada os habitantes ficam como que atacados de paralisia e se tornam instantaneamente uma carga para a paróquia mas a desgraça não acaba com essa geração E de fato pois enquanto isto a divisão do trabalho exerce a sua vingança os artesãos desempregados retomam em vão à sua aldeia pois o tecelão já não pode mais utilizar as mãos para o que quer que seja A irreversibilidade fatal da urbanização girava em torno deste simples fato que Adam Smith previu quando descreveu o operário industrial como intelectualmente inferior ao mais pobre cultiva dor do solo uma vez que este ainda pode assumir qualquer emprego Na época em que Adam Smith publicou o livro Riqueza das Nações porém o pauperismo ainda não havia assumido proporções tão alarmantes O quadro mudou subitamente nas duas décadas seguintes Em seu Thoughts Details on Scarcity que Burke submeteu a Pitt em 1795 o autor admitia que a despeito do progresso geral ocorrera um último ciclo mau de vinte anos De fato na década que se seguiu à Guerra dos Sete Anos 1763 o desemprego aumentara visivelmente como o demonstrava a ampliação da assistência social externa Observouse pela primeira vez que um surto vigoroso no comércio se fazia acompanhar por indícios de crescentes dificuldades para os pobres Esta contradição aparente seria o mais desconcertante dos fenômenos periódicos da vida social para a nova geração da humanidade ocidental O espectro da superpopulação começava a obcecar a mente das pessoas Em sua Dissertation on the Poor Laws Dissertação sobre a Lei dos Pobres prevenia William Townsend Especulação à parte o fato é que temos na Inglaterra mais gente do que podemos alimentar e muito além do que podemos empregar com proveito sob o atual sistema de leis Adam Smith em 1776 ainda refletia uma atmosfera de progresso tranqüilo Townsend que escreveu apenas dez anos mais tarde já tinha consciência do vagalhão que se aproximava 117 Entretanto muitas coisas ainda aconteceriam antes que apenas cinco anos mais tarde um homem tão afastado da política tão bem sucedido e tão racional como Telford um escocês construtor de pontes pudesse irromper com reclamações amargas sobre o pouco que se podia esperar da ação normal do governo e que a revolução seria assim a única esperança Uma única cópia dos Rights of Man de Paine enviada por Telford à sua aldeia natal provocou um tumulto naquele local Paris estava catalisando a fermentação européia A convicção de Canning era de que a Poor Law salvara a Inglaterra de uma revolução Ele pensava basicamente na década de 1790 e nas guerras francesas O novo surto de cercamentos depreciou ainda mais os padrões dos pobres no campo JH Clapham um defensor desses cercamentos concordava que era uma coincidência marcante o fato da área na qual os salários tiveram que ser aumentados sistematicamente por conta dos impostos coincidir com a área onde ocorreram os maiores cercamentos recentes Em outras palavras não fossem os abonos salariais os pobres cairiam abaixo do nível de inanição em grandes áreas da Inglaterra rural A queima de medas era freqüente a conjuração Popgun encontrava grande ressonância os distúrbios eram constantes e seus boatos se difundiam amplamente Em Hampshire e não apenas lá os tribunais ameaçavam com a condenação à morte qualquer tentativa de baixar obrigatoriamente o preço de mercadorias tanto no mercado como em caminho Simultaneamente porém os magistrados do mesmo condado pressionavam com insistência pela concessão geral de abonos em aditamento aos salários Está claro que chegara a hora de uma ação preventiva Mas por que será que de todos os cursos de ação foi escolhido justamente aquele que mais tarde demonstrou ser o mais impraticável de todos Consideremos a situação e os interesses envolvidos O proprietário rural e o pároco dirigiam a aldeia Townsend resumiu a situação quando disse que o cavalheiro fundiário mantém as manufaturas a uma distância conveniente porque acha que as manufaturas flutuam que o benefício que ele pode usufruir com elas não é proporcional ao encargo que passa a recair sobre a sua propriedade Esse encargo consistia principalmente nos dois efeitos aparentemente contraditórios da manufatura isto é o aumento no pauperismo e a elevação dos salários Estes dois itens só eram contraditórios porém se fosse assumida a existência de um mercado de trabalho competitivo que naturalmente tenderia a diminuir o desemprego através da redução dos salários dos empregados Na falta de um tal mercado e o Act of Settlement ainda 118 estava em vigor o pauperismo e os salários podiam aumentar simultaneamente Sob tais condições o ônus social do desemprego urbano recaía principalmente sobre a aldeia natal à qual freqüentemente retomavam aqueles que ficavam sem trabalho Os salários elevados das cidades representavam uma carga ainda maior para a economia rural Os salários agrícolas estavam acima do que o fazendeiro podia suportar embora abaixo do nível de subsistência do trabalhador Parece claro que a agricultura não podia competir com os salários das cidades Por outro lado havia um consenso geral de que o Act of Settlement deveria ser abolido ou pelo menos abrandado para ajudar o trabalhador a encontrar emprego e os empregadores a arranjar trabalhadores Sentiase que isto aumentaria a produtividade do trabalho em todos os sentidos e incidentalmente diminuiria o encargo dos salários Mas a questão imediata do diferencial de salários entre cidade e aldeia tornarse ia ainda mais premente para a aldeia obviamente permitindo que os salários encontrassem seu próprio nível O fluxo e refluxo do emprego industrial alternandose com espasmo de desemprego transformaria ainda mais as comunidades rurais Era preciso erguer um dique para proteger a aldeia contra a onda de salários ascendentes Teriam que ser adota dos métodos que protegessem o setor rural contra a desarticulação social que reforçassem a autoridade tradicional que impedissem o êxodo da mãode obra rural e que elevassem os salários agrícolas sem sobrecarregar o fazendeiro Este artifício foi a Speenhamland Law Atirada nas águas turbulentas da Revolução Industrial ela sem dúvida criaria um redemoinho econômico Todavia as suas implicações sociais enfrentaram nitidamente a situação a julgar pelos interesses dominantes da aldeia os do proprietário rural Do ponto de vista da administração da Poor Law a Speenharnland foi um passo terrivelmente regressivo A experiência de 25 ano s já havia demonstrado ser a paróquia uma unidade demasiado pequena para a administração da Poor Law Não podia ser adequado um tratamento que não fazia distinção entre os desempregados capacitados de um lado e os idosos enfermos e crianças de outro Seria o mesmo que um distrito hoje em dia tentar tratar sozinho dosegurodesemprego ou se esse seguro envolvesse ainda a responsabilidade com os velhos Em conseqüência somente nos curtos períodos em que a administração da Poor Law foi ao mesmo tempo nacional e diferenciada é que ela pôde ser mais ou menos satisfatória Esse período ocorreu de 1590 a 1640 sob 119 Burleigh e Laud quando a Coroa dirigia a Poor Law através de juízes de paz e se iniciou um esquema ambicioso de construir asilos de indigentes ao mesmo tempo que surgia a obrigatoriedade do trabalho Mas a Commonwealth 16421660 destruiu novamente o qut era então denunciado como controle pessoal da Coroa e bem ironicamente a res tauração completou o trabalho da Commonwealth O Act of Settlement de 1662 restringiu a Poor Law à base paroquial e a legislação dedicou muito pouca atenção ao pauperismo até a terceira década do século XVIII Finalmente em 1722 começaram a ser feitos esforços para uma diferenciação os albergues seriam construídos por uniões de paróquias e seriam diferentes dos asilos de indigentes locais Era permitida a assistência externa pois o albergue forneceria a prova da necessidade Em 1782 com o Gilberts Act deuse um passo maior no sentido de expandir as unidades de administração encorajando a formação de uniões paroquiais Nessa ocasião instavase para que as paróquias encontrassem emprego para os indivíduos capazes nas próprias vizinhanças Essa política seria complementada pela assistência externa e até mesmo por abonos salariais a fim de diminuir o custo da assistência aos elementos capacitados Embora a formação de uniões de paróquias fosse sugerida e não obrigatória ela já significava um progresso no sentido de unidades maiores de administração e da diferenciação das várias categorias de pobres assistidos socialmente Assim a despeito das deficiências do sistema o Gilberts Act representou uma tentativa na direção correta e enquanto a assistência externa e os abonos salariais eram apenas subsidiários em relação a uma legislação social positiva eles não representavam necessariamente algo fatal para uma solução racional A Speenharnland porém colocou um ponto final na reforma Tornando gerais a assistência externa e os abonos salariais ela não conseguiu a orientação do Gilberts Act como se tem afirmado falsamente mas inverteu completamente a sua tendência e de fato destruiu todo o sistema da Poor Law elisabetana A distinção laboriosamente estabelecida entre albergues e asilos de indigentes perdeu o seu significado As várias categorias de indigentes e desempregados capacitados tendiam agora a confundirse em uma só massa indiscriminada de pobreza dependente Criouse o oposto de um processo de diferenciação o albergue fundiuse com o asilo de indigentes e este mesmo tendia a desaparecer cada vez mais A paróquia tornouse novamente a unidade solitária e final nesta verdadeira obraprima de degeneração institucional A supremacia do proprietário de terras e do pároco foi até aumentada em conseqüência da Speenharnland se é que tal coisa era possível 120 A benevolência indistinguível do poder da qual se queixavam os inspetores dos pobres assumia a sua melhor forma naquele papel de socialismo conservador que juízes de paz se arrogavam para manejar o poder benevolente enquanto o impacto dos impostos recaía sobre a classe média rural Grande parte da classe dos pequenos proprietários rurais há muito se extinguira nas vicissitudes da Revolução Agrícola e os restantes foreiros vitalícios e posseiros tendiam a confundirse com os aldeões e os pequenos proprietários em um único estrato social aos olhos do potentado do campo Ele não distinguia muito bem entre pessoas necessitadas e pessoas que precisavam de ajuda num dado momento Do alto da perspectiva através da qual observava a luta pela vida na aldeia parecia não haver qualquer linha de demarcação que separasse os pobres dos miseráveis Muitas vezes ele se surpreendia ao tomar conhecimento de que um pequeno fazendeiro tinha que se valer da taxa de impostos num ano mau após ter sido arruinado pelo nível desastroso desses impostos Tais casos não eram freqüentes é verdade mas a própria possibilidade de ocorrerem enfatizava o fato de que muitos contribuintes de impostos eram pobres De um modo geral a relação entre o contribuinte de impostos e o indigente era algo semelhante à existente entre o empregado e o desempregado em nossa época com os vários esquemas de seguro social que fazem incidir sobre aquele que está empregado o encargo de manter o desempregado temporário O contribuinte típico porém não podia apelar para a assistência aos pobres e o trabalhador agrícola típico não pagava impostos Politicamente a influência do proprietário rural sobre os pobres da aldeia se fortaleceu com a Speenharnland enquanto a da classe média rural se enfraqueceu O aspecto mais extravagante do sistema foi a sua economia propriamente dita A pergunta Quem pagou pela Speenharnland ficou praticamente sem resposta Diretamente a carga maior recaiu sobre os contribuintes de impostos sem dúvida Os fazendeiros porém foram parcialmente compensados pelos baixos salários que pagavam a seus trabalhadores um resultado direto do sistema Speenharnland Além disso o fazendeiro conseguia abater sua parte dos impostos empregando um aldeão que de outra forma passaria a depender desses impostos A conseqüente superlotação da cozinha e das terras do fazendeiro com trabalhadores desnecessários e alguns deles pouco diligentes tinha que figurar na conta de débitos Saía muito mais barato o trabalho daqueles que já estavam por conta dos impostos Eles tinham que trabalhar muitas vezes como jornaleiros em lugares alternados tendo como pagamento 121 apenas a comida ou eram postos em leilão na praça da aldeia por alguns pences por dia Quanto valia essa espécie de trabalho deprimente é uma outra questão Para coroar tudo isto concediase às vezes aos pobres um abono para aluguel e o proprietário inescrupuloso das casas ainda ganhava mais dinheiro sublocando habitações insalubres AB autoridades da aldeia fechavam os olhos a isto desde que os impostos sobre os galpões continuassem a ser pagos É evidente que uma tal mistura de interesses subverteria qualquer senso de responsabilidade financeira e encorajaria todos os tipos de corrupção mesquinha Todavia num sentido mais amplo a Speenhamland compensou Ela começou com abonos salariais beneficiando ostensivamente os empregados mas na verdade utilizando fundos públicos para subsidiar os empregadores De fato o resultado principal do sistema de abonos foi baixar os salários a nível inferior ao de subsistência Nas áreas mais profundamente pauperizadas os fazendeiros não empregavam os trabalhadores agrícolas que ainda possuíam um pedaço de terra porque quem dispunha de alguma propriedade não podia recorrer à assistência paroquial e o saláriopadrão era tão baixo que sem alguma espécie de auxílio ele era insuficiente para um homem casado Em conseqüência só encontravam emprego em algumas áreas aquelas pessoas que já viviam à custa dos impostos aqueles que tentavam manterse sem recorrer aos impostos e ganhar a vida por seu próprio esforço raramente conseguiam emprego No campo como um todo porém a grande maioria devia ser ainda desse último tipo e os empregadores como classe tinham um lucro extra em relação a cada um deles uma vez que se beneficiavam do baixo nível dos salários sem ter que compensáIos com os impostos A longo prazo um sistema tão antieconômico como esse teria que afetar a produtividade do trabalho e baixar os saláriospadrão e até mesmo a tabela estabelecida pelos magistrados em benefício dos pobres Na década de 1820 a tabela de pão já vinha sendo diminuída em vários condados e os miseráveis proventos dos pobres eram ainda mais reduzidos Entre 1815 e 1830 a tabela Speenharnland praticamente a mesma em todo o país foi reduzida em quase um terço e essa redução também foi de âmbito geral Clapham duvidava que fosse tão pesado o encargo total dos impostos como queriam fazer acreditar com a súbita explosão de reclamações E ele tinha razão Embora a aumento dos impostos fosse espetacular e tivesse o efeito de uma calamidade em algumas regiões parece mais provável que a raiz do problema não fosse tanto o peso desse encargo como o efeito econômico que os abonos salariais 122 exerciam sobre a produtividade do trabalho O sul da Inglaterra o mais diretamente atingido não chegava a despender 33 da sua renda com a taxa dos pobres um ônus bastante tolerável pensava Clapham em vista do fato de que parte considerável desta soma deveria reverter aos pobres sob a forma de salários De fato os impostos totais decresciam rapidamente na década de 1830 e seu peso relativo deve ter diminuído ainda mais rapidamente em vista do crescente bemestar nacional Em 1818 as somas realmente gastas na assistência aos pobres totalizaram aproximadamente oito milhões de libras elas decresceram continuamente até atingirem menos de seis milhões em 1826 enquanto a renda nacional se elevava rapidamente E no entanto a crítica à Speenhamland se tornava cada vez mais violenta parece que em virtude do fato de que a desumanização das massas começara a paralisar a vida nacional e principalmente a restringir as energias da própria indústria Speenhamland precipitou uma catástrofe social Acostumamonos a encarar as sombrias apresentações do capitalismo primitivo como dramalhões Não há justificativa para isto O quadro pintado por Harriet Martineau a fervorosa apóstola da Poor Law Reform coincide com o dos propagandistas cartistas que dirigiam o clamor contra a mesma Poor Law Reform Os fatos apresentados no famoso Report of the Commision on the Poor Law Relatório da Comissão sobre a Lei dos Pobres 1834 defendendo a abolição imediata da Speenhamland Law poderiam ter servido de material para a campanha de Dickens contra a política da Comissão Nem Charles Kingsley nem Friedrich Engels nem Blake ou Carlyle se enganaram ao acreditar que a própria imagem do homem fora maculada por alguma terrível catástrofe Mais impressionante ainda do que as explosões de dor e de ira que poetas e filantropos expressaram foi o gélido silêncio de Malthus e Ricardo que ignoraram o cenário no qual nasceu a sua própria filosofia de danação secular Não há dúvida de que a desarticulação social causada pela máquina e pelas circunstâncias sob as quais o homem estava agora condenado a serviIa teve muitos resultados que eram inevitáveis Faltava à civilização rural da Inglaterra aqueles arredores urbanos a partir dos quais cresceram mais tarde as cidades industriais do continente2 Nas novas cidades não havia uma classe média urbana estabelecida nem aqueles núcleos de artesâos e profissionais formados por uma pequena burguesia 2 O Professor Usher cita 1795 como a data aproximada do início da urbanização geral 123 respeitável e gente da cidade que poderiam ter servido de meio assimilador para o trabalhador rude que labutava nos primitivos moinhos atraídos por salários altos ou expulsos da terra por espertos cercadores A cidade industrial tanto no Midlands como no North West era um deserto cultural suas favelas apenas refletiam sua falta de tradição e de respeito cívico próprio Mergulhado nesse lamaçal desolador de miséria o camponês imigrante ou até mesmo o antigo pequeno proprietário rural ou o foreiro logo se transformava em um indefinível animal do pântano Não era porque se lhe pagava muito pouco ou até mesmo porque trabalhasse muitas horas embora ambas as coisas ocorressem às vezes e em excesso mas sim o fato de ele viver agora em condições físicas que negavam a própria forma humana da vida Os negros das florestas africanas que se viam enjaulados lutando pelo ar nos porões dos navios negreiros deviam sentir o mesmo que essas pessoas E no entanto nada disto era irremediável Enquanto um homem tinha uma posição à qual se apegar um padrão restabelecido por seus parentes ou companheiros ele podia lutar por eles e readquirir sua alma Mas no caso do trabalhador isto só podia ocorrer de uma única forma fazendo de si mesmo o membro de uma nova classe Se não pudesse ganhar a vida com seu próprio trabalho ele não era um trabalhador mas um indigente ReduziIa artificialmente a uma tal condição foi a suprema abominação da Speenharnland Essa lei de um humanitarismo ambíguo impediu os trabalhadores de se constituírem numa classe econômica privandoos assim do único meio de enfrentar o destino que lhes fora reservado no moinho econômico Speenhamland foi um instrumento infalível de desmoralização popular Se uma sociedade humana é uma máquina de atuação própria para manter os padrões sobre os quais é construída a Speenharnland foi um autômato para a destruição dos padrões sobre os quais qualquer tipo de sociedade poderia se basear Ela não só colocou como prêmio a evasão do trabalho e a desculpa da inadequação como ainda aumentou a atração do pauperismo precisamente numa conjuntura em que o homem lutava para fugir à sina da miséria Desde que um homem fosse para um asilo de indigentes e acabava indo para lá se ele e sua família dependessem dos impostos durante algum tempo a armadilha se fechava e era raro ele poder escapar A decência e o autorespeito inculcados durante séculos de vida organizada desapareciam rapidamente na promiscuidade do asilo de indigentes onde um homem tinha que ser cuidadoso para não o julgarem em melhor situação que seu vizinho pois do contrário ele seria forçado a sair à caça de trabalho em vez de vagabundear 124 no abrigo habitual O imposto dos pobres se tornara uma espoliação pública Para conseguir a sua parte os mais brutos bajulavam a administração os dissolutos exibiam seus bastardos que precisavam ser alimentados os preguiçosos cruzavam os braços e esperavam Rapazes e moças ignorantes casavamse contando com ele caçadores furtivos ladrões e prostitutas extorquiamno através da intimidação juízes do campo esbanjavamno em busca de popularidade e os guardiães por conveniência Esta era a forma de gerir o fundo O fazendeiro em vez de dispor de um número satisfatório de trabalhadores para cultivar sua terra trabalhadores pagos por ele mesmo era forçado a manter o dobro da quantidade e os salários eram parcialmente pagos com os impostos Esses homens empregados por ele através de compulsão ficavam fora de seu controle trabalhavam ou não conforme lhes aprazia diminuíam a qualidade da sua terra e impediamno de empregar homens melhores que trabalhariam duramente pela sua independência Esses homens melhores acabavam se perdendo entre os piores o aldeão contribuinte de impostos após uma luta vã terminava procurando a assistência na mesa paga Eis aí Harriet Martineau3 Muitos liberais de última hora constrangidos negligenciaram de uma forma ingrata a memória desta sincera apóstola do seu credo E no entanto mesmo os seus exageros que eles agora temiam colocavam os enfoques no lugar certo Ela mesma pertencia àquela classe média sempre em luta cuja pobreza bem educada a tornava ainda mais sensível às complexidades morais da Poor Law Ela compreendia e expressava claramente a necessidade que a sociedade tinha de uma nova classe uma classe de trabalhadores independentes Eles eram os heróis dos seus sonhos e ela fez um deles um trabalhador cronicamente desempregado que se recusava a apelar para a assistência social dizer com orgulho a um colega que se decidira a depender dos impostos Aqui estou eu e desafio qualquer um a desprezarme Eu poderia deixar meus filhos no meio da nave da igreja e desafiar qualquer um a zombar deles quanto ao lugar que ocupam na sociedade Pode haver alguns mais sábios outros muitos mais ricos mas nenhum mais honrado Os grandes homens da classe dominante ainda estavam longe de compreender a necessidade dessa nova classe A senhorita Martineau apontou o erro vulgar da aristocracia em supor existir apenas uma espécie de sociedade abaixo da rica com a qual em função 3 Martineau H History of England During the Thirty Years Peace 18161846 1849 125 dos seus interesses econômicos eles se viam obrigados a manter negócios Lorde Eldon se queixava ela tal como outros que deveriam compreender melhor incluía sob apenas uma cabeça as classes baixas todos os que estavam abaixo dos banqueiros mais ricos fabricantes comerciantes artesãos trabalhadores e indigentes 4 Mas insistia ela com ardor era da diferença entre essas duas últimas categorias que dependia o futuro da sociedade Exceto pela distinção entre soberano e súdito não existe na Inglaterra uma diferença social tão grande como a que ocorre entre o trabalhador independente e o indigente e é ao mesmo tempo sinal de ignorância de imoralidade e de falta de visão política confundir as duas escreveu ela É claro que não se tratava da constatação de um fato a diferença entre os dois estratos deixara de existir sob a Speenharnland Tratavase mais de uma afirmação política baseada numa antecipação profética A política era a dos Poor Laws Reform Commissioners Comissários da Reforma da Lei dos Pobres a profecia visava a um mercado livre e de trabalho competitivo e a conseqüente emergência de um proletariado industrial A abolição da Speenhamland representou o nascimento real da moderna classe trabalhadora cujo imediato interesse próprio destinoua a tornarse a protetora da sociedade contra os perigos intrínsecos de uma civilização de máquinas O que quer que o futuro lhes reservasse a classe trabalhadora e a economia de mercado surgiram na história ao mesmo tempo O horror à assistência pública a desconfiança na ação do estado a insistência na respeitabilidade e na autoconfiança permaneceram como características do trabalhador britânico durante gerações A revogação da Speenhamland foi conseqüência do trabalho de uma nova classe que entrava no cenário histórico as classes médias da Inglaterra A classe dos proprietários rurais não podia fazer o trabalho que essas classes se destinavam a executar a transformação da sociedade em uma economia de mercado Dezenas de leis foram abolidas e outras tantas promulgadas antes que a transformação tomasse o seu rumo A Parliamentary Reform Bill Lei Parlamentar da Reforma de 1832 retirou os direitos políticos dos burgos infectos e deu poder de uma vez por todas aos membros da Câmara dos Comuns O primeiro grande ato da reforma foi a abolição da Speenharnland Agora que avaliamos o grau em que seus métodos paternalistas se imiscuíram com a vida no campo compreenderemos melhor por que até mesmo os 4 Martineau H The Parish 1833 126 defensores mais radicais da reforma hesitaram em propor um período mais curto do que dez ou quinze anos para a transição Na verdade ela ocorreu de forma tão abrupta que desmascara a lenda do gradualismo inglês adotada em época posterior quando se procurava argumentos contra a reforma radical O choque brutal desses acontecimento foi o pesadelo de inúmeras gerações da classe trabalhadora britânica O sucesso dessa operação dilacerante no entanto foi conseqüência da profunda convicção de amplos estratos da população inclusive os próprios trabalhadores de que o sistema que pretendia auxiliáIos na aparência estava de fato espoliandoos e que o direito de viver era uma enfermidade que os levaria à morte A nova lei estabelecia que no futuro não seria concedida qualquer assistência externa Sua administração era nacional e diferenciada e também neste sentido ela se constituiu numa reforma bastante ampla Naturalmente aboliuse também o sistema de abonos salariais Reintroduziuse a experiência dos albergues mas num novo sentido Ficava agora a critério do candidato decidir se ele se considerava realmente tão destruído de meios que iria voluntariamente procurar um abrigo que fora transformado deliberadamente num antro de horror O albergue se investira de um estigma e permanecer nele se tornara uma tortura psicológica e moral embora ele atendesse às exigências de higiene e decência requisitos estes engenhosamente usados como pretexto para outras privações Já não eram mais os juízes de paz ou os inspetores locais que administravam a lei e sim autoridades com um poder mais amplo os guardiães sob uma supervisão central ditatorial Até a cerimônia de enterro de um indigente tornavase um ato no qual os seus companheiros renunciavam mesmo na morte à solidariedade que lhes era devida Em 1834 o capitalismo industrial estava prestes a se iniciar e foi então introduzida a Poor Law Reform A Speenhamland Law que havia resguardado a Inglaterra rural e portanto a população trabalhadora em geral contra o funcionamento total do mecanismo de mercado devorara parte da medula da sociedade Na ocasião que foi revogada grandes massas da população trabalhadora pareciam mais espectros de um pesadelo do que seres humanos Mas se os trabalhadores estavam fisicamente desumanizados as classes dominantes estavam moralmente degradadas A unidade tradicional de uma sociedade cristã cedia lugar a uma negação de responsabilidade por parte dos ricos em relação às condições dos seus semelhantes As Duas Nações assumiam a sua forma Para espanto dos pensadores da época uma riqueza nunca 127 vista passou a ser a companheira inseparável de uma pobreza nunca vista Os estudiosos proclamavam em uníssono a descoberta de uma nova ciência que colocava além de qualquer dúvida as leis que governam o mundo dos homens Em obediência a essas leis a compaixão não habitava mais os corações e a determinação estóica de renunciar à solidariedade humana em nome da maior felicidade para um número maior de pessoas adquiriu a dignidade de uma religião secular O mecanismo do IIiercado defendia seus direitos e reivindicava seu acabamento o trabalho humano teve que transformarse em mercadoria O paternalismo reacionário tentara em vão resistir a essa necessidade Fugindo aos horrores da Speenharnland os homens correram cegamente para o abrigo de uma utópica economia de mercado 128 9 PAUPERISMO E UTOPIA O problema da pobreza se concentrava em tono de dois termos estreitamente relacionados pauperismo e economia política Embora abordemos separadamente o impacto de ambos sobre a consciência moderna eles formaram parte de um todo indivisível a descoberta da sociedade Até a época da promulgação da Speenharnland não se encontrara uma resposta satisfatória à pergunta de onde vêm os pobres Entre os pensadores do século XVIII porém existia o consenso geral de que pauperismo e progresso eram inseparáveis Em 1782 escrevia John MFarlane que o maior número de pobres não se encontrava nos países áridos ou entre as nações bárbaras mas naquelas mais férteis e mais civilizadas Giammaria Ortes o economista italiano pronunciava como axioma que a riqueza de uma nação corresponde à sua população e a sua miséria corresponde à sua riqueza 1774 Até mesmo Adam Smith declarava à sua maneira cautelosa que não são nos países mais ricos que os salários dos trabalhadores são mais elevados MFarlane não estava portanto aventando uma opinião incomum quando expressava a crença de que o número de pobres continuaria a crescer agora que a Inglaterra se aproximava do meridiano da sua grandeza1 Repetimos que o fato de um inglês prever a estagnação comercial significava apenas fazer eco a uma opinião quase geral Se de fato foi 1 MFarlane J Enquiries Concerning the Poor 1782 Cf Também a obsrvação no editorial de Postlethwayt no dicionário Universal de 1757 sobre a Poor Law holandesa de 7 de outubro de 1531 129 marcante o aumento nas exportações durante o meio século que precedeu 1782 os altos e baixos do comércio eram ainda mais acentuados O comércio estava apenas começando a se recuperar de uma queda que reduzira as cifras de exportação ao nível de quase meio século antes Para os contemporâneos a grande expansão do comércio e o aparente crescimento da prosperidade nacional que se seguira à Guerra dos Sete Anos significava apenas que também a Inglaterra havia tido a sua oportunidade depois de Portugal Espanha Holanda e França Sua acentuada ascensão era agora tema do passado e não havia razão para acreditar na continuidade do seu progresso que parecia apenas o resultado de uma guerra proveitosa Como vimos aguardavase quase unanimemente um declínio no comércio O fato verdadeiro porém era que a prosperidade estava bem próxima uma prosperidade de proporções gigantescas que estava destinada a tornarse uma nova forma de vida não apenas para uma nação mas para toda a humanidade Nem os estadistas nem os economistas tinham a mais remota idéia desse porvir No que se refere aos estadistas pode ser que o assunto fosse encarado com indiferença pois durante mais duas gerações a subida vertiginosa das cifras de comércio apenas tocou a fímbria da miséria popular No caso dos economistas porém isto foi singularmente infeliz pois todo o seus sistema teórico foi construído durante esse espaço de anormalidade quando uma tremenda ascensão no comércio e na produção se fez acompanhar de um enorme aumento da miséria humana Com efeito os fatos aparentes sobre os quais se basearam os princípios de Malthus Ricardo e James Mill apenas refletiam as tendências paradoxais que prevalecem durante um período de transição nitidamente definido De fato a situação era enigmática Os pobres começaram a surgir na Inglaterra na primeira metade do século XVI Eles se tornaram conspícuos como indivíduos desligados da herdade feudal ou de qualquer superior feudal e sua transformação gradual em uma classe de trabalhadores livres foi o resultado conjunto da feroz perseguição à vagabundagem e do patrocínio da indústria doméstica poderosamente auxiliados pela contínua expansão do comércio exterior No decorrer do século XVII aludiase menos ao pauperismo e até mesmo a medida incisiva do Act of Settlement foi promulgada sem uma discussão pública Quando se reanimou a discussão no final do século a Utopia de Thomas More e as primeiras Poor Laws tinham mais de 150 anos e já haviam sido esquecidas há muito a dissolução dos monastérios e a rebelião de Kett Durante todo esse tempo já vinham ocorrendo alguns 130 cercamentos e monopólios como por exemplo durante o reinado de Carlos I mas as novas classes como um todo já haviam se acomodado Enquanto os pobres na metade do século XVI representavam um perigo para a sociedade sobre a qual desciam com exércitos inimigos o final do século XVII eles constituíam apenas um carga para os postos Por outro lado já não se tratava mais de uma sociedade sernifeudal porém de uma semicomercial cujos membros representativos favoreciam o trabalho por ele mesmo e não podiam mais aceitar nem a perspectiva medieval de que a pobreza não era um problema nem a opinião do cercador bemsucedido de que os desempregados eram apenas pessoas capazes preguiçosas A partir dessa época as opiniões sobre o pauperismo começaram a refletir uma concepção filosófica como ocorrera anteriormente com as questões teológicas As opiniões sobre os pobres espelhavam cada vez mais as perspectivas em relação à existência como um todo Daí a variedade e a aparente confusão dessas opiniões mas ao mesmo tempo seu interesse primordial para a história da nossa civilização Os quacres pioneiros na exploração das possibilidades da existência moderna foram os primeiros a reconhecer que o desemprego involuntário devia ser o resultado de algum defeito na organização do trabalho Com a sua fé poderosa nos métodos sistemáticos eles aplicaram o princípio da autoajuda coletiva aos mais pobres dentre eles o mesmo princípio que usavam ocasionalmente como contestadores conscienciosos quando queriam evitar apoiar as autoridades e pagavam pelo seu sustento na prisão Lawson um quacre zeloso publicou um Appeal to the Parliament concerning the Poor that there be no beggar in England Apelo ao Parlamento relativo aos pobres para que não haja mendigos na Inglaterra como uma plataforma na qual sugeria o estabelecimento da Labor Exchange Bolsa de Trabalho no sentido moderno da agência pública de empregos Isto ocorreu em 1660 dez anos antes Henry Robinson já havia proposto um Office of Adresses and Encounter Escritório de Endereços e Encontros Mas o governo da Restauração favorecia métodos mais prosaicos A tendência do Act of Settlement em 1662 era diretamente contrária a qualquer sistema racional de bolsas de trabalho o que criaria um mercado mais amplo para a mãode obra O domicílio termo usado pela primeira vez no Act Decreto prendia a mãode obra à paróquia Após a Revolução Gloriosa 1688 a filosofia quacre transformou John Bellers num verdadeiro profeta da tendência das idéias sociais do 131 futuro distante Foi na atmosfera dos Meetings of Sufferings nos quais se utilizavam agora e com freqüência dados estatísticos para dar precisão científica às políticas religiosas de assistência social que nasceu em 1696 sua sugestão para a criação dos Colleges of Industry nos quais o lazer involuntário dos pobres poderia se transformar em algo de bom Subjacente ao esquema de Bellers estavam não os princípios de uma Bolsa de Trabalho mas os princípios bem diferentes da troca de trabalhos A primeira estava associada à idéia convencional de encontrar um empregador para o desempregado a última significava simplesmente que os trabalhadores não precisavam de um empregador enquanto pudessem trocar diretamente seus produtos Se o trabalho do pobre é a mina do rico dizia Bellers por que eles não poderiam se manter explorando essas riquezas em seu próprio benefício e mesmo deixando sobrar alguma coisa O que se precisava era apenas organizáIos em um College ou corporação onde poderiam conjugar seus esforços Isto constituiria o cerne de todo o pensamento socialista posterior em relação à pobreza quer tomasse a forma dos Villages of Union de Owen das Phalanstêres de Fourier dos Banks of Exchange de Proudhon dos Ateliers Nationaux de Louis Blanc do Nationale Werkstéitten de Lassalle ou até se quisermos os Planos Qüinqüenais de Stalin O livro de Bellers continha in nuce a maioria das propostas ligadas à solução desse problema desde o primeiro momento em que começaram a surgir as grandes desarticulações que a máquina produziu na sociedade moderna Essa corporação fará do trabalho e não do dinheiro o padrão pelo qual será valorizado tudo que é necessário Seu planejamento era o de uma corporação de todos os tipos de profissões úteis que trabalhariam umas pelas outras sem qualquer assistência pública A ligação entre notas de trabalho autoajuda e cooperação é significativa Os trabalhadores em número de trezentos se autosustentariam e trabalhariam em comum pela mera sobrevivência e quem fizer mais será pago por isto Seriam combinadas as reações para a subsistência e o pagamento conforme os resultados obtidos No caso de algumas pequenas experiências de autoajuda o excedente fora encaminhado para o Meeting of Sufferings e gasto em benefício de outros membros da comunidade religiosa Esse excedente se destinava a ter um grande futuro a novidade da idéia de lucro era a panacéia da época O esquema nacional de Bellers para a assistência ao desemprego na verdade seria dirigido por capitalistas e com lucro No mesmo ano 1696 John Cary promoveu a Bristol Corporation for the Poor a qual após 132 algum sucesso inicial deixou de render lucros como ocorreu em última instância com todos os empreendimentos desse tipo A proposta de Bellers porém assentavase no mesmo pressuposto do sistema de imposto de trabalho de John Locke também apresentado em 1696 e segundo o qual os pobres da aldeia deveriam ser alocado aos contribuintes locais de impostos para trabalhar proporcionalmente ao pagamento desses contribuintes Esta foi a origem do infortunado sistema de bóiasfrias praticado sob a lei Gilbert A idéia de que o pauperismo poderia ser rentável realmente se apossara da mentalidade das pessoas Foi exatamente um século mais tarde que Jeremy Bentham o mais prolífero de todos os projetistas sociais formou o plano de usar indigentes em grande escala para pôr em funcionamento a maquinaria para trabalhar madeira e metal projetada por Samuel seu irmão ainda mais inventivo Bentham diz Sir Leslie Stephen juntarase a seu irmão e estavam ambos na expectativa de uma máquina a vapor Ocorreulhes agora empregar criminosos condenados em vez do vapor Isto aconteceu em 1794 O plano Panopticon de Jeremy Bentham pelo qual as prisões seriam projetadas de forma a tornar barata e efetiva a sua supervisão já existia há alguns anos e ele decidira agora simplesmente aplicálo à sua fábrica que funcionava com prisioneiros o lugar dos prisioneiros seria assumido pelos pobres Em pouco tempo o empreendimento comercial particular dos irrnâos Bentham fundiuse num esquema geral para a solução do problema social como um todo A decisão dos magistrados de Speenharnland a proposta de salário mínimo de Whitbread e acima de tudo a minuta feita por Pitt e que só circulou em particular de um projeto de grande alcance para a reforma da Poor Law tudo isto fazia do pauperismo um tópico importante entre os estadistas Bentham cuja crítica ao projeto de Pitt supõese acarretou a sua retirada aparece agora nos Annals de Arthur Young com projetos próprios mais elaborados 1797 Suas IndustryHouses Casas de Indústrias constantes do plano Panopticon cinco andares em doze setores para a exploração dos pobres assistidos seriam dirigi das por uma comissão central localizada na capital seguindo o modelo da comissão do Banco da Inglaterra e tendo direito a voto todos os membros que possuíssem ações no valor de cinco ou dez libras Um texto publicado alguns anos mais tarde dizia 1 A administração das empresas dos pobres em todo o sul da GrãBretanha será atribuída a uma autoridade e as despesas debitadas a um fundo único 2 Essa 133 autoridade será a de uma jointStock Company e poderá ter como nome o de National Charity Company2 Seriam construídas pelo menos 250 IndustryHouses com aproximadamente 500000 internos O plano se fazia acompanhar de uma análise detalhada das várias categorias de desempregados e nessa análise Bentham antecipou em mais de um século os resultados obtidos por outros investigadores Sua mente classificatória demonstrava o melhor da sua capacidade de realismo Mãodeobra fora do lugar aqueles recentemente demitidos de empregos se distinguiam de outros que não podiam encontrar emprego em função de uma estagnação casual a estagnação periódica dos trabalhadores sazonais se distinguia da mãodeobra superada a que se tornava supérflua pela introdução da maquinaria ou em termos ainda mais modernos os tecnologicamente desempregados Um último grupo consistia em mãode obra dispersa outra categoria moderna que adquiriu proeminência com a guerra francesa à época de Bentham A categoria mais significativa porém foi a da estagnação casual acima mencionada que incluía não apenas profissionais e artistas que exerciam ocupações dependentes da moda mas também o grupo muito mais importante dos desempregados no caso de uma estagnação geral das manufaturas O plano de Bentham representava nada menos do que o nivelamento do ciclo de negócios através da comercialização do desemprego em escala gigantesca Robert Owen em 1819 reeditou os planos de Bellers de mais de 120 anos para a organização dos Colleges of Industry A destituição esporádica transformarase agora numa torrente de miséria As suas próprias Villages of Union diferiam das de Bellers principalmente por serem muito maiores incluindo 1200 pessoas no mesmo número de acres da terra A comissão que angariava subscrições para este plano experimental de resolução do problema de desemprego incluía nada menos do que uma autoridade como David Ricardo Mas não apareceram subscritores Algum tempo mais tarde o francês Charles Fourier foi exposto ao ridículo por esperar dia após dia algum sócio que qui sesse investir em seu plano Phalanstêre baseado em idéias muito semelhantes àquelas patrocinadas por um dos maiores especialistas contemporâneos em finanças E por acaso a firma de Robert Owen em New Lanark com Jeremy Bentham como sócio passivo não se tornou mundialmente famosa com o sucesso financeiro de seus esquemas 2 Bentham J Pauper Management Primeira publicação em 1797 134 filantrópicos Mas não existia ainda uma visão padronizada da pobreza nem qualquer forma aceitável para se obter lucro por intermédio dos pobres Owen encampou de Bellers a idéia das notas de trabalho e aplicouas em seu National Equitable Labor Exchange em 1832 e fracassou a princípio estreitamente relacionado da autosuficiência econômica da classe trabalhadora também uma idéia de Bellers estava por trás do famoso movimento TradesUnion Sindicato de Profissionais dos dois anos seguintes a TradesUnion era uma associação geral de todas as profissões artesanatos e artes não excluindo os pequenos mestres com o vago propósito de constituílos como um órgão da sociedade em manifestação pacífica Quem poderia imaginar que este foi o embrião da tentativa de formar o violento One Big Union Sindicato Único nos próximos cem anos Nos seus planos em relação aos pobres de fato quase não se distinguiam o sindicalismo o capitalismo o socialismo e o anarquismo a Bank of Exchange de Proudhon a primeira exploração prática do anarquismo filosófico em 1848 foi basicamente uma excrescência da experiência de Owen Marx o socialista de estado atacou severamente as idéias de Proudhon e a partir daí o estado é que teria a função de fornecer o capital para esquemas coletivistas desse tipo dos quais passaram à história os de Louis Blanc e Lassalle Não deveria haver mistério quanto à razão econômica porque não se podia fazer dinheiro como os indigentes Ela já havia sido fornecida há quase 150 anos por Daniel Defoe cujo panfleto publicado em 1704 fora o pretexto para a discussão iniciada por Bellers e Locke Defoe insistia em que se os pobres fossem assistidos socialmente eles não trabalhariam por salários e se eles fossem obrigados a manufaturar bens em instituições públicas eles apenas criariam um maior desemprego nas manufaturas privadas Seu panfleto tinha o título satânico Giving Alms no Charity and Employing the Poor a Grievance to the Nation e a ele se seguiram as mais famosas sátiras do doutor Mandeville sobre as abelhas sofisticadas cuja comunidade era próspera apenas porque ela encorajava a vaidade e a inveja o vício e o desperdício Entretanto enquanto o espirituoso doutor abordava um paradoxo moral superficial o panfletário acertara justamente os elementos básicos da nova política econômica Seu ensaio foi logo esquecido fora dos círculos da política inferior como eram chamados os problemas de policiamento no século XVIll enquanto o paradoxo barato de Mandeville excitava mentes da qualidade de um Berkeley um Hume e um Smith 135 É evidente que na primeira metade do século XVIII a riqueza móvel ainda se constituía num tema moral enquanto a pobreza ainda não era As classes puritanas ficavam chocadas com as formas feudais de evidente desperdício que suas consciências coordenavam como luxo e vício embora tivessem que concordar ainda que com relutância com as abelhas de Mandeville de que o comércio e os negócios decairiam rapidamente se não existissem esses males Esses ricos mercadores se reassegurariam depois sobre a moralidade dos negócios os novos moinhos de algodão já não satisfaziam mais a ostentação ociosa e sim as monótonas necessidades diárias ocorriam formas sutis de desperdício e se imaginava serem menos evidentes quando na verdade eram ainda mais esbanjadoras que as anteriores O palavreado de Defoe em relação aos perigos da assistência social aos pobres não foi suficientemente importante para penetrar as consciências preocupadas com os perigos morais da riqueza a Revolução Industrial ainda estava para chegar No entanto o paradoxo de Defoe teve o alcance de uma previsão das perplexidades que surgiriam Não dar esmolas como caridade abrandando a fome prejudicavase a produção e se criava simplesmente a inanição empregar os pobres uma ofensa à nação pois criando empregos públicos apenas se incrementava a Superabundância de mercadorias no mercado e se apressava a ruína dos comerciantes privados Os temas foram abordados já na virada do século XVII por J ohn Bellers os quacres e Danel Defoe jornalistas da época santos e cínicos porém transcorreram mais de dois séculos de trabalho e pensamento de esperança e sofrimento até que surgissem as soluções trabalhistas Na época da Speenharnland porém a verdadeira natureza do pauperismo ainda permanecia oculta à visão dos homens Havia um consenso geral quanto à validade de uma grande população tão grande quanto possível pois o poder do estado consistia em homens Havia também uma concordância geral quanto às vantagens da mãodeobra barata pois só com ela as manufaturas podiam prosperar Além disso se não fossem os pobres quem tripularia os navios e iria à guerra Todavia permanecia a dúvida se o pauperismo não seria um mal afinal de contas De qualquer forma por que os indigentes não deveriam ser empregados com sucesso em proveito público como acontecia obviamente em proveito particular Não se encontrava qualquer resposta convincente a estas questões Defoe enfrentara a verdade uma verdade que Adam Smith pode ou não ter compreendido setenta anos mais tarde a condição subdesenvolvida do sistema de mercado ocultava as suas inerentes fraquezas Tanto a nova riqueza como a nova pobreza ainda não eram bem compreendidas 136 O fato da questão ainda estar em seu estágio de crisálida é suficientemente demonstrado pela surpreendente congruência dos projetos que refletiam mentalidades tão diferentes como as do quacre Bellers do ateísta Owen e do utilitarista Bentham Owen um socialista era um crente ardoroso na igualdade dos homens e nos seus direitos naturais enquanto Bentham desprezava a igualdade ridicularizava os direitos humanos e se inclinava totalmente para o laissezfaire No entanto os paralelogramos de Owen se pareciam tanto com as IndustryHouses de Bentham que se pode imaginar que Owen se inspirou apenas nelas antes de nos lembrarmos da sua dívida para com Bellers Os três homens estavam convencidos de que uma organização correta do trabalho dos desempregados deveria produzir um excedente e Bellers o humanista queria usáIo basicamente na assistência a outros sofredores Betham o liberal utilitarista desejava repassál o aos acionistas e Owen o socialista queria devolvêlo aos próprios desempregados Enquanto as suas diferenças revelavam apenas os sinais quase imperceptíveis de futuras brechas a sua ilusão comum refletia o mesmo equívoco radical quanto à natureza do pauperismo na nascente da economia de mercado Mais importante do que todas as outras diferenças entre eles é que enquanto isso havia ocorrido um crescimento contínuo no número de pobres em 1696 quando Bellers escreveu os impostos totais se aproximavam de 400000 libras em 1796 quando Bentham atacou o projeto de Pitt eles já passavam a marca de 2 milhões em 1818 quando Robert Owen começou eles já se aproximavam de 8 milhões Nos 120 anos que decorreram entre Bellers e Owen a população pode ter triplicado mas os impostos aumentaram vinte vezes O pauperismo se tornara um portento mas o seu significado ainda era uma incógnita 137 10 A ECONOMIA POLíTICA E A DESCOBERTA DA SOCIEDADE Quando se apreendeu o significado da pobreza estava preparado o cenário para o século XIX e o divisor de águas pode ser colocado em torno de 1780 Na grande obra de Adam Smith a assistência social ao pobre ainda não era um problema somente uma década mais tarde ele foi levantado já como tema amplo no Dissertation on the Poor Laws de Townsend e a partir daí não cessou de ocupar a atenção dos homens durante um século e meio De fato foi marcante a mudança de atmosfera entre Adam Smith e Townsend O primeiro marcou o fim de uma era que se abriu com os inventores do estado Thomas More e Maquiavel Lutero e Calvino o último já pertencia ao século XIX no qual Ricardo e Hegel descobriram a partir de ângulos opostos a existência de uma sociedade que não estava sujeita às leis do estado mas ao contrário sujeitava o estado às suas próprias leis É verdade que Adam Smith tratou a riqueza material como um campo de estudo separado o fato de fazêlo e com grande senso de realismo tornouo fundador de uma nova ciência a economia Apesar disso para ele a riqueza era apenas um aspecto da vida da comunidade a cujas finalidades ela permanecia subordinada ela era um complemento das nações que lutavam pela sobrevivência na história e delas não podia ser dissociada Na sua opinião um dos conjuntos de condições que governavam a riqueza das nações derivava da situação de progresso estacionária ou declinante do país como um todo Outro conjunto derivava da importância da segurança e da estabilidade assim como da necessidade de equilíbriode poder Um outro 138 conjunto ainda era proporcionado pela política do governo conforme ela favorecia a cidade ou o campo a indústria ou a agricultura Em conseqüência somente dentro de um dado arcabouço político é que ele considerava possível formular a questão da riqueza cujo significado para ele era o bemestar material do grande organismo do povo Seu trabalho não deixa entrever que são os interesses econômicos dos capitalistas que organizam a lei da sociedade nenhuma indicação de serem eles os portavozes seculares da providência divina que governava o mundo econômico como uma entidade isolada Para ele a esfera econômica ainda não está sujeita a leis próprias que nos indicam o padrão do bem e do mal Smith olhava a riqueza das nações como uma função da vida nacional delas física e moral É por isso que sua política naval combinava tão bem com as Navigation Laws Leis de Navegação de Cromwell e suas noções sobre a sociedade humana se harmonizavam com o sistema dos direitos naturais de John Locke Em sua opinião nada indica a presença na sociedade de uma esfera econômica que possa se tornar a fonte de uma lei moral e de uma obrigação política O interesse próprio apenas nos impele a fazer aquilo que intrinsecamente também beneficiará outros como o interesse próprio do açougueiro fornecernosá o jantar em última instância Um grande otimismo flui do pensamento de Smith já que as leis que governam a parte econômica do universo estão em consonância com o destino do homem da mesma forma que aquelas que governam as outras partes Nenhuma mão oculta tenta nos impor os ritos do canibalismo em nome do interesse próprio A dignidade de um homem é a de um ser moral que como tal é membro da ordem cívica da família do estado e da grande sociedade da humanidade A razão e a humanidade estabelecem um limite para a tarefa a emulação e o ganho devem dar lugar a elas Natural é tudo que está de acordo com os princípios incorporados à mentalidade do homem e a ordem natural é aquela que está de acordo com esses princípios A natureza no seu sentido físico foi conscientemente excluída por Smith do problema da riqueza Qualquer que seja o solo o clima ou a extensão de território de qualquer nação particular a abundância ou escassez de seu abastecimento anual nessa situação particular deve depender de duas circunstâncias a saber a capacidade do trabalho e a proporção entre os membros úteis e ociosos da sociedade Não é o fator natural que conta mas apenas o fator humano Esta exclusão do fator biológico e geográfico logo no começo do seu livro foi deliberada As falácias dos fisiocratas serviramlhe de aviso a predileção deles 139 pela agricultura levouos a confundir a natureza física com a natureza humana induzindolhes a argumentar que apenas o solo era realmente criativo Nada estava mais afastado da mentalidade de Smith do que uma tal glorificação do Physis A economia política deveria ser uma ciência humana deveria lidar com o que é natural ao homem e não à natureza A Dissertation de Townsend dez anos depois enfocou o teorema das cabras e dos cães O cenário é a ilha de Robinson Crusoé no Oceano Pacífico próximo à costa do Chile Juan Fernandez deixou nessa ilha algumas cabras para que fornecessem carne em caso de visitas futuras As cabras se multiplicaram em proporção bíblica e se tornaram um estoque de alimento muito conveniente para os corsários na maioria ingleses que molestavam o comércio espanhol Para destruílos as autoridades espanholas deixaram na ilha um cão e uma cadela que também se multiplicaram no devido tempo diminuindo o número de cabras com as quais se alimentavam Um novo tipo de equilíbrio foi estabelecido escreveu Townsend Os mais fracos de ambas as espécies foram os primeiros a pagar seu débito com a natureza os mais ativos e vigorosos conservaram suas vidas E acrescentou É a quantidade de alimento que regula o número da espécie humana Observamos que uma pesquisa1 nas fontes não autentica a história Juan Fernandez de fato desembarcou as cabras mas os lendários cães foram descritos por William Funnell como lindos gatos e não se sabe da multiplicação nem dos cães nem dos gatos Ocorre também que as cabras habitam rochedos inacessíveis enquanto as praias e nisso todos os registros concordam estavam repletas de gordas focas que constituiriam uma presa muito mais tentadora para cães selvagens Todavia o paradigma não depende de suporte empírico A falta de autenticidade comprovada não depõe contra o fato de que Malthus e Darwin se inspiraram nessa fome Malthus aprendeua com Condorcet e Darwin com Malthus Entretanto nem a teoria da seleção natural de Darwin nem as leis populacionais de Malthus exerceriam qualquer influência apreciável sobre a sociedade moderna não fossem as máximas seguintes que Townsend deduziu a partir de suas cabras e cães e que ele desejava que aplicassem à reforma da Poor Law A fome doma os animais mais ferozes 1 Cf Antônio de ulloa Wafer William Funnell bem como Isaac James que também contém o relatório do capitão Wood Rogers sobre Alexander Selkirk e as observações de Edward Cooke 140 ensina a decência e a civilidade a obediência e a sujeição ao mais perverso De uma forma geral só a fome pode incentivar e incitar os pobres ao trabalho mas as nossas leis já estabeleceram que eles não devem passar fome As leis é preciso confessar também estipulam que eles devem ser compelidos a trabalhar Mas o constrangimento legal é sempre atendido com muito aborrecimento violência e barulho cria mávontade e nunca pode produzir um serviço bom e aceitável Enquanto isso a fome não é apenas uma pressão pacífica silenciosa e incessante mas como a motivação mais natural para a diligência e o trabalho ela se constitui no mais poderoso dos incentivos Quando satisfeita pela livre generosidade de outrem ela cria os fundamentos mais seguros e duradouros para a boa vontade e a gratidão O escravo deve ser compelido a trabalhar mas o homem livre deve ter seu próprio julgamento e critério deve ser protegido no pleno gozo do que tem seja muito ou pouco e punido quando invade a propriedade de seu vizinho Surgia aqui um novo ponto de partida para a ciência política Ao abordar a comunidade humana do ponto de vista animal Townsend se desviou da questão supostamente inevitável dos fundamentos do governo e ao fazêlo introduziu um novo conceito de lei nos assuntos humanos os das leis da natureza As inclinações geométricas de Hobbes assim como os anseios de Hume e Hartley Quesnay e Helvetius pela aplicação de leis newtonianas à sociedade foram apenas metafóricas eles ansiavam por descobrir uma lei tão universal para a sociedade quanto a da gravidade em relação à natureza mas eles pensavam nela como uma lei humana por exemplo uma força mental tal como o medo em Hobbes a associação na psicologia de Hartley o interesse próprio em Quesnay ou a procura da utilidade em Helvetius Não havia excesso de escrúpulo nesse sentido Quesnay como Platão assumia ocasionalmente a perspectiva de criador do homem e Adam Smith não ignorava certamente a ligação entre salários reais e o fornecimento da mãodeobra a longo prazo Todavia Aristóteles ensinara que só os deuses ou os animais podiam viver fora da sociedade e o homem não era nem um nem outro No pensamento cristão a divisão entre o homem e o animal também era constitutiva Nenhuma incursão no reino dos fatos fisiológicos poderia confundir a teologia quanto às raízes espirituais da comunidade humana Se para Hobbes o homem era o lobo do homem era porque fora da sociedade os homens se comportavam como lobos e não porque houvesse qualquer fator biológico em comum entre homens e lobos Isto ocorreu em última instância porque até então não se concebera qualquer comunidade humana que 141 não se identificasse com a lei e o governo Na ilha de Juan Fernandez porém não havia governo ou lei e no entanto havia um equilíbrio entre cabras e cães Esse equilíbrio se mantinha pela dificuldade que os cães encontravam em devorar as cabras que fugiam para as partes rochosas da ilha e as inconveniências que as cabras tinham que enfrentar quando se procuravam se proteger dos cães Não era preciso um governo para manter esse equilíbrio ele era restaurado pelo aguilhão da fome de um lado e pela escassez de alimentos de outro Hobbes argumentara sobre a necessidade de um déspota porque os homens eram como animais Townsend insistia que eles eram verdadeiramente animais e que precisamente por essa razão só era preciso um mínimo de governo A partir deste ponto de vista novo uma sociedade livre podia ser vista como se consistisse de apenas duas raças proprietários e trabalhadores O número desses últimos era limitado pela quantidade de alimento e a fome impelilosia ao trabalho enquanto a propriedade estivesse em segurança Não havia necessidade de magistrados pois a fome era um disciplinador melhor que o magistrado Apelar para ele observava Townsend pungentemente seria como um apelo da autoridade mais forte para a mais fraca Os novos fundamentos combinavam acertadamente com a sociedade que emergia Desde meados do século XVIII já vinham se desenvolvendo os mercados nacionais O preço do cereal já não era mais local mas regional e isto pressupunha o uso quase geral do dinheiro e uma grande negociabilidade de bens Os preços de mercado e os rendimentos inclusive aluguéis e salários mostravam uma considerável estabilidade Os fisiocratas foram os primeiros a observar essa regularidade que todavia eles não podiam enquadrar num todo mesmo teoricamente pois na França ainda prevaleciam as rendas feudais e o trabalho ainda era serniservil e assim nem os aluguéis nem os salários eram determinados pelo mercado como regra Mas à época de Adam Smith o campo inglês já se tornara parte integrante de uma sociedade comercial O aluguel devido ao proprietário fundiário assim como o salário do trabalhador agrícola mostravam uma dependência marcante aos preços Salários ou preços só eram fixados pelas autoridades em casos excepcionais E no entanto nesta curiosa nova ordem as antigas classes da sociedade continuavam a existir mais ou menos em sua hierarquia anterior apesar do desaparecimento de seus privilégios e incapacidades legais Embora nenhuma lei obrigasse o trabalhador a servir o fazendeiro nem o fazendeiro a contribuir para a abundância do proprietário fundiário trabalhadores e fazendeiros agiam como se ainda 142 existisse uma tal compulsão Que lei ordenava ao trabalhador obedecer a um senhor ao qual não estava mais ligado por qualquer laço legal Que força mantinha as classes da sociedade à parte como se se tratasse de e pécies diferentes de seres humanos O que mantinha o equilíbrio e a ordem nessa coletividade humana que não invocava e nem mesmo tolerava a intervenção do governo político O paradigma das cabras e dos cães parece oferecer resposta a essas questões A natureza biológica do homem surgia como o fundamento de uma sociedade que não era de ordem política Foi assim que os economistas abandonaram os fundamentos humanistas de Adam Smith e incorporaram os de Townsend A lei populacional de Malthus e a lei dos rendimentos diminuídos apresentada por Ricardo tornaram a fertilidade do homem e do solo os elementos constitutivos do novo reino cuja existência havia sido descoberta A sociedade econômica emergira como algo separado do estado político As circustâncias sob as quais a existência desse agregado humano uma sociedade complexa se tornou aparente foram de extrema importância para a história de pensamento do século XIX Uma vez que a sociedade emergente nada mais era do que o sistema de mercado a sociedade humana estava agora ameaçada de mudar as suas bases para outras inteiramente estranhas ao mundo moral do qual fizera parte até então o corpo político O problema do pauperismo aparentemente insolúvel forçava Malthus e Ricardo a sancionar o mergulho de Townsend no naturalismo Burke abordou o tema do pauperismo a partir do ângulo estrito da segurança pública As condições existentes nas Índias Ocidentais convenceramno do perigo de manter uma grande população escravizada sem condições adequadas para a segurança dos senhores brancos principalmente porque muitas vezes se permitia que os negros andassem armados Considerações semelhantes pensava ele podiam se aplicar ao aumento no número de desempregados em seu país natal uma vez que o governo não dispunha de força policial Embora um defensor ferrenho das tradições patriarcais ele era um adepto apaixonado do liberalismo econômico no qual via a resposta ao candente problema administrativo do pauperismo As autoridades locais aproveitavam com satisfação a demanda inesperada dos moinhos de algodão por menores carentes cujo aprendizado ficava a cargo da paróquia Centenas deles eram encaminhados às manufaturas muitas vezes em partes distantes do país As novas cidades pareciam ter desenvolvido 143 um apetite saudável por indigentes as fábricas estavam até prontas a pagar pela utilização dos pobres Adultos eram encaminhados a qualquer um que quisesse ernpregáIos em troca do mero sustento e eles podiam ainda ser alocados entre os fazendeiros da paróquia por vezes em uma ou outra forma de sistema de trabalho rotativo Era mais barato sustentálos no cultivo da terra do que nas prisões sem culpa como eram às vezes chamados os albergues Do ângulo administrativo isto significava que a autoridade mais persistente e mais minunciosamente detalhada do empregador2 assumia o lugar da exigência do trabalho do governo e da paróquia É claro que a questão envolvia a autoridade do estado Por que deveriam os pobres se tornar um encargo público e a paróquia cuidar da sua manutenção se em última instância essa mesma paróquia se desobrigava dessa função encaminhando os homens capazes aos empresários capitalistas e estes queriam tanto encher os seus moinhos com eles que estavam até dispostos a gastar dinheiro para obter os seus serviços Por acaso isto não indicava claramente que existia uma outra forma bem menos dispendiosa de obrigar os pobres a ganhar o seu sustento do que através da paróquia A solução estava na abolição da legislação elisabetana sem substituíIa por qualquer outra Nenhuma avaliação de salários nenhuma assistência social para os desempregados capazes mas também nenhum salário mínimo nem a proteção ao direito de viver O trabalho deveria ser manuseado como aquilo que ele era uma mercadoria que deve encontrar seu preço no mercado leis do comércio eram as leis da natureza e portanto as leis de Deus O que era isto senão um apelo do magistrado mais fraco para o mais forte do juiz de paz para o todopoderoso aguilhão da fome Tanto para o político como para o administrador o laissezfaire era simplesmente um princípio de garantia da lei e da ordem com um mínimo de custo e de esforço Que o mercado tome os pobres a seu encargo e as coisas correrão por si mesmas Neste ponto Bentham o racionalista concordava com Burke o tradicionalista O cálculo da dor e do prazer exigia que não fosse infligida qualquer dor desnecessária Se a fome cumprisse essa finalidade não se exigia outra penalidade À questão o que pode fazer a lei em relação à subsistência Bentham respondeu diretamente nada3 A pobreza 2 Webb S e B English Local Government vols VIIIX Poor Law History 3 Bentham J Principles of Civil Code Cap 4 Bowring vol I p 333 144 era a sobrevivência da natureza na sociedade a fome era a sua sanção física Se a força da sanção física é suficiente seria supérfluo o emprego da sanção política4 Só o que se precisava era dar tratamento científico e econômico aos pobres5 Bentham se opunha fortemente à Poor Law Bill de Pitt que resultaria numa renovação da Speenharnland uma vez que ela previa tanto assistência social externa como os abonos salariais E todavia Bentham diferente de seus seguidores não era na época nem um liberal econômico rígido nem um democrata Suas IndustryHouses eram um pesadelo de administração utilitarista minunciosa reforçada por todo o engodo da direção científica Ele afirmava que elas seriam sempre necessárias pois a comunidade não podia se desinteressar completamente pelo destino dos indigentes Bentham acreditava que a probreza era parte da opulência No estágio mais elevado da prosperidade social dizia ele a grande massa dos cidadãos provavelmente disporá de poucos outros recursos além do seu trabalho diário e conseqüentemente estará sempre a um passo da indigência Daí recomendar ele organizarse uma contribuição regular para as necessidades da indigência embora com isso a necessidade decresça em teoria e atinja portanto a indústria Esse acréscimo ele o fazia com pesar uma vez que do ponto de vista utilitarista a tarefa do governo era aumentar a necessidade a fim de tornar efetiva a sanção física da fome6 A aceitação da quaseindigência da massa dos cidadãos como o preço a ser pago por um estágio mais elevado de prosperidade se fazia acompanhar de atitudes humanas muito diferentes Townsend corrigia seu equilíbrio emocional inclinandose para o preconceito e o sentimentalismo A imprevidência do pobre era uma lei da natureza do contrário o trabalho servil sórdido e ignóbil não poderia ser feito E o que aconteceria com a pátria se não pudéssemos confiar nos pobres Se não fosse a angústia e a probreza que se impõem sobre as classes baixas do povo como eles iriam enfrentar os horrores que os aguardam nos oceanos tempestuosos ou nos campos de batalha Mas esta demonstração de um áspero patriotismo ainda deixava lugar para sentimentos mais ternos É claro que a assistência social aos pobres deveria ser abolida imediatamente As Poor Laws provêm de princípios que 4 Bentham J Principles of Civil Code Cap 4 Bowring vol I p 333 5 Bentham J Observation on the Poor Bill 1797 6 Bentham J Principles of Civil Code p 314 145 raiam o absurdo sob o pretexto de cumprir aquilo que é impraticável à própria natureza e constituição do mundo Deixando os indigentes à mercê dos ricos quem poderia duvidar que a única dificuldade seria restringir a impetuosidade da benevolência desses últimos E por acaso os sentimentos de caridade não são mais nobres do que aqueles que se originam de obrigações legais inflexíveis Pode haver coisa mais bela na natureza do que a suave complacência da benevolência Alegava ele contrastandoa com a fria impessoalidade da caridade paroquial que não conhecia as cenas da expressão natural de uma gratidão sincera por favores inesperados Quando o pobre é obrigado a cultivar a amizade do rico o rico nunca sentirá a inclinação de procurar aliviar a necessidade do pobre Quem quer que tenha lido esse tocante retrato da vida íntima das Duas Nações jamais poderá duvidar de que inconscientemente foi a partir da ilha das cabras e dos cães que a Inglaterra vitoriana aprendeu a sua educação sentimental Edmund Burke foi um homem de estatura diferente Onde homens como Townsend fracassaram em pequena escala ele fracassou em grande estilo Seu gênio transformou o fato brutal numa tragédia e investiu o sentimentalismo de um halo de misticismo Quando fingimos lamentar como pobres aqueles que precisavam trabalhar do contrário o mundo não poderia existir estamos brincando com a própria condição da humanidade Isto era sem dúvida melhor que a indiferença grosseira as lamentações vazias ou a lamúria de um enaltecimento indulgente Todavia a virilidade dessa atitude realista foi empanada pela complacência sutil com a qual ele enfocava as cenas da pompa aristocrática O resultado foi afastar Herodes mas também subestimar as oportunidades de uma reforma oportuna Podese supor que se Burke vivesse a Reform Bill parlamentar de 1832 que colocou um ponto final no ancien régime só seria aprovada ao preço de uma revolução sangrenta evitável E Burke poderia ainda ter contraposto já que as massas estavam sendo condenadas a penar na miséria pelas leis da economia política o que era a idéia da igualdade senão uma isca cruel para atrair a humanidade para a autodestruição Bentham não possuía nem a complacência insinuante de um Townsend nem o historicismo muito precipitado de um Burke Pelo contrário para este adepto da razão e da reforma o reino da lei social recentemente descoberto surgia como a cobiçada terra de ninguém da experiência utilitária Como Burke ele se recusava a aceitar o determinismo zoológico e também ele rejeitava a ascendência do econômico sobre o político propriamente dito Embora autor de um Essay on 146 Usury e de um Manual of Political Economy ele era um amador nessa ciência e deixou até mesmo de proporcionar a única grande contribuição que o utilitarismo poderia fazer à economia isto é a descoberta de que o valor provinha da utilidade Ao invés disso ele se deixou induzir pela psicologia associacionista a dar rédeas às suas ilimitadas faculdades imaginativas como engenheiro social Para Bentham o laissezfaire significava apenas um outro artifício na mecânica social A invenção social e não a técnica era a fonte intelectual da Revolução Industrial A contribuição decisiva das ciências naturais à engenharia só foi feita um século mais tarde quando já terminara há muito a Revolução Industrial Para o construtor prático de uma ponte ou de um canal para o desenhista de máquinas e motores o conhecimento das leis gerais da natureza era inteiramente inútil antes de terem sido desenvolvidas as novas ciências aplicadas à mecânica e à química Telford fundador e presidente vitalício da Sociedade dos Engenheiros Civis recusava receber como membros desse órgão os candidatos que haviam estudado física e segundo Sir David Brewster ele mesmo nunca se familiarizou com os elementos da geometria Os triunfos da ciência natural haviam sido teóricos no verdadeiro sentido da palavra e não podiam se comparar em importância prática aos das ciências sociais da época Deveuse a essas últimas o prestígio da ciência em oposição à rotina e à tradição e por mais incrível que possa parecer à nossa geração o prestígio da ciência natural cresceu muito através da sua ligação com as ciências humanas A descoberta da economia foi uma revelação assombrosa que apressou em muito a transformação da sociedade e o estabelecimento de um sistema de mercado enquanto as máquinas decisivas haviam sido invenções de artesãos nãoeducados alguns dos quais mal sabiam ler ou escrever Era portanto bastante justo e apropriado considerar as ciências sociais e não as naturais como mentores intelectuais da revolução mecânica que sujeitou os poderes da natureza ao homem O próprio Bentham estava convencido de que havia descoberto uma nova ciência social a da moral e da legislação Ela se fundamentaria no princípio da utilidade que permitia o cálculo exato com a ajuda da psicologia associacionista Precisamente porque se tornou efetiva dentro da circunferência dos assuntos humanos a ciência significava invariavelmente na Inglaterra do século XVIII uma arte prática baseada no conhecimento empírico Era de fato irresistível a necessidade de uma tal atitude pragmática Como não dispunham de estatísticas muitas vezes não era possível dizer se a população aumentava ou diminuía 147 qual era a tendência da balança do comércio exterior ou que classe da população crescia em relação à outra Era apenas tema de conjecturas freqüentemente saber se a riqueza do país aumentava ou diminuía de onde vinham os pobres qual a situação do crédito dos bancos ou dos lucros O que a ciência significava em primeiro lugar era apenas uma abordagem empírica em vez de uma puramente especulativa ou antiquada em relação a assuntos como esses Como os interesses práticos eram naturalmente mais importantes coube à ciência sugerir como regular e organizar o vasto reino dos novos fenômenos Já vimos como os Santos se sentiam intrigados pela natureza da pobreza e a forma engenhosa das suas experiências com tipos de auto ajuda como a noção do lucro era proclamada a cura para os mais diversos males como ninguém podia dizer se o pauperismo era um sinal bom ou mau como as direções científicas dos albergues ficavam atônitas por se sentirem incapazes de ganhar dinheiro com os pobres como Owen fez fortuna dirigindo suas fábricas na linha de uma filantropia consciente como uma série de outras experiências que pareciam envolver a mesma técnica de autoajuda esclarecida fracassaram redondamente causando imensa perplexidade a seus autores filantrópicos Se ampliássemos nosso campo de ação do pauperismo para o crédito para a moeda sonante monopólios poupança seguro investimento finança pública ou ainda para as prisões educação e loterias poderíamos facilmente acrescentar outros tipos de empreendimento em relação a cada um deles Este período chegou ao seu final aproximadamente com a morte de Bentham7 Desde a década de 1840 os planejadores de negócios já eram simplesmente organizadores de empreendimentos definidos e não mais pretensos descobridores de novas aplicações de princípios universais de mutualidade confiança riscos e outros elementos da empresa humana Doravante os homens de negócios imaginavam saber exatamente as formas que suas atividades iriam tomar raramente inquiriam sobre a natureza do dinheiro antes de fundar um banco Os engenheiros sociais só eram encontrados agora entre os excêntricos ou os embusteiros e muitas vezes iam parar atrás das grades A torrente de sistemas industriais e bancários que havia inundado as bolsas de valores desde Paterson e John Law até os Pereires com projetos de sectários religiosos sociais e acadêmicos tornarase agora um simples 7 1832 148 filete As idéias analíticas já não tinham interesse para os que se envolviam na rotina dos negócios A exploração da sociedade estava terminada ou pelo menos assim se pensava e não havia mais espaços em branco no mapa humano Durante um século seria impossível imaginar um homem do tipo de Bentham Uma vez dominante a organização de mercado da vida industrial todas as outras áreas institucionais foram subordinadas a esse padrão o gênio pelos artefatos sociais não encontrava mais lugar O Panopticon de Bentham não era apenas um moinho que transformava vagabundos em honestos e preguiçosos em diligentes8 ele tinha também que pagar dividendos como os do Banco da Inglaterra Bentham patrocinava projetos tão diferentes como um melhor sistema de patentes companhias de responsabilidade limitada um censo decenal da população a criação de um Ministério da Saúde letras que rendiam juros para tornar a poupança geral um frigorífico para frutas e legumes fábricas de armamentos apoiadas em novos princípios técnicos e que podiam funcionar tanto pelo trabalho dos presos como alternativamente dos pobres assistidos socialmente uma Chrestomathic Day School para ensinar o utilitarismo às classes médias altas um registro geral da prosperidade real um sistema de contabilidade pública reformas da instrução pública registros uniformes libertarse da usura o abandono das colônias o uso de anticoncepcionais para diminuir o nascimento de pobres a junção dos oceanos Atlântico e Pacífico através de uma sociedade anônima e outros Alguns desses projetos abrigavam uma quantidade enorme de pequenos progressos como por exemplo as IndustryHouses um conjunto de inovações para a melhoria e a exploração do homem com base nas conquistas da psicologia associacionista Enquanto Townsend e Burke ligavam o laissezfaire ao quietismo legislativo Bentham não via nele qualquer obstáculo às amplitudes da reforma Antes de chegar à resposta que Malthus deu a Godwin em 1798 e com a qual a economia clássica propriamente dita se inicia voltemos às recordações O Political Justice de Godwin foi escrito em oposição às Reflections on the French Revolution 1790 de Burke Ele surgiu justamente antes que começasse a onda de repressão com a suspensão do habeascorpus 1794 e a perseguição às democráticas Correspondence Societies Sociedades de Correspondentes Nessa ocasião a Inglaterra 8 Stephen Sir L The English Utilitarians 1900 149 estava em guerra com a França e o terreur fez da palavra democracia o sinônimo de revolução social O movimento democrático na Inglaterra porém que se inaugurou com o sermão do Dr Price Old Jewry1789 e alcançou o seu cume literário com The Rights of Man 1791 de Paine se restringia ao campo político O descontentamento dos trabalhadores pobres não encontrava qualquer ressonância nessa democfãcia A questão da Poor Law quase não era mencionada nos panfletos que levantaram a campanha pelo sufrágio universal e por parlamentos anuais No entanto foi na esfera da Poor Law que surgiu o contramovimento decisivo dos proprietários fundiários so a forma da Speenharnland A paróquia se escondeu por trás de uma muralha artificial sob cuja proteção ela sobreviveu a Waterloo por mais de vinte anos Embora as maléficas conseqüências dos terríveis atos de repressão política da década de 1790 pudessem ser logo superadas se entregues a si mesmo o processo degenerativo iniciado pela Speenharnland deixou sua marca indelével no país O prolongamento de quarenta anos da classe dos proprietários rurais que ela produziu foi conseguido ao preço do sacrifício da virilidade do povo comum Quando as classes proprietárias reclamavam que os impostos para os pobres eram cada vez mais pesados diz Mantoux elas esqueciam o fato de que estes impostos eram na verdade um seguro contra a revolução enquanto a classe trabalhadora quando aceitava o minguado abono que lhe era concedido não compreendia que ele era conseguido em parte pela redução dos seus proventos legítimos O resultado inevitável desses abonos era manter os salários no seu nível mais ínfimo e até mesmo forçálos abaixo do limite correspondente às necessidades mínimas dos assalariados O fazendeiro ou o fabricante contava com a paróquia para contrabalançar a diferença entre o que ele pagava aos homens e a importância suficiente para sobreviverem Por que deveriam incorrer em mais despesas se estas eram tão facilmente cobertas pelo conjunto de contribuintes de impostos Por outro lado aqueles que recebiam assistência social da paróquia estavam dispostos a trabalhar por um salário mais baixo o que tornava a competição impossível para os que não recebiam ajuda paroquial O resultado paradoxal a que se chegou foi que o assim chamado imposto dos pobres significava uma economia para os empregados e uma perda para o trabalhador diligente que não contava com a caridade pública Assim a interposição impiedosa de interesses transformou uma lei caridosa num grilhão de ferro9 9 Mantoux P L The Industrial Revolution in teh Eighteenh Centrury 1928 150 Calculamos que foi justamente nesse grilhão que se apoiou a nova lei de alários e de população O próprio Malthus como Burke e Bentham se opunha violentamente à Speenhamland e defendia a revogação completa da Poor Law Nenhum deles poderia prever que a Speenharnland forçaria os salários dos trabalhadores até o nível da subsistência e mesmo abaixo Pelo contrário eles esperavam que ela elevasse os salários ou pelo menos os mantivesse artificialmente o que poderia ter ocorrido se não fossem promulgadas as AntiCombination Laws Esta falsa previsão ajuda a explicar por que eles não conseguiram ligar o baixo nível dos salários rurais à Speenharnland que foi a sua causa verdadeira e o viam como prova inconteste do funcionamento da assim chamada lei de ferro dos salários Devemos voltar agora a este fundamento da nova ciência econômica O naturalismo de Townsend não foi certamente a única base possível da nova ciência da economia política A existência de uma sociedade econômica era manifesta na regularidade dos preços e a estabilidade dos rendimentos dependia desses preços Em conseqüência a lei econômica poderia perfeitamente se basear diretamente nos preços O que induziu os economistas ortodoxos a procurar seus fundamentos no naturalismo foi a miséria de outro modo inexplicável da grande massa de produtores que como sabemos hoje jamais deveria ter sido subtraída às leis do antigo mercado Conforme apareciam aos contemporâneos os fatos eram estes em resumo em tempos passados o povo trabalhador vivia praticamente à beira da indigência pelo menos se se levava em conta as mudanças nos níveis dos padrões costumeiros A introdução da máquina certamente não concorrera para que eles se elevassem acima do nível de subsistência e agora que a sociedade econômica finalmente tomava forma era um fato indubitável que década após década o nível material da existência do trabalhador pobre não melhorava em nada se é que não se tornava pior Se jamais houve ocasião em que a superabundante evidência dos fatos parecia apontar numa direção isto ocorreu com certeza no caso da lei férrea dos salários Esta afirmava que o nível de mera subsistência em que viviam os trabalhadores resultava de uma lei que tendia a manter seus salários tão baixos que para eles não havia outro padrão possível É claro que esta semelhança não era apenas enganadora mas implicava ainda um absurdo do ponto de vista de qualquer teoria sólida de preços e rendimentos sob o capitalismo Entretanto em última análise foi por causa dessa falsa aparência que a lei dos salários não pôde se basear em qualquer regra racional de comportamento humano 151 e teve que ser deduzida a partir dos fatos naturalistas da fertilidade do homem e do solo conforme apresentadas ao mundo pela lei de população de Malthus em combinação com a lei dos rendimentos diminuídos O elemento naturalista nos fundamentos da economia ortodoxa foi o resultado de condições criadas basicamente pela Speenharnland Deduzse daí que nem Ricardo nem Malthus entenderam o funcionamento do sistema capitalista Não foi senão um século após a publicação de Riqueza das Nações que se compreendeu claramente que sob um sistema de mercado os fatores de produção participavam do produto e como o produto aumentava a sua participação absoluta também deveria aumentar10 Embora Adam Smith seguisse o falso ponto de partida de Locke sobre as origens do valor do trabalho seu senso de realismo impediuo de ser incongruente Daí ter ele opiniões confusas sobre os elementos do preço embora insistindo com muita justiça que nenhuma sociedade pode progredir se a grande maioria de seus membros é pobre e miserável Entretanto o que nos parece hoje um truísmo era na sua época um paradoxo A própria opinião de Smith era que a abundância universal não poderia deixar de fluir para o povo era impossível que a sociedade se tornasse cada vez mais rica e o povo cada vez mais pobre Infelizmente os fatos não parecem têlo comprovado por um longo tempo Como os teóricos tinham que justificar os fatos Ricardo argumentava que quanto mais a sociedade progredisse maior seria a dificuldade de encontrar alimentos e mais ricos se tornariam os senhores de terra explorando simultaneamente os capitalistas e os trabalhadores que os interesses dos capitalistas e dos trabalhadores estavam em oposição fatal uns com os outros e que essa oposição era inefetiva em última instância porque os salários dos trabalhadores jamais poderiam elevarse acima do nível de subsistência e de qualquer forma os lucros deveriam estacionar Em algum sentido remoto todas essas afirmativas continham um elemento de verdade mas como explicação do capitalismo nada poderia ser mais irreal e ininteligível Todavia os próprios fatos se formaram em padrões contraditórios e ainda hoje encontramos dificuldade em desenredálos Não é de admirar pois que o deus ex machina da propagação do animal e da planta tivesse que ser invocado num sistema científico cujos autores alegavam deduzir as leis da produção e da 10 Cannan E A Review of Economic Theory 1930 152 distribuição não a partir do comportamento das plantas ou dos animais mas dos homens Vamos examinar resumidamente as conseqüências do fato de que os fundamentos da teoria econômica foram estabelecidos durante o período Speenhamland o que fez parecer como economia competitiva de mercado aquilo que era na verdade um capitalismo sem um mercado de trabalho Primeiro a teoria econômica dos economistas clássicos era essencialmente confusa O paralelismo entre riqueza e valor gerou os mais desconcertantes pseudoproblemas em quase todos os setores da economia ricardiana A teoria do fundo salarial um legado de Adam Smith foi uma rica fonte de desentendimentos À parte algumas teorias especiais como as do aluguel da taxação e do comércio exterior de profunda perspicácia a teoria consistiu em tentativas frustradas de chegar a conclusões categóricas sobre termos maldefinidos que se propunham a explicar o comportamento dos preços o nível de lucros salários e juros a maioria dos quais continuou tão obscura como antes Segundo dadas as condições sob as quais o problema se apresentava não era possível obter outro resultado Nenhum sistema unitário poderia ter explicado os fatos pois eles não eram parte de qualquer sistema único e eram na verdade o resultado da ação simultânea de dois sistemas mutuamente exclusivos sobre o corpo social isto é uma economia de mercado nascente e uma regulamentação paternalista na esfera do fator mais importante da produção o trabalho Terceiro a solução a que chegaram os economistas clássicos teve conseqüências de grande alcance para a compreensão da natureza da sociedade econômica À medida que as leis que governavam uma economia de mercado iam sendo apreendidas essas leis eram colocadas sob a autoridade da própria natureza A lei dos rendimentos diminuídos foi uma lei de fisiologia da planta A lei de população malthusiana refletiu a relação entre a fertilidade do homem e do solo Em ambos os casos as forças em jogo eram as forças da natureza o instinto animal do sexo e o crescimento da vegetação num dado solo O princípio envolvido era o mesmo do caso das cabras e cães de Townsend havia um limite além do qual os seres humanos não podiam se multiplicar e esse limite era estabelecido pelo abastecimento de alimentos disponíveis Como Townsend Malthus concluiu que os espécimes supérfluos seriam mortos enquanto as cabras são mortas pelos cães os cães devem passar fome por falta de alimento Com Malthus o controle repressivo consistia na destruição dos espécimes excedentes pelas forças brutas da 153 natureza Como os seres humanos são destruídos por outras causas além da inanição guerra peste e vício essas causas se equiparavam às forças destrutivas da natureza Num âmbito estrito isto envolvia uma contradição pois tornava as forças sociais responsáveis pelo alcance do equilíbrio exigido pela natureza A esta crítica porém Malthus poderia ter respondido que na falta de guerras e vícios isto é numa comunidade virtuosa teriam que passar fome tantas pessoas quantas aquelas poupadas por suas virtudes pacíficas Na sua essência a sociedade econômica se fundamentava nas inflexíveis realidades da natureza se o homem desobedecesse as leis que dirigiam tal sociedade o carrasco cruel estrangularia os rebentos dos imprevidentes As leis de uma sociedade competitiva eram colocadas sob a sanção da selva O verdadeiro significado do tormentoso problema da pobreza se revelava agora por inteiro a sociedade econômica estava sujeita a leis que não eram leis humanas A brecha entre Adam Smith e Townsend se transformara num abismo surgia uma dicotomia que marcaria o nascimento da consciência do século XIX A partir deste período o naturalismo passou a assombrar a ciência do homem e a reintegração da sociedade no mundo humano tornouse o objetivo perseguido com persistência na evolução do pensamento social A economia marxista nesta linha de argumentação foi uma tentativa malograda de atingir esse objetivo um fracasso devido à adesão muito estrita de Marx às teorias de Ricardo e às tradições da economia liberal Os próprios economistas clássicos estavam longe da inconsciência em relação a essa necessidade Malthus e Ricardo não eram de forma alguma indiferentes ao destino dos pobres porém sua preocupação humana apenas forçou uma falsa teoria por caminhos ainda mais tortuosos A lei férrea dos salários dispunha de uma cláusula de segurança bem conhecida segundo a qual quanto mais elevada as necessidades costumeiras da classe trabalhadora mais elevado era o nível de subsistência abaixo do qual nem mesmo a lei férrea podia diminuir os salários Malthus colocou suas esperanças nesse padrão de miséria11 e queria que ele fosse elevado por todos os meios pois somente assim pensava ele poderiam ser salvos das formas mais abjetas da miséria aqueles que por força da lei estavam condenados a essa desgraça Pela mesma razão também Ricardo desejava que as classes trabalhadoras em todos os países tivessem o prazer do conforto e da alegria e eles 11 Hazlitt W A Reply to the Essay on Population by the Rev T A Malthus in a Series of Letters 1803 154 deveriam ser estimulados por todos os meios legais no seu afã para atingilos De forma irônica e a fim de fugir à lei da natureza prescreviase aos homens a tarefa de elevar seu próprio nível de inanição E no entanto estas eram sem dúvida tentativas sinceras por parte dos economistas clássicos para salvar os pobres de um destino que as suas próprias teorias ajudaram a preparar para eles O caso de Ricardo a própria teoria incluía um elemento que contrabalançava o rígido naturalismo Esse elemento que permeava todo o seu sistema e se assentava firmemente em sua teoria de valor era o princípio do trabalho Ele completará o que Locke e Smith haviam começado a humanização do valor econômico aquilo que os fisiocratas haviam creditado à natureza Ricardo reclamava para o homem Num teorema equivocado de alcance tremendo ele investiu o trabalho com a capacidade única de constituir valor reduzindo assim todas as transações concebíveis na sociedade econômica ao princípio da troca igual numa sociedade de homens livres Dentro do próprio sistema de Ricardo coexistiam os fatores naturalista e humanista que lutavam pela supremacia na sociedade econômica A dinâmica dessa situação foi de um poder esmagador e como seu resultado a indução para um mercado competitivo adquiriu o ímpeto irresistivel de um processo da natureza Acreditavase que o mercado autoregulável provinha das leis inexoráveis da natureza e que o mercado se desprenderia como uma necessidade inelutável A criação de um mercado de trabalho foi um ato de vivissecção executado no corpo da sociedade por aqueles que já estavam fortalecidos na sua tarefa pela segurança que apenas a ciência podia oferecer O fato de a Poor Law ter que desaparecer era parte dessa certeza O princípio da gravidade não é mais certo do que a tendência de tais leis de mudar a riqueza e o vigor em miséria e fraqueza até que finalmente todas as classes sejam infectadas pela praga da pobreza universal escreveu Ricardo12 Ele seria com efeito um covarde moral se sabendo disto deixasse de encontrar forças para salvar a humanidade de si mesma através da cruel operação da abolição da assistência social aos pobres Sobre este ponto havia o consenso geral de Townsend Malthus e Ricardo Bentham e Burke Por mais diametralmente que diferissem em método e perspectiva eles concordavam na oposição aos princípios da economia política e à Speenhamland O que fez do liberalismo 12 Ricardo D Principles of Political Economy and Taxation ed Gonner 1929 p86 155 econômico uma força irresistível foi essa congruência de opiniões entre perspectivas diametralmente opostas Aquilo que o ultrareformador Bentham e O ultratradicionalista Burke aprovavam igualmente assumia automaticamente o caráter de autoevidência Apenas um homem percebeu o significado da provação talvez porque entre os espíritos dominantes da época somente ele possuía um íntimo conhecimento prático da indústria e também estava aberto a uma visão anterior Nenhum pensador chegou tão longe quanto Robert Owen no reino da sociedade industrial Ele tinha profunda consciência da distinção entre sociedade e estado embora não tivesse qualquer preconceito contra esse último como ocorreria com Godwin ele via o estado apenas por aquilo que ele podia executar uma intervenção que afastasse da comunidade qualquer perigo mas não enfaticamente para a organização da sociedade Da mesma forma ele não nutria qualquer animosidade contra a máquina cujo caráter neutro ele reconhecia Nem o mecanismo político do estado nem o aparato tecnológico da máquina esconderam dele o fenômeno a sociedade Ele rejeitava a abordagem anirnalista da sociedade refutando suas limitações malthusianas e ricardianas O fulcro de seu pensamento porém foi o seu afastamento do Cristianismo a quem ele acusava de individualização ou de fixar no próprio indivíduo a responsabilidade pelo caráter negando assim segundo Owen a realidade da sociedade e sua influência formativa e todopoderosa sobre o caráter O verdadeiro significado do ataque à individualização estava na sua insistência sobre a origem social das motivações humanas O homem individualizado e tudo o que o Cristianismo realmente valoriza estão tão separados que são inteiramente incapazes de se unirem por toda a eternidade Foi a descoberta da sociedade que fez Owen transcender o Cristianismo e atingir uma posição além dele Ele apreendeu a verdade de que uma vez que a sociedade é real o homem deve se submeter a ela em última instância Podese dizer que o seu socialismo se baseava numa reforma da consciência humana a ser atingida pelo reconhecimento da realidade da sociedade Se qualquer das causas do mal não puder ser removida pelos novos poderes que os homens estão a ponto de adquirir escreveu ele eles saberão que tais males são necessários e inevitáveis e cessarão de fazer queixas infantis e inúteis Owen pode ter abrigado uma noção exagerada desses poderes pois do contrário ele dificilmente poderia ter sugerido aos magistrados do Condado de Lanark que a sociedade deveria começar novamente e incontinenti a partir do núcleo de sociedade que ele havia descoberto 156 nas suas comunidades aldeãs Um tal fluxo de imaginação é privilégio do gênio sem o qual a humanidade poderia não existir pela falta de compreensão que ela tem de si mesma Mais significativa ainda foi a irremovível fronteira de liberdade para a qual ele apontava e que era estipulada pelos limites necessários da ausência do mal na sociedade Owen sentia porém que essa fronteira só se tornaria aparente quando o homem transformasse a sociedade com a ajuda dos novos poderes que adquirira O homem teria então que aceitar essa fronteira com o espírito de maturidade que não conhece queixas infantis Robert Owen em 1817 descreveu o caminho no qual penetrara o homem ocidental e suas palavras resumiam o problema do século vindouro Ele apontou as importantes conseqüências que decorrem das manufaturas deixadas a seu progresso natural A difusão geral das manufaturas através de um país gera um novo caráter em seus habitantes Como esse caráter se forma à base de um princípio bastante desfavorável à felicidade individual ou geral ele produzirá os males mais lamentáveis e permanentes a não ser que sua tendência seja contrabalançada pela interferência e direção legislativa A organização do total da sociedade sob o princípio do ganho e do lucro deveria ter resultados de longo alcance Ele formulou esses resultados em termos de caráter humano O efeito mais óbvio do novo sistema institucional era sem dúvida a destruição do caráter tradicional das populações organizadas e sua transmutação em um novo tipo de gente migratório nômade carente de autorespeito e disciplina seres rudes e brutais dos quais eram exemplo tanto o trabalhador como o capitalista Ele prosseguiu com a generalização de que o princípio envolvido era desfavorável à felicidade individual e social Dessa maneira graves males seriam produzidos a menos que as tendências inerentes às instituições de mercado fossem contidas por uma direção social consciente efetivada através da legislação É verdade que a condição dos trabalhadores que ele deplorava decorria parcialmente do sistema de abonos Mas na sua essência o que ele observava era verdadeiro tanto em relação aos trabalhadores da cidade como das aldeias isto é que eles estão agora numa situação infinitamente mais degradante e miserável do que antes da introdução dessas manufaturas de cujo sucesso depende agora a sua mera subsistência Mais uma vez ele atinge aqui o fundo da questão enfatizando não os rendimentos mas a degradação e a miséria Como causa primeira dessa degradação ele aponta mais uma vez corretamente a dependência à fábrica para a mera subsistência Ele apreendeu o fato de que o que parecia basicamente um problema econômico era essencialmente um problema social É claro que 157 o trabalhador era explorado em termos econômicos ele não recebia em troca aquilo que lhe era devido Todavia por mais importante que isto fosse não era tudo A despeito da exploração financeiramente ele estava melhor do que antes Mas um princípio bastante desfavorável à felicidade individual e geral trabalhava na destruição de seu ambiente social sua vizinhança sua posição na comunidade sua profissão numa palavra de todas aquelas relações com a natureza e o homem na qual estava embutida a sua existência econômica anterior A Revolução Industrial estava causando uma desarticulação social de estupendas proporções e o problema da probreza era apenas o aspecto econômico desse acontecimento Owen afirmou com muita justeza que a menos que a interferência e a direção legislativas contrabalançassem essas forças devastadoras ocorreriam grandes e permanentes males Nessa ocasião ele não previa que a autoproteção da sociedade pela qual ele clamava provaria ser incompatível com o funcionamento do próprio sistema econômico 158 FOLHA EM BRANCO 159 II AUTOPROTEÇÃO DA SOCIEDADE 160 FOLHA EM BRANCO 161 11 HOMEM NATUREZA E ORGANIZAÇÃO PRODUTIVA Durante um século a dinâmica da sociedade moderna foi governada por um duplo movimento o mercado se expandia continuamente mas esse movimento era enfrentado por um contramovimento que cercava essa expansão em direções definidas Embora tal contramovimento fosse vital para a proteção da sociedade ele era em última análise incompatível com a autoregulação do mercado e portanto com o próprio sistema de mercado Esse sistema se desenvolveu aos saltos engolfou espaço e tempo e criando o dinheiro bancário produziu uma dinâmica até então desconhecida Quando alcançou ua extensão máxima em torno de 1914 ele compreendia cada uma das partes do globo terrestre todos os seus habitantes e as gerações ainda não nascidas pessoas físicas e imensos corpos fictícios chamados corporações Um novo tipo de vida se difundiu sobre o planeta reivindicando uma universalidade sem paralelo desde a época em que o Cristianismo começou sua carreira só que agora o movimento era num nível puramente material Simultaneamente porém ocorreu um contramovimento e ele foi mais do que o costumeiro comportamento defensivo de uma sociedade que enfrenta mudanças Foi uma reação contra um transtorno que atacava o tecido da sociedade e que teria destruído a própria organização da produção a que mercado dera vida A perspicácia de Robert Owen provou ser verdadeira se se deixasse a economia de mercado desenvolverse de acordo com as suas próprias leis ela criaria grandes e permanentes males 162 A produção é a interação do homem e da natureza Se este processo se organizar através de um mecanismo autoregulador de permuta e troca então o homem e a natureza têm que ingressar na sua órbita têm que se sujeitar à oferta e à procura isto é eles passam a ser manuseados como mercadorias como bens produzidos para venda Foi este precisamente o ajuste que ocorreu sob o sistema de mercado O homem sob o nome de mãodeobra e a natureza sob o nome de terra foram colocados à venda A utilização da força de trabalho podia ser comprada e vendida universalmente a um preço chamado salário e o uso da terra podia ser negociado a um preço chamado aluguel Havia um mercado tanto para o trabalho como para a terra e em ambos os casos a oferta e a procura eram reguladas respectivamente pelo nível de salários e aluguéis A ficção de que o trabalho e a terra eram produzidos para a venda conservou a sua solidez O capital investido nas várias combinações de trabalho e terra podiam fluir assim de um ramo de produção para outro conforme exigido pelo nivelamento automático dos vencimentos nos vários ramos Todavia enquanto a produção teoricamente podia ser organizada dessa forma a ficção da mercadoria menosprezou o fato de que deixar o destino do solo e das pessoas por conta do mercado seria o mesmo que aniquilálost Assim o contramovimento se propunha a enfrentar a ação do mercado em relação aos fatores de produção trabalho e terra Foi esta a função principal do intervencionisrno A organização produtiva também se viu ameaçada do mesmo ângulo perigo se abatia sobre a empresa individual industrial agrícola ou comercial na medida em que ela era afetada pelas mudanças no nível de preço Sob um sistema de mercado se os preços caíssem o negócio era prejudicado a menos que todos os elementos de custo caíssem proporcionalmente empresas atuantes eram forçadas a liquidar embora a queda nos preços pudesse ocorrer não por uma queda geral nos custos mas apenas pela maneira como se organizava o sistema monetário Como veremos era isto o que ocorria de fato sob um mercado autoregulável Em princípio o poder de compra é provido e regulado aqui pela ação do próprio mercado é este o significado quando afirmamos que o dinheiro é uma mercadoria cuja quantidade é controlada pela oferta e procura de bens que funcionam como dinheiro a bem conhecida teoria clássica do dinheiro De acordo com essa doutrina o dinheiro é apenas um outro nome para uma mercadoria usada na troca com mais freqüência que outra e que portanto é adquirida principalmente a fim 163 de facilitar a troca É imaterial se se usam peles bois conchas ou ouro com esta finalidade o valor dos objetivos que funcionam como dinheiro é determinado como se eles fossem procurados apenas pela sua utilidade em relação à nutrição vestuário ornamentos ou outros propósitos Se por acaso é o ouro que é usado como dinheiro seu valor quantidade e movimentos são governados exatamente pelas mesmas leis que se aplicam a outras mercadorias Qualquer outro meio de troca envolveria a criação de moeda circulante fora do mercado e o ato da sua criação seja através de bancos ou governos constituiria uma interferência na autoregulação do mercado O ponto crucial é que os bens usados como dinheiro não são diferentes de outras mercadorias que sua oferta e procura é regulada pelo mercado como a de qualquer mercadoria e que portanto são inerentemente falsas todas as noções que conferem ao dinheiro qualquer outro caráter que não o de uma mercadoria usada como meio de troca indireta Seguese daí que se o ouro é usado como dinheiro as notas de banco se existem devem representar ouro Foi por sua concordância com essa doutrina que a escola ricardiana se propôs a organizar o fornecimento da moeda circulante por intermédio do Banco da Inglaterra De fato não era concebível qualquer outro método para impedir o estado de interferir no sistema monetário e assim resguardar a autoregulação do mercado Existia portanto em relação aos negócios uma situação muito semelhante à que dizia respeito à substância natural e humana da sociedade O mercado autoregulável era uma ameaça a todos eles e por razões basicamente similares Se a legislação fabril e as leis sociais eram exigidas para proteger o homem industrial das implicações da ficção da mercadoria em relação à força de trabalho se leis para a terra e tarifas agrárias eram criadas pela necessidade de proteger os recursos naturais e a cultura do campo contra as implicações da ficção de mercadoria em relação a eles era também verdade que se faziam necessários bancos centrais e a gestão do sistema monetário para manter as manufaturas e outras empresas produtivas a salvo do perigo que envolvia a ficção da mercadoria aplicada ao dinheiro Por mais paradoxal que pareça não eram apenas os seres humanos e os recursos naturais que tinham que ser protegidos contra os efeitos devastadores de um mercado autoregulável mas também a própria organização da produção capitalista Voltemos agora àquilo que chamamos de duplo movimento Ele pode ser personificado como a ação de dois princípios organizadores da sociedade cada um deles determinando seus objetivos institucionais específicos com o apoio de forças sociais definidas e utilizando diferentes 164 métodos próprios Um foi o princípio do liberalismo econômico que objetivava estabelecer um mercado autoregulável dependia do apoio das classes comerciais e usava principalmente o laissezfaire e o livre comércio como seus métodos O outro foi o princípio da proteção social cuja finalidade era preservar o homem e a natureza além da organização produtiva e que dependia do apoio daqueles mais imediatamente afetados pela ação deletéria do mercado básica mas não exclusivamente as classes trabalhadoras e fundiárias e que utilizava uma legislação protetora associações restritivas e outros instrumentos de intervenção como seus métodos A ênfase sobre a classe é importante Os serviços prestados à sociedade pelas classes fundiária média e trabalhadora modelaram toda a história social do século XIX Esse papel lhes foi atribuído pelo fato de estarem aptas a desempenhar várias funções decorrentes da situação global da sociedade As classes médias foram as condutoras da nascente economia de mercado seus interesses comerciais como um todo eram paralelos ao interesse geral quanto à produção e ao emprego Se os negócios progrediam havia oportunidade de empregos para todos e de aluguéis para os proprietários se os mercados se expandiam podia se investir livremente se a comunidade comercial tinha sucesso ao competir com a estrangeira a moeda circulante estava segura Por outro lado as classes comerciais não tinham um órgão que pressentisse os perigos acarretados pela exploração da força física do trabalhador a destruição da vida familiar a devastação das cercanias o desnudamento das florestas a poluição dos rios a deterioração dos padrões profissionais a desorganização dos costumes tradicionais e a degradação geral da existência inclusive a habitação e as artes assim como as inumeráveis formas de vida privada e pública que não afetam os lucros As classes médias cumpriram a sua função desenvolvendo uma crença quase sacramental na beneficência universal dos lucros embora isto as desqualificasse como mantenedoras de outros interesses tão vitais para um bom padrão de vida como o incremento da produção Surgiu assim uma oportunidade para aquelas classes que não se ocupavam em aplicar à produção máquinas dispendiosas complicadas ou especializadas Em resumo recaiu sobre a aristocracia fundiária e o campesinato a tarefa de resguardar as qualidades marciais da nação que em grande parte continuava a depender dos homens e do solo O povo trabalhador numa extensão maior ou menor tornouse representante dos interesses humanos comuns que estavam ao desamparo Cada classe 165 social porém mesmo inconscientemente representou numa ou noutra ocasião interesses mais amplos que os seus próprios Na virada do século XIX o sufrágio universal já tinha agora uma abrangência bastante ampla a classe trabalhadora era um fator de influência no estado Por outro lado as classes comerciais cujo domínio sobre a legislatura começava a ser desafiado tomaram consciência do poder político que a sua liderança na indústria abrangia Essa localização peculiar da influência e do poder não causou problema enquanto o sistema de mercado continuou a funcionar sem grande pressão e esforço Quando porém por razões intrínsecas isto já não mais ocorria e começaram a surgir tensões entre as classes sociais a própria sociedade se viu em perigo pelo fato de as partes rivais fazerem do governo e dos negócios do estado e da indústria respectivamente os seus baluartes Duas funções vitais da sociedade a política e a econômica estavam sendo usadas e abusadas como armas em uma luta por interesses seccionais A crise fascista do século XX teve origem justamente nesse perigoso impasse É a partir desses dois ângulos portanto que pretendemos esboçar o movimento que modelou a história social do século XIX Um se originou do choque entre os princípios organizadores do liberalismo econômico e a proteção social que levou a uma tensão institucional profundamente arraigada O outro surgiu do conflito de classes que interagindo com o primeiro transformou a crise numa catástrofe 166 12 O NASCIMENTO DO CREDO LIBERAL O liberalismo econômico foi o princípio organizador de uma sociedade engajada na criação de um sistema de mercado Nascido como mera propensão em favor de métodos nãoburocráticos ele evoluiu para uma fé verdadeira na salvação secular do homem através de um mercado autoregulável Um tal fanatismo resultou do súbito agravamento da tarefa pela qual ele se responsabilizara a magnitude dos sofrimentos a serem infligidos a pessoas inocentes assim como o amplo alcance das mudanças entrelaçadas que a organização da nova ordem envolvia O credo liberal só assumiu seu fervor evangélico em resposta às necessidades de uma economia de mercado plenamente desenvolvida Seria inteiramente ahistórico antecipar a política do laissezfaire para a época em que essa palavrachave foi usada pela primeira vez na França em meados do século XVIII como ocorre com freqüência Podese dizer com segurança que o liberalismo econômico não era mais que uma tendência espasmódica até duas gerações mais tarde Foi somente nos anos 1820 que ele passou a representar os três dogmas clássicos o trabalho deveria encontrar seu preço no mercado a criação do dinheiro deveria sujeitar se a um mecanismo automático os bens deveriam ser livres para fluir de país a país sem empecilhos ou privilégios Em resumo um mercado de trabalho o padrãoouro e o livrecomércio Estaríamos bem próximos do fantástico se quiséssemos dar a François Quesnay o crédito de ter sequer considerado um tal estado de coisas Tudo o que os fisiocratas exigiam num mundo mercantilista era 167 a livre exportação de cereais para garantir rendas melhores para os fazendeiros posseiros e senhores de terra Para os demais a sua ordre naturel nada mais era do que um princípio diretivo para a regulação da indústria e da agricultura por parte de um governo supostamente todo poderoso e onisciente As Maximes de Quesnay pretendiam fornecer a esse governo os pontos de vista necessários para transformar em prática política os princípios do Tableau à base dos dados estatísticos que ele se comprometia a suprir periodicamente A idéia de um sistema de mercados autoreguláveis jamais sequer penetrara a sua mente Na Inglaterra o laissezfaire também foi interpretado de forma muito estreita ele significava apenas libertarse das regulamentações da produção e o comércio não estava incluído As manufaturas de algodão a maravilha da época haviam crescido da insignificância para a principal indústria de exportação do país e no entanto a importação de algodões estampados continuava a ser proibida por um estatuto indiscutível Não obstante o monopólio tradicional do mercado interno conseguiuse uma subvenção de exportação para o morim e a musselina O protecionismo estava tão entranhado que os fabricantes de algodão de Manchester em 1800 exigiram a proibição da exportação do fio embora tivessem consciência do fato de que isso significava perda de negócio para eles Um decreto promulgado em 1791 estendeu as penalidades que incidiam sobre a exportação de ferramentas usadas na manufatura dos tecidos de algodão à exportação de modelos ou especificações As origens do livre comércio da indústria do algodão são realmente um mito A indústria só queria libertarse da regulamentação na esfera da produção pois a liberdade na esfera da troca ainda era considerada um perigo Poderseia supor que a liberdade da produção se difundiria naturalmente do campo puramente tecnológico para o do emprego da mãodeobra porém só comparativamente mais tarde foi que Manchester começou a exigir um trabalho livre A indústria do algodão jamais fora sujeita ao Statute of Artificers e conseqüentemente não se via tolhida pelas avaliações anuais dos salários ou pelas regras do aprendizado Por outro lado a antiga Poor Law contra a qual os liberais de última hora objetavam tão fortemente era uma ajuda para os fabricantes Ela não só lhes fornecia os aprendizes da paróquia como lhes permitia ainda isentarse da responsabilidade para com os empregados demitidos jogando assim para os fundos públicos grande parte da carga do desemprego A princípio nem mesmo o sistema Speenhamland foi impopular junto aos fabricantes de algodão Enquanto o efeito moral dos abonos 168 não reduziu a capacidade produtiva do trabalhador a indústria podia até ver o abono familiar como uma ajuda para manter aquele exército de reserva de mãodeobra exigido com tanta premência para enfrentar as tremendas flutuações do comércio Numa época em que o emprego na agricultura ainda era em termos anuais tornavase muito importante existir um fundo de mãodeobra móvel à disposição da indústria nos períodos de expansão Daí os ataques dos fabricantes contra o Act of Settlement que impedia a mobilidade física da mãodeobra Todavia a abolição desse ato só ocorreu após 1795 mas apenas para ser substituído por um paternalismo maior e não menor em relação à Poor Law O pauperismo continuava a ser a preocupação do proprietário fundiário e do campo Até mesmo críticos acerbos da Speenhamland como Burke Bentham e Malthus viamse menos como representantes do progresso industrial do que como proponentes de princípios sólidos de administração rural Não foi senão nos anos 1830 que o liberalismo econômico explodiu como uma cruzada apaixonante e o laissezfaire se tornou um credo militante A classe manufatureira pressionava pela emenda da Poor Law uma vez que esta impedia a criação de uma classe trabalhadora industrial que só assim poderia conseguir uma renda própria Tornavase aparente agora a magnitude do empreendimento que significava a criação de um mercado de trabalho livre bem como a extensão da miséria a ser infligi da às vítimas do progresso Assim já no início da década de 1830 era visível um clima de mudança acentuada Uma reedição da Dissertation de Townsend em 1817 continha um prefácio elogiando a previsão do autor em relação às Poor Laws e exigindo seu completo abandono Os editores alertavam porém contra a sugestão impetuosa e precipitada do autor de que a assitência social externa aos pobres fosse abolida no curto período de dez anos Os Principies de Ricardo que apareceram no mesmo ano insistiam na necessidade de abolir o sistema de abonos mas recomendava também que isto só fosse feito muito gradualmente Pitt um discípulo de Adam Smith havia rejeitado essa sugestão alegando que ela implicaria em sofrimento para inocentes Já em 1829 Peel ainda duvidava se o sistema de abonos poderia ser removido com segurança a não ser de forma gradual1 Entretanto após a vitória política da classe média em 1832 a Poor Law Amendment Bill foi posta em prática na forma mais extremada 1 Webb S e B op cit 169 e sem que houvesse qualquer período de espera O laissezfaire havia sido catalisado num impulso de intransigente ferocidade Incitado pelo liberalismo econômico que mudou de um interesse acadêmico para um ativismo ilimitado algo semelhante ocorreu em duas outras áreas da organização industrial meio circulante e comércio O laissezfaire se transformou num credo fervoroso em relação a essas duas áreas quando se tornou aparente a inutilidade de qualquer outra solução que não a mais extremada O tema do meio circulante chegou à atenção da comunidade inglesa primeiro sob a forma de um aumento geral no custo de vida Os preços duplicaram entre 1790 e 1815 Os salários reais caíram e os negócios foram atingidos por uma queda brusca no câmbio exterior Entretanto só depois do pânico de 1825 é que o meio circulante sólido se tornou um dogma do liberalismo econômico i e só quando os princípios ricardianos se arraigaram profundamente na mentalidade tanto dos políticos quanto dos homens de negócios é que se manteve o padrão a despeito da quantidade enorme de vítimas financeiras Isto marcou o início daquela crença inabalável no mecanismo automático da orientação do padrãoouro sem o qual o sistema de mercado jamais poderia ter entrado em funcionamento O comércio livre internacional envolvia também um mesmo ato de fé Suas implicações eram extremamente extravagantes Ele significava que a Inglaterra dependeria de fontes externas para seu abastecimento alimentar que ela sacrificaria sua agricultura se necessário para ingressar em uma nova forma de vida na qual ela seria parte integrante de uma unidade mundial do futuro vagamente concebida que essa comunidade planetária teria que ser pacífica pois do contrário ela seria tornada segura para a GrãBretanha pelo poder da sua marinha e que a nação inglesa enfrentaria a perspectiva de deslocamentos industriais contínuos pela firme crença na sua capacidade superior inventiva e produtiva Entretanto acreditavase que os cereais do mundo inteiro pudessem fluir livremente para a GrãBretanha só então suas fábricas poderiam vender mais barato que todo mundo Assim mais uma vez a medida da determinação exigida foi estabelecida pela magnitude da proposta e pela vastidão dos riscos envolvidos na sua aceitação total pois uma aceitação menos global certamente significaria alguma ruína As fontes utópicas do dogma do laissezfaire não podem ser inteiramente compreendidas enquanto examinadas separadamente Os três pilares mercado de trabalho competitivo padrãoouro automático e comércio internacional livre formavam um todo Eram inútei ou 170 talvez pior os sacrifícios exigidos para atingir qualquer um deles a menos que os dois outros fossem igualmente garantidos Era tudo ou nada Qualquer um podia ver que o padrãoouro por exemplo significava risco de uma deflação mortal e talvez uma fatal rigidez monetária num pânico Assim o fabricante só poderia manterse se lhe fosse assegurada uma escala progressiva da produção a preços remunerados em outras palavras somente se os salários caíssem pelo menos em proporção à queda geral dos preços de forma a permitir a exploração de um mercado mundial em expansão A AntiCorn Law Bill de 1846 foi o corolário do Bank Act de 1844 de Peel e ambos presumiam a existência de uma classe trabalhadora a qual desde a Poor Law Amendment Act de 1834 havia sido forçada a dar o melhor de si sob a ameaça da fome de forma que os salários eram regulados pelo preço do cereal As três grandes medidas formaram um todo coerente O alcance global do liberalismo econômico pode ser visto agora de um relance Nada menos do que um mercado autoregulável em escala mundial poderia assegurar o funcionamento desse mecanismo estupendo A menos que o preço do trabalho dependesse do cereal mais barato disponível não havia garantia para as indústrias não protegidas de que elas não sucumbiriam sob o guante do senhor voluntariamente aceito o ouro A expansão do sistema de mercado no século XIX foi sinônimo do comércio livre internacional do mercado de trabalho competitivo e do padrãoouro eles formavam um conjunto Não é de admirar que o liberalismo econômico tenha se transformado numa religião secular depois que se tornaram evidentes os grandes riscos desse empreendimento Não havia nada natural em relação ao laissezfaire os mercados livres jamais poderiam funcionar deixando apenas que as coisas seguissem o seu curso Assim como as manufaturas de algodão a indústria mais importante do livre comércio foram criadas com a ação de tarifas protetoras de exportações subvencionadas e de subsídios indiretos dos salários o próprio laissezfaire foi imposto pelo estado As décadas de 1930 e 1940 presenciaram não apenas uma explosão legislativa que repelia as regulamentações restritivas mas também um aumento enorme das funções administrativas do estado dotado agora de uma burocracia central capaz de executar as tarefas estabelecidas pelos adeptos do liberalismo Para o utilitarista típico o liberalismo econômico era um projeto social que deveria ser posto em prática para grande felicidade do maior número de pessoas o laissezfaire não era o método 171 para atingir alguma coisa era a coisa a ser atingida É verdade que a legislação nada podia fazer diretamente a não ser abolir as restrições prejudiciais mas isto não significava que o governo não podia fazer alguma coisa ainda que indiretamente Pelo contrário o liberal utilitarista via no governo o grande agente para atingir a felicidade Em relação ao bemestar material acreditava Bentham a influência da legislação não é nada se comparada à contribuição inconsciente do ministro da polícia Das três coisas necessárias para o sucesso econômico inclinação conhecimento e poder a pessoa privada possuía apenas a inclinação O conhecimento e o poder ensinava Bentham podem ser administrados pelo governo de forma muito mais barata do que através de pessoas privadas Era tarefa do executivo coletar estatísticas e informações patrocinar as ciências e as experiências assim como fornecer os inúmeros instrumentos de realização final no campo do governo O liberalismo benthamita significava a substituição da ação parlamentar pela ação dos órgãos administrativos Havia muito campo para isto Na Inglaterra a reação não governara como na França através de métodos administrativos mas utilizara exclusivamente a legislação parlamentar para fazer funcionar a repressão política Os movimentos revolucionários de 1785 e de 18151820 foram combatidos não por uma ação departamental mas pela legislação parlamentar A suspensão do Habeas Corpus Act Lei do Habeas Corpus a votação do Libel Act Lei do Libelo e do Six Acts Seis Leis de 1819 foram medidas severamente coersivas mas elas não comprovam qualquer tentativa de dar um caráter continental à administração Na medida em que a liberdade individual foi destruída ela o foi através de e de acordo com os atos do parlamento2 Os liberais econômicos ainda não haviam adquirido qualquer influência no governo em 1832 quando a posição mudou completamente em favor dos métodos administrativos O resultado líquido da atividade legislativa que caracterizou o período desde 1832 embora com diferentes graus de intensidade foi a construção fragmentária de uma máquina administrativa de grande complexidade que exige a necessidade constante de reparos renovações reconstruções e adaptações a novas exigências da mesma forma que uma fábrica numa manufatura moderna3 Esse crescimento da administração refletia 2 Redlich e Hist J Local Government in England vol II p 240 itando Dicey A V Law and Opinion in England p 305 3 Ilbert Legislative Methods pp 2123 citando Dicey A V op cit 172 o espírito do utilitarismo O fabuloso Panopticon de Bentham sua utopia mais pessoal era um edifício em formato de estrela e da sua parte central os guardas de prisão podiam exercer a mais efetiva supervisão sobre o maior número de prisioneiros com o menor custo para o público De forma similar no estado utilitarista o seu princípio favorito de inspeção assegurava que o ministro no cargo mais alto devia manter um controle efetivo sobre toda a administração local O caminho para o mercado livre estava aberto e se mantinha aberto através do incremento de um intervencionismo contínuo controlado e organizado de forma centralizada Tornar a liberdade simples e natural de Adam Smith compatível com as necessidades de uma sociedade humana era tarefa assaz complicada Vejam a complexidade das cláusulas nas inumeráveis leis do cercamento o total de controle burocrático inserido na administração das New Poor Laws que pela primeira vez desde o reinado da Rainha Elisabeth eram supervisionadas efetivamente por uma autoridade central ou o aumento da administração governamental inserido na tarefa meritória da reforma municipal Todos esses baluartes da interferência governamental no entanto foram criados com a finalidade de organizar uma simples liberdade a da terra do trabalho e da administração municipal Assim como contrariando as expectativas a invenção da maquinaria que economizaria trabalho não diminuíra mas na verdade aumentara a utilização do trabalho humano a introdução dos mercados livres longe de abolir a necessidade de controle regulamentação e intervenção incrementou enormemente o seu alcance Os administradores tinham que estar sempre alertas para garantir o funcionamento livre do sistema Assim mesmo aqueles que desejavam ardentemente libertar o estado de todos os deveres desnecessários e cuja filosofia global exigia a restrição das atividades do estado não tinham outra alternativa senão confiar a esse mesmo estado os novos poderes órgãos e instrumentos exigidos para o estabelecimento do laissezfaire Esse paradoxo foi sobrepujado por um outro Enquanto a economia laissezjaire foi o produto da ação deliberada do estado as restrições subseqüentes ao laissezfaire se iniciaram de maneira espontânea O laissezfaire foi planejado o planejamento não A primeira metade desta afirmativa é verdadeira como mostramos acima Se alguma vez já se fez uso consciente do executivo a serviço de uma política deliberadamente controlada pelo governo isto ocorreu com os benthamitas no período heróico do laissezfaire A outra metade foi posta em debate em primeiro lugar pelo eminente liberal Dicey que tomou a si a tarefa de inquirir 173 as origens do antiIaissezfaire ou como ele a chamava a tendência coletivista da opinião pública inglesa cuja existência era manifesta desde o final da década de 1860 Ele ficou surpreso de não encontrar qualquer prova dessa tendência a não ser nos práprios decretos legislativos Falando com mais exatidão nenhuma prova de uma tendência coletivista na opinião pública pôde ser encontrada anterior às leis que pareciam representar tal tendência Quanto à opinião coletivista posterior Dicey inferiu que a própria legislação coletivista poderia ter sido a sua fonte primordial Com essa sagaz investigação ele constatou a ausência total de qualquer intenção deliberada de ampliar as funções do estado ou restringir a liberdade do indivíduo por parte daqueles diretamente responsáveis pelas legislações restritivas das décadas de 1870 e 1880 A pontadelança legislativa do contramovimento que se opôs ao mercado autoregulável conforme se desenvolveu na metade do século após 1860 revelouse espontânea não dirigida pela opinião e induzida por um espírito puramente pragmático Os liberais econômicos certamente não partilham essa opinião Toda a sua filosofia social gira em torno da idéia de que la issezfaire foi um desenvolvimento natural enquanto a legislação antiIaissezfaire subseqüente foi o resultado de uma ação propositada por parte dos que se opunham aos princípios liberais Não seria demais dizer que nessas duas interpretações mutuamente exclusivas do duplo movimento ainda se envolve hoje em dia a verdade ou inverdade da posição liberal Autores liberais como Spencer e Sumner Mises e Lippmann nos oferecem um relato desse duplo movimento bastante similar ao nosso mas lhe dão uma interpretação inteiramente diferente Enquanto em nossa opinião o conceito de um mercado auto regulável era utópico e seu progresso foi obstruído pela autoproteção realista da sociedade na perspectiva deles todo o protecionsimo foi um erro resultante da impaciência ambição e estreiteza de visão e sem elas o mercado teria resolvido suas dificuldades Resolver qual dessas duas perspectivas é a correta é talvez o problema mais importante da história social recente uma vez que ela envolve nada menos que uma decisão quanto à alegação do liberalismo econômico de ser o princípio básico organizador da sociedade Antes de nos voltarmos para o testemunho dos fatos é necessária uma formulação mais precisa do tema Em retrospecto nossa época terá o crédito de ter visto o fim do mercado auto regulável A década de 1920 viu o prestígio do liberalismo econômico no seu apogeu Centenas de milhões de pessoas haviam sido afetadas pelo flagelo da inflação classes sociais inteiras 174 naçõe inteiras haviam sido espoliadas A estabilização da moeda se tomara o ponto focal no pensamento político de povos e governos a restauração do padrãoouro era o objetivo supremo de todo o esforço organizado na área econômica O pagamento dos empréstimos externo e o retorno às moedas estáveis eram reconhecidos como as pedras de toque da racionalidade política Nenhum sofrimento particular nenhuma violação de soberania era considerada um sacrifício demaziado grande para a recuperação da integridade monetária As privações dos desempregados sem emprego devido à deflação a demissão de funcionários públicos afastados sem uma pensão até mesmo o abandono dos direitos nacionais e a perda das liberdades constitucionais eram considerados um preço justo a pagar pelo cumprimento da exigência de orçamentos estáveis e moedas sólidas estes a priori do liberalismo econômico A década de 1930 viu as proposições absolutas de década de 1920 serem questionadas Após vários anos durante os quais as moedas foram praticamente restauradas e os orçamentos equilibrados os dois países mais poderosos GrãBretanha e Estados Unidos encontraramse em dificuldades abandonaram o padrãoouro e começaram a dirigir suas próprias moedas As dívidas internacionais eram repudiadas integralmente e os pilares do liberalismo econômico eram abandonados pelos mais ricos e mais respeitáveis Em meados da década de 1930 a França e alguns outros países que ainda aderiam ao ouro foram forçados a abandonar esse padrão pelos Tesouros da GrãBretanha e dos Estados Unidos anteriormente os zelosos guardiães do credo liberal Na década de 1940 o liberalismo econômico sofreu uma derrota ainda maior Embora a GrãBretanha e os Estados Unidos tivessem abandonado a ortodoxia monetária eles ainda guardavam os princípios e os métodos do liberalismo na indústria e no comércio na organização geral da sua vida econômica Isto provaria ser um fator na precipitação da guerra e uma desvantagem em combatêIa pois o liberalismo econômico havia criado e alimentado a ilusão de que as ditaduras só podiam resultar em catástrofe econômica Em razão desse credo os governos democráticos foram os últimos a compreender as implicações das moedas administradas e do comércio dirigido mesmo quando eram eles mesmos que utilizavam esses métodos por força das circunstâncias O legado do liberalismo econômico também impedia o caminho para um rearmamento oportuno em nome dos orçamentos equilibrados e da livre empresa que se imaginava serem os fornecedores dos únicos fundamentos seguros da força econômica na guerra Na Grã 175 Bretanha a ortodoxia orçamentária e monetária levou um país que enfrentava realmente uma guerra total a aderir ao princípio estratégico tradicional de compromissos limitados Nos Estados Unidos os interesses investidos tais como petróleo e alumínio se entrincheiraram por trás dos tabus do negócio liberal e resistiram com sucesso aos preparativos de uma emergência industrial Não fosse a insistência teimosa e apaixonante dos liberais econômicos em relação às suas falácias os líderes da raça assim como as massas de homens livres estariam mais bem equipados para enfrentar a tragédia da época e talvez pudessem até evitáIa Os dogmas seculares de uma organização social que inclui todo o mundo civilizado não são derrubados pelos acontecimentos de apenas uma década Tanto na GrãBretanha como nos Estados Unidos milhões de unidades de negócios independentes deviam sua existência aos princípios do laissezfaire e o fracasso espetacular em uma determinada área não destruiu sua autoridade em todas elas Na verdade o seu eclipse parcial pode até ter fortalecido a sua influência uma vez que permitiu a seus defensores argumentar que as razões de todas as dificuldades a ele atribuídas resultavam da aplicação incompleta dos seus princípios De fato este é o último argumento do liberalismo econômico que resta hoje em dia Seus defensores repetem com infindáveis variações que se não fossem as políticas apoiadas pelos seus críticos o liberalismo teria atingido a sua meta que não foram o sistema competitivo e o mercado autoregulável os responsáveis pelos nossos males e sim a interferência com esse sistema e as intervenções nesse mercado Esse argumento não encontra apoio apenas nas recentes e inumeráveis violações da liberdade econômica mas também no fato indubitável de que o movimento para difundir o sistema de mercados autoreguláveis foi enfrentado na segunda metade do século XIX por um contramovimento persistente que obstruiu o livre funcionamento de tal economia O liberal econômico está portanto em condições de formular um caso que liga o presente ao passado num todo coerente Quem iria negar que a intervenção governamental nos negócios pode minar a confiança Quem poderia negar que o desemprego talvez fosse menor se a lei não fornecesse benefícios aos sem trabalhoQue os negócio particulares são prejudicados pela competição de obras públicas Que o déficit financeiro pode ameaçar os investimentos privados Que o paternalismo tende a desalentar a iniciativa dos negócios Se isto acontece no presente certamente não era diferente no passado Em 1870 176 quando começou o movimento protecionista geral na Europa social e nacional quem poderá duvidar que ele dificultou e restringiu o comércio Quem poderá duvidar que as leis fabris o seguro social o comércio municipal os serviços de saúde de utilidade pública tarifas subvenções e subsídios cartéis e trustes embargos à emigração a movimentos de capital a importações para não falar de restrições menos claras a movimentos de homens bens e pagamentos devem ter atuado como tantos outros empecilhos para o funcionamento do sistema competitivo adiando as depressões nos negócios agravando o desemprego aprofundando os declínios financeiros diminuindo o comércio e danificando severamente o mecanismo autoregulador do mercado A raiz de todo mal insistem os liberais foi precisamente essa interferência com a liberdade de emprego comércio e moedas praticada pelas várias escolas de protecionismo social nacional e monopolista desde o terceiro quarto do século XIX Não fosse a aliança profana dos sindicatos profissionais e partidos trabalhistas com os fabricantes monopolistas e os interesses agrários que na sua ambição tacanha uniram forças para frustrar a liberdade econômica o mundo estaria gozando agora dos frutos de um sistema quase automático de criar bemestar material Os líderes liberais jamais se cansam de repetir que a tragédia do século XIX resultou da incapacidade do homem de permanecer fiel à inspiração dos primeiros liberais Que a generosa iniciativa de nossos ancestrais foi frustrada pelas paixões do nacionalismo e da luta de classes dos interesses investidos e dos monopolistas e acima de tudo pela cegueira do povo trabalhador em relação ao benefício final de uma liberdade econômica irrestrita para todos os interesses humanos inclusive os dele mesmo Alegase assim que um grande progresso intelectual e moral foi frustrado pela fraqueza intelectual e moral da massa do povo O que o espírito do Iluminismo havia alcançado fora derrotado pelas forças do egoísmo Em poucas palavras esta é a defesa do liberal econômico e a menos que ela seja refutada ele continuará a ser exibido na discussão dos argumentos Focalizemos o assunto Concordase que o movimento liberal preocupado em difundir o sistema de mercado foi enfrentado por um contramovimento protetor que se empenhava em restringilo Esse pressuposto está de fato implícito em nossa tese do duplo movimento Enquanto afirmamos porém que o absurdo inerente à idéia de um sistema de mercado autoregulável teria destruído a sociedade eventualmente o liberal acusa os elementos variados de haverem destruído 177 uma grande iniciativa Incapaz de acrescentar a prova de qualquer esforço conjunto para dissolver o movimento liberal ele recai na hipótese praticamente irrefutável da ação oculta Este é o mito da conspiração antiliberal que de uma forma ou outra é comum a todas as interpretações liberais dos acontecimentos das décadas de 1870 e 1880 A forma mais comum é atribuir ao nascimento do nacionalismo e do socialismo o crédito de agente principal nessa mudança de cenário as associações e os monopólios de fabricantes os interesses agrários e os sindicatos profissionais são os vilões da peça Assim na sua forma mais espiritualizada a doutrina liberal consubstancia o funcionamento de alguma lei dialética na sociedade moderna invalidando os empenhos da razão esclarecida enquanto na sua versão mais crua ela se reduz a um ataque à democracia política como fonte presumível do intervencionismo O testemunho dos fatos contradiz decisivamente a tese liberal A conspiração antiliberal é pura invenção A grande variedade de formas nas quais surgiu o contramovimento coletivista não foi devida a qualquer preferência pelo socialismo ou pelo nacionalismo por parte dos interesses envolvidos mas deveuse exclusivamente ao alcance mais amplo dos interesses sociais vitais afetados pela expansão do mecanismo de mercado Isto justifica as reações quase universais de caráter eminentemente prático convocadas pela expansão desse mecanismo Os modismos intelectuais não desempenharam qualquer papel nesse processo de fato não havia lugar para o preconceito que o liberal vê como força ideológica por trás do desenvolvimento antiliberal Embora seja verdade que as décadas de 1870 e 1880 viram o fim do liberalismo ortodoxo e que todos os problemas cruciais do presente têm sua raiz nesse período seria incorreto dizer que a mudança para um protecionismo social e nacional fosse devida a qualquer outra causa além da manifestação das fraquezas e perigos inerentes a um sistema de mercado antiregulável Isto pode ser demonstrado em mais de uma forma Primeiro existe a surpreendente diversidade dos assuntos em relação aos quais a ação se fez sentir Só isto excluiria a possibilidade de uma ação combinada Podemos citar exemplos a partir de uma lista de intervenções compilada por Herbert Spencer em 1884 quando acusou os liberais de terem desertado seus princípios em favor de uma legislção restritiva4 A variedade de assuntos não podia ser maior Em 1860 concedeu se permissão para que os analistas de alimentos e 4 Spencer H The Man vs the State 1884 178 bebidas fossem pagos através dos impostos locais a isto seguiuse um decreto autorizando a inspeção das obras de gás uma ampliação do Mines Act determinando penalidades para aqueles que empregassem meninos abaixo de doze anos que não freqüentassem escolas e que não soubessem ler e escrever Em 1861 foi autorizado aos guardiães da Poor Law tornar a vacinação obrigatória as juntas locais foram autorizadas a fixar taxas de aluguel para os meios de transporte alguns órgãos de formação local haviam assumido poderes para taxar a localidade por obras de drenagem e irrigação rural e para o fornecimento de água ao gado Em 1862 foi promulgado um decreto tornando ilegal uma mina de carvão com apenas um poço um decreto concedeu ao Council of Medical Education o direito exclusivo de suprir a farmacopéia cujo preço será fixado pelo Tesouro Spencer horrorizado prencheu diversas páginas com a enumeração destas e de outras medidas similares Em 1863 a vacina compulsória foi estendida à Escócia e à Irlanda Houve também um decreto nomeando inspetores para as condições de higiene dos alimentos um ChimneySweepers Act Decreto sobre Limpadores de Chaminés para impedir a tortura e a morte eventual de crianças que limpavam aberturas muito estreitas um Contagious Diseases Act Decreto sobre Moléstias Contagiosas um Public Libraries Act Decreto sobre Bibliotecas Públicas concedendo poderes locais pelos quais uma maioria pode taxar uma minoria pelos seus livros Spencer acrescentouos como outra prova irrefutável de uma conspiração antiliberal No entanto cada um desses decretos lidava com algum problema originado das modernas condições industriais e objetivava defender algum interesse público contra os perigos inerentes a tais condições ou pelo menos ao método do mercado de lidar com eles Para uma mente imparcial essas medidas comprovam a natureza puramente prática pragmática do contramovimento coletivista A maioria daqueles que punham em prática essas medidas eram partidários convictos do laissez faire e certamente não achavam que seu consentimento para a organização de um corpo de bombeiros em Londres implicasse um protesto contra os princípios do liberalismo econômico Pelo contrário os patrocinadores desses atos legislativos eram em regra oponentes intransigentes do socialismo ou de qualquer outra forma de coletivismo Segundo a mudança de soluções liberais para coletivistas ocorria às vezes da noite para o dia e sem qualquer conscientização por parte dos que se engajavam no processo de ruminação legislativa Dicey acrescentou ainda o exemplo clássico do Workmens Compensation 179 Act Decreto da Compensação do Trabalhador que tratava da responsabilidade dos empregadores pelos danos causados aos seus empregados durante o período do emprego A história dos vários decretos que incorporaram essa idéia desde 1880 demonstra a adesão total ao princípio individualista de que a responsabilidade do empregador para com seu empregado deveria ser regulamentada de maneira estritamente idêntica à do governo em relação aos outros ie aos estrangeiros Sem que ocorresse qualquer mudança de opinião em 1897 o empregador passou a ser subitamente o segurador dos seus trabalhadores contra qualquer dano ocorrido durante o seu tempo de empregado uma legislação perfeitamente coletivista conforme observou Dicey muito justamente Não se poderia acrescentar melhor prova de que não foi a mudança no tipo de interesses envolvidos ou a tendência das opiniões em relação ao assunto que levaram à substituição de um princípio liberal por um antiliberal e sim exclusivamente a evolução das condições sob as quais o problema surgiu e para o qual se buscou uma solução Terceiro existe a prova indireta mas bastante marcante que nos oferece a comparação do desenvolvimento de uma configuração política e ideológica bastante diferente em vários países A Inglaterra vitoriana e a Prússia de Bismarck eram pólos à parte e ambos eram muito diferentes da França da Terceira República ou do Império dos Habsburgs No entanto cada um deles passou por um período de livrecomércio e laissezfaire seguido por um período de legislação antiliberal em relação à saúde pública condições fabris comércio municipal seguro social subsídios de navegação utilidades públicas associações comerciais e assim por diante Seria fácil apresentar um calendário regular marcando os anos em que ocorreram tais mudanças análogas nos diversos países A compensação dos trabalhadores foi decretada na Inglaterra em 1880 e 1897 na Alemanha em 1879 na Áustria em 1887 na França em 1899 A inspeção das fábricas foi introduzida na Inglaterra em 1833 na Prússia em 1853 na Áustria em 1883 na França em 1874 e 1883 O comércio municipal inclusive a direção das utilidades públicas foi introduzido por Joseph Chamberlain um dissidente e um capitalista em Birrningham na década de 1870 na Viena imperial na década de 1890 pelo socialista católico perseguidor de judeus Karl Lueger e nas municipalidades alemãs e francesas através de uma série de coalizões locais As forças de apoio eram às vezes violentamente reacionárias e antisocialistas como em Viena outras vezes imperialistas radicais como em Birmingham ou tinham uma tonalidade puramente liberal como aconteceu com o francês Edouard 180 Herriot prefeito de Lyon Na Inglaterra protestante os gabinetes Conservador e Liberal agiam de forma intermitente para completar a legislação fabril Na Alemanha tanto os católicos romanos quanto os socialdemocratas tomaram parte na sua consecução na Áustria a Igreja e seus partidários mais ativos Na França os inimigos da Igreja e os clericais mais ardentes foram responsáveis pela promulgação de leis quase idênticas Assim sob os lemas mais variados com as motivações mais diferentes uma multidão de partidos e estratos sociais colocou em funcionamento medidas quase exatamente iguais numa série de países e em relação a um grande número de assuntos complicados Em face disto nada é mais absurdo do que inferir que eles eram secretamente impulsionados pelos mesmos preconceitos ideológicos ou restritos interesses de grupo como quer fazer crer a lenda da conspiração antiliberal Pelo contrário tudo parece confirmar o pressuposto de que foram razões objetivas de natureza premente que forçaram a atuação dos legisladores Quarto existe o fato significativo de que em várias ocasiões os projetos liberais econômicos defenderam restrições à liberdade do contrato e do laissezfaire em um número de casos bem definidos de grande importância teórica e prática O preconceito antiliberal certamente não poderia ter sido a sua motivação Temos em mente de um lado o princípio da associação do trabalho e do outro a lei das corporações de negócios O primeiro referese ao direito dos trabalhadores de se associarem com o propósito de elevar seus salários o último ao direito dos trustes cartéis ou outras formas de associações capitalistas de elevar os preços Em ambos os casos acusavase justamente a liberdade de contrato ou o laissezfaire de estar sendo usado para restringir o comércio Seja no caso das associações de trabalhadores para elevar salários ou das associações comerciais para elevar preços é óbvio que o princípio do laissezfaire podia ser usado pelas partes interessadas para estreitar o mercado tanto para o trabalho como para outras mercadorias É altamente significativo que tanto num como noutro caso sólidos liberais de Lloyd George a Theodore Roosevelt até Thurman Arnold e Walter Lippmann subordinaram o laissezfaire à exigência de um mercado competitivo livre Eles pressionaram por regulamentações e restrições por leis penais e compulsão argumentando como o faria qualquer coletivista que a liberdade de contrato estava sendo abusada por sindicatos ou corporações qualquer que fosse o caso Teoricamente o laissezfaire ou a liberdade de contrato implicava a liberdade dos trabalhadores de recusarse a trabalhar individual ou 181 coletivamente se assim decidissem implicava também a liberdade dos homens de negócios de ajustar os preços de venda independentemente da vontade dos consumidores Na prática porém tal liberdade entrava em conflito com a instituição de um mercado autoregulável e em tal conflito concediase precedência invariavelmente ao mercado autoregulável Em outras palavras se as necessidades do mercado autoregulável provavam ser incompatíveis com as exigências do laissez faire o liberal econômico voltavase contra o laissezfaire e preferia como qualquer antiliberal os métodos assim chamados coletivistas de regulamentação e restrição A lei dos sindicatos profissionais e a legislação antitruste surgiram em consequência dessa atitude Não se poderia oferecer prova mais conclusiva da inevitabilidade dos métodos antiliberal ou coletivista sob as condições da moderna sociedade industrial do que o fato de que até mesmo os próprios liberais econômicos usavam regularmente tais métodos em áreas de importância decisiva da organização industrial A propósito isto ajuda a esclarecer o verdadeiro significado do termo intervencionismo com o qual os liberais econômicos gostam de demonstrar o oposto da sua própria política mas que apenas demonstra confusão de pensamento O oposto do intervencionismo é o laissezfaire e acabamos justamente de ver que o liberalismo econômico não pode ser identificado com o laissezfaire embora na linguagem comum não exista qualquer prejuízo em intercarnbiálos De forma estrita o liberalismo econômico é o princípio organizado r de uma sociedade na qual a indústria se baseia na instituição de um mercado autoregulável É verdade que uma vez atingido um tal sistema mesmo aproximadamente é cada vez menos necessário um certo tipo de intervenção Todavia isto não quer dizer que sistema de mercado e intervenção são termos mutuamente exclusivos Enquanto esse sistema não é estabelecido os liberais econômicos apelarão sem hesitar para a intervenção do estado a fim de estabelecêlo e uma vez estabelecido a fim de mantêlo O liberal econômico pode portanto sem qualquer contradição pedir que o estado use a força da lei pode até mesmo apelar para as forças violentas da guerra civil a fim de organizar as precondições de um mercado autoregulável Na América do Norte o Sul apelou para os argumentos do laissezfaire para justificar a escravidão O Norte apelou para a intervenção das armas para estabelecer um mercado de trabalho livre A acusação de intervencionismo por parte de autores liberais é portanto um slogan vazio implicando a denúncia de um único e idêntico conjunto de ações conforme eles possam aprováIas 182 ou não O único princípio que os liberais podem manter sem cair em contradição é o do mercado autoregulável quer ele os envolva em intervenção ou não Resumindo o contramovimento que se opôs ao liberalismo econômico e ao laissezfaire teve todas as características inequívocas de uma reação espontânea Em inúmeros pontos isolados ele surgiu sem que houvesse ligações aparentes entre os interesses diretamente afetados ou qualquer conformidade ideológica entre eles Até na resolução do mesmo problema como no caso da compensação aos trabalhadores as soluções mudavam de individualista para coletivista de liberal para antiliberal do laissezfaire para formas intervencionistas sem que ocorresse qualquer mudança no interesse econômico nas influências ideológicas ou nas forças políticas em jogo mas apenas como resultado da crescente compreensão da natureza do problema em questão Podese demonstrar também que uma mudança bastante similar do laissez faire para o coletivismo ocorreu em vários países num estágio definido do seu desenvolvimento industrial revelando a profundidade e independência das causas subjacentes ao processo que os liberais econômicos atribuíram de forma tão superficial a climas de mudança ou a interesses diversos Finalmente a análise revela que nem mesmo os adeptos mais radicais do liberalismo econômico puderam fugir à regra que tornou o laissezfaire inaplicável às condições industriais avançadas No caso crítico da lei dos sindicatos profissionais e das regulamentações antitrustes os próprios liberais extremados apelaram para intervenções múltiplas do estado a fim de garantir as precondições de funcionamento de um mercado autoregulável contra acordos mono polistas Até mesmo o livre comércio e a competição exigiam a intervenção para poderem funcionar É portanto contrário a todos os fatos o mito liberal da conspiração coletivista das décadas de 1870 e 1880 Achamos assim que a evidência comprova a interpretação que damos ao duplo movimento Se a economia de mercado foi uma ameaça para os componentes humano e natural do tecido social como insistimos o que mais se poderia esperar senão que uma ampla gama de pessoas exercesse a maior pressão no sentido de obter alguma espécie de proteção Foi isto o que encontramos Seria de se esperar também que isto acontecesse sem qualquer prevenção teórica ou intelectual por parte deles e a despeito da atitude que assumiam em relação aos princípios subjacentes a uma economia de mercado Mais uma vez este foi o caso Além disso sugerimos que a história comparativa dos governos poderia oferecer um apoio quase experimental à nossa tese se pudéssemos 183 demonstrar serem os interesses particulares independentes das ideologias específicas presentes em uma série de diferentes países Também nesse caso pudemos apresentar provas conclusivas Finalmente o comportamento dos próprios liberais provou que a manutenção da liberdade de comércio em nossos termos de um mercado auto regulável longe de excluir a intervenção na verdade exigia tal ação e que os próprios liberais apelaram sistematicamente para a atuação compulsória do estado como no caso da lei dos sindicatos profissionais e das leis antitrustes Assim nada poderia ser mais incisivo que a evidência da história sobre qual das duas interpretações conflitantes do duplo movimento é correta a do liberal econômico que afirma que sua política jamais teve uma oportunidade tendo sido estrangulada por sindicalistas de visão estreita intelectuais marxistas fabricantes gananciosos e latifundiários reacionários ou a dos seus críticos que podem apontar para a reação coletivista universal contra a expansão da economia de mercado na segunda metade do século XIX como prova conclusiva do perigo para a sociedade inerente ao princípio utópico de um mercado autoregulável 184 13 O NASCIMENTO DO CREDO LIBERAL CONTINUAÇÃO O INTERESSE DE CLASSE E A MUDANÇA SOCIAL O mito liberal da conspiração coletivista deve ser dissipado inteiramente antes de se colocar a nu a verdadeira base das políticas do século XIX Essa fábula alega que o protecionismo foi apenas o resultado dos sinistros interesses agrários dos fabricantes e dos sindicalistas que arruinaram de forma egoísta a maquinaria automática do mercado De uma outra forma e com uma tendência política oposta naturalmente os partidos marxistas argumentavam em termos igualmente seccionais Não é relevante aqui o fato da filosofia básica de Marx centralizarse na totalidade da sociedade e na natureza não econômica do homem1 O próprio Marx seguiu Ricardo ao definir as classes em termos econômicos e a exploração econômica foi sem dúvida um aspecto da era burguesa No marxismo popular isto levou a uma incipiente teoria de classe do desenvolvimento social A pressão por mercados e zonas de influência foi simplesmente atribuída à motivação do lucro de um punhado de financistas O imperialismo foi explicado como uma conspiração capitalista para induzir governos a se lançarem a guerras no interesse d grandes negócios Atribuíase as guerras a esses interesses combinados 1 Marx K Nationalökonomie und Philosophie Em Der Historische Materialismus 1932 185 aos das firmas de armamentos que adquiriam miraculosamente a capacidade de levar nações inteiras a políticas fatais contrárias a seus interesses vitais De fato liberais e marxistas estavam de acordo ao inferir o movimento protecionista a partir da força dos interesses seccionais em responsabilizar as tarifas agrárias pela força política dos latifundiários reacionários em fazer da fome de lucro dos magnatas industriais a responsável pelo crescimento das formas monopolísticas de empresa em apresentar a guerra como resultado da agressividade dos negócios A perspectiva econômica liberal encontrou assim um apoio poderoso numa estreita teoria de classe Defendendo a perspectiva das classes em oposição liberais e marxistas apresentaram proposições idênticas Estabeleceram um caso inequívoco para a afirmativa de que o protecionismo do século XIX foi o resultado da ação de classe e que essa ação deveria atender basicamente aos interesses econômicos dos membros das classes envolvidas Entre si eles quase obstruíram por completo uma visão geral da sociedade de mercado e a função do protecionismo em tal sociedade Na verdade os interesses de classe oferecem apenas uma explicação limitada para os movimentos da sociedade a longo prazo O destino das classes é muito mais determinado pelas necessidades da sociedade do que o destino da sociedade é determinado pelas necessidades das classes Dada uma estrutura definida da sociedade a teoria de classe funciona mas o que acontece se esta estrutura sofre mudança Uma classe que perde a sua função pode se desintegrar e ser rapidamente suplantada por uma nova classe ou classes Ocorre ainda que as oportunidades das classes em luta dependerão da sua habilidade em ganhar apoio fora da sua própria coletividade e isso também dependerá da possibilidade de executarem as tarefas estabelecidas por interesses mais amplos do que o seu próprio Assim nem o nascimento nem a morte das classes nem os seus objetivos nem o grau em que elas o atingem nem as suas cooperações ou os seus antagonismos podem ser compreendidos fora da situação da sociedade como um todo Ora em regra essa situação é criada por causas externas como uma mudança no clima no resultado das colheitas um novo inimigo uma nova arma usada por um antigo inimigo a emergência de novas finalidades comunais ou se for o caso a descoberta de novos métodos para alcançar os fins tradicionais Os interesses seccionais têm que estar relacionados com esta situação total em última instância para tornar bem clara a sua função no desenvolvimento social 186 O papel essencial desempenhado pelos interesses de classe na mudança social está na natureza das coisas Qualquer forma ampla de mudança deve afetar as várias partes da comunidade de diferentes maneiras ainda que não seja por outra razão que as diferenças de locação geográfica e de equipamento econômico e cultural Os interesses seccionais são portanto o veículo natural da mudança social e política Qualquer que seja a fonte da mudança guerra ou comércio invenções assombrosas ou mudanças nas condições naturais as várias secçôes da sociedade procurarão métodos diferentes de ajustamento inclusive pela força e conciliarão seus interesses de modo diferente dos escolhidos por outros grupos os quais talvez até procurem conduzir Daí somente quando se pode apontar o grupo ou grupos que efetuaram a mudança podese explicar como essa mudança ocorreu Entretanto a causa última é estabelecida por forças externas e a sociedade depende das forças internas apenas para o mecanismo da mudança O desafio é para a sociedade como um todo a resposta chega através de grupos secções e classes Os meros interesses de classe não podem portanto oferecer uma explicação satisfatória para qualquer processo social a longo prazo Primeiro porque o processo em questão pode decidir sobre a existência da própria classe segundo porque os interesses de dadas classes determinam apenas os objetivos e os propósitos em cuja direção essas classes lutam e não também o sucesso ou fracasso de tais esforços Não existe qualquer mágica nos interesses de classe que possa garantir aos membros de uma classe o apoio dos membros de outras classes E no entanto esse apoio é uma ocorrência diária e o protecionismo constitui um bom exemplo O problema aqui não é por que o campo os fabricantes ou os sindicalistas desejaram elevar suas rendas através da ação protecionista mas porque conseguiram fazêlo não por que homens de negócios e trabalhadores desejaram estabelecer monopólios para seus produtos mas porque atingiram o seu objetivo não por que alguns grupos agiram de modo semelhante em uma série de países continentais mas porque tais grupos existiram nesses países tão diferentes em outros sentidos e atingiram igualmente seus objetivos em todos os lugares não porque aqueles que cultivavam o trigo tentavam vendêlo mais caro mas porque eles conseguiam regularmente persuadir aqueles que compravam o trigo a ajudar no aumento do seu preço Segundo existe a doutrina igualmente equívoca da natureza essencialmente econômica dos interesses de classe Embora a sociedade humana seja naturalmente condicionada por fatores econômicos as 187 motivações dos indivíduos humanos só excepcionalmente são determinadas pelas necessidades do desejosatisfação material O fato de a sociedade do século XIX ser organizada a partir do pressuposto de que tal motivação poderia tornarse universal foi uma peculiaridade da época Era apropriado portanto oferecer um campo comparativamente mais amplo para o desempenho das motivações econômicas quando se analisava essa sociedade Temos que nos resguardar porém contra o prejulgamento do assunto que é precisamente em que medida uma tal motivação insólita podia se tornar efetiva Assuntos puramente econômicos como os que afetam o desejosatisfação são incomparavelmente menos relevantes para o comportamento de classe do que questões de reconhecimento social O desejosatisfação pode ser sem dúvida o resultado de um tal reconhecimento especialmente como seu indício ou prêmio exterior Todavia os interesses de uma classe se referem mais diretamente à sua posição e lugar ao status e segurança isto é eles são basicamente nãoeconômicos mas sociais As classes e os grupos que tomaram parte intermitentemente no movimento geral em direção ao protecionismo após 1870 não o fizeram basicamente por conta dos seus interesses econômicos As medidas coletivistas promulgadas nos anos críticos revelam que só excepcionalmente estaria envolvido o interesse de uma única classe e neste caso esse interesse raramente poderia ser descrito como econômico É certo que nenhum interesse econômico estreito poderia ser atendido por um decreto que autorizava as autoridades da cidade assumir responsabilidade sobre espaços ornamentais negligenciados por regulamentações que exigiam a limpeza das padarias com água quente e sabão pelo menos uma vez em seis meses ou um decreto que tornava compulsório examinar cabos e âncoras Tais medidas corresponderam simplesmente às necessidades de uma civilização industrial às quais os métodos dos mercados não eram capazes de atender A grande maioria dessas intervenções não teve qualquer influência direta e pouco mais que indireta nos rendimentos Isto ocorreu com praticamente todas as leis relacionadas à saúde e à habitação às amenidades e às bibliotecas públicas às condições fabris e ao seguro social O mesmo aconteceu em relação às utilidades públicas educação transporte e inúmeros outros assuntos Mesmo nos casos que envolviam valores monetários eles eram secundários em relação a outros interesses Quase invariavelmente o que estava em questão era o status profissional a segurança e a estabilidade a forma da vida de um homem a extensão da sua exitência 188 a estabilidade do seu ambiente A importância monetária de algumas intervenções típicas como tarifas aduaneiras ou compensação dos trabalhadores não deve ser minimizada de forma alguma Porém mesmo nesses casos os interesses não monetários eram inseparáveis dos monetários As tarifas aduaneiras que implicavam lucro para os capitalistas e salários para os trabalhadores significavam também em última instância segurança contra o desemprego estabilidade para as condições regionais segurança contra a liquidação de indústrias e talvez o melhor anulação da dolorosa perda de status que acompanha inevitavelmente a mudança para um emprego no qual o homem se sente menos habilitado e experimentado do que no seu próprio Já que nos livramos da obsessão de que apenas os interesses seccionais e nunca os gerais podem se tornar efetivos assim como do preconceito gêmeo de restringir os interesses dos grupos humanos a seus rendimentos monetários a amplitude e a compreensão do movimento protecionista perdem seu mistério Enquanto os interesses monetários são veiculados necessariamente apenas pelas pessoas a quem eles pertencem outros interesses têm uma clientela mais ampla Eles afetam os indivíduos de inúmeras maneiras como vizinhos profissionais consumidores pedestres viajantes esportistas andarilhos jardineiros pacientes mães ou amantes e são passíveis de serem representados por quase todos os tipos de associação territorial ou funcional como igrejas distritos fraternidades clubes sindicatos ou mais comumente partidos políticos de amplas bases de adesão Uma concepção de interesse demasiado estreita pode levar com efeito a uma visão deturpada da história social e política e nenhuma definição puramente monetária dos interesses deixa espaço para aquela necessidade vital de proteção social cuja representação recai habitualmente nas pessoas encarregadas dos interesses gerais da comunidade sob condições modernas os governos do dia Foram precisamente os interesses sociais e não os econômicos de diferentes segmentos da população que se viram ameaçados pelo mercado e pessoas pertencentes a vários estratos econômicos inconscientemente conjugaram forças para conjurar o perigo A ampliação do mercado foi pois simultaneamente adiantada e obstruída pela ação das forças de classes Dada a necessidade de uma produção de máquina para o estabelecimento de um sistema de mercado somente as classes comerciais estavam em posição de assumir a liderança nessa primeira transformação Surgiu uma nova classe de empresários dos remanescentes das antigas classes a fim de tomar conta de um desenvolvimento que estava em consonância com os interesses da 189 comunidade como um todo Entretanto se a ascensão dos industriais empresários e capitalistas foi o resultado do seu papel dominante no movimento expansionista a defesa recaiu sobre as classes fundiárias tradicionais e a nascente classe trabalhadora Se dentre a comunidade comercial coube aos capitalistas representar os princípios estruturais do sistema de mercado o papel de defensor ferrenho do tecido social coube de um lado à aristocracia feudal e de outro ao ascendente proletariado industrial Entretanto enquanto as classes fundiárias naturalmente procuravam a solução de todos os males na manutenção do passado os trabalhadores estavam até certo ponto em posição de transcender os limites de uma sociedade de mercado e pedir soluções ao futuro Isto não significa que a volta ao feudalismo ou a proclamação do socialismo estavam entre as linhas de ação possíveis mas indica as direções inteiramente diferentes para as quais tendiam as forças agrárias e da classe trabalhadora urbana na busca de solução para uma emergência Se a economia de mercado entrasse em colapso como ameaçou ocorrer em cada uma das crises maiores as classes fundiárias podiam tentar um retorno a um regime militar ou feudal de paternalismo enquanto os trabalhadores fabris viam a necessidade de estabelecer uma comunidade de trabalho cooperativo Numa crise as respostas podem apontar para soluções mutuamente exclusivas Um simples choque de interesses de classe que poderia ser solucionado pelo compromisso se revestiu de um significado fatal Tudo isto deveria alertarnos contra confiar demais nos interesses econômicos de dadas classes para a explicação da história Uma abordagem como essa implicaria a admissão tácita dessas classes num sentido que só seria possível numa sociedade indestrutível Isto deixaria fora do alcance aquelas fases críticas da história quando uma civilização desmorona ou passa por uma transformação ocasião em que como regra novas classes se formam às vezes no mais curto espaço de tempo a partir de ruínas de classes antigas ou até mesmo a partir de elementos extrínsecos como aventureiros estrangeiros ou proscritos Uma conjuntura histórica é freqüente surgirem novas classes simplesmente em virtude das exigências da hora Assim em última instância é a relação que uma classe tem com a sociedade como um todo que delimita a sua parte no drama Seu sucesso é determinado pela amplitude e variedade dos interesses além dos seus próprios que ela é capaz de servir Na verdade nenhuma política de interesse de classe restrito pode defender bem até mesmo esse interesse uma regra que só permite poucas exceções Nenhuma classe brutalmente egoísta pode manterse 190 na liderança a não ser que a alternativa para a conjuntura social seja um mergulho na destruição total Para poder jogar a culpa na suposta conspiração coletivista os liberais econômicos têm que negar em última instância que jamais tenha ocorrido qualquer necessidade de proteção para a sociedade Em época recente aplaudiram as opiniões de alguns eruditos que abandonaram a doutrina tradicional da Revolução Industrial segundo a qual desabou uma catástrofe sobre as infelizes classes trabalhadoras da Inglaterra na década de 1790 Conforme esses autores o povo comum jamais foi atingido por algo semelhante à súbita deterioração dos padrões Em média ele estava bem melhor do que antes da introdução do sistema fabril e quanto aos números ninguém poderia negar o seu rápido crescimento Os autores confirmavam ainda que baseando se nos índices aceitos de bemestar econômico salários reais e dados populacionais o inferno do capitalismo primitivo jamais existiu Longe de terem sido exploradas as classes trabalhadoras foram economicamente as vencedoras e era obviamente impossível discutir a necessidade de proteção social contra um sistema que beneficiava a todos Os críticos do capitalismo liberal ficaram surpresos Durante cerca de setenta anos estudiosos e comissões reais denunciaram os horrores da Revolução Industrial e uma galáxia de poetas pensadores e autores estigmatizaram as suas crueldades Era considerado fato estabelecido que as massas estavam sendo exauridas e definhavam com a exploração impiedosa do seu desamparo que os cercamentos haviam privado os moradores do campo de seus lares e terras atirandoos ao mercado de trabalho criado pela Poor Law Reform e que as tragédias comprovadas das crianças que trabalhavam até morrer nas minas e fábricas ofereciam prova impressionante da destituição das massas De fato a explicação habitual da Revolução Industrial se baseava no grau de exploração que os cercamentos do século XVIII tornaram possível nos baixos salários oferecidos aos trabalhadores sem lar responsáveis pelos elevados lucros da indústria do algodão assim como pela rápida acumulação de capital nas mãos dos primeiros fabricantes A acusação contra estes era de exploração uma exploração ilimitada dos seus semelhantes considerada a causa básica de tanta miséria e aviltamento Tudo isto estava sendo agora aparentemente refutado Historiadores econômicos aplaudiam o fato de se ter dispersado a sombra negra que encobria as primeiras décadas do sistema fabril Como poderia ocorrer uma catástrofe social onde havia sem dúvida progresso econômico 191 É fora de dúvida que uma calamidade social é basicamente um fenômeno cultural e não um fenômeno econômico que pode ser medido por cifras de rendimentos ou estatísticas populacionais Catástrofes culturais que envolvem amplos estratos do povo comum não podem ser freqüentes naturalmente Mas também não o são acontecimentos cataclísmicos como a Revolução Industrial um terremoto econômico que em menos de meio século transformou grandes massas de habitantes do campo inglês de gente estabelecida em migrantes ineptos Todavia se desmoronamentos destrutivos como esses são excepcionais na história das classes eles são uma ocorrência comum na esfera dos contatos culturais entre povos de raças diferentes Intrinsecamente as condições são as mesmas A diferença está principalmente no fato de que uma classe social é parte de uma sociedade que habita a mesma área geográfica enquanto o contato cultural ocorre geralmente entre sociedades estabeleci das em diferentes regiões geográficas Em ambos os casos o contato pode ter efeito devastador sobre a parte mais fraca A causa da degradação não é portanto a exploração econômica como se presume muitas vezes mas a desintegração do ambiente cultural da vítima O processo econômico pode naturalmente fornecer o veículo da destruição e quase invariavelmente a inferioridade econômica fará o mais fraco se render mas a causa imediata da sua ruína não é essa razão econômica ela está no ferimento letal infligido às instituições nas quais a sua existência social está inserida O resultado é a perda do autorespeito e dos padrões seja a unidade um povo ou uma classe quer o processo resulte do assim chamado conflito cultural ou de uma mudança na posição de uma classe dentro dos limites de uma sociedade Para o estudioso do capitalismo primitivo o paralelo é altamente significativo A condição de algumas tribos nativas na África hoje em dia tem uma semelhança indiscutível com as das classes trabalhadoras inglesas durante os primeiros anos do século XIX O cafre da África do Sul um nobre selvagem que não podia se sentir mais seguro socialmente no seu kraal nativo foi transformado numa variedade humana de animal semidomesticado vestido com os trapos mais disparatados mais imundos mais disformes que o mais degenerado homem branco jamais usaria2 um ser indescritível sem autorespeito ou padrão um verdadeiro refugo humano A descrição lembra o retrato que Robert 2 Millin Mrs S G The South Africans 1926 192 Owen descreveu de seus próprios trabalhadores quando a eles se dirigiu em New Lanark dizendolhes na cara serena e objetivamente como um pesquisador social registraria os fatos por que eles haviam se transformado na ralé degradada que eram E a verdadeira causa da sua degradação não poderia ser mais habilmente descrita do que pelo fato deles viverem num vácuo cultural o termo usado por um antropólogo3 para descrever a causa do aviltamento cultural de algumas das tribos negras mais valentes da África sob a influência do contato com a civilização branca Suas habilidades haviam decaído as condições políticas e sociais da sua existência haviam sido destruídas eles estão morrendo de tédio segundo a famosa frase de Rivers ou desperdiçando suas vidas e substâncias na dissipação Enquanto sua própria cultura não mais lhes oferece quaisquer objetivos dignos de esforço ou sacrifício o esnobismo racial e o preconceito barram o caminho para sua participação adequada na cultura dos invasores brancos4 Substituamos a exclusão de cor pela exclusão social e emergirá as Duas Nações da década de 1840 sendo o cafre apropriadamente substituído pelo cambaleante morador da favela das novelas de Kingsley Mesmo aqueles que podem concordar inteiramente que a vida num vazio cultural não é vida parecem esperar que as necessidades econômicas preencham automaticamente aquele vazio e tornem a vida mais suportável sob quaisquer condições Esse pressuposto é contestado de forma contundente pelo resultado da pesquisa antropológica Os objetivos pelos quais os indivíduos irão trabalhar são determinados culturalmente e não são uma resposta do organismo a uma situação externa culturalmente indefinida como uma simples escassez de alimento diz a Dra Mead O processo pelo qual se converte um grupo de selvagens em mineiros de ouro ou tripulações de navios ou ele é simplesmente espoliado de todo incentivo para o esforço e abandonado a uma morte indolor ao lado de correntes ainda repletas de peixes pode parecer tão bizarro tão alheio à natureza da sociedade e seu funcionamento normal que pode parecer patológico e no entanto acrescenta ela é precisamente o que acontece com o povo em regra em meio a uma mudança externa violentamente introduzida ou pelo menos produzida externamente E conclui ela Este contato rude este desenraizamento de pessoas simples dos seus mores é demasiado freqüente para não merecer séria atenção por parte do historiador social 3 Goldenweiser A Anthropoly 1937 4 Goldenweiser A ibid 193 O historiador social porém não segue a sugestão Ele ainda se recusa a ver que a força elementar do contato cultural que está agora revolucionando o mundo colonial é a mesma que há um século criou as cenas funestas do capitalismo primitivo Um antropólogo5 chegou à conclusão geral A despeito de numerosas divergências existem no fundo as mesmas situações entre os povos exóticos de hoje que existiam entre nós há décadas ou séculos Os novos dispositivos técnicos o novo conhecimento as novas formas de riqueza e poder acentuaram a mobilidade social ie a migração de indivíduos o aumento e diminuição das famílias a diferenciação de grupos novas formas de liderança novos modelos de vida diferentes valorizações A mente penetrante de Thurnwald reconheceu que a catástrofe cultural da sociedade negra hoje é bastante análoga à de uma grande parte da sociedade branca nos primeiros dias do capitalismo Só o historiador social ainda perde este ponto de analogia Nada obscurece mais a nossa visão social do que o preconceito econômico A exploração tem sido colocada tão persistentemente à frente do problema colonial que este ponto exige uma atenção especial A exploração feita pelo homem branco num sentido obviamente humano tem sido perpetrada com tanta freqüência com tanta persistência e com tanta impiedade em relação aos povos atrasados do mundo que poderia aparecer apenas uma total insensibilidade não atribuirlhe um lugar de destaque em qualquer discussão sobre o problema colonial No entanto é precisamente essa ênfase na exploração que tende a ocultar da nossa perspectiva o tema ainda maior da degeneração cultural Se a exploração é definida em termos estritamente econômicos como uma insuficiência permanente na proporção da troca então podese duvidar se de fato existiu a exploração A catástrofe da comunidade nativa é um resultado direto da ruptura rápida e violenta das instituições básicas da vítima não parece relevante se a força é usada ou não no processo Essas instituições são dilaceradas pelo próprio fato de que uma economia de mercado é impingida a uma comunidade organizada de modo inteiramente diverso o trabalho e a terra se transformam em mercadorias o que mais uma vez é apenas a fórmula abreviada para a liquidação de toda e qualquer instituição cultural numa sociedade orgânica As alterações nos rendimentos e nas cifras 5 Thurnwald R C Black and White in East África The Fabric of a New Civilization 1935 194 populacionais são evidentemente incomensuráveis em tal processo Quem por exemplo poderia negar que um povo anteriormente livre tenha sido explorado arrastado para a escravidão embora seu padrão de vida em algum sentido artificial possa ter melhorado no país para o qual foi vendido se comparado ao que tinha na sua floresta nativa E no entanto nada seria alterado se imaginássemos que os nativos conquistados haviam sido libertos e não teriam sequer que pagar o preço excessivo dos algodões baratos a eles impingidos e que a sua inanição era causada simplesmente pela ruptura de suas instituições sociais Podemos citar o famoso exemplo da Índia As massas indianas não morriam de fome na segunda metade do século XIX porque eram exploradas pelo Lacanshire elas pereciam em grande número porque a comunidade aldeã indiana havia sido abalada É uma verdade indiscutível que isto ocorreu através das forças da competição econômica isto é o constante barateamento dos chaddar feitos à mão em função das mercadorias feitas à máquina Todavia isto prova o oposto da exploração econômica uma vez que o dumping significa o inverso da oneração A verdadeira fonte da penúria dos últimos cinqüenta anos foi a livre comercialização de cereais em conjunto com a baixa dos rendi mentos locais O fracasso nas colheitas é parte do quadro sem dúvida mas as áreas ameaçadas foram amparadas com a remessa de cereais através de ferrovias O problema porém era que o povo não podia comprar o trigo aos preços astronômicos que num mercado livre mas incompletamente organizado seriam a reação à escassez Em épocas anteriores havia pequenos depósitos locais para o abastecimento no caso de fracassarem as colheitas mas eles não foram conservados ou foram absorvidos pelo grande mercado Por esta razão a prevenção contra a fome assumia agora a forma de obras públicas que permitissem à população comprar a preços elevados As três ou quatro grandes fomes que dizimaram a Índia sob o governo britânico desde a rebelião não foram portanto conseqüência nem dos elementos nem da exploração mas simplesmente da nova organização do mercado de trabalho e da terra que desmoronou a antiga aldeia sem resolver realmente os seus problemas Enquanto sob o regime do feudalismo e da comunidade aldeã a noblesse oblige a solidariedade do clã e a regulamentação do mercado de trigo controlavam a fome sob a direção do mercado não se podia impedir que as pessoas morressem de fome segundo as regras do jogo O termo exploração descreve mal uma situação que se tornou realmente 195 grave apenas depois que se aboliu o impiedoso monopólio da Companhia das Índias Orientais e se introduziu o livre comércio na Índia Durante a época dos monopólios a situação se mantinha sob controle com a ajuda da organização arcaica do campo inclusive a livre distribuição do trigo enquanto sob uma troca livre e igual os indianos pereciam aos milhões A Índia pode ter sido beneficiada economicamente e certamente foi a longo prazo mas ela foi desorganizada socialmente e se tornou presa da miséria e da degradação Em alguns casos pelo menos o oposto da exploração se assim podemos dizer iniciou o contato cultural desintegrador A concessão territorial obrigatória feita em 1887 aos índios norteamericanos beneficiouos individualmente segundo a nossa tabela financeira de cálculo Entretanto a medida quase destruiu a raça na sua existência física o caso mais importante de degeneração cultural em registro O gênio moral de um John Collier redimiu a situação quase meio século mais tarde insistindo na necessidade de um retorno às possessões tribais hoje os índios norteamericanos pelo menos em alguns lugares têm novamente uma comunidade viva e não foi a melhoria econômica mas a restauração social que fez o milagre O choque de um contato cultural devastador foi registrado pelo nascimento patético da famosa Dança do Espectro versão da Pawnee Hand Game em 1890 mais ou menos exatamente na ocasião em que a melhoria das condições econômicas tornava anacrônica a cultura aborígine desses pelesvermelhas Além disso o fato de que nem mesmo um aumento de população o outro índice econômico precisa excluir uma catástrofe cultural é igualmente apoiado pela pesquisa antropológica As taxas naturais de aumento da população podem ser na verdade tanto um índice de vitalidade cultural como de degradação cultural O significado original da palavra proletário ligando fertilidade e mendicidade é uma expressão marcante dessa ambivalência O preconceito economista foi ao mesmo tempo a fonte da teoria da exploração cruel do capitalismo primitivo e do equívoco não menos cruel porém mais erudito que negou mais tarde a existência de uma catástrofe social A implicação significativa dessa última e mais recente interpretação da história foi a reabilitação da economia do laissez faire Se a economia liberal não causou qualquer desastre então o protecionismo que roubou ao mundo os benefícios dos mercados livres foi um crime desumano O próprio termo Revolução Industrial era encarado como se transmitisse uma idéia exagerada daquilo que foi na sua essência um vagaroso processo de mudança Nada mais aconteceu insistiam 196 esses eruditos do que o desdobramento gradual das forças do progresso tecnológico que transformaram as vidas das pessoas Muitos sofreram no decurso da mudança sem dúvida mas no seu todo a história foi a de um progresso contínuo Esse produto feliz foi resultado do funcionamento quase inconsciente das forças econômicas que executaram seu trabalho beneficente apesar da interferência de elementos impacientes que exageraram as dificuldades inevitáveis da época A inferência foi nada menos que a negação do perigo que ameaçava a sociedade a partir da nova economia Se a revisão da história da Revolução Industrial se ativesse aos fatos o movimento protecionista perderia toda a justificação objetiva e o laissezfaire estaria vingado A falácia materialista em relação à natureza da catástrofe social e cultural sustentaria assim a fábula de que todos os males da época ocorreram por termos abandonado o liberalismo econômico Resumindo não foram grupos ou classes únicas a fonte do assim chamado movimento coletivista embora o resultado tenha sido influenciado decisivamente pelo caráter dos interesses de classe envolvidos Em última instância o que fez as coisas acontecerem foram os interesses da sociedade como um todo embora sua defesa tenha recaído basicamente numa secçâo da população em preferência a outra Parece razoável agrupar nosso relato do movimento protetor não em torno de interesses de classe mas em torno das substâncias sociais ameaçadas pelo mercado Os pontos perigosos foram indicados pelas direções principais do ataque O mercado de trabalho competitivo atingiu o possuidor da força de trabalho isto é o homem O comércio livre internacional foi basicamente uma ameaça à maior indústria dependente da natureza isto é a agricultura O padrãoouro ameaçou as organizações produtivas que dependiam do movimento relativo de preços para o seu funcionamento Os mercados se desenvolveram em cada uma dessas áreas o que implicou uma ameaça latente para a sociedade em alguns dos aspectos mais vitais da sua existência Os mercados de trabalho terra e dinheiro são fáceis de distinguir não é tão fácil distinguir aquelas partes de uma cultura cujo núcleo é formado por seres humanos seus ambientes naturais e as organizações produtoras respectivamente O homem e a natureza são praticamente um na esfera cultural O aspecto de dinheiro da empresa produtiva penetra apenas em um interesse socialmente vital isto é a unidade e a coesão da nação Assim enquanto os mercados para as mercadori fictícias trabalho terra e dinheiro eram distintos e separados 197 ameaças à sociedade que eles envolviam nem sempre podiam ser estritamente separadas A despeito disso um esboço do desenvolvimento institucional da sociedade ocidental durante os críticos oitenta anos 18341914 pode referirse a cada um desses pontos ameaçadores em termos semelhantes A organização do mercado cresceu a ponto de se tornar um perigo e tanto no que concerne ao homem à natureza ou à organização produtiva grupos ou classes definidas pressionaram por proteção Em cada um dos casos o espaço de tempo considerável que decorreu entre o desenvolvimento inglês continental e norteamericano teve uma orientação importante e no entanto na virada do século o contramovimento protecionista havia criado uma situação análoga em todos os países ocidentais Sendo assim trataremos separadamente da defesa do homem da natureza e da organização produtiva um movimento de autopreservação do qual emergiu um tipo de sociedade mais intimamente entrelaçada e que no entanto estava ameaçada de total rompimento 198 14 MERCADO E HOMEM Separar o trabalho das outras atividades daa vida e sujeitálo às leis do mercado foi o mesmo que aniquilar todas as formas orgânicas da existência e substituíIas por um tipo diferente de organização uma organização atomista e individualista Tal esquema de destruição foi ainda mais eficiente com a aplicação do princípio da liberdade de contrato Na prática isto significava que as organizações nãocontratuais de parentesco vizinhança profissão e credo teriam que ser liquidadas pois elas exigiam a alienação do indivíduo e restringiam portanto sua liberdade Representar esse princípio como o da não interferência como os liberais econômicos se propunham a fazer era expressar simplesmente um preconceito arraigado em favor de uma espécie definida de interferência isto é que iria destruir as relações nãocontratuais entre indivíduos e impedir a sua reformulação espontânea Este resultado do estabelecimento de um mercado de trabalho é perfeitamente aparente nas regiões coloniais de hoje em dia Os nativos são forçados a ganhar a vida vendendo o seu trabalho Para atingir essa finalidade suas instituições tradicionais têm que ser destruídas e impedidas de se reformularem pois em regra o indivíduo numa sociedade primitiva não se vê ameaçado de inanição a menos que a comunidade como um todo também esteja numa situação semelhante Sob o sistema de terra kraal dos cafres por exemplo a miséria é impossível quem quer que precise de assistência pode recebêIa incondicionalmente1 1 Mair LP An African People in the Twentieth Century 1934 199 Nenhum Kwakiutl jamais correu o menor risco de ficar faminto2 Não existe a inanição em sociedades que vivem à margem da subsistência3 O princípio de independer da carência era conhecido também na comunidade aldeã hindu e podemos ainda acrescentar em quase todos os tipos de organização social até aproximadamente o início do século XVI na Europa quando as idéias modernas em relação aos pobres apresentadas pelo humanista Vives foram discutidas na Sorbonne É justamente a ausência da ameaça de inanição individual que torna a sociedade primitiva num certo sentido mais humana que a economia de mercado e ao mesmo tempo menos econômica De forma irônica a contribuição inicial do homem branco para o mundo do homem negro consistiu principalmente em acostumálo a sentir o aguilhão da fome Assim o colonizador pode decidir cortar árvores de frutapão a fim de criar uma escassez artificial de alimentos ou pode impor uma taxação sobre a cabana do nativo para forçá lo a permutar o seu trabalho Em ambos os casos o efeito é similar ao dos cercamentos da era Tudor com sua esteira de hordas errantes Um relatório da Liga das Nações mencionou com o devido horror o aparecimento recente daquela indescritível figura do cenário europeu do século XVI o homem sem dono na floresta africana4 No final da Idade Média ele só era encontrado nos interstícios da sociedade5 E no entanto ele foi o precursor do trabalhador nômade do século XIX 6 Ora o que o homem branco ainda pratica ocasionalmente em regiões remotas hoje em dia isto é a derrubada das estruturas sociais a fim de extrair delas o elemento do trabalho foi feito no século XVIII com as populações brancas por homens brancos com propósitos similares A visão grotesca do Estado de Hobbes um Leviatã humano cujo corpo imenso era formado por um número infinito de corpos humanos foi eclipsada pelo construto ricardiano do mercado de trabalho um fluxo de vidas humanas cujo abastecimento era regulado pela quantidade de alimentos à sua disposição Embora reconhecendo 2 Loeb EM The Distribution and Function of Money in Early Society Em Essays in Anthropology 1936 3 Herskovits MJ The Economic Life of Primitive Peoples 1940 4 Thurnwald RC op cit 5 Brinkmann C Das soziale System dês Kapitalismus Grundriss der Sozialökonomik 1924 6 Toynbee A Lectures on the Industrial Revolution 1887 p 98 200 que existia um padrão costumeiro abaixo do qual nenhum salário de trabalhador poderia diminuir considerouse também essa limitação como efetiva apenas no caso do trabalhador estar reduzido à escolha entre ficar sem alimento ou oferecer seu trabalho no mercado pelo preço que pudesse conseguir A propósito isto explica uma omissão dos economistas clássicos de outra forma inexplicável isto é porque somente a penalidade da inanição e não o atrativo dos ordenados altos era considerada capaz de criar um mercado de trabalho atuante Aqui também a experiência colonial confirmou a desses economistas Quanto mais elevado o salário menor era a atração que exercia sobre o nativo que diferente do homem branco não era compelido pelos seus padrões culturais a ganhar tanto dinheiro quanto lhe fosse possível A analogia era ainda mais mar cante pois também o trabalhador primitivo tinha horror à fábrica onde se sentia degradado e torturado como o nativo que muitas vezes se resigna a trabalhar à nossa maneira apenas quando é ameaçado de castigos corporais e até de mutilação física Os fabricantes de Lyon do século XVIII impunham salários baixos basicamente por razões sociais7 Somente um trabalhador exausto e oprimido argumentavam eles renunciaria à associação com seus camaradas para escapar à condição de servidão pessoal sob a qual ele se via obrigado a fazer aquilo que seu senhor dele exigia Assim como na Inglaterra foi a compulsâo legal e a servidão paroquial e no Continente os rigores de uma política de trabalho absolutista nas Américas primitivas foi o trabalho encomendado o prérequisito do trabalhador voluntário O estágio final porém só foi alcançado com a aplicação da penalidade da natureza a fome Para conseguilo foi necessário liquidar a sociedade orgânica que se recusava a permitir que o indivíduo passasse fome A proteção da sociedade no primeiro exemplo recai sobre os dominadores que podem impor sua vontade diretamente Entretanto os liberais econômicos adotam com muita facilidade a noção de que os dirigentes econômicos tendem a ser beneficentes enquanto o mesmo não ocorre com os dirigentes políticos Este não parece ser o pensamento de Adam Smith pois ele insistia para que um governo britânico direto na Índia substituísse a administração feita por uma companhia privilegiada Os dirigentes políticos argumentava ele teriam interesses paralelos aos dos dominados cuja riqueza avolumaria a sua receita pública 7 Heckscher EF op cit vol II p 168 201 enquanto os interesses do mercador eram naturalmente antagônicos aos dos seus clientes Por interesse e inclinação recaiu sobre os senhores de terra da Inglaterra a tarefa de proteger vidas do povo comum contra a investida da Revolução Industrial A Speenhamland foi um fosso cavado em defesa da organização rural tradicional quando a agitação da mudança avassalava o campo e transformava a agricultura incidentalmente numa indústria precária Em sua relutância natural de inclinarse às necessidades das cidades manufatureiras os proprietários rurais foram os primeiros a resistir naquela que provou ser a luta perdida de um século Sua resistência porém não foi em vão Durante várias gerações ela impediu a ruína e deu tempo para que houvesse um reajustamento quase completo Ela retardou o progresso econômico por um período crítico de quase quarenta anos e quando a reforma parlamentar de 1834 aboliu a Speenhamland os senhores de terra mudaram o foco da sua resistência para as leis fabris A Igreja e a herdade feudal agora agitavam o povo contra o proprietário do moinho cuja predominância tornaria irresistivel a grita por alimentos baratos e assim indiretamente ameaçava solapar os aluguéis e os dízimos Oastler por exemplo foi um homem da Igreja um Tory e um Protecionista8 mas era também um Humanista Assim eram também com misturas variadas desses ingredientes de socialismo conservador as outras grandes figuras do movimento fabril Sadler Southey e Lorde Shaftesbury Mas o pressentimento das perdas ameaçadoras pecuniárias que impelia o grosso de seus seguidores tinha realmente bons fundamentos os exportadores de Manchester logo começaram a clamar por salários mais baixos que significariam cereais mais baratos a abolição da Speenharnland e o desenvolvimento das fábricas realmente prepararam o caminho para o sucesso da agitação que envolveu as AntiCorn Laws em 1846 Entretanto por razões fortuitas a ruína da agricultura na Inglaterra foi retardada durante toda uma geração Enquanto isso Disraeli baseou o socialismo Tory num protesto contra a Poor Law Reform Act e os latifundiários conservadores da Inglaterra impuseram técnicas de vida radicalmente novas à sociedade industrial A Ten Hours Bill Lei das Dez Horas de 1847 que Karl Marx aplaudiu como a primeira vitória do socialismo foi obra de reacionários esclarecidos 8 Dicey A V op cit P 226 202 Os próprios trabalhadores não eram praticamente um fator nesse grande movimento cujo resultado falando figurativamente era perrnitirlhes sobreviver à Passagem Intermediária Eles tinham tão pouco a dizer na determinação de seu próprio destino como a carga negra dos navios de Hawkins E no entanto foi precisamente esta falta de participação ativa por parte da classe trabalhadora britânica na decisão do seu próprio destino que determinou o curso da história social inglesa e tornoua para melhor ou para pior tão diferente da do continente Existe um toque peculiar no que diz respeito aos incitamentos nãodirigidos às excitações e erros de uma classe nascente cuja verdadeira natureza a história já revelou há tempos Politicamente a classe trabalhadora britânica foi definida pela Parliamentary Reform Act de 1832 que recusoulhe o voto Economicamente pela Poor Law Reform Act de 1834 que excluiua da assistência social e separoua dos indigentes Durante algum tempo ainda a futura classe trabalhadora britânica estava em dúvida quanto a sua salvação se ela não estaria afinal de contas num retorno à existência rural e às condições do artesanato Nas duas décadas seguintes à Speenharnland seus esforços se concentraram em parar o livre uso da maquinaria quer reforçando as cláusulas de aprendizado do Statute of Artificers quer pela ação direta como no ludismo Essa atitude aparentemente atrasada prolongouse como uma corrente subterrânea durante o movimento owenita até o final da década de 1940 quando a Ten Hours Bill o eclipse do cartismo e o início da Idade de Ouro do capitalismo obliteraram a visão do passado Até então a classe trabalhadora britânica in statu nascendi era um enigma para si mesma e somente quando se acompanha com toda a compreensão suas agitações serni inconscientes é que se pode avaliar a imensidade da perda que a Inglaterra sofreu com a exclusão da classe trabalhadora de uma participação igualitária na vida nacional Quando O owenismo e o cartismo se consumiram a Inglaterra tornouse mais pobre naquela substância a partir da qual o ideal anglosaxão de uma sociedade livre poderia ter sido estruturado durante os séculos vindouros Mesmo se o movimento owenita tivesse se restringido apenas a atividades locais de pouca monta ele poderia terse tornado um monumento à imaginação criativa da raça Mesmo se o cartismo jamais tivesse ido além dos limites daquele núcleo que concebera a idéia de um feriado nacional para obter os direitos do povo ele poderia ter demonstrado que algumas pessoas ainda podiam sonhar seus próprios sonhos e tomavam a medida de uma sociedade que 203 havia esquecido a forma do homem Todavia este não foi o caso nem de um nem de outro O owenismo não foi a inspiração de uma seita insignificante nem o cartismo se restringiu a uma elite política ambos os movimentos incluíam centenas de milhares de profissionais e artesãos operários e trabalhadores e com seus inúmeros adeptos podem se classificar entre os maiores movimentos sociais da história moderna No entanto diferentes como eram semelhantes apenas na medida do seu fracasso eles serviram para provar como era inevitável desde o primeiro momento a necessidade de proteger o homem contra o mercado O movimento owenita não foi originalmente nem político nem da classe trabalhadora Ele representava os anseios do povo comum esmagado pelo surgimento da fábrica de descobrir uma forma de existência que tornasse o homem senhor da máquina Na sua essência ele visava àquilo que pode nos parecer como um desvio do capitalismo Uma fórmula como essa teria que ser um tanto equívoca sem dúvida uma vez que o papel organizador do capital e a natureza de um mercado autoregulável ainda eram desconhecidos Entretanto talvez ela expresse melhor o espírito de Owen que enfaticamente não era um inimigo da máquina Ele acreditava que o homem continuaria a ser o seu próprio patrão a despeito da máquina o princípio da cooperação ou sindicato resolveria o problema da máquina sem sacrificar nem a liberdade individual nem a solidariedade social nem a dignidade do homem ou a sua simpatia para com seus semelhantes A força do owenismo estava no fato da sua inspiração ser eminentemente prática porém seus métodos se baseavam numa apreciação do homem como um todo Embora os problemas fossem intrinsecamente os da vida cotidiana como a qualidade do alimento a habitação e a educação o nível dos salários a fuga ao desemprego a ajuda na doença e outros similares os temas envolvidos eram tão amplos como as forças morais para as quais apelavam A convicção de que a existência do homem poderia ser restaurada se fosse descoberto o método certo permitiu que as raízes do movimento penetrassem naquela camada profunda onde se forma a própria personalidade Raramente surgiu um movimento social menos intelectualizado com objetivo semelhante as convicções daqueles que nele se engajavam imbuíam de significado até mesmo as atividades mais aparentemente triviais de forma que não era necessário um credo organizado Na verdade a sua fé era profética pois insistia em métodos de reconstrução que transcendiam a economia de mercado 204 O owenismo foi uma religião da indústria cujo portador era a classe trabalhadora9 sua riqueza de formas e iniciativas não teve rival Ele foi praticamente o iniciador do movimento sindicalista moderno Sociedades cooperativas eram fundadas e se ocupavam principalmente das vendas a varejo a seus membros Não se tratava certamente de cooperativas de consumidores regulares mas de lojas sustentadas por elementos entusiastas determinados a devotar os lucros do empreendimento à continuidade dos planos owenitas preferindoas à organização das Villages of Cooperation Suas atividades eram tanto educacionais e propagandistas como comerciais seu objetivo era a criação de uma Nova Sociedade através de seus esforços conjuntos As Union Shops criadas pelos membros dos sindicatos profissionais eram mais da natureza de cooperativas de produtores e os artesãos desempregados podiam lá encontrar trabalho ou em caso de greves ganhar algum dinheiro ao invés do pagamento de greve No Labour Exchange owenita a idéia da loja cooperativa se desenvolveu numa instituição sui generis No coração do Exchange ou Bazar havia confiança na natureza complementar das profissões provendo as necessidades uns dos outros os artesãos poderiam se emancipar das altas e baixas do mercado era o que se pensava Mais tarde isto se fez acompanhar da utilização de notas de trabalho que tinham uma circulação considerável Um tal artifício pode nos parecer fantástico hoje em dia mas na época de Owen não só o caráter do trabalho assalariado como também das notas bancárias permanecia inexplorado O socialismo não era essencialmente diferente desses projetos e invenções que fervilhavam no movimento bentharnita Tanto a oposição rebelde quanto a respeitável classe média estavam numa atmosfera experimental O próprio Jeremy Bentham investiu no futurístico esquema educacional de Owen em New Lanark e apurou um dividendo As Sociedades Owenitas propriamente ditas eram associações ou clubes que se destinavam a apoiar os planos das Villages of Cooperation que já descrevemos em relação à assistência social aos pobres Esta foi a origem da cooperativa dos produtores agrícolas uma idéia que teve uma carreira longa e destacada A primeira organização nacional de produtores com objetivos sindicalistas foi a Operative Builders Union que tentou regulamentar diretamente o negócio das construções criando construções na escala mais extensa possível introduzindo 9 Cole GDH Robert Owen 1925 uma obra sobre a qual nos apoiamos decisivamente 205 uma moeda própria e exibindo os meios de realizar a grande associação para a emancipação das classes produtivas As cooperativas de produtores industriais do século XIX datam desse empreendimento Foi do Builders Union ou Guild e seu Parlamento que surgiu consolidado o ainda mais ambicioso Trades Union que durante um curto prazo abrangeu quase um milhão de trabalhadores e artesãos na sua frouxa federação de sindicatos profissionais e sociedades cooperativas Sua idéia era a revolta industrial por meios pacíficos o que não parecerá uma contradição se nos lembrarmos que no messiânico amanhecer do seu movimento a mera conscientização da sua missão parecia tornar irresistível as aspirações do povo trabalhador Os mártires de Tolpuddle pertenciam a uma filial rural dessa organização A propaganda a favor de uma legislação fabril foi levada a efeito pelas Regeneration Societies estas foram as pioneiras do movimento secularista embora mais tarde fossem fundadas sociedades éticas A idéia da resistência não violenta se desenvolveu plenamente no meio delas Como o saintsimonisrno na França o owenismo na Inglaterra mostrou todas as características de uma inspiração espiritual Entretanto enquanto SaintSimon trabalhava por um renascimento do Cristianismo Owen foi o primeiro adversário do Cristianismo entre os líderes da classe trabalhadora moderna As cooperativas de consumidores da GrãBretanha que encontraram imitadores em todo o mundo foram certamente a iniciativa mais eminentemente prática do owenismo O fato de ter perdido seu ímpeto ou têlo mantido apenas na esfera periférica do movimento de consumidores foi a maior derrota individual das forças espirituais na história da Inglaterra industrial Todavia um povo que após a degradação moral do período do Speenharnland ainda possuía a exuberância exigida por um esforço criador tão imaginativo e ininterrupto deve ter possuído um vigor intelectual e emocional quase ilimitado No owenismo com a sua consideração do homem como um todo ainda restava algo daquela herança medieval de vida corporativa que encontrou sua expressão na Builders Guild e no cenário rural do seu ideal social as Villages of Cooperation Embora tenha sido a fonte do socialismo moderno suas proposições não se baseavam no tema da propriedade que é o aspecto legal apenas do capitalismo Atingido o novo fenômeno da indústria como havia feito SaintSimon ele reconheceu o desafio da máquina Mas o traço característico do owenismo foi sua insistência na abordagem social ele se recusava a aceitar a divisão da sociedade em esferas econômica e política e em conseqüência rejeitava a ação 206 política A aceitação de uma esfera econômica separada teria implicado o reconhecimento do princípio do ganho e do lucro como a força organizadora da sociedade e isto Owen recusavase a fazer Seu gênio reconheceu que a incorporação da máquina só era possível numa nova sociedade O aspecto industrial das coisas para ele não se restringia ao econômico isto teria implicado uma visão de mercado da sociedade que ele rejeitava Em Lanark lhe havia ensinado que na vida do trabalhador o salário era apenas um entre muitos outros fatores como as circunvizinhanças natural e doméstica a qualidade e os preços das mercadorias a estabilidade do emprego e a segurança na posse da terra As fábricas de New Lanark como algumas outras firmas antes delas conservavam seus empregados na folha de pagamento mesmo quando não havia trabalho para eles Mas havia muito mais nesse ajuste A educação das crianças e dos adultos a provisão de lazer a dança e a música e a suposição geral de que uma moral elevada e padrões pessoais para velhos e jovens criavam a atmosfera na qual a população industrial como um todo atingia um novo status Milhares de pessoas de toda a Europa e até mesmo da América do Norte visitavam New Lanark como se ela fosse uma reserva do futuro na qual fora consumado o feito impossível de dirigir um negócio fabril bemsucedido com uma população humana E no entanto a firma de Owen pagava salários consideravelmente menores do que algumas cidades vizinhas Os lucros de New Lanark derivavam principalmente da grande produtividade do trabalho em menos horas em conseqüência de uma excelente organização e de trabalhadores repousados vantagens que compensavam o aumento dos salários reais incluídos em provisões generosas para uma vida decente Só esta última pode explicar os sentimentos de quase adulação que os trabalhadores tinham para com Owen Foi a partir de experiências como essas que ele extraiu a abordagem social isto é maiorqueeconômica do problema da indústria É mais um tributo à sua visão o fato de que a despeito dessa perspectiva compreensiva ele apreendeu a natureza incisiva dos fatos físicos concretos que dominavam a existência do trabalhador Seu senso religioso se revoltava contra o transcendentalismo prático de uma Hannah More e suas Cheap Repository Tracts Um deles exaltava o exemplo de uma moça mineira do Lancashire Ela fora levada para o poço na idade de nove anos para empurrar o carrinho junto com seu irmão dois anos mais novo10 Ela o seguia seu pai alegremente no poço de carvão 10 More H The Lancashire Colliery Girl maio de 1795 cf Hammond J L E B The Town Labourer 1917 p 230 207 enterrandose nas profundezas da terra e lá numa tenra idade sem usar seu sexo como desculpa ela acompanhava o trabalho dos mineiros uma raça de homens bastante rude mas muito útil para a comunidade O pai foi morto num acidente no poço diante dos filhos Ela então pediu emprego como criada mas havia um preconceito contra ela porque havia sido mineira e ela não conseguiu o emprego Felizmente através dessa reconfortante compensação que transforma as aflições em bênçãos seu caráter e paciência atraíram a atenção foram feitas indagações na mina e as recomendações foram tão elevadas que ela conseguiu o emprego Esta história conclui o folheto pode ensinar ao pobre que é raro ele se encontrar numa condição de vida tão baixa que o impeça de atingir algum grau de independência ao procurar esforçarse e que não pode existir uma situação tão indigna que impeça a prática de muitas virtudes nobres As irmãs More preferiam trabalhar entre operários famintos mas se recusavam a se interessar sequer pelos seus sofrimentos físicos Elas procuravam solucionar o problema físico do industrialismo simplesmente concedendo status e função aos trabalhadores do alto da sua magnanimidade Hannah More insistia que o pai da sua heroína era um membro útil da comunidade a situação da filha foi reconhecida pela compreensão dos seus patrões Hannah More acreditava que nada mais era preciso para o funcionamento de uma sociedade11 Owen afastouse de um Cristianismo que renunciara à tarefa de dominar o mundo do homem e preferia exaltar o status e a função imaginários da desgraçada heroína de Hannah More em vez de enfrentar a terrível revelação que transcendia o Novo Testamento a condição do homem numa sociedade complexa Ninguém pode duvidar da sinceridade que inspirava a convicção de Hannah More de que quanto mais rapidamente o pobre admitisse a sua condição de degradação mais facilmente ele se voltaria para o consolo do céu o único em que ela confiava tanto para a salvação do pobre como para o perfeito funcionamento de uma sociedade de mercado na qual ela acreditava firmemente Mas esses cascos vazios de Cristianismo nos quais vegetava a vida interior dos mais generosos representantes das classes superiores faziam um contraste deficiente com a fé criativa daquela religião de diligência em cujo espírito o povo comum da Inglaterra tentava redimir a sociedade O capitalismo porém ainda tinha um futuro à sua frente 11 Cf Drucker PF The End of Economic Man 1939 p 93 nos English Evangelicalls e The Future of Industrial Man 1942 pp 21 e 194 sobre statutus e função 208 O movimento cartista apelava para um conjunto de impulsos tão diferentes que sua emergência quase poderia ser predita após o fracasso prático do owenismo e de suas iniciativas prematuras Ele foi um esforço puramente político que tentou ganhar influência no governo atravé de canais constitucionais Sua tentativa de pressionar o governo mantinha a linha tradicional do movimento da reforma que havia garantido o voto para as classes médias Os Six Points of the Charter Seis Pontos da Carta Magna exigiam um sufrágio popular efetivo A rigidez intransigente com que o Parlamento reformulado rejeitou esta extensão do voto durante um terço de século o uso da força em razão do apoio da massa em favor da Carta Magna a contrariedade dos liberais da década de 1840 em relação à idéia de um governo popular tudo isso prova que o conceito de democracia era estranho às classes médias inglesas Somente depois que a classe trabalhadora aceitou os princípios de uma economia capitalista e os sindicatos profissionais fizeram do pleno funcionamento da indústria a sua preocupação máxima foi que as classes médias concederam o voto aos trabalhadores mais bem situados Isto só ocorreu porém muito tempo depois que o movimento cartista declinara e havia a certeza de que os trabalhadores não tentariam usar esse privilégio a serviço de quaisquer idéias próprias Do ponto de vista da difusão de formas de existência do mercado isto encontra justificativa pois ajudou a superar os obstáculos apresentados pelas formas subservientes de vida orgânica e tradicional entre o povo trabalhador Nada foi feito porém em relação à tarefa totalmente diversa de restabelecer o povo comum cujas vidas haviam sido desenraizadas na Revolução Industrial e introduzilo no desdobramento de uma cultura nacional comum Não havia mais como recuperar a posi ção pois o investimento que fizeram com o voto ocorrera justamente na ocasião em que já fora infligido um dano irreparável à capacidade do povo de participar da liderança As conclusões dominantes haviam cometido o erro de ampliar o princípio da inflexível dominação de classe para abarcar um tipo de civilização que exigia a unidade cultural e educacional da comunidade para não ser vítima de influências degenerativas O movimento cartista era político e portanto mais fácil de compreender do que o owenismo Todavia é difícil apreender a intensidade emocional ou até mesmo a amplitude desse movimento sem se fazer alguma referência imaginativa à época As décadas de 1789 e 1830 fizeram da revolução uma instituição regular na Europa Em 1848 a data do levante de Paris já havia sido prevista em Berlim e 209 Londres com uma precisão muito mais comum em relação à abertura de uma feira do que de uma sublevação social e revoluções de reforço estouraram prontamente em Berlim Viena Budapeste e algumas cidades da Itália Em Londres também havia grande tensão pois todos inclusive os próprios cartistas esperavam uma ação violenta para compelir o Parlamento a conceder o voto ao povo Menos de 15 dos homens adultos tinham direito ao voto Em toda a história da Inglaterra jamais ocorreu semelhante concentração de forças de prontidão para a defesa da lei e da ordem do que em 12 de abril de 1848 Nesse dia centenas de milhares de cidadãos foram investidos de autoridade policial especial para enfrentar os cartistas A revolução de Paris porém chegou tarde demais para assegurar a vitória de um movimento popular na Inglaterra Nessa ocasião já se dissipava o espírito de revolta acirrado pela Poor Law Reform Act e pelo sofrimento causado pela fome da década de 1840 A onda do comércio ascendente incrementava o emprego e o capitalismo começava a cumprir a sua parte Os cartistas se dispersaram pacificamente O caso deles não foi sequer considerado pelo Parlamento a não ser em data posterior quando sua proposta foi derrotada por uma maioria de cinco a um na Câmara dos Comuns Foi em vão que recolheram milhões de assinaturas foi em ão que os cartistas se comportaram como cidadãos obedientes à lei Seu movimento foi ridicularizado pelos vencedores a ponto de se extinguir Assim terminou o maior esforço político do povo da glaterra para fazer desse país uma democracia popular Um ou dois os mais tarde o cartismo já estava praticamente esquecido Revolução Industrial chegou ao continente meio século mais tarde Lá a classe trabalhadora não havia sido forçada a abandonar a terra por um movimento de cercamento Ao contrário foi o atrativo dos salários os e da vida urbana que levaram o trabalhador agrícola semiservil a donar a pequena propriedade e migrar para a cidade onde ele se associou à classe média baixa tradicional e teve oportunidade de adquirir uma tonalidade urbana Longe de se sentir rebaixado ele se sentiu levado pelo seu novo ambiente É fora de dúvida que as condições de radia eram abomináveis e o alcoolismo e a prostituição imperaram tre os estratos mais baixos dos trabalhadores citadinos até o início do século XX Todavia não havia comparação entre a catástrofe moral e tural do foreiro ou posseiro inglês de ancestralidade decente que se riu afundar sem defesa no lamaçal social e físico das favelas na vizinhança de alguma fábrica e os eslovacos ou o trabalhador agrícola da 210 Pomerânia que se transformava quase que da noite para o dia de peão morador de estábulo em operário industrial de uma metrópole moderna Um trabalhador irlandês ou galês ou um montanhês da Escócia podia passar por uma experiência semelhante vadiando pelas ruas de Manchester ou Liverpool mas o filho de um pequeno proprietário rural inglês ou foreiro despedido certamente não sentia o seu status mais elevado Não foi apenas o lábrego camponês do continente recentemente emancipado que tivera a oportunidade de ascender para as classes médias baixas dos profissionais e comerciantes com suas antigas tradições culturais Até a burguesia socialmente muito acima dele politicamente se situava no mesmo nível tão afastada das fileiras da classe dominante como o próprio camponês As forças da ascendente classe média e da classe trabalhadora se aliavam estreitamente contra a aristocracia feudal e o episcopado romano A intelligentsia principalmente os estudantes universitários cimentava a união entre essas duas classes no seu ataque comum contra o absolutismo e o privilégio Na Inglaterra as classes médias tanto os proprietários rurais e os mercadores do século XVII como os fazendeiros e os comerciantes do século XIX eram fortes o bastante para reivindicar sozinhos os seus direitos e não procuraram o apoio dos trabalhadores nem mesmo durante o seu esforço quase revolucionário de 1832 Além disso a aristocracia inglesa procurava assimilar os recémchegados mais ricos alargando os níveis mais altos da hierarquia social enquanto no continente a aristocracia ainda semifeudal não permitia o casamento de seus pares com a burguesia e a ausência da instituição da primogenitura isolavaa hermeticamente das outras classes Assim cada passo bemsucedido em direção à igualdade de direitos e das liberdades beneficiava tanto as classes médias continentais como as classes trabalhadoras Desde 1830 ou talvez desde 1789 fazia parte da tradição continental contar com a ajuda da classe trabalhadora nas batalhas da burguesia contra o feudalismo ainda que como diz o ditado a classe média lhe roubasse depois os frutos da vitória No entanto quer a classe trabalhadora ganhasse ou perdesse sua experiência se fortalecia e seus objetivos se elevavam a um nível político É isto o que significa adquirir uma consciência de classe As ideologias marxistas cristalizaram a perspectiva do trabalhador urbano a quem as circustâncias ensinaram a usar sua força industrial e política como arma de uma política mais ambiciosa Enquanto os trabalhadores britânicos adquiriam uma experiência incomparável nos problemas pessoais e sociais do sindicalismo inclusive as táticas e as estratégias da ação industrial e deixavam a política 211 nacional para os seus superiores o trabalhador da Europa Central tornvase um socialista político acostumado a lidar com os problemas do estado é verdade que basicamente aqueles que visavam seus prórios interesses tais como leis fabris e legislação social Se decorreu um espaço de tempo de cerca de meio século entre a industrialização da GrãBretanha e a do continente transcorreu um espaço ainda maior na organização da unidade nacional A Itália e a Alemanha só chegaram ao estágio da unificação durante a segunda metade do século XIX unificação essa que a Inglaterra já alcançara séculos antes e os estados menores da Europa Oriental só alcançaram ainda mais tarde As classes trabalhadoras desempenharam um papel vital nesse processo de construção do estado o que fortaleceu ainda mais a sua experiência política Numa era industrial um processo como esse não podia deixar de compreender também uma política social Bismarck procurou a unificação do Segundo Reich introduzindo um esquema de legislação social que marcou época A unidade italiana foi ativada pela nacionalização das ferrovias Na monarquia austrohúngara esse conjunto de raças e povos a própria coroa apelou repetidas vezes para o apoio das classes trabalhadoras na tarefa de realizar a centralização e a unidade imperial Assim através da sua influência na legislação os partidos socialistas e os sindicatos profissionais encontraram muitas aberturas para atender aos interesses do trabalhador industrial também nessa esfera mais ampla As prevenções materialistas toldaram os contornos do problema da classe trabalhadora Os autores britânicos achavam difícil compreender a terrível impressão que as condições capitalistas primitivas no Lancashire causavam aos observadores continentais Eles apontavam para os padrões de vida ainda mais baixos de muitos artesãos da Europa Central nas indústrias têxteis cujas condições de trabalho eram talvez tão ruins como a de seus camaradas ingleses Entretanto tal comparação obscureceu um ponto saliente precisamente aquele que foi a ascensão no status social e político do trabalhador no continente em contraste com a queda nesse status ocorrida na Inglaterra O trabalhador continental não havia sofrido a pauperização degradante da Speenharnland e nem havia na sua experiência qualquer paralelo com a provação arrasadora da New Poor Law Ele mudara ou se elevara do seu status de servo feudal para a condição de operário fabril e logo depois e com participação política para a de operário sindicalizado Assim ele escapou à catástrofe cultural que seguiu na esteira da Revolução Industrial na Inglaterra Além disso o continente foi industrializado 212 numa época em que já se tornara possível o ajuste às novas técnicas produtivas graças quase que exclusivamente à imitação dos métodos ingleses de proteção social12 O trabalhador continental não precisava tanto de proteção contra o impacto da Revolução Industrial num sentido social nunca ocorreu semelhante coisa no continente mas sim contra a ação normal das condições fabris e do mercado de trabalho Isto ele conseguiu principalmente com a ajuda da legislação enquanto seus camaradas britânicos confiavam mais na associação voluntária sindicatos profissionais e seu poder de monopolizar o trabalho Relativamente o seguro social chegou muito mais cedo ao continente do que à Inglaterra A diferença se explica através da inclinação política continental pela concessão do voto às massas trabalhadoras do continente em época comparativamente anterior Embora a diferença entre métodos de proteção compulsório e voluntário legislação versus sindicalismo possa ser facilmente exagerada do ponto de vista econômico do ponto de vista político as suas conseqüências foram amplas No continente os sindicatos profissionais foram uma criação do partido político da classe trabalhadora na Inglaterra o partido político foi uma criação dos sindicatos profissionais Enquanto no continente o sindicalismo se tornou mais ou menos socialista na Inglaterra até mesmo o socialismo político permaneceu essencialmente sindicalista Assim enquanto na Inglaterra o sufrágio universal tendeu a aumentar a unidade nacional no continente ele teve algumas vezes o efeito oposto Foi no continente e não na Inglaterra que se tornaram realidade os pressentimentos de Pitt e Peel de Tocqueville e Macaulay de que um governo popular envolveria uma ameaça para o sistema econômico Do ponto de vista econômico os métodos de proteção social ingleses e continentais levaram a resultados quase idênticos Eles atingiram aquilo a que se propunham a ruptura do mercado para aquele fator de produção conhecido como força de trabalho Um tal mercado só atenderia a seus propósitos se os salários fossem paralelos aos preços Em termos humanos um tal postulado implicava uma extrema instabilidade de vencimentos para o trabalhador a ausência completa de padrões profissionais e a facilidade abjeta de ser impelido e empurrado indiscriminadamente urna completa dependência às fantasias do mercado 12 Knowles L The Industrial and Commercial Revolution in Great Britain During the 19th Century 1926 213 Mises argumentou com razão que se os trabalhadores não agissem como sindicalistas profissionais mas reduzissem suas exigências e mudassem suas localizações e ocupações de acordo com os requisitos do mercado de trabalho eles poderiam eventualmente encontrar trabalho Isto resume a situação vigente sob um sistema baseado no postulado do caráter de mercadoria do trabalho Não cabe à mercadoria decidir onde será oferecida à venda para que finalidade será usada a que preço serlhe á permitido trocar de mãos e de que maneira ela deve ser consumida ou destruída Não ocorreu a ninguém escreveu esse liberal convicto que a falta de salários seria um termo melhor que a falta de emprego porque o que falta à pessoa desempregada não é o trabalho mas a remuneração do trabalho Mises estava certo embora não houvesse qualquer originalidade na sua alegação 150 anos antes dele dizia o bispo Whately Quando o homem pede trabalho ele não está pedindo o trabalho mas o salário Falando tecnicamente é verdade que o desemprego nos países capitalistas se deve ao fato de que tanto a política do governo como a dos sindicatos profissionais objetiva manter um nível de salários que não combina com a produtividade do trabalho existente Como poderia haver desemprego perguntava Mises a não ser pelo fato de que os trabalhadores não querem trabalhar pelo salário que podem obter num mercado de trabalho para esse trabalho particular que são capazes e desejam executar Isto esclarece o que significa realmente a insistência dos patrões em favor da mobilidade da mãodeobra e da flexibilidade dos salários precisamente aquilo que circunscrevemos acima como um mercado no qual o trabalho humano é uma mercadoria O objetivo natural de toda a proteção social era destruir tal instituição e tornar impossível a sua existência Com efeito só se poderia permitir que o mercado de trabalho conservasse a sua função principal desde que os salários e as condições de trabalho os padrões e as regulamentações pudessem resguardar o caráter humano da suposta mercadoria o trabalho Argumentar que a legislação social as leis fabris o seguro desemprego e acima de tudo os sindicatos profissionais não interferiram com a mobilidade da mãodeobra e a flexibilidade dos salários como ocorre algumas vezes é deixar implícito que essas instituições falharam redondamente em seu propósito que foi exatamente interferir com as leis da oferta e da procura em relação ao trabalho humano afastandoo da órbita do mercado 214 15 MERCADO E NATUREZA Aquilo que chamamos terra é um elemento da natureza inexplicavelmente entrelaçado com as instituições do homem IsoláIa e com ela formar um mercado foi talvez o empreendimento mais fantástico dos nossos ancestrais Tradicionalmente a terra e o trabalho não são separados o trabalho é parte da vida a terra continua sendo parte da natureza a vida e a natureza formam um todo articulado A terra se liga assim às organizações de parentesco vizinhança profissão e credo como a tribo e o templo a aldeia a guilda e a igreja Por outro lado Um Grande Mercado é uma combinação de vida econômica que inclui mercados para os fatores da produção Uma vez que esses fatores não se distingam dos elementos das instituições humanas homem e natureza podese ver claramente que a economia de mercado envolve uma sociedade cujas instituições estão subordinadas às exigências do mecanismo de mercado O pressuposto é tão utópico em relação à terra como em relação ao trabalho A função econômica é apenas uma entre as muitas funções vitais da terra Esta dá estabilidade à vida do homem é o local da sua habitação é a condição da sua segurança física é a paisagem e as estações do ano Imaginar a vida do homem sem a terra é o mesmo que imaginálo nascendo sem mãos e pés E no entanto separar a terra homem e organizar a sociedade de forma tal a satisfazer as exigência de um mercado imobiliário foi parte vital do conceito utópico de uma economia de mercado Mais uma vez é na área da colonização moderna que se tor manifesto o verdadeiro significado de um tal empreendimento É irrelevante 215 às vezes se o colonizador precisa da terra em função das riquezas nela contidas ou se ele deseja obrigar os nativos a produzir um excedente de alimentos e matériasprimas E nem faz muita diferença se o nativo trabalha sob a supervisão direta do colonizador ou apenas coagido por uma compulsão indireta o fato é que qualquer que seja o caso o sistema social e cultural da vida nativa tem que ser arrasado antes de mais nada Existe uma estreita analogia entre a situação colonial de hoje em dia e a da Europa Ocidental de um ou dois séculos passados A mobilização da terra que pode ter sido comprimida em alguns poucos anos ou décadas nas regiões exóticas pode ter levado o mesmo número de séculos na Europa Ocidental O desafio se originou do crescimento de outras formas do capitalismo além das puramente comerciais Com os Tudors na Inglaterra surgiu o capitalismo agrícola e sua necessidade de um tratamento individualizado para a terra inclusive as conversões e os cercamentos Já no início do século XVIII surgiu o capitalismo industrial que tanto na França como na Inglaterra foi basicamente rural e precisava de locais para seus moinhos e o alojamento dos trabalhadores Mais poderosa ainda embora afetasse mais o uso da terra do que a sua propriedade foi a ascendência das cidades industriais com sua exigência praticamente ilimitada de alimentos e matériasprimas durante o século XIX Superficialmente havia pouca semelhança nas respostas a esses desafios e no entanto eles foram estágios na subordinação da superfície do planeta às exigências de uma sociedade industrial O primeiro estágio foi a comercialização do solo mobilizando o rendimento feudal da terra O segundo foi o incremento da produção de alimentos e de matériasprimas orgânicas para atender às exigências em escala nacional de uma produção industrial em rápido crescimento O terceiro foi estender esse sistema de produção excedente aos territórios de alémmar e coloniais Com esse último passo a terra e sua produção se inseriram finalmente no esquema de um mercado autoregulável A comercialização do solo foi apenas um outro nome para a liquidação do feudalismo que se iniciou nos centros urbanos ocidentais inclusive na Inglaterra no século XIV e terminou cerca de quinhentos anos mais tarde no decurso das revoluções européias quando foram abolidos os remanescentes da servidão feudal Tirar o homem da terra significava reduzir o corpo econômico a seus elementos de forma que cada elemento pudesse inserirse naquela parte do sistema onde fosse 216 mais útil O novo sistema se organizou de início lado a lado com o antigo que ele tentou assimilar e absorver através da manutenção do controle daquela terra ainda ligada a laços précapitalistas O seqüestro feudal da terra foi abolido O objetivo era a eliminação de todas as reivindicações por parte das organizações de vizinhança ou de parentesco principalmente as da viril estirpe aristocrática assim como as da Igreja reivindicações que isentavam a terra da comercialização ou da hipoteca1 Parte desse objetivo foi atingido pela força individual e a violência parte por revoluções do alto ou de baixo parte pela guerra e a conquista parte pela ação legislativa parte por pressão administrativa parte pela ação espontânea de pessoas privadas em pequena escala ao longo de muito tempo O fato desse transtorno ser rapidamente absorvido ou causar um ferimento aberto no corpo social dependeu basicamente das medidas tomadas para regular o processo Os próprios governos introduziram fatores poderosos de mudança e ajustamento A secularização das terras da Igreja por exemplo foi um dos fundamentos do estado moderno até a época do Risorgimento italiano e bem a propósito ele foi um dos meios principais da transferência ordenada da terra para as mãos de indivíduos privados Os maiores passos isolados foram dados pela Revolução Francesa e pelas reformas benthamitas das décadas de 1830 e 1840 A condição mais favorável para a prosperidade da agricultura escreveu Bentham aparece quando não há entraves doações inalienáveis terras comuns direitos de redenção dízimos Uma tal liberdade no tratamento da propriedade especialmente a propriedade da terra era parte essencial da concepção benthamita de liberdade individual Ampliar essa liberdade de qualquer maneira foi o objetivo e o resultado da legislação do tipo dos Prescriptions Acts dos Inheritance Act Fines and Recoveries Act Real Property Act do amplo Enclosure Act de 1801 e seus sucessores2 assim como os Copyhold Acts de 1841 até 1926 Na França e em grande parte do continente o Code Napoléon instituiu formas de propriedade para a classe média transformando a terra em bem comerciável e tornando a hipoteca um contrato civil privado O segundo passo que superou o primeiro foi a subordinação da terra às necessidades de uma população urbana em rápida expansão Embora o solo não possa ser mobilizado fisicamente a sua produção 1 Brinkmann C Das soziale System dês Kapitalismus Grundriss der Sozialökonomik 1924 2 Dicey A V op citp 226 217 pode se os meios de transporte e a lei permitem Assim a mobilidade dos bens compensa de alguma forma a falta de mobilidade interregional dos fatores ou o que é a mesma coisa o comércio atenua as desvantagens da distribuição geográfica inconveniente dos recursos produtivos3 Uma noção como essa era totalmente estranha à perspectiva tradicional Nem na antiguidade nem no princípio da Idade Média e isto deve ser afirmado enfaticamente eram regularmente comprados e vendidos os bens da vida cotidiana4 Suponhase que os excedentes de cereais aprovisionariam a vizinhança especialmente a cidade local e até o século XV os mercados de trigo tinham uma organização estritamente local Todavia o crescimento das cidades induziu os senhores de terra a produzir basicamente para a venda no mercado e na Inglaterra o crescimento das metrópoles compeliu as autoridades a abrandar as restrições sobre o comércio do trigo e permitirlhe tornarse regional embora nunca nacional A aglomeração das populações nas cidades industriais na segunda metade do século XVIII mudou completamente a situação primeiro em escala nacional depois em escala mundial Efetuar essa transformação foi o verdadeiro significado do livre comércio A mobilização do produto da terra se estendeu do campo vizinho para as regiões tropical e subtropical a divisão do trabalho industrialagrícola foi aplicada ao planeta O resultado foi que os povos de zonas distantes foram engolfados pelo turbilhão da mudança cujas origens eram obscuras para eles enquanto as nações européias se tornavam dependentes de uma integração ainda não garantida na vida da humanidade para as suas atividades cotidianas Com o livre comércio as novas e tremendas casualidades da interdependência planetária ganharam corpo O escopo da defesa social contra o deslocamento total foi tão amplo quanto a frente do ataque Embora a lei comum e a legislação apressassem a mudança em certas ocasiões elas a atrasaram em outras Todavia a lei comum e a lei estatutária não atuavam necessariamente na mesma direção em qualquer tempo dado 3 Ohlin B Interregional and International Trade 1935 p 42 4 Bücher K Entstehung der Volkwirtschaft 1904 Cf também Penrose E F Population Theories and their Application 1934 que cita Longfield 1834 como a primeira menção da idéia de que os movimentos das mercadorias podem ser vistos como substitutos para movimentos dos fatores de produção 218 A lei comum desempenhou um papel eminentemente positivo no advento do mercado de trabalho a teoria do trabalho como mercadoria foi apresentada em primeiro lugar e enfaticamente não por economistas mas por advogados Também no caso das combinações de trabalho e da lei de conspiração a lei comum favoreceu um mercado livre de trabalho embora isto significasse restringir a liberdade de associação dos trabalhadores organizados No que diz respeito à terra porém a lei comum abandonou o seu papel de encorajadora da mudança opondose a ela Durante os séculos XVI e XVII era mais freqüente a lei comum insistir no direito do proprietário de melhorar a sua terra em seu proveito mesmo que isto implicasse um grave deslocamento de habitações e emprego Como sabemos no continente esse processo de mobilização estava sob a jurisdição da lei romana enquanto na Inglaterra a lei comum se fez valer e conseguiu diminuir o abismo entre os direitos restritos da propriedade medieval e da propriedade individual moderna sem sacrificar o princípio da lei jurídica vital para a liberdade constitucional Por outro lado desde o século XVIII a lei comum da terra atuava como preservadora do passado em face da legislação modernizadora Os benthamitas porém acabaram conseguindo o seu intento e entre 1830 e 1860 a liberdade de contrato foi estendida à terra Essa po ero tendência só se inverteu na década de 1870 quando a legislação alterou radicalmente o seu curso Havia começado o período coletivista A inércia da lei comum foi deliberadamente acentuada por estatutos expressamente votados para proteger as habitações e as ocupações das classes rurais contra os efeitos da liberdade de contrato Desenvolveuse um amplo esforço para assegurar algum grau de higiene e salubridade na moradia dos pobres fornecerlhes loteamentos concederlhes a oportunidade de fugir das favelas e respirar o ar fresco da natureza o parque dos cavalheiros Infelizes irlandeses e favelados londrinos eram salvos do guante das leis de mercado através de atos legislativos destinados a proteger suas habitações contra o monstro o progresso No continente foi principalmente a lei estatutária e a ação administrativa que salvaram o rendeiro o camponês o trabalhador agrícola dos efeitos mais violentos da urbanização Prussianos conservadores como Rodbertus cujo socialismo Junker influenciou Marx eram irmãos de sangue dos democratas Tory da Inglaterra Surgiu assim o problema da proteção para as populações agrícolas de países e continentes inteiros O comércio livre internacional sem barreiras deveria necessariamente eliminar organismos cada vez mais 219 compactos de produtores agrícolas5 Esse processo inevitável de destruição se agravava ainda mais com a descontinuidade inerente ao desenvolvimento dos meios de transporte modernos demasiado dispendiosos para se estenderem às novas regiões do planeta a menos que a recompensa fosse bastante alta Realizados os grandes investimentos a construção de navios a vapor e ferrovias continentes inteiros se abriam e uma avalanche de cereais invadiu a infeliz Europa Isto contrariava o prognóstico clássico Ricardo transformara num axioma que a terra mais fértil se consolidaria primeiro Numa ironia espetacular as ferrovias encontraram terras mais férteis nas antípodas A Europa entral temendo a destruição total da sua sociedade rural se viu forçada a proteger o seu campesinato introduzindo leis do trigo Entretanto se os estados organizados da Europa podiam se proteger contra a repercussão do comércio livre internacional o mesmo não ocorria com os povos coloniais politicamente não organizados A revolta contra o imperialismo foi principalmente uma tentativa dos povos exóticos de alcançar o status político necessário para protegêIos das distorções sociais causadas pelas políticas comerciais européias A proteção de que o homem branco podia assegurarse com facilidade pelo status soberano de suas comunidades estava fora do alcance do homem de cor enquanto lhe faltasse o prérequisito o governo político As classes comerciais patrocinavam a exigência de mobilização da terra Cobden deixou estarrecidos os senhores rurais da Inglaterra com sua descoberta de que cultivar a terra era um negócio e aqueles que estavam falidos deveriam abandonáIa As classes trabalhadoras foram conquistadas pelo livre comércio quando se tornou aparente que ele tornava o alimento mais barato Os sindicatos profissionais se tornaram os bastiões do antiagrarianismo e o socialismo revolucionário estigmatizou o campesinato do mundo como massa indiscrirninada de reacionários A divisão internacional do trabalho foi um credo progressista sem dúvida e seus adversários eram recrutados muitas vezes entre aqueles cujo julgamento já estava viciado por interesses investidos ou por falta de inteligência natural As poucas mentes independentes e desinteressadas que descobriram as falácias do comércio livre irrestrito eram em número demasiado pequeno para causar qualquer impacto 5 Borkenau F The Totalitarian Enemy 1939 capítulo Towards Collectivism 220 Todavia as suas conseqüências não foram menos reais pelo fato de não terem sido reconhecidos conscientemente Com efeito a grande influência exerci da pelos interesses fundiários na Europa Ocidental e a sobrevivência de formas de vida feudal na Europa Central e Oriental durante o século XIX têm uma explicação cabal na função protetora vital dessas forças ao retardarem a mobilização da terra A questão surgia sempre o que permitiu à aristocracia feudal do continente manter sua influência num estado de classe média quando já havia perdido as funções militar jurídica e administrativa às quais deviam a sua ascendência A teoria das sobrevivências aparecia às vezes corno explicação mercê da qual instituições sem função ou certas características podem continuar a existir em virtude da inércia Todavia seria mais correto dizer que nenhuma instituição jamais sobrevive à sua função quando parece fazê lo é porque ela atende a alguma outra função ou funções que não precisam incluir a original Assim o feudalismo e o conservadorismo fundiário mantiveram a sua força enquanto serviram um propósito que por acaso foi o de restringir os efeitos desastrosos da mobilização da terra Nessa ocasião os adeptos do livre comércio já haviam esquecido que a terra era parte do território do país e que o caráter territorial de soberania não era apenas um resultado de associações sentimentais porém de fatos concretos inclusive fatos econômicos Em contraste com os povos nômades o cultivador se incumbe de aperfeiçoamentos determinados para um lugar particular Sem esses aperfeiçoamentos a vida humana continuaria a ser elementar e pouco diferente da dos animais E quão grande foi o papel desempenhado por essas benfeitorias na história humana São elas as terras limpas e cultivadas as casas e outras construções os meios de comunicação a fábrica multiforme necessária à produção inclusive a indústria e a mineração todos os aperfeiçoamentos permanentes e irremovíveis que ligam urna comunidade humana à localidade em que se situa Eles não podem ser improvisados têm que ser construídos gradualmente por gerações de esforço paciente e a comunidade não pode se permitir sacrificáIos e começar novamente em outro lugar Daí o caráter territorial da soberania que impregna nossas concepções políticas6 Durante um século essas verdades óbvias foram ridicularizadas O argumento econômico podia se ampliar facilmente de forma a englobar as condições de segurança e estabilidade ligadas à integridade 6 Hawtrey RG The Economic Problem 1933 221 do solo e dos seus recursos o vigor e a perseverança da população a abundância de alimentos a quantidade e o caráter dos materiais de defesa até mesmo o clima do país que podia sofrer com o desnudamento das florestas as erosões e as dunas tudo aquilo que em última análise depende do fator terra embora nenhuma das quais responda ao mecanismo de oferta e procura do mercado Dado um sistema inteiramente dependente das funções do mercado para a defesa das suas necessidades existenciais a confiança voltarseá naturalmente para aquelas forças fora do sistema de mercado capazes de proteger os interesses comuns ameaçados por aquele sistema Essa perspectiva combina com a apreciação que fazemos das verdadeiras fontes de influência da classe ao invés de tentar explicar os acontecimentos que ocorrem contrariamente à tendência geral da época através da influência inexplicável das classes reacionárias preferimos explicar a influência de tais classes pelo fato de que elas embora casualmente apóiam os acontecimentos só aparentemente contrários ao interesse geral da comunidade O fato dos seus próprios interesses serem quase sempre bem atendidos por uma tal política apenas oferece mais uma ilustração da verdade do fato de que as classes conseguem se aproveitar desproporcionalmente daqueles mesmos serviços que parecem prestar à comunidade como um todo A Speenhamland aparece como exemplo O proprietário rural que dominava a aldeia descobriu uma forma de diminuir a alta dos salários rurais e a distorção que ameaçava a estrutura tradicional da vida aldeã A longo prazo o método escolhido estava fadado a produzir os resultados mais nefastos Os proprietários rurais porém não poderiam manter os seus métodos a não ser que ao fazêlo eles tenham ajudado o país como um todo a enfrentar o vagalhão da Revolução Industrial No continente da Europa o protecionismo agrário também foi uma necessidade As forças intelectuais mais ativas da época porém estavam engajadas numa aventura que modificou seu ângulo de visão de forma a lhes ocultar o verdadeiro significado da condição agrária Sob as circunstâncias um grupo capaz de representar os interesses rurais ameaçados poderia adquirir uma influência fora de proporção com o seu número O contramovimento protecionista na verdade conseguiu estabilizar o campo europeu e enfraquecer o fluxo em direção às cidades que era o tormento da época A reação foi a beneficiária de uma função socialmente útil que lhe coube executar A mesma função que permitiu às classes reacionárias da Europa jogar com os sentimentos tradicionais em sua luta por tarifas agrárias foi responsável na América do Norte cerca de meio século mais 222 tarde pelo sucesso da TVA e outras técnicas sociais progressistas As mesmas necessidades da sociedade que beneficiaram a democracia no Novo Mundo fortaleceram a influência da aristocracia no Velho Mundo A oposição à mobilização da terra foi o pano de fundo sociológico na luta entre o liberalismo e a reação que constituiu a história política da Europa continental no século XIX Nessa luta os militares e o clero mais elevado eram aliados das classes fundiárias que haviam praticamente perdido suas funções mais imediatas na sociedade Essas classes estavam prontas para qualquer solução reacionária do impasse ao qual ameaçava conduzir a economia de mercado e seu corolário o governo constitucional já que por tradição e ideologia elas não estavam ligadas às liberdades públicas e regras parlamentares Em resumo o liberalismo econômico estava aferrado ao estado liberal enquanto o mesmo não ocorria com os interesses fundiários esta foi a fonte do seu significado político permanente no continente que produziu as correntes cruzadas da política prussiana sob Bismarck que alimentou a revanche clerical e militarista na França que garantiu a influência da aristocracia feudal na corte do império dos Habsburgs que fez da Igreja e do exército os guardiães dos tronos em derrocada Uma vez que a ligação sobreviveu às duas gerações críticas que John Maynard Keynes uma vez indicou como a alternativa prática da eternidadeta terra e a propriedade fundiária recebiam agora a pecha de um preconceito congênito de reação A Inglaterra do século XVIII com o seu livre comércio Tory e seus pioneiros agrários já estava tão esquecida quanto os açambarcadores Tudors e seus métodos revolucionários de ganhar dinheiro com a terra Os senhores de terra fisiocratas da França e da Alemanha com seu entusiasmo pelo comércio livre foram obliterados da mentalidade pública pelo preconceito moderno do atraso permanente do cenário rural Herbert Spencer para quem uma geração era suficiente como amostra de eternidade identificava simplesmente o militarismo com a reação A adaptabilidade social e tecnológica recentemente demonstrada pelos exércitos japonês russo e nazista seria inconcebível para ele É claro que tais pensamentos eram limitados pela época As estupendas realizações industriais da economia de mercado haviam sido atingidas ao preço de grande dano para a substância da sociedade As classes feudais encontraram aí uma oportunidade para recuperar parte do prestígio perdido transformandose em defensoras das virtudes da terra e dos seus cultivadores No romantismo literário a natureza havia feito uma aliança com o passado no movimento agrário do século XIX o 223 feudalismo tentava e às vezes com sucesso recuperar seu passado apresentandose como o guarclião do habitat do homem o solo Se o perigo não fosse genuíno o estratagema não surtiria efeito O exército e a Igreja também adquiriram prestígio por estarem aptos a defender a lei e a ordem agora mais vulneráveis enquanto a classe média dominante não estava aparelhada para garantir essa exigência da nova economia O sistema de mercado era mais alérgico a tumultos do que qualquer outro sistema econômico que conhecemos Os governos Tudors dependiam dos tumultos para chamar a atenção para as reclamações locais alguns líderes podiam ser enforcados mas não havia outros danos A ascensão do mercado financeiro significou uma ruptura total nessa atitude após 1797 o tumulto deixou de ser um aspecto popular da vida londrina e seu lugar foi sendo ocupado gradualmente por reuniões nas quais pelo menos no princípio era escasso o número de participantes pois do contrário elas seriam dissolvidas7 O rei prussiano que proclamou que manter a paz era o primeiro e mais importante dever do súdito ficou famoso por esse paradoxo que no entanto logo tornouse um lugarcomum No século XIX os rompimentos da paz se feitos por multidões armadas eram considerados rebelião incipiente e um grande perigo para o estado as ações entravam em colapso e não havia mais fundo para os preços Uma desordem com tiroteio nas ruas da metrópole podia destruir parte substancial do capital nacional nominal E no entanto as classes médias eram antirnilitares a democracia popular se orgulhava de dar voz às massas No continente a burguesia ainda se apegava à lembrança da sua juventude revolucionária quando ela própria enfrentara uma aristocracia tirânica nas barricadas O campesinato menos contaminado pelo vírus liberal foi casualmente reconhecido como o único estrato que os apoiaria na manutenção da lei e da ordem Compreendeuse que uma das funções da reação era manter as classes trabalhadoras em seu lugar de forma a não ocorrer pânico nos mercados Embora esse serviço fosse exigido com pouca freqüência a disponibilidade do campesinato como defensor do direito de propriedade era um trunfo para a área agrária 7 Trevelyan G M History of England 1926 p 533 A Inglaterra sob Walpole ainda era uma aristrocracia temperada por tumultos A canção The Riot do depósito de Hannah More foi escrita em novemta e cinco um ano de escassez e alarme foi o ano da Speenhamland Cf The Repository Tracts vol I Nova York 1835 Tambem The Library 1940 quarta série vol XX p 295 da Cheap Repository Tracts 1795 1798 224 A história da década de 1920 não poderia ter outra explicação Na Europa Central quando a estrutura social ruiu sob a pressão da guerra e da derrora só a classe trabalhadora estava apta para a tarefa de manter as coisas em andamento Assim em todos os lugares atribuiuse poder aos sindicatos profissionais e partidos social democratas a Áustria a Hungria e até mesmo a Alemanha foram declaradas repúblicas embora não se soubesse da existência de um partido republicano ativo em qualquer desses países Entretanto logo que passou o período mais agudo da dissolução e os serviços dos sindicatos profissionais se tornaram supérfluos as classes médias tentaram excluir as classes trabalhadoras de toda influência na vida pública Esta é conhecida como a fase contrarevolucionária do período pósguerra Na verdade jamais existiu o perigo real de um regime comunista pois os operários estavam organizados em partidos e sindicatos ativamente hostis aos comunistas Na Hungria o episódio bolchevista foi literalmente imposto ao país quando a defesa contra a invasão francesa não deixou outra alternativa à nação O perigo não era o bolchevismo mas o desprezo às regras da economia de mercado por parte dos sindicatos profissionais e partidos da classe trabalhadora numa emergência Sob uma economia de mercado as interrupções às vezes inofensivas da ordem pública e das práticas comerciais podiam representar uma ameaça letal8 já que podiam acarretar a quebra do regime econômico do qual a sociedade dependia para o seu pão cotidiano Isto explica a mudança marcante ocorrida em alguns países de uma supostamente iminente ditadura do operariado industrial para a verdadeira ditadura do campesinato Durante a década de 1930 o campesinato determinou a política econômica de uma série de estados nos quais normalmente desempenharia um papel modesto Mas ele era agora a única classe apta a manter a lei e a ordem no sentido moderno muito revigorado do termo O agrarianismo feroz da Europa pósguerra é apenas uma ilustração do tratamento preferencial dispensado à classe camponesa por razões políticas Desde o movimento Lappo na Finlândia até o Heimwehr austríaco os camponeses provaram ser os campeões da economia de mercado o que os tornou politicamente indispensáveis A escassez de alimentos nos primeiros anos do pósguerra à qual muitas vezes se credita a ascendência deles na verdade pouco teve a ver com isto A Áustria por exemplo para poder beneficiar financeiramente os camponeses teve que baixar 8 Hayes C A Generation of Materialism 18701890 observa qaue a maioria dos estados individuais pelo menos na Europa Central e Ocidental possuía agora uma estabilidade interna aparentemente exagerada 225 seus padrões alimentícios impondo taxações aos cereais embora dependesse fortemente das importações para atender as suas exigências alimentares O interesse camponês tinha que ser defendido a todo custo ainda que o protecionismo agrário significasse miséria para os habitantes da cidade e um custo irracionalmente elevado da produção para as indústrias de exportação A classe dos camponeses anteriormente pouco influente ganhou assim uma ascendência bastante desproporcional à sua importância econômica O medo do bolchevismo era a força que tornava inexpugnável a sua posição política Esse receio porém como vimos não era o medo de uma ditadura da classe trabalhadora não havia qualquer perspectiva de algo remotamente semelhante mas o medo de uma paralisia na economia de mercado a menos que fossem eliminadas do cenário político todas as forças que sob coação poderiam colocar de lado as regras do jogo de mercado Enquanto os camponeses eram a única classe capaz de eliminar essas forças seu prestígio permaneceu elevado e eles puderam exercer pressão sobre a classe média urbana Entretanto com a consolidação do poder do estado e mesmo antes disso com a arregimentação da classe média baixa urbana para a formação das tropas de choque fascistas a burguesia se libertou da sua dependência ao campesinato e o prestígio desse último decaiu rapidamente Uma vez neutralizado ou diminuído o inimigo interno nas cidades e fábricas o campesinato foi relegado à sua modesta posição anterior na sociedade industrial A influência dos grandes proprietários rurais não partilhou porém desse eclipse Um fator mais constante trabalhava a seu favor a crescente importância militar da auto suficiência agrícola A Grande Guerra havia tornado públicos os fatos estratégicos básicos e a dependência irrestrita ao mercado mundial cedeu lugar a uma acumulação pânica da capacidade de produzir alimentos A reagrarianização da Europa Central iniciada pelo medo bolchevique foi completada sob o signo da autarquia Além do argumento do inimigo interno havia agora o do inimigo externo Os economistas liberais como sempre viam apenas uma aberração romântica provocada por doutrinas econômicas pouco sólidas quando na realidade os acontecimentos políticos despertavam até mesmo as mentes mais simples para a irrelevância das considerações econômicas em face da dissolução iminente do sistema internacional Genebra prosseguia nas suas fúteis tentativas de convencer os povos de que se precaviam contra perigos imaginários e que se todos agissem em uníssono o livre comércio poderia ser restaurado e beneficiaria a todos Na atmosfera curiosamente crédula da época muitos consideravam que a solução do problema econômico o que quer que isto significasse não evitaria apenas a ameaça de 226 guerra mas a afastaria para sempre Uma paz de cem anos havia criado uma muralha intransponível de ilusões que ocultava os fatos Os autores desse período se excediam pela falta de realismo O estadonação era considerado um preconceito paroquial por A J Toynbee a soberania uma ilusão ridícula por Ludwig von Mises a guerra um cálculo errado dos negócios por Norman Angell A percepção da natureza fundamental dos problemas da política caiu a um nível sem precedentes O livre comércio que em 1846 havia sido combatido e fora vitorioso com as Com Laws oitenta anos mais tarde foi combatido novamente e desta vez perdeu em relação ao mesmo assunto Desde o seu início o problema da autarquia assombrava a economia de mercado Assim os liberais econômicos exorcizavam o espectro da guerra e baseavam ingenuamente seu caso no pressuposto de uma economia de mercado indestrutível Passou despercebido que seus argumentos apenas demostravam quão grande era o perigo para a segurança de um povo depender de uma instituição tão frágil como um mercado autoregulável O movimento autárquico da década de 1920 foi essencialmente profético ele mostrou a necessidade de se ajustar ao desaparecimento de uma ordem A guerra revelara o perigo e os homens agiram em conformidade com ele mas como agiram dez anos mais tarde a ligação entre causa e efeito foi descartada como irracional Por que protegerse contra perigos ultrapassados Era o comentário de muitos contemporâneos Essa lógica capenga não obscureceu apenas a compreensão da autarquia mas também do fascismo muito mais importante Na verdade ambos eram explicados pelo fato de que quando a mente comum recebe a impressão de um perigo o medo permanece latente enquanto não se removem as suas causas Sustentamos que as nações da Europa jamais superaram o choque da experiência de guerra que confrontouas inesperadamente com os perigos da interdependência O comércio foi retomado em vão e foi em vão que uma série de conferências internacionais exibiu idílios da paz e que dúzias de governos se declararam a favor do princípio da liberdade de comércio nenhum povo podia esquecer que nem uma moeda sólida nem um crédito ilimitado poderia salválo do seu desamparo a menos que ele tivesse a posse dos seus próprios alimentos e de fontes de matériasprimas ou a garantia do acesso militar a eles Nada havia de mais lógico do que a solidez dessa consideração fundamental que modelou a política das comuni dades A fonte do perigo não fora removida por que esperar então que o medo se dissipasse 227 Uma falácia semelhante enganava aqueles críticos do fascismo e eles eram a grande maioria que o descreviam como uma extravagância isenta de qualquer ratio político Mussolini alegava ter evitado o bolchevismo na Itália diziase mas as estatísticas comprovaram que a onda de greves já havia diminuído mais de um ano antes da Marcha sobre Roma Trabalhadores armados haviam ocupado as fábricas em 1921 admitiase mas seria essa uma razão válida para desarrnálos em 1923 quando eles já haviam abandonado há muito os muros onde montavam guarda Hitler sustentava ter salvo a Alemanha do bolchevismo Mas não se podia demonstrar então que o fluxo de desemprego que precedera a sua ascensão a chanceler já havia diminuído antes mesmo da sua subida ao poder Alegar que ele havia impedido aquilo que não mais existia quando ele apareceu como se argumentava então era contrário à lei de causa e efeito que também deve contar na política Na verdade tanto na Alemanha quanto na Itália a estória do período imediato pósguerra provou que o bolchevismo não tinha mais a remota possibilidade de sucesso Mas ele provou também conclusivamente que numa emergência a classe trabalhadora seus sindicatos profissionais e partidos podiam abandonar as regras do mercado que estabeleciam a liberdade do contrato e a santidade da propriedade privada como algo absoluto uma possibilidade que poderia ter os efeitos mais deletérios sobre a sociedade desencorajando investimentos impedindo a acumulação do capital mantendo os salários em nível nãoremunerativo ameaçando a moeda minando o crédito estrangeiro enfraquecendo a confiança e paralisando o empreendimento A fonte do medo latente que numa conjuntura crucial se transformou no pânico fascista não foi o perigo ilusório de uma revolução comunista mas o fato inegável de que as classes trabalhadoras estavam em posição de forçar intervenções possivelmente ruinosas Os perigos que ameaçam o homem e a natureza não podem ser separados simplesmente As reações da classe trabalhadora e do campesinato à economia de mercado levaram ao protecionismo a primeira principalmente sob a forma de uma legislação social e leis fabris a última sob a forma de tarifas agrárias e leis fundiárias Todavia havia essa importante diferença numa emergência os fazendeiros e os camponeses da Europa defenderam o sistema de mercado que a política das classes trabalhadoras ameaçava Embora a crise do sistema inerentemente instável fosse acarretada por ambas as alas do movimento protecionista os estratos sociais ligados à terra estavam inclinados a um compromisso com o sistema de mercado enquanto a ampla classe do trabalho não se furtava a quebrar suas regras e desafiálo abertamente 228 16 MERCADO E ORGANIZAÇÃO PRODUTIVA O próprio negócio capitalista também teve que ser protegido do funcionamento irrestrito do mecanismo de mercado Isto deveria dissipar a suspeita que os termos simples homem e natureza às vezes despertam nas mentes sofisticadas que procuram denunciar toda conversa sobre proteção ao trabalho e à terra como o produto de idéias antiquadas ou como simples camuflagem de interesses investidos Na verdade no caso da empresa produtiva o perigo era tão real e objetivo como no do homem e no da natureza A necessidade de proteção surgiu em decorrência da maneira pela qual se organizou o fornecimento de dinheiro sob um sistema de mercado O Banco Central moderno foi de fato um artifício desenvolvido basicamente com o propósito de oferecer proteção e sem ele o mercado teria destruído seus próprios filhos as empresas comerciais de todos os tipos Foi essa forma de proteção porém que contribuiu mais imediatamente para a queda do sistema internacional Enquanto são bastante óbvios os perigos que ameaçaram a terra e o trabalho com a voragem do mercado os perigos para os negócios inerentes a um sistema monetário não são prontamente apreendidos Se os lucros dependem dos preços então os ajustes monetários dos quais os preços dependem têm que ser vitais para o funcionamento de qualquer sistema motivado pelo lucro A longo prazo as mudança nos preços de venda não precisam afetar o lucro pois os custos subirão ou descerão de forma correspondente isto não ocorre porém a curto prazo pois deve transcorrer num lapso de tempo antes que se 229 modifiquem os preços fixados contratualmente Entre estes está o preço do trabalho que como muitos outros preços seria fixado por contrato naturalmente Assim se o nível de preço baixasse durante um tempo considerável por razões monetárias o negócio correria o risco da liquidação acompanhada pela dissolução da organização produtiva e a destruição maciça do capital O perigo não era portanto os baixos preços mas a queda desses preços Hume tornouse fundador da teoria quantitativa do dinheiro com suas descobertas de que os negócios não são afetados se a quantidade de dinheiro diminuir pela metade pois os preços simplesmente se ajustarão à metade do seu nível anterior Mas ele se esqueceu de que o negócio poderia ser destruído durante o processo Esta é a razão facilmente compreensível por que um sistema de dinheiro como mercadoria tal como o mecanismo do mercado tende a produzir sem interferência externa é incompatível com a produção industrialÍá mercadoria dinheiro é simplesmente uma mercadoria que pode funcionar como dinheiro e portanto em princípio sua quantidade não pode ser aumentada de forma alguma exceto diminuindo a quantidade das mercadorias que não funcionam como dinheiro Na prática a mercadoria dinheiro é geralmente o ouro ou a prata cuja quantidade pode ser aumentada mas pouco a curto prazo Entretanto a expansão da produção e do comércio desacompanhada de um aumento na quantidade de dinheiro deve causar uma queda no nível dos preços precisamente o tipo de deflação ruinosa que temos em mente A escassez do dinheiro era uma queixa permanente e grave das comunidades mercadoras do século XVII Em época primitiva já se desenvolvera um tipo de dinheiro convencional para proteger o comércio contra as deflações forçadas que acompanhavam o uso das espécies quando aumentava o volume dos negócios Não era possível uma economia de mercado sem a mediação desse dinheiro artificial A dificuldade real surgiu com a necessidade de câmbios externos estáveis e a conseqüente introdução do padrãoouro aproximadamente à época das guerras napoleônicas Os câmbios estáveis se tornaram fundamentais para a própria existência da economia inglesa Londres se tornara o centro financeiro de um crescente comércio mundial Entretanto só a mercadoria dinheiro poderia servir a essa finalidade pela razão óbvia de que um dinheiro convencional seja bancário ou de curso forçado não pode circular em solo estrangeiro Daí entrar em evidência o padrãoouro o nome aceito para um sistema de mercadoria internacional dinheiro 230 Sabemos que a espécie é um dinheiro inadequado para propósitos domésticos justamente porque ela é uma mercadoria e sua quantidade não pode ser aumentada a belprazer A quantidade de ouro disponível pode ser aumentada de alguns por cento durante um ano porém não por muitas dezenas em poucas semanas como pode ocorrer numa expansão súbita de transações Na falta de um dinheiro convencional os negócios teriam que ser cerceados ou levados a efeito a preços muito mais baixos provocando um colapso e criando o desemprego A sua forma mais simples o problema era o seguinte a mercadoria dinheiro era vital para a existência do comércio exterior e o dinheiro convencional para a existência do comércio doméstico Até que ponto eles concordavam um com o outro Nas condições do século XIX o comércio exterior e o padrãoouro tiveram uma prioridade indiscutível sobre as necessidades dos negócios domésticos O funcionamento do padrãoouro exigia o rebaixamento dos preços domésticos sempre que o câmbio era ameaçado de depreciação Uma vez que a deflação surge através das restrições do crédito seguese que o funcionamento da mercadoria dinheiro interferia com o funcionamento do sistema de crédito Este era um perigo permanente para os negócios Todavia estava inteiramente fora de questão abandonar completamente o dinheiro convencional e restringir o meio circularte à mercadoria dinheiro pois esse remédio seria pior que a doença O Banco Central abrandou muito esse defeitedo dinheiro de crédito Centralizando o fornecimento de crédito num país era possível impedir o deslocamento total dos negócios e do emprego envolvidos na deflação e organizar a deflação de modo a absorver o choque e distribuir sua carga sobre todo o país Na sua função normal o banco estava amortecendo os efeitos imediatos das retiradas de ouro sobre a circulação d9 notas bem como sobre a circulação diminuída de papéis de negócios O banco podia usar vários métodos Os empréstimos a curto prazo podiam cobrir a brecha provocada pela perdas de ouro a curto prazo e evitar a necessidade de restringir o crédito Mesmo quando as restrições de crédito eram inevitáveis como acontecia muitas vezes a atuação do banco tinha um efeito amortecedor a elevação da taxa bancária assim como as operações de mercado aberto distribuíam os efeitos das restrições por toda a comunidade enquanto o encargo das restrições era transferido para os ombros mais fortes Observemos o caso crucial da transferência de pagamentos unilaterais de um país para outro como os que podiam ser provocados por 231 uma mudança na demanda de tipo de alimentos de domésticos para estrangeiros O ouro que precisa ser remetido para o exterior agora em pagamento dos alimentos importados teria sido usado para pagamentos dentro do país e sua falta deve causar uma queda nas vendas domésticas e uma conseqüente baixa nos preços Chamaremos de transacional a esse tipo de deflação pois ela se espalha de uma firma individual para outra de acordo com suas transações comerciais fortuitas A difusão da deflação alcançará por fim as firmas de exportação atingindo assim o excedente exportável que representa a transferência real O prejuízo e dano causado à comunidade em geral serão muito maiores do que os estritamente necessários para atingir esse excedente exportável Sempre existem firmas a ponto de poderem exportar que precisam apenas do incentivo de uma pequena redução nos custos para lançarse ao ataque e essa redução pode ser alcançada na forma mais econômica distribuindo a deflação levemente sobre toda a comunidade de negócios Esta foi precisamente uma das funções do Banco Central A grande pressão da sua política de descontos e mercado aberto forçou a baixa mais ou menos eqüitativa dos preços domésticos e permitiu às firmas a ponto de exportar retomarem ou aumentarem as exportações enquanto apenas as firmas menos eficientes eram obrigadas a liquidar A transferência real seria obtida assim à custa de um deslocamento em quantidade muito menor do que o necessário para atingir o mesmo excedente exportável através do método irracional dos choques acidentais e muitas vezes catastróficos transmitidos pelos estreitos canais da deflação transacional O fato de que apesar da utilização desses mecanismos para minorar os efeitos da deflação o resultado ser cada vez mais uma completa desorganização dos negócios e o conseqüente desemprego em massa representa a mais poderosa de todas as acusações ao padrãoouro O caso do dinheiro revelou uma analogia muito real à do trabalho e da terra A aplicação da ficção da mercadoria a cada um deles levou à sua inclusão efetiva no sistema de mercado enquanto se desenvolveram ao mesmo tempo graves riscos para a sociedade No caso do dinheiro a ameaça era à empresa produtiva cuja existência era arriscada por qualquer queda no nível de preços provocada pelo uso da mercadoria dinheiro Aqui também medidas de proteção tiveram que ser tomadas e o resultado foi colocar fora de ação o mecanismo autodiretivo do mercado O Banco Central reduziu o automatismo do padrãoouro a uma simples pretensão Ele significava uma direção central para o meio circulante 232 e a substituição da manipulação pelo mecanismo autoregulador do fornecimento de crédito aipda que esse artifício nem sempre tenha ido deliberado e consciente Reconheciase cada vez mais que o adrãoouro internacional só poderia tornarse auto regulador se os países abandonassem a instituição bancária central Um dos adeptos mais sólidos do padrãoouro e que defendia essa medida desesperada era Ludwig von Mises seu conselho se seguido teria transformado as economias nacionais num monte de ruínas A maior parte da confusão existente na teoria monetária se devia à eparação entre política e economia esta característica mar cante de uma sociedade de mercado Durante mais de um século o dinheiro foi visto como uma categoria puramente econômica uma mercadoria usada com a finalidade da troca indireta Se o ouro era a mercadoria preferida então existia o padrãoouro O atributo internacional em relação a esse padrão não tinha qualquer significado pois para o economista as nações não existiam as transações não eram efetuadas entre nações mas entre indivíduos cuja lealdade política era tão irrelevante como a cor dos seus cabelos filicardo doutrinou a Inglaterra do século XIX com a convicção de que o termo dinheiro significava um meio de troca que as notas bancárias eram um simples caso de conveniência pois sua utilidade consistia em serem mais fáceis de lidar do que o ouro mas que o seu valor derivava da certeza em que a sua posse nos fornecia os meios de adquirir a qualquer tempo a própria mercadoria ou ouro Seguese daí que o caráter nacional das moedas não tinha qualquer conseqüência uma vez que elas eram apenas símbolos que representavam a mesma mercadoriajSe era imprudente um governo desenvolver qualquer esforço para se apossar do ouro uma vez que a distribuição dessa mercadoria se regulava no mercado mundial exatamente como qualquer outra era ainda mais imprudente imaginar que os símbolos nacionalmente diferentes tinham qualquer relevância para o bemestar e a prosperidade dos países em questão Ora a separação institucional das esferas política e econômica nunca foi completada e foi precisamente em relação ao meio circulante que ela se tornou necessariamente incompleta O estado cuja Casa da Moeda parecia apenas certificar o peso das moedas era de fato o fiador do valor do dinheiro convencional que ele aceitava em pagamento de impostos e outrosÍlisse dinheiro não era um meio de troca era um meio de pagamento não era uma mercadoria era o poder de compra longe de ter utilidade em si mesmo ele era apenas um signo que incorporava um dado quantificado em relação às coisas 233 que podiam ser compradas É claro que uma sociedade na qual a distribuição dependia da posse de tais símbolos do poder de compra era uma construção inteiramente diferente de uma economia de mercado Não estamos lidando aqui sem dúvida com quadros da atualidade mas com padrões conceituais utilizados com o fito de esclarecer Não é possível uma economia de mercado separada da esfera política Todavia esta foi a construção subjacente à economia clássica desde David Ricardo e afastados dela os seus conceitos e pressupostos seriam incompreensíveis Segundo esse planejamento a sociedade consistia em permutadores individuais que possuíam um conjunto de mercadorias bens terra trabalho e seus compostos O dinheiro era simplesmente uma das mercadorias permutada com mais freqüência que outras e portanto adquirida com a finalidade de uso na troca Uma sociedade como essa pode parecer irreal mas ela contém o esqueleto da construção do qual partiram os economistas clássicos Um quadro ainda menos completo da atualidade se oferece com a economia do poder de compra1 Entretanto alguns dos seus aspectos se assemelham mais à nossa atual sociedade do gue o paradigma da economia de mercado Tentemos imaginar a sociedade na qual se atribui a cada indivíduo uma quantidade definida de poder de compra permitindolhe considerar como bens cada item que tem uma etiqueta de preço Numa economia como essa o dinheiro não é uma mercadoria não tem utilidade em si mesmo e sua única utilidade é comprar bens que dispõem de uma etiqueta de preços como ocorre em nossas lojas hoje em dia Embora o teorema do dinheiro mercadoria fosse muito superior a seu rival do século XIX quando as instituições se ajustaram aos padrões de mercado em muitas coisas essenciais desde o início do século XX a concepção do poder de compra ganhou corpo Com a desintegração do padrãoouro o dinheiro mercadoria praticamente deixou de existir e foi apenas natural que o concejto de poder de compra do dinheiro o substituísse Passando dos mecanismos e conceitos para as forças sociais em jogo é importante compreender que as próprias classes dominantes emprestaram seu apoio à direção do meio circulante através do Banco Central Essa direcão não era vista naturalmente como uma interferência na instituição do padrãoouro pelo contrário era parte das 1 A teoria subjacente foi elaborada por F Schafer Wellington Nova Zelândia 234 regas do sob o qual deveria funcionar esse padrão Uma vez que a manutenção do padrãoouro era axiomátlca nao era permitido ao mecanismo do Banco Central agir de forma a deixar o país fora do ouro ao contrário a diretiva suprema do banco era sempre continuar com o ouro sob quaisquer circunstâncias e assim portanto não estava envolvida qualquer questão de princípio Isto só perdurou porém enquanto os movimentos do nível de preço em questão eram no máximo os insignificantes 23 que separavam as chamadas cotações do ouro Quando se ampliou o movimento do nível interno de preços necessário para manter os câmbios estáveis quando ele pulou para 10 ou 30 a situação mudou inteiramente Esses movimentos descendentes do nível de preço disseminariam a miséria e a destruição O fato de os meios circulantes serem dirigidos passou a ter importância primordial pois significava que os métodos do Banco Central eram um caso de política ie algo sobre o qual o organismo político teria que decidir Com efeito o grande significado do Banco Central está no fato de a política monetária ter sido introduzida por ele na esfera política As conseqüências só poderiam ser de grande alcance Elas foram de duas ordens Na área doméstica a política monetária foi apenas uma outra forma de intervencionismo e os choques das classes econômicas tendiam a cristalizarse em torno desse assunto tão intimamente ligado ao padrãoouro e aos orçamentos equilibrados Como veremos os conflitos internos da década de 1930 se concentraram amiúde nesse tema que desempenhou um papel importante no crescimento do movimento antidemocrático Na área externa o papel das moedas nacionais foi de importância fundamental embora esse fato tenha sido pouco reconhecido na época A filosofia dominante no século XIX era pacifista e internacionalista em princípio todas as pessoas educadas eram comerciantes livres e com qualificações que nos parecem hoje ironicamente modestas eles não o eram menos na prática A fonte dessa perspectiva era econômica sem dúvida uma grande dose de genuíno idealismo derivava da esfera da permuta e do comércio por um supremo paradoxo os desejos do homem validavam os seus impulsos mais generosos Desde a década de 1870 porém observouse uma mudança emocional embora não houvesse urna ruptura correspondente nas idéias dominantes O mundo continuava a acreditar no internacionalismo e na interdependência enquanto agia sob os impulsos do nacionalismo e da autosuficiência O nacionalismo ilberal transformava num liberalismo nacional com seus mercados se apoiando no protecionismo e no 235 imperialismo na área externa e no conservadorismo monopolista na área interna A contradição jamais se revelou tão aguda e tão pouco conscien mo no setor monetário A crença dogmática no padrãoouro internacional continuava a arregimentar a ilimitada lealdade dos homens enquanto ao mesmo tempo estabeleciamse moedas convencionais baseadas na soberania dos vários sistemas de bancos centrais Sob a égide de princípios internacionais erguiamse inconscientemente bastiões impregnados de um novo nacionalismo sob a forma de bancos centrais de emissão Na verdade o novo nacionalismo foi o corolário do novo internacionalismo O padrãoouro internacional não podia ser sustentado pelas nações a quem ele supostamente servia a menos que elas se sentissem seguras contra os perigos com que ele ameaçava as comunidades que a ele aderiram As comunidades inteiramente monetarizadas não poderiam suportar os efeitos ruinosos das mudanças abruptas no nível dos preços exigidos pela manutenção de câmbios estáveis a menos que o choque fosse amortecido pela intermediação de uma política independente de bancos centrais A moeda convencional nacional era a garantia certa dessa relativa segurança pois ela permitia ao Banco Central agir como párachoque entre a economia interna e a externa Se a balança de pagamentos era ameaçada de insolvência as reservas e os empréstimos estrangeiros venceriam as dificuldades se tivesse que ser criado um novo equilíbrio econômico abrangendo uma queda no nível doméstico dos preços a restrição do crédito poderia ser distribuída de modo mais racional eliminando o ineficiente e colocando o encargo sobre o eficiente A falta desse mecanismo tornaria impossível a qualquer país desenvolvido ficar no ouro sem incorrer no risco de efeitos devastadores sobre o seu bemestar seja em termos de produção renda ou emprego Se a classe comercial foi a protagonista da economia de mercado o banqueiro foi o líder nato dessa classe O emprego e os vencimentos dependiam da lucratividade dos negócios mas a lucratividade dos negócios dependia de câmbios estáveis e condições sólidas de crédito e ambos estavam sob os cuidados do banqueiro Era parte do seu credo serem os dois inseparáveis Um orçamento sólido e condições estáveis de crédito interno pressupunham câmbios externos estáveis os câmbios não podiam ser estáveis a menos que o crédito doméstico fosse seguro e as finanças internas do estado estivessem equilibrada Resumindo a custódia gêmea do banqueiro compreendia uma sólida finança doméstica e a estabilidade externa do meio circulante Foi por 236 isto que os banqueiros como classe foram os últimos a observar que ambas haviam perdido o seu significado Na verdade nada existe de surpreendente tanto na influência dominante dos banqueiros internacionais na década de 1920 como no seu eclipse na década de 1930 Na década de 1920 o padrãoouro ainda era visto como a precondição de um retorno à estabilidade e à prosperidade e em conseqüência nenhuma exigência feita pelos seus guardiães profissionais os banqueiro era considerada demasiado pesada desde que ela prometesse garantir taxas de câmbio estáveis Quando após 1929 isto se tornou impossível a necessidade imperativa era a de um meio circulante interno estável e ninguém estava tão pouco qualificado a fornecêlo como o banqueiro Em nenhum outro setor foi tão abrupta a queda da economia de mercado como no do dinheiro As tarifas agrárias interferindo com a importação dos produtos de terras estrangeiras destruiu o mercado livre o estreitamento e a regulação do mercado de trabalho restringiu a barganha àquilo que a lei permitia às partes decidirem Mas nem no caso do trabalho nem no caso da terra houve uma divisão formal tão súbita e completa no mecanismo de mercado como a que aconteceu na área do dinheiro Nos outros mercados nada aconteceu de comparável ao abandono o padrãoouro feito pela Grã Bretanha em 21 de setembro de 1931 nem mesmo ao acontecimento subsidiário uma ação Igual por parte da América do Norte em junho de 1933 Embora nessa época a Grande Depressão que começara em 1929 já hovesse destruído a maior parte do comércio mundial isto não significou qualquer mudança nos métodos e nem afetou as idéias dominantes Todavia o fracasso final do padrãoouro foi o fracasso final da economia de mercado O liberalismo econômico havia começado uma centena de anos antes e fora enfrentado por um contramovimento protecionista que atingia agora o último bastião da economia de mercado Um novo conjunto de idéias dominantes desbancava o mundo do mercado autoregulável Para estupefação da grande maioria dos contemporâneos forças insuspeitadas de liderança carismática e de isolacionismo autárquico irromperam e uniram as sociedades sob novas formas 237 17 AUTOREGULAÇÃO IMPERFEITA No meio do século que decorreu entre 1879 e 1929 as sociedades ocidentais se transformaram em unidades estreitamente ligadas na qual estavam latentes tensões profundamente inquietantes A fonte mais imediata dessa transformação foi a auto reguIação imperfeita da economia de mercado Como a sociedade fora levada a se adaptar ás necessidades do mecanismo de mercado as imperfeições do funcionamento desse mecanismo criam tensões cumulativas no organismo social A autoregulação imperfeita foi um resultado do protecionismo Num certo sentido os mercados são sempre autoreguláveis já que eles tendem a produzir um preço que desanuvia o mercado mas isto de aplica a todos os mercados sejam livres ou não Como já tivemos a oportunidade de mostrar porém um sistema de mercado auto regulável implica algo muito diferente isto é mercados para os elementos da produção trabalho terra e dinheiro Quando o funcionamento desses mercados ameaça destruir a sociedade a ação autopreservativa da comunidade visa impedir o seu estabelecimento ou interferir com o seu livre funcionamento quando já estabelecido Os liberais econômicos utilizaram o exemplo norteamericano como prova conclusiva da capacidade de funcionamento de uma economia de mercado Durante um século o trabalho a terra e o dinheiro foram comerciados nos Estados Unidos com total liberdade e no entanto aparentemente não foram necessárias medidas de proteção social a não ser pelas tarifas aduaneiras a vida industrial continuava a funcionar sem a interferência do governo 238 A explicação é sem dúvida bastante simples o trabalho a terra e o dinheiro eram livres Até a década de 1890 a fronteira estava aberta e havia muita terra disponível até a Primeira Guerra Mundial o abastecimento da mãodeobra de baixo padrão fluía livremente1 e até a virada do século não havia qualquer compromisso de manter os câmbios estrangeiros estáveis A livre provisão de terra trabalho e dinheiro continuava disponível portanto não existia um mercado autoregulável Enquanto prevaleceram essas condições nem o homem nem a natureza nem a organização dos negócios precisou de proteção do tipo que somente a intervenção governamental pode fornecer Logo que essas condições cessaram de existir a proteção social começou a manifestarse Como as camadas mais baixas de mãodeobra já não podiam mais ser substituídas livremente por uma reserva inesgotável de imigrantes enquanto suas camadas mais altas eram incapazes de se estabelecer livremente na terra como o solo e os recursos naturais se tornaram escassos e tinham que ser poupados como o padrão ouro foi introduzido a fim de tirar o meio circulante da política e ligar o comércio doméstico ao do mundo os Estados Unidos logo alcançaram o desenvolvimento europeu de um século proteção do solo e dos seus cultivadores seguro social para a mãode obra através do sindicalismo e da legislação e o Banco Central tudo na escala mais ampla fez a sua aparição O protecionismo monetário chegou em primeiro lugar a criação do Federal Reserve System pretendia harmonizar as necessidades do padrão ouro e as exigências regionais A ele se seguiu o protecionismo em relação ao trabalho e à terra A prosperidade na década de 1920 foi suficiente para acarretar uma depressão tão violenta que no seu curso o New Deal começou a cavar um fosso em torno do trabalho e da terra muito mais amplo do que jamais visto na Europa Assim a América do Norte também oferece uma prova cabal tanto positiva como negativa da nossa tese de que a proteção social foi o acompanhamento de um suposto mercado autoregulável Nessa ocasião o protecionismo construía em todos os lugares a couraça da unidade emergente da vida social A nova entidade foi forjada num molde nacional mas não teve qualquer outra semelhança com suas predecessoras as despreocupadas nações do passado O novo tipo crustáceo de nação expressava sua identidade através de meios circulantes 1 Penrose E F op cit A lei malthusiana só é válida sob o pressuposto de que é limitado o fornecimento de terra 239 convencionais resguardados por um tipo jamais antes conhecido de soberania ciumenta e absoluta Esses meios circulantes eram também focalizados do exterior pois foi deles que se construiu o padrãoouro internacional o instrumento principal da economia mundial Se o dinheiro dominava o mundo agora reconhecidamente esse dinheiro era estampado com a marca nacional Uma tal ênfase sobre nações e meios circulantes seria incompreensível para os liberais cujas mentes como de hábito perdiam as verdadeiras características do mundo em que viviam Se a nação era por eles considerada um anacronismo os meios circulantes nacionais não eram sequer dignos de atenção Nenhum economista da era liberal que se respeitasse duvidava da irrelevância do fato de diferentes pedaços de papel serem chamados de modo diferente em diferentes lados das fronteiras políticas Nada era mais simples do que mudar uma denominação pela outra através do uso do mercado cambial uma instituição que não poderia deixar de funcionar uma vez que felizmente ela não estava sob o controle do estado ou dos políticos A Europa Ocidental passava por um novo lluminismo e entre os seus fantasmas estava o conceito tribal da nação cuja suposta soberania era para os liberais o resultado de um pensamento paroquial Até a década de 1930 o Baedecker econômico incluía a informação certa de que o dinheiro era apenas um instrumento de troca e portanto não essencial por definição O ponto cego da mentalidade de mercado era igualmente insensível aos fenômenos da nação e do dinheiro O comerciante livre foi um nominalista a respeito de ambos Essa conexão foi muito significativa mas passou despercebida na época Aqui e ali surgiam críticos das doutrinas do livre comércio assim como críticos das doutrinas monetárias ortodoxas mas dificilmente alguém reconheceu que esses dois conjuntos de doutrinas estabeleciam o mesmo caso em termos diferentes e se uma era falsa a outra também deveria ser William Cunningham ou Adolph Wagner mostraram as falácias do comércio livre cosmopolita mas eles não as ligaram ao dinheiro por outro lado Macleod ou Gesell atacavam as teorias monetárias clássicas enquanto aderiam a um sistema comercial cosmopolita A importância constitutiva do meio circulante ao estabelecer a nação como unidade decisiva da época econômica e política foi inteIramente menosprezada pelos autores do uminismo liberal como já ocorrera com seus predecessores do século XVIII em relação à existência da história Esta foi a posição mantida pelos pensadores econômicos mais brilhantes de Ricardo a Wieser de John Stuart Mil a 240 Marshall e Wicksell enquanto o fluxo comum dos estudantes era educado para crer que a preocupação com o problema econômico da nação ou do meio circulante marcava uma pessoa com o estigma da inferioridade Combinar essas falácias na monstruosa proposição de que os meios circulantes nacionais desempenhavam um papel vital no mecanismo institucional da nossa civilização seria julgado um paradoxo despropositado sem qualquer sentido e significado Na verdade a nova unidade nacional e o novo meio circulante nacional eram inseparáveis Foi o meio circulante que dotou os sistemas nacional e internacional de seus mecanismos e introduziu no quadro aqueles aspectos que resultaram em derrocada abrupta O sistema monetário no qual o crédito se baseava tornarase a linha da vida da economia tanto nacional quanto internacional O protecionismo foi um impulso de três gumes A terra o trabalho e o dinheiro cada um deles desempenhou o seu papel mas enquanto o trabalho e a terra estavam ligados a estratos sociais definidos embora amplos tais como os trabalhadores ou o campesinato o protecionismo monetário foi numa extensão mais ampla um fator nacional fundindo às vezes interesses diversos em um todo coletivo Embora a política monetária pudesse também ao mesmo tempo dividir e unir o sistema monetário objetivamente era a mais forte entre as forças econômicas que integravam a nação O trabalho e a terra foram responsáveis basicamente pela legislação social e taxações do trigo respectivamente Os fazendeiros protestavam contra os encargos que beneficiavam o trabalhador e elevavam os salários enquanto os trabalhadores objetavam contra qualquer aumento no preço dos alimentos Todavia quando as leis do trigo e as leis do trabalho foram postas em vigor na Alemanha desde o início dos anos oitenta tornouse difícil remover uma sem remover a outra A relação era ainda mais estreita entre as tarifas agrícolas e as industriais Desde que a idéia de um protecionista total fora popularizada por Bismarck 1879 a aliança política dos proprietários de terra e dos industriais para a salvaguarda recíproca das tarifas havia sido um aspecto da política alemã o pacto tarifário era tão comum como a organização de cartéis para garantir benefícios privados a partir das tarifas O protecionismo interno e externo social e nacional tendia a fundirse2 A elevação do custo de vida provocada pelas leis do trigo induzia 2 Carr E H The Twenty Years Crisis 191919391940 241 o fabricante a exigir tarifas protetoras das quais se valia quase sempre para implementar a política de cartéis Os sindicatos profissionais naturalmente insistiam em salários mais altos para compensar o elevado custo de vida e não podiam discordar dessas tarifas aduaneiras que permitiam ao patrão atender a uma folha de pagamento inflacionada Todavia quando a contabilização da legislação social passou a se basear no nível salarial condicionado pelas tarifas não se podia mais esperar que os patrões ficassem com o encargo dessa legislação a menos que se lhes garantisse uma proteção continuada A propósito esta foi a tênue base factual da acusação de conspiração coletivista supostamente responsável pelo movimento protecionista Todavia isto representa assumir o efeito como causa As origens do movimento foram espontâneas e amplamente dispersas mas uma vez iniciadas não podiam deixar de criar interesses paralelos que se comprometiam com a sua continuidade Mais importante do que a similaridade de interesses foi a difusão uniforme das condições reais criadas pelos efeitos combinados de tais medidas Embora a vida fosse diferente nos diferentes países como sempre fora a disparidade podia ser ligada a atos legislativos e administrativos definidos de intenção protetora uma vez que as condições de produção e de trabalho dependiam agora principalmente de tarifas taxações e leis sociais Antes mesmo que os Estados Unidos e os domínios britânicos restringissem a imigração o número de emigrantes do Reino Unido já diminuíra a despeito do severo desemprego possivelmente em virtude do clima social muito avançado da pátriamãe Se as tarifas aduaneiras e as leis sociais produziam um clima artificial a política monetária criava condições meteoro lógicas verdadeiramente artificiais que variavam dia a dia e afetavam cada membro da comunidade nos seus interesses imediatos O poder integrador da política monetária superava em muito o dos outros tipos de protecionismo com seu aparato lento e embaraçoso pois a influência da proteção monetária era sempre ativa e mutável Aquilo que o homem de negócios o trabalhador organizado e a dona de casa ponderavam aquilo que o fazendeiro que planejava a sua colheita os pais que pesavam as oportunidades dos filhos os amantes que esperavam casarse resolviam em suas mentes levando em conta a favorabilidade da época era determinado mais diretamente pela política monetária do Banco Central do que por qualquer outro fator isolado Se isso já era verdade com uma moeda estável tornouse incomparavelmente mais verdadeiro quando a moeda se tornou instável e teve que ser tomada a decisão fatal de inflacionar ou deflacionar Do ponto de vista político a identidade 242 da nação era estabelecida pelo governo do ponto de vista econômico ela cabia de direito ao Banco Central Do pomo de vista internacional o sistema monetário assumiu importância ainda maior se possível A liberdade do dinheiro foi o resultado das restrições ao comércio por mais paradoxal que isto pareça Quanto mais numerosos se tornaram os obstáculos à movimentação de bens e homens através das fronteiras tanto mais efetivamente tinha que ser resguardada a liberdade dos pagamentos Dinheiro a curto prazo era transferido de um ponto do globo para outro com o aviso de horas as modalidades de pagamentos internacionais entre governos e entre corporações privadas ou indivíduos eram uniformemente reguladas o repúdio de dívidas externas ou as tentativas de mexer nas garantias orçamentárias mesmo por parte de governos atrasados era considerado um ultraje e punido relegandose aqueles que não mereciam crédito à total obscuridade Em todos os assuntos relevantes para o sistema monetário mundial estabeleciamse instituições similares em todos os lugares tais como organismos representativos constituições escritas definindo a sua jurisdição e regulando a publicação de orçamentos a promulgação de leis a ratificação de tratados os métodos para incorrer em obrigações financeiras as regras de contabilidade pública os direitos dos estrangeiros a jurisdição das cortes de justiça o domicílio das notas de câmbio e assim por implicação a situação do banco de emissão dos acionistas estrangeiros dos credores de todos os tipos Isto levou à concordância no uso de notas bancárias e espécies de regulamentações postais e quanto aos métodos das bolsas de valores e bancos Nenhum governo com exceção talvez dos mais poderosos podia se permitir desprezar os tabus do dinheiro Para propósitos internacionais o meio circulante era a nação e nenhuma poderia sobreviver fora do esquema internacional em qualquer espaço de tempo Em contraste com os homens e os bens o dinheiro estava livre de quaisquer medidas embaraçosas e continuava a desenvolver sua capacidade de transacionar negócios a qualquer distância e a qualquer tempo Quanto mais difícil se tornava transferir objetos reais mais fácil se tornava transmitir os direitos sobre eles Enquanto diminuía o ritmo do comércio de mercadorias e serviços e seu equilíbrio oscilava precariamente a balança de pagamentos se mantinha líquida quase que automaticamente com a ajuda de empréstimos a curto prazo que perpassavam sobre todo o globo e de operações de capital que só de leve tomavam conhecimento do comércio visível Pagamentos débitos e reclamações 243 continuavam insensíveis às crescentes barreiras rígidas contra a troca de bens A ascendência rápida da elasticidade e da universalidade do mecanismo monetário internacional compensava de certo modo os canais cada vez mais estreitos do comércio mundial No princípio da década de 1930 quando o comércio mundial se reduziu a um filete o empréstimo internacional a curto prazo atingiu um grau de mobilidade sem precedentes Enquanto funcionou o mecanismo dos movimentos do capital internacional e dos créditos a curto prazo nenhum desequilíbrio do comércio real era demasiado grande para ser superado por métodos de contabilização Evitavase a distorção social com a ajuda dos movimentos de crédito e corrigiase o desequilíbrio econômico através de meios financeiros Como último recurso a autoregulação imperfeita do mercado levou a uma intervenção política Os governos tiveram que responder às pressões quando o ciclo comercial deixou de corresponder e restaurar o emprego quando as importações deixaram de produzir exportações quando as regulamentações da reserva bancária ameaçaram os negócios com o pânico quando devedores estrangeiros recusaramse a pagar Numa emergência a unidade da sociedade afirmouse por intermédio da intervenção Em que medida o estado foi induzido a interferir dependeu da constituição da esfera política e do grau da perturbação econômica Enquanto o voto era restrito e apenas alguns exerciam influência política o intervencionismo era um problema muito menos urgente do que se tornou quando o sufrágio universal transformou o estado em órgão do milhão dominante o mesmo milhão que no setor econômico tinha que suportar muitas vezes com amargura o encargo dos dominados Enquanto o empregro era abundante os rendimentos seguros a produção contínua o padrão de vida seguro e os preços estáveis a pressão intervencionista era naturalmente menor do que se tornou quando as quedas adiadas transformaram a indústria num amontoado de ferramentas em desuso e esforços frustrados Também do ponto de vista internacional os métodos políticos eram usados para suplementar a autoregulação imperfeita do mercado A teoria ricardiana do comercio e meio circulante ignorou em vão á diferença de status existente entre os vários países segundo a sua diferente capacidade de produzir riquezas capacidade de exportação de comércio de navegação e de experiência bancária Pela teoria liberal a GrãBretanha era apenas mais um átomo no universo do comércio e ocupava precisamente o mesmo lugar que a Dinamarca e a 244 Guatemala Na verdade o mundo contava com um número limitado de paí e dividido em países que emprestavam e países que pediam emprestado países exportadores e países praticamente autosuficientes países com exportações variadas e países que dependiam de uma única mercadoria como o trigo ou o café para suas importações ou empréstimos estrangeiros Tais diferenças podiam ser ignoradas pela teoria mas suas conseqüências não podiam ser abandonadas da mesma forma na prática Era freqüente os países ultramarinos estarem impossibilitados de atender às suas dívidas externas ou verem suas moedas depreciadas o que ameaçava sua solvência Às vezes eles decidiam corrigir a balança através de meios políticos e interferiam na propriedade de investidores estrangeiros Em nenhum desses casos podia se depender de processos econômicos autocurativos embora de acordo com a doutrina clássica esses processos devessem infalivelmente reembolsar os credores restaurar a moeda e resguardar o estrangeiro contra a repetição de perdas semelhantes Isto exigiria que os países envolvidos fossem participantes mais ou menos igualitários num sistema de divisão internacional do trabalho o que não era o caso enfaticamente Seria ocioso esperar que por um processo invariável o país cuja moeda se desvalorizasse aumentaria automaticamente suas exportações restaurando assim o seu balanço de pagamentos ou que a sua necessidade de capital estrangeiro pudesse cornpelilo a compensar o estrangeiro e reassumir o montante da sua dívida O aumento nas vendas de café ou de nitratos por exemplo poderia destruir o mercado e repudiar uma dívida externa exorbitante poderia parecer preferível a depreciar a moeda nacional O mecanismo do mercado mundial não podia se permitir correr tais riscos Assim enviavamse navios de guerra para o local e o governo negligente fraudulento ou não se defrontava com a alternativa de um bombardeio ou um ajuste Não havia outro método capaz de obrigar o pagamento impedir grandes perdas e manter o sistema em funcionamento Prática semelhante era utilizada para induzir os povos coloniais a reconhecerem as vantagens do comércio quando o argumento teoricamente infalível da vantagem mútua não era prontamente reconhecido pelos nativos e talvez jamais o fosse A necessidade de métodos intervencionistas era ainda mais evidente se a região em questão fosse rica nas matériasprimas exigidas pelos fabricantes europeus e nenhuma harmonia preestabelecida podia garantir a emergência de um anseio por manufaturas européias por parte dos nativos cujas necessidades naturais já haviam tomado um rumo inteiramente diferente É claro que nenhuma dessas dificuldades 245 deveria surgir sob um sistema supostamente autoregulável Todavia enquanto cada vez mais os pagamentos só eram feitos sob a ameaça da intervenção armada e as rotas comerciais se mantinham abertas apenas com a ajuda dos navios de guerra isto é o comércio seguia a bandeira enquanto a bandeira seguia as necessidades dos governos invasores mais patente se tornava o fato de que era preciso utilizar instrumentos políticos para manter o equilíbrio da economia mundial 246 18 FORÇAS DE RUPTURA Dessa uniformidade de ajustes institucionais subjacentes é que derivou a intrigante similaridade no padrão dos acontecimentos que se difundiram sobre uma enorme expansão da terra no meio século 1879 1929 Uma variedade infinita de personalidades e ambientes de mentalidades e antecedentes históricos deu cor local e uma ênfase tópica às vicissitudes de muitos países e no entanto a tessitura era a mesma na maior parte da civilização mundial Essa afinidade transcendia a dos traços culturais comuns a povos que usam ferramentas similares que gozam dos mesmos prazeres e que recompensam os esforços com os mesmos prêmios Ao contrário a semelhança compreendia a função dos acontecimentos concretos no contexto histórico da vida o componente de tempo da existência coletiva Uma análise dessas tensões e esforços típicos deveria revelar muito do mecanismo que produziu o padrão singularmente uniforme da história durante esse período As tensões podem ser simplesmente apupadas de acordo com as esferas institucionais mais importantes Na economia doméstica os mais variados sintomas de desequilíbrio declínio de produção emprego e rendimentos serão representados aqui pelo flagelo típico do desemprego Na política doméstica havia a luta e impasse das forças sociais que especificaremos como tensão de classes As dificuldades no campo da economia internacional que se agrupavam em torno do chamado balanço de pagamentos e compreendia uma queda nas exportações termos desfavoráveis de comércio escassez de matériasprimas importadas e perdas nos investimentos estrangeiros designaremos 247 aqui como um grupo com uma forma característica de tensão a saber pressão sobre o câmbio Finalmente as tensões na política internacional serão resumidas com rivalidades imperialistas Consideremos agora um país que no ecurso e uma depressão de negócios é atingido pelo desemprego É fácil ver que todas as medidas de política econômica que os bancos possam tomar para criar empregos são limitadas pelas exigências de câmbios estáveis Os bancos não poderão se expandir ou estender novos critérios à indústria sem apelar para o Banco Central que de sua parte se recusará a acompanhálos uma vez que a segurança da moeda exige um caminho oposto Por outro lado se a tensão se distribui da indústria para o estado os sindicatos profissionais podem induzir os partidos políticos associados a abordar o tema no congresso o alcance de qualquer política de assistência ou de obras públicas será limitado pelas exigências do equilíbrio orçamentário outra precondição de câmbios estáveis O padrãoouro cerceará assim a ação do Tesouro tão efetivamente como do banco em questão e o legislativo confrontar seá com as mesmas limitações que se aplicam à indústria No âmbito da nação a tensão do desemprego pode recair alternadamente na zona industrial ou governamental Se num caso particular a crise foi superada por uma pressão deflacionária dos salários podese dizer então que a carga recaiu basicamente na esfera econômica Se porém essa medida dolorosa foi evitada com a ajuda de obras públicas subsidiadas por impostos a fundo perdido o choque de tensão recairá na esfera política o mesmo ocorreria se a diminuição dos salários fosse imposta aos sindicatos profissionais por alguma medida governamental em desafio aos direitos adquiridos No primeiro caso pressão deflacionária sobre salários a tensão permanece dentro da zona de mercado que se expressa numa mudança de rendimentos transmitida por uma mudança nos preços No último caso obras públicas ou restrições sindicais ocorre uma mudança no status legal ou na taxação que afeta basicamente a posição política do grupo envolvido Pode ocorrer que a tensão o esemprego nha se espalhado fora dos limites da nação e afetado os câmbios estrangeiros Isto pode acontecer quer sejam usados métodos políticos ou econômicos no combate ao desemprego Sob o padrãoouro que presumimos estar em vigor o tempo todo qualquer medida governamental que cause um déficit orçamentário pode iniciar uma depreciação da moeda Se por outro lado o desemprego está sendo atacado pela expansão do crédito bancário ascensão dos preços domésticos pode atingir as exportações e 248 afetar dessa forma a balança de pagamentos Em qualquer caso os câmbio diminuirão e o país sentirá a pressão na sua moeda De forma alternativa a tensão que decorre do desemprego pode levar a uma tensão externa No caso de um país fraco isto teve algumas vezes as conseqüências mais graves para a sua posição internacional Deteriorado o seu status desprezados os seus direitos o controle estrangeiro é imposto a ele com a derrota das suas aspirações nacionais No caso dos estados fortes a pressão pode ser contrabalançada pela disputa de mercados estrangeiros colônias zonas de influência e outras formas de rivalidade imperialista As tensões que emanavam do mercado corriam assim para e contra o mercado e as outras zonas institucionais principais afetando algumas vezes o funcionamento da área de governo outras vezes a do padrãoouro ou do sistema de equilíbriodepoder conforme o caso Cada área era comparativamente independente das outras e procurava um equilíbrio próprio quando esse equilíbrio não era alcançado o desequilíbrio se difundia sobre as outras esferas Foi a relativa autonomia das esferas que o acúmulo de tensões e gerou pressões que eventualmente explodiram sob as formas mais ou menos estereotipadas Enquanto na imaginação o século XIX se ocupava em construir a utopia liberal na realidade ela estava transferindo as coisas para um número definido de instituições concretas cujos mecanismos dominavam a época A abordagem que mais se aproximou da compreensão da verdadeira situação foi talvez a dúvida retórica de um economista que ainda em 1933 denunciava as políticas protecionistas da grande maioria dos governos Pode ser correta indagava ele uma política unanimemente condenada por todos os especialistas como completamente errônea grosseiramente falaciosa e contrária a todos os princípios de teoria econômica Sua resposta foi um não incondicional1 Todavia em vão procuraria na literatura liberal qualquer coisa que se aproximasse uma explicação dos fatos patentes A única resposta era a denúncia uma corrente infindável de abusos por parte de governos políticos estadistas cuja ignorância ambição ganância e estreito preconcei eram supostamente responsáveis pelas políticas protecionistas segui pela grande maioria dos países Era raro encontrar um argumen racional sobre o assunto Desde o desafio dos filósofos aos fatos empicos da ciência jamais se viu um preconceito tão claro exibido em uma 1 Haberler G Der internationale Handel 1933 p vi 249 coleção tão assustadora A única resposta intelectual era suplementar o mito da conspiração protecionista com o mito da loucura imperialista O argumento liberal na medida em que se tornou articulado afirmava que já no início da década de 1880 as paixões imperialistas começavam a surgir nos países ocidentais destruindo o frutífero trabalho dos pensadores econômicos pelo seu apelo emocional ao preconceito tribal Essas políticas sentimentais ganharam forças gradualmente e conduziram finalmente à Primeira Guerra Mundial Após a Grande Guerra as forças do Iluminismo tiveram uma outra oportunidade de restaurar o império da razão mas um surto inesperado de imperialismo principalmente por parte de pequenos países novos e mais tarde também dos não possuidores como a Alemanha a Itália e o Japão derrubaram o vagão do progresso O animal astucioso o político havia derrotado os centros cerebrais da raça Genebra Wall Street e a City de Londres Nesta peça de teologia política popular o imperialismo toma o lugar do velho Adão Os estados e os impérios são considerados congenitamente imperialistas eles devorarão seus vizinhos sem qualquer compulsão moral A última metade da controvérsia é verdadeira mas não a primeira Embora o imperialismo quando e onde aparece não dependa de justificativa racional ou moral para a sua expansão é contrário aos fatos que estados e impérios sejam sempre expansionistas Nem sempre as associações territoriais estão preocupadas em ampliar suas fronteiras nem as cidades nem os estados nem os impérios sofrem tal compulsão Argumentar o oposto é transformar algumas situações típicas em lei geral De fato ao contrário dos pressupostos populares o capitalismo moderno começou com um longo período de contração Ele só se voltou para o imperialismo quando já bem adiantado na sua carreira O antiimperialismo foi iniciado por Adam Smith que portanto antecipou não apenas a revolução norteamericana mas também o movimento Little EngIand do século seguinte Os motivos dessa ruptura foram econômicos a rápida expansão dos mercados iniciada pela Guerra dos Sete Anos fez com que os impérios saíssem de moda Enquanto as descobertas geográficas combinadas com meios de transportes relativamente lentos favoreciam as plantações de alémmar as comunicações rápidas transformaram as colônias num luxo dispendioso Um outro fator desfavorável às plantações foi o significado das exportações que agora eclipsava o das importações O ideal do mercado comprador cedeu lugar ao mercado vendedor um objetivo atingido agora pelo simples meio de vender mais barato que os competidores 250 inclusive os próprios colonialistas Uma vez perdidas as colônias marítimas do Atlântico o Canadá só conseguiu se manter no império com certa dificuldade 1837 até um Disraeli defendia a liquidação das possessões africanas ocidentais o estado de Orange em vão se oferecia para fazer parte do império e a algumas ilhas do Pacífico hoje vistas orno pontos importantes de estratégia mundial eram constantemente recusadas à admissão ao império Comerciantes livres e protecionistas liberais e conservadores fanáticos uniramse na convicção popular de que as colônias eram um ativo pródigo que se transformaria num passivo político e financeiro Quem quer que falasse de colônias no século entre 1780 e 1880 era visto como partidário do ancien régime A classe média denunciava a guerra e a conquista como maquinações dinésticas e servia de instrumento ao pacifismo François Quesnay fora o primeiro a reclamar os lauréis da paz para o laissezfaire A França e a Alemanha seguiam na esteira da Inglaterra A primeira diminuiu de forma apreciável a sua taxa de expansão e até mesmo o seu imperialismo era agora mais continental do que colonial Bismarck desdenhosamente declinava pagar o preço de uma só vida pelos Bálcãs e colocou toda a sua influência por trás da propaganda anticolonial Essa era a atitude governamental na época em que as companhias capitalistas invadiam continentes inteiros quando a Companhia das Índias Orientais já fora dissolvida por insistência de preocupados exportadores do Lancashire e comerciantes varejistas anônimos substituíam na Índia as figuras resplandecentes de Warren Hastings e Clive O governo se mantinha à parte Cunning ridicularizava a noção da intervenção em favor de investidores de risco e especuladores de alémmar A separação do político e do econômico atingia agora os assuntos internacionais Enquanto a Rainha Elisabeth relutava em distinguir muito estritamente entre sua renda particular e a renda dos corsários Gladstone teria considerado uma calúnia a alegação de que a política externa britânica estava a serviço dos investidores estrangeiros Permitir que o poder do estado e os interesses comerciais se fundissem ão era uma idéia do século XIX pelo contrário os primeiros estadistas vitorianos já haviam proclamado a independência do político e do econômico como uma máxima de comportamento internacional As representações diplomáticas só podiam agir em favor dos interesses privados dos seus nacionais em casos muito definidos e a ampliação clandestina dessas oportunidades era negada publicamente e quando comprovada repreendia da mesma maneira O princípio da não intervenção do estado nos casos de negócios privados era mantido não apenas internamente 251 mas também no exterior O governo nacional não devia intervir no comércio privado e se esperava que os ministérios do exterior vissem os interesses privados externos apenas em amplas linhas nacionais Os investimentos eram majontariamente agrícoIas e se localizavam internamente Os investimentos externos ainda eram considerados um jogo e as frequents perdas totais incorridas pelos investidores eram consideradas como amplamente compensadas pelos escandalosos termos do empréstimo usurário A mudança ocorreu subitamente e agora simultaneamente em todos os países ocidentais Enquanto a Alemanha só repetiu o desenvolvimento doméstico da Inglaterra após um lapso de meio século os acontecimentos externos de âmbito mundial afetariam necessariamente todos os países comerciais da mesma forma Esse evento foi o incremento no ritmo e no volume do comércio internacional assim comoa mobilização universal da terra implícita no transporte em massa de cereais e matériasprimas agrícolas de uma parte do planeta para outra a um custo fracionário Esse terremoto econômico transtornou a vida de dezenas de miíhões na Europa rural Em poucos anos o livre comércio era assunto do passado e a expansão posterior da economia de mercado ocorreu sob condições inteiramente novas Essas mesmas condições foram determinadas pelo duplo movimento O padrão de comércio internacional que se desenvolvia agora a uma taxa acelerada foi interceptado pela introdução de instituições protecionistas destinadas a cercear a ação global do mercado A crise agrária e a Grande Depressão de 18731886 haviam abalado a confiança na economia autocurativa A partir de agora as instituições típicas da economia de mercado só podiam ser introduzidas se acompanhadas de medidas protecionistas tanto mais que desde o final da década de 1870 e princípio de 1880 as nações se formavam em unidades organizadas aptas a sofrerem dolorosamente as distorções envolvidas em qualquer ajuste súbito às necessidades do comércio exterior ou dos câmbios externos O veículo supremo da expansão da economia de mercado o padrãoouro era assim geralmente acompanhado pela introdução simultânea de políticas protecionistas típicas da época como legislação social e tarifas aduaneiras Também neste ponto a tradicional versão liberal da conspiração coletivista não se ateve aos fatos O comércio livre e o sistema do padrãoouro não foram arruinados por capricho por traficantes de tarifas egoístas nem por ternas leis sociais Pelo contrário o próprio aparecimento do padrãoouro apressou a difusão dessas instituições protecionistas 252 que eram tanto mais bemvindas quanto mais pesado era o encargo dos câmbios estabelecidos A partir de então as tarifas as leis fabris e uma ativa política colonial eram prérequisitos de uma moeda externa estável a GrãBretanha com sua grande superioridade industrial foi a exceção que confirmou a regra Só quando esses pré requisitos eram dados é que os métodos da economia de mercado podiam ser introduzidos com segurança Quando esses métodos eram impostos a povos desamparados sem medidas protetoras como em regiões exóticas e semicoloniais o sofrimento que ocorria era indescritível Temos aqui a chave do aparente paradoxo do imperialismo a economicamente inexplicável e portanto supostamente irracional recusa dos países de comerciarem juntos indiscriminadamente e em vez disso colocarem como objetivo a aquisição de mercados exóticos e ultramarinos O que fazia os países agirem dessa maneira era simplesmente o receio de conseqüências similares àquelas que os povos desprotegidos eram incapazes de evitar A diferença no entanto estava no ponto de que enquanto a população tropical da infeliz colônia se via atirada a uma miséria e degradação totais a ponto até da extinção física a recusa do país ocidental era induzida pelo receio de um perigo menor mas suficientemente real para ser evitado a todo custo Não fazia diferença que a ameaça não fosse essencialmente econômica como no caso das colônias à parte o preconceito não havia razão para procurar a medida da distorção social nas magnitudes econômicas De fato seria proporse um absurdo esperar que uma comunidade permanecesse indiferente ao aguilhão do desemprego à mudança das indústrias e das ocupações e à tortura moral e psicológica que as acompanhava apenas porque os efeitos econômicos podiam ser insignificantes a longo prazo A nação podia ser tanto o recipiente passivo como o indicador ativo da tensão Se algum acontecimento externo pesasse fortemente sobre o país seu mecanismo interno funcionava da maneira habitual transferindo a pressão da zona econômica para a política ou viceversa Exemplos significativos ocorreram no período pósguerra Para alguns países da Europa Central a derrota criou condições altamente artificiais que incluíam uma feroz pressão externa sob a forma de reparações Durante mais de uma década o cenário doméstico alemão foi dominado por um deslocamento da carga externa entre a indústria e o estado entre os salários e lucros de um lado benefícios sociais e impostos de outro A nação como um todo foi sustentáculo das reparações a situação interna mudava de acordo com o modo com que o país governo e negócios combinados abordava a tarefa A solidariedade nacional estava 253 portanto fixada no padrãoouro e a obrigação mais importante era a manutenção do valor externo da moeda O Plano Dawes foi expressamente projetado para resgarudar o meio circluante alemão O Plano Young tornou absoluta a mesma condição Não fosse essa obrigação de manter o valor externo do reichsmark inalterado o curso dos assuntos domésticos alemães durante esse período seria ininteligível A responsabilidade coletiva pelo meio circulante criou o indestrutível arcabouço dentro do qual os negócios e os partidos a indústria e o estado se ajustavam à tensão No entanto aquilo que a Alemanha derrotada teve que suportar como conseqüência de uma guerra perdida todos os povos haviam suportado voluntariamente até a guerra isto é a integração artificial de seus países através da pressão de câmbios estáveis Somente a resignação às leis inevitáveis do mercado poderia explicar a aquiescência orgulhosa com a qual a cruz era carregada Podese objetar que este esboço é o resultado de uma supersimplificação sustentada A economia de mercado não começou num só dia nem os três mercados correram como uma troika nem o protecionismo teve efeitos paralelos em todos os mercados etc Isto é verdade sem dúvida mas perde de vista o ponto em questão Admitese que o liberalismo econômico apenas criou um mecanismo novo a partir de mercados mais ou menos desenvolvidos ele unificou vários tipos de mercado já existentes e coordenou suas funções num único todo A separação do trabalho e da terra já estava em andamento nessa ocasião assim como o desenvolvimento de mercados para o dinheiro e o crédito O presente estava ligado ao passado em toda a linha e não se encontrava uma brecha sequer A mudança institucional porém pela sua própria natureza começou a operar abruptamente O estágio crítico fora atingido com o estabelecimento de um mercado de trabalho na Inglaterra no qual os trabalhadores ficavam ameaçados pela fome se deixassem de cumprir os ditames do trabalho assalariado Logo que foi dado esse passo drástico o mecanismo do mercado autoregulável entrou em funcionamento Seu impacto sobre a sociedade foi tão violento que quase instantaneamente e sem qualquer mudança de opinião anterior organizaramse poderosas reações protetoras A despeito da grande diferença de natureza e origem os mercados dos vários elementos da indústria revelavam agora um desenvolvimento paralelo E não poderia ser de outra maneira A proteção do homem da natureza e da organização produtiva atingiu o nível de uma interferência nos mercados do trabalho e da terra bem como na 254 mediação da troca o dinheiro e assim ipso fato prejudicaram a autoregulação do sistema Uma vez que o propósito da intervenção era reabilitar as vidas dos homens e do seu meio ambiente e proporcionarlhes alguma segurança de status essa intervenção visava naturalmente reduzier a flexibilidade dos salários e a mobilidade da mãodeobra dando estabilidade aos rendimentos continuidade à produção introduzindo o controle público dos recursos nacionais e a administração do meio circulante a fima de impedir mudnças desordenadas no nívle de preço A Depressão de 18731886 e a dificuldade agrária da década de 1870 aumentaram permanentemente a tensão No início da depressão a Europa estava no apogeu do livre comércio O novo Reich alemão havia imposto à França a cláusula de nação mais favorecida no acordo entre ele e esta última comprometerase a abandonar as tarifas sobre o ferrogusa e introduzira o padrãoouro No final da depressão a Alemanha já se havia cercado de tarifas protetoras estabelecera uma organização geral de cartéis organizara um sistema de seguro social global e praticava uma polícia colonial de alta pressão O Prussianismo que havia sido pioneiro do livre comércio foi evidentemente tão pouco responsável pela mudança para o protecionismo como pela introdução do coletivismo Os Estados Unidos tinham tarifas ainda mal altas que o Reich e eram tão coletivistas como este à sua própria maneira eles subsidiaram fortemente a construção de ferrovias de longo curso e desenvolveram a elefantina formação de trustes Todos os países ocidentais seguiram a mesma tendência independente da mentalidade nacional e da história2 Com o padrãoouro internacional foi posto em atividade o mais ambicioso esquema de mercado implicando a independência absoluta dos mercados às autoridádes nacionais O comércio internacional significava agora a organização da vida no planeta sob um mercado autoregulável que compreendia o trabalho a terra e o dinheiro sendo o padrãoouro o guardião desse gigantesco autômato Nações e povos eram apenas bonecos num espetáculo inteiramente fora do seu controle Eles se protegiam do desemprego e da instabilidade com a ajuda dos bancos centrais e das tarifas aduaneiras suplementadas por leis de migração Esses artifícios se destinavam a neutralizar os efeitos destrutivos do comércio livre mais moedas determinadas e na medida em que alcançavam esse proposito 2 G D H Cole chama a década de 1870 de longe o período ativo de legislação social de todo o século XIX 255 eles interferiam no desempenho desses mecanismos Embora da uma dessas restrições tivesse os seus beneficiários cujos superluos ou supersalários representavam uma taxação imposta a todos os utros cidadãos muitas vezes era apenas o montante dessa taxação que era injustificado não a proteção em si mesma A longo prazo ocorreu uma queda global nos preços que beneficiou a todos Quer a proteção fosse justificada ou não a debilidade do sistema mundial de mercado foi trazida à luz pelos efeitos das intervenções As tarifas de importação de um país dificultavam as exportações de outro e forçavamno a procurar mercados em regiões politicamente desproregidas O imperialismo econômico era principalmente uma luta entre potências pelo privilégio de estender seu comércio aos mercados politicamente desprotegidos A pressão exportadora foi reforçada pela disputa de suprimentos de matériasprimas causada pela febre manufarureira Os governos emprestavam apoio a seus nacionais engajados em negócios nos países atrasados O comércio e a bandeira corriam na esteira um do outro O imperialismo e a preparação semiconsciente para a autarquia eram a inclinação das potências que se encontravam mais e mais dependentes de um sistema crescentemente falível de economia mundial E no entanto era imperativa a rígida manutenção da integridade do padrãoouro internacional Esta foi uma fonte institucional da ruptura Uma contradição similar operava dentro das fronteiras nacionais O protecionismo ajudou a transformar os mercados competitivos em mercados monopolistas Cada vez menos os mercados podiam ser descritos como autônomos e como mecanismos automáticos de átomos em competição Cada vez mais os indivíduos eram substituídos por associações homens e capital ligados a grupos não competitivos O ajuste econômico se tornou lento e difícil A autoregulação dos mercados fora gravemente atingida Ocasionalmente o desajuste dos preços e as estruturas de custo prolongavam as depressões o equipamento desajustado retardava a liquidação de investimentos não lucrativos o desajuste dos preços e os níveis de renda causavam tensão social Qualquer que fosse o mercado em questão trabalho terra ou dinheiro a tensão transcendia a zona econômica e o equilíbrio tinha que ser restaurado por meios políticos Todavia a separação instirucional da esfera política e da esfera econômica era constitutiva da sociedade de mercado e tinha que ser mantida qualquer que fosse a tensão envolvida Esta foi a outra fonte de tensão demolidora 256 Estamos nos aproximando da conclusão de nossa narrativa mas parte considerável do nosso argumento precisa ser desdobrada Mesmo que consigamos provar fora de qualquer dúvida que no cerne da transformação estava o fracasso da utopia do mercado ainda temos a tarefa de mostrar de que maneira os acontecimentos reais foram determinado por essa causa Num certo sentido esta é uma tarefa impossível pois a história não é modelada por qualquer fator único Entretanto a despeito de toda a sua riqueza e variedade o fluxo da história tem suas situações e alternativas periódicas que respondem pela ampla similaridade na tessitura dos acontecimentos de uma época Não precisamos nos preocupar com as fímbrias dos torvelinhos imprevisíveis se podemos dar conta até certo ponto das regularidades que governam as correntes e contracorrentes sob condições típicas No século XIX tais condições foram dadas pelo mecanismo do mercado auto regulável cujas exigências tiveram que ser cumpridas pela vida nacional e internacional A partir desse mecanismo seguiramse duas peculiaridades da civilização seu rígido determinismo e seu caráter econômico A perspectiva contemporânea tendia a ligar os dois e presumir que o determinismo derivava da natureza da motivação econômica pela qual se esperava que os indivíduos perseguissem seus interesses monetários O fato é que não havia conexão entre os dois O determinismo tão proeminente em tantos detalhes foi simplesmente o resultado do mecanismo de uma sociedade de mercado com suas alternativas previsíveis cuja rigidez foi erroneamente atribuída à força das motivações materialistas O sistema ofertaprocura preço sempre equilibrarseà quaisquer que sejam os motivos dos indivíduos e as motivaçôes econômicas per se são notoriamente muito menos efetivas para a maioria das pessoas do que as chamadas motivações emocionais A humanidade estava sob o guante não de novas motivações mas de novos mecanismos Resumindo a tensão surgiu da zona de mercado e daí se difundiu para a esfera política compreendendo assim o todo da sociedade Dentro das próprias nações porém a tensão continuava latente enquanto a economia mundial continuava a funcionar Somente quando se dissolveu a última das suas instituições sobreviventes padrãoouro foi que a expressão existente dentro das nações finalmente se liberou Diferentes como foram suas respostas à nova situação e essência elas representaram os ajustes ao desaparecimento da econo mundial tradicional quando esta se desintegrou a própria civilização 257 de mercado foi engolfada Isto explica o fato quase inacreditável de uma civilização estar se desmoronando pela atuação cega de instituições sem alma cujo único propósito era o incremento automático do bemestar material Mas como aconteceu realmente o inevitável Como ele se traduziu nos eventos políticos que são o cerne da história Foi nesta fase final da queda da economia de mercado que o conflito das forças de classe penetrou decisivamente 258 FOLHA EM BRANCO 259 TERCEIRA PARTE TRANSFORMAÇÃO EM PROGRESSO 260 FOLHA EM BRANCO 261 19 GOVERNO POPULAR E ECONOMIA DE MERCADO Quando o sistema internacional fracassou na década de 1920 reapareceram os temas quase esquecidos do capitalismo primitivo O primeiro e mais importante entre eles foi o do governo popular O ataque fascista à democracia popular reviveu simplesmente o tema do intervencionismo político que assombrava a história da economia de mercado já que este tema nada mais era que um outro nome para a separação entre as esferas econômica e política O tema do intervencionismo foi primeiro levantado em relação ao trabalho de um lado pela Speenhamland e a New Poor Law e de outro pela reforma parlamentar e pelo movimento cartista Quanto à terra e ao dinheiro a importância do intervencionismo não foi menor embora os choques tenham sido menos espetaculares No continente dificuldades semelhantes em relação ao trabalho terra e dinheiro surgiram com um intervalo de tempo que levou os conflitos a recaírem num meio industrialmente mais moderno mas socialmente menos unificado Em todos os lugares a separação entre a esfera econômica e a política foi o resultado do mesmo tipo de desenvolvimento Tanto na Inglaterra como no continente os pontos de partida foram a criação de um mercado de trabalho competitivo e a democratização do estado político A Speenharnland tem sido descrita com muita propriedade como um ato preventivo de intervenção que obstruiu a criação de um mercado de trabalho A batalha por uma Inglaterra industrial foi travada em primeiro lugar e perdida na ocasião pela Speenharnland Nessa luta o 262 lema do intervencionismo foi cunhado pelos economistas clássicos e a Speenharnland estigmatizada como uma interferência artificial numa ordem de mercado ainda não existente Townsend Malthus e Ricardo erigiram o edifício da economia clássica sobre as fundações inconsistentes das condições da Poor Law e ele foi o mais formidável instrumento conceitual de destruição jamais dirigido contra uma ordem desgastada Todavia durante mais uma geração o sistema de abonos protegeu os limites da aldeia contra o atrativo dos elevados salários urbanos Em meados da década de 1820 Huskisson e Peel ampliavam os caminhos do comércio exterior surgiu a permissão para a exportação de maquinaria foi levantado o embargo sobre a exportação da lã abolidas as restrições à navegação a emigração foi facilitada e a revogação formal do Statute of Artificers sobre aprendizado e avaliações salariais foi seguida pela abolição das Anti Combination Laws Ainda assim a desmoralizante Speenharnland Law se difundia de condado a condado privando o operário do trabalho honesto e transformando em incongruência o próprio conceito de homem trabalhador independente Embora já tivesse chegado a oportunidade para um mercado de trabalho sua criação foi impedida pela lei dos proprietários rurais O parlamento da reforma atacou de imediato a abolição do sistema de abonos A New Poor Law que atingiu essa finalidade foi considerada o ato mais importante de legislação social jamais votado pela Câmara dos Comuns No entanto o cerne desse decreto foi simplesmente a abolição da Speenharnland Não existe prova mais decisiva do que o fato de que nessa ocasião a simples ausência de intervenção no mercado de trabalho era reconhecida como algo de importância constitutiva para toda a futura estrutura da sociedade O mesmo se pode dizer em relação à fonte econômica da tensão Quanto à fonte política a reforma parlamentar de 1832 realizou uma revolução pacífica A estratificação social do país foi alterada pela Poor Law Amendment de 1834 e alguns dos fatos básicos da vida inglesa foram reinterpretados ao longo de linhas radicalmente novas A New Poor Law aboliu a categoria geral dos pobres o pobre honesto ou pobre trabalhador termos contra os quais Burke já havia investido Os pobres anteriores se dividiam agora em indigentes fisicamente desamparados cujo lugar era nos albergues e trabalhadores independentes que ganhavam sua vida com o trabalho assalariado Isto criou uma categoria de pobres inteiramente nova o desempregado que fez sua aparição no cenário social Enquanto o indigente deveria ser atendido por uma questão de humanidade o desempregado não deveria 263 ser assistido em favor da indústria Não importava o fato de que o trabalhador desempregado não era responsável pela sua própria sorte O ponto não era se ele podia ou não encontrar trabalho caso tentasse mas que o sistema salarial sofreria uma derrocada atirando a sociedade na miséria e no caos a não ser que ele se sentisse ameaçado pela fome tendo como alternativa apenas o detestado albergue Reconhecia se que isto significava castigar um inocente mas a perversão da crueldade consistia precisamente em emancipar o trabalhador com o objetivo concreto de fazer da fome uma ameaça efetiva de destruição É justamente este procedimento que torna inteligível aquele melancólico sentimento de desolação que as obras dos economistas clássicos nos transmitem Assim fechando as portas aos excedentes que se encontravam agora aprisionados dentro dos limites do mercado de trabalho o governo se colocou sob um estatuto que negava a si mesmo pois nas palavras de Harriet Martineau fornecer qualquer assistência às vítimas inocentes passou a ser uma violação dos direitos do povo por parte do estado Quando o movimento cartista exigiu a entrada dos deserdados nos limites do estado a separação do econômico e do político deixou de ser um tema acadêmico e passou a ser incontestável condição do sistema vigente na sociedade Teria sido um ato de loucura entregar a administração da New Poor Law com seus métodos científicos de tortura mental aos representantes do mesmo povo a quem esse tratamento era dispensado Lorde Macaulay estava apenas sendo coerente quando exigiu na Câmara dos Lordes num dos discursos mais eloqüentes jamais feitos por um grande liberal a rejeição incondicional da petição cartista em nome da instituição da propriedade sobre a qual repousava toda a civilização Sir Robert Peel acusou a Carta de ser um ataque à Constituição Quanto mais viciosamente o mercado de trabalho retorcia as vidas dos trabalhadores mais insistentemente eles clamavam pelo voto A exigência de um governo popular foi a fonte política da tensão Sob tais condições o constitucionalismo adquiriu um significado inteiramente novo Até então as salvaguardas constitucionais contra a interferência ilegítima nos direitos de propriedade eram dirigidas apenas contra os atos arbitrários vindos de cima A visão de Lock não transcendeu os limites da propriedade fundiária e comercial e objetivava apenas excluir os decretos despóticos da Coroa como as secularizações feitas sob Henrique VIII o roubo da Casa da Moeda sob Carlos I ou a parada do Erário sob Carlos II A separação entre governo e negócios no sentido de John Locke foi alcançada de forma exemplar 264 na carta de um banco independente da Inglaterra em 1694 O capital comercial havia ganho a sua luta contra a Coroa Cem anos mais tarde era a propriedade industrial e não mais a comercial que devia ser protegida e não mais contra a Coroa mas contra o povo Só uma noção equivocada poderia levar à aplicação das acepções do século XVII às situações do século XIX A separação de poderes que Montesquieu 1748 havia inventado nesse intervalo era usada agora para isolar o povo do poder sobre a sua própria vida econômica A constituição norteamericana modelada num ambiente de fazendeiros e artífices por uma liderança já precavida pelo cenário industrial inglês isolou completamente a esfera econômica da jurisdição da constituição colocando a propriedade privada sob a mais alta proteção concebível e criou a única sociedade de mercado legalmente constituída no mundo Apesar do sufrágio universal os eleitores norteamericanos não tinham poder contra os proprietários1 Na Inglaterra tornouse uma lei não escrita na Constituição que deveria ser negado o voto à classe trabalhadora Os líderes cartistas foram presos seus partidários que atingiam milhões foram ridicularizados por um legislativo que representava apenas uma pequena fração da população e a simples exigência de eleição era tratada pelas autoridades como um ato criminal Não havia qualquer indício do espírito de compromisso supostamente característico do sistema britânico uma invenção posterior Só depois que a classe trabalhadora atravessou os Hungry Forties a fome dos anos quarenta é que emergiu uma geração mais dócil para colher os benefícios da Idade de Ouro do capitalismo só depois que uma camada superior de trabalhadores especializados criou os seus sindicatos e separouse da negra massa de paupérrimos trabalhadores só depois que os trabalhadores aquiesceram ao sistema que a New Poor Law impunha a eles é que se permitiu ao estrato mais bem remunerado de trabalhadores participar nas assembléias da nação Os cartistas haviam lutado pelo direito de parar o moinho do mercado que triturava as vidas do povo mas esses direitos só foram concedidos ao povo depois que o terrível ajuste fora concretizado Dentro e fora da Inglaterra de Macaulay a Mises de Spencer a Sumner não houve um único militante liberal que deixasse de expressar a sua convicção de que a democracia popular era um perigo para o capitalismo 1 Hadley A T Economics an Account of the Relations between Private Prosperty and Public Welfare 1896 265 A experiência do tema trabalhista foi repetida no item moeda e também nele a década de 1920 foi prefigurada pela década de 1790 Bentham foi o primeiro a reconhecer que a inflação e a deflação eram intervenções no direito à propriedade a primeira um imposto sobre a última uma interferência nos negócios2 Desde então o trabalho e o dinheiro o desemprego e a inflação estiveram politicamente na mesma categoria Cobbett denunciou o padrãoouro juntamente com a New Poor Law Ricardo apoiou ambos e com argumentos bastante similares sendo o trabalho e o dinheiro mercadorias e não tendo o governo o direito de interferir com qualquer dos dois Banqueiros se opunham à introdução do padrãoouro como Atwood de Birmingham encontravamse do mesmo lado que os socialistas como Owen Um século mais tarde Mises ainda reiterava que o trabalho e o dinheiro não eram uma preocupação maior do governo do que qualquer outra mercadoria do mercado No século XVIII na América do Norte préfederativa o dinheiro barato era o equivalente da Speenhamland isto é uma concessão economicamente desmoralizante feita pelo governo para atender ao clamor popular A Revolução Francesa e os seus assignats mostraram que o povo podia destruir a moeda e a história dos estados americanos não ajudava a dissipar essa suspeita Burke identificava a democracia norteamericana com problemas na moeda e Hamilton receava não apenas as facções mas também a inflação Todavia enquanto na América do Norte do século XIX as escaramuças dos partidos populistas e greenback com os magnatas de Wall Street eram endêrnicas na Europa a acusação de inflacionismo só se tornou um argumento efetivo contra legislativos democráticos na década de 1920 com conseqüências políticas de longo alcance A proteção social e a interferência na moeda não eram simplesmente temas análogos mas freqüentemente idênticos Desde o estabelecimento do padrãoouro a moeda passou a ser ameaçada tanto pela elevação do nível salarial quanto pela inflação direta ambas podiam diminuir as exportações e até depreciar os câmbios Esta simples conexão entre as duas formas básicas de intervenção tornouse o fulcro da política na década de 1920 Partidos preocupados com a segurança da 2 Bentham J Manual of Political Economy p 44 sobre inflação como frugalidade forçada p 45 préde página como taxação indireta Cf também Principles of Civil Code cap 15 Papelmoeda emitido pelo governo da Revolução Francesa N do R 266 moeda protestavam tanto contra os déficits orçamentários ameaçadores como contra as políticas do dinheiro barato opondose assim tanto à inflação do tesouro quanto à inflação do crédito ou em termos mais práticos denunciando os encargos sociais e os altos salários os sindicatos profissionais e os partidos trabalhistas Não era a forma que importava mas a essência e quem poderia duvidar que os benefícios irrestritos ao desemprego poderiam ser tão efetivos na perturbação do equilíbrio do orçamento como uma taxa de juros demasiado baixa no inflacionamento dos preços e com as mesmas conseqüências nefastas para os câmbios Gladstone havia feito do orçamento a consciência da nação britânica Para povos menos importantes uma moeda estável poderia ocupar o lugar do orçamento O resultado porém era bastante aproximado Quer fossem os salários ou os serviços sociais que tivessem que ser cortados as conseqüências de não cortálos eram determinadas inexoravelmente pelo mecanismo do mercado Do ponto de vista desta análise o governo nacional de 1931 na GrãBretanha executou de forma modesta a mesma função que o New Deal norteamericano Ambos foram movimentos de ajuste de países isolados à grande transformação Mas o exemplo britânico teve a vantagem de estar livre de fatores complicadores como lutas civis ou conversões ideológicas revelando assim mais claramente os aspectos decisivos Desde 1925 que não era sólida a situação da moeda da GrãBretanha O retorno ao ouro não se fez acompanhar de um ajuste correspondente ao nível de preços que estava bastante acima da paridade mundial Muito poucas pessoas tinham consciência do absurdo do curso que seguiam conjuntamente governo e banco partidos e sindicatos profissionais Snowden Chanceler do Erário no primeiro governo trabalhista 1924 foi um adepto do padrãoouro como jamais existiu outro e no entanto ele compreendeu que assumindo a tarefa de restaurar a libra esterlina ele havia comprometido seu partido a apoiar uma queda nos salários ou então levar a breca Sete anos mais tarde o partido trabalhista foi forçado a ambas as coisas pelo próprio Snowden No outono de 1931 o contínuo vazamento da depressão já começava a se refletir sobre a libra esterlina Foi em vão que o colapso da greve geral de 1926 procurou garantir a impossibilidade de um novo aumento no nível salarial ele não impediu o aumento do encargo financeiro dos serviços sociais especialmente através do benefício incondicional ao desemprego Não era preciso que um banqueiro esbravejasse embora ocorressem esses acessos para impressionar a 267 nação com a alternativa da moeda sólida e orçamentos sólidos de um lado e a melhoria dos serviços sociais e uma moeda desvalorizada do outro não importava que a depreciação fosse causada pelos salários altos e quedas das exportações ou simplesmente por gastos deficitários Em outras palavras ou se fazia uma redução nos serviços sociais ou se agüentaria uma queda nos câmbios Já que o partido trabalhista era incapaz de se decidir entre um e outro a redução era contrária à política sindicalista e abandonar o ouro seria considerado um sacrilégio ele teve que deixar o governo e os partidos tradicionais acabaram reduzindo os serviços sociais e abandonando o ouro eventualmente O benefício incondicional ao desemprego foi arrasado sendo introduzidos recursos experimentais Ao mesmo tempo as tradições políticas do país sofreram uma mudança significativa O sistema bipartidário foi suspenso e não se mostrou qualquer precipitação em restaurálo Doze anos mais tarde ele ainda estava em eclipse e todos os indícios eram contra um próximo retorno Sem qualquer perda trágica de bemestar ou de liberdade o país suspendendo o padrãoouro dava um passo decisivo em direção à transformação Durante a Segunda Guerra Mundial isto se fez acompanhar de mudanças nos métodos do capitalismo liberal Todavia esses últimos não mudaram em caráter permanente e portanto não tiraram o país da zona de perigo Em todos os países europeus importantes estava em atividade um mecanismo semelhante e praticamente com os mesmos resultados Na Áustria em 1923 na Bélgica e na França em 1926 na Alemanha em 1931 os partidos trabalhistas tiveram que abandonar seu posto para salvar amoeda Estadistas como Seipel Francqui Poincaré ou Brüning eliminaram os trabalhistas do governo reduziram os serviços sociais e tentaram quebrar a resistência dos sindicatos nos ajustes salariais Invariavelmente o perigo era em relação à moeda e com igual regularidade a responsabilidade era atribuída aos salários inflacionados e aos orçamentos desequilibrados Uma tal simplificação não faz justiça à variedade dos problemas envolvidos que compreendiam praticamente todas as questões de política econômica e financeira inclusive as de comércio exterior agricultura e indústria Entretanto quanto mais de perto considerarmos essas questões mais claro se torna que na verdade a moeda e o orçamento focalizavam os temas pendentes entre empregadores e empregados e o resto da população oscilava no apoio a um ou outro dos grupos principais A chamada experiência Blun 1936 oferece mais um exemplo Os trabalhadores estavam no governo mas sob a condição de não ser 268 imposto qualquer embargo às exportações de ouro O New Deal francê não teve qualquer oportunidade de atuação pois o governo estava pre o à questão crucial da moeda O caso é conclusivo já que na França como na Inglaterra uma vez tornado inócuo o trabalhismo os partido de classe média abandonavam a defesa do padrãoouro sem mais explicações Estes exemplos revelam como era frustrante o efeito do postulado da moeda sólida sobre a política popular A experiência norteamericana ensinou a mesma lição de outra forma O New Deal não poderia ter sido lançado sem que se abandonasse o ouro embora o câmbio estrangeiro realmente importasse pouco Sob o padrãoouro os líderes do mercado financeiro pela própria natureza das coisas são incumbidos de resguardar os câmbios estáveis e o crédito interno sólido dos quais muito dependem as finanças governamentais Assim a organização bancária está em situação de obstruir qualquer movimentação interna na esfera econômica que lhe desagrade sejam as suas razões boas ou más Em termos de política os governos têm que acatar os conselhos dos banqueiros no que se refere à moeda e ao crédito pois só eles sabem se uma determinada medida financeira ameaçará ou não o mercado de capital e os câmbios O fato de o protecionismo social não resultar num impasse neste caso foi porque os Estados Unidos abandonaram o ouro a tempo Embora as vantagens técnicas dessa medida tenham sido poucas e os motivos apresentados pela administração foram falhos como acontece quase sempre o despojamento político de Wall Street foi conseqüência desse passo O mercado financeiro governa através do pânico mas o eclipse de Wall Street na década de 1930 salvou os Estados Unidos de uma catástrofe social do tipo continental Todavia só nos Estados Unidos com sua independência frente ao mercado mundial e sua posição monetária excessivamente forte é que o padrãoouro foi primordialmente assunto de política interna Nos outros países abandonar o ouro significava nada menos que retirarse da economia mundial A única exceção talvez seja a GrãBretanha pois sua participação no comércio mundial era tão ampla que ela já havia conseguido estabelecer as modalidades sob as quais deveria funcionar o sistema monetário internacional atirando a maior parte da carga do padrãoouro sobre os outros Nenhuma dessas condições subsistia em países como Alemanha França Bélgica e Áustria Neles a destruição da moeda significava cortar os laços com o mundo exterior sacrificando as indústrias dependentes de matériasprimas importadas desorganizando o comércio exterior sobre o qual o emprego se firmava e tudo 269 isto sem a possibilidade de impor a seus fornecedores um mesmo grau de depreciação para fugir às conseqüências internas de uma queda no valor de ouro da moeda como fizera a GrãBretanha Os câmbios eram o braço mais atuante da alavanca que pressionava o nível salarial Antes que os câmbios trouxessem o assunto à baila era tema salarial que aumentava a tensão sob a superfície O que as leis do mercado freqüentemente não podiam impor aos relutantes assalariados o mecanismo do câmbio externo conseguiu da forma mais efetiva O indicador da moeda tornou visível a todos os efeitos desfavoráveis que a política intervencionista dos sindicatos profissionais impunha ao mecanismo de mercado cujas fraquezas inerentes inclusive o ciclo comercial eram agora levadas em conta De fato a natureza utópica de uma sociedade de mercado não pode ser mais bem ilustrada do que através dos absurdos com os quais a ficção mercadoria em relação ao trabalho envolve a comunidade A greve essa arma normal de barganha da ação industrial era considerada cada vez com mais freqüência como uma interrupção injustificada do trabalho socialmente útil e que ao mesmo tempo diminuía o dividendo social do qual em última instância provinham os salários As greves de apoio provocavam ressentimentos as greves gerais eram vistas como ameaça à existência da comunidade De fato as greves nos serviços vitais e de utilidade pública mantinham os cidadãos presos enquanto os envolviam nos problemas labirínticos das verdadeiras funções de um mercado de trabalho Supõese que o trabalho encontre o seu preço no mercado e qualquer preço além do estabelecido por ele é considerado antieconômico Enquanto o trabalho corresponde a essa responsabilidade ele cornportarseá como um elemento na provisão daquilo que ele é a mercadoria trabalho e recusarseá a vender abaixo do preço que o comprador pode se permitir pagar Seguido esse raciocínio isto significa que a principal obrigação do trabalho é estar em greve quase que continuamente A proposição pode ser considerada um mero disparate mas ela é a única inferência lógica a partir da teoria do trabalho como mercadoria A fonte da incoerência entre teoria e prática é que o trabalho não é realmente uma mercadoria e se o seu fornecimento fosse sustado para atingir um preço satisfatório como acontece com o abastecimento de todas as outras mercadorias em circustâncias similares a sociedade logo teria que se dissolver por falta de sustento É notável que tal consideração jamais tenha sido incluída pelos economistas liberais na discussão do tema da greve 270 Voltando à realidade o método grevista para a fixação salarial seria desastroso em qualquer tipo de sociedade incluindo a nossa que se orgulha da sua racionalidade utilitarista Na verdade o trabalhador não tem qualquer segurança no seu emprego sob um sistema de empresa privada uma circunstância que envolve grave deterioração em seu status Acrescentemos a isto a ameaça do desemprego em massa e a função dos sindicatos profissionais se torna moral e culturalmente vital para a manutenção de padrões mínimos para a maioria do povo Mas é claro que qualquer método de intervenção que ofereça proteção aos trabalhadores deve obstruir o mecanismo do mercado autoregulável e até mesmo diminuir o fundo de bens de consumo que provê os salários dos trabalhadores Por necessidade inerente ressurgiram os problemas cruciais da sociedade de mercado intervencionismo e meio circulante Eles se tornaram o centro da política da década de 1920 O liberalismo econômico e o intervencionismo socialista se voltaram para as diferentes respostas dadas a eles O liberalismo econômico fez um esforço supremo para restaurar a autoregulação do sistema eliminando todas as políticas intervencionistas que interferiam com a liberdade dos mercados de terra trabalho e dinheiro Ele se propôs nada menos que resolver numa emergência o problema secular envolvido nos três princípios fundamentais do livrecomércio do mercado livre do trabalho e do livre funcionamento do padrãoouro Ele se tornou de fato a pontadelança de uma heróica tentativa de restaurar o comércio mundial de remover todos os empecilhos evitáveis para a mobilidade do trabalho e de reconstruir câmbios estáveis Este último objetivo tinha precedência sobre os demais A menos que fosse restaurada a confiança nas moedas o mecanismo de mercado não poderia funcionar e nesse caso seria ilusório esperar que os governos deixassem de proteger as vidas de seus povos por todos os meios ao seu alcance Na natureza das coisas esses meios eram basicamente tarifas e leis sociais destinadas a garantir alimentos e empregos isto é precisamente o tipo de intervenção que tornava impraticável um sistema autoregulável Havia uma outra razão mais imediata para colocar em primeiro lugar a restauração do sistema monetário internacional em face dos mercados desorganizados e dos câmbios instáveis o crédito internacional desempenhava um papel cada vez mais vital Antes da Primeira Guerra Mundial os movimentos do capital internacional além daqueles ligados aos investimentos de longo prazo apenas ajudavam a conservar 271 líquido o balanço de pagamentos mas eram estritamente limitados até mesmo nessa posição por considerações econômicas O crédito só era concedido àqueles que mereciam confiança na área dos negócios Agora a posição se invertia surgiram as dívidas na área política as reparações e os empréstimos concedidos numa base semipolítica para tornar possível o pagamento das reparações Mas os empréstimos eram concedidos também por razões de política econômica para estabilizar os preços mundiais ou restaurar o padrãoouro O mecanismo do crédito passou a ser utilizado por aquela parte da economia mundial relativamente sólida para diminuir a diferença nas partes relativamente desorganizadas dessa economia independente das condições de produção e de comércio As balanças de pagamento os orçamentos e os câmbios passaram a se equilibrar artificialmente numa série de países com a ajuda de um mecanismo de crédito internacional supostamente todopoderoso Esse mesmo mecanismo se baseava na expectativa de um retorno a câmbios estáveis que mais uma vez era sinônimo de um retorno ao ouro Uma espécie de cinta elástica de força descomunal ajudava a manter uma aparência de unidade num sistema econômico em dissolução mas essa cinta talvez só agüentasse a pressão se o retorno ao ouro fosse feito a tempo A realização de Genebra foi notável à sua maneira Não fora o fato do objetivo ser intrinsecamente impossível ele teria sido certamente atingido pois as tentativas nesse sentido foram suficientemente hábeis constantes e coerentes Conforme a situação porém nenhuma intervenção foi provavelmente mais desastrosa nos seus resultados do que a de Genebra Como ela parecia estar sempre à beira do sucesso ela agravou enormemente os efeitos do fracasso final Entre 1923 quando o marco alemão foi pulverizado em poucos meses e o começo de 1930 quando todas as moedas importantes do mundo estavam no ouro Genebra utilizou o mecanismo de crédito internacional para aliviar a carga das economias incompletamente estabilizadas da Europa Oriental primeiro em cima dos vitoriosos ocidentais depois para os ombros ainda mais largos dos Estados Unidos3 O colapso ocorreu na América durante o ciclo normal de negócios mas quando chegou a rede financeira criada por Genebra e pelos bancos anglosaxões enredou a economia do planeta numa confusão total e absoluta 3 Polanyi K Der Mechanismus der Weltwirtschaftskrise Der Österreichische Volkswirt 1933 suplemento 272 Muito mais foi envolvido ainda Durante a década de 1920 de acordo com Genebra as questões de organização social tinham que ser inteiramente subordinadas às necessidades de restauração da moeda A deflação era a necessidade básica e as instituições internas tinham que se ajustar da melhor maneira que pudessem Enquanto isto era preciso adiar até mesmo a restauração dos mercados internos livres e do estado liberal Nas palavras da Delegação do Ouro a deflação falhara em afetar certas classes de bens e serviços e portanto falhara também em atingir um novo equilíbrio estável Os governos tinham que intervir para reduzir os preços dos artigos monopolizados para reduzir as tabelas salariais já determinadas e cortar os aluguéis O ideal deflacionista passou a ser uma economia livre sob um governo forte Entretanto enquanto a frase tinha significado real quanto ao governo isto é poderes de emergência e suspensão das liberdades públicas a economia livre significava na prática o oposto do que se dizia isto é os preços e os salários eram ajustados pelo governo embora o ajuste fosse feito com o propósito expresso de restaurar a liberdade dos câmbios e libertar os mercados internos A prioridade dos câmbios envolvia nada menos que o sacrifício dos mercados livres e dos governos livres os dois pilares do capitalismo liberal Genebra representou portanto uma mudança de objetivo mas nenhuma mudança nos métodos enquanto os governos inflacionários condenados por Genebra subordinavam a estabilidade da moeda à estabilidade das rendas e do emprego os governos deflacionários colocados no poder por Genebra utilizavam as mesmas intervenções para subordinar a estabilidade das rendas e do emprego à estabilidade da moeda Em 1932 o relatório da Delegação do Ouro da Liga das Nações declarou que com a volta da incerteza do câmbio havia sido eliminada a principal realização monetária da última década O que o relatório não disse foi que no decurso desses vãos esforços deflacionários os mercados livres não haviam sido restaurados embora os governos livres fossem sacrificados Embora se opusessem em teoria tanto ao intervencionismo como à inflação os liberais econômicos haviam escolhido entre os dois e colocado o ideal da moeda sólida acima da não intervenção Ao fazêlo eles seguiram a lógica inerente a uma economia autoregulável Todavia um curso de ação como esse tendia a difundir a crise sobrecarregava a finança com a tensão insuportável dos deslocamentos econômicos maciços e acumulava os déficits de várias economias nacionais a ponto de tornar inevitável a ruptura dos remanescentes da divisão internacional do trabalho A teimosia dos 273 liberais econômicos em apoiar o intervencionismo autoritário durante uma década crítica a serviço de políticas deflacionárias resultou apenas no enfraquecimento decisivo das forças democráticas que talvez pudessem ter impedido a catástrofe fascista A Grã Bretanha e os Estados Unidos senhores e não servos do meio circulante abandonaram o ouro a tempo de escapar a esse perigo O socialismo é na sua essência a tendência inerente a uma civilização industrial de transcender o mercado autoregulável subordinandoo conscientemente a uma sociedade democrática Ele é a solução natural para os trabalhadores industriais que não vêem qualquer motivo para que a produção não seja diretamente regulada e que os mercados sejam mais do que uma característica útil mas subordinada numa sociedade livre Do ponto de vista da comunidade como um todo o socialismo é apenas a continuidade do esforço de fazer da sociedade uma relação de pessoas nitidamente humana e que na Europa Ocidental sempre esteve associada às tradições cristãs Do ponto de vista do sistema econômico ele é ao contrário uma ruptura radical com o passado imediato na medida em que ele rompe com a tentativa de fazer dos ganhos monetários privados o incentivo geral para as atividades produtivas e não reconhece aos indivíduos particulares o direito de disporem dos principais instrumentos de produção Em última instância é isto que torna difícil a reforma da economia capitalista pelos partidos socialistas mesmo quando estes estão dispostos a não interferir com o sistema de propriedade A mera possibilidade de que eles decidam fazêlo corrói aquele tipo de confiança que é vital na economia liberal isto é a confiança absoluta na continuidade dos títulos de propriedade Embora o teor real dos direitos de propriedade possam sofrer uma redefinição por parte da legislação a segurança da continuidade formal é essencial para o funcionamento do sistema de mercado Desde a Primeira Guerra Mundial ocorreram duas mudanças que afetam a posição do socialismo Primeiro o sistema de mercado mostrouse falível a ponto de um colapso quase total uma deficiência não esperada sequer pelos seus críticos Segundo criouse na Rússia uma economia socialista representando um ponto de partida inteiramente novo Embora as condições sob as quais esse empreendimento ocorreu o tornassem inaplicável aos países ocidentais a simples existência da Rússia soviética provou ser uma influência incisiva É verdade que ela se voltou para o socialismo por falta de indústrias de uma população alfabetizada e de tradições democráticas todas as três precondições do socialismo de acordo com as idéias ocidentais Essas diferenças 274 tornaram seus métodos e soluções inaplicáveis em qualquer outro lugar mas não impediram que o socialismo se tornasse um poder mundial O continente os partidos dos trabalhadores sempre foram socialistas em sua perspectiva e qualquer reforma que desejassem alcançar era de imediato suspeita de servir a objetivos socialistas Em épocas mais tranqüilas essa suspeita seria injustificada pois os partidos socialistas da classe trabalhadora como um todo estavam mais comprometidos com a reforma do capitalismo do que com a sua derrubada revolucionária Uma emergência porém a situação se modificava Se os métodos normais não eram válidos então poderiam ser tentados outros métodos anormais e em se tratando de um partido de trabalhadores tais métodos poderiam incluir o desprezo aos direitos de propriedade Sob a pressão de um perigo iminente os partidos dos trabalhadores podiam apelar para medidas de caráter socialista ou que assim pareciam aos partidários militantes da empresa privada Um simples indício nesse sentido seria suficiente para atirar os mercados numa confusão e começar um pânico universal Sob condições como essas o rotineiro conflito de interesses entre patrões e empregados assumiu um caráter sinistro Embora uma divergência de interesses econômicos terminasse sempre em compromisso normalmente a separação das esferas econômica e política na sociedade tendia a investir tais choques de graves conseqüências para a comunidade Os patrões eram os proprietários das fábricas e das minas e portanto diretamente responsáveis pelo andamento da produção na sociedade além do seu interesse pessoal nos lucros Em princípio eles teriam o apoio de todos na sua tentativa de manter a indústria em andamento Por outro lado os empregados representavam uma grande secçâo da sociedade seus interesses também eram e num grau importante coincidentes com os da comunidade como um todo Eles constituíam a única classe apta a proteger os interesses dos consumidores dos cidadãos dos seres humanos como tais e com o sufrágio universal a sua quantidade numérica lhes conferia uma preponderância na esfera política Entretanto o legislativo como a indústria desempenhava funções normais na sociedade Seus membros tinham a seu cargo a formação da vontade comunal a administração da política pública a elaboração de programas a longo prazo internos e externos Nenhuma sociedade complexa podia passar sem órgãos legislativos atuantes e corpos executivos de tipo político Um choque de interesses de grupo que resultasse na paralisação de órgãos da indústria ou do estado um deles ou ambos criava um perigo imediato para a sociedade 275 E no entanto foi precisamente este o caso da década de 1920 O trabalho se entrincheirou no parlamento onde o seu número lhe dava peso os capitalistas fizeram da indústria uma fortaleza para dirigir o país Os órgãos populares responderam com uma impiedosa intervenção nos negócios desprezando as necessidades de uma dada forma de indústria Os capitães de indústria subvertiam a lealdade da população para com os seus próprios dirigentes livremente eleitos enquanto órgãos democráticos entravam em luta contra o sistema industrial do qual dependia a subsistência de todos É claro que chegaria o momento em que ambos os sistemas econômico e político se veriam ameaçados de uma paralisia total O medo atingiria o povo e a liderança seria entregue àqueles que oferecessem uma saída fácil a qualquer preço A época estava madura para a solução fascista 276 20 A HISTÓRIA NA ENGRENAGEM DA MUDANÇA SOCIAL Se jamais existiu um movimento político que correspondeu às necessidades de uma situação objetiva e que não foi resultado de causas fortuitas ele foi o fascismo Ao mesmo tempo o caráter degenerativo da solução fascista era evidente Ela oferecia um escape a um impasse institucional que era essencialmente semelhante em grande número de países e no entanto se esse remédio fosse aplicado em todo lugar ele teria produzido uma doença que levaria à morte Esta é a maneira na qual perecem as civilizações A solução fascista do impasse atingido pelo capitalismo liberal pode ser descrita como uma reforma da economia de mercado alcançada ao preço da extinção de todas as instituições democráticas tanto no campo industrial como no político O sistema econômico ameaçado de ruptura poderia ser revitalizado mas os povos ficaram sujeitos a uma reeducação que se propunha a desnaturalizar o indivíduo e torná 10 incapaz de funcionar como unidade responsável do corpo político1 Essa reeducação que abrangia o dogma de uma religião política que negava a idéia da fraternidade do homem em todas as suas formas foi alcançada através de um ato de conversão de massa imposta aos recalcitrantes por métodos científicos de tortura 1 Polanyi K The Essence of Fascin Em Chistianity and the Social Revolution 1935 277 O aparecimento desse movimento nos países industrializados do globo e até mesmo em alguns menos industrializados jamais pode ser atribuído a causas locais mentalidades nacionais ou formação histórica como fizeram sistematicamente os contemporâneos O fascismo teve tão pouco a ver com a Primeira Guerra Mundial como com o Tratado de Versalhes com o militarismo Junker como com o temperamento italiano O movimento surgiu em países derrotados como a Bulgária e em países vitoriosos como a Iugoslávia em países de temperamento nórdico como a Finlândia e a Noruega e de temperamento sulista como a Itália e a Espanha em países de raça ariana como a Inglaterra a Irlanda ou a Bélgica e de raças nãoarianas como o Japão a Hungria ou a Palestina em países de tradição católica como Portugal e em países protestantes como a Holanda em comunidades militares como a Prússia e unidades civis como a Áustria em culturas antigas como a França e novas como os Estados Unidos e os países latinoamericanos De fato não houve qualquer tipo de formação de tradição religiosa cultural ou nacional que tornasse um país imune ao fascismo uma vez dadas as condições para a sua emergência Ademais foi marcante a falta de relação entre a sua força material e numérica e a sua efetividade política O próprio termo movimento era equivocado uma vez que implicava uma espécie de alistamento ou participação pessoal de grandes massas Se houve alguma coisa característica no fascismo foi a sua independência de tais manifestações populares Embora seu objetivo fosse um cortejo de massas sua força potencial era reconhecida não pelo número dos seus adeptos mas pelo fato de os líderes fascistas gozarem da boa vontade de pessoas em postos de relevância cuja influência na comunidade podia defendêlos das conseqüências eventuais de uma revolta abortada afastando assim os riscos da revolução Um país que se avizinhava da fase fascista revelava sintomas e entre eles não era necessária a existêricia de um movimento fascista propriamente dito Entre esses indícios importantes estavam a difusão de filosofias irracionais estéticas raciais demagogia anticapitalista opiniões heterodoxas sobre a moeda crítica do sistema partidário a depreciação amplamente difundida do regime ou qualquer que seja o nome dado ao conjunto democrático vigente Na Áustria a chamada filosofia universalista de Othmar Spann na Alemanha a poesia de Stephan George e o romantismo cosmogônico de Ludwig Klages na Inglaterra a vitalidade erótica de D H Lawrence na França o culto do mito político de Georges Sorel estavam entre os seus precursores 278 extremamente diversificados Hitler foi colocado no poder eventualmente pela facção feudalista em torno do presidente Hindemburg da mesma forma que Mussolini e Primo de Rivera foram elevados a seus cargos pelos seus respectivos soberanos No entanto Hitler tinha um vasto movimento a apoiálo Mussolini tinha um movimento pequeno Primo de Rivera não tinha nenhum Em nenhum dos casos ocorreu uma verdadeira revolução contra a autoridade constituída As táticas fascistas foram invariavelmente as de uma rebelião simulada arranjada com a aprovação tácita das autoridades que fingiam ter sido superadas pela força Este é o e boço simples de um quadro complexo no qual ainda teria que se dar lugar a figuras tão diversas como o demagogo independente e católico da Detroit industrial ou o Kingfish da atrasada Louisiana os conspiradores militares japoneses e os sabotadores ucranianos antisoviéticos O fascismo era uma possibilidade política constante uma reação emocional quase instantânea em cada comunidade industrial desde 1930 Podese chamálo um passo de preferência a um movimento para indicar a natureza impessoal da crise cujos sintomas eram freqüentemente vagos e ambíguos Muitas vezes as pessoas não estavam certas se um discurso político ou uma peça um sermão ou uma parada pública uma meta física ou uma exposição artística um poema ou um programa partidário era fascista ou não Não havia um critério aceito para o fascismo e nem ele possuía dogmas convencionais Entretanto um aspecto significativo de todas as suas formas organizadas foi a maneira abrupta na qual ele aparecia e desaparecia outra vez apenas para irromper com mais violência após um período indefinido de latência Tudo isso assenta no quadro de uma força social que aumenta e diminui de acordo com a situação objetiva O que intitulamos como situação fascista para resumir nada mais foi do que a ocasião tipica das vitórias fáceis e completas do fascismo De repente pareciam dissolverse as tremendas organizações do trabalho industrial e político e outros devotados mantenedores da liberdade constitucional e minúsculas forças fascistas punham de lado o que parecia até então a força irresistivel de governos democráticos partidos sindicatos profissionais Se uma situação revolucionária é caracterizada pela desintegração psicológica e moral de todas as forças de resistência a ponto de um punhado de rebeldes mal armados ser capaz de assaltar as fortalezas aparentemente intransponíveis da reação então a situação fascista é seu paralelo total exceto pelo fato de que aqui os baluartes da democracia e liberdades constitucionais foram 279 assaltados e suas defesas ruíram da mesma forma espetacular Na Prússia em julho de 1932 o governo legal dos socialdemocratas entrincheirado na sede do poder legítimo capitulou diante da simples ameaça de uma violência inconstitucional por parte de Herr von Papen Cerca de seis meses mais tarde Hitler se apoderou pacificamente dos postos mais altos do poder de onde lançou um ataque revolucionário de destruição total contra as instituições da República de Weimar e os partidos constitucionais Imaginar que foi a força do movimento que criou situações como essas e não ver que foi a situação que fez nascer o movimento neste caso é perder de vista a lição mais importante das últimas décadas O fascismo como o socialismo enraizavase numa sociedade de mercado que se recusava a funcionar Daí ser ele de caráter mundial de alcance católico universal na aplicação os temas transcendiam a esfera econômica e geravam uma transformação geral de um tipo distintamente social Ele se irradiou para quase todos os campos da atividade humana seja político ou econômico cultural filosófico artístico ou religioso Até certo ponto ele aglutinouse às tendências locais e tópicas Não é possível entender a história desse período a menos que se distinga entre o movimento fascista subjacente e as tendências efêmeras com as quais esse movimento se fundiu em diferentes países Na Europa da década de 1920 duas dessas tendências assumem forma proeminente e encobrem o padrão do fascismo mais débil porém amplamente mais compreensível contrarevolução e revisionismo nacionalista Seu ponto de partida mais imediato foram os tratados e as revoluções pósguerra Embora estritamente condicionados e limitados a seus objetivos específicos eles foram facilmente confundidos com o fascismo As contrarevoluções eram o retorno habitual do pêndulo político em direção a um estado de coisas que havia sido perturbado violentamente Tais movimentos foram típicos da Europa pelo menos desde o estabelecimento do Commonwealth inglês e tinham apenas uma conexão limitada com os processos sociais da sua época Na década de 1920 ocorreram numerosas situações do mesmo tipo uma vez que os levantes que derrubaram mais de uma dúzia de tronos na Europa Central e Oriental deviamse em parte à repercussão da derrota e não a um movimento em direção à democracia A tarefa da contrarevolução era principalmente política e recaiu naturalmente sobre as classes destituídas e grupos tais como dinastias aristocracias igrejas indústrias pesadas e partidos a eles filiados As alianças e os choques de conservadores 280 e fascistas durante esse período estavam relacionados basicamente com a parte que caberia aos fascistas na intentona contrarevolucionária Ora o fascismo foi urna tendência revolucionária dirigida tanto contra o conservadorismo como contra as forças revolucionárias competidoras do socialismo Isto não impediu aos fascistas de procurar o poder na área política oferecendo seus serviços à contrarevolução Pelo contrário eles reclamaram a ascendência principalmente pela suposta impotência do conservadorismo em cumprir a tarefa inevitável de impedir o socialismo Os conservadores naturalmente tentaram monopolizar as honras da contrarevolução e na verdade fizeramna sozinhos corno ocorreu na Alemanha Eles privaram os partidos da classe trabalhadora da influência e do poder sem porém transmitilos aos nazistas O mesmo ocorreu na Áustria onde os socialistas cristãos um partido conservador desarmaram os trabalhadores em grande escala 1927 sem fazer qualquer concessão à revolução da direita Mesmo quando era inevitável a participação fascista na contrarevolução os governos fortes estabelecidos relegaram o fascismo ao esquecimento Isto aconteceu na Estônia em 1929 na Finlândia em 1932 na Lituânia em 1934 Regimes pseudoliberais enfraqueceram o poder do fascismo pelo menos durante algum tempo na Hungria em 1922 e na Bulgária em 1926 Só na Itália é que os conservadores foram incapazes de restaurar a disciplina do trabalho na indústria sem fornecer aos fascistas urna oportunidade de adquirir poder Nos países derrotados militarmente mas também na Itália derrotada psicologicamente agigantavase o problema nacional Aqui havia uma tarefa cuja premência não podia ser negada O desarmamento permanente dos países derrotados era o mais profundo dos temas Num mundo no qual a única organização existente de lei internacional de ordem internacional e de paz internacional repousava no equilíbriode poder uma série de países se via impotente sem poder imaginar que tipo de sistema substituiria o antigo A Liga das Nações representava quando muito um sistema avançado de equilíbriodepoder mas na verdade ela não se aproximava sequer do nível do antigo Concerto da Europa pois faltavalhe o prérequisito de uma difusão geral de poder O nascente movimento fascista se colocou praticamente em todos os lugares a serviço do tema nacional dificilmente ele teria sobrevivido sem assumir essa tarefa Entretanto ele usou esse tema apenas como degrau em outras ocasiões seu tom era pacifista e isolacionista Na Inglaterra e nos Estados p Unidos ele se aliou ao apaziguamento na Áustria o Heimwehr cooperou 281 com diferentes pacifistas católicos e o fascismo católico era antinacionalista por princípio Huey Long não precisou do conflito de fronteiras com o Mississippi ou o Texas para lançar seu movimento fascista em Baton Rouge Movimentos similares na Holanda e na Noruega foram nãonacionalistas ao ponto da traição Quisling pode ter sido um nome para um bom fascista mas certamente não era o nome de um bom patriota Na sua luta pelo poder político o fascismo está inteiramente livre para desprezar ou utilizar temas locais à vontade Seu objetivo transcende o arcabouço político e econômico é social Ele coloca uma religião política a serviço de um processo degenerativo No seu processo de ascensão ele exclui apenas algumas emoções na sua orquestração uma vez vitorioso porém ele afasta da sua banda todas as outras motivações a não ser um pequeno grupo um grupo extremamente característico A menos que possamos distinguir perfeitamente entre esta pseudointolerância no caminho para o poder e a intolerância genuína quando no poder dificilmente poderemos compreender a diferença sutil mas decisiva entre o suposto nacionalismo de alguns movimentos fascistas durante a revolução e o nãonacionalismo especificamente imperialista que eles desenvolveram depois da revolução2 Embora os conservadores fossem bemsucedidos em regra em conduzir as contrarevoluções internas dificilmente eles conseguiam resolver o problema nacional internacional dos seus países Brüning afirmava em 1940 que as reparações alemãs e o desarmamento haviam sido solucionados por ele antes que a facção em torno de Hindemburg decidisse afastálo do cargo e dar o poder aos nazistas e alegou que a razão deste ato era não quererem dispensarlhe as honras devidas3 Num sentido muito limitado se isto aconteceu ou não parece imaterial pois a questão da igualdade de status da Alemanha não se restringia ao desarmamento técnico conforme alegava Brüning mas incluía a questão igualmente vital da desmilitarização Também não era realmente possível desprezar a força que a diplomacia alemã conseguiu através da existência das massas nazistas devotadas a políticas nacionalistas radicais Os eventos provaram conclusivamente que a igualdade de status da Alemanha não podia ter sido atingida sem uma partida 2 Heymann H Plan for Permanent Peace 1942 Cf A carta de 8 de janeiro de 1940 de Brüning 3 Rauschning H The Voice of Destruction 1940 282 revolucionária e é a essa luz que se tornou aparente a terrível responsabilidade do nazismo que empenhou uma Alemanha livre e igualitária numa carreira de crimes Tanto na Alemanha quanto na Itália o fascismo só pôde assumir o poder porque foi capaz de usar como alavanca problemas nacionais insolúveis enquanto na França ou na Grã Bretanha o fascismo foi enfraquecido decisivamente pelo seu antipatriotismo Somente em países pequenos naturalmente dependentes é que o espírito da subserviência a um poder estrangeiro provou ser um ativo para o fascismo Foi apenas por acidente como vemos que o fascismo europeu na década de 1920 se ligou às tendências nacionais e contrarevolucionárias Foi um caso de simbiose entre movimentos de origens independentes que se reforçaram uns aos outros e criaram a impressão de uma similaridade básica quando na verdade não estavam relacionados Na realidade o papel desempenhado pelo fascismo foi determinado por um fator a condição do sistema de mercado Durante o período 19171923 os governos procuraram ocasionalmente a ajuda fascista para restaurar a lei e a ordem nada mais era preciso para que o sistema de mercado continuasse a funcionar O fascismo continuou subdesenvolvido No período 19241929 quando parecia garantida a restauração do sistema de mercado o fascismo desapareceu como força política Após 1930 a economia de mercado enfrentava uma crise geral Em poucos anos o fascismo se tornou um poder mundial O primeiro período 19171923 produziu pouco mais do que pretendia Numa série de países europeus Finlândia Lituânia Estônia Letônia Polônia Rumânia Bulgária Grécia Hungria haviam ocorrido revoluções agrárias ou socialistas enquanto em outros entre eles Itália Alemanha e Áustria a classe trabalhadora industrial havia adquirido influência política As contrarevoluções eventualmente restabeleceram o equilíbriodepoder interno Na maioria dos países o campesinato voltouse contra os trabalhadores urbanos em alguns países os movimentos fascistas foram iniciados por oficiais e a pequena nobreza que dirigia o campesinato em outros como na Itália os desempregados e a pequena burguesia se constituíram em tropas fascistas Em nenhum lugar foi debatido outro problema se não o da lei e da ordem e não se levantava qualquer questão de reforma radical em outras palavras não era aparente qualquer indício de uma revolução fascista Esses movimentos só eram fascistas na forma isto é na medida em que bandos de civis chamados elementos irresponsáveis faziam 283 uso da força e da violência com a conivência de pessoas em posição de autoridade A filosofia antidemocrática do fascismo já havia nascido mas não era ainda um fator político Trotski fez um volumoso relatório sobre a situação da Itália às vésperas do segundo congresso do Comintern em 1920 mas nem sequer mencionou o fascismo embora o fasei já existisse há muito tempo Levou ainda dez anos ou mais antes que o fascismo italiano há muito estabelecido no governo do país desenvolvesse algo da natureza de um sistema social distinto Em 1924 e depois a Europa e os Estados Unidos foram o cenário de um surto impetuoso que afogou todas as preocupações quanto à solidez do sistema de mercado Consideravase restabelecido o capitalismo Tanto o bolchevismo como o fascismo estavam liquidados exceto nas regiões periféricas O Comintern declarou a consolidação do capitalismo um fato consumado Mussolini elogiava o capitalismo liberal todos os países importantes exceto a GrãBretanha estavam em ascensão Os Estados Unidos gozavam de uma prosperidade legendária e o continente saíase quase tão bem O putsch havia sido sufocado a França evacuara o Ruhr o Reichsmark se restabelecia como por milagre o Plano Dawes havia retirado a política das reparações Locarno estava distante e a Alemanha estava iniciando os sete anos gordos Antes do final de 1926 o padrãoouro dominava novamente de Moscou até Lisboa Foi no terceiro período após 1929 que se tornou aparente o verdadeiro significado do fascismo O impasse do sistema de mercado era evidente Até então o fascismo havia sido apenas um traço do governo autoritário da Itália que porém pouco se diferenciava daqueles de um tipo mais tradicional Ele emergia agora como uma solução alternativa para o problema de uma sociedade industrial A Alemanha tomou a iniciativa numa revolução de âmbito europeu e o alinhamento fascista deu à sua luta pelo poder uma dinâmica que logo abarcou os cinco continentes A história estava na engrenagem de uma mudança social Um acontecimento fortuito mas de forma alguma acidental iniciou a destruição do sistema internacional A queda de Wall Street atingiu dimensões imensas e foi seguida pela decisão da GrãBretanha de se afastar do ouro e dois anos mais tarde por um passo semelhante por parte dos Estados Unidos Simultaneamente a Conferência do Desarmamento deixou de se reunir e em 1934 a Alemanha abandonou a Liga das Nações Esses eventos simbólicos introduziram uma época de mudança espetacular na organização do mundo Três potências Japão Alemanha e 284 Itália rebelaramse contra o status quo e sabotaram a minguada instituição da paz Ao mesmo tempo a organização factual da economia mundial se recusava a funcionar O padrãoouro foi posto fora de ação temporariamente pelos seus criadores anglosaxões sob o disfarce de uma insolvência as dívidas externas eram repudiadas os mercados de capital e o comércio mundial minguaram O sistema político e o sistema econômico do planeta se desintegraram conjuntamente Dentro das próprias nações a mudança não era menos completa Os sistemas bipartidários eram substituídos por governos unipartidários e às vezes por governos nacionais Todavia as similaridades externas entre países ditatoriais e países que conservavam uma opinião pública democrática apenas serviam para enfatizar a importância superlativa das instituições livres de discussão e decisão A Rússia se voltou para o socialismo sob formas ditatoriais O capitalismo liberal desapareceu nos países que se preparavam para a guerra como a Alemanha o Japão e a Itália e em menor extensão também nos Estados Unidos e na GrãBretanha Mas os regimes emergentes do fascismo socialismo e do New Deal eram semelhantes apenas no abandono dos princípios do laissezfaire Enquanto a história iniciou seu curso por um acontecimento externo a todos as nações individuais reagiam ao desafio segundo podiam fazêlo Algumas se opunham à mudança algumas percorreram um grande caminho para encontráIa quando ela surgiu algumas ficaram indiferentes As soluções também foram buscadas em várias direções Do ponto de vista da economia de mercado essas soluções às vezes radicalmente diferentes representavam apenas alternativas dadas Entre aqueles determinados a fazer uso de uma desarticulação geral para incrementar seus próprios interesses estava o grupo de potências insatisfeitas para as quais o sistema de equilíbriodepoder mesmo em sua forma enfraquecida impingido pela Liga parecia oferecer uma oportunidade rara A Alemanha estava agora ansiosa para apressar a queda da economia mundial tradicional que ainda dava apoio à ordem internacional e ela procurava anteciparse a esse colapso de forma a começar antes de seus oponentes Ela se separou deliberadamente do sistema internacional de capital mercadoria e moeda de forma a diminuir a autoridade do mundo exterior sobre si mesma quando achasse conveniente repudiar suas obrigações políticas Patrocinou a autarquia econômica para garantir a liberdade necessária a seus planos a longo termo Malbaratou suas reservas de ouro destruiu seu crédito exterior pelo repúdio gratuito de suas obrigações e durante algum tempo até 285 mesmo aniquilou sua balança comercial externa favorável Conseguiu camuflar facilmente suas verdadeiras intenções uma vez que nem Wall Street nem a City de Londres nem Genebra suspeitavam que os nazistas estavam realmente operando a dissolução final da economia do século XIX Sir John Simon e Montagu Norman acreditavam firmemente que no devido tempo Schacht restauraria a economia ortodoxa na Alemanha ainda sob pressão e que ela retomaria à congregação se fosse ajudada financeiramente ilusões como essas sobreviveram em Downing Street até a época de Munich e mesmo depois Enquanto a Alemanha era ajudada desta forma em seus planos conspiratórios pela sua habilidade de ajustarse à dissolução do sistema tradicional a GrãBretanha se encontrava severamente prejudicada por aderir a esse sistema Embora a Inglaterra tivesse abandonado o outro temporariamente sua economia e suas finanças continuavam a se basear nos princípios de câmbios estáveis e moeda sólida Daí as limitações sob as quais se encontrou em relação ao rearmamento Assim como a autarquia alemã foi um resultado de considerações militares e políticas que decorreram da sua intenção de antecipar urna transformação geral a estratégia e a política externa britânicas foram reprimidas pela sua perspectiva financeira conservadora A estratégia de uma guerra limitada refletia a visão de um empório ilhado que se vê seguro enquanto a sua marinha é forte o bastante para garantir o abastecimento que seu dinheiro sólido pode comprar nos Sete Mares Hitler já estava no poder quando em 1933 Duff Cooper um conservador ferrenho defendia os cortes no orçamento militar de 1932 como feitos em face da bancarrota nacional considerada então um perigo ainda maior do que um serviço militar eficiente Mais de três anos mais tarde Lorde Halifax assegurava que se poderia conseguir a paz com ajustes econômicos e que não deveria ocorrer qualquer interferência no comércio já que isto dificultaria os ajustes No mesmo ano de Munich Halifax e Chamberlain ainda formulavam a política britânica em termos de balas de prata e dos tradicionais empréstimos americanos à Alemanha De fato mesmo depois que Hitler cruzara o Rubicão e já havia ocupado Praga Lorde Simon aprovava na Câmara dos Comuns a proposta de Montagu Norman de entregar as reservas de ouro tchecas a Hitler Simon estava convicto de que a integridade do padrãoouro a cuja restauração ele dedicava a sua função de estadista superava todas as outras considerações Os contemporâneos acreditavam que a ação de Simon era o resultado de uma política determinada de apaziguamento Na verdade 286 ela foi uma homenagem ao espírito do padrãoouro que continuava a governar a perspectiva dos líderes da City de Londres em relação a assunto estratégicos e políticos Na mesma semana em que irrompeu a guerra o Foreign Office em resposta a uma comunicação verbal de Hitler a Chamberlain formulava a política britânica em termos dos tradicionais empréstimos americanos à Alemanha4 O despreparo militar da Inglaterra foi principalmente o resultado da sua adesão à economia do padrãoouro A Alemanha em princípio colheu as vantagens daqueles que matam aquilo que está destinado a morrer Sua vantagem durou enquanto a liquidação do desgastado sistema do século XIX permitiulhe manterse na liderança A destruição do capitalismo liberal do padrãoouro e das soberanias absolutas foi o resultado incidental das suas incursões de pilhagem Ajustandose a um isolamento procurado por ela mesma e mais tarde no decurso das suas expedições escravagistas ela desenvolveu tentativas de solução para alguns dos problemas da transformação Seu maior acervo político porém foi sua habilidade em compelir os países do mundo a se alinharem contra o bolchevismo Ela se transformou na principal beneficiária da transformação assumindo a liderança para a solução do problema da economia de mercado que durante muito tempo pareceu congregar a aliança incondicional das classes proprietárias e na verdade não só dessas classes Sob o pressuposto liberal e marxista do primado dos interesses econômicos de classe Hitler destinavase a vencer Mas a longo prazo a unidade social da nação provou ser ainda mais relevante do que a unidade econômica de classe A ascensão da Rússia também estava ligada ao seu papel na transformação De 1917 a 1929 o medo do bolchevismo não era mais do que o medo da desordem que poderia prejudicar fatalmente a restauração de uma economia de mercado e esta não poderia funcionar exceto numa atmosfera de confiança irrestrita Na década seguinte o socialismo se tornou uma realidade na Rússia A coletivização das fazendas significava a superação da economia de mercado por métodos cooperativos em relação ao fator decisivo da terra A Rússia que havia sido apenas um local de agitação revolucionária dirigida para o mundo capitalista emergia como representante de um novo sistema que podia substituir a economia de mercado 4 British Blue Book nº 74 Cmd 6106 1939 287 Não é geralmente apreendido o fato de que os bolcheviques embora eles mesmos ardentes socialistas se recusavam teimosamente a estabelecer o socialismo na Rússia As suas próprias convicções marxistas impediam tal tentativa num país agrário atrasado Entretanto à parte o episódio inteiramente excepcional do chamado comunismo de guerra em 1920 os líderes aderiam à posição de que a revolução mundial deveria começar na Europa Ocidental industrializada O socialismo em um único país parecia a eles uma contradição em termos e quando ele se tornou uma realidade os velhos bolcheviques rejeitaramno quase que em uníssono E no entanto foi precisamente esse ponto de partida que provou ser um sucesso extraordinário Retomando à história russa de um quarto de século parece que aquilo que chamamos Revolução Russa consistiu realmente em duas revoluções separadas a primeira das quais incorporava ideais europeus ocidentais tradicionais enquanto a segunda foi parte de um desenvolvimento inteiramente novo da década de 1930 A Revolução de 1917 1924 foi de fato o último dos levantes políticos da Europa que seguiram o padrão do Commonwealth inglês e da Revolução Francesa A revolução que começou com a coletivização das fazendas por volta de 1930 foi a primeira das grandes mudanças sociais que transformaram o nosso mundo na década de 1930 Com a primeira revolução os russos conseguiram a destruição do absolutismo do domínio feudal da terra e da opressão racial uma verdadeira herança dos ideais de 1789 A segunda revolução estabeleceu uma economia socialista Dito isso a primeira foi apenas um acontecimento russo ela cumpriu um longo processo de desenvolvimento ocidental em solo russo enquanto a segunda fez parte de uma transformação universal simultânea Aparentemente na década de 1920 a Rússia estava afastada da Europa e trabalhava pela sua própria salvação Uma análise mais apurada poderia desaprovar essa aparência O fracasso do sistema internacional foi um dos fatores que levaramna a uma decisão nos anos que decorreram entre as duas revoluções Em 1924 o Comunismo de Guerra era um incidente esquecido e a Rússia havia restabelecido um mercado interno livre de cereais enquanto mantinha o controle estatal do comércio exterior e das indústrias básicas Ela procurava agora aumentar seu comércio exterior que dependia principalmente da exportação de cereais madeira peles e algumas outras matériasprimas orgânicas cujos preços caíram sistematicamente no decur o da depressão agrária que precedeu a ruptura geral do comércio A incapacidade da Rússia de desenvolver um comércio de exportação em termos 288 favoráveis restringiu suas importações de maquinaria e portanto o estabelecimento de uma indústria nacional Isto mais uma vez afetou desfavoravelmente os termos da permuta entre cidade e campo a chamada tesouras aumentando assim o antagonismo do campesinato à dominação dos trabalhadores urbanos Dessa forma a desintegração da economia mundial aumentou a pressão sobre as soluções improvisadas para a questão agrária na Rússia e apressou o surgimento do Kolkhoz O fracasso do sistema político tradicional da Europa em fornecer apoio e segurança atuou no mesmo sentido uma vez que ele levou à necessidade de armamentos aumentando a carga de uma industrialização de alta pressão A ausência do sistema de equilíbriode poder do século XIX bem como a incapacidade de um mercado mundial em absorver a produção agrícola da Rússia forçoua a seguir relutantemente os caminhos da auto suficiência O socialismo em um único país foi originado pela incapacidade da economia de mercado em estabelecer uma ligação entre todos os países o que parecia uma autarquia russa era apenas a morte do internacionalismo capitalista O fracasso do sistema internacional desprendeu as energias da história os trilhos foram fixados pelas tendências inerentes numa sociedade de mercado 289 21 A LIBERDADE NUMA SOCIEDADE COMPLEXA A civilização do século XIX não foi destruída por ataques de bárbaros externos ou internos sua vitalidade não foi solapada pelas devastações da Primeira Guerra Mundial nem pela revolta de um proletariado socialista ou de uma classe média baixa fascista Seu fracasso não foi conseqüência de alguma suposta lei de economia como a taxa de lucros decrescentes a do subconsumo ou a da superprodução Ela se desintegrou como resultado de um conjunto de causas inteiramente diferentes as medidas que a sociedade adotou para não ser aniquilada por sua vez pela ação do mercado autoregulável À parte as circunstâncias excepcionais que existiram na América do Norte na época da fronteira aberta o conflito entre o mercado e as exigências elementares de uma vida social organizada tanto proporcionou ao século a sua dinâmica como produziu as tensões e pressões típicas que em última instância destruíram aquela sociedade As guerras externas apenas apressaram essa destruição Após um século de desenvolvimento cego o homem está restaurando o seu habitat Se a industrialização não deve extinguir a raça ela precisa se subordinar às exigências da natureza do homem A verdadeira crítica à sociedade de mercado não é pelo fato de ela se basear na economia num certo sentido toda e qualquer sociedade tem que se basear nela mas que a sua economia se baseava no autointeresse Uma tal organização de vida econômica é inteiramente antinatural no sentido estritamente empírico de excepcional Os pensadores do século 290 XIX supunham que o homem só visava ao lucro em sua atividade econômica que suas propensões materialistas induziI oiam a escolher o menor em vez do maior esforço na expectativa do pagamento pelo seu trabalho Em resumo que na sua atividade econômica ele tenderia a guiarse por aquilo que eles descreviam como racionalidade econômica e que todo comportamento em contrário seria o resultado de uma interferência externa Decorria daí que os mercados eram instituições naturais que surgiriam espontaneamente se apenas se deixassem os homens em paz Nada era mais natural portanto do que um sistema econômico que consistia em mercados sob o controle único dos preços de mercado e uma sociedade humana baseada em tais mercados seria assim o objetivo de todo o progresso Qualquer que fosse a desejabilidade ou indesejabilidade de uma tal sociedade sob o ponto de vista moral sua praticabilidade isto era axiomático se fundamentava nas características imutáveis da raça Na verdade como sabemos agora o comportamento do homem tanto em seu estado primitivo como através do curso da história foi praticamente o oposto do comportamento implícito nessa perspectiva A frase de Frank H Knight nenhum motivo especificamente humano é econômico aplicase não apenas à vida social em geral mas também à própria vida econômica A tendência à permuta da qual Adam Smith tão confiantemente se valeu ao retratar o homem primitivo não é uma tendência comum ao ser humano nas suas atividades econômicas mas uma tendência bastante infreqüente Não é apenas a antropologia moderna que comprova a mentira desses construtos racionalistas mas a história do comércio e dos mercados também foi completamente diferente daquela assumida pelos harmoniosos ensinamentos dos sociólogos do século XIX A história econômica mostra que a emergência de mercados nacionais não foi de forma alguma o resultado da emancipação gradual e espontânea da esfera econômica do controle governamental Pelo contrário o mercado foi a conseqüência de uma intervenção consciente e às vezes violenta por parte do governo que impôs à sociedade a organização do mercado por finalidades nãoeconômicas Examinado mais de perto o mercado autoregulável do século XIX se revela radicalmente diferente até mesmo do seu predecessor imediato pois ele dependia do autointeresse econômico para a sua regulação A fraqueza congênita da sociedade do século XIX não foi o fato de ser uma sociedade industrial e sim uma sociedade de mercado A civilização industrial continuará a existir mesmo quando a experiência utópica de um mercado autoregulâvel não for mais que uma lembrança 291 Todavia a mudança de uma civilização industrial para uma nova base de negação do mercado parece a muitos uma tarefa demasiado árdua Eles receiam um vácuo institucional ou o que é pior a perda da liberdade Será que esses perigos precisam realmente prevalecer Grande parte do maciço sofrimento de um período de transição já está bem para trás Já experimentamos o pior com a desarticulação social e econômica da nossa era com as trágicas vicissitudes da depressão de flutuações da moeda do desemprego em massa de mudanças de status social da destruição espetacular de estados históricos Mesmo a contragosto vimos pagando o preço dessa mudança Embora a humanidade ainda esteja longe de se adaptar ao uso da máquina e apesar das mudanças pendentes ainda serem imensas a restauração do passado é tão impossível como transferir nossos problemas para outro planeta Ao invés de eliminar as forças demoníacas da agressão e da conquista uma tentativa fútil como essa apenas garantiria a sobrevivência dessas forças mesmo após a sua total derrota militar A causa do mal se revestiria da vantagem decisiva na política de representar o possível em oposição àquilo que é impossível atingir por melhor que seja a situação O colapso do sistema tradicional não nos deixará num vazio Não seria a primeira vez na história em que as improvisações conteriam os germes de grandes e permanentes instituições Dentro das nações testemunhamos agora um desenvolvimento em que o sistema econômico deixa de organizar a lei da sociedade e se garante o primado da sociedade sobre esse sistema Isto pode acontecer numa grande variedade de formas democrática e aristocrática constitucionalista e autoritária talvez até de uma forma ainda não prevista O futuro de alguns países já pode ser o presente em outros enquanto alguns ainda podem incorporar o passado dos demais Mas o resultado é comum a todos eles o sistema de mercado não será mais autoregulável mesmo em princípio uma vez que ele não incluirá o trabalho a terra e o dinheiro Retirar o trabalho do mercado significa uma transformação tão radical como foi a criação de um mercado de trabalho competitivo O contrato salarial deixa de ser um contrato privado exceto em pontos subordinados e acessórios Não apenas as condições fabris as horas de trabalho e as modalidades do contrato mas o próprio salário básico passa a ser determinado fora do mercado O papel que será atribuído aos sindicatos profissionais ao estado e a outros órgãos públicos dependerá não apenas do caráter dessas instituições mas também da 292 organização real da administração da produção Embora seja da natureza das coisas que os diferenciais salariais possam e devam continuar a desempenhar um papel essencial no sistema econômico outras motivações além daquelas diretamente envolvidas nos rendimentos monetários podem compensar em muito o aspecto financeiro do trabalho Retirar a terra do mercado é o mesmo que incorporáIa a instituições definidas como o ambiente doméstico a cooperativa a fábrica o distrito a escola a igreja os parques as reservas de vida selvagem e assim por diante Todavia continuará a existir em caráter amplo a propriedade individual das fazendas mas os contratos de arrendamento da terra só precisarão lidar com os aspectos acessórios pois os essenciais serão retirados da jurisdição do mercado O mesmo se aplica aos alimentos principais e às matériasprimas orgânicas já que a fixação de preços em relação a elas não é mais função do mercado O fato de os mercados competitivos para uma infinita variedade de produtos continuarem a funcionar não precisa interferir com a constituição da sociedade da mesma forma que a fixação de preços fora do mercado para o trabalho a terra e o dinheiro não interfere com a função de custo dos preços de vários produtos É claro que a natureza da propriedade sofre uma mudança profunda em conseqüência de tais medidas já que nâo se faz necessário que as rendas dos títulos de propriedade cresçam sem limites simplesmente para garantir emprego produção e a utilização dos recursos da sociedade A retirada do controle do dinheiro do mercado já está sendo feita em todos os países hoje em dia Inconscientemente foi a criação dos depósitos que levou a isto em grande parte mas a crise do padrãoouro na década de 1920 provou que ainda não havia sido cortado o elo entre o dinheiromercadoria e o dinheiro convencional Desde a introdução da finança funcional em todos os estados importantes a administração dos investimentos e a regulamentação da taxa de poupança passaram a ser tarefas governamentais Retirar do mercado os elementos da produção terra trabalho e dinheiro é portanto um ato uniforme apenas do ponto de vista do mercado que lidava com eles como se fossem mercadorias Do ponto de vista da realidade humana aquilo que é restaurado pelo desmantelamento da ficção mercadoria está em todas as direções do compasso social Com efeito a desintegração de uma economia uniforme já está dando origem a uma variedade de sociedades novas O fim da sociedade de mercado não significa de forma alguma a ausência de mercados Estes continuam de várias maneiras a garantir a liberdade do consumidor 293 a indicar a mudança da demanda a influenciar a renda dos produtores e a servir como instrumento de contabilização embora deixe de ser totalmente um órgão de auto regulação econômica Tanto nos seus métodos internacionais como nos seus métodos internos a sociedade do século XIX se viu limitada pela economia O setor dos câmbios estrangeiros fixados coincidia com a civilização Enquanto o padrãoouro e o que se tornou quase o seu corolário os regimes constitucionais estavam em funcionamento o equilíbriode poder era um veículo de paz O sistema funcionou através da instrumentalização daquelas grandes potências em primeiro lugar a GrãBretanha que eram o centro da finança mundial e que pressionavam pelo estabelecimento de governos representativos em países menos desenvolvidos Isto era exigido como garantia das finanças e moedas de países devedores com a conseqüente necessidade de orçamentos controlados que somente organismos responsáveis podiam oferecer Como regra tais considerações não estavam conscientemente presentes na mente dos estadistas e isto ocorria apenas porque as exigências do padrãoouro eram consideradas axiomáticas O padrão mundial uniforme de instituições monetárias e representativas foi o resultado da rígida economia do período Dois princípios da vida internacional do século XIX conseguiram sua relevância a partir dessa situação soberania anarquista e intervenção justificada nos assuntos de outros países Embora aparentemente contraditórios os dois se interrelacionavam A soberania era um termo puramente político sem dúvida pois sob a circunstância de um comércio exterior nãoregulável e o padrãoouro os governos não possuíam qualquer poder em relação à economia internacional Eles não podiam nem iriam atrelar seus países em relação a assuntos monetários esta era a posição legal Na verdade só eram reconhecidos como estados soberanos aqueles países que possuíam um sistema monetário controlado por bancos centrais Nos poderosos países ocidentais essa soberania monetária nacional ilimitada e irrestrita se combinava com o seu oposto total uma pressão inflexível para ampliar a tessitura da economia de mercado e da sociedade de mercados a todos os lugares Em conseqüência no final do século XIX os povos do mundo estavam padronizados institucionalmente num grau jamais conhecido Esse sistema prejudicava a ambos em virtude da sua meticulosidade e sua universalidade A soberania anarquista era um empecilho a todas as formas efetivas de cooperação internacional como a história da Liga das Nações provou de forma marcante A uniformidade obrigatória 294 dos sistemas internos rondava como ameaça permanente obre a liberdade do desenvolvimento nacional principalmente nos países arrasados e às vezes até nos países desenvolvidos mas financeiramente fracos A cooperação econômica era limitada às instituições privadas tão caprichosas e inefetivas como o livre comércio enquanto a colaboração real entre os povos isto é entre governos não podia ser sequer visualizada A situação parecia fazer duas exigências à política externa aparentemente incompatíveis ela exigia uma cooperação mais estreita entre países amigos a um nível jamais imaginado na soberania do século XIX enquanto ao mesmo tempo a existência de mercados regulados fazia os governos nacionais mais zelosos da interferência externa do que antes Todavia com o desaparecimento do mecanismo automático do padrão ouro os governos acharam possível abandonar o aspecto mais importuno da soberania absoluta a recusa de colaborar na economia internacional Ao mesmo tempo seria possível tolerar de boa vontade que outras nações modelassem suas instituições internas de acordo com suas inclinações transcendendo assim o pernicioso dogma do século XIX da uniformidade necessária dos regimes internos dentro da órbita da economia mundial Já se pode ver assim a emergência de pedras fundamentais de um Novo Mundo a partir das ruínas do Velho colaboração econômica dos governos e a liberdade de organizar à vontade a vida nacional Sob o sistema restritivo do livre comércio não se poderia conceber qualquer dessas possibilidades excluindo assim uma variedade de métodos de cooperação entre nações Enquanto sob uma economia de mercado e do padrãoouro a idéia da federação era considerada um pesadelo de centralização e unidade o fim da economia de mercado pode muito bem significar uma cooperação efetiva com liberdade interna O problema da liberdade surge em dois níveis diferentes o institucional e o moral ou religioso No nível institucional é o caso de equilibrar o aumento e a diminuição das liberdades não se apresentam quaisquer questões radicalmente novas No nível mais fundamental a mera possibilidade de liberdade ainda é duvidosa Parece que os próprios meios de manter a liberdade adulteramna e a destroem A chave para o problema da liberdade em nossa era deve ser procurada nesse último plano As instituições são materializações do significado e do propósito humano Não podemos atingir a liberdade que procuramos a menos que compreendamos o verdadeiro significado da liberdade numa sociedade complexa 295 Em nível institucional a regulação tanto amplia como restringe a liberdade só é significativo o equilíbrio das liberdades perdidas e recuperadas Isto é verdade tanto em relação às liberdades jurídicas como às liberdades reais As classes abastadas gozam da liberdade que lhes oferece o ócio em segurança elas estão naturalmente menos propensas a ampliar a liberdade na sociedade do que aquelas que por falta de rendas têm que se contentar com um mínimo de liberdade Isto é perfeitamente visível quando surge uma cornpulsão no sentido de uma distribuição mais justa da renda do lazer e da segurança Embora as restrições se apliquem a todos os privilegiados tendem a ressentirse como se elas fossem dirigidas apenas contra eles Eles falam em escravidão quando de fato se pretende apenas distribuir entre outros a liberdade de que eles mesmos gozam É verdade que pode ocorrer inicialmente uma diminuição do seu lazer e da sua segurança e portanto da sua liberdade para que seja elevado o nível de liberdade para todos Todavia uma tal mudança a remodelação e a ampliação das liberdades não deve servir de motivo para que se afirme que a nova situação é necessariamente menos livre do que a anterior Existem porém certas liberdades cuja manutenção é de importância primordial Como a paz elas foram um subproduto da economia do século XIX e nos acostumamos a prezáIas por elas mesmas A separação institucional do político e do econômico que se revelou um perigo mortal para a substância da sociedade quase automaticamente produziu a liberdade à custa da justiça e da segurança As liberdades civis a empresa privada e o sistema salarial se mesclaram num padrão de vida que favoreceu a liberdade moral e a independência de pensamento Mais uma vez as liberdades jurídica e real se diluíram num fundo comum cujos elementos não podem ser devidamente separados Algumas foram o corolário de males como o desemprego e os lucros do especulador algumas pertenciam às tradições mais preciosas da Renascença e da Reforma Devemos tentar manter por todos os meios ao nosso alcance esses elevados valores herdados de uma economia de mercado em derrocada Esta é uma grande tarefa sem dúvida Nem a liberdade nem a paz puderam ser institucionalizadas sob aquela economia pois seu propósito era criar lucros e bemestar e não a paz e a liberdade Teremos que lutar por elas no futuro conscientemente se quisermos possuíIas elas devem tornarse os alvos escolhidos das sociedades em cuja direção caminhamos Este pode bem ser o propósito real do esforço mundial que se faz agora para garantir a paz e a liberdade Até onde poderá levar esse desejo de paz quando o interesse 296 nela decorrente da economia do século XIX deixar de existir dependerá do nosso sucesso em estabelecer uma ordem internacional Quanto à liberdade pessoal ela existirá na medida em que criarmos deliberadarnente salvaguardas para a sua manutenção e até para a sua ampliação uma sociedade estabeleci da o direito à nãoconformidade de e ser protegido institucionalmente O indivíduo deve ser livre para seguir a sua consciência sem recear os poderes incumbidos das tarefas administrativas em algumas áreas da vida social A ciência e as artes deverão permanecer sempre sob a guarda da república das letras A compulsão jamais será absoluta ao contestador deverá ser oferecido um refúgio no qual poderá se abrigar o direito de escolher um segundo melhor conforme lhe agrade Assim o direito à nãoconformidade como marco de uma sociedade livre ficará garantido Cada passo em direção à integração na sociedade será acompanhado portanto de um aumento de liberdade os passos em direção ao planejamento incluirão o fortalecimento dos direitos do indivíduo na sociedade Seus direitos inalienáveis serão validados pela lei até mesmo contra os poderes supremos sejam eles pessoais ou anônimos A verdadeira resposta à ameaça da burocracia como fonte de abuso do poder é criar esferas de liberdades arbitrárias protegidas por regras inquebrantáveis Por mais generosa que seja a prática da devolução do poder sempre haverá um fortalecimento do poder no centro e portanto ameaça à liberdade individual Isto é verdadeiro até mesmo em relação aos órgãos das próprias comunidades democráticas como os sindicatos profissionais e comerciais cuja função é proteger os direitos de cada membro individual A própria dimensão que eles atingem faz com que esse indivíduo se sinta desamparado mesmo que não tenha motivo para suspeitar de qualquer má vontade Isto ocorre ainda mais se suas opiniões ou ações forem de molde a ofender as suscetibilidades daqueles que mantêm o poder Nenhuma simples declaração de direitos é suficiente as instituições são necessárias para efetivar esses direitos O habeascorpus não precisa ser o último artifício constitucional através do qual a liberdade pessoal se apóia na lei É preciso acrescentar à Declaração dos Direitos Humanos direitos do cidadão até agora não reconhecidos Eles devem prevalecer contra todas as autoridades seja estatal municipal ou profissional A lista deve ser encabeçada pelo direito do indivíduo a um emprego sob condições aprovadas independente da sua opinião política ou religiosa de cor ou raça Isto implica garantias contra a vitimização por mais sutil que ela seja Os tribunais industriais têm sido reconhecidos na sua atuação de proteger membros 297 públicos individuais até mesmo contra as aglomerações de poder arbitrário como por exemplo as representadas pelas primeiras companhias ferroviárias Um outro exemplo de possível abuso de poder enfrentado diretamente pelos tribunais foi o Essential Works Order na Inglaterra ou o congelamento do trabalho nos Estados Unidos durante a emergência com suas oportunidades quase ilimitadas de discriminação Sempre que a opinião pública se manteve coesa na defesa das liberdades cívicas os tribunais ou cortes também foram capazes de reinvindicar a liberdade pessoal Ela deve ser mantida a todo custo mesmo à custa da eficiência na produção da economia de consumo ou da racionalidade na administração Uma sociedade industrial podese permitir ser livre O fim da economia de mercado pode se tornar o início de uma era de liberdade sem precedentes A liberdade jurídica e real pode se tornar mais ampla e mais geral do que em qualquer tempo a regulação e o controle podem atingir a liberdade mas para todos e não apenas para alguns Liberdade não como complemento do privilégio contaminada em sua fonte mas como um direito consagrado que se estende muito além dos estreitos limites da esfera política e atinge a organização íntima da própria sociedade Assim as antigas liberdades e direitos civis serão acrescentados ao fundo da nova liberdade gerada pelo lazer e pela segurança que a sociedade oferece a todos Uma tal sociedade podese permitir ser ao mesmo tempo justa e livre Entretanto encontramos o caminho bloqueado por um obstáculo moral O planejamento e o controle vêm sendo atacados como negação da liberdade A empresa livre e a propriedade privada são consideradas elementos essenciais à liberdade Não é digna de ser chamada livre qualquer sociedade construída sobre outros fundamentos A liberdade que a regulação cria é denunciada como nãoliberdade a justiça a liberdade e o bemestar que ela oferece são descritos como camuflagem da escravidão Foi em vão que os socialistas prometeram um reino de liberdade pois os meios determinam os fins a URSS que usou o planejamento a regulação e o controle como seus instrumentos ainda não pôs em prática as liberdades prometidas na sua constituição e provavelmente jamais o fará dizem os críticos Voltarse porém contra a regulação significa voltarse contra a reforma Para o liberal a idéia da liberdade degenera assim na simples defesa da livre empresa hoje reduzida a uma ficção pela dura realidade de trustes gigantescos e monopólios principescos Isto significa uma liberdade total para aqueles cuja renda lazer e segurança não precisam ser enfatizados e um 298 mínimo de liberdade para o povo que pode tentar em vão valerse dos seus direitos democráticos para se proteger do poder dos donos da propriedade E isto não é tudo Os liberais jamais conseguiram restabelecer de fato a livre empresa já destinada ao fracasso por razões intrínsecas Seus esforços apenas resultaram na instalação de grandes negócios em diversos países europeus e incidentalmente de vários tipos de fascismo como na Áustria O planejamento a regulação e o controle que eles queriam ver banidos como riscos à liberdade foram empregados pelos inimigos confessos da liberdade para abolila totalmente Entretanto a vitória do fascismo tornouse praticamente inevitável pela obstrução dos liberais a qualquer reforma que envolvesse o planejamento a regulação e o controle A total frustração da liberdade no fascismo é com efeito o resultado inevitável da filosofia liberal Esta alega que o poder e a compulsão são males que não devem existir na comunidade humana para que haja liberdade Ora tal coisa é impossível e se torna perfeitamente aparente numa sociedade complexa Não resta portanto qualquer alternativa a não ser permanecer fiel a uma idéia ilusória de liberdade e negar a realidade da sociedade ou aceitar essa realidade e rejeitar a idéia da liberdade A primeira é a conclusão do liberal a última do fascista Nenhuma outra parece possível Chegamos assim à conclusão inexorável de que está em questão a própria possibilidade de liberdade Se a regulação é o único meio de difundir e fortalecer a liberdade numa sociedade complexa e no entanto utilizar esse meio é se opor à liberdade per se então uma tal sociedade não pode ser livre É claro que na raiz do dilema está o próprio significado da liberdade A economia liberal encaminhou os nossos ideais numa falsa direção embora parecesse próxima a atingir expectativas intrinsecamente utópicas Não existe uma sociedade sem o poder e a compulsão nem um mundo em que a força não tenha qualquer função Era uma ilusão admitir uma sociedade que fosse modelada apenas pelo desejo e a vontade do homem Ela foi porém a resultante de uma visão de mercado da sociedade que igualava a economia a relações contratuais e as relações contratuais com a liberdade Essa ilusão radical sustentava que na sociedade humana não existe nada que não se origine da vontade dos indivíduos e que não possa portanto ser removida também pela vontade deles A visão era limitada pelo mercado este fragmentava a vida no setor dos produtores que terminava quando seu produto chegava ao mercado e no setor do consumidor para quem todos os bens 299 surgiam do mercado Um tinha a sua renda provida livremente pelo mercado o outro gastavaa livremente nesse mercado A sociedade como um todo permanecia invisível O poder do estado não era levado em conta pois quanto menor ele fosse mais facilmente funcionaria o mecanismo de mercado Nem os eleitores nem os proprietários nem os produtores nem os consumidores podiam ser responsabilizados por essas brutais restrições à liberdade que resultaram na ocorrência do desemprego e da destituição Qualquer indivíduo decente podia se considerar isento de qualquer responsabilidade por atos de compulsão por parte de um estado que ele pessoalmente rejeitava ou pelo sofrimento econômico inflingido à sociedade e que não o beneficiava pessoalmente Ele pagava as suas contas não devia a ninguém e não se envolvia nos males do poder e do valor econômico Ele se sentia tão isento dessa responsabilidade que negava a sua realidade em nome da própria liberdade Mas o poder e o valor econômico são um paradigma da realidade social Eles não surgem da vontade humana é impossível a nãocooperação em relação a eles A função do poder é assegurar aquela medida de conformidade necessária à sobrevivência do grupo sua fonte última é a opinião e quem não teria algumas opiniões a oferecer O valor econômico garante a utilidade dos bens produzidos ele deve ser anterior à decisão de produzilos ele é um selo aposto à divisão do trabalho Sua fonte são os desejos humanos e a escassez e como se pode esperar que não desejemos uma coisa mais do que outra Qualquer opinião ou desejo farnosá participantes na criação do poder e na constituição do valor econômico Não é concebível uma liberdade que atue de outra maneira Chegamos ao estágio final da nossa argumentação O abandono da utopia do mercado colocanos face a face com a realidade da sociedade Ela é a linha divisória entre o liberalismo de um lado o fascismo e o socialismo de outro A diferença entre esses dois não é basicamente econômica é moral e religiosa Mesmo quando professam economias idênticas eles não são apenas diferentes mas são também manifestações de princípios opostos E a liberdade é mais uma vez o ponto extremo no qual eles se separam A realidade da sociedade é aceita tanto por fascistas como por socialistas com a mesma finalidade com que o conhecimento da morte moldou a consciência humana O poder e a compulsão fazem parte dessa realidade e não seria válido qualquer ideal que os banisse da sociedade Se a idéia da liberdade pode ser mantida ou não em face desse conhecimento é 300 o tema sobre o qual eles divergem É a liberdade uma palavra vazia uma tentação destinada a arruinar o homem e suas obras ou o homem pode reafirmar a sua liberdade em face desse conhecimento e lutar para que a sociedade a atinja sem cair num ilusionismo moral Esta questão aflitiva resume a condição do homem O espírito e o conteúdo deste estudo devem indicar uma resposta Invocamo aqueles que acreditávamos ser os três fatos constitutivos da con ciência do homem ocidental o conhecimento da morte o conhecimento da liberdade o conhecimento da sociedade O primeiro segundo a lenda judaica foi revelado pela história do Velho Testamento O segundo se revelou com a descoberta da singularidade da pessoa nos ensinamentos de Jesus conforme registrados no Novo Testamento A terceira revelação chegounos com a vivência numa sociedade industrial Não existe nenhum grande nome ligado a ela talvez Robert Owen seja o que mais se aproxima de ser seu portavoz Ele é o elemento constitutivo da consciência do homem moderno A resposta fascista ao reconhecimento da realidade da sociedade é a rejeição do postulado de liberdade A descoberta cristã da singularidade do indivíduo e unicidade da humanidade é negada pelo fascismo Aqui está a raiz da sua inclinação degenerativa Robert Owen foi o primeiro a reconhecer que os Evangelhos ignoravam a realidade da sociedade Ele chamava a isto a individualização do homem por parte do Cristianismo e parecia acreditar que tudo aquilo que é realmente valioso no Cristianismo só seria incorporado ao homem numa comunidade cooperativa Owen reconhecia que a liberdade adquirida através dos ensinamentos de Jesus não se aplicava a uma sociedade complexa Seu socialismo sustentava a exigência de liberdade do homem numa sociedade como essa A era póscristã da civilização ocidental havia começado e os Evangelhos não eram mais suficientes embora continuassem a ser a base da nossa civilização A descoberta da sociedade é portanto o final ou o renascimento da liberdade Enquanto o fascista se resigna a abandonar a liberdade e glorifica o poder que é a liberdade da sociedade o socialista se resigna a essa realidade e mantém a exigência da liberdade a despeito dessa realidade O homem amadurece e é capaz de existir como ser humano numa sociedade complexa Para citar mais uma vez as inspiradas palavras de Robert Owen Se quaisquer causas do mal são irremovíveis pelos novos poderes que os homens estão a ponto de adquirir eles saberão que esses males são necessários e inevitáveis e deixarão de fazer reclamações infantis e desnecessárias 301 A resignação sempre foi a fonte da força do homem e de suas esperanças renovadas O homem aceitou a realidade da morte e construiu o sentido da sua vida física baseandose nela Ele se resignou à realidade de possuir uma alma que podia perder e que havia coisas piores que a morte Sobre isto fundamentou a sua liberdade Em nossa época ele se resigna à realidade da sociedade que significa o fim dessa liberdade Mais uma vez a vida ressurge da resignação final A aceitação sem queixas da realidade da sociedade dá ao homem uma coragem indómita e forças para afastar todas as injustiças e a falta de liberdade que podem ser eliminadas Enquanto ele se conservar fiel à sua tarefa de criar uma liberdade mais ampla para todos ele não precisa temer que o poder ou o planejamento se voltem contra ele e que destruam através da sua instrumentalidade a liberdade que ele está construindo Este é o significado da liberdade numa sociedade complexa e ele nos dá toda a certeza de que precisamos 302 APÊNDICE NOTAS SOBRE AS FONTES Ao capítulo 1 1 O equilíbriodepoder como política lei histórica princípio e sistema 1 Política de equilíbriodepoder A política de equilíbriodepoder é uma instituição nacional inglesa Ela é puramente pragmática e factual e não deve ser confundida com o princípio do equilíbrio depoder ou com o sistema de equilíbriodepoder Essa política foi o resultado da sua posição de ilha fora de um litoral continental ocupado por comunidades politicamente organizadas Sua ascendente escola de diplomacia de Wolseya Cecil perseguia o EquilíbriodePoder como a única possibilidade de segurança da Inglaterra em face dos grandes estados continentais que se formavam diz Trevelyan Essa política foi estabeleci da definitivamente sob os Tudors e foi praticada por Sir William Temple por Canning Palmerston ou Sir Edward Grey Ela antecipou em quase dois séculos a emergência de um sistema de equilíbriodepoder no continente e seu desenvolvimento foi totalmente independente das fontes continentais da doutrina do equilíbriodepoder como princípio conforme apresentada por Fénélon ou Vatte Entretanto a política nacional da Inglaterra foi bastante apoiada pelo crescimento desse sistema pois lhe facilitou a organização de alianças contra qualquer poder dominante no continente Em conseqüência os estadistas britânicos tendiam a patrocinar a idéia de que a política de equilíbriodepoder da Inglaterra era na verdade uma expressão do princípio de equilíbriodepoder e que seguindo tal política a Inglaterra estava apenas desempenhando seu papel num sistema com base nesse princípio Todavia a diferença entre a sua própria política de autodefesa e qualquer princípio que ajudasse a sua implementação não foi propositadamente obscurecida por seus estadistas Sir Edward Grey escreveu o seguinte em seu Twentyfive Years Em teoria a GrãBretanha não se opunha à predominância de um grupo forte na Europa desde que ele representasse a estabilidade e a paz É uma escolha voluntária apoiar tal combinação Quando o poder dominante se torna agressivo porém e ela sente seus interesses ameaçados 303 é que por instinto de autodefesa ou então por uma política deliberada ela se dirige para algo que pode ser descrito como um EquilíbriodePoder Assim foi pelos seus legítimos interesses que a Inglaterra apoiou o crescimento de um sistema de equilíbriodepoder no continente e manteve os seus princípios Fazê Io era parte da sua política A confusão provocada por esse ajuste de duas referências essencialmente diferentes do equilíbriodepoder é indicada por estas citações Fox em 1787 perguntou ao governo com indignação se a Inglaterra não estava mais em posição de manter o equilíbriodepoder na Europa e ser vista como a protetora das suas liberdades Ele reclamava como direito da Inglaterra ser aceita como avalista do sistema de equilíbriodepoder na Europa Quatro anos mais tarde Burke descrevia esse sistema como a lei pública da Europa supostamente vigente durante dois séculos Tais identificações retóricas da política nacional da Inglaterra com o sistema europeu de equilíbriodepoder tornaram mais difícil para os norteamericanos distinguir entre duas concepções igualmente odiosas a eles 2 Equilíbriodepoder como lei histórica Um outro significado do equilíbriode poder se baseia diretamente na natureza das unidades de poder Ele foi introduzido por Hume pela primeira vez no pensamento moderno Seu alcance se perdeu novamente durante o eclipse quase total do pensamento político que se seguiu à Revolução Industrial Hume reconheceu a natureza política do fenômeno e ressaltou a sua independência dos fatos psicológicos e morais Ele atuava independentemente das motivações dos atores enquanto estes se comportassem como manifestações de poder A experiência demonstrou escreveu Hume que qualquer que fosse a sua motivação a emulação ciumenta ou a política cautelosa os efeitos eram semelhantes F Schuman diz Se se postula um Sistema Estatal composto de três unidades A B e C é óbvio que qualquer aumento no poder de um deles envolve um decréscimo no poder dos outros dois Ele infere que o equilíbriodepoder em sua forma elementar se destina a manter a independência de cada unidade do Sistema Estatal Ele poderia ter generalizado o postulado de forma a tornálo aplicável a todos os tipos de unidades de poder seja em sistemas políticos organizados ou não Com efeito esta é a forma como o equilíbriode poder aparece na sociologia da história Toynbee em seu Study of History menciona o fato de que as unidades de poder estão aptas a se expandir na periferia dos grupos de poder ao invés de no centro onde a pressão é maior Os Estados Unidos a Rússia e o Japão assim como os Domínios Britânicos se expandiram prodigiosamente numa época em que era praticamente impossível atingir mesmo as menores mudanças territoriais na Europa Ocidental e Central Uma lei histórica de tipo similar é mencionada ainda por Pirenne Ele observa que em comunidades comparativamente desorganizadas formase habitualmente um núcleo de resistência à pressão externa nas regiões mais afastadas do vizinho poderoso São exemplos a formação do reinado franco por Pipin de Heristal no distante norte ou a emergência da Prússia Oriental como centro organizador dos germânicos Outro exemplo desse tipo pode ser visto na lei belga de De Greef do estadotampão que parece ter influenciado a escola de Frederick Turner e levou ao conceito do oeste americano como uma Bélgica errante Estes conceitos de equilíbrio e desequilíbriodepoder são independentes de noções morais legais ou psicológicas Sua única referência é quanto ao poder e isto revela a sua natureza política 3 Equilíbriodepoder como princípio e sistema Quando um interesse hwnano é reconhecido como legítimo dele se origina um princípio de conduta Desde 164 foi 304 reconhecido o interesse dos estados europeus no status quo conforme estabelecido pelos Trajados de Münster e Westphalia e reconhecida a solidariedade dos signatários nesse sehrido O Tratado de 1648 foi assinado por praticamente todas as potências européias elas se declararam os seus avalistas Os Países Baixos e a Suíça assumem a sua posição internacional como estados soberanos a partir desse tratado Desde então os estados podiam considerar qualquer mudança maior no status quo como de interesse para rodos os demais Esta é a forma rudimentar do equilíbriodepoder como um princípio da família de nações Baseado nesse princípio não se podia considerar hostil o comportamento de qualquer estado para com uma potência suspeita correta ou erroneamente da intenção de modificar o status quo Um tal estado de coisas decerto facilitaria enormemente a formação de coalizões em oposição a tal mudança Entretanto somente após setenta e cinco anos é que o princípio foi expressamente reconhecido no Tratado de Utrecht quando ad conseruandum in Europa equilibrium os domínios espanhóis foram divididos entre os Bourbons e os Habsburgs Com esse reconhecimento formal do princípio a Europa se organizou gradualmente num sistema baseado nesse princípio Como a absorção ou dominação das pequenas potências pelas potências maiores afetaria o equilíbriodepoder a independência das pequenas potências era indiretamente resguardada pelo sistema Embora fosse difusa a organização da Europa após 1648 e mesmo após 1713 a manutenção de todos os estados grandes e pequenos por um período de cerca de duzentos anos deve ser creditada ao sistema de equilíbriodepoder Guerras inumeráveis foram travadas em seu nome e embora elas possam ser vistas sem exceção como inspiradas por considerações de poder o resultado era quase sempre como se os países agissem segundo o princípio da garantia coletiva contra atos de agressão nãoprovocados Não existe outra explicação para a sobrevivência continuada de entidades políticas inexpressivas como a Dinamarca a Holanda a Bélgica e a Suíça a despeito das grandes forças que ameaçavam as suas fronteiras Logicamente a distinção entre um princípio e uma organização nele baseado ie um sistema parece definida Entretanto não devemos subestimar a efetividade dos princípios mesmo em sua condição suborganizada isto é quando não alcançaram ainda o estágio institucional mas fornecem apenas uma diretiva a hábitos ou costumes convencionais Mesmo sem um centro estabelecido encontros regulares funcionários comuns ou um código de comportamento compulsório a Europa se transformara num sistema simplesmente através do contato estreito e contínuo entre as várias chancelarias e membros dos corpos diplomáticos A tradição estrita que regulava as investigações as dérnarches os aidemémoirs entregues em conjunto ou separado em termos idênticos ou não idênticos eram tantos outros meios de expressar as situações de poder sem leváIas a uma decisão enquanto abriam novos caminhos para o compromisso ou eventualmente para a ação conjunta no caso de falharem as negociações Na verdade o direito de uma intervenção conjunta nos negócios dos pequenos estados se ameaçados os interesses legítimos das potências correspondia à existência de um diretório europeu numa forma suborganizada O pilar mais forte desse sistema formal era a quantidade imensa de negócios privados internacionais freqüentemente transacionados em termos de uma espécie de tratado comercial ou outro instrumento internacional tornado efetivo pelo costume e pela tradição Os governos e seus cidadãos mais influentes se enredavam nas formas mais diversas nas dificuldades financeiras econômicas e jurídicas dos tipos mais variados de tais transações internacionais Uma guerra local significava apenas uma breve interrupção dessas transações enquanto os interesses investidos em outras não afeta das 305 permanente ou temporariamente constituíam um peso maior se comparadas àquelas solucionadas com desvantagem para o inimigo através da guerra Essa pressão silenciosa do interesse privado que permeava toda a vida das comunidades civilizadas e transcendia as fronteiras nacionais era o baluarte invisível da reciprocidade internacional e concedia ao princípio de equilíbriodepoder o direito de sanções efetivas mesmo quando ele não assumira ainda a forma organizada de um Concerto da Europa ou de uma Liga das Nações EQUILÍBRIODEPODER COMO LEI HISTÓRICA Hume D On the Balance of Power Works voI III 1854 p 364 Schuman F International Politics 1933 p 55 Toynbee A J Study of History voI I1I p302 Pirenne H Outline of the History of Europe from the Fali of the Roman Empire to 1600 IngI 1939 BarnesBeckerBecker sobre De Greef voI lI p 871 Hofrnann A Das deutsche Land and die deutsche Geschichte 1920 Também a Geopolitical School de Haushofer No outro extremo Power de B Russel Psychopathology and Politics de Lasswell World Politics and Personal Insecurity e outras obras CL também Social and Economic History of the Hellenistic World de Rostovtzeff capo 4 parte I EQUJLÍBRIODEPODER COMO PRINCÍPIO E SISTEMA Mayer P Political Thought 1939 p 464 Vattel Le droit des gens 1758 Hershey A S Essentials of International Public Law and Organization 1927 pp 567 69 Oppenheim L International Law Heatley D P Diplomacy and the Study of International Relations 1919 A PAZ DOS CEM ANOS Leathes Modem Europe Cambridge Modern History voI XII capo 1 Toynbee A J Study of History voI IV C pp 14253 Schuman F International Politics liv I capo 2 Clapharn J H Economic Deuelopment of France and Germany 18151914 p 3 Robbins L The Great Depression 1934 p 1 Lipmann W The Good Society Cunningham W Growth of English Industry and Commerce in Modern Times L C A Industrial and Commercial Revolutions in Great Britain during the 19th Century 1927 Carr E H The 20 Years Crisis 19191939 1940 Crossman R H S Government and the Governed 1939 p 225 Hawtrey R G The Economic Problern 1925 p 265 FERROVIA DE BAGDÁ Visão do conflito como solucionado pelo acordo anglogerrnânico de 15 de junho de 1914 Buell R L International Refations 1929 Hawtrey R G The Economic Problem 1925 Mowat R B The Concert of Europe 1930 p 313 Stolper G This Age of Fable 1942 Visão oposta Fay S B Origins of the World War p 312 Feis H Europe The Worlds Banker 18701914 1930 pp 335 e segs CONCERTO DA EUROPA Langer W L European Alliances and Alignments 18711890 1931 Sontag R European Diplomatic History 18711932 1933 Onken H The German Empire Cambridge Modern History voI XII Mayer J P Political Thought 1939 p 464 Mowat R B The Concert of Europe 1930 p 23 Phillips W A The Confederation of Europe 1914 2 ed 1920 Lasswell H D Politics p 53 Muir 306 R Nationaism and Internationalism 1917 p 176 Buell R L Internationa Relation 1929 p 512 Ao capítulo 1 2 Cem anos de paz 1 Os fatos As grandes potências da Europa estiveram em guerra umas com as outras durante o século 1815 a 1914 mas somente durante três curtos períodos durante seis meses em 1859 seis semanas em 1866 e nove meses em 18701871 A Guerra da Criméia que durou exatamente dois anos teve um caráter periférico e semicolonial como concordam os historiadores inclusive Clapham Trevelyan Toynbee e Binkley A propósito as ações russas em poder de investidores britânicos continuaram a ser negociadas em Londres durante aquela guerra A diferença básica entre o século XIX e os anteriores é justamente a que existe entre guerras generalizadas ocasionais e a ausência completa de guerras generalizadas Parece irrelevante assim a afirmativa do MajorGeneral Fuller de que não se passara sequer um ano livre de guerras no século XIX A comparação feita por Quincy Wright do número de anos de guerra nos vários séculos independente da diferença entre guerras generalizadas e locais parece ignorar este ponto significativo 2 O problema A cessação das guerras comerciais quase constantes entre a Inglaterra e a França uma fértil fonte de guerras generalizadas está precisando de uma explicação básica Ela se liga a dois fatos na esfera da política econômica a o fim do velho império colonial e b a era do livre comércio que se transformou na do padrão ouro internacional Enquanto decaía rapidamente o interesse nas guerras com as novas formas de comércio emergia um novo e positivo interesse na paz em conseqüência da nova moeda internacional e da estrutura de crédito associada ao padrãoouro O interesse de todas as economias nacionais se fixava agora na manutenção de moedas estáveis e no funcionamento de mercados mundiais dos quais dependiam as rendas e o emprego O expansionismo tradicional foi substituído por uma tendência antiimperialista quase geral das grandes potências até 1880 Tratamos disto no capítulo dezoito Parece ter ocorrido porém um hiato de mais de meio século 18151880 entre o período das guerras comerciais quando se pressupunha naturalmente que a política externa se preocupava com o incremento dos negócios lucrativos e o período seguinte no qual os interesses dos acionistas estrangeiros e dos investidores diretos eram vistos como preocupação legítima das secretarias do exterior Durante esse meio século é que se estabeleceu a doutrina de excluir a influência dos interesses comerciais privados na conduta dos assuntos externos Somente no final desse período é que as chancelarias passaram a admitir novamente essas reivindicações assim mesmo com rígidas restrições em deferência à nova tendência da opinião pública Imaginamos que essa mudança possa ser imputada ao caráter do comércio que sob as condições vigentes no século XIX já não dependia mais tão diretamente do poder político para atingir seu objetivo e seu sucesso O retorno gradual da influência dos negócios na política externa se deveu ao fato de a moeda internacional e o sistema de crédito terem criado um novo tipo de interesses nos negócios que já transcendia as fronteiras nacionais Todavia enquanto esse interesse 307 era apenas o dos acionistas estrangeiros os governos se mostravam extremamente relutantes em lhes conceder voz Durante muito tempo os empréstimos externos foram considerados puramente especulativos no sentido mais estrito do termo as rendas eram regularmente investidas em títulos do governo interno Nenhum governo julgava conveniente apoiar os seus nacionais engajados na tarefa muito arriscada de emprestar dinheiro a governos ultramarinos de reputação duvidosa Canning rejeitou peremptoriamente a insistência dos investidores que contavam com o interesse do governo britânico nos seus prejuízos no exterior e se recusou categoricamente a condicionar o reconhecimento das repúblicas latinoamericanas ao fato delas aceitarem as suas dívidas externas A famosa circular de Palmerston de 1848 é o primeiro indício de uma mudança nessa atitude mas essa mudança não chegou muito longe Os interesses de negócios da comunidade comercial eram de caráter tão amplo que o governo não podia permitir que interesses investidos de pequena monta complicassem a administração dos assuntos de um império mundial A retomada de interesse da política externa nos empreendimentos de negócios no exterior resultou principalmente do fim do livre comércio e do conseqüente retorno aos métodos do século XVIII Como o comércio tinha agora uma ligação estreita com os investidores externos já não mais de caráter especulativo mas inteiramente normal a política externa reverteu às suas linhas tradicionais de se colocar a serviço dos interessses comerciais da comunidade Não é este último fato que precisava de explicação mas justamente a falta desse interesse durante o hiato Ao capítulo 2 3 Partese o fio dourado A queda do padrãoouro foi precipitada pela estabilização forçada das moedas Genebra foi a pontadelança do movimento de estabilização ao transmitir aos estados financeiramente fracos as pressões exercidas pela City de Londres e pela Wall Street O primeiro grupo de estados a se estabilizar foi o dos países derrotados cujas moedas entraram em colapso após a Primeira Guerra Mundial O segundo grupo consistiu nos estados europeus vitoriosos que só estabilizaram suas próprias moedas depois do primeiro grupo O terceiro grupo foi o principal beneficiário do interesse no padrãoouro os Estados Unidos 308 O desequilíbrio do primeiro grupo foi sustentado pelo segundo durante algum tempo Logo que esse segundo grupo também estabilizou sua moeda foi sua vez de precisar de apoio e este foi suprido pelo terceiro Em última instância foi esse terceiro grupo o dos Estados Unidos o mais atingido pelo desequilíbrio cumulativo da estabilização européia Ao capitulo 2 4 Os balanços do pêndulo após a Primeira Guerra Mundial O balanço do pêndulo após a Primeira Guerra Mundial foi generalizado e rápido mas sua amplirude foi pequena a grande maioria dos países da Europa Central e Oriental o período 19181923 apenas resultou numa restauração conservadora em seguida a uma república democrática ou socialista a conseqüência da derrota Alguns anos mais tarde foram estabelecidos governos unipartidários de modo quase universal e novamente o movimento foi bastante generalizado Ao Capítulo 2 5 Finanças e paz Existe muito pouco material disponível em relação ao papel político da finança internacional no último meio século O livro de Corti sobre os Rothschilds cobre apenas o 309 período anterior ao Concerto da Europa Nele não estão incluídas a sua participação nas ações relativas a Suez a oferta dos Bleichroeders de financiar a indenização da Guerra Francesa de 1871 através da emissão de um empréstimo internacional as grandes transações ocorridas no período da Ferrovia Oriental Obras históricas como as de Langer e Sonrag dedicam pouca atenção à finança internacional o último omite a finança na sua enumeração dos fatores de paz As observações de Leathes na Cambridge Modern History constituem quase uma exceção A crítica liberal independente ora se propunha mostrar a falta de patriotismo dos financistas ora a sua propensão de apoiar as tendências protecionistas e imperialistas em detrimento do comércio livre como no caso de escritores tais como Lysis na França ou J A Hobson na Inglaterra As obras marxistas como os estudos de Hilferding ou Lenin enfatizavam as forças imperialistas que emanavam dos bancos nacionais e sua ligação orgânica com as indústrias pesadas Esse argumento além de se restringir principalmente à Alemanha deixou necessariamente de abordar os interesses bancários internacionais A influência de Wall Street no desenvolvimento da década de 1920 ainda é muito recente para um estudo objetivo Parece não haver dúvida porém de que no seu todo sua influência pesou na balança no lado da moderação e mediação internacional desde a época dos tratados de paz até o Plano Dawes o Plano Young e a liquidação das reparações em e depois de Lausanne A literatura recente tende a isolar o problema dos investimentos privados como na obra de Staley que exclui expressamente os empréstimos aos governos quer feitos por outros governos quer por investidores privados uma restrição que praticamente exclui do seu interessante estudo qualquer avaliação mais ampla da finança internacional O excelente relato de Feis do qual nos valemos profusamente cobre mais aproximadamente o assunto como um todo mas sofre a falta de material autêntico já que os arquivos da haute finance não são acessíveis A obra valiosa de Earle Remer e Viner também está sujeita à mesma inevitável limitação Ao capítulo 4 6 Referências selecionadas a sociedades e sistemas econômicos O século XIX tentou estabelecer um sistema econômico autoregulável com a motivação do ganho individual Constatamos que tal empreendimento era impossível pela própria natureza das coisas Preocupamonos aqui apenas com a visão distorcida da vida e da sociedade implícita numa abordagem como essa Os pensadores do século XIX presumiam por exemplo que era natural comportarse como um comerciante no mercado e qualquer outro tipo de comportamento seria um comportamento econômico artificial o resultado de uma interferência nos instintos humanos que os mercados surgiriam espontaneamente se se deixassem os homens por sua conta que qualquer que fosse a desejabilidade de uma tal sociedade em termos morais pelo menos a sua praticabilidade se fundamentava nas características imutáveis da raça e assim por diante O oposto dessas afirmativas está praticamente implícito no testemunho da pesquisa moderna em várias áreas da ciência social como a antropologia social a economia primitiva a história das primeiras civilizações e a história econômica geral De fato não existe qualquer pressuposto antropológico ou sociológico 310 explícito ou implícito contido na filosofia do liberalismo econômico que não tenha sido refutado Seguemse algumas citações a A motivação do ganho não é natural no homem O aspecto característico da economia primitiva é a ausência de qualquer desejo e obter lucros com a produção ou a troca Thurnwald Economics in Primitiue Communities 1932 p xiii Uma outra noção que deve ser abolida de alguns textos didáticos atuais de economia uma vez por todas é a do Homem Econômico Primitivo Malinowski Argonauts of the Westem Pacific 1930 p 60 Temos que rejeitar os Idealtypen do liberalismo de Manchester que não são apenas equivocados teótica mas historicamente Brinkmann Das soziale System des Kapitalismus em Grundriss der Sozialôkonomik vol IV p 11 b Contar com o pagamento do trabalho não é natural no homem O ganho que é muitas vezes o estímulo para o trabalho nas comunidades mais civilizadas jamais atua como impulso para o trabalho sob as condições nativas originais Malinowski op cit p156 Não encontramos o trabalho associado à idéia do pagamento em qualquer local de uma sociedade primitiva nãoinfluenciada Lowie Social Organization Encyclopedia of the Social Sciences vol XIV p 14 Em nenhum lugar o trabalho é alugado ou vendido Thurnwald Die menschliche Geseltschaft liv III 1932 p169 O tratamento do trabalho como uma obrigação que não exige compensação é geral Firth Primitive Economics of the New Zealand Maori 1929 Mesmo na Idade Média não se ouvia falar em pagamento pelo trabalho dos estranhos O estranho não tem qualquer laço de dever pessoal e portanto ele deve trabalhar pela honra e pelo reconhecimento Os menestréis embora fossem estranhos aceitavam pagamento e eram desprezados por isto Lowie op cit c Restringir o trabalho ao mínimo inevitável não é natural no homem Não podemos deixar de observar que o trabalho jamais se limita ao rrúnirno indispensável mas excede a quantidade absolutamente necessária em virtude de uma necessidade funcional de atividade natural ou adquirida Thurnwald Economics p 209 O trabalho é sempre feito além do estritamente necessário Thurnwald Die menschliche Geseltschaft p 163 d Os incentivos habituais do trabalho não são o ganho mas a reciprocidade a competição o prazer do trabalho e a aprovação social Reciprocidade A maioria senão todos os atos econômicos pertencem a alguma cadeia de presentes e contrapresentes recíprocos que a longo prazo chegam a um equilíbrio e beneficiam igualmente ambos os lados O homem que desobedecesse persistentemente às regras da lei nas suas transações econômicas logo se veria à margem da ordem social e econômica e ele está perfeitamente consciente disso Malinowski Crime and Custom in Savage Society 1926 pp 4041 Competição A competição é acirrada a execução embora uniforme no seu objetivo é variada por excelência Uma disputa na excelência da reprodução dos padrões Goldenweiser Loose Ends of Theory on the Individual Pattem and Involution in Primitive Society em Essays in Anthropology 1936 p 99 Os homens se rivalizam 311 uns com os outros na velocidade na eficiência e nos pesos que podem levantar quando trazem grandes estacas para o jardim ou quando transportam os inhames colhidos Malinowski Argonauts p 61 Prazer do trabalho O trabalho por ele mesmo é uma característica constante da indústria Maori Firth Some Features of Primitive Industry E vol I p 17 Dedica se muito tempo e trabalho para fins estáticos para arrumar limpar e retirar todo o entulho dos jardins para construir cercas refinadas e sólidas para conseguir estacas de inhame grandes e fortes É claro que todas essas coisas são importantes para o crescimento da planta mas não há dúvida também de que os nativos levam sua escrupulosidade além dos limites do puramente necessário Malinowski op cit p 59 Aprovação social A perfeição na jardinagem é o índice geral do valor social da pessoa Malinowski Coral Gardens and Their Magic vol II 1935 p124 Esperase que cada pessoa da comunidade mostre uma medida normal de aplicação Firth Primitive Polynesian onomy 1939 p161 Os ilhéus Andaman vêem a preguiça como um comportamento antisocial RatcliffeBrown The Andaman Islanders Colocar o trabalho de alguém sob o comando de outro é um serviço social e não apenas um serviço econômico Firth op cit p 303 e O homem sempre o mesmo em todas as épocas Linton em seu Study of Man aconselha cautela contra as teorias psicológicas da determinação da personalidade e afirma que as observações gerais levam à conclusão de que o gama total desses tipos é bastante semelhante em todas as sociedades Em outras palavras logo que ele o observador penetra o crivo da diferença cultural ele descobre que esses povos são basicamente iguais a nós p 484 Thurnwald enfatiza a similaridade dos homens em todos os estágios do seu desenvolvimento A economia primitiva conforme estudada nas páginas precedentes não se distingue de qualquer outra forma de economia no que concerne às relações humanas e se firma nos mesmos princípios gerais da vida social Economics p 288 Algumas emoções coletivas de natureza elementar são essencialmente as mesmas em todos os seres humanos e respondem pela recorrência de configurações semelhantes em sua existência social Sozialpsychische Ablãufe irn Võlkerleben em Essays in Anthropology p 383 O livro de Ruth Benedict Patterns o Culture se baseia em última instância num pressuposto similar Falei como se o temperamento humano fosse bastante constante no mundo como se em cada sociedade existisse um potencial disponível para uma distribuição praticamente igual e como se a cultura selecionada a partir daí segundo seus padrões tradicionais houvesse moldado a vasta maioria dos indivíduos numa só harmonia A experiência do transe por exemplo de acordo com esta interpretação é uma potencialidade de certo número de indivíduos em qualquer população Quando se lhe atribuem honrarias e recompensas uma proporção considerável alcançáloá ou estimuláloá p 233 Malinowski assumiu conseqüentemente posição semelhante em suas obras f Os sistemas econômicos em regra estão inseridos nas relações sociais a distribuição dos bens materiais é assegurada por motivos nãoeconômicos A economia primitiva é um assunto social que lida com uma série de pessoas como partes de um todo entrelaçado Thurnwald Economics p xii Isto é igualmente 312 verdadeiro no que se refere à riqueza ao trabalho e à permuta A riqueza primitiva não é de natureza econômica mas social ibid A mãodeobra é capaz de um trabalho efetivo porque ela está integrada pelas forças sociais num esforço organizado Malinowski Argonauts p 157 A permuta de bens e serviços é levada a efeito dentro de uma parceria constante ou associada a laços sociais definidos ou ligada a uma mumalidade em assuntos nãoeconômicos Malinowski Crime and Custom p 39 Os dois princípios mais importantes que governam o comportamento econômico parecem ser a reciprocidade e a acumulaçãocomredistribuição Toda a vida tribal é permeada por um constante dar e tomar Malinowski Argonauts p 167 A dádiva de hoje será recompensada pela retomada de amanhã Esta é a conseqüência do princípio da reciprocidade que permeia todas as relações da vida primitiva Thurnwald Economics p 106 A fim de tomar possível tal reciprocidade em todas as sociedades selvagens será encontrada uma certa dualidade de instituições ou simetria de estrutura como base indispensável de obrigações recíprocas Malinowski Crime and Custom p 25 Entre os Banaros a partilha simétrica das suas câmaras de espíritos se baseia na estrutura da sua sociedade que é igualmente simétrica Thurnwald Die Gemeinde der Bánaro 1921 p 378 Thurnwald descobriu que além desse comportamento recíproco e às vezes combinado com ele a prática da acumulação e da redistribuição era a aplicação mais generalizada desde a tribo caçadora primitiva até os maiores impérios Os bens eram coletados de forma centralizada e depois distribuídos entre os membros da comunidade numa grande variedade de formas Entre os povos micronésios e polinésios por exemplo os reis como representantes do primeiro clã recebiam o imposto e redistribuíamno mais tarde sob a forma de dádiva entre a população Thurnwald Economics p xii Esta função distributiva é a fonte primordial do poder político dos órgãos centrais ibid p 107 g A coleta individual de alimentos para uso da própria pessoa e da família não é parte da vida do homem primitivo Os clássicos pressupunham que o homem préeconômico tinha que tomar conta de si mesmo e da sua família Esse pressuposto foi revivido por Carl Buecher em sua obra pioneira na virada do século e adquiriu grande notoriedade A pesquisa recente porém unanimemente corrigiu Buecher neste ponto Firth Primitive Economics of the New Zealand Maori pp 12 206350 Thurnwald Economics pp 170 268 e Die menschliche Geselschaft vol li p 146 Herskovits The Economic Life of Primitive Peoples 1940 p 34 Malinowski Argonauts p 167 pédepágina h A reciprocidade e a redistribuição são princípios de comportamento econômico que se aplicam não apenas a pequenas comunidades primitivas mas também a grandes e poderosos impérios A distribuição tem a sua própria história particular a começar da vida mais primitiva das tribos caçadoras O caso é diferente nas sociedades que têm uma estratificação mais recente e mais pronunciada O exemplo mais impressionante é oferecido pelo contato dos pastores com os povos agrícolas As condições nessas sociedades diferem consideravelmente mas a função distributiva aumenta com o crescente poder político de algumas famílias e a ascensão de déspotas O chefe recebe os presentes do camponês que 313 se tomam agora impostos e os distribui entre seus oficiais especialmente aqueles ligados à sua corte Esse desenvolvimento implicava sistemas mais complicados de distribuição Todos os estados arcaicos a China antiga o Império dos Incas os Reinos Indianos Egito Babilônia fizeram uso de moeda metálica para impostos e salários mas dependiam principalmente dos pagamentos em espécie acumulados em celeiros e depósitos e distribuídos entre autoridades guerreiros e classes ociosas isto é a parte nãoprodutiva da população Neste caso a distribuição exerce uma função essencialmente econômica Thurnwald Economics pp 1068 Quando falamos no feudalismo pensamos sempre na Idade Média da Europa Entretanto ele é uma instituição que logo fez sua aparição em comunidades estratificadas O fato de a maioria das transações ser em espécie e dos estratos superiores exigirem toda a terra e o gado são as causas econômicas do feudalismo ibid p 195 Ao capítulo 5 7 Referências selecionadas à evolução do padrão de mercado O liberalismo econômico funcionou sob a ilusão de que a sua prática e seus métodos representavam o crescimento natural de uma lei geral de progresso Para fazê Ios se acomodar ao padrão os princípios subjacentes a um mercado autoregulável foram projetados em retrospecto a toda a história da civilização humana Resultou daí que a verdadeira natureza e origem do comércio dos mercados e do dinheiro da vida urbana e dos estados nacionais foram distorcidas além de todo reconhecimento a Os atos individuais de barganha permuta e troca só são praticados excepcionalmente na sociedade primitiva A permuta originalmente é inteiramente desconhecida Longe de estar possuído de uma ânsia de permuta o homem primitivo tem aversão a ela Buecher Die Entstenhung der Volkswirtschaft 1904 p 109 É impossível por exemplo expressar o valor de um anzol de bonito em termos de quantidade de alimentos uma vez que tal troca jamais é feita e seria vista como fantástica pelos Tikopia Cada tipo de objeto é apropriado a um tipo particular de situação social Firth op cit p 340 b O comércio não surge dentro de uma comunidade é assunto externo que envolve diferentes comunidades No seu início o comércio é uma transação entre grupos étnicos ele não ocorre entre membros da mesma tribo ou da mesma comunidade mas é nas comunidades sociais mais antigas um fenômeno externo que se dirige apenas às tribos estrangeiras MWeber General Economia History p 195 Embora pareça estranho o comércio medieval se desenvolveu desde o princípio sob a influência do comércio de exportação e não do comércio local Pirenne Economic and Social History of Medieval Europe p 142 O comércio a longa distância foi responsável pelo renascimento econômico da Idade Média Pirenne Medieval Cities p 125 314 c o comércio não depende de mercados ele surge de empreendimentos unilaterais pacíficos ou não Thurnwald estabeleceu o fato de que as formas mais antigas de comércio consistiam simplesmente em procurar e transportar objetos a distância Tratase na sua essência de uma expedição de caça Se a expedição é guerreira como na caça ao escravo ou na pirataria depende principalmente da resistência encontrada opcit pp 145 146 A pirataria foi a iniciadora do comércio marítimo entre os gregos da era homérica como entre os Vickings nórdicos durante muito tempo as duas vocações se desenvolveram em consonância Pirenne Economic and Social History p 109 d A presença ou ausência de mercados não é uma característica essencial os mercados locais não têm tendência a crescer Os sistemas econômicos que não possuem mercados não precisam ter quaisquer outras características em comum nesse sentido Thurnwald Die menschliche Gesellschaft vol III p 137 Nos mercados primitivos somente quantidades definidas de objetos definidos podiam ser permutadas urnas pelas outras ibid p 137 Thurnwald merece um apreço especial pela sua observação de que o dinheiro e o comércio primitivos são essencialmente de significado social ao invés de econômico Loeb The Distribution and Function of Money in Early Society em Essays in Anthropology p 153 Os mercados locais não se desenvolveram a partir do comércio armado ou da permuta silenciosa ou outras formas de comércio externo mas a partir da paz mantida num local de reunião com o propósito limitado da troca entre vizinhos O objetivo do mercado local era oferecer as provisões necessárias à vida diária da população estabelecida no distrito Isto explica o fato de elas ocorrerem semanalmente o círculo muito limitado da sua atração e a restrição da sua atividade a pequenas operações a varejo Pirenne op cit capo 4 Commerce to the End of the Twentieth Century p 97 Mesmo em época posterior os mercados locais não revelaram qualquer tendência ao crescimento em contraste com as feiras O mercado supria as necessidades da localidade e a ele compareciam apenas os habitantes das vizinhanças suas mercadorias eram produtos do campo e utensílios da vida cotidiana Lipson The Economic History of England 1935 vol I p 221 O comércio local começou a se desenvolver como uma ocupação auxiliar dos camponeses e pessoas empenhadas na indústria doméstica e em ocupações gerais ou sazonais Weberop cit p 195 Seria natural supor à primeira vista que uma classe de mercadores crescesse pouco a pouco no seio da população agrícola Nada porém dá credibilidade a essa teoria pirenne Medieval Cities p 111 e A divisão do trabalho não se origina do comércio ou da troca mas de fatos geográficos biológicos e outros não econômicos A divisão do trabalho não resulta definitivamente de uma economia complicada como afirmam as teorias racionalistas Ela se deve principalmente às diferenças fisiológicas de sexo e idade Thurnwald Economics p 212 Praticamente a única divisão de trabalho que existe é entre homens e mulheres Herskovits op cit p 13 Uma outra forma na qual a divisão do trabalho pode surgir de fatos biológicos é no caso da simbiose de diferentes grupos érnicos Os grupos érnicos se transformam em grupos profissionaissociais através da formação de uma camada superior na sociedade Criase assim uma organização baseada de um lado nas contribuições e serviços da classe dependente e de outro no poder de distribuição que possuem os chefes 315 de famílias do estrato dominante Thurnwald Economics p 86 Encontramos aqui uma das origens do estado Thurnwald Sozialpsyschische Ablaufe p 387 f O dinheiro não é uma invenção decisiva sua presença ou ausência não precisa fazer qualquer diferença essencial no tipo de economia O simples fato de uma tribo usar dinheiro diferenciase muito pouco economicamente de outras tribos que não o utilizam Loeb op cit p 154 Se o dinheiro é usado sua função é muito diferente daquela que exerce em nossa civilização Ele nunca deixa de ser um material concreto e jamais se transforma numa representação de valor inteiramente abstrata Thurnwald Economics p 107 As dificuldades da permuta não desempenharam qualquer papel na invenção do dinheiro Esta visão antiquada dos economistas clássicos é totalmente contrária às investigações etnológicas Loeb op cit p 167 pédepágina 6 Em razão da utilidade específica das mercadorias que funcionam como dinheiro assim como seu significado simbólico como atributos de poder não é possível ver a posse econômica de um ponto de vista racionalista unilateral Thurnwald Economics O dinheiro pode ser usado por exemplo apenas para o pagamento de salários e impostos ibid p 108 ou ele pode ser usado para comprar uma mulher como dinheiro de sangue ou como multa Podemos ver assim que nestes exemplos de condições préestatais a avaliação dos objetos de valor resulta da quantidade das contribuições costumeiras da posição ocupada pelos personagens mais importantes e da relação concreta que eles assumem com referência às pessoas comuns das diversas comunidades Thurnwald Economics p 263 O dinheiro como os mercados é principalmente um fenômeno externo e seu significado para a comunidade é determinado basicamente pelas relações comerciais A idéia do dinheiro é introduzida habitualmente do exterior Loebop cit p 156 A função do dinheiro como meio geral de troca se originou no comércio exterior Weber op cit p 238 g O comércio externo não foi originalmente um comércio entre indivíduos mas entre coletividades O comércio é um empreendimento grupal ele se refere a artigos obtidos coletivamente Sua origem está nas viagens comerciais coletivas O princípio da coletividade faz sua aparição nos preparativos dessas expedições que têm muitas vezes o caráter de comércio exterior Thurnwald Economics p 145 De qualquer forma o comércio mais antigo é uma relação de troca entre tribos estranhas Weberop cit p 195 O comércio medieval não foi enfaticamente um comércio intercomunal ou intermunicipal Ashley An Introduction to English Economic History and Theory Parte I The Middle Ages p 102 h O campo foi isolado do comércio na Idade Média Até e durante o decurso do século XV as cidades foram os únicos centros de comércio e indústria numa extensão tal que não lhes permitia escapar para o campo aberto Pirenne Economic and Social History p 169 A luta CONtra o comércio rural e contra o artesanato rural durou pelo menos setecentos ou oitocentos anos Heckscher Mercantilism 1935 voI I p 129 A severidade dessas medidas aumentou com a ampliação do governo democrático Durante todo o século XIV eram 316 enviadas expedições armadas contra todas as aldeias da vizinhança e todos os teares e tinas eram quebrados ou levados embora Pirenne op cit p 211 i Não havia comércio indiscriminado entre uma e outra cidade na Idade Média O mércio intermunicipal implicava relações preferenciais entre cidades particuou grupos de cidades como por exemplo a Hansa de Londres e a Hansa teutônica A reciprocidade e a retaliação eram os princípios que governavam as relações entre cidades o caso do nãopagamento de dividas por exemplo os magistrados da idade credora podiam se dirigir aos da devedora e exigir que a justiça fosse feita da mesma maneira como desejariam que seu povo fosse tratado e ameaçando fazer represálias contra o povo daquela cidade se o débito não fosse pago Ashley op cit Pane I p 109 j O protecionismo nacional era desconhecido Para propósitos econômicos é quase desnecessário distinguir países diferentes uns dos outros no século xm pois havia muito menos barreiras ao intercâmbio social nos limites da Cristandade do que as que encontramos hoje em dia Cunningham Western Civilization in Its Economic Aspects vol I p 3 Até o século XV não havia tarifas entre fronteiras políticas Antes dessa época não há qualquer prova do mínimo desejo de favorecer o comércio nacional protegendoo da competição estrangeira Pirenne Economic and Social History p 92 O comércio internacional era livre em todas as transações Power e Postan Studies in English Trade in the Pifteenth Century k O mercantilismo impôs um comércio mais livre às cidades e províncias dentro das fronteiras nacionais O primeiro volume do Mercantilism de Heckscher 1935 tem o titulo Mercantilismo como Sistema Unificador Assim o mercantilismo opôsse a tudo que limitava a vida econômica a um local particular e obstruía o comércio dentro das fronteiras do estado Heckscherop cit vol n p 273 Ambos os aspectos da política municipal a supressão do campo rural e a luta contra a competição das cidades estrangeiras estavam em conflito com os objetivos econômicos do estado ibid vol I p 131 O mercantilismo nacionalizou os países através da ação do comércio que estendeu as práticas locais a todo o território do estado pantlen Handel em Handuôrterbuch der Staatswissenschaften vol VI p 281 A competição foi freqüentemente patrocinada pelo mercantilismo de forma artificial a fim de organizar mercados com a regulação automática da oferta e da procura Heckscher O primeiro autor moderno a reconhecer a tendência liberalizante do sistema mercantil foi Schmoller 1884 l A regulação medieval teve muito sucesso A política das cidades na Idade Média foi provavelmente a primeira tentativa na Europa Ocidental após o declínio do Velho Mundo de regular a sociedade no seu setor econômico de acordo com princípios sólidos A tentativa foi coroada de um sucesso incomum O liberalismo econômico ou o laissezfaire na época da sua supremacia incontestável talvez seja um tal exemplo mas quanto à sua duração o liberalismo foi um episódio pequeno evanescente em comparação com a tenacidade persistente da política das cidades Heckscher op cit p 139 Eles a atingiram através de um 317 sistema de regulações tão maravilhosamente adaptado a seu propósito que pode ser considerado uma obraprima da sua espécie A economia da cidade era digna da arquitetura gótica que foi sua contemporânea Pirenne Medieval Cities p 217 m O mercantilismo estendeu as práticas municipais ao território nacional O resultado seria uma política de cidade ampliada para uma área maior uma espécie de política municipal superimposta numa base estatal Heckscher op cit vol I p 131 n Mercantilismo uma política muito bemsucedida O mercantilismo criou um sistema magistral de desejosatisfação complexo e elaborado Buecher op cit p 159 Foi tremendo o alcance dos Reglements de Colbert que exigia uma alta qualidade na produção como um fim em si mesmo Heckscher op cit vol I p 166 A vida econômica em escala nacional foi principalmente o resultado da centralização política Buecher op cit p 157 O sistema regulador do mercantilismo tem a seu crédito a criação de um código de trabalho e uma disciplina de trabalho muito mais estritos do que aqueles produzidos pelo estreito particularismo dos governos das cidades medievais com suas limitações morais e tecnológicas Brinkmann Das soziale System des Kapitalismus em Grundriss der Sozialõkonomik vol IV Ao capítulo 7 8 Literatura sobre Speenharnland Somente no princípio e no final da era do capitalismo liberal encontramos uma conscientização da importância decisiva da Speenhamland Tanto antes como depois de 1834 existiam naturalmente referências constantes ao sistema de abonos e à má administração da Poor Law as quais porém não datavam da Speenhamland de 1795 mas do Gilberts Act de 1782 e as verdadeiras características do sistema Speenhamland não estavam claramente definidas na mentalidade pública E nem hoje elas estão Ainda se considera que ela significou simplesmente uma assistência indiscriminada ao povo Na verdade ela foi algo inteiramente diferente isto é um abono salarial sistemático Os contemporâneos só reconheceram parcialmente que tal prática colidia frontalmente com os princípios da Lei Tudor e não compreenderam de forma alguma que ela era inteiramente incompatível com o sistema salarial emergente Quanto aos efeitos práticos não se observou até muito tarde que em conjunção com as AntiCombination Laws 17991800 ela tendia a rebaixar os salários e tornarse um subsídio para os patrões Os economistas clássicos jamais pararam para investigar os detalhes do sistema de abonos como fizeram no caso do aluguel e da moeda Eles juntaram todas as formas de abono e assistência externa com as Poor Laws e fizeram pressão para a sua revogação total Nem Townsend Malthus ou Ricardo defenderam a reforma da Poor Law eles apenas exigiram a sua revogação Só Bentham que havia feito um estudo sobre o assunto foi nesse sentido menos dogmático do que os outros Burke e ele 318 compreenderam aquilo que Pitt não havia visto que o princípio verdadeiramente vicioso era o do abono salarial Engels e Marx não fizeram qualquer estudo sobre a Poor Law Poderseia imaginar que nada Lhes seria mais conveniente do que demonstrar o pseudo humanitarismo de um sistema reputado como a serviço da fantasia dos pobres enquanto de faro reduzia seus salários abaixo do nível de subsistência ajudado poderosamente nesse sentido por uma lei especial antisindicalista e manejava o dinheiro público enrregandoo aos ricos para que pudessem ganhar mais dinheiro com os pobres a época deles a ew Poor Law era o inimigo e tanto Cobbett como os cartistas tendiam a idealizar a antiga Poor Law Além disso Engels e Marx estavam justamente convencidos de que se o capitalismo estava se implantando era inevitável a reforma da Poor Law Assim eles deixaram de lado não apenas alguns pontos de debate de primeira classe mas também o argumento com o qual a Speenharnland reforçaria o seu sistema teórico a saber de que o capitalismo não poderia funcionar sem um mercado livre de trabalho Harriet Martineau utilizou profusamente as clássicas passagens do Poor Law Report 1834 nas suas sombrias descrições das conseqüências da Speenharnland Os Goulds e os Barings que financiaram os pequenos e suntuosos volumes nos quais ela se propôs a esclarecer os pobres sobre a inevitabilidade da sua miséria ela estava profundamente convencida de que ela era inevitável e que só o conhecimento das leis da economia política faria com que tolerassem melhor a sua sorte não poderiam ter encontrado um defensor mais sincero do seu credo e mais bem informado no seu todo Illustrations to Polítical Economy 1831 vol III também The Parish e The Hamlet em Poor Law and Paupers 1834 Seu Thirty Years Peace 18161846 foi composto num ambiente refinado e revelou mais simpatia pelos cartistas do que pela memória do seu mestre Bentham vol III p 489 e vol IV p 453 Ela concluiu a sua crônica com esta significativa passagem Temos agora os melhores cérebros e corações ocupados com a grave questáo dos direitos do trabalho com alertas impressionantes que nos surgem do exterior de que eles não podem ser negligenciados sob o risco da penalidade mínima de arruinar a todos Será possível que a solução não possa ser encontrada Esta solução pode até ser o fato central do próximo período da história britânica e então melhor do que agora pode parecer que na sua preparação se firma o principal interesse da paz dos Trinta Anos precedente Esta foi uma profecia de ação retardada A questão do trabalho deixou de existir no período seguinte da história britânica mas retomou na década de 1970 e meio século mais tarde ela significou ruína para todos Obviamente era mais fácil discernir na década de 1840 do que na década de 1940 que as origens daquela questão repousavam nos princípios que governavam a Poor Law Reform Act Durante todo o período vitoriano e mesmo depois nenhum filósofo ou historiador se ocupou da insignificante economia da Speenharnland Entre os três historiadores do bentharnismo Sir Leslie Stephen não se preocupou em pesquisar os detalhes Elie Halevy o primeiro a reconhecer o papel fundamental da Poor Law na história do radicalismo filosófico tinha apenas as noções mais nebulosas sobre o assunto No terceiro relato de Dicey a omissão é ainda mais marcante Sua incomparável análise das relações entre a lei e a opinião pública trataram o laissezfaire e o coletivismo como a trama e a urdidura do tecido Ele acreditava que o próprio padrão se originava das tendências industriais e de negócios da época isto é das instituições que modelavam a vida econômica Ninguém poderia ter enfatizado mais fortemente do que Dicey o 319 dominante papel desempenhado pelo pauperismo na opinião pública nem a importância da Poor Law Reform no sistema total da legislação benthamita No entanto ele estava perplexo com a importância central atribuída à Poor Law Reform pelos benthamitas em seu esquema legislativo e acreditava de fato que o encargo dos impostos sobre a indústria era o ponto em questão Historiadores do pensamento econômico do porte de um Schumpeter ou Mitchell analisaram os conceitos dos economistas clássicos sem fazer qualquer referência às condições da Speenhamland Com as conferências de A Toynbee 1881 a Revolução Industrial se tornou um tema da história econômica Toynbee fez o socialismo Tory responsável pela Speenhamland e seu princípio de proteção aos pobres pelos ricos Nessa época William Cwmingham voltouse para o mesmo assunto e ele reviveu como por milagre mas foi apenas uma voz ressoando na selva Embora Mantoux 1907 recebesse o benefício da obraprima de Cunningham 1881 ele se referiu à Speenhamland como apenas uma outra reforma e curiosamente creditoua com o efeito de caçar os pobres para o mercado de trabalho The Industrial Revolution in the Eighteenth Century p 438 Beer cuja obra foi um monumento ao primitivo socialismo inglês quase não mencionou a Poor Law A Speenharnland só foi redescoberta quando os Hammonds 1911 conceberam a visão de uma nova civilização prenunciada pela Revolução Industrial Para eles ela constituía uma parte da história social não da econômica Os Webbs 1927 prosseguiram esse trabalho levantando a questão das precondições política e econômica da Speenharnland conscientes do fato de que estavam lidando com as origens dos problemas sociais da nossa própria época J H Clapham tentou construir um caso contra o que pode ser chamado de abordagem instirucionalista da história econômica representada por Engels Marx T oynbee Cunningham Mantoux e mais recentemente pelos Hammonds Ele se recusava a considerar o sistema Speenhamland como uma instituição e discutiao simplesmente como um traço da organização agrária do país vol I capo 4 Isto não era suficiente já que foi precisamente o fato de ela se estender às cidades que derrubou o sistema Ele também isolou o tema salarial dos efeitos da Speenhamland sobre os impostos e discutiu este último como Atividades Econômicas do Estado Isto foi artificial e omitiu a economia da Speenharnland do ponto de vista da classe dos patrões que se beneficiou com os salários baixos tanto ou mais do que perdia com os impostos O respeito consciencioso de Clapham pelos fatos porém compensou seu maltrato à instituição O efeito decisivo dos cercamentos de guerra na área em que foi introduzido o sistema Speenharnland assim como o grau verdadeiro a que os salários reais foram reduzidos por esse sistema foram revelados pela primeira vez por ele A total incompatibilidade da Speenharnland com o sistema salarial só era relembrada permanentemente na tradição dos liberais econômicos Só eles compreenderam que num sentido amplo cada forma de proteção do trabalho implicava algo do princípio de intervencionismo da Speenharnland Spencer fez a acusação de salários feitos como era chamado o sistema de abonos na sua parte do país contra qualquer prática coletivista termo esse que ele não encontrou dificuldade em aplicar à educação pública à habitação à provisão de terrenos para recreação e assim por diante Dicey em 1913 resumiu a sua crítica ao Old Age Pensions Act Lei da Aposentadoria dos Velhos 1908 nas palavras Em essência isto nada 320 mais é que uma nova forma de assistência externa aos pobres Ele duvidava que os liberais econômicos jamais tivessem uma possibilidade de atingir sucesso com a sua política Algumas de suas propostas jamais foram levadas a efeito a assistência externa por exemplo jamais foi revogada Se esta era a opinião de Dicey era apenas natural que Mises sustentasse que enquanto se pagar o benefíciodesemprego o desemprego deve existir Liberalisms 1927 p 74 e que a assistência aos desempregados provara ser uma das armas mais efetivas de destruição Sociaiism 19 p 484 Nationalôkonomie 1940 p 720 Walter Lippmann em seu Good Society 1937 tentou dissociarse de Spencer mas apenas para invocar Mises Ele e lippmann espelhavam a reação liberal ao novo protecionismo das décadas de 1920 e 1930 É fora de dúvida que muitos aspectos da situação relembravam agora a Speenhamland Na Áustria o benefíciodesemprego vinha sendo subsidiado por um Tesouro falido na GrãBretanha o benefíciodesemprego ampliado não se distinguia do donativo na América do Norte haviam sido lançados os WPA e PWA Foi em vão que Sir Alfred Mond presidente da Imperial Chemical Industries defendeu em 1926 a idéia de que os empregadores britânicos deviam receber subsídios do fundo de desemprego para compor os salários e assim ajudar o incremento do emprego Tanto no que se refere ao tema do desemprego quanto ao tema da moeda o capitalismo liberal em seus estertores mortais enfrentava os mesmos problemas ainda não solucionados a herança que arrastava desde os seus primórdios Literatura contemporânea sobre pauperismo e a Old Poor Law Acland Compulsory Saving Pians 1786 Anônimo Considerations on Several Proposals Lately Made for the Better Maintenance of the Poor Com um apêndice 2 ed 1752 Anônimo A New Plan for the Better Maintenance of the Poor of England 1784 An Address to the Public da Philanthropic Society instituída em 1788 para a Prevenção de Crimes e Reformas dos Criminosos Pobres 1788 Applegarth Rob A Plea for the Poor 1790 Belsham Will Remarks on the Bill for the Better Support and Maintenance of the Poor 1797 Bentham Pauper Management Improved 1802 Observation on the Restrictive and Prohibitory Commerciai System 1821 Observations on the Poor Bill introduced by the Right Honorabie William Pitt escrito em fevereiro de 1797 Burke E Thoughts and Detaiis on Scarcity 1795 Cowe James Religious and Philanthropic Trusts 1797 Crumple Samuel M D An Essay on the Best Means of Prividing Empioyment for the People 1793 Defoe Daniel Giving Aims No Charity and Empioying the Poor a Grievance to the Nation 1704 Dyer George A Dissertation on the Theory and Practice of Benevoience 1795 The Compiaints of the Poor People of England 1792 321 Eden On the Poor 1797 3 vols Gilbert Thomas A Plan for the Better Relief and Employment of the Poor 1781 Godwin William Thoughts Occasioned by the Perusal of Dr Parrs Spiritual Sermon Preached at Christ Church Apri115 1800 Londres 1801 Hampshire State of the Poor 1795 Hampshire Magistrate E Poulter Comments on the Poor Bill 1797 Howlett Rev J Examination of Mr Pitts Speech 1796 James Isaac Providence Displayed Londres 1800 p 20 Jones Edw The Prevention of Poverty 1796 Luson Hewling Inferior Politics or Considerations on the Wretchedness and Profligacy of the Poor 1786 MFarlane John D D Enquiries Conceming the Poor 1782 Martineau H The Parish 1833 The Hamlet 1833 The History of the Thirty Years Peace 18493 vols lllustrations ofPolitical Economy 1832349 vols Massie A Plan Penitent Prostitutes Foundling Hospital Poor and Poor Laws 1758 Nasmith James D D A Charge Isle of Ely 1799 Owen Robert Report to the Comitteee of the Association for the Relief of the Manufacturing and Labouring Poor 1818 Paine Th Angrarian justice 1797 Pew Rich Observations 1783 Pitt Wm Morton An Address to the Landed Interest of the defic of Habitation and Fuel for the Use of the Poor 1797 Plan of a Public Charity A 1790 On Starving um sketch First Report da Sociedade para a Melhoria das Condições e Aumento do Conforto dos Pobres Second Report da Sociedade para a Melhoria das Condições e Aumento do Conforto dos Pobres 1797 Ruggles Tho The History of the Poor 1793 2 vols Sabatier Wm Esq A Treatise on Poverty 1797 Saunders Robert Observations Sherer Rev G Present State of the Poor 1796 Spitalfields Institution Good Meat Soup 1799 St Giles in the Field Vestry of the United Parishes of Criticism of Bill for the Better Support and Maintenance of the Poor 1797 Suffolk Gentlemann A Letter on the Poor Rates and the High Price af Provisians 1795 Townsend Wm Dissertation on the Poor Laws 17861ry A WellWisherafMankind Vancouver John Causes and Production of Poverty 1796 Wilson Rev Edw Observatians on the Present State af the Poor 1795 Wood J Letter to Sir William Pulteney on Pitts Bill 1797 Young Sir W Poor Houses and Warkhauses 1796 Algumas obras modernas Ashlwy Sir W J An Introduction to English Economic History and Theory 1931 Belasco Ph S John Bellrs 16541725 Economics junho 1925 322 The Labour Exchange Idea in the 17th Century EcJ vol I p 275 Blackmore J S e Mellonie F c Family Endowment and the Birthrate in the Early 19th Century vol I Clapham J H Economic History of Modern Britain voI I 1926 Marshall Dorothy The Old Poor Law 16621795 The Ec Hist Rev vol VIll 193738 p 38 Palgrave Dictionary of Political Economy Art Poor Law 1925 Webb S e B English Local Government vols 79 Poor Law History 192729 Webb Sidney Social Movements C M H vol XII pp 73065 Ao capítulo 7 9 Speenhamland e Viena O que primeiro chamou a atenção do autor para o estudo da Speenharnland e seus efeitos sobre os economistas clássicos foi a situação social e econômica muito sugestiva que se desenvolveu na Áustria após a Grande Guerra Aqui num ambiente puramente capitalista uma municipalidade socialista estabelecera um regime intransigentemente atacado pelos liberais econômicos Não há dúvida de que algumas das políticas intervencionistas postas em prática pela municipalidade eram incompatíveis com o mecanismo de uma economia de mercado Todavia os argumentos puramente econômicos não exauriam um tema que era primordialmente social e não econômico Foram os seguintes os fatos mais importantes em relação a Viena Durante a maior parte dos quinze anos que se seguiram à Primeira Grande Mundial 19141918 o segurodesemprego na Áustria era fortemente subsidiado pelos fundos públicos ampliando assim indefinidamente a assistência externa Os aluguéis eram fixados numa fração mínima do seu nível anterior e a municipalidade de Viena construiu grandes conjuntos habitacionais em base nãolucrativa levantando o capital exigido através de impostos Embora não fossem concedidos abonos salariais as amplas provisões de serviços sociais apesar de modestas poderiam fazer baixar acentuadamente os salários não fosse o desenvolvimento de um movimento sindical que encontrou apoio naturalmente na ampliação do benefíciodesemprego Do ponto de vista econômico um sistema como esse era anormal certamente Os aluguéis restritos a um nível não remunerador eram incompatíveis com o sistema vigente de empresa privada principalmente a construção civil Durante os primeiros anos ainda a proteção social no país empobrecido interferiu com a estabilidade da moeda as políticas inflacionária e intervencionista caminhavam lado a lado Como a Speenharnland Viena eventualmente sucumbiu sob o ataque de forças políticas poderosamente sustentadas por argumentos puramente econômicos Os levantes políticos de 1832 na Inglaterra e 1934 na Áustria se destinavam a liberar o mercado de trabalho da intervenção protecionista Nem a aldeia do proprietário fundiário nem a classe trabalhadora de Viena podiam se isolar indefinidamente do seu meio ambiente 323 E no entanto havia uma grande diferença entre os dois períodos intervencionistas A aldeia inglesa em 1795 tinha que ser abrigada contra uma desarticulação provocada pelo progresso econômico o tremendo avanço das manufaturas urbanas A classe trabalhadora industrial de Viena em 1918 tinha que ser protegida contra os efeitos do retrocesso econômico resultante da guerra da derrota e do caos industrial A Speenharnland levou eventualmente a uma crise da organização do trabalho que abriu caminho para uma nova era de prosperidade enquanto a vitória de Heimwehr na Áustria foi parte de uma catástrofe total do sistema nacional e social O que queremos enfatizar aqui é a enorme diferença no efeito cultural e moral dos dois tipos de intervenção a tentativa da Speenharnland de impedir a chegada de uma economia de mercado e a experiência de Viena tentando transcender totalmente tal economia Enquanto a SpeenhamIand causou um verdadeiro desastre ao povo comum Viena alcançou um dos mais espetaculares triunfos culturais da história ocidental O ano de 1795 levou a uma degradação sem precedentes das classes trabalhadoras que foram impedidas de atingir o novo status de operários industriais Em 1918 teve início uma ascensão moral e intelectual igualmente sem precedentes na situação de uma classe operária industrial altamente desenvolvida que protegida pelo sistema de Viena suportou os efeitos degradantes de uma grave distorção econômica e atingiu um nível jamais superado pela massa popular em qualquer sociedade industrial É claro que isto se deveu aos aspectos sociais do assunto distintos do econômico Mas será que os economistas ortodoxos apreenderam devidamente a economia do intervencionismo Os liberais econômicos argumentavam que o regime de Viena era urna nova má administração da Poor Law um outro sistema de abonos que precisava de uma boa vassourada dos economistas clássicos Mas será que esses mesmos pensadores não se equivocavam com as condições comparativamente duradouras criadas pela Speenhamland Eles estavam certos muitas vezes em relação ao futuro que sua profunda perspicácia ajudara a moldar mas estavam completamente errados em relação à sua própria época A pesquisa moderna comprovou que eles não mereceram sua reputação de um sólido julgamento prático Malthus se enganou redondamente em relação às necessidades do seu tempo se seus alertas tendenciosos sobre superpopulação tivessem dando resultado com as noivas às quais ele se dirigia pessoalmente isto poderia ter abatido o progresso econômico na sua trilha diz T H Marshall Ricardo desvirtuou os fatos da controvérsia monetária assim como o papel do Banco da Inglaterra e deixou de apreender as verdadeiras causas da depreciação da moeda que como sabemos hoje consistiam basicamente em pagamentos políticos e dificuldades de transferência Se fosse seguido o seu conselho sobre o Bullion Report a GrãBretanha teria perdido a guerra napoleônica e o Império não existiria hoje Assim a experiência de Viena e suas semelhanças com a Speenhamland que fez alguns se voltarem para os economistas clássicos levou muitos outros a duvidar deles Ao capítulo 8 10 Por que não o Whitbreads Bill A única alternativa à política Speenharnland parece ter sido o Whitbreads Bill apresentado no inverno de 1795 Ele exigia a extensão do Statute of Artificers de 1563 de 324 forma a incluir a fixação de salários mínimos com avaliações anuais Tal medida argumentava seu autor manteria a regra elisabetana da avaliação salarial am liandoa dos salários máximos para os mínimos e impedindo a fome no campo Isto sem dúvida atenderia às necessidades de uma emergência e vale a pena observar membro representantes de Suffolk por exemplo apoiaram o Whitbreads da m ma forma como seus magistrados já haviam endossado o princípio da Speenhamland numa reunião a qual o próprio Arthur Young esteve presente Para os não parecia existir uma grande diferença entre as duas medidas o que não é se surpreender Cento e trinta anos mais tarde quando o Plano Mond 1926 ropôs a utilização do fundo de desemprego para suplementar os salários na indúsrria o público ainda achava difícil compreender a decisiva diferença econômica entre a ajuda ao desempregado e o abono salarial para o empregado Em 1795 porém a escolha era entre salários mínimos e abonos salariais A diferença entre as duas políticas pode ser mais bem aquilatada relacionandoas à abolição simultânea do Act of Settlement de 1662 A revogação desse decreto criou a possibilidade de um mercado de trabalho nacional cujo principal propósito era permitir que os salários encontrassem seu próprio nível A tendência do Whitbreads Minimum Wage era contrária à abolição do Act of Settlement enquanto a tendência da Speenharnland Law não era Ampliando a aplicação da Poor Law de 1601 em vez de o Statute of Artificers de 1563 conforme sugerira Whitbread os proprietários rurais reverteram ao paternalismo basicamente apenas em relação à aldeia e de forma tal que envolvesse um mínimo de interferência com o jogo do mercado enquanto tornava inoperante o mecanismo de fixação salarial Jamais se admitiu abertamente que esta assim chamada aplicação da Poor Law era na realidade a destruição total do princípio elisabetano do trabalho obrigatório Para os patrocinadores da Speenhamland Law as considerações pragmáticas eram primordiais O Rev Edward Wilson cônego de Windsor e juiz de paz por Berkshire e que talvez tenha sido o proponente da lei deu sua opinião num panfleto no qual se declarava categoricamente a favor do laissezfaire O trabalho como qualquer coisa que se leva ao mercado encontrou seu nível em todas as épocas sem a interferência da lei disse ele Teria sido mais apropriado para um magistrado inglês dizer que ao contrário em nenhuma época o trabalho encontrou seu nível sem a intervenção da lei Entretanto prosseguia o cônego Wilson as cifras mostraram que os salários não aumentavam tão depressa quanto o preço do trigo e portanto ele respeitosamente submetia à consideração da magistratura urna medida para o quantum de assistência a ser dispensado aos pobres A assistência chegava a cinco shillings por semana para uma família de marido mulher e filho Um anúncio do seu prospecto dizia o conteúdo do tratado a seguir foi apresentado na reunião do condado em Newbury em 6 de maio último A magistratura como sabemos foi além do cônego ela concedeu unanimemente uma tabela de cinco shillings e seis pences Ao capítulo 13 11 As duas nações de Disraeli e o problema das raças de cor Diversos autores insistiram na semelhança entre os problemas coloniais e os do capitalismo primitivo Entretanto eles não acompanharam a analogia na sua outra forma 325 isto é não aclararam as condições das classes mais pobres da Inglaterra de há um século para retratáIas como realmente eram os destribalizados e degradados nativos da sua época O motivo por que essa semelhança óbvia passou despercebida é a nossa crença ao preconceito liberalista que deu proeminência indevida aos aspectos econômicos daqueles processos que eram basicamente nãoeconômicos De fato nem a degradação racial em algumas áreas coloniais de hoje nem a desumanização análoga do povo trabalhador de um século atrás eram econômicas na sua essência a O contato cultural destrutivo não é basicamente um fenômeno econômico A maioria das sociedades nativas sofre agora um processo de transformação rápido e forçado só comparável às mudanças violentas de uma revolução diz L P Mair Embora as motivações dos invasores sejam definitivamente econômicas e o colapso da sociedade primitiva seja causado certamente pela destruição das suas instituições econômicas o fato mais saliente é que as novas instituições econômicas deixam de ser assimiladas pela cultura nativa e esta se desintegra conseqüentemente e não é substi tuida por qualquer outro sistema de valores coerente A primeira entre as tendências destrutivas inerentes às instituições ocidentais é a paz numa vasta área que abala a vida do clã a autoridade patriarcal o treinamento militar da juventude ela é praticamente proibitiva para a migração de clãs ou tribos Thurnwald Black and White in East Africa The Fabric af a New Civilizatian 1935 p 394A guerra devia dar um entusiasmo à vida nativa do qual ela muito carece nestes tempos de paz A proibição da luta diminui a população já que a guerra fazia muito poucas baixas e sua ausência significa a perda de costumes e cerimônias vitalizantes com a conseqüente monotonia e apatia perniciosas à vida da aldeia F E Williams Depopulation af the Suan District 1933 Anthropology Report n 13 p 43 Comparemos com isto a existência saudável animada excitada do nativo em seu ambiente cultural tradicional Goldenweiser Loose Ends p 99 Nas palavras de Goldenweiser o perigo real está num intermédio cultural Goldenweiser Anthrapolagy 1937 p 429 Neste ponto existe praticamente uma unanimidade As antigas barreiras se desintegram e não se oferecem quaisquer outras novas linhas de direção Thurnwald Black and White p 111 Manter uma comunidade na qual a acumulação de bens é vista como antisocial e integrar a mesma com a cultura branca contemporânea é tentar harmonizar dois sistemas institucionais incompatíveis Wissel em Introdução a M Mead The Changing Culture of an Indian Tribe 1932 Os imigrantes portadores de cultura podem conseguir extinguir uma cultura aborígine e no entanto podem falhar tanto em extinguir quanto em assimilar seus portadores Pitt Rivers The Effect on Native Races of Contact with European Civilization em Man vol XXVII 1927 Ou na frase pungente de Lesser sobre mais uma vítima da civilização industrial De uma maturidade cultural como Pawnee eles foram reduzidos à infância cultural como homens brancos The Paumee Ghost Dance Hand Game p 44 Esta condição de mortovivo não é devida à exploração econômica no sentido aceito de que a exploração significa uma vantagem econômica de uma das partes à custa da outra embora ela esteja com certeza intimamente ligada às mudanças nas condições econômicas referentes ao cultivo da terra guerra casamento e assim por diante cada uma das quais afeta um grande número de hábitos sociais costumes e tra dições 326 de todos os tipos Quando uma economia monetária é introduzi da à força em regiões esparsamente habitadas da África Ocidental não é a insuficiência dos salários que resulta no fato de os nativos não poderem comprar alimentos para substituir aqueles que não foram plantados pois ninguém dispõe de um excedente de alimentos para Ihes vender Mair An African People in the Twentieth Century 1934 p 5 Suas instituições envolvem uma escala de valores diferentes eles são ao mesmo tempo parcimoniosos e não têm mentalidade de mercado Eles pedirão o mesmo preço quando o mercado está provido e quando há grande escassez e no entanto eles viajarão grandes distâncias com considerável perda de tempo e energia para economizar uma pequena soma em suas compras Mary H Kingsley West African Studies p 339 Uma elevação de salários leva ao absenteísmo muitas vezes Falase que os índios Zapotec em T ehuantepec trabalhavam praticamente a metade quando recebiam 50 centavos ou 25 centavos por dia Este paradoxo foi bastante generalizado durante os dias iniciais da Revolução Industrial na Inglaterra O índice econômico das taxas populacionais não nos é de mais utilidade do que os salários Goldenweiser confirma a famosa observação feita por Rivers na Melanésia de que os nativos culturalmente destituídos podem estar morrendo de tédio F E Williams ele mesmo um missionário que trabalhava naquela região escreve que a influência do fator psicológico na taxa de mortalidade é inteiramente compreensível Muitos observadores chamaram a atenção para a notável facilidade e presteza com que o nativo pode morrer A restrição aos interesses e atividades anteriores parece fatal a seu espírito O resultado é que o poder de resistência do nativo é destruído e ele é facilmente atacado por qualquer tipo de doença op cit p 43 Isto nada tem a ver com a pressão do desejo econômico Assim uma taxa extremamente alta de crescimento natural tanto pode ser um sintoma de vitalidade cultural como de degradação cultural Frank Lorimer Obseruations on the Trend of Indian Population in the United States p 11 A degradação cultural só pode ser interrompida por medidas sociais desproporcionais aos padrões econômicos de vida como a restauração da posse da terra tribal ou o isolamento da comunidade da influência dos métodos capitalistas do mercado Separar o índio da sua terra foi o ÚNICO golpe mortal escreve John Collier em 1942 O General Alotrnent Act Lei do Loteamento Geral de 1887 individualizou a terra dos índios a desintegração da sua cultura que daí resultou representou a perda de cerca de 34 ou noventa milhões de acres dessa terra O Indian Reorganization Act Lei de Reorganização Índia de 1934 reintegrou as possessões tribais e salvou a comunidade índia reoitalizando a sua cultura A mesma estória nos vem da África Formas de posse da terra constituem o centro de interesse porque é delas que depende mais diretamente a organização social O que aparece como conflitos econômicos impostos e aluguéis elevados baixos salários são quase que exclusivamente formas veladas de pressão para induzir os nativos a abandonar sua cultura tradicional e compelilos a se ajustarem aos métodos da economia de mercado ie a trabalhar por salários e comprar seus bens no mercado Foi no decorrer de um processo semelhante que algumas tribos nativas como os cafres e aqueles que haviam migrado para a cidade perderam suas virtudes ancestrais e tornaramse uma turba inepta animais semidomesticados entre eles vagabundos ladrões e prostitutas uma instituição antes desconhecida por eles assemelhandose à massa da população pauperizada da Inglaterra nas décadas 17951834 327 b A degradação humana das classes trabalhadoras sob o capitalismo primitivo foi o resultado de uma catástrofe social nãomensurável em termos econômicos Já em 1816 Robert Owen observava a respeito dos seus próprios trabalhadores que qualquer que fosse o salário que recebiam como massa eles devem ser infelizes To the British Master Manufacturers p 146 É preciso lembrar que Adam Smith já esperava que os trabalhadores afastados da terra perdessem todo o interesse intelectual MFarlane também estava certo de que o conhecimento da escrita e das contas tornar seá cada dia menos freqüente entre o povo comum Enquiries Conceming the Poor 1782 pp 24950 Uma geração mais tarde Owen atribuiu a degradação dos trabalhadores à negligência na infância e ao excesso de trabalho o que os tornava incompetentes por ignorância a fazer bom uso dos salários elevados quando conseguiam obtêIos Ele próprio pagavaIhes salários baixos mas elevava seu status criando para eles artificialmente um ambiente cultural inteiramente novo Os vícios que se desenvolveram na massa do povo foram em geral os mesmos que caracterizaram as populações de cor rebaixadas pelo contato cultural desintegrador dissipação prostituição roubo falta de parcimônia e previdência preguiça baixa produtividade do trabalho falta de autorespeito e de perseverança A difusão da economia de mercado destruía o tecido tradicional da sociedade rural a comunidade aldeã a família as antigas formas de posse da terra os costumes e os padrões que sustentavam a vida dentro de um arcabouço cultural A proteção dispensada pela Speenhamland apenas piorou as coisas Na década de 1830 a catástrofe social do povo comum era tão completa como a dos cafres hoje em dia Único e sozinho um eminente sociólogo negro Charles S Johnson inverteu a analogia entre o rebaixamento racial e a degradação de classe aplicandoa desta vez à última Na Inglaterra onde incidentalmente a Revolução Industrial era mais adiantada do que no resto da Europa o caos social que se seguiu à drástica reorganização econômica converteu as crianças empobrecidas naquelas peças que os escravos africanos se tornaram mais tarde As desculpas para o sistema de servidão infantil foram quase idênticas àquelas do comércio escravagista Race Relations and Social Change em E Thompson Race Relations and the Race Problem 1939 p 274 Nota adicional 12 Poor Law e a organização do trabalho Nenhuma pesquisa foi feita ainda em relação às implicações mais amplas do sistema Speenhamland suas origens seus efeitos e as razões que levaram à sua descontinuidade abrupta Eis aqui alguns dos pontos envolvidos 1 Em que extensão a Speenhamland foi uma medida de guerra Do ponto de vista estritamente econômico a Speenhamland não pode ser considerada verdadeiramente uma medida de guerra como se afirma muitas veze Dificilmente os contemporâneos associavam a condição dos salários a uma emergência de guerra Na medida em que houve um aumento notório nos salários o movimento já começara antes da guerra A Carta Circular de Arthur Young de 1795 destinada 328 a apurar os efeitos do fracasso das colheitas nos preços do trigo continha ponto 1 esta questão Qual foi o aumento se é que houve no pagamento dos trabalhadores agrícolas em comparação com o período anterior Caracteristicamente seus correspo dentes não atribuíram qualquer significado definido à frase período anterior referências alcançavam um período de três a cinqüenta anos Elas incluíam os res períodos de tempo 3 anos J Boys p 97 34 anos J Boys p 90 10 anos Relatórios de Shropshire Middlesex Cambridgeshire 1015 anos Sussex e Hampshire 1015 anos E Harris 20 anos J Boys p 86 3040 anos William Pitt 50 anos Rev J Howlerr Ninguém estabeleceu o período em dois anos duração da Guerra Francesa que havia começado em fevereiro de 1793 Com efeito nenhum correspondente mencionou sequer a guerra Incidentalmente a forma habitual de tratar do aumento do pauperismo causado por uma colheita má e condições adversas de clima e que resultavam em desemprego consistia em 1 subscrições locais de donativos e distribuição gratuita ou a preços reduzidos de alimentos e combustível 2 arranjar empregos Os salários não eram normalmente afetados durante uma emergência similar em 17881789 conseguiuse arranjar mais empregos locais mas com salários mais baixos do que as taxas normais Cf J Harvey Worcestershire emAnn of Agr vol xn p 1321789 Também E Holrnes Cruckton lc p196 Presumiuse não obstante com uma certa boa vontade que a guerra exerceu pelo menos uma influência indireta na adoção do recurso da Speenhamland De fato duas fraquezas do sistema de mercado que se difundia rapidamente vinham sendo agravadas pela guerra e contribuíam para a situação a partir da qual surgiu a Speenhamland 1 a tendência dos preços do trigo que flutuarem 2 os efeitos deletérios que os tumultos acarretavam nessas flutuações O mercado do trigo só recentemente liberado não podia suportar a tensão da guerra e as ameaças de bloqueio E nem o mercado do trigo estava à prova do pânico causado pelo hábito dos tumultos que assumiam agora uma importância sinistra Sob o chamado sistema regulativo o tumulto ordenado era visto pelas autoridades centrais mais ou menos como um indicador de escassez local que deveria ser tratado com brandura agora ele era denunciado como uma causa da escassez e como um perigo econômico para toda a comunidade não apenas para os pobres Arthur Young publicou um alerta no seu Conseqüências dos tumultos devidos aos altos preços dos produtos alimentícios e Hannah More ajudou a divulgar opiniões semelhantes em um dos seus poemas didáticos intitulado The Riot or Half a loaf is better than no bread O tumulto ou metade de um pão é melhor que nenhum para ser cantado com a melodia de A Cobbler there was Sua resposta às donas de casa apenas colocou em rima aquilo que Young expressara como diálogo fictício Ficaremos quietos até morrer de fome Certamente que não vocês devem reclamar mas reclamar e agir de maneira 329 tal a não agravar o próprio mal ele insistia que não havia o menor perigo de inaninição desde que fiquemos livres dos tumultos Havia bons motivos de preocupação pois o abastecimento do trigo era muito sensível ao pânico Além disso a Revolução Francesa dava uma conotação ameaçadora até mesmo aos tumultos ordenados Embora o receio de um aumento de salários fosse sem dúvida a causa econômica da Speenhamland podese dizer que no que concerne à guerra as implicações da situação eram muito mais sociais e políticas do que econômicas 2 Sir William Young e o relaxamento do Act of Settlement Duas medidas incisivas da Poor Law datam de 1795 a Speenhamland e o relaxamento da servidão paroquial É difícil acreditar que houve aqui uma simples coincidência No que diz respeito à mobilidade do trabalho o resultado dessas medidas foi contraditório até certo ponto Enquanto a última tornou mais atrativo para o trabalhador sair em busca de emprego a primeira fez disso um imperativo menos premente Nos termos convenientes de empurrar e puxar às vezes utilizados nos estudos da migração enquanto o puxar do local de destino aumentava o empurrar da aldeia natal diminuía O perigo de um deslocamento da mãodeobra rural em grande escala como resultado da revisão da lei de 1662 foi sem dúvida mitigado pela Speenhamland Do ângulo da administração da Poor Law as duas medidas eram francamente complementares O relaxamento da lei de 1662 envolvia um risco que essa lei se destinava a evitar isto é a inundação das paróquias melhores pelos pobres Isto teria realmente acontecido se não fosse a Speenhamland Os contemporâneos fizeram poucas referências a respeito o que não é de surpreender quando se recorda que a própria lei de 1662 foi promulgada praticamente sem discussão pública Todavia a convicção devia estar presente na mente de Sir William Young quando patrocinou por duas vezes as duas medidas em conjunto Em 1795 ele defendeu a emenda do Act of Settlement e foi também o impulsionador do projeto de 1796 através do qual o princípio da Speenhamland foi incorporado à lei Numa ocasião anterior em 1788 ele já havia pedido a decretação das duas medidas mas sem sucesso Ele adiara a revogação do Act of Settlement praticamente nos mesmos termos que em 1795 mas patrocinou ao mesmo tempo uma medida de assistência aos pobres que propunha estabelecer um salário compatível com o nível de vida dois terços desse salário seriam custeados pelo empregador e um terço pelos impostos Nicholson History of the Poor Laws vol II Todavia foi preciso ocorrer mais um fracasso nas colheitas além da Guerra Francesa antes que esses princípios prevalecessem 3 Efeitos dos salários urbanos elevados sobre a comunidade rural O puxar da cidade provocou uma elevação nos salários rurais e ao mesmo tempo tendeu a esvaziar o campo da sua reserva de mãodeobra agrícola Dessas duas calamidades estreitamente ligadas a última era a mais significativa A existência de uma reserva de mãodeobra adequada era vital para a indústria agrícola que precisava de mais braços na primavera e em outubro do que durante os meses fracos do inverno Ora numa sociedade tradicional de estrutura orgânica a disponibilidade dessa reserva de mãodeobra não é simplesmente um caso de nível salarial mas sim da estrutura institucional que determina o status da parte mais pobre da população Em quase todas as sociedades conhecidas encontramos disposições legais ou costumeiras que mantêm os trabalhadores rurais à disposição do proprietário de terra para emprego no auge da demanda 330 Eis aqui o ponto crítico da situação criada na comunidade rural pela elevação dos salários urbano quando o status cedeu lugar ao contractus Antes da Revolução Industrial bana importantes reservas de mãodeobra no campo a indústria doméstica mantinha o homem ocupado no inverno e disponível para os trabalhos nos campos de sua mulher durante a primavera e o outono O Act of Settlement praticapunha ao pobre a servidão paroquial tornandoo dependente portanto dos fazeodeir os locais Havia ainda diversas outras formas pelas quais a Poor Law transva a mãodeobra residente em trabalhador maleável como o imposto do trabalho recrutamento ou o sistema de rodízio Pelos regulamentos das várias Houses of Industry um indigente podia ser castigado não só pelo arbítrio dos dirigentes mas até em segredo Às vezes as pessoas que procuravam assistência podiam ser detidas e encaminhadas ao albergue se as autoridades que tinham o direito de entrar no local de recolhimento durante o dia achassem que ele passava necessidades e devia ser assistido 31 Geo III C 78 A taxa de mortalidade desses albergues era assustadora Acrescentemos a isto as condições do campônio da fronteira norte que era pago em espécie e obrigado a ajudar no campo em qualquer ocasião assim como as múltiplas dependências implícitas na situação do agregado e as formas precárias da posse da terra por parte dos pobres e aí então se pode avaliar em que medida um exército de reserva latente de mãodeobra dócil estava à disposição dos empregadores rurais Assim à parte o tema salarial havia o tema da manutenção de uma mãodeobra agrícola de reserva satisfatória A importância relativa desses dois termos pode ter variado em diferentes períodos Enquanto a introdução da Speenhamland estava intimamente ligada ao receio dos fazendeiros em relação aos aumentos salariais e enquanto a rápida difusão do sistema de abonos durante os anos posteriores à depressão agrícola depois de 1815 foi determinada provavelmente pela mesma causa a insistência quase unânime da comunidade agrícola no início da década de 1930 sobre a necessidade de manter o sistema de abonos se deveu não ao medo dos aumentos salariais mas à preocupação quanto a um abastecimento satisfatório da mãodeobra em disponibilidade Todavia essa última consideração não devia estar afastada da mentalidade desses fazendeiros em qualquer época principalmente durante o longo período de prosperidade excepcional 17921813 quando o preço médio do trigo estava em ascensão e superava em muito o aumento do preço do trabalho A preocupação permanente subjacente à Speenhamland não era quanto aos salários e sim quanto ao suprimento de mãodeobra Pode parecer um tanto artificial tentar distinguir entre esses dois conjuntos de motivações uma vez que um aumento nos salários deveria atrair um maior fornecimento de mãodeobra Em alguns casos porém existe prova positiva a respeito de qual das duas preocupações era mais importante para os fazendeiros Primeiro existe ampla evidência de que mesmo no caso do pobres residentes os fazendeiros se mostravam hostis a qualquer forma de emprego extra que diminuísse a disponibilidade do trabalhador para um emprego agrícola ocasional Uma das testemunhas do Relatório de 1834 acusava os residentes pobres de pescarem arenques e cavalas e ganharem uma libra por semana enquanto suas famílias ficam aos cuidados da paróquia Quando regressam são geralmente enviados à prisão mas eles não se importam enquanto podem sair outra vez para fazer esse trabalho bem pago p 33 É por isto reclama a mesma testemunha que os fazendeiros muitas vezes não 331 conseguem um número suficiente de trabalhadores para o trabalho da primavera e de outubro Relatório de Henry Stuart Apêndice A Parte I p 334a Em segundo lugar havia a questão crucial dos loteamentos Os fazendeiros eram unânimes em afirmar que somente um pedaço de terra próprio manteria um homem e sua farrúlia afastado dos impostos assistenciais Entretanto nem mesmo o encargo desses impostos induziIosia a concordar com qualquer forma de loteamento que tornasse os pobres residentes menos dependentes do trabalho agrícola ocasional Este ponto merece atenção Em 1833 a comunidade agrícola se colocou solidamente a favor da manutenção da Speenhamland Citamos alguns trechos do relatório dos Poor Law Commissioners O sistema de abonos significava mãodeobra barata colheitas mais expeditas Power Sem o sistema de abonos os fazendeiros talvez não pudessem continuar a cultivar o solo Cowell Os fazendeiros gostam que seus homens sejam pagos através do livro de pobres U Mann Não acredito que os grandes fazendeiros em particular queiram vêIos os impostos reduzidos Enquanto os impostos estão aí eles podem conseguir quantos braços extras queiram e quando começa a chover eles os devolvem novamente à paróquia testemunho de um fazendeiro Os membros do conselho paroquial são avessos a qualquer medida que torne o trabalhador independente da assitência paroquial pois esta mantendose dentro dos seus limites o tem sempre sob as suas ordens quando um trabalho urgente o exige Eles declaram que salários altos e trabalhadores livres iriam esmagáI os Pringle Opunhamse obstinadamente a todas as propostas de conceder loteamentos aos pobres o que redundaria na independência deles Estes lotes que poderiam salváIos da miséria e mantêIos com decência e autorespeito darIhesia também a independência retirandoos das fileiras do exército de reserva exigido pela indústria agrícola Majendie um defensor dos loteamentos recomendava lotes de 14 de acre pois qualquer coisa acima disso deixaria os ocupantes da terra temerosos de tornar os trabalhadores independentes Power outro partidário dos loteamentos confirma esta opinião De uma forma geral os fazendeiros objetam contra a introdução dos loteamentos disse ele Eles se ressentem de partilhar o que possuem têm que ir muito mais longe para conseguir adubo e objetam contra a crescente independência dos seus trabalhadores Okeden propôs loteamentos de 116 de acre pois diz ele isto preencheria exatamente o tempo disponível da mesma forma que a roca e o fuso o tear e as agulhas de tricô usadas na atividade plena da indústria doméstica familiar Tudo isto deixa pouca margem de dúvida a respeito da verdadeira função do sistema de abonos do ponto de vista da comunidade agrícola que era assegurar uma reserva agrícola de pobres residentes disponível em qualquer oportunidade A propósito foi assim que a Speenhamland criou uma aparência de população rural excedente quando na realidade não havia nenhuma 4 O sistema de abonos nas cidades industriais A Speenharnland foi uma medida destinada basicamente a aliviar as dificuldades rurais Isto não implicava uma restrição às aldeias pois as cidadesmercado também pertenciam ao campo No início da década de 1930 na área típica da Speenharnland a maioria das cidades introduzira o sistema de abonos propriamente dito O condado de Hereford por exemplo classificado como bom do ponto de vista de excedente populacional revelou que seis entre oito cidades seguiam o método da Speenhamland 332 quatro definitivamente quatro provavelmente enquanto o Sussex mau mostrava que das doze cidades relacionadas três não seguiam o método Speenharnland e nove o seguiam no sentido estrito do termo A situação era muito diferente nas cidades industriais do norte e do nordeste Até 1834 o número de pobres dependentes era consideravelmente menor nas cidades industtiais do que no campo onde mesmo antes de 1795 a proximidade das manufaturas tendia a aumentar muito o número de indigentes Em 1789 o Rev John Howien argumentava convincentemente contra o erro popular de considerar a proporção de pobres nas cidades grandes e nas cidades manufatureiras populosas maior do que nas simples paróquias pois o caso é exatamente o oposto Annals ar Agriculture vol XI p 6 1789 Não se conhece infelizmente a situação exata das novas cidades industriais A Poor Law Commissioners parecia perturbada pelo perigo supostamente iminente da difusão dos métodos Speenharnland às cidades manufatureiras Reconheciase que os condados nortistas estão menos infectados por ele mas afirmavase ainda que mesmo nas cidades ele era utilizado em grau acentuado Os fatos não o comprovam É verdade que em Manchester ou Oldham se concedia assistência ocasional a pessoas em boa saúde e pleno emprego Em Preston numa reunião de pagadores de impostos assim escreveu Henderson um indigente foi citado como tendo seu salário reduzido de uma libra para dezoito shillings semanais depois que ingressou na paróquia Os distritos de Salford Padiham e Ulverston também foram classificados como praticantes regulares do método do abono salarial O mesmo se refere a Wigan no que concerne aos tecelões e fiandeiros Em Nottingham as meias eram vendidas abaixo do preço de custo com lucro para o fabricante obviamente em função dos subsídios salariais pagos pelos impostos Henderson reportandose a Preston já previa que esse sistema nefasto se insinuaria e aliciaria os interesses privados em sua defesa Segundo o relatório da Poor Law Commissioners o sistema prevalecia menos nas cidades apenas porque os capitalistas manufatureiros constituem uma pequena proporção dos pagadores de impostos e conseqüentemente têm menos influência nos conselhos paroquiais do que os fazendeiros no campo Todavia isto parece ter ocorrido a curto prazo a longo prazo é provável que outros motivos passaram a prevalecer contra a aceitação geral do sistema de abono por parte dos empregadores industriais Um deles foi a ineficiência da mãodeobra indigente A indústria de algodão funcionava principalmente à base do trabalho por peças ou trabalhotarefa como era chamado Ora mesmo na agricultura os pensionistas e os ineficientes da paróquia trabalhavam tão mal que 4 ou 5 deles correspondiam a um na tarefatrabalho Select Committee on Laborers Wages H of C 4 VI 1824 p 4 O relatório da Poor Law Commissioners observava que o trabalho por peça podia permitir a utilização do método Speenharnland sem destruir necessariamente a eficiência do trabalhador manufatureiro o fabricante podia obter mãodeobra realmente barata O fato porém é que os baixos salários do trabalhador agrícola não implicavam necessariamente em mão deobra barata pois a ineficiência do trabalhador podia pesar mais para o patrão do que o baixo preço da sua mãodeobra Um outro fator que fazia o entrepreneur se voltar contra o sistema Speenharnland era o perigo dos competidores que podiam produzir a um custosalário consideravelmente mais baixo em função do abono salarial Esta ameaça não perturbava o fazendeiro 333 que vendia para um mercado irrestrito mas podia perturbar muito o proprietário da fábrica urbana O relatório da P L C argumentava que um fabricante Macclesfield pode se encontrar em situação de insolvência e arruinarse em conseqüência da má administração da Poor Law em Essex William Cunningham viu a importância do decreto de 1834 principalmente no seu efeito nacionalizante sobre a administração da Poor Law removendo um sério obstáculo no caminho do desenvolvimento dos mercados nacionais Uma terceira objeção à Speenharnland a que talvez tivesse maior peso nos círculos capitalistas foi a sua tendência de afastar a massa vasta e inerte da mãode obra redundanteRedford do mercado de trabalho urbano No final da década de 1920 era grande a demanda de mãodeobra por parte dos fabricantes urbanos Os sindicatos profissionais de Doherty deram origem a uma inquietação em grande escala este foi o início do movimento owenita que levou às maiores greves e lockouts que a Inglaterra já havia experimentado Do ângulo dos empregadores portanto três fortes argumentos atuaram contra a Speenhamland em última instância seu efeito deletério sobre a produtividade do trabalho sua tendência a criar custos diferenciais entre várias partes do país seu estímulo dos poços estagnados de mãodeobra Webb no campo sustentando o monopólio da mãodeobra dos pequenos trabalhadores urbanos Nenhuma dessas condições importaria muito ao empregador individual ou até mesmo a um grupo local de empregadores Elas podiam ser superadas facilmente pelas vantagens do baixo custo da mãodeobra não apenas para garantir lucros como também para ajudáIas a competir com os fabricantes de outras cidades Todavia os entrepreneurs como classe teriam opinião muito diferente no decorrer do tempo quando compreenderam que aquilo que beneficiava o empregador isolado ou grupos de empregadores constituía um perigo para eles coletivamente De fato foi a ampliação do sistema de abono às cidades industriais nortistas no início da década de 1930 embora de forma atenuada que consolidou as opiniões contra a Speenhamland e levou a uma reforma em escala nacional A evidência aponta para uma política urbana dirigi da mais ou menos conscientemente para a formação de um exército industrial de reserva nas cidades principalmente para poder fazer face às agudas flutuações da atividade econômica Nesse sentido não havia muita diferença entre cidade e campo Assim como as autoridades da aldeia preferiam os impostos altos a salários altos as autoridades urbanas não estavam dispostas a devolver o indigente nãoresidente a seu local de origem Havia uma espécie de competição entre empregadores rurais e urbanos pela partilha do exército de reserva Foi somente durante a severa e prolongada depressão em meados da década de 1940 que se tornou impraticável favorecer a reserva de mão deobra à custa dos impostos Mesmo assim os empregadores rurais e urbanos se comportaram de modo semelhante a ampla remoção dos pobres das cidades industriais teve seu paralelo no esvaziamento da aldeia por parte dos proprietários de terra com o objetivo em ambos os casos de diminuir o número de pobres residentes cf Redford p 111 5 O primado da cidade contra o campo De acordo com nosso pressuposto a Speenharnland foi um movimento de proteção da comunidade rural em face da ameaça representada por um ascendente nível salarial urbano Isto envolve o primado da cidade contra o campo no que diz respeito 334 ao ciclo comercial Este pode ter sido o caso em pelo menos um exemplo o da depressão de 18371845 Uma investigação estatística cuidadosa feita em 1847 revelou que a depressão começou nas cidades industriais do noroeste depois se espalhou para os condados agrícolas mas a recuperação destes só ocorreu depois das cidades industriais As cifras revelaram que a pressão que caiu primeiro sobre os distritos manufatureiros só foi retirada dos distritos agrícolas por último Os distritos manufatureiro eram representados na investigação pelo Lancashire e o West Riding de Yockshire com uma população de 201000 em 584 Poor Law Unions enquanto os di rriros agrícolas eram formados por Northumberland Norfolk Suffolk Cambridgeshire Bucks Herts Berks Wilts e Devon com uma população de 208000 igualmente distribuída em 584 Poor Law Unions Nos distritos manufatureiros a reação começou em 1842 com uma diminuição no ritmo de aumento do pauperismo de 2937 para 1672 seguido por um decréscimo positivo em 1843 de 2980 em 1844 de 1526 e em 1845 de mais 1224 Num contraste marcante com esta situação a reação nos distritos agrícolas só começou em 1845 com um decréscimo de 90800 Em cada um dos casos foi calculada a proporção de despesa per capita da Poor Law e computada para cada condado e ano separadamente UT Danson Condition of the People of the LlK 1839 1847oum of Stat Soc vol XI p 101 1848 6 Despovoamento e superpopulação do campo A Inglaterra foi o único país da Europa com uma administração uniforme do trabalho na cidade e no campo Os estatutos de 1563 ou de 1662 eram obrigatórios tanto nas paróquias rurais como urbanas e os juízes de paz administravam a lei da mesma forma em todo o país Isto se deveu tanto à industrialização prematura do campo como à subseqüente industrialização dos sítios urbanos Em conseqüência não houve uma ruptura administrativa entre a organização do trabalho na cidade e no campo como ocorreu no continente Isto explica também a peculiar facilidade com que a mãodeobra parecia fluir da aldeia para a cidade e viceversa Evitaramse assim dois dos aspectos mais calamitosos da demografia continental isto é o súbito despovoamento do campo pela migração da aldeia para a cidade e a irreversibilidade desse processo de migração que acarretou o desenraizamento daquelas pessoas que foram trabalhar na cidade Landflucht foi o nome dado a esse esvaziamento cataclísmico do campo terror da comunidade agrícola na Europa Central desde a segunda metade do século XIX Na Inglaterra ao contrário encontramos algo parecido com uma oscilação da população entre o emprego urbano e rural Era como se grande parte da população estivesse em estado de suspensão uma circunstância que tornava muito difícil se não impossível o movimento de migração interna Devemos relembrar ainda a configuração do país com seus portos ubíquos que tornava a migração a longa distância praticamente desnecessária e então se torna perfeitamente compreensível o fácil ajustamento da Poor Law às exigências da organização do trabalho Muitas vezes a paróquia rural pagava assistência externa a indigentes nãoresidentes que se empregavam numa cidade não muito distante enviando o dinheiro da assistência a seu local de domicílio Por outro lado as cidades manufatureiras também pagavam com freqüência a assistência aos pobres residentes não estabelecidos na cidade Remoções em massa como as efetuadas pelas autoridades urbanas em 18411843 foram muito excepcionais Das 12628 pessoas pobres removidas nessa ocasião de 19 cidades manufatureiras do norte somente 1 tinha sua localização em nove distritos agrícoIas 335 de acordo com Redford Se os nove distritos agrícolas típicos selecionados por Danson em 1848 são substituídos pelos condados de Redford o resultado varia só ligeiramente ie de 100 para 13 Como Redford demonstrou ocorreu muito pouca migração a longa distância e grande parte do exército de reserva do trabalho foi conservada à disposição dos empregadores através dos métodos assistenciais liberais na aldeia e na cidade manufatureira ão é de admirar que ocorresse uma superpopulação simultânea tanto na cidade como no campo enquanto houve de fato ocasiões em que os fabricantes do Lancashire no auge da demanda tinham que importar trabalhadores irlandeses em grande número e os fazendeiros diziam enfaticamente que seriam incapazes de fazer suas colheitas em tempo se os indigentes da aldeia fossem induzidos a emigrar 336 FOLHA EM BRANCO 337 O Autor Karl Polanyi nasceu em Viena a 21 de outubro de 1886 de pais húngaros Estudou nas universidades de Budapeste e Viena formandose em filosofia e em direito Começou a praticar nos tribunais de Budapeste em 1912 mas com a eclosâo da Primeira Guerra Mundial foi servir como capitão no exército austrohúngara Terminado o conflito estabeleceuse em Viena onde logo se tornou conhecido como escritor e jornalista De 1924 até 1933 fez parte do corpo editorial do Oesterreichische Valkswirt o mais importante semanário financeiro de Viena onde escrevia sobre assuntos ligados à economia e à política internacional Com a ascensão do fascismo Polanyi teve de demitirse do jornal e em 1933 emigrou com sua família para Londres Tornouse cidadão britânico e lecionou em cursos de extensão oferecidos pelas universidades de Oxford e de Londres a alunos pertencentes à classe operária Durante esse período viajou freqüentemente para os Estados Unidos fazendo pesquisas e dando conferências até que foi convidado em 1947 a ensinar História Econômica Geral na Universidade de Colúmbia Lá permaneceu até 1953 quando se aposentou A aposentadoria entretanto não o levou a abdicar das suas atividades de pesquisa desenvolvidas com entusiasmo até quase o momento de sua morte em 23 de abril de 1964 numa casa de campo nos arredores de Toronto Canadá Entre os principais trabalhos de Karl Polanyi incluemse Trade and Market in the Early Empires Economies in Histary and Theary trabalho que reúne contribuições de diversos autores organizado por Polanyi juntamente com Conrad Arensberg e Harry Pearson Chicago Free Press 1957 Dahamey and the Save Trade An Analysis af an Archaic Economy com Abraham Rotstein Seattle Universiry ofWashington Press 1966 Primitive Archaic and Madern Economies Essays af Kar Palanyi organizado por G Dalton Nova York Doubleday 1968 The Livelihaad af Man organizado por Harry Pearson Nova York Academic Press 1977 RESENHA CRÍTICA TEXTO A GRANDE TRANSFORMÇÃO AS ORIGENS DA NOSSA ÉPOCA AUTOR KARL POLANYI Segue abaixo uma resenha crítica somente do capitulo VI do livro A Grande Transformação As Origens da Nossa Época de Karl Polanyi O título do capítulo a ser abordado é O mercado auto regulável e as mercadorias fictícias trabalho terra e dinheiro O capítulo faz considerações sobre a economia do mercado relacionando sua auto regulagem Apresenta contextos históricos assim como referências aos fatores de produção para indicar que o mercado deve sozinho organizar a economia Segundo o texto a economia de mercado seria um sistema econômico controlado onde os fatores de produção e a distribuição seriam regulados pela auto regulagem na expectativa de conseguir a maximização dos lucros De acordo ainda com esse pensamento a auto regulagem traria o equilíbrio ao mercado relacionando o preço com a demanda e a oferta A auto regulação indica que todos os fatores produtivos seriam com objetivo de vender e que todos os rendimentos seriam providos disso Os preços do mercado formam diversos tipos de rendas A renda do preço das mercadorias a renda dos juros para quem empresta o dinheiro a renda do aluguel pelo uso da terra e a renda do salário equivalente a compra da força de trabalho A formação do mercado não deve haver interferência e que suas vendas deverão proporcionar os rendimentos De acordo com o texto para o andamento do mercado não deve haver intervenção monetária nem política que influencie o mercado preço demanda ou oferta Devese deixar o mercado agir por conta própria Neste cenário o texto procura fazer comparações históricas a partir do Sistema Feudal relações mercantilistas e com a Revolução Francesa e Inglesa na tentativa de fazer o leitor compreender a ideia proposta sobre o mercado como único organizador do sistema econômico Para que o mercado funcione com auto regulagem devese haver a separação institucional da sociedade nas esferas políticas e econômicas Não intervir no mercado não significa uma sociedade sem regras econômicas É necessária uma organização do Estado na economia porém somente para manter as normas e o bom funcionamento sem necessariamente realizar interferência política dentro da economia Sendo assim definese como fundamentais para a indústria o trabalho terra e o dinheiro Embora não sejam mercadorias também devem ser organizados pelo mercado Nenhum deles é produzido para vendas mas suas funções especificas são a de colaborar para o funcionamento do mercado sem intervenção do Estado A Revolução Industrial trouxe várias mudanças no sistema produtivo e ainda mais na sociedade como um todo A maquinação do processo de produção proporcionou mudanças sociais impactantes tanto no mercado quanto na população Com a Revolução Industrial o trabalho a terra e o dinheiro passaram a ser vistos como mercadoria onde estariam disponíveis para venda Destaca se nessa linha de venda a mãodeobra onde as empresas pagavam pelo trabalho do homem dentro do sistema produtivo fazendo com que a sociedade humana seja considerada um acessório ao sistema econômico RESENHA CRÍTICA TEXTO A GRANDE TRANSFORMÇÃO AS ORIGENS DA NOSSA ÉPOCA AUTOR KARL POLANYI Segue abaixo uma resenha crítica somente do capitulo VI do livro A Grande Transformação As Origens da Nossa Época de Karl Polanyi O título do capítulo a ser abordado é O mercado auto regulável e as mercadorias fictícias trabalho terra e dinheiro O capítulo faz considerações sobre a economia do mercado relacionando sua auto regulagem Apresenta contextos históricos assim como referências aos fatores de produção para indicar que o mercado deve sozinho organizar a economia Segundo o texto a economia de mercado seria um sistema econômico controlado onde os fatores de produção e a distribuição seriam regulados pela auto regulagem na expectativa de conseguir a maximização dos lucros De acordo ainda com esse pensamento a auto regulagem traria o equilíbrio ao mercado relacionando o preço com a demanda e a oferta A auto regulação indica que todos os fatores produtivos seriam com objetivo de vender e que todos os rendimentos seriam providos disso Os preços do mercado formam diversos tipos de rendas A renda do preço das mercadorias a renda dos juros para quem empresta o dinheiro a renda do aluguel pelo uso da terra e a renda do salário equivalente a compra da força de trabalho A formação do mercado não deve haver interferência e que suas vendas deverão proporcionar os rendimentos De acordo com o texto para o andamento do mercado não deve haver intervenção monetária nem política que influencie o mercado preço demanda ou oferta Devese deixar o mercado agir por conta própria Neste cenário o texto procura fazer comparações históricas a partir do Sistema Feudal relações mercantilistas e com a Revolução Francesa e Inglesa na tentativa de fazer o leitor compreender a ideia proposta sobre o mercado como único organizador do sistema econômico Para que o mercado funcione com auto regulagem devese haver a separação institucional da sociedade nas esferas políticas e econômicas Não intervir no mercado não significa uma sociedade sem regras econômicas É necessária uma organização do Estado na economia porém somente para manter as normas e o bom funcionamento sem necessariamente realizar interferência política dentro da economia Sendo assim definese como fundamentais para a indústria o trabalho terra e o dinheiro Embora não sejam mercadorias também devem ser organizados pelo mercado Nenhum deles é produzido para vendas mas suas funções especificas são a de colaborar para o funcionamento do mercado sem intervenção do Estado A Revolução Industrial trouxe várias mudanças no sistema produtivo e ainda mais na sociedade como um todo A maquinação do processo de produção proporcionou mudanças sociais impactantes tanto no mercado quanto na população Com a Revolução Industrial o trabalho a terra e o dinheiro passaram a ser vistos como mercadoria onde estariam disponíveis para venda Destacase nessa linha de venda a mãodeobra onde as empresas pagavam pelo trabalho do homem dentro do sistema produtivo fazendo com que a sociedade humana seja considerada um acessório ao sistema econômico
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A Grande TRANSFORMAÇÃO As origens da nossa época Karl Polanyi Uma obra vital para a melhor compreensão do mundo em que vivemos 2 A Grande TRANSFORÇÃO As origens da nossa época TRADUÇÃO Fanny Wrobel Revisão Técnica Ricardo Benzaquen de Araújo CPDOCFGV e PUCRJ 3 A Grande TRANSFORMAÇÃO Karl Polanyi 2ª Ed EDITORA CAMPUS UM DOS 100 LIVROS MAIS IMPORTANTES DO SÉCULO FOLHA DE S PAULO 4 Do original The Great Transfarmatian Karl Polonyi Tradução autorizado do idioma inglês do edição publicado por Rinehart Company Copyright 1944 Korl Polanyi Copyrigh 1972 Marie Polanyi 2000 Editora Compus Ltda A grande transformação as origens de nosso época Karl Polanyi tradução de Fanny Wrabel 2 ed Ria de Janeiro Compus 2000 1 História econômica 175019182 História social Economia Histório I Título P816g 2 ed 000425 ClPBrasil Calalagaçãanafanle Sindicoto Nacional dos Editores de livros RJ 5 À minha esposa muito Amada Ilona Duezynska Dedico este livro que só foi possível graças à sua ajuda e à sua crítica 6 A Grande TRANSFORMAÇÃO Análise minuciosa e criativamente a formação da economia capitalista de mercado Desvenda os processos através dos quais o mercado separouse das demais instituições sociais até se tornar uma esfera autônoma auto regulável que pretende dominar o resto da sociedade pela transformação do trabalho da terra e do dinheiro em mercadoria Polanyi baseia as suas conclusões em um estudo da Inglaterra na época da Revolução Industrial contrastandoa com sociedades primitioas e arcaicas li em uma análise comparativa que enfatiza o caráter singular e destrutiuo da moderna economia de mercado Integrando contribuições da História da Antropologia e da Economia Política este livro é um trabalho magistral constituindose em leitura indispe vel para todos os interessados em Ciências Sociais 7 AGRADECIMENTOS Este livro foi escrito na América do Norte durante a Segunda Guerra Mundial Na verdade porém ele começou e terminou na Inglaterra onde o autor foi ProfessorConferencista da Extramural Delegacy da Universidade de Oxford e das instituições correspondentes da Universidade de Londres Sua tese principal foi desenvolvida durante o ano acadêmico 19391940 em conjunto com seu trabalho nos Cursos Tutoriais organizados pela Associação Educacional dos Trabalhadores no Morley College Londres em Canterbury e em Bexhill A história deste livro é a história de amizades generosas E grande a dívida para com os amigos ingleses do autor principalmente Irene Grant a cujo grupo esteve associado Estudos em comum ligaramno a Felix Schafer de Viena um economista atualmente em Wellington Nova Zelândia Na América do Norte John A Kouwenhoven ajudouo como verdadeiro amigo através da leitura e edição do original muitas das suas sugestões foram incorporadas ao texto Entre outros amigos que ajudaram contamse os colegas do autor em Bennington Horst Mendershausen e Peter F Drucker Este último e sua mulher foram uma fonte constante de encorajamento não obstante seu completo desacordo com as conclusões do autor A simpatia total do primeiro muito acrescentou a seus úteis conselhos O autor também deve agradecimentos a Hans Zeisel da Rutgers University por uma leitura cuidadosa A edição deste livro ficou inteiramente a cargo de Kouwenhoven com a ajuda de Drucker e Mendershausen e o autor se sente profundamente grato por este fato de amizade Tem também uma dívida de gratidão com a Fundação Rockefeller pela bolsa de dois anos 19411943 que lhe foi concedida e que lhe permitiu complementar o livro no Bennington College Vermont em seguida a um convite que lhe foi feito por Robert D Leigh então presidente daquele colégio Os planos para esta obra foram feitos numa série de conferências públicas e num seminário ocorrido durante o ano acadêmico 19401941 As facilidades de pesquisa foram gentilmente cedidas pela Biblioteca do Congresso em Washington D C assim 8 como pela Biblioteca da Universidade de Colúmbia Nova York A todos eles devemos os nossos agradecimentos O Sr Polanyi não teve a oportunidade de dar os retoques finais no seu manuscrito antes de voltar à Inglaterra em época de guerra dispõese de muito pouco tempo em relação às datas de viagem e quando essa data é fixada não se pode adiáIa a belprazer Também não foi possível ao editor ou aos amigos do autor que supervisionaram a edição do livro consultálo devidamente através de correspondência ou telegrama pelos mesmos motivos de demoras e extravios em tempo de guerra Tivemos portanto que fazer um certo número de modificações e supressões nas anotações e algumas no texto sem a orientação ou a permissão do autor Apesar de a maioria delas terem sido feitas com a convicção racional da sua necessidade lamentamos dizer que algumas o foram à base da intuição J A K 9 APRESENTAÇÃO Este é um livro que torna todos os outros já editados sobre o assunto parecerem obsoletos ou desgastados Um acontecimento tão raro é um prodígio dos tempos Aqui numa hora crucial está uma nova compreensão da forma e do significado dos assuntos humanos O Sr Polanyi não se propõe a escrever a História ele a está reescrevendo Ele não acende uma vela para iluminar um dos seus cantos escuros e nem se dispõe possivelmente a tornáIa a escritura pública da sua fé pessoal Ao contrário com uma visão apurada e com conhecimento apresenta um novo enfoque sobre os processos e as revoluções de toda uma era de mudança jamais vista O objetivo imediato do Sr Polanyi é ressaltar o que faz com notável discernimento as implicações sociais de um sistema econômico particular a economia de mercado que atingiu a sua plenitude no século XIX Chegou a hora em que a sabedoria retrospectiva pode avaliáIa inteiramente pois como disse Aristóteles só podemos compreender a natureza de qualquer coisa quando ela alcança e supera a sua maturação Acontecimentos e processos teorias e ações surgem sob uma nova perspectiva Muito do que parece meramente episódico ao escritor comum da História se investe de um significado mais profundo muito do que parece apenas bizarro merece uma avaliação mais justa A redução do homem à mãodeobra e da natureza à terra sob o impulso da economia de mercado transforma a História em um drama profundo no qual a sociedade a protagonista acorrentada finalmente rompe seus grilhões Esta nova orientação sugerida em outras obras mas ainda não desenvolvida dá novas proporções a homens e idéias Tomemos por exemplo o Movimento Cartista e o espírito profético de Robert Owen Ou tomemos a famosa recomendação de Speenharnland como o Sr Polanyi mergulha muito mais profundamente no seu significado histórico Quão inteligível se torna o quadro dos juízes senhoriais ditando princípios de gabinete a uma força que nem eles nem os mais esclarecidos da sua época podiam ainda compreender Testemunhamos com uma nova compreensão a batalha das ideologias em torno da economia que crescia inexoravelmente alguns se opondo cegamente outros procurando retardar seus golpes mais impiedosos contra o tecido social outros ainda aplaudindo 10 cada um dos seus avanços sinceramente ou simploriamente Vemos a atuação de retaguarda dos defensores da antiga ordem o desconforto impotente dos mantenedores do Cristianismo tradicional o fácil triunfo dos economistas ortodoxos que conseguiam explicar tudo Entretanto a frente de batalha avança e deixa ruínas no seu caminho e as defesas apressadamente levantadas ruem perante ela Vemos como de uma nova libertação surge uma nova servidão e podemos medir o desafio que enfrenta a nossa própria época O Sr Polanyi deixa muito atrás tanto os dogmáticos de Karl Marx como os apólogos da reação Ele se preocupa com o processo econômico na civilização moderna mas não oferece qualquer doutrina de determinismo econômico Ao contrário ele nos oferece a análise penetrante de uma transformação histórica particular na qual a supressão de um sistema econômico por outro desempenha um papel decisivo Isto aconteceu não porque a relação econômica é sempre básica mas porque neste caso e apenas neste caso o sistema ideal na nova economia exigia uma abnegação impiedosa do status social do ser humano Habilmente ele menciona a situação colonial e as sociedades de povos primitivos invadidas industrialmente a fim de mostrar não o que esse sistema ideal significava para elas mas principalmente o que ele também importava para nós Os moinhos satânicos descartavam todas as necessidades humanas menos uma inexoravelmente eles começaram a triturar a própria sociedade em seus átomos Assim os homens tiveram que descobrir a sociedade Para o Sr Polanyi a última palavra é a sociedade O principal espectador da tragédia da Revolução Industrial foi convocado não pela insensibilidade e ganância dos capitalistas em busca de lucro embora isto registrasse uma grande desumanidade mas pela devastação social de um sistema incontrolado a economia de mercado Os homens não puderam compreender o que significava a coesão da sociedade O sacrário mais íntimo da vida humana foi despojado e violado Não se apreciou em todo o seu potencial o problema do controle social de uma mudança revolucionária filosofias otimistas o obscureceram filantropos sem visão conspiraram com interesses poderosos para escondêlo e a sabedoria da época ainda não havia nascido Entretanto ao apresentar este argumento o Sr Polanyi não está lançando olhares saudosos a algum passado mais feliz ele não está defendendo a causa da 11 reação Não há um caminho de volta e nenhuma solução poderá surgir na busca de tal caminho O que a nossa época precisa é a reafirmação pelas suas próprias condições e pela suas próprias necessidades dos valores essenciais da vida humana A tradição nos faltará e não trairá se confiarmos nela Não podemos abandonar o princípio da liberdade individual porém devemos recriálo Não podemos restaurar uma sociedade passada mesmo que a cortina da História esconda de nós os seus males temos que reconstruir a sociedade para nós mesmos aprendendo com o passado todas as lições e advertências que formos capazes de aprender Fazendo isto talvez possamos ter em mente também que a causa de todos os assuntos humanos está profundamente envolvida para ser totalmente desenrolada pelas mentes mais sábias Há sempre um ponto no qual temos que confiar em nossos valores atuantes de forma que as forças iminentes do mundo atual possam se libertar em novas direções para novos objetivos Um livro tão estimulante e tão profundo deve excitar controvérsias e ser questionado em vários pontos Alguns podem duvidar se o papel da economia de mercado foi tão absoluto se a lógica do sistema foi tão rigorosa e constrangedora por si mesma Eles podem não desejar ir tão longe quanto o autor quando num determinado ponto ele observa que as nações e os povos eram apenas bonecos numa exibição inteiramente além do seu controle Alguns poderão querer atribuir valorações diferentes às diferentes formas de proteção contra o mercado auto regulável e podem se sentir contrafeitos quandoo ordenador das tarifas e o legislador social parecem surgir como irmãos em armas E assim por diante Todavia todos terão que reconhecer seguramente a clara irrefutabilidade do argumento total Estamos agora num novo ponto vantajoso olhando para baixo após o terremoto para os templos arruinados dos nossos deuses queridos Vemos a fraqueza das fundações expostas talvez possamos aprender agora e de que maneira a reconstruir o tecido institucional de forma que ele possa suportar melhor os choques da mudança É de primordial importância hoje a lição que ele transmite àqueles que elaborarão a próxima organização internacional Pelo menos ele mostra que fórmulas liberais tais como paz mundial por meio do comércio mundial não são suficientes Se nos contentamos com tais fórmulas somos as vítimas de uma simplificação perigosa e ilusória 12 Nenhum sistema nacional ou internacional pode depender de reguladores automáticos Orçamentos equilibrados livre empresa comércio mundial câmaras internacionais de compensação e moedas ao par não garantirão uma ordem internacional Só a sociedade poderá garantiIa uma sociedade internacional também tem que ser descoberta E aqui também o tecido institucional deverá manter e controlar o esquema econômico das coisas Assim a mensagem deste livro não é apenas para o economista embora lhe transmita uma mensagem poderosa nem apenas para o historiador embora abra novas perspectivas nem apenas para o sociólogo embora lhe transmita um sentido mais profundo do que significa a sociedade nem apenas para o cientista político embora o ajude a reexpor antigas questões e avaliar antigas doutrinas ela se destina a cada homem inteligente que se preocupa em se aprimorar além do seu estágio atual de educação social a cada homem que se preocupa em conhecer a sociedade em que vive a crise por que passou e as crises que ora se avolumam Aqui ele poderá adquirir novos lampejos de uma fé mais profunda Aqui ele poderá aprender a olhar além das alternativas inadequadas que lhe são oferecidas habitualmente a do liberalismo que só vai até o ponto atual a do coletivismo total ou nenhum a da simples negação do individualismo pois todas elas tendem a fazer de algum sistema econômico desideratum básico e somente quando descobrimos o primado da sociedade a unidade coerente inclusive da interdependência humana é que podemos esperar transcender as perplexidades e as contradições de nossos tempos R M MacIver 13 SUMÁRIO Primeira Parte O sistema internacional 15 Capítulo 1 Cem anos de Paz 17 Capítulo 2 A década de 1920 conservadora A década de 193 revolucionária 36 Segunda Parte Ascensão e uqeda da economia de mercado 49 I O moinho satânico 49 Capítulo 3 Habitação versus progresso 51 Capítulo 4 Sociedades e sistemas econômicos 62 Capítulo 5 Evolução do padrão de mercado 76 Capítulo 6 O mercado autoregulável e as mercadorias fictícias trabalho terra e dinheiro 89 Capítulo 7 Speenhamland 1795 99 Capítulo 8 Antecedentes e conseqüências 109 Capítulo 9 Pauperismo e utopia 128 Capítulo 10 A economia política e a descoberta da sociedade 137 II Autoproteção da sociedade 159 Capítulo 11 Homem natureza e organização produtiva 161 Capítulo 12 O nascimento do credo liberal 166 Capítulo 13 O nascimento do credo liberal continuação o interesse de classe e a mudança social 184 Capítulo 14 Mercado e homem 198 Capítulo 15 Mercado e natureza 214 Capítulo 16 Mercado e organização produtiva 228 Capítulo 17 Autoregulação imperfeita 237 Capítulo 18 Forças de ruptura 246 14 Terceira Parte Transformação em progresso 259 Capítulo 19 Governo popular e economia de mercado 261 Capítulo 20 A história na engrenagem da mudança social 276 Capítulo 21 A liberdade numa sociedade complexa 289 Apêndice Notas sobre as fontes 302 1 O equilíbrio de poder como política lei histórica princípio e sistema 302 2 Cem anos de paz 306 3 Partese o fio dourado 307 4 Os balanços do pêndulo após a Primeira Guerra Mundial 308 5 Finanças e paz 308 6 Referências selecionadas à evolução do padrão mercado 313 7 Referências selecionadas à evolução do padrão de mercado 313 8 Literatura sobre Speenhamland 317 9 Speenhamland e Viena 322 10 Por que não o Whitbreads Bill 323 11 As duas nações de Disraeli e o problema das raças de cor 324 12 Nota adicional Poor Law e a organização do trabalho 327 O autor 337 Índice 339 15 PRIMEIRA PARTE O SISTEMA INTERNACIONAL 16 FOLHA EM BRANCO 17 1 CEM ANOS DE PAZ A civilização do século XIX ruiu Este livro se preocupa com as origens política e econômica desse acontecimento bem como com a grande transformação que daí decorreu A civilização do século XIX se firmava em quatro instituições A primeira era o sistema de equilíbrio de poder que durante um século impediu a ocorrência de qualquer guerra prolongada e devastadora entre as Grandes Potências A segunda era o padrão internacional do ouro que simbolizava uma organização única na economia mundial A terceira era o mercado autoregulável que produziu um bemestar material sem precedentes A quarta era o estado liberal Classificadas de um certo modo duas dessas instituições eram econômicas duas políticas Classificadas de outra maneira duas delas eram nacionais duas internacionais Entre si elas determinavam os contornos característicos da história de nossa civilização Dentre essas instituições o padrãoouro provou ser crucial sua queda revelouse a causa mais aproximada da catástrofe Por ocasião da sua derrocada a maior parte das outras instituições tinham sido sacrificadas num vão esforço para salváIa Todavia a fonte e matriz do sistema foi o mercado autoregulável Foi essa inovação que deu origem a uma civilização específica O padrãoouro foi apenas uma tentativa de ampliar o sistema doméstico de mercado no campo internacional o sistema de equilíbrio de poder foi uma super estrutura erigida sobre o padrãoouro e parcialmente nele fundamentada o estado liberal foi ele mesmo uma criação do rnercado auto regulável A chave para o sistema institucional do século XIX está nas leis que governam a economia de mercado 18 Nossa tese é que a idéia de um mercado autoregulável implicava uma rematada utopia Uma tal instituição não poderia existir em qualquer tempo sem aniquilar a substância humana e natural da sociedade ela teria destruído fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto Inevitavelmente a sociedade teria que tomar medidas para se proteger mas quaisquer que tenham sido essas medidas elas prejudicariam a autoregulação do mercado desorganizariam a vida industrial e assim ameaçariam a sociedade em mais de uma maneira Foi esse dilema que forçou o desenvolvimento do sistema de mercado numa trilha definida e finalmente rompeu a organização social que nela se baseava Uma tal explicação de uma das crises mais profundas na história do homem pode parecer demasiado simples Nada pareceria mais inepto do que tentar reduzir uma civilização sua substância e ethos a um número rígido de instituições selecionar uma delas como fundamental e passar a argumentar sobre a inevitável auto destruição da civilização em conseqüência de alguma qualidade técnica de sua organização econômica As civilizações como a própria vida resultam da interação de um grande número de fatores independentes os quais como regra não se reduzem a instituições circunscritas Na verdade procurar traçar o mecanismo institucional da queda de uma civilização pode parecer uma tarefa irrealizável Todavia é isto o que estamos nos propondo Ao fazêlo estamos conscientemente ajustando nosso objetivo à extrema singularidade do assunto A civilização do século XIX foi única de fato precisamente porque ela se centralizou num mecanismo institucional definido Nenhuma explicação poderá satisfazer se não levar em conta a rapidez do cataclisma Como se as forças da mudança estivessem sendo contidas durante um século uma torrente de acontecimentos se precipita sobre a humanidade Uma transformação social de alcance planetário é coroada por guerras de um tipo sem precedente nas quais uma série de estados entra em colapso e os contornos de novos impérios se delineiam num mar de sangue Entretanto esse fato de violência demoníaca é apenas sobreposto numa corrente rápida e silenciosa de mudança que engole o passado muitas vezes sem sequer uma marola na superfície Uma análise racional da catástrofe deve levar em conta tanto a ação tempestuosa como a tranqüila dissolução Este não é um trabalho histórico o que estamos buscando não é uma seqüência convincente de acontecimentos importantes mas uma explicação da sua orientação em termos de instituições humanas Sentimonos 19 pois à vontade em lidar com as cenas do passado com o único objetivo de lançar luz sobre assuntos do presente faremos analises detalhadas de períodos críticos e abandonaremos quase que por completo os períodos de tempo que os ligaram invadiremos o campo de diversas disciplinas perseguindo este simples objetivo Trataremos primeiro do colapso do sistema internacional Tentaremos mostrar que o sistema de equilíbrio de poder não poderia assegurar a paz uma vez fracassada a economia mundial sobre a qual repousava Isto responde pela forma abrupta com que a ruptura ocorreu a inconcebível rapidez da dissolução Entretanto se a queda da nossa civilização foi regulada pelo fracasso da economia mundial ela certamente não foi causada por ela Suas origens estão há mais de cem anos atrás na convulsão social e tecnológica a partir da qual surgiu na Europa Ocidental a idéia de um mercado autoregulável O fim dessa aventura ocorreu em nossa época ela encerra um estágio na história da civilização industrial Na parte final do livro trataremos do mecanismo que governou a mudança social e nacional em nossa época De um modo mais amplo acreditamos que a condição atual do homem pode ser definida em termos das origens institucionais da crise O século XIX produziu um fenômeno sem precedentes nos anais da civilização ocidental a saber uma paz que durou cem anos 1815 1914 Além da Guerra da Criméia um acontecimento mais ou menos colonial a Inglaterra a França a Prússia a Áustria a Itália e a Rússia estiveram em guerra uns com os outros apenas durante dezoito meses Computando as cifras comparativas dos dois séculos anteriores temos uma média de sessenta a setenta anos de grandes guerras para cada um Entretanto mesmo a mais violenta dentre as conflagrações do século XIX a Guerra Franco Prussiana de 18701871 terminou em menos de um ano e a nação derrotada teve condições de pagar uma soma sem precedentes como indenização de guerra sem que isto incidisse em qualquer perturbação para as moedas existentes Esse triunfo de um pacifismo pragmático certamente não foi o resultado de uma ausência de causas graves do conflito Alterações quase que contínuas nas condições internas e externas de nações poderosas e grandes impérios acompanharam esse cortejo conciliador Durante a primeira parte do século guerras civis intervenções revolucionárias e antirevolucionárias estavam na ordem do dia Na Espanha milhares de tropas sob a direção do Duque dAngoulème invadiram Cádiz na Hungria a revolução magiar ameaçou derrotar o próprio 20 imperador numa batalha regular e só foi vencida finalmente por um exército russo que lutou em solo húngaro Intervenções armadas nas regiões germânicas na Bélgica Polônia Suiça Dinamarca e Veneza marcaram a onipresença da Santa Aliança Durante a segunda metade do século foi instaurada a dinâmica do progresso o império otomano o egípcio e o xerifado ruiram ou oram desmembrados a China foi forçada a abrir suas portas ao estrangeiro por exércitos invasores e num assalto gigantesco o continente da África foi partilhado Simultaneamente duas potências assumem importância mundial os Estados Unidos e a Rússia A unidade nacional foi alcançada na Alemanha e na Itália Bélgica Grécia Rumânia Bulgária Sérvia e Hungria assumiram ou reassumiram seus lugares de estados soberanos no mapa da Europa Uma série quase incessante de guerras abertas acompanharam o trajeto da civilização industrial nos domínios das culturas ultrapassadas ou dos povos primitivos As conquistas militares da Rússia na Ásia Central as inúmeras guerras da Inglaterra na Índia e na África as explorações da França no Egito Argélia Túnis Síria Madagáscar Indochina e Sião levantaram entre as Potências questões que normalmente só seriam arbitradas pela força Entretanto cada um desses conflitos em particular foi circunscrito e numerosas outras situações de mudança violenta foram resolvidas pela ação conjunta ou amortecidas num compromisso tácito entre as Grandes Potências O resultado era o mesmo independendo da mudança dos métodos Enquanto na primeira parte do século o constitucionalismo foi banido e a Santa Aliança suprimiu a liberdade em nome da paz durante a outra metade e novamente em nome da paz as constituições foram impingidas a déspotas turbulentos por banqueiros de visão comercial Assim sob as formas variadas e ideologias mutáveis às vezes em nome do progresso e da liberdade às vezes pela autoridade do trono e do altar às vezes graças às bolsas de valores e aos livros de cheque às vezes por corrupção e suborno às vezes por argumentos morais e apelos iluministas às vezes à custa de bordoadas e de baionetas o resultado conseguido era sempre o mesmo e a paz foi preservada Esse acontecimento quase miraculoso foi conseqüência do equilíbrio do poder que aqui atingiu um resultado normalmente estranho a ele Pela sua natureza esse equilíbrio geralmente resulta em algo inteiramente diferente isto é sobrevivência das unidades de poder envolvidas De fato ele apenas postula que três ou mais unidades capazes de exercer poder atuarão sempre de forma a combinar o poder das unidades mais fracas contra qualquer incremento de poder do mais forte Na 21 esfera da história universal o equilíbrio de poder se preocupava com os estados cuja independência lhe convinha manter Entretanto esse objetivo só era atingido por guerras contínuas entre sócios mutáveis A prática dos antigos gregos ou das cidadesestado da Itália do norte constituem um bom exemplo foram as guerras entre grupos mutáveis de combatentes que mantiveram a independência desses estados durante longos períodos O mesmo princípio resguardou por mais de duzentos anos a soberania dos estados que formaram a Europa à época do Tratado de Münster e de Westpbalia 1648 Quando setenta e cinco anos mais tarde pelo Tratado de Utrecht os signatários declararam sua adesão formal a esse princípio eles o incorporaram a um sistema estabelecendo assim garantias mútuas de sobrevivência tanto para o forte como para o fraco por meio de guerra O fato de que no século XIX o mesmo mecanismo tenha resultado em paz ao invés de guerra é um problema que desafia o historiador O fator inteiramente novo calculamos foi a emergência de um forte interesse peJa pazTradicionalmente tal interesse era visto como externo ao escopo do sistema estatal A paz com os seus corolários de artes e engenhos fazia parte dos simples adornos da vida A Igreja podia orar tanto pela paz como por uma colheita abundante mas na esfera de atuação do estado ela iria defender uma intervenção armada Os governos subordinavam a paz à segurança e soberania isto é a intentos que não podiam ser alcançados a não ser recorrendose a meios drásticos Poucas coisas eram vistas como mais prejudiciais a uma comunidade do que a existência em seu meio de um interesse organizado pela paz Ainda na segunda metade do século XVIII JJ Rousseau denunciava as corporações de ofício por falta de patriotismo sob suspeita de que elas preferiam a paz à liberdade Após 1815 a mudança é súbita e completa A repercussão da Revolução Francesa reforçou a maré montante da Revolução Industrial estabelecendo os negócios pacíficos como um interesse universal Metternich proclamava que o que os povos da Europa desejavam não era a liberdade mas a paz Gentz chamava os patriotas de novos bárbaros A Igreja e o trono iniciaram a desnacionalização da Europa Seus argumentos encontravam apoio tanto na ferocidade das recentes formas populares de revolta como no realce tremendo do valor da paz sob a economia nascente Os que apoiavam o novo interesse pela paz eram como de hábito aqueles que mais se beneficiavam com ela isto é aquele cartel de dinastias e feudalistas cujas posições patrimoniais eram ameaçadas pela 22 onda revolucionária de patriotismo que avassala o continente Desta forma por um período aproximado de um terço de século a Santa Aliança forneceu a força coerciva e o ímpeto ideológico necessário a uma política de paz atuante seus exércitos percorriam a Europa em todas as direções esmagando minorias e reprimindo maiorias De 1846 até cerca de 1871 um dos quartos de século mais confusos e atravancados da história européias1 a paz foi estabelecida com menos segurança enquanto a força declinante da reação enfrentava a crescente força da industrialização No quarto de século que se segue à Guerra FrancoPrussiana encontramos redivivo o interesse pela paz representado por aquela nova e poderosa entidade o Concerto da Europa Entretanto os interesses como as intenções permanecem necessariamente platônicos a menos que sejam transladados para a política por meio de algum instrumental social Aparentemente faltava um tal veículo de realização tanto a Santa Aliança como o Concerto da Europa eram na verdade meros agrupamentos de estados soberanos independentes e portanto sujeitos ao equilíbriodepoder e seu mecanismo de guerra Como foi mantida a paz então É verdade que qualquer sistema de equilíbriodepoder procurará impedir guerras como as que ocorrem quando uma nação deixa de prever o realinhamento de poderes que resultará da sua tentativa de alterar o status quo Foram exemplos famosos a tentativa de dissuasão de Bismarck na campanha da imprensa contra a França em 1875 quanto à intervenção russa e britânica o auxílio da Áustria à França era contado como certo Nesta ocasião o Concerto da Europa agiu contra a Alemanha que se viu isolada Em 18771878 a Alemanha foi incapaz de impedir a Guerra RussoTurca mas teve sucesso em circunscrevêIa apoiando o ciúme da Inglaterra quanto à movimentação russa em direção aos Dardanelos a Alemanha e a Inglaterra apoiaram a Turquia contra a Rússia e assim salvaram a paz No Congresso de Berlim foi elaborado um plano a longo prazo para a liquidação das possessões européias do Império Otornano isto resultou no impedimento de guerras entre as Grandes Potências a despeito de todas as mudanças subseqüentes no status quo uma vez que todas as partes envolvidas podiam estar certas antecipadamente das forças com as quais iriam se defrontar numa batalha Nestes exemplos a paz era um subproduto bemvindo do sistema de equilíbriodepoder 1 Sontag R J European Diplomatic History 18711932 1933 23 Algumas vezes evitavamse as guerras removendo deliberadamente as suas causas se isto envolvia apenas o destino de potências pequenas Controlavamse as pequenas nações e impediase que perturbassem o status quo de qualquer forma que pudesse precipitar uma guerra A invasão holandesa da Bélgica em 1831 levou à neutralização daquele país na ocasião Em 1855 a Noruega também foi neutralizada Em 1867 o Luxemburgo foi vendido à França pela Holanda a Alemanha protestou e o Luxemburgo foi neutralizado Em 1856 a integridade do Império Otomano foi declarada essencial para o equilíbrio da Europa e o Concerto da Europa procurou sustentar aquele império após 1878 quando sua desintegração foi considerada essencial para aquele equilíbrio promoveuse o seu desmembramento da mesma maneira ordenada embora em ambos os casos a decisão significasse vida e morte para inúmeros pequenos povos Entre 1852 e 1863 foi a Dinamarca e entre 1851 e 1856 foram as Alemanhas que ameaçaram perturbar o equilíbrio e em cada um dos casos os pequenos estados foram forçados a se conformar pelas Grandes Potências Nesses exemplos a liberdade de ação a elas oferecida pelo sistema foi usada pelas Potências para alcançar um interesse conjunto que aconteceu ser a paz Mas existe uma diferença muito grande entre evitar ocasionalmente as guerras quer pelo esclarecimento oportuno da situação de poder quer pela coação aos pequenos estados e o fato concreto da Paz dos Cem Anos O desequilíbrio internacional pode ocorrer por inúmeras razões desde um romance dinástico até o aterro de um estuário desde uma controvérsia teológica a uma invenção tecnológica O simples crescimento da riqueza e da população ou eventualmente o seu decréscimo pode pôr as forças políticas em movimento e o equilíbrio externo refletirá o interno invariavelmente Mesmo um sistema organizado de equilíbriodepoder só pode assegurar a paz sem a ameaça permanente da guerra se puder atuar diretamente sobre esses fatores internos e impedir o desequilíbrio in status nascendi Uma vez que esse desequilíbrio tome impulso só a força poderá endireitálo É apenas senso comum afirmar que para se garantir a paz devese eliminar as causas da guerra entretanto nem sempre se compreende que para fazêlo o fluxo da vida tem que ser controlado na sua fonte A Santa Aliança conseguir realizar isto com a ajuda de instrumentos peculiares a ela Os reis e as aristocracias da Europa formaram uma internacional de parentesco e a Igreja Católica forneceulhes um serviço civil voluntário que ia do nível mais alto até o mais baixo na escala social da 24 Europa do Sul e Central As hierarquias de sangue e de direito divino se fundiram num instrumento de governo localmente efetivo que precisava apenas ser suplementado pela força para garantir a paz continental Entretanto o Concerto da Europa que a substituiu que substituiu não dispunha dos tentáculos feudais e clericais quando muito chegava a ser uma federação frouxa que não se comparava em coerência à obraprima de Metternich Uma reunião das Potências só podia ser organizada em raras ocasiões e seus ciúmes davam grande margem a intrigas a contradições e à sabotagem diplomática uma atuação militar conjunta passou a ser rara E no entanto o que a Santa Aliança como toda a sua unidade de pensamento e propósitos só conseguiu alcançar na Europa com a ajuda de freqüentes intervenções armadas foi alcançado aqui em escala mundial por uma entidade difusa chamada Concerto da Europa com a ajuda muito menos freqüente e opressiva do uso da força Para tentar explicar este feito surpreendente temos que procurar algum poderoso instrumental social ainda não descoberto atuante nesse novo ambiente e que podia desempenhar o papel anterior as dinastia e dos episcopados e tornar efetivo o interesse pela paz Esse fator anônimo foi a haute finance Ainda não foi levada a efeito qualquer pesquisa mais ampla sobre a natureza do banco internacional no século XIX essa instituição misteriosa emergiu pouco no chiaroscuro da mitologia políticoeconômica2 Alguns alegaram que ela era apenas a ferramenta dos governos outros que os governos eram os instrumentos da sua inesgotável sede de lucros outros ainda que se tratava da semente da discórdia interna cional outros que era o veículo de um cosmopolitismo efeminado que minava a força das nações viris Nenhum desses argumentos é totalmente errado A haute finance uma instituição sui generis peculiar ao último terço do século XIX e ao primeiro terço do século XX funcionou nesse período como o elo principal entre a organização política e a econômica do mundo Ela forneceu os instrumentos ara um sistema internacional de paz que foi elabora o com a ajuda das Potências mas que essas mesmas potências não poderiam ter estabelecido ou mantido Enquanto o Concerto da Europa atuava apenas durante intervalos a haute finance funcionava como agência permanente do tipo elástico Em inglês banking com o sentido de negócios bancários N do R 2 Féis H Europe the Worlds Banker 18701940 1930 uma obra que seguimos textualmente muitas vezes 25 Independente de governos particulares mesmo os mais poderosos estava em contato com todos independente dos bancos centrais mesmo do Banco da Inglaterra estava estreitamente ligada a eles Havia um contato íntimo entre a finança e a diploma nenhuma delas levava em consideração planos a longo prazo tanto de paz como de guerra sem ter a certeza da boa vontade do outro Todavia o segredo do sucesso na manutenção de uma paz geral repousava sem dúvida na posição organização e técnicas de finança internacional Tanto o pessoal como as motivações desse organismo singular investiamno de um status cujas raízes estavam seguramente cravadas na esfera privada do interesse estritamente comercial Os Rothschilds não estavam submetidos a nenhum governo como família eles incorporavam o princípio abstrato do internacionalismo sua lealdade era para com uma firma cujo crédito se tornara o único elo supranacional entre o governo político e o esforço industrial numa economia mundial em rápido crescimento Em última instância sua independência se originava das necessidades da época que exigia um agente soberano digno da confiança tanto dos estadistas nacionais como do investidor internacional Para esta necessidade vital a extraterritorialidade metafísica de uma dinastia de banqueiros judeus domiciliada nas capitais da Europa oferecia uma solução quase perfeita Eles não eram realmente pacifistas haviam feito sua fortuna financiando guerras eram impermeáveis a qualquer consideração moral não faziam objeção a qualquer número de guerras pequenas breves ou localizadas Entretanto seu negócio seria prejudicado se uma guerra generalizada entre as Grandes Potências interferisse com as fundações monetárias do sistema Pela lógica dos fatos coube a eles manter os requisitos da paz geral em meio à transformação revolucionária a que foram submetidos os povos do planeta Organizacionalmente a haute finance foi o núcleo de uma das mais complexas instituições que a história do homem já produziu Apesar de transitória ela só é comparável em universalidade e pela profusão de formas e instrumentos com o montante das atividades humanas na indústria e no comércio do qual se tornou de alguma forma o espelho e o reverso Além do centro internacional a haute finance propriamente dita havia uma meia dúzia de centros nacionais gravitando em torno dos seus bancos de emissões e bolsas de valores Os banqueiros internacionais não se limitavam a financiar governos suas aventuras de guerra e paz faziam investimentos externos na indústria nos serviços públicos e bancos bem como empréstimos a longo prazo a corporações públicas 26 e particulares fora do país A finança nacional por sua vez era um microcosmo Só a Inglaterra contava com meia centena de tipos diferentes de bancos a organização bancária da França e da Alemanha também era específica Em cada um desses países as práticas do seu Tesouro e suas relações com a finança particular variavam nas forças mais marcantes e muitas vezes as mais sutis no que se referia aos detalhes O mercado de dinheiro lidava com uma quantidade de contas comerciais aceites estrangeiros documentos financeiros propriamente ditos bem como títulos nominais e outras facilidades nas bolsas de valores O padrão era controlado por uma variedade infinita de grupos nacionais e personalidades cada um deles com seu tipo peculiar de prestígio e destaque autoridade e lealdade sua capacidade de dinheiro e contato de patronato e de aura social A haute finance não foi instituída como instrumento de paz essa função lhe foi atribuída por acidente como diriam os historiadores enquanto os sociólogos talvez preferissem chamáIa lei da disponibilidade O objetivo da haute finance era o lucro para atingilo era necessário um bom relacionamento com os governos cujo objetivo era o poder e a conquista Podemos deixar de lado neste estágio e com bastante segurança a distinção entre poder político e econômico entre objetivos econômicos e políticos por parte dos governos Com efeito era uma característica dos estadosnação desse período que havia muito pouca realidade numa tal distinção pois quaisquer que fossem os seus objetivos os governos procuravam atingiIos através da utilização e do incremento do poder nacional A organização da haute finance por sua vez era internacional entretanto não podia se considerar inteiramente independente da organização nacional A haute finance como centro atuante de participação bancária nos sindicatos e consórcios nos grupos de investimento de empréstimos estrangeiros ou outras transações de escopo ambicioso tinha que procurar a cooperação dos bancos nacionais do capital nacional da finança nacional Embora a finança nacional como regra fosse menos subserviente ao governo do que a indústria nacional ela o era o suficiente para fazer com que a finança internacional tivesse interesse em manter contato com os próprios governos Todavia na medida em que em virtude da sua posição e dos seus membros da sua fortuna particular e de suas filiações ela era realmente independente de qualquer governo particular podia servir a um novo interesse que não possuía qualquer órgão específico próprio a cujo serviço não havia qualquer outra instituição e que no entanto era de vital importância para a comunidade a paz 27 Não uma paz a qualquer preço nem sequer uma paz ao preço de qualquer ingrediente da independência soberania glória adquirida ou aspirações futuras dos poderes envolvidos mas simplesmente a paz se fosse possível atingiIa sem um tal sacrifício E não podia ser de outra maneira O poder tinha precedência sobre o lucro Por mais estreitamente que seus domínios se interpenetrassem era sempre a guerra que estabelecia as leis dos negócios Desde 1870 por exemplo a França e a Alemanha eram inimigas Isto não impedia transações sem compromisso entre elas Ocasionalmente formavamse sindicatos bancários para fins de transação havia uma participação privada de bancos de investimento alemães em empresas alémfronteira que não apareciam nas folhas de balanço no mercado financeiro de empréstimos a curto prazo ocorria o desconto de letras de câmbio e a garantia de empréstimos a curto prazo sobre papéis cola ter ais e comerciais por parte de bancos franceses Havia o investimento direto como no caso da união entre o ferro e o coque ou da fábrica Thyssen na Normandia porém tais investimentos se restringiam a áreas definidas na França e estavam sob o fogo permanente da crítica tanto de nacionalistas como de socialistas O investimento direto era mais freqüente nas colônias como se exemplifica pelos esforços tenazes dos alemães em garantir minérios de teor elevado na Argélia ou pela estória complicada das participações no Marrocos Todavia permanece ainda como fato concreto que depois de 1870 em nenhum momento foi levantada a interdição oficial embora tácita sobre os títulos alemães na Bolsa de Paris A França simplesmente escolheu não correr o risco de ter a força do capital emprestado3 voltada contra ela A Áustria também era suspeita na crise do Marrocos de 19051906 a interdição foi estendida à Hungria Os círculos financeiros de Paris pediram a admissão dos títulos húngaros mas os círculos industriais apoiaram o governo na sua sólida oposição a qualquer concessão a um possível antagonista militar A rivalidade políticodiplomática continuava inquebrantável Qualquer atuação que pudesse aumentar o presumível potencial inimigo era vetada pelos governos Superficialmente mais de uma vez pareceu que o conflito foi dominado porém os círculos internos estavam convictos de que ele havia sido apenas empurrado para lugares mais profundos sob a superfície de amabilidade 3 Féis H opcit p 201 28 Tomemos por exemplo as ambições da Alemanha quanto ao Leste Aqui também a política e a finança se misturavam no entanto a política prevaleceu Após um quarto de século de disputas perigosas a Alemanha e a Inglaterra assinaram um acordo razoável sobre a ferrovia de Bagdá em junho de 1914 tarde demais para impedir a grande Guerra dizem muitas vezes Outros argumentaram pelo contrário que a assinatura do acordo provou de forma concreta que a guerra entre Inglaterra e Alemanha não foi causada por um confronto de expansionismo econômico Nenhuma dessas opiniões se baseia em fatos Na verdade o acordo deixou sem resolução o tema mais relevante A ferrovia alemã não podia prosseguir além de Basra sem o consentimento do governo britânico e as zonas econômicas do tratado cedo ou tarde levariam a urna colisão frontal Enquanto isto as Potências continuavam a prepararse para o Dia D que estava mais próximo do que elas mesmas imaginavam4 A finança internacional tinha que enfrentar as ambições conflitantes e as intrigas das grandes e pequenas potências Seus planos eram subvertidos pelas manobras diplomáticas seus investimentos a longo prazo eram comprometidos e seus esforços construtivos prejudicados pela sabotagem política e as obstruções em surdina As organizações bancárias nacionais sem as quais ela era impotente agiam muitas vezes como cúmplices de seus respectivos governos e não se considerava seguro qualquer plano que não levasse em conta antecipadamente os despojos de cada participante Entretanto o poder financeiro muitas vezes não era vitima mas o beneficiário da diplomacia do dólar a qual fornecia o aguilhão de aço para a luva de veludo da finança O sucesso nos negócios sempre envolvia o uso impiedoso da força contra os países mais fracos a corrupção desenfreada nos escalões administrativos e o uso de quaisquer meios para atingir os fins familiares à selva colonial e semicolonial E no entanto por determinação funcional coube à haute finance Impedir as guerras mais generalizadas A grande maioria dos portadores de títulos governamentais assim como outros investidores e negociantes seriam os primeiros perde dores com tais guerras principalmente se as moedas fossem afetadas A influência que a haute finance exercia sobre as Potências era sempre favorável a urna paz européia Essa influência foi atuante na medida em que os próprios 4 Cf Notas sobre as Fontes 29 governos dependiam da sua cooperação em mais de um sentido Em conseqüência nunca houve época em que o interesse pela paz não estivesse representado nos conselhos do Concerto da Europa Se a isto acrescentamos o crescente interesse pela paz dentro de cada nação onde o hábito do investimento havia deitado raízes começaremos a ver por que pode ocorrer a surpreendente inovação de uma paz armada de dúzias de estados praticamente mobilizados na Europa de 1871 até 1914 sem chegarem ao ponto de uma conflagração esmagadora A finança um dos seus canais de influência agia como poderoso moderador nos conselhos e na política de uma série de pequenos estados soberanos Os empréstimos e a renovação dos empréstimos se articulavam com o crédito e este dependia do bom comportamento Uma vez que sob um governo constitucional e os governos inconstitucionais não eram vistos com bons olhos o comportamento se reflete no orçamento e o valor externo da moeda não pode ser isolado da apreciação do orçamento os governos em débito eram aconselhados a vigiar cuidadosamente seu câmbio e evitar políticas que pudessem se refletir na solidez da posição orçamentária Essa máxima bastante útil tornavase uma regra de conduta convincente uma vez que o país adotasse o padrãoouro que limitava ao mínimo as flutuações permitidas O padrão ouro e o constitucionalismo eram os instrumentos que tornaram conhecida a voz da City de Londres em muitos dos países menores que adotaram esses símbolos de adesão à nova ordem internacional Às vezes a Pax Britannica mantinha esse equilíbrio através dos canhões dos seus navios entretanto mais freqüentemente ela prevalecia puxando os cordéis da rede monetária internacional A haute finance assegurava a sua influência ainda através da administração não oficial das finanças de vastas regiões semicoloniais do mundo inclusive os impérios decadentes do Islã na zona altamente inflamável do Oriente Próximo e do Norte da África Era justamente aqui que O dia de trabalho dos financistas tocava os fatores sutis dos subterrâneos da ordem internacional e fornecia uma administração de facto para essas regiões conflituosas onde a paz era mais vulnerável Foi assim que se pôde garantir os numerosos prérequisitos de investimentos de capital a longo prazo nessas áreas a despeito de obstáculos quase intransponíveis A épica história da construção de ferrovias nos Bálcãs Anatólia Síria Pérsia Egito Marrocos e China é a história da persistência e de reviravoltas absurdas que lembram um feito semelhante ao do continente norteamericano O maior perigo que ameaçava os capitalistas da Europa porém não era o fracasso tecnológico ou financeiro e sim 30 a guerra não uma guerra entre pequenos países que podia ser facilmente circunscrita nem a guerra de uma Grande Potência contra um pequeno país uma ocorrência bastante comum e freqüentemente conveniente mas uma guerra generalizada entre as próprias Grandes Potências A Europa não era um continente vazio e sim o lar de milhões de povos velhos e novos cada nova ferrovia tinha que abrir seu caminho através de fronteira de solidez variável e que podiam ser fatalmente enfraquecidas ou vitalmente reforçadas com o contato Somente o punho de aço da finança sobre os fracos governos das regiões atrasadas podia impedir a catástrofe Quando a Turquia fugiu às suas obrigações financeiras em 1875 imediatamente romperam conflagrações militares que duraram de 1876 até 1878 quando da assinatura do Tratado de Berlim A paz foi mantida durante trinta e seis anos a partir daí Essa paz assombrosa foi implementada pelo Decreto de Muharrem de 1881 que estabeleceu a Dette Ottomane em Constantinopla Os representantes da haute finance se encarregaram da administração do grosso das finanças turcas Em numerosos casos eles arquitetaram compromissos entre as Potências em outros eles impediram a Turquia de criar dificuldades por sua própria conta em outros ainda eles atuaram simplesmente como agentes políticos das Potências de um modo geral serviram aos interesses monetários dos credores e se assim se pode dizer dos capitalistas que tentavam auferir lucros naquele país Essa tarefa se complicou muito com o fato de a Comissão de dívida não ser um organismo representativo dos credores privados mas um órgão da lei pública européia no qual a haute finance só tinha representação nãooficial Mas foi justamente nessa capacidade ambígua que ela se tornou capaz de estreitar o abismo existente entre as organizações política e econômica da época O comércio se unira definitivamente à paz No passado a organização do comércio fora militar e guerreira era um conjunto de piratas e bucaneiros era a caravana armada o caçador e o que colocava armadilhas o mercador com a espada a burguesia armada das cidades os aventureiros e os exploradores os plantadores e os conquistadores os caçadores de homens e os comerciantes de escravos os exércitos coloniais e os navios fretados Tudo isto já havia sido esquecido O comércio dependia agora de um sistema monetário internacional que não podia funcionar numa guerra generalizada Ele exigia a paz e as Grandes Potências se esforçavam por mantêIa Todavia o sistema de equilibrodepoder como vimos não podia garantir a paz por si mesmo Isto foi conseguido pela finança internacional cuja própria existência incorporava o princípio de uma nova dependência do comércio à paz 31 Acostumamonos demasiado a pensar na difusão do capitalismo como um processo que pode ser tudo menos pacífico e no capital financeiro como o principal instigador de inumeráveis crimes coloniais e agressões expansionistas A associação desse capital com as indústrias pesadas levou Lenin a afirmar que o capital financeiro era responsável pelo imperialismo principalmente na luta por esferas de influência concessões direitos extraterritoriais e as inumeráveis formas de que se valeram as Potências Ocidentais nas regiões atrasadas a fim de investir em ferrovias serviços públicos portos e outros setores permanentes nos quais as suas indústrias pesadas poderiam auferir lucros É verdade que os negócios e as finanças foram responsáveis por muitas guerras coloniais mas eles também foram responsáveis pelo fato de ter sido evitada uma grande conflagração A sua associação com a indústria pesada embora muito estreita apenas na Alemanha é responsável por ambas a guerra e a paz O capital financeiro como organizaçãochave da indústria pesada associavase aos vários ramos da indústria de forma muito entrelaçada para permitir que um único grupo determinasse a sua política A cada interesse favorecido pela guerra correspondiam dezenas de outros que poderiam ser afetados de forma adversa O capital internacional seria certamente o perdedor em caso de guerra porém mesmo a finança nacional só poderia lucrar excepcionalmente embora auferisse o suficiente freqüentemente para financiar as dezenas de guerras coloniais enquanto permanecessem circunscritas Quase todas as guerras foram organizadas pelos financistas mas eles também organizaram a paz A natureza precisa desse sistema estritamente pragmático que se resguardava com extremo rigor contra uma guerra generalizada enquanto oferecia negócios pacíficos em meio a uma seqüência interminável de pequenas guerras fica mais bem demonstrada pelas modificações que ele introduziu na lei internacional Enquanto o nacionalismo e a indústria tendiam a tornar as guerras mais ferozes e totais foram criadas salvaguardas efetivas para a continuidade do comércio pacífico em tempo de guerra Frederico o Grande se notabilizou por ter recusado em represália em 1752 honrar o empréstimo silesiano devido aos súditos britânicos5 Não foi feita qualquer outra tentativa dessa espécie desde então disse Hershey As guerras da Revolução Francesa nos fornecem os últimos exemplos importantes de confisco de propriedade 5 Hershey AS Essentials of International Public Law and Organization 1927 pp 56569 32 privada de súditos inimigos encontrados em território beligerante quando do rompimento das hostilidades Quando irrompeu a Guerra da Criméia permitiuse aos comerciantes inimigos abandonar o porto uma prática à qual aderiram Prússia França Rússia Turquia Espanha Japão e os Estados Unidos durante os cinqüenta anos seguintes Desde o inicio dessa guerra usouse de grande indulgência no comércio entre os beligerantes Assim na Guerra HispanoAmericana navios neutros com carregamentos de propriedade americana e que não eram contrabando de guerra destinavamse a portos espanhóis A opinião de que as guerras do século XVIII foram menos destrutivas do que as do século XIX em todos os aspectos é um simples preconceito No que diz respeito ao status de estrangeiros inimigos o serviço de empréstimos mantidos por cidadãos inimigos a propriedade inimiga ou o direito de comerciantes inimigos deixarem os portos o século XIX revelou uma mudança decisiva em favor de medidas para salvaguardar o sistema econômico em tempo de guerra Foi no século XX que se reverteu essa tendência Assim a nova organização da vida econômica forneceu o pano de fundo para a Paz dos Cem Anos No primeiro período as classes médias nascentes eram principalmente uma força revolucionária que ameaçava a paz como testemunhamos no levante napoleônico Foi justamente contra este novo fato de perturbação nacional que a Santa Aliança organizou a sua paz reacionária No segundo período a nova economia estava vitoriosa As classes médias eram agora elas mesmas o sustentáculo do interesse na paz muito mais poderoso do que o de seus predecessores reacionários e alimentado pelo caráter nacional internacional da nova economia Entretanto em ambos os casos o interesse pela paz só se tornou efetivo porque foi capaz de fazer o sistema de equilíbriodepoder servir à sua causa fornecendo àquele sistema os órgãos sociais capazes de lidarem diretamente com as forças internas ativas na área da paz Sob a Santa Aliança esses órgãos eram o feudalismo e as casas reinantes apoiados pelo poder espiritual e material da Igreja sob o Concerto da Europa eles foram a finança internacional e o sistema bancário nacional a ela aliados Não há necessidade de exagerar esta distinção Durante a paz dos Trinta Anos 18161846 a GrãBretanha já pressionava pela paz e pelos negócios e mesmo a Santa Aliança não desdenhava ajuda dos Rothschilds Sob o Concerto da Europa por sua vez a finança internacional teve que recorrer muitas vezes a seus associados dinásticos e aristocráticos Todavia tais fatos apenas servem para fortalecer nosso argumento de que em cada um 33 dos casos a paz se manteve não apenas através das chancelarias das Grandes Potências mas com a ajuda de agências concretamente organizadas que agiam a serviço de interesses generalizados Em outras palavras o sistema de equilíbriode poder só pôde evitar uma conflagração generalizada com o pano de fundo de uma nova economia Mas a façanha do Concerto da Europa foi incomparavelmente maior do que a da Santa Aliança Esta última só manteve a paz numa região limitada num continente imutável enquanto a primeira realizou a mesma tarefa em escala mundial enquanto o progresso social e econômico revolucionava o mapa do globo Esse grande feito político resultou da emergência de uma entidade específica a haute finance que foi o elo entre a organização política e a econômica da vida internacional Neste ponto deve ficar claro que a organização da paz repousava sobre a organização econômica Todavia as duas eram de consistência muito diferente Só se pode falar de uma organização de paz política mundial no sentido mais amplo do termo pois o Concerto da Europa em sua essência não era um sistema de paz mas apenas de soberanias independentes protegidas pelo mecanismo da guerra O oposto é verdadeiro em relação à organização econômica do mundo A menos que nos submetamos à prática nãocrítica de restringir o termo organizaçãoa organismos dirigidos de forma centralizada que atuam através de funcionários próprios temos que concordar que nada poderia ser mais definido do que os princípios universalmente aceitos sobre os quais essa organização repousa e nada mais concreto do que seus elementos factuais Orçamentos e armamentos comércio exterior e matériasprimas independência nacional e soberania eram agora funções da moeda e do crédito Já no último quarto do século XIX os preços mundiais das mercadorias constituíam a realidade principal das vidas de milhões de camponeses continentais as flutuações do mercado monetário de Londres eram anotadas diariamente pelos negociantes de todo o mundo e os governos discutiam os planos para o futuro à luz da situação dos mercados de capitais mundiais Só um louco duvidaria de que o sistema econômico internacional era o eixo da existência material da raça humana Como o sistema precisava de paz para funcionar o equilíbriodepoder era organizado para servilo Se se retirasse esse sistema econômico o interesse pela paz desapareceria da política Além disso não havia causa suficiente para esse interesse nem a possibilidade de salvaguardálo mesmo que existisse O sucesso do Concerto da Europa surgiu da necessidade da nova organização internacional da economia e terminaria inevitavelmente com a sua dissolução 34 A era de Bismarck 18611890 viu o Concerto da Europa na sua melhor forma Nas duas décadas que se seguiram imediatamente à ascensão da Alemanha à categoria de Grande Potência ela foi a principal beneficiária do interesse pela paz Ela forçara seu caminho até as primeira fileiras à custa da Áustria e da França era vantajoso para ela manter o status quo e evitar a guerra que poderia ser apenas uma guerra de retaliação contra ela mesma Bismarck patrocinou deliberadamente a noção de paz como elaboração conjunta das Potências e evitava compromissos que pudessem forçar a Alemanha para fora da sua posição de poder de paz Ele se opôs a ambições expansionistas nos Bálcãs e no alémmar utilizou de modo consistente a arma do livre comércio contra a Áustria e até mesmo contra a França frustrou as ambições da Rússia e da Áustria nos Bálcãs com o auxílio do jogo de equilíbriodepoder mantendo a harmonia com aliados em potencial e evitando situações que poderiam envolver a Alemanha numa guerra O agressor astuto de 18631870 transformouse no correto honesto de 1878 e no depreciador das aventuras coloniais Conscienciosamente ele passou a liderar o que considerava ser a tendência pacífica da época a fim de servir os interesses nacionais da Alemanha Entretanto no final da década de 1870 o episódio do livre comércio 184679 estava no final a utilização do padrãoouro pela Alemanha marcou o início de uma er de protecionismo e expansão colonial6 Alemanha passava agora a reforçar sua posição através de uma aliança precipitada com a ÁustriaHungria e a Itália um pouco mais tarde Bismarck perdeu o controle da política do Reich A partir daí a GrãBretanha passou a ser o líder do interesse pela paz numa Europa que ainda permanecia um grupo de estados soberanos independentes e portanto sujeitos ao equilíbriodepoder Na década de 1890 a haute finance estava no seu apogeu e a paz parecia mais segura do que nunca Os interesses britânicos e franceses diferiam na África os britânicos e os russos competiam uns com os outros na Ásia o Concerto embora capengando continuava a funcionar A despeito da Tríplice Aliança ainda havia mais de duas potências independentes para vigiar uma a outra ciumentamente Mas isto não durou muito tempo Em 1904 a GrãBretanha fez um acordo espetacular com a França sobre Marrocos e o Egito alguns anos mais tarde entrou em acordo com a Rússia sobre 6 Eulenburg F Aussenhandel und Aussenhandelspolitik em Grundriss der Sozialökonomik vol VIII 1929 p 209 35 a Pérsia e estava formada a contraaliança O Concerto da Europa essa federação frouxa de potências independentes foi finalmente substuído por dois agrupamentos de poder hostis o equilibriodepoder como sistema chegara a seu final Com apenas dois grupos de poder em competição seu mecanismo deixara de funcionar Não havia mais um terceiro grupo que se unisse a um ou outro para frear aquele que buscasse aumentar o seu poder Praticamente na mesma época os sintomas de dissolução das formas existentes de economia mundial rivalidade colonial e competição por mercados exóticos tornaramse agudos A habilidade da haute finanbe em contornar a disseminação das guerras diminuía rapidamente A paz ainda se arrastou durante os sete anos seguintes mas era apenas uma questão de tempo para que a dissolução da organização econômica do século XIX terminasse com a Paz dos Cem Anos À luz desse reconhecimento a verdadeira natureza da organização econômica altamente artificial sobre a qual repousava a paz assume um significado maior para o historiador 36 2 A DÉCADA DE 1920 CONSERVADORA A DÉCADA DE 1930 REVOLUCIONÁRIA O colapso do padrãoouro internacional foi o elo invisível entre a desintegração da economia mundial na virada do século e a transformação de toda uma civilização na década de 1930 Enquanto não se avaliar devidamente a importância vital deste fator não é possível apreciar corretamente tanto o mecanismo que conduziu a Europa ao seu destino como as circunstâncias responsáveis pelo fato estarrecedor das formas e conteúdos de uma civilização repousarem sobre alicerces tão precários Não se percebeu a verdadeira natureza do sistema internacional sob o qual vivíamos senão quando ele entrou em colapso Quase ninguém compreendeu a função política do sistema monetário internacional e a terrível rapidez da transformação tomou o mundo completamente de surpresa E no entanto o padrãoouro era o único pilar remanescente da economia mundial tradicional quando ele ruiu o resultado teria que ser imediato Para os economistas liberais o padrãoouro era uma instituição puramente econômica eles se recusavam a vêlo sequer como parte do mecanismo social Os países democráticos foram assim os últimos a compreender a verdadeira natureza da catástrofe e os mais demorados no combate ao seus efeitos O cataclisma já desabava sobre eles e seus líderes ainda não conseguiam entender que por trás do colapso do sistema internacional existia um longo desenvolvimento no interior dos países mais avançados que tornava anacrônico um tal sistema Em outras palavras a falência da própria economia de mercado ainda lhes escapava 37 A transformação chegou ainda mais abruptamente do que se poderia imaginar A Primeira Guerra Mundial e as revoluções de pósguerra faziam parte do século XIX O conflito de 19141918 apenas precipitou e agravou desmesuradamente uma crise que ele não havia criado Mas o cerne do dilema ainda não havia sido descoberto nessa época horrores e as devastações da guerra pareceram aos sobreviventes a fonte óbvia dos obstáculos a uma organização internacional que havia emergido tão inesperadamente De repente nem o sistema econômico nem o sistema político mundial pareciam funcionar e a explicação parecia estar nos terríveis sofrimentos infligidos à substância da humana pela Primeira Guerra Mundial Na realidade os obstáculos à paz e à estabilidade no pósguerra derivavam das mesmas fontes qual brotara a própria guerra A dissolução do sistema econômico mundial que se processava desde 1900 foi responsável pela tensão política que explodiu em 1914 a guerra e os tratados posteriores diminuíram superficialmente a tensão eliminando a competição alemã embora agravassem as causas da tensão e aumentassem ainda mais acentuadamente os obstáculos políticos e econômicos para a paz Do ponto de vista político os tratados incluíam uma contradição fatal Com o desarmamento unilateral das nações derrotadas eles impediam qualquer reconstrução do sistema de equilíbriodepoder uma vez que o poder é requisito indispensável para um tal sistema Genebra procurou em vão a restauração de um tal sistema nesse Concerto da Europa mais amplo e aperfeiçoado que se chamou a Liga das Nações Foram vãs as facilidades de consulta e de ação conjunta oferecidas no Pacto da Liga faltava a precondição essencial das unidades de poder independentes A Liga nunca chegou a ser realmente instituída nem o Artigo 16 sobre o cumprimento dos tratados nem o Artigo 19 sobre a sua revisão pacífica chegaram a entrar em vigor A única solução viável para o incandescente problema da paz a restauração sistema de equilíbriodepoder estava assim completamente fora do alcance e tanto isto é real que o verdadeiro objetivo dos estadistas mais construtivos da década de 1920 não foi sequer compreendido público que continuava num estado quase indescritível de confusão Ante o fato estarrecedor do desarmamento de um grupo de nações enquanto o outro continuava armado uma situação que impossibilitava qualquer passo construtivo para a organização da paz prevaleceu a atitude emocional de ser a Liga de alguma forma misteriosa a precursora de uma era de paz que necessitava apenas de freqüentes encorajamentos verbais para se tornar permanente Na América do 38 Norte se difundiu amplamente a idéia de que se a América tivesse feito parte da Liga as coisas seriam totalmente diferentes Não existe melhor prova do que esta para a falta de compreensão das fraquezas orgânicas do assim chamado sistema do pósguerra assim chamado porque se as palavras têm algum sentido a Europa não tinha então qualquer sistema político Um simples status quo como esse só pode durar enquanto dura a exaustão física das partes envolvidas não é de admirar portanto que a volta ao sistema do século XIX parecesse o único caminho a seguir Enquanto isto o Conselho da Liga poderia ter funcionado ao menos como uma espécie de diretório europeu semelhante ao Concerto da Europa no seu apogeu não fosse a regra fatal da unanimidade que indicou o pequeno Estado obstinado como árbitro da paz mundial O projeto absurdo do desarmamento permanente dos países derrotados impossibilitava qualquer solução construtiva A única alternativa para essa situação desastrosa era estabelecer uma ordem internacional imbuída de um poder organizado que transcendesse a soberania nacional Uma tal perspectiva porém estava inteiramente fora de cogitação naquela época Nenhum país da Europa para não mencionar os Estados Unidos submeterseia a um tal sistema Do ponto de vista econômico a política de Genebra era muito mais consistente quando pressionava pela restauração da economia mundial como segunda linha de defesa da paz Mesmo um sistema de equilíbriodepoder restabelecido com sucesso só trabalharia pela paz se fosse restaurado o sistema monetário internacional Na falta de câmbios estáveis e liberdade de comércio os governos das várias nações como no passado veriam a paz como um interesse menor pelo qual lutariam apenas enquanto ela não interferisse com seus interesses maiores Woodrow Wilson foi o primeiro entre os estadistas da época que parece ter compreendido a interdependência entre a paz e o comércio não apenas como garantia do comércio mas também da paz Não admira pois que a Liga lutasse persistentemente para reconstruir a moeda internacional e a organização do crédito como a única salvaguarda possível da paz entre os estados soberanos e que o mundo dependesse como nunca antes da haute finance J P Morgan havia substituído N M Rothschild como o demiurgo do século XIX rejuvenescido De acordo com os padrões daquele século a primeira década do pósguerra surgiu como era revolucionária à luz da nossa experiência atual ocorreu precisamente o contrário A intenção daquela época era profundamente conservadora e expressava a convicção quase universal 39 de que somente com o restabelecimento do sistema pré1914 agora sobre fundações sólidas poderseia restaurar a paz e a prosperidade Na verdade foi justamente pelo fracasso desse esforço de volta ao passado que surgiu a transformação da década de 1930 Embora as revoluções e contrarevoluções dos pósguerra fossem espetaculares elas apenas representavam reações mecânicas à derrota militar ou no máximo uma reencenação do usual drama liberal e constitucionalista de civilização ocidental no cenário da Europa Central e Oriental Foi somente na década de 1930 que elementos inteiramente novos penetraram no padrão da história ocidental Os levantes e os contralevantes da Europa Central e Oriental na década de 1917 a 1920 a despeito do seu cenário foram apenas caminhos oblíquos para reerguer regimes que haviam sucumbido nos campos de batalha Quando se dissolveu a fumaça da contrarevolução os sistema políticos de Budapeste Viena e Berlim não eram muito diferentes do que tinham sido antes da guerra O mesmo ocorreu com a Finlândia os Estados Bálticos Polônia Áustria Hungria Bulgária e até mesmo a Itália e a Alemanha até meados da década de 1920 Em alguns países ocorreu um grande progresso em relação à liberdade nacional e à reforma agrária realizações bastante comuns já na Europa Ocidental desde 1789 Nesse sentido a Rússia não constitui exceção A tendência da época era simplesmente estabelecer ou restabelecer o sistema comumente associado com os ideais das revoluções inglesa americana e francesa Não apenas Hindenburg e Wilson mas também Lenin e Trotski estavam nesse sentido amplo na linha da tradição ocidental No início da década de 1930 a mudança surgiu abrupta Seus marcos foram o abandono do padrãoouro pela GrãBretanha os Planos Qüinqüenais na Rússia o lançamento do New Deal a Revolução NacionalSocialista na Alemanha o colapso da Liga em favor de impérios autárquicos Enquanto no final da guerra os ideais do século XIX eram predominantes e sua influência dominou a década seguinte já em 1940 havia desaparecido qualquer vestígio do sistema internacional e à parte enclaves as nações viviam uma conjuntura internacional inteiramente nova A causa primordial da crise calculamos foi o trágico colapso do sistema econômico internacional Desde a virada do século ele vinha funcionando precariamente e a guerra e os Tratados finalmente destruíramno Isto tornouse aparente na década de 1920 quando dificilmente uma crise interna na Europa não alcançava seu clímax em termos de economia externa Os estudantes de política agrupavam então 40 os vários países não em termos de continentes mas de acordo com o grau de aderência deles a uma moeda estável A Rússia havia assombrado o mundo com a destruição do rublo cujo valor havia sido reduzido a zero através simplesmente da inflação A Alemanha repetirá esse gesto desesperado de enganar o Tratado a expropriação da classe dos arrendatários que ocorreu na sua esteira colocou as fundações para a revolução nazista O prestígio de Genebra deveuse ao seu sucesso em ajudar a Áustria e a Hungria a restaurarem suas moedas e Viena tornouse a Meca dos economistas liberais em virtude de uma operação brilhantemente bemsucedida no Krone austríaco à qual o paciente infelizmente não sobreviveu Na Bulgária Grécia Finlândia Letônia Lituânia Estônia Polônia e Rumânia a restauração da moeda deu condições à contra revolução de exigir uma participação no poder Na Bélgica França e Inglaterra a esquerda foi alijada em nome dos padrões de segurança da moeda Uma seqüência quase ininterrupta de crises monetárias ligava os indigentes Bálcãs aos afluentes Estados Unidos através da conexão elástica de um sistema internacional de crédito que transmitiu a tensão de moedas imperfeitamente restauradas primeiro da Europa Oriental para a Europa Ocidental depois da Europa Ocidental para os Estados Unidos Finalmente os próprios Estados Unidos foram engolfados pelos efeitos de uma estabilização prematura das moedas européias Começara o colapso final O primeiro choque ocorreu dentro de esferas nacionais Algumas moedas como a russa a alemã a austríaca a húngara desapareceram no espaço de um ano À parte uma taxa sem precedente de câmbio no valor das moedas ocorreu a circunstância de que esse câmbio tinha lugar numa economia completamente monetarizada Havia sido introduzido um processo celular na sociedade humana cujos efeitos estavam fora do alcance da experiência Tanto interna como externamente moedas de valor minguante significavam umaruptura As nações se viam separadas de seus vizinhos como por um abismo enquanto ao mesmo tempo os vários estratos da população eram afetados de modos inteiramente diferentes e muitas vezes opostos A classe média intelectual foi literalmente pauperizada os tubarões financeiros acumulavam fortunas chocantes Entrara em cena um fator de uma força incalculável simultaneamente integradora e desintegradora A fuga do capital era um novum Nem em 1848 nem em 1866 e nem mesmo em 1871 registrouse um tal acontecimento No entanto ficou patenteo papel vital que ele desempenhou na queda dos governos 41 liberais na França em 1925 e novamente em 1938 bem como no desenvolvimento do movimento fascista na Alemanha em 1930 A moeda tornouse o pivô da política nacional Sob uma economia monetária moderna ninguém podia deixar de experimentar diariamente o encolhimento ou a expansão do bastão financeiro as populações tornaramse conscientes de que significava o dinheiro o efeito da inflação na renda real era descontado adiantadamente pela massas em todos os lugares homens e mulheres pareciam ver o dinheiro estável como a necessidade suprema da sociedade humana Todavia essa conscientização era inseparável do reconhecimento de que os alicerces da moeda podiam depender de fatores políticos fora das fronteiras nacionais Assim o bouleversement social que abalou a confiança na estabilidade inerente ao meio monetário abalou também o conceito ingênuo da soberania financeira numa economia interdependente Daí em diante as crises internas associadas à moeda tenderiam a levantar graves problemas externos A crença no padrãoouro tornouse a religião daquele tempo Para alguns ela representava um credo ingênuo para outros uma crença crítica para outros ainda um credo satânico que implicava a aceitação da carne e na rejeição do espírito E no entanto a crença em si era a mesma isto é de que as notas bancárias tinham valor porque elas representavam o ouro Não fazia diferença então se o próprio ouro tinha valor pelo fato de incorporar trabalho como diziam os socialistas ou pelo fato de ser útil e escasso como afirmava a doutrina ortodoxa A guerra entre o céu e o inferno ignorava o tema dinheiro deixando milagrosamente unidos capitalistas e socialistas Onde Ricardo e Marx tinham a mesma opinião o século XIX não conheceu a dúvida Bismarck e Lassalle John Stuart Mill e Henry George Philip Snowden e Calvin Coolidge Misese Trotski aceitaram igualmente essa fé Karl Marx usou de grande empenho para demonstrar que os talões de trabalho utópicos de Proudhon que deveriam substituir a moeda eram baseados numa autoilusão e o Das Kapital apresentou a teoria da mercadoriadinheiro na sua forma ricardiana O russo bolchevista Sokolnikoff foi o primeiro estadista pósguerra a restaurar o valor da moeda do seu país em termos de ouro o socialdemocrata alemão Hilferding pôs seu partido em perigo ao defender ardorosamente os princípios da moeda estável o socialdemocrata austríaco Otto Bauer apoiou os princípios monetários subjacentes à restauração do Krone tentada pelo seu implacável adversário Seipel o socialista inglês Philip Snowden voltouse contra o trabalhismo acreditando que a libra esterlina 42 não estava a salvo nas suas mãos e o Duce manteve o valorouro da lira em 90 gravado em pedra e afirmou que morreria em sua defesa Seria difícil encontrar qualquer divergência a esse respeito entre os pronunciamentos de Hoover e Lenin Churchill e Mussolini Na verdade a essencialidade do padrãoouro para o funcionamento do sistema econômico internacional da época era o dogma primeiro e único comum aos homens de todas as nações de todas as classes de todas as religiões e filosofias sociais Era a única realidade invisível à qual podia se apegar a vontade de viver quando a humanidade se encontrava a braços ela mesma com a tarefa de restaurar sua existência em frangalhos O esforço que fracassou foi o mais compreensivo a que o mundo já assistiu A estabilização de moedas praticamente arrasadas na Áustria Hungria Bulgária Finlândia Rumânia ou Grécia não foi apenas um ato de fé por parte desses países pequenos e fracos que literalmente passaram fome para alcançar as margens do ouro mas foi também uma aprovação severa para seus poderosos e ricos patrocinadores os vitoriosos da Europa Ocidental Enquanto as moedas dos vitoriosos flutuavam a pressão não se tornou aparente eles continuavam a fazer empréstimo externos como antes da guerra e assim ajudavam a manter as economias das nações derrotadas Entretanto quando a GrãBretanha e a França reverteram ao ouro a carga dos seus câmbios estabilizados passou a contar Eventualmente uma preocupação silenciosa quanto à segurança da libra passou a ser marcante no principal país do ouro os Estados Unidos Essa preocupação que atravessou o Atlântico acabou trazendo a América inesperadamente para a zona de perigo O ponto parece apenas técnico porém deve ser entendido claramente O apoio americano à libra esterlina em 1927 significava baixas taxas de juros em Nova York a fim de impedir grandes movimentos de capital de Londres para Nova York O Federal Reserve Board assumiu um compromisso com o Banco da Inglaterra para manter baixos os seus juros Mas chegou o momento em que a própria América precisou de juros altos pois o seu próprio sistema de preços começou a ser perigosamente inflacionado esse fato foi obscurecido pela existência de um nível de preços estável mantido a despeito de custos tremendamente diminuídos Quando o balanço habitual do pêndulo após sete anos de prosperidade resultou no crack de 1929 já longamente retardado as coisas se agravaram intensamente pelo estado vigente de criptoinflação Os devedores extenuados pela deflação puderam ver o colapso do credor inflado Foi um portento A América num gesto instintivo de libertação abandonou 43 o padrãoouro em 1933 desaparecendo assim o último vestígio da economia mundial tradicional Embora muito pouca gente pudesse discernir naquela época o significado mais profundo do acontecimento a história imediatamente reverteu a sua tendência Durante mais de uma década a restauração do padrãoouro havia sido o símbolo da solidariedade mundial Realizaramse inúmeras reuniões de Bruxelas a Spa e Genebra de Londres a Locarno e Lausanne para atingir as precondições políticas necessárias a moedas estáveis A própria Liga da Nações foi acrescida da uma Organização Internacional do Trabalho em parte para uniformizar as condições de competição entre as nações de tal forma que o comércio pudesse ser liberado sem perigo para os padrões de vida A moeda estava no cerne das campanhas lançadas por Wall Street para superar o problema das transferências e para primeiro comercializar e depois mobilizar as reparações Genebra atuou como o patrocinador de um processo de reabilitação no qual a pressão conjunta da City de Londres e dos puristas monetários neodássicos de Viena foi posta a serviço do padrãoouro Todo o esforço internacional foi dirigido a esse objetivo finalmente enquanto os governos nacionais como regra acomodavam suas políticas à necessidade de salvaguardar a moeda particularmente aquelas políticas que se preocupavam com o comércio exterior empréstimos assuntos bancários e câmbio Embora todos concordassem que as moedas estáveis dependiam em última instância do comércio exterior todos a não ser os adeptos dogmáticos do livre comércio sabiam também que deveriam ser tomadas medidas imediatas as quais iriam restringir inevitavelmente o comércio exterior e os pagamentos externos na maioria dos países Desenvolveramse cotas de importação moratórias e acordos imobilizados sistemas de compensação e tratados comerciais bilaterais acordos de permuta embargos de exportações de capital controles do comércio exterior e equalizações dos fundos cambiais para fazer face ao mesmo conjunto de circunstâncias O incubus da autosuficiência no entanto perseguia as medidas tomadas para a proteção da moeda Embora a intenção fosse a liberdade de comércio o resultado foi seu estrangulamento Ao invés de ganhar acesso aos mercados do mundo os governos por seus próprios atos estavam barrando seus países de qualquer nexo internacional e sacrifícios cada vez maiores passaram a ser exigidos para manter pelo menos um fluxo mínimo de comércio Os esforços frenéticos para proteger o valor externo da moeda como meio de comércio exterior levaram os povos mesmo contra a sua vontade a uma economia autárquica Todo o arsenal 44 de medidas restritivas que se constituía num afastamento radical da economia tradicional foi na verdade o resultado dos propósitos conservadores do livre comércio Essa tendência reverteu abruptamente com a queda final do padrãoouro Os sacrifícios feitos para restaurálo tinham que ser feitos novamente para que pudéssemos viver sem ele As mesmas instituições que haviam sido destinadas a reprimir a vida e o comércio para manter um sistema de moedas estáveis eram agora utilizadas para ajustar a vida industrial à ausência permanente de um tal sistema Talvez seja por isto que a estrutura mecânica e tecnológica da indústria moderna tenha sobrevivido ao impacto do colapso do padrãoouro Assim na luta para preserválo o mundo vinha se preparando inconscientemente para o tipo de esforço e o tipo de organização necessários para se adaptar à sua perda Entretanto a intenção agora era inteiramente oposta nos países que mais sofreram durante a prolongada luta pelo inatingível forças titânicas se desprenderam como reação Nem a Liga das Nações nem a haute finance internacional sobreviveram ao padrãoouro com o seu desaparecimento tanto o interesse organizado pela paz representado pela Liga como os seus instrumentos principais de atuação os Rothschilds e os Morgans desapareceram da política A ruptura do fio de ouro foi o sinal de uma revolução mundial Entretanto a quebra do padrãoouro nada mais fez do que estabelecer a data de um acontecimento demasiado grande para ser causado por ele Nada menos do que uma destruição completa das instituições da sociedade do século XIX acompanhou a crise em grande parte do mundo e em todos os lugares essas instituições foram modificadas e reformuladas além de todo o reconhecimento Em muitos países o estado liberal foi substituído por ditaduras totalitárias e a instituição central do século produção baseada em mercados livres foi substituída por novas formas de economia Enquanto grandes nações reconstruíram o próprio molde do seu pensamento e se lançavam à guerra para escravizar o mundo em nome de concepções até então desconhecidas sobre a natureza do universo nações ainda maiores corriam em defesa da liberdade que passou a adquirir em suas mãos um significado igualmente ainda nãoconhecido fracasso do sistema internacional embora tivesse acionado a transformação certamente não poderia ter sido responsável pela sua profundidade e conteúdo Embora possamos compreender por que tudo aconteceu subitamente ainda estamos no escuro quanto ao que motivou tudo isto 45 Não foi por acidente que a transformação se fez acompanhar de guerras numa escala sem precedentes A história estava acionada para uma mudança social o destino das nações estava ligado a seu papel numa transformação institucional Uma tal simbiose não é excepcional na história embora os grupos nacionais e as instituições sociais tenham origens próprias eles tendem a se acoplarem uns aos outros na sua luta pela sobrevivência Um exemplo famoso de uma tal simbiose uniu o capitalismo e as nações marítimas do Atlântico A Revolução Comercial tão estreitamente ligada à ascensão do capitalismo tornouse o veículodepoder para Portugal Espanha Holanda França Inglaterra e Estados Unidos e cada uma delas se beneficiou das oportunidades oferecidas por aquele movimento amplo e bem arraigado enquanto de outro lado o próprio capitalismo se expandia pelo planeta através da instrumentalidade dessas Potências ascendentes A lei se aplica também ao seu reverso Uma nação pode ser prejudicada na sua luta pela sobrevivência pelo fato de suas instituições ou algumas delas pertencerem a um tipo que pode estar em declínio o padrãoouro na Segunda Guerra Mundial foi um exemplo de um tal organismo antiquado Por outro lado países que por razões próprias se opõem ao status quo podem descobrir rapidamente as fraquezas da ordem institucional vigente e antecipar a criação de instituições mais bem adaptadas a seus interesses Tais grupos estariam empurrando aquilo que está caindo e se apoiando naquilo que vem chegando com as suas próprias forças Poderia parecer então que eles teriam dado origem ao processo de mudança social quando na verdade eles foram apenas os seus beneficiários e poderiam até estar desviando a tendência ara servir a seus próprios objetivos Assim a Alemanha uma vez derrotada estava em posição de reconhecer as falhas ocultas na ordem do século XIX e empregar esse conhecimento para apressar a destruição de tal ordem Podese atribuir até uma espécie de superioridade intelectual sinistra àqueles dentre os seus estadistas da década de 1930 que se voltaram para essa tarefa de destruição e essa tarefa algumas vezes abrangeu o desenvolvimento de novos métodos de finanças comércio guerra e organização social no decurso da sua tentativa de forçar as coisas a ingressarem no caminho da sua política Todavia esses problemas definitivamente não foram criados pelos governos que os encamparam como vantagens eles eram reais dados objetivamente e permanecerão conosco qualquer que seja o destino dos países individuais Mais uma vez tornase aparente a distinção entre a Primeira e Segunda Guerras Mundiais a primeira 46 ainda era fiel ao tipo do século XIX um simples conflito de poderes acionado pelo colapso do sistema de equilíbriodepoder A última já faz parte do levante mundial Isto permitirnosá destacar as pungentes histórias nacionais do período da transformação social então em progresso Será fácil ver de que maneira a Alemanha e a Rússia a GrãBretanha e os Estados Unidos como unidades de poder foram ajudados ou estorvados pela sua relação com o processo social subjacente O mesmo é verdadeiro também quanto ao próprio processo social o fascismo e o socialismo encontraram um veículo na ascensão de Potências individuais que ajudaram a difundir O seu credo A Alemanha e a Rússia respectivamente tornaramse os verdadeiros representantes do fascismo e do socialismo no mundo O escopo real desses movimentos sociais só pode ser avaliado se o seu caráter transcendental para o bem ou para o mal é reconhecido e visto como desligado dos interesses nacionais alistados a seu serviço Os papéis que a Alemanha ou a Rússia a Itália ou o Japão a GrãBretanha ou os Estados Unidos estão desempenhando na Segunda Guerra Mundial embora formem parte da história universal não são a preocupação direta deste livro O fascismo e o socialismo porém foram forças vivas na transformação institucional que é o seu tema principal O élan vital que produziu o ímpeto inescrutável dos povos alemão e russo em reclamar uma parcela maior no registro da raça humana deve ser considerado como documento factual das condições sob as quais nossa história se desenrola enquanto que o teor do fascismo e do socialismo ou do New Deal é a parte da própria história Isto nos leva à nossa tese que ainda precisa ser provada que as origens do cataclisma repousam na tentativa utópica do liberalismo de estabelecer um sistema de mercado autoregulável Uma tese como esta parece investir esse sistema de poderes quase místicos implica nem mais nem menos que o equilíbriodepoder o padrãoouro e o estado liberal esses elementos fundamentais da civilização do século XIX em última análise foram todos eles modelados por uma matriz comum o mercado autoregulável A afirmativa parece extrema ou pelo menos chocante em seu materialismo crasso Todavia a peculiaridade da civilização cujo colapso testemunhamos foi precisamente o fato dela se basear em fundamentos econômicos Sem dúvida outras sociedades e outras civilizações também foram limitadas pelas condições materiais da sua existência este é um traço comum a toda vida humana na verdade a toda a vida quer religiosa ou nãoreligiosa materialista ou espiritualista 47 Todos os tipos de sociedades são limitados por fatores econômicos Somente a civilização do século XIX foi econômica em um sentido diferente e distinto pois ela escolheu basearse num motivo muito raramente reconhecido como válido na história das sociedades humanas e certamente nunca antes elevado ao nível de uma justificativa de ação e comportamento na vida cotidiana a saber o lucro O sistema de mercado auto regulável derivou unicamente desse princípio O mecanismo posto em movimento com a motivação do lucro foi comparável em eficiência apenas à mais violenta irrupção de fervor religioso na história No prazo de uma geração toda a humanidade estava sujeita à sua influência integral Como é do conhecimento de todos ele adquiriu a sua maturidade na Inglaterra na esteira da Revolução Industrial durante a primeira metade do século XIX Alcançou o continente e a América do Norte cerca de cinqüenta anos mais tarde Na Inglaterra no continente e até mesmo na América do Norte posteriormente alternativas similares modelaram os acontecimentos diários em um padrão cujos traços principais eram idênticos em todos os países de civilização ocidental Para determinar as origens do cataclisma temos que nos voltar para a ascensão e queda da economia de cercado A sociedade de mercados nasceu na Inglaterra porém foi no continente que a sua fraqueza engendrou as mais trágicas complicações Para podermos compreender o fascismo alemão temos que reverter à Inglaterra ricardiana Nunca é demais enfatizar que o século dezenove foi o século da Inglaterra a Revolução Industrial foi um acontecimento inglês A economia de mercado o livre comércio e o padrãoouro foram inventos ingleses Essas instituições irromperam em todos os lugares durante a década de 1920 na Alemanha na Itália ou na Áustria o acontecimento foi simplesmente mais político e mais dramático Entretanto qualquer que seja o cenário e a temperatura dos episódios finais os fatores que em última análise destruíram essa civilização devem ser estudados no berço da Revolução Industrial a Inglaterra 48 FOLHA EM BRANCO 49 SEGUNDA PARTE ASCENSÃO E QUEDA DA ECONOMIA DE MERCADO 50 I O MOINHO SATÂNICO 51 3 HABIT AÇAO VERSUS PROGRESSO No coração da Revolução Industrial do século XVIII ocorreu um progresso miraculoso nos instrumentos de produção o qual se fez acompanhar de uma catastrófica desarticulação nas vidas das pessoas comuns Tentaremos desenredar os fatores que determinam as formas dessa desarticulação que teve a sua pior fase na Inglaterra há cerca de um século Que moinho satânico foi esse que triturou os homens transformandoos em massa Quanto pode se atribuir como causa às novas condições físicas E quanto se pode atribuir às dependências econômicas que funcionavam sob novas condições Qual foi o mecanismo por cujo intermédio foi destruído o antigo tecido social e tentada sem sucesso uma nova integração homemnatureza A filosofia liberal jamais falhou tão redondamente como na compreensão do problema da mudança Animada por uma fé emocional na espontaneidade a atitude de senso comum em relação à mudança foi substituída por uma pronta aceitação mística das conseqüências sociais do progresso econômico quaisquer que elas fossem As verdades elementares da ciência política e da arte de governar foram primeiro desacreditadas e depois esquecidas Não é preciso entrar em minúcias para compreender que um processo de mudança nãodirigida cujo ritmo é considerado muito apressado deveria ser contido se possível para salvaguardar o bemestar da comunidade Essas verdades elementares da arte de governar tradicional que muitas vezes refletiam os ensinamentos de uma filosofia social herdada dos antepassados foram apagadas do pensamento dos mestres do século XIX pela ação corrosiva de um utilitarismo cru aliada a uma confiança nãocrítica nas alegadas propriedades auto curativas de um crescimento inconsciente 52 O liberalismo econômico interpretou mal a história da Revolução Industrial porque insistiu em julgar os acontecimentos sociais a partir de um ponto de vista econômico Para ilustrar este ponto voltaremos a um assunto que poderá parecer remoto a uma primeira vista os cercamentos dos campos abertos enclosures e as conversões da terra arável em pastagem durante o primeiro período Tudor na Inglaterra quando os campos e as áreas comuns foram cercados pelos senhores e condados inteiros se viram ameaçados de despovoamento Ao evocar a desgraça do povo provocada pelos cercamentos e conversões nosso propósito será de um lado demonstrar o paralelo existente entre as devastações causadas pelos cercamentos finalmente benéficos e as que resultaram na Revolução Industrial e de outro lado de uma forma mais ampla esclarecer as alternativas enfrentadas por uma comunidade no paroxismo de um progresso econômico nãoregulado Os cercamentos seriam um progresso óbvio se não ocorresse a conversão às pastagens A terra cercada valia duas ou três vezes a nãocercada Nos lugares onde se continuou a cultivar a terra não diminuiu o emprego e o suprimento de alimentos aumentou de forma marcante O rendimento da terra elevouse consideravelmente principalmente onde a terra era alugada Mesmo a conversão de terras aráveis em pastagens de carneiros não foi inteiramente prejudicial à circunvizinhança a despeito da destruição de habitações e da restrição de empregos que ela acarretou A indústria caseira já se difundia na segunda metade do século XV e um século mais tarde ela já era um aspecto marcante no campo A lã produzida na fazenda de carneiros dava empregos a pequenos posseiros e agricultores sem terra e os novos centros de indústria de lã garantiam a renda a uma quantidade de artesãos Entretanto e este é o ponto é somente numa economia de mercado que tais efeitos compensadores podem ser tomados como certos Na falta de uma tal economia a ocupação altamente lucrativa de criar carneiros e vender sua lã poderia arruinar o país Os carneiros que transformavam areia em ouro podiam muito bem ter transformado o ouro em areia como ocorreu com as riquezas da Espanha do século XVII cujo solo erodido jamais se recuperou da expansão excessiva da criação de carneiros Um documento oficial de 1607 preparado para uso dos pares do Reino colocou o problema em uma única frase poderosa O homem pobre terá satisfeito o seu objetivo Habitação e o nobre não ficará prejudicado em seu desejo Progresso Esta fórmula parece tomar 53 como certa a essência do puro progresso econômico que alcançara o seu aperfeiçoamento à custa da desarticulação social Todavia ela aponta também para a trágica necessidade que faz com que o homem pobre se apegue à sua choupana arruinado pela ânsia de progresso do homem rico que o beneficia em particular Os cercamentos foram chamados de uma forma adequada de revolução dos ricos contra os pobres Os senhores e os nobres estavam perturbando a ordem social destruindo as leis e os costumes tradicionais às vezes pela violência às vezes por pressão e intimidação Eles literalmente roubavam o pobre na sua parcela de terras comuns demolindo casas que até então por força de antigos costumes os pobres consideravam como suas e de seus herdeiros O tecido social estava sendo destruído aldeias abandonadas e ruínas de moradias humanas testemunhavam a ferocidade da revolução ameaçando as defesas do país depredando suas cidades dizimando sua população transformando seu solo sobrecarregado em poeira atormentando seu povo e transformandoo de homens e mulheres decentes numa malta de mendigos e ladrões Embora isto ocorresse apenas em determinadas áreas os ponto negros ameaçavam fundirse numa catástrofe uniforme7 O Rei e seu Conselho os Chanceleres e os Bispos defendiam o bemestar da comunidade e na verdade a substância humana e natural da sociedade contra essa espoliação Sem qualquer intermitência durante uni século e meio desde a década de 1490 no máximo até a década de 1640 eles lutaram contra o despovoamento Somerset Lorde Protetor perdeu sua vida nas mãos da contra revolução que aboliu as leis do cercamento do livro de estatutos e estabeleceu a ditadura dos senhores de pastagens depois que a rebelião de Kett foi derrotada com o rnorticínio de alguns milhares de camponeses durante o processo Somerset foi acusado não sem alguma razão de ter encorajado os camponeses rebeldes com a sua corajosa denúncia dos cercamentos Decorreu mais uma centena de anos até que ocorresse um segundo encontro de forças entre os mesmos contendores mas nessa ocasião os cercamentos eram muito mais propriedade de ricos agricultores e mercadores do que dos senhores e nobres O uso deliberado que a Coroa fazia de sua prerrogativa de impedir cercamentos e que envolvia a alta política leiga e eclesiástica e o uso não menos deliberado do tema dos 7 Tawney R H The Agrarian Problem in the 16th Century 1912 54 cercamentos para fortalecer sua posição contra a pequena nobreza gentry numa luta constitucional foi o que acarretou a morte de Strafford e Laud nas mãos do Parlamento Todavia sua política não era reacionária apenas industrialmente mas também politicamente além disso naquela ocasião os cercamentos se destinavam mais ao cultivo da terra do que às pastagens A onda da Guerra Civil acabou por submergir definitivamente a política pública dos Tudors e dos primeiros Stuarts Os historiadores do século dezenove são unânimes em condenar a política dos Tudors e dos primeiros Stuarts como demagógica se não inteiramente reacionária Suas simpatias se inclinam naturalmente para o Parlamento e esse organismo era a favor dos cercamentos H de B Gibbins embora amigo fervoroso do povo comum escreveu Tais encenações protetoras foram inteiramente vãs como sempre acontece com as encenações protetoras8 Innes foi ainda mais definitivo A prática habitual de punir a vagabundagem e tentar forçar a atividade em campos nãoadequados e dirigir o capital para investimentos menos lucrativos a fim de prover empregos fracassou como sempre9 Gairdner não hesitou em apelar para as noções de livre comércio como lei econômica As leis econômicas certamente não foram compreendidas escreveu ele e foram feitas tentativas para impedir que as moradias dos lavradores fossem destruídas pelos senhores de terra Estes achavam mais proveitoso transformar terras aráveis em pastagens para aumentar a produção de lã A repetição freqüente desses decretos apenas demonstra quão ineficientes eles eram na prática10 Mais recentemente um economista como Heckscher enfatiza a sua convicção de que o mercantilismo no seu cerne deveria ser explicado através de uma compreensão insuficiente das complexidades do fenômeno econômico um assunto que a mente humana obviamente precisa de mais alguns séculos para dominar11 Com efeito a legislação anticercamento parece jamais ter conseguido impedir o curso do movimento de cercamentos nem parece mesmo têlo obstruído seriamente John Hales que não fica abaixo de ninguém em seu fervor pelos princípios dos homens do Commonwealth admitiu ter sido impossível obter provas contra os cercadores pois na maioria das vezes seus empregados prestavam 8 Gibbins H de B The Industrial History of England 1895 9 Innes A D England under the Tudors 1932 10 Gairdner J Henry VIII Cambridge Modern History vol II 1918 11 Heckscher EF Mercantilism 1935 p 104 55 testemunho nos júris e era tal o número de seus partidários e agregados que nenhum júri podia realizarse sem eles Ás vezes o simples expediente de cavar um sulco no meio do campo podia salvar o senhor acusado de qualquer penalidade Um prevalecimento tão fácil de interesses privados sobre a justiça é visto muitas vezes como um sinal certo da ineficácia da legislação e a vitória da tendência inutilmente obstruída é citada subseqüentemente como evidência conclusiva da alegada futilidade de um intervencionismo reacionário Todavia tal opinião parece perder de vista o ponto principal Por que a vitória final de uma tendência deve ser tomada como prova de ineficácia dos esforços para diminuir o ritmo do seu progresso E por que o propósito dessas medidas não pode ser visto precisamente naquilo que elas alcançaram i e a diminuição do ritmo da mudança Aquilo que é ineficaz para parar uma linha de desenvolvimento não é por isto mesmo totalmente ineficaz O ritmo da mudança muitas vezes não é menos importante do que a direção da própria mudança mas enquanto essa última freqüentemente não depende da nossa vontade é justamente o ritmo no qual permitimos que a mudança ocorra que pode depender de nós A crença no progresso espontâneo pode cegarnos quanto ao papel do governo na vida econômica Este papel consiste muitas vezes em alterar o ritmo da mudança apressandoo ou diminuindoo conforme o caso Se acreditarmos que tal ritmo é inalterável ou o que é pior se acreditarmos ser um sacrilégio interferir com ele então não existe mesmo um campo para qualquer intervenção Os cercamentos oferecem um bom exemplo Em retrospecto nada pode parecer mais claro do que a tendência de progresso econômico da Europa Ocidental o qual objetivava eliminar uma uniformidade artificial das técnicas de agricultura faixas de cultura entrelaçadas e a instituição primitiva das áreas comuns no campo No que se refere à Inglaterra é certo que o desenvolvimento da indústria lanígera foi um recurso para o país levando como o fez ao estabelecimento da indústria têxtil o veículo da Revolução Industrial Além disso é claro também que o incremento da tecelagem doméstica dependia do aumento do fornecimento doméstico de lã Esses fatos são suficientes para identificar a mudança da terra arável para a pastagem e o movimento de cercamentos que a acompanhou como a tendência do progresso econômico Entretanto não fosse a política conseqüente mantida pelos estadistas Tudors e os primeiros Stuarts o ritmo desse progresso poderia ter sido ruinoso transformando o próprio desenvolvimento em um acontecimento degenerativo ao 56 invés de construtivo Justamente desse ritmo dependia principalmente saber se os despojados poderiam ajustarse às condições modificadas sem danificar fatalmente a sua substância humana e econômica física e moral se eles encontrariam novos empregos nas áreas de oportunidades indiretamente ligadas à mudança e se os efeitos do incremento de importações induzido pelo aumento das exportações permitiria àqueles que perderam seus empregos com a mudança encontrar novas fontes de subsistência Em cada um dos casos a resposta dependia dos ritmos relativos de mudança e ajustamento As habituais considerações em última instância da teoria econômica são inadmissíveis elas iriam prejulgar o tema admitindo que o acontecimento ocorreu numa economia de mercado Por mais que nos pareça natural fazer essa suposição ela é injustificada a economia de mercado é uma estrutura institucional e sempre nos esquecemos disto que nunca esteve presente a não ser em nosso tempo e mesmo assim ela estava apenas parcialmente presente No entanto além desta suposição as considerações em última instância não têm qualquer significado Se o efeito imediato de uma mudança é deletério então até prova em contrário o efeito final também é deletério Se a conversão das terras aráveis em pastagens envolve a destruição de um certo número de casas a abolição de um número definido de empregos e a diminuição dos suprimentos de alimentos disponíveis no local então esses efeitos devem ser encarados como um efeito final até que se apresente uma prova em contrário Isto não exclui a consideração dos possíveis efeitos do aumento de exportações na renda do proprietário da terra das possíveis oportunidades de empregos criadas por um aumento eventual no suprimento local de lã ou a forma na qual os proprietários de terras podiam empregar suas rendas aumentadas seja em novos investimentos ou em despesas de luxo A comparação entre o ritmo da mudança e o ritmo do ajustamento decidirá o que deve ser visto como resultado líquido da mudança Em nenhum caso porém podemos presumir sobre o funcionamento das leis de mercado a menos que se demonstre a existência de um mercado autoregulável As leis de mercado só são relevantes no cenário institucional de uma economia de mercado não foram os estadistas da Inglaterra dos Tudors que se afastaram dos fatos e sim os economistas modernos cujas observações a respeito deles deixaram implícita a existência anterior de um sistema de mercado A Inglaterra suportou sem grandes danos a calamidade dos cercamentos apenas porque os Tudors e os primeiros Stuarts usaram o poder da Coroa para diminuir o ritmo do processo de desenvolvimento econômico 57 até que ele se tornou socialmente suportável utilizando o poder do governo central para socorrer as vítimas da transformação e tentando canalizar o processo de mudança de forma a tornar o seu curso menos devastador Suas chancelarias e cortes de prerrogativas não foram nada conservadoras elas representavam o espírito científico da nova arte de governar favorecendo ai imigração de artesãos estrangeiros implantando zelosamente novas técnicas adotando métodos estatísticos e hábitos precisos de relatórios escarnecendo dos costumes e tradições opondose a direitos consagrados cerceando as prerrogativas eclesiásticas ignorando a Lei dos Comuns Se a inovação faz o revolucionário eles foram os revolucionários do seu tempo Seu compromisso era com o bemestar da plebe glorificada no poder e na grandeza do soberano No entanto o futuro pertencia ao constitucionalismo e ao Parlamento O governo da Coroa cedeu lugar ao governo de uma classe a classe que levava avante o desenvolvimento industrial e comercial O grande princípio do constitucionalismo se consorciou com a revolução politica que despojou a Coroa esta na ocasião já esgotara todas as suas faculdades criativas e a sua função protetora já não era mais vital para um país que já vencera a tempestade da transição A política financeira da Coroa restringia agora indevidamente o poder do país e começara a restringir o seu comércio Com o fito de manter suas prerrogativas a Coroa se excedia nos abusos e conseqüentemente prejudicava os recursos da nação Sua brilhante administração da mãodeobra e dos empreendimentos e o controle circunspecto do movimento de cercamentos foram a sua última realização Todavia isto foi rapidamente esquecido uma vez que os capitalistas e empregadores da classe média ascendente foram as principais vítimas de suas atividades protecionistas Dois séculos se passaram antes que a Inglaterra gozasse novamente de uma administração social tão efetiva e bem ordenada como aquela que a Commonwealth destruiu Na verdade uma administração desse tipo paternalista já não era mais tão necessária Mas num certo sentido essa ruptura causou um dano infinito pois ajudou a obliterar da memória da nação os horrores do período dos cercamentos e as realizações do governo para superar perigo do despovoamento Talvez isto ajude a explicar por que a natureza real da crise não foi compreendida quando cerca de 150 anos mais tarde uma catástrofe similar sob a forma de Revolução Industrial ameaçou a vida e o bem estar do país Nessa ocasião o acontecimento foi também peculiar à Inglaterra e nessa época o comércio marítimo foi também a fonte de um movimento que afetou o país como um todo Nesse período foi ainda o progresso 58 na sua escala mais grandiosa que acarretou uma devastação sem precedentes nas moradias do povo comum Antes que o processo tivesse ido suficientemente longe os trabalhadores já se amontoavam em novos locais de desolação as assim chamadas cidades industriais da Inglaterra a gente do campo se desumanizava em habitantes de favelas a família estava no caminho da perdição e grandes áreas do país desapareciam rapidamente sob montes da escória e refugos vomitados pelos moinhos satânicos Escritores de todas as opiniões e partidos conservadores e liberais capitalistas e socialistas referiamse invariavelmente às condições sociais da Revolução Industrial como um verdadeiro abismo de degradação humana Ainda não surgiu qualquer explicação satisfatória para o acontecimento Os contemporâneos imaginaram descobrir a chave para a danação nos férreos regulamentos que governavam a riqueza e a pobreza aos quais chamavam lei dos salários e lei da população eles não foram comprovados A exploração foi apresentada como uma outra explicação tanto para a riqueza como para a pobreza porém ela não foi capaz de encontrar outra explicação tanto para a riqueza como para a pobreza porém ela não foi capaz de encontrar resposta para o fato de os salários nas favelas industriais serem mais altos do que os de quais quer outras áreas e eles continuaram a subir durante mais um século Na maioria das vezes falavase em um conjunto de causas o que também não é satisfatório A solução que apresentamos não é mais simples e na verdade ela ocupa a maior parte deste livro Calculamos que uma avalanche de desarticulação social superando em muito a que ocorreu no período dos cercamentos desabou sobre a Inglaterra que esta catástrofe foi simultânea a um vasto movimento de progresso econômico que um mecanismo institucional inteiramente novo estava começando a atuar na sociedade ocidental que seus perigos que atacaram até a medula quando primeiro apareceram na verdade jamais foram superados e que a história da civilização do século XIX consistiu na sua maior parte em tentativas de proteger a sociedade contra a devastação provocada por esse mecanismo A Revolução Industrial foi apenas o começo de uma revolução tão extrema e radical quanto as que sempre inflamavam as mentes dos sectários porém o novo credo era totalmente materialista e acreditava que todos os problemas humanos poderiam ser resolvidos com o dado de uma quantidade ilimitada de bens materiais A história já foi contada inúmeras vezes como a expansão dos mercados a presença do carvão e do ferro assim como de um clima 59 úmido propício à indústria do algodão a multidão de pessoas despojadas pelos novos cercamentos do século XVIII a existência de instituições livres a invenção das máquinas e outras causas interagiram de forma tal a ocasionar a Revolução Industrial Já se demonstrou conclusivamente que nenhuma causa única merece ser destacada da cadeia e colocada à parte como a causa daquele acontecimento súbito e inesperado Mas como pode essa mesma Revolução ser definida Qual foi sua característica básica Será que foi o aparecimento de cidades fabris a emergência de favelas as longas horas de trabalho das crianças os baixo salários de certas categorias de trabalhadores o aumento da taxa populacional ou a concentração das indústrias Imaginamos que todos esses elementos foram apenas incidentais em relação a uma mudança básica o estabelecimento da economia de mercado e que a natureza dessa instituição não pode ser inteiramente apreendida até que se compreenda o impacto da máquina numa sociedade comercial Não pretendemos afirmar que foi a máquina que causou esta mudança mas insistimos que quando as máquinas complicadas e estabelecimentos fabris começaram a ser usados para a produção numa sociedade comercial começou a tomar corpo a idéia de um mercado autoregulável A utilização de máquinas especializadas numa sociedade agrária e comercial deve produzir efeitos típicos Uma sociedade como essa consiste de agricultores e mercadores que compram e vendem o produto da terra A produção com a ajuda de ferramentas e fábricas especializadas complicadas dispendiosas só pode se ajustar a uma tal sociedade tornando isto incidental ao ato de comprar e vender O mercador é a única pessoa disponível para assumir isto e ele estará disposto a desempenhar essa atividade desde que ela não importe em prejuízo Ele venderá as mercadorias da mesma forma como já vinha vendendo outras àqueles que delas precisavam Entretanto ele vai procuráIas de modo diferente isto é não mais adquiriuas já prontas mas comprando o trabalho necessário e a matériaprima Esses dois elementos combinados sob as instruções do mercador mais o tempo de espera em que ele poderá incorrer resultam em um novo produto Esta não é a descrição apenas de uma indústria doméstica ou de fazerse ao mar mas de qualquer espécie de capitalismo industrial inclusive o do nosso tempo Seguemse importantes conseqüências para o sistema social 60 Uma vez que as máquinas complicadas são dispendiosas elas só são rentáveis quando produzem grande quantidade de mercadorias12 Elas só podem trabalhar sem prejuízo se a saída de mercadorias é razoavelmente garantida e se a produção não precisar ser interrompida por falta das matériasprimas necessárias para alimentar as máquinas Para o mercador isto significa que todos os fatores envolvidos têm que estar à venda isto é eles precisam estar disponíveis nas quantidades necessárias para quem quer que esteja em condições de pagar por eles A menos que essa condição seja preenchida a produção com a ajuda de máquinas especializadas tornase demasiado arriscada para ser empreendida tanto do ponto de vista do mercador que empata seu dinheiro como da comunidade como um todo que passa a depender de uma produção contínua para conseguir renda emprego e provisões Ora numa sociedade agrícola tais condições não surgiram naturalmente elas teriam que ser criadas O fato de terem sido criadas gradualmente de maneira alguma afeta a natureza surpreendente das mudanças envolvidas A transformação implica uma mudança na motivação da ação por parte dos membros da sociedade a motivação do lucro passa a substituir a motivação da subsistência Todas as transações se transformam em transações monetárias e estas por sua vez exigem que seja introduzido um meio de intercâmbio em cada articulação da vida industrial Todas as rendas devem derivar da venda de alguma coisa e qualquer que seja a verdadeira fonte de renda de uma pessoa ela deve ser vista como resultante de uma venda É isto o que significa o simples termo sistema de mercado pelo qual designamos o padrão institucional descrito Mas a peculiaridade mais surpreendente do sistema repousa no fato de que uma vez estabelecido tem que se lhe permitir funcionar sem qualquer interferência externa Os lucros não são mais garantidos e o mercador tem que auferir seus lucros no mercado Os preços devem ter a liberdade de se auto regularem É justamente esse sistema autoregulável de mercados o que queremos dizer com economia de mercado A transformação da economia anterior para esse sistema é tão completa que parece mais a metamorfose de uma lagarta do que qualquer alteração que possa ser expressa em termos de crescimento contínuo e desenvolvimento Contrastemos por exemplo as atividades de venda do mercadorprodutor e suas atividades de compra suas vendas são 12 Clapham J H Economic history of Modern Britain vol III 61 apenas de artefatos e se ele tiver ou não sucesso em encontrar compradores o tecido da sociedade não precisa ser afetado Mas o que ele compra são matériasprimas e trabalho natureza e homem Na verdade a produção das máquinas numa sociedade comercial envolve uma transformação que é a da substância natural e humana da sociedade em mercadorias Embora fantástica a conclusão é inevitável nada menos do que isto servirá os seus propósitos Obviamente a desarticulação causada por tais engenhos deve desorganizar as relações humanas e ameaçar de aniquilamento o seu habitat E de fato tal perigo foi iminente Poderemos perceber o seu verdadeiro caráter se examinarmos as leis que governam o mecanismo do mercado autoregulável 62 4 SOCIEDADES E SISTEMAS ECONÔMICOS Antes de prosseguirmos na discussão das leis que governam a economia de mercado como as que o século XIX tentava articular precisamos ter um firme controle dos extraordinários pressupostos subjacentes a um tal sistema Uma economia de mercado significa um sistema autoregulável de mercados em termos ligeiramente mais técnicos é uma economia dirigida pelos preços do mercado e nada além dos preços do mercado Um tal sistema capaz de organizar a totalidade da vida econômica sem qualquer ajuda ou interferência externa certamente mereceria ser chamado autoregulável Essas condições preliminares devem ser suficientes para revelar a natureza inteiramente sem precedentes de um tal acontecimento na história da raça humana Vamos tornar mais preciso o que queremos dizer Nenhuma sociedade poderia sobreviver durante qualquer período de tempo naturalmente a menos que possuísse uma economia de alguma espécie Acontece porém que anteriormente à nossa época nenhuma economia existiu mesmo em princípio que fosse controlada por mercados Apesar da quantidade de fórmulas cabalísticas acadêmicas tão persistentes no século XIX o ganho e o lucro feitos nas trocas jamais desempenharam um papel importante na economia humana Embora a instituição do mercado fosse bastante comum desde a Idade da Pedra seu papel era apenas incidental na vida econômica Temos boas razões para insistir nesse ponto com toda a ênfase de que dispomos Um pensador do quilate de Adam Smith sugeriu que a divisão do trabalho na sociedade dependia da existência de mercados 63 ou como ele colocou da propensão do homem de barganhar permutar e trocar uma coisa pela outra Esta frase resultou mais tarde no conceito do Homem Econômico Em retrospecto podese dizer que nenhuma leitura errada do passado foi tão profética do futuro Na verdade até a época de Adam Smith essa propensão não se havia manifestado em qualquer escala considerável na vida de qualquer comunidade pesquisada e quando muito permanecia como aspecto subordinado da vida econômica Uma centena de anos mais tarde porém já estava em pleno funcionamento um sistema industrial na maior parte do planeta e prática e teoricamente isto significava que a raça humana fora sacudida em todas as suas atividades econômicas se não também nas suas buscas políticas intelectuais e espirituais por essa propensão particular Na segunda metade do século XIX Herbert Spencer com um conhecimento muito superficial de economia pôde equacionar o princípio da divisão do trabalho com a barganha e a troca e cerca de cinqüenta anos mais tarde Ludwig vêm Mises e Walter Lippmann puderam repetir a mesma falácia Nessa ocasião não havia necessidade de argumentos Uma série de escritores de economia política história social filosofia política e sociologia em geral havia seguido na esteira de Smith e estabelecido o seu paradigma do selvagem barganhador com axioma das suas respectivas ciências Na realidade as sugestões de Adam Smith sobre a psicologia econômica do homem primitivo eram tão falsas como as de Rosseau sobre a psicologia política do selvagem A divisão do trabalho um fenômeno tão antigo como a sociedade originase de diferenças inerentes a fatos como sexo geografia e capacidade individual A alegada propensão do homem para a barganha permuta e troca é quase que inteiramente apócrifa A história e a etnografia conhecem várias espécies de economia a maioria delas incluindo a instituição do mercado mas elas não conhecem nenhuma economia anterior à nossa que seja controlada e regulada por mercados mesmo aproximadamente Isto tornarseá perfeitamente claro numa rápida visão da história dos sistemas econômicos e mercados apresentados separadamente O papel desempenhado pelos mercados na economia interna de vários países parece foi insignificante até época recente e a mudança total para uma economia dominada por padrões de mercados ficará ainda mais ressaltada Para começar temos de colocar de lado alguns preconceitos do século XIX que sustentavam a hipótese de Adam Smith sobre a alegada predileção do homem primitivo por ocupações lucrativas Uma vez que seu axiomafoi muito mais relevante para o futuro imediato do que 64 para o passado obscuro ele induziu seus seguidores a uma atitude estranha em relação à história primitiva do homem Baseada nela a evidência parece indicar que o homem primitivo longe de ter uma psicologia capitalista tinha na verdade uma psicologia comunista mais tarde também isto foi provado como erro Em conseqüência os historiadores econômicos tendiam a confinar seus interesses àquele período da história comparativamente recente no qual a permuta e a troca foram encontradas em alguma escala considerável e a economia primitiva foi relega da à préhistória Inconscientemente isto levou a um peso na balança em favor de uma psicologia de mercado pois no período relativamente curto dos últimos séculos tudo poderia ser considerado como tendendo para o estabelecimento daquilo que foi eventualmente estabelecido e é um sistema de mercado a despeito de outras tendências que foram temporariamente submersas Para corrigir essa perspectiva tão estreita faziase mister obviamente ligar a história econômica à antropologia social passo esse consistentemente evitado Hoje em dia não podemos continuar nesse caminho O hábito de olhar para os últimos dez anos assim como para o conjunto de sociedades primitivas como mero prelúdio da verdadeira história da nossa civilização que começou aproximadamente com a publicação da Riqueza das Nações em 1776 é para dizer o mínimo inteiramente fora de moda Com este episódio que chega a seu final em nossos dias e tentando calcular as alternativas do futuro vamos refrear nossa inclinação natural de seguir as predisposições de nossos pais Mas a mesma tendência que levou a geração de Adam Smith a ver o homem primevo como inclinado à barganha e à permuta induziu seus sucessores a descartar todo interesse no homem primitivo uma vez que já se sabia que ele não se inclinava para essas louváveis paixões A tradição dos economistas clássicos que tentaram basear a lei do mercado na alegada propensão do homem no seu estado natural foi substituída por um abandono de qualquer interesse na cultura do homem nãocivilizado como irrelevante para se compreender os problemas da nossa era Uma tal atitude de subjetivismo em relação a civilizações primitivas não deveria fazer parte da mente científica As diferenças que existem entre povos civilizados e nãocivilizados foram demasiado exageradas principalmente na esfera econômica De acordo com os historiadores até bem pouco tempo as formas de vida industrial na Europa agrícola não eram muito diferentes daquelas que existiram há alguns milhares de anos Desde o aparecimento do arado basicamente uma 65 grande enxada puxada por animais os métodos de agricultura permaneceram substancialmente inalterados na maior parte da Europa Ocidental e Central até o início da era moderna Na verdade progresso da civilização nessas regiões foi principalmente político intelectual e espiritual quanto às condições materiais a Europa Ocidental de 1100 aD ainda não havia sequer alcançado o mundo romano de milhares de anos atrás Mesmo mais tarde a mudança ocorreu mais facilmente nos canais da arte de governar na literatura e nas artes principalmente religiosas e de conhecimentos do que nos da indústria Do ponto de vista econômico a Europa medieval se situava no nível da Pérsia antiga da Índia ou da China e certamente não podia rivalizar em riqueza e cultura com o Novo Império do Egito de dois mil anos atrás Max Weber foi primeiro entre os historiadores da economia moderna a protestar contra o fato de se deixar de lado as economias primitivas como irrelevantes para a questão das motivações e mecanismos das sociedades civilizadas O trabalho subseqüente da antropologia social comprovou que ele estava inteiramente certo e qualquer conclusão pode ser destacada com mais clareza que as outras no estudo recente das sociedades primitivas é justamente a não modificação do homem como ser social Seus dotes naturais reaparecem com uma constância marcante nas sociedades de todos os tempos e lugares e as precondições necessárias para a sobrevivência da sociedade humana parecem ser as mesmas sem mutações A descoberta mais importante nas recentes pesquisas históricas e antropológicas é que a economia do homem como regra está submersa em suas relações sociais Ele não age desta forma para salvaguardar seu interesse individual na posse de bens materiais ele age assim para salvaguardar sua situação social suas exigências sociais seu patrimônio social Ele valoriza os bens materiais na medida em que eles servem a seus propósitos Nem o processo de produção nem o de distribuição está ligado a interesses econômicos específicos relativos à posse de bens Cada passo desse processo está atrelado a um certo número de interesses sociais e são estes que asseguram a necessidade daquele passo É natural que esses interesses sejam muito diferentes numa pequena comunidade de caçadores ou pescadores e numa ampla sociedade despótica mas tanto numa como noutra o sistema econômico será dirigido por motivações nãoeconômicas Em termos de sobrevivência a explicação é simples Tomemos o caso de uma sociedade tribal O interesse econômico individual só raramente é predominante pois a comunidade vela para que nenhum 66 de seus membros esteja faminto a não ser que ela própria seja avassalada por uma catástrofe em cujo caso os interesses são ameaçados coletiva e não individualmente Por outro lado a manutenção dos laços sociais é crucial Primeiro porque infringindo o código estabelecido de honra ou generosidade o indivíduo se afasta da comunidade e se torna um marginal segundo porque a longo prazo todas as obrigações sociais são recíprocas e seu cumprimento serve melhor aos interesses individuais de darereceber Essa situação deve exercer uma pressão contínua sobre o indivíduo no sentido de eliminar do seu consciente o autointeresse econômico a ponto de tornáI o incapaz em muitos casos mas certamente não em todos de compreender até mesmo as implicações de suas próprias ações em termos de um tal interesse Essa atitude é reforçada pela freqüência das atividades comunais tais como partilhar do alimento na caça comum ou participar dos resultados de alguma distante e perigosa expedição tribal O prêmio estipulado para a generosidade é tão importante quando medido em termos de prestígio social que não compensa ter outro comportamento senão o de esquecimento próprio O caráter pessoal nada tem a ver com o assunto O homem pode ser tão bom ou mau sociável ou insociável avaro ou generoso a respeito de um conjunto de valores como a respeito de outro Na verdade não permitir a ninguém ter motivos de ciúme é um princípio aceito da distribuição cerimonial da mesma forma como é importante elogiar publicamente um hortelão diligente habilidoso e bemsucedido a menos que ele seja demasiado bemsucedido em cujo caso podese permitir que ele definhe sob a ilusão de ser vítima de magia negra As paixões humanas boas ou más são apenas dirigidas para finalidades nãoeconômicas A exibição cerimonial só serve para incentivar a emulação até o máximo possível e o costume do trabalho comunal tende a elevar ao máximo ambos os padrões quantitativo e qualitativo A execução de todos os atos de troca como presentes gratuitos cuja reciprocidade é aguardada embora não necessariamente pelos mesmos indivíduos um procedimento articulado minuciosamente e perfeitamente salvaguardado por complicados métodos de publicidade através dos ritos mágicos e do estabelecimento de dualidades nas quais os grupos estão unidos por obrigações mútuas deve explicar por si mesma a ausência da noção de lucro e até mesmo de riqueza a não ser a que consiste em objetos que ressaltam tradicionalmente o prestígio social Neste esboço dos traços gerais característicos de uma comunidade da Melanésia Ocidental não levamos em conta a sua organização sexual 67 e territorial em relação às quais o costume a lei a magia e a religião exercem influência pois pretendemos apenas mostrar a maneira pela qual as assim chamadas motivações econômicas se originam no contexto da vida social E é justamente nesse ponto negativo que os etnógrafos modernos concordam a ausência da motivação de lucro a ausência do princípio de trabalhar por uma remuneração a ausência do princípio do menor esforço e especialmente a ausência de qualquer instituição separada e distinta baseada em motivações econômicas Mas então como se garante a ordem na produção e na distribuição A resposta é fornecida em sua maior parte por dois princípios de comportamento não associados basicamente à economia reciprocidade e redistribuição13 Para os ilhéus de Trobriand da Melanésia Ocidental que servem como ilustração deste tipo de economia a reciprocidade atua principalmente em relação à organização sexual da sociedade isto é família e parentesco A redistribuição é importante principalmente em relação a todos aqueles que têm uma chefia em comum e têm assim um caráter territorial Tomemos esses princípios em separado A subsistência da família a mulher e os filhos é tarefa de seus parentes matrilineares O homem que sustenta sua irmã e a família dela entregandolhe os melhores produtos da sua colheita ganhará crédito principalmente pelo seu bom comportamento porém terá em troca muito pouco benefício material imediato Se ele for preguiçoso sua reputação será a primeira a ser atingida O princípio da reciprocidade atuará principalmente em benefício da sua mulher e de seus filhos compensandoo assim economicamente por seus atos de virtude cívica A exibição cerimonial dos alimentos tanto em sua própria horta como ante o depósito da que recebe é uma garantia de que todos conhecerão a elevada qualidade da sua atividade como hortelão Tornase aparente aqui que a economia hortelã e doméstica é parte das relações sociais ligadas à posição de bom marido e ótimo cidadão O amplo princípio da reciprocidade ajuda a salvaguardar tanto a produção como a subsistência familiar O princípio da redistribuição não é menos efetivo Uma parte substancial de toda a produção da ilha é entregue pelo chefe da aldeia ao chefe geral que a armazena Entretanto como toda a atividade comunal se centraliza em festas danças e outras ocasiões quando os ilhéus 13 Cf Notas sobre as Fontes Os trabalhos de Malinowski e Thurnwald foram extensamente utilizados neste capítulo 68 entretêm uns aos outros assim como aos vizinhos de outras ilhas ocasião em que são distribuídos os resultados do comércio em áreas distantes presentes são entregues e reciprocados de acordo com as regras de etiqueta e o chefe distribui a todos os presentes habituais tornase aparente a extrema importância do sistema de armazenamento Do ponto de vista econômico é parte essencial do sistema vigente de divisão do trabalho do comércio exterior da taxação para finalidades públicas das provisões de defesa Entretanto essas funções de um verdadeiro sistema econômico são inteiramente absorvidas pelas experiências intensamente vividas que oferecem uma superabundante motivação nãoeconômica em cada ato executado no quadro do sistema social como um todo Princípios de comportamento como esse contudo não podem ser efetivos a menos que os padrões institucionais existentes levem à sua aplicação A reciprocidade e a redistribuição são capazes de assegurar o funcionamento de um sistema econômico sem a ajuda de registros escritos e de uma complexa administração apenas porque a organização das sociedades em questão cumpre as exigências de uma tal solução com a ajuda de padrões tais como a simetria e a centralidade A reciprocidade é enormemente facilitada pelo padrão institucional da simetria um aspecto freqüente da organização social entre os povos iletrados A marcante dualidade que encontramos em subdivisões tribais colabora para a união de relações individuais ajudando assim o tomaredar de bens e serviços na ausência de registros permanentes As metades da sociedade selvagem que tendem a criar um pendant em cada subdivisão acabam resultando de e ajudando a executar os atos de reciprocidade sobre os quais o sistema repousa Pouco se conhece a respeito da origem da dualidade porém cada aldeia da costa nas Ilhas Trobriand parece ter a sua contrapartida numa aldeia do interior de forma que a importante troca de frutapão e peixe embora disfarçada sob a forma de distribuição recíproca de presentes e na verdade deslocada no tempo pode ser perfeitamente organizada Também no comércio de Kula cada indivíduo tem o seu parceiro em uma outra ilha personalizando assim numa extensão marcante a relação da reciprocidade Não fosse a freqüência do padrão simétrico nas subdivisões da tribo na localização dos povoados bem como nas relações intertribais seria impraticável uma ampla reciprocidade baseada na atuação em última instância de atos isolados de dare tomar O padrão institucional da centralidade por seu lado que está presente de alguma forma em todos os grupos humanos fornece um conduto para a coleta armazenagem e redistribuição de bens e serviços 69 Os membros de uma tribo de caçadores geralmente entregam a caça ao chefe para a redistribuição É da própria natureza da caça que o rendimento seja irregular além de ser o resultado do esforço coletivo Sob condições como essas não seria praticável qualquer outro método de partilha a não ser que o grupo se desfaça após cada expedição Assim em todas as economias desse tipo existe uma necessidade semelhante seja o grupo numeroso ou não Quanto maior for o território e quanto mais variado o produto mais a redistribuição resultará numa efetiva divisão do trabalho uma vez que ela ajudará a unir grupos de produtores geograficamente diferenciados A simetria e a centralidade vão de encontro na metade do caminho às necessidades da reciprocidade e da redistribuição os padrões institucionais e os princípios de comportamento se ajustam mutuamente Enquanto o organização social segue a sua rotina normal não há razão para a interferência de qualquer motivação econômica individual não é preciso temer qualquer evasão do esforço pessoal a divisão do trabalho fica assegurada automaticamente as obrigações econômicas serão devidamente desempenhadas e acima de tudo estão assegurados os meios materiais para uma exibição exuberante de abundância em todos os festivais públicos Numa tal comunidade é vedada a idéia do lucro as disputas e os regateios são desacreditados o dar graciosamente é considerado como virtude não aparece a suposta propensão à barganha à permuta e à troca Na verdade o sistema econômico é mera função da organização social De forma alguma devese concluir que os princípios socioeconômicos desse tipo são restritos a produtores primitivos ou pequenas comunidades e que uma economia sem lucro e sem mercado deve ser simples necessariamente O circuito Kula da Melanésia Ocidental com base no princípio da reciprocidade é uma das mais completas transações comerciais já conhecidas pelo homem e a redistribuição esteve presente em escala gigantesca na civilização das pirâmides As Ilhas Trobriand pertencem a um arquipélago que forma aproximadamente um círculo e parte importante da população desse arquipélago despende um proporção considerável do seu tempo em atividades do comércio Kula Descrevernolo como um comércio embora ele não envolva qualquer lucro quer em dinheiro ou em espécie As mercadorias não são acumuladas nem mesmo possuídas permanentemente o gozo dos bens recebido está justamente em poder dálos em seguida não existe nenhuma disputa ou controvérsia e nem barganha permuta ou troca Todo o processo é regulado inteiramente pela etiqueta e 70 pela magia Todavia tratase de um comércio e periodicamente os nativos desse arquipélago em forma aproximada de anel organizam grandes expedições a fim de levar um determinado tipo de objeto valioso aos povos que vivem em ilhas distante como que seguindo os ponteiros de um relógio enquanto outras expedições são organizadas para levar outro tipo de objeto valioso às ilhas do arquipélago situadas na ordem inversa à dos ponteiros de um relógio Em última instância ambos os conjuntos de objetos braceletes de madrepérola e colares de contas vermelhas de artesanato tradicional movemse em torno do arquipélago um trajeto que pode levar até dez anos para ser completado Além disso existem parceiros individuais no Kula que como regra reciprocam os presentes Kula com braceletes e colares igualmente valiosos de preferência aqueles que pertenceram anteriormente a pessoas importantes Ora um tomaládácá sistemático e organizado de objetos valiosos transportados a grandes distâncias é descrito justamente como comércio Entretanto essa totalidade complexa é dirigida exclusivamente em termos de reciprocidade Um intrincado sistema de tempoespaçopessoa que cobre centenas de milhas e diversas décadas e que liga muitas centenas de pessoas em relação a milhares de objetos estritamente individuais é aqui manipulado sem que existam registros ou administração e também sem qualquer motivação de lucro ou permuta que domina não é a propensão à barganha mas à reciprocidade no comportamento social O resultado no entanto é uma realização organizacional estupenda na área econômica Com efeito seria interessante considerar se até mesmo um moderna organização de mercado adiantada baseada numa contabilidade exata seria capaz de assumir uma tal tarefa no caso de lhe ser atribuída É de se recear que os infelizes comerciantes ao enfrentar os inumeráveis monopólios da compra e venda de objetos individuais e as restrições extravagantes ligadas a cada transação deixariam de realizar sequer um lucro comum e prefeririam sair do negócio A redistribuição também tem uma longa e variada história que leva até quase os tempos modernos Dos Bergdama que voltam da sua excursão de caça ou da mulher que volta da sua busca de raízes frutas ou folhas esperase que ofereçam a maior parte do seu espólio em benefício da comunidade Naprática isto significa que o produto da sua atividade é partilhado com as outras pessoas que estão vivendo com eles A idéia da reciprocidade prevalece até este ponto o que se dá hoje é recompensado pelo que se toma amanhã Entre algumas tribos 71 porém existe um intermediário na pessoa do chefe ou outro membro proeminente do grupo é ele quem recebe e distribui os suprimentos especialmente se eles precisam ser armazenados Esta é a verdadeira redistribuição Obviamente as conseqüências sociais de um tal método de distribuição podem ser de longo alcance uma vez que nem todas as sociedades são tão democráticas como as dos caçadores primitivos Seja a redistribuição feita por uma família influente ou por um indivíduo importante uma aristocracia dominante ou um grupo de burocratas o fato é que eles muitas vezes tentarão aumentar seu poder político através da maneira pela qual redistribuem os bens No potlatch dos Kwakiutl é ponto de honra para o chefe exibir sua riqueza em peles e distribuíIas Entretanto ele assim procede também para colocar os recebedores sob obrigação para fazêlos seus devedores e finalmente seus apaniguados Todas as economias desta espécie em grande escala foram dirigidas com a ajuda do princípio da redistribuição O reinado de Hammurabi na Babilônia e em particular o Novo Império do Egito eram despotismos centralizados do tipo burocrático fundados numa economia como essa A casa da família patriarcal é aqui reproduzida numa escala enormemente ampliada enquanto a sua distribuição comunista era classificada envolvendo rações agudamente diferenciadas Havia um grande número de armazéns prontos a receber o produto da atividade do camponês fosse ele criador de gado caçador padeiro cervejeiro oleiro tecelão ou o que quer que seja O produto era registrado minuciosamente e desde que não fosse consumido no local era transferido de pequenos para grandes armazéns até alcançar a administração central localizada na corte do faraó Havia armazéns especiais para tecidos obras de arte objetos ornamentais cosméticos prataria guardaroupa real havia armazéns enormes para cereais arsenais e adegas de vinho Mas a redistribuição na escala praticada pelos construtores das pirâmides não se restringia a economias que não conheciam o dinheiro Na verdade todos os reinos arcaicos fizeram uso de moedas metálicas para o pagamento de impostos e salários mas no restante dependiam de pagamentos em espécie dos celeiros e armazéns de todo o tipo a partir dos quais eles distribuíam as mais variadas mercadorias para uso e consumo principalmente à parte nãoprodutiva da população isto é às autoridades aos militares à classe ociosa Este era o sistema em vigor na antiga China no império dos Incas nos reinos da Índia e também na Babilônia Nestas como em muitas outras civilizações de 72 grande desenvolvimento econômico foi elaborada uma complexa divisão do trabalho através do mecanismo da redistribuição Esse princípio também se manteve sob condições feudais Nas sociedades da África etnicamente estratificadas acontece às vezes que o estrato superior consiste de criadores de gado estabelecidos entre agricultores que ainda utilizam a pá ou a enxada Os presentes cobrados pelos criadores são principalmente agrícolas cereais e cerveja enquanto os presentes por eles distribuídos podem ser animais especialmente carneiros ou cabras Nestes casos existe um divisão de trabalho embora geralmente desigual entre os vários estratos da sociedade a distribuição pode às vezes implicar uma medida de exploração enquanto que ao mesmo tempo a simbiose beneficia os padrões de ambos os estratos graças às vantagens de uma divisão do trabalho melhorada Do ponto de vista político tais sociedades vivem sob um regime de feudalismo seja o gado ou a terra o valor privilegiado Existem feudos reguladores de gado na África Oriental Thurnwald a quem seguimos de perto quanto ao tema da redistribuição pôde dizer assim que o feudalismo foi em todos os lugares um sistema de redistribuição Foi somente em condições muito desenvolvidas e em circunstâncias excepcionais que esse sistema se tornou predominantemente político como aconteceu na Europa Ocidental onde a mudança surgiu da necessidade de proteção do vassalo e onde os presentes se converteram em tributos feudais Esses exemplos mostram que a redistribuição também tende a enredar o sistema econômico propriamente dito em relações sociais Como regra encontramos o processo de redistribuição como parte do regime político vigente seja ele o de urna tribo de uma cidadeestado do despotismo ou do feudalismo do gado ou da terra A produção e a distribuição de mercadorias são organizadas principalmente através da arrecadação do armazenamento e da redistribuição sendo o padrão focalizado o chefe o templo o déspota ou o senhor Uma vez que as relações do grupo dominante com os dominados são diferentes de acordo com os fundamentos em que repousa o poder político o princípio da redistribuição envolverá motivações individuais tão diferentes como a partilha voluntária da caça pelos caçadores e o medo do castigo que impulsiona os fellaheen a pagarem seus impostos em espécie Deixamos de lado nesta apresentação deliberadamente a distinção vital entre sociedades homogêneas e estratificadas ie sociedades socialmente unificadas na sua totalidade e sociedades divididas entre dominantes e dominados Embora a posição relativa de escravos e 73 senhores possa ser totalmente distinta daquela dos membros livres e iguais de algumas tribos de caçadores e conseqüentemente as motivações nas duas sociedades serão consideravelmente diferentes a organização do sistema econômico ainda pode se basear nos mesmos princípios embora acompanhados por traços culturais muito diferentes de conformidade com as relações humanas muitos diferentes com as quais o sistema econômico se entrelaça O terceiro princípio destinado a desempenhar um grande papel na história e ao qual chamaremos o princípio da domesticidade consiste na produção para uso próprio Os gregos chamavamno oeconomia étimo da palavra economia No que diz respeito aos registros etnográficos não devemos presumir que a produção para a própria pessoa ou para um grupo seja mais antiga que a reciprocidade ou a redistribuição Pelo contrário tanto a tradição ortodoxa como algumas teorias mais recentes sobre o assunto foram refutadas enfaticamente O selvagem individualista que procura alimentos ou caça para si mesmo ou para sua família nunca existiu Na verdade a prática de prover as necessidades domésticas próprias tornouse um aspecto da vida econômica apenas em um nível mais avançado da agricultura Mesmo então ela nada tinha em comum com a motivação do ganho nem com a instituição de mercados O seu padrão é o grupo fechado Tanto no caso de entidades de família muito diferentes como no povoamento ou na casa senhorial que constituíam unidades autosuficientes o princípio era invariavelmente o mesmo a saber o de produzir e armazenar para a satisfação das necessidades dos membros do grupo O princípio é tão amplo na sua aplicação como o da reciprocidade ou da redistribuição A natureza do núcleo institucional é indiferente pode ser sexo como na família patriarcal localidade como nas aldeias ou poder político como no castelo senhorial E também não importa a organização interna do grupo Pode ser tão despótica como a família romana ou tão democrática como a zadruga suleslava tão grande como os imensos domínios dos magnatas Carolíngios ou tão pequenas como a propriedade camponesa média da Europa Ocidental A necessidade de comércio ou de mercados não é maior do que no caso da reciprocidade ou da redistribuição Foi justamente esta situação que Aristóteles tentou estabelecer como norma há mais de dois mil anos Pesquisando o passado das altitudes rapidamente declinantes de uma economia de mercado de caráter mundial temos que concordar que a famosa distinção que ele faz entre a domesticidade propriamente dita e o ato de se ganhar dinheiro 74 moneymaking no capítulo introdutório da sua política foi provavelmente o indicador mais profético jamais feito no campo das ciências sociais Ainda continua sendo a melhor análise do assunto que possuímos Aristóteles insiste na produção para uso contra a produção visando lucro como essência da domesticidade propriamente dita Assim um produção acessória para o mercado argumenta ele não precisa destruir a auto suficiência doméstica uma vez que a colheita seja reinvestida na fazenda para sustento seja como gado ou cereal A venda dos excedentes não precisa destruir a base da domesticidade Somente um gênio do senso comum poderia afirmar como ele o fez que o ganho era uma motivação peculiar à produção para o mercado e que o fator dinheiro introduzira um novo elemento na situação No entanto enquanto os mercados e o dinheiro fossem meros acessórios de uma situação doméstica autosuficiente o princípio da produção para uso próprio poderia funcionar Nesse sentido ele estava inteiramente certo embora deixasse de ver como era impraticável ignorar a existência de mercados numa época em que a economia grega tinha se tornado dependente do comércio atacadista e do capital de empréstimos Esse foi o século em que Delos e Rhodes se desenvolveram em empórios de seguros de fretes empréstimos marítimos e bancos de capital de giro comparados aos quais a Europa Ocidental de mil anos depois foi o próprio retrato do prirnitivismo No entanto Jowett Mestre em Balliol se enganou redondamente quando considerou correta a suposição de que a Inglaterra vitoriana tinha uma noção muito mais clara do que Aristóteles sobre a natureza da diferença entre o setor doméstico e o que ganha dinheiro Ele desculpava Aristóteles alegando que os temas do conhecimento ligados ao homem se entrelaçam uns com os outros e na época de Aristóteles eles não se distinguiam facilmente É verdade que Aristóteles não reconheceu claramente as implicações da divisão do trabalho e sua ligação com os mercados e o dinheiro assim como não compreendeu as utilizações do dinheiro como crédito e capital Nesse ponto as restrições de Jowett são justificadas Entretanto foi o mestre de Balliol e não Aristóteles que se tornou insensível às implicações humanas de se ganhar dinheiro Ele não viu que a distinção entre o princípio do uso e o princípio do ganho era a chave para a civilização inteiramente diferente cujos contornos Aristóteles acertadamente previu dois mil anos antes do seu advento Um colégio de Oxford N do R 75 baseandose para isso nos simples rudimentos de uma economia de mercado disponível na época enquanto Jowett já com o espécime inteiramente pronto diante dele ignorou a sua existência Ao denunciar o princípio da produção visando lucro como não natural ao homem por ser infinito e ilimitado Aristóteles estava apontando na verdade para o seu ponto crueial a saber a separação de uma motivação econômica isolada das relações soeiais nas quais as limitações eram inerentes De forma mais ampla essa proposição sustenta que todos os sistemas econômicos conhecidos por nós até o fim do feudalismo na Europa Ocidental foram organizados segundo os princípios de reciprocidade ou redistribuição ou domesticidade ou alguma combinação dos três Esses princípios eram institucionalizados com a ajuda de uma organização social a qual inter alia fez uso dos padrões de simetria centralidade e autarquia Dentro dessa estrutura a produção ordenada e a distribuição dos bens era assegurada através de uma grande variedade de motivações individuais disciplinadas por princípios gerais de comportamento E entre essas motivações o lucro não ocupava lugar proeminente Os costumes e a lei a magia e a religião cooperavam para induzir o indivíduo a cumprir as regras de comportamento as quais eventualmente garantiam o seu funcionamento no sistema econômico O período grecoromano a despeito do seu conteúdo altamente desenvolvido não representou qualquer ruptura nesse sentido ele se caracterizou pela redistribuição de cereais em grande escala feita pela administração romana numa economia em tudo doméstica e ele não se constituiu em exceção à regra vigente de que até o final da Idade Média os mercados não desempenharam papel importante no sistema econômico prevaleciam outros padrões institucionais A partir do século XVI os mercados passaram a ser mais numerosos e importantes Na verdade sob o sistema mercantil eles se tornara a preocupação principal dos governos Entretanto não havia ainda sinal de que os mercados passariam a controlar a sociedade humana Pelo contrário Os regulamentos e os regimentos eram mais severos do que nunca estava ausente a própria idéia de um mercado auto regulável Para compreender a súbita mudança para um tipo inteiramente novo da economia no século XIX devemos nos voltar agora para a história do mercado uma instituição que praticamente negligenciamos em nosso resumo dos sistemas econômicos do passado 76 5 EVOLUÇÃO DO PADRÃO DE MERCADO Se queremos deixar de lado as superstições econômicas do século XIX14 a parte dominante desempenhada pelos mercados na economia capitalista juntamente com o significado básico do princípio de permuta ou troca nessa economia exige uma pesquisa cuidadosa da natureza e origem dos mercados A permuta a barganha e a troca constituem um princípio de comportamento econômico que depende do padrão de mercado para sua efetivação Um mercado é um local de encontro para a finalidade da permuta ou da compra e venda A menos que este padrão esteja presente pelo menos em parte a propensão à permuta não terá escopo suficiente ela não poderá produzir preços15 Assim como a reciprocidade é auxiliada por um padrão simétrico de organização a redistribuição é facilitada por alguma medida de centralização e a domesticidade tem que ser baseada na autarquia assim também o princípio da permuta depende para sua efetivação do padrão de mercado Todavia da mesma forma como tanto a reciprocidade como a redistribuição ou a domesticidade podem ocorrer numa sociedade sem nela ocupar um lugar primordial o princípio da permuta também pode ocupar um lugar 14 Cf Notas sobre as Fontes 15 Hawtrey G R The Economic Problem 1925 p 13 A aplicação prática do princípio do individualismo depende inteiramente da prática da troca Entretanto Hawtrey se enganou em presumir que a existência de mercados seguiuse simplesmente à prática da troca 77 subordinado numa sociedade na qual os outros princípios estão em ascendência Em alguns outros sentidos porém o princípio da permuta não está em paridade estrita com os três outros princípios O padrão de mercado com o qual ele está associado é mais específico do que a simetria a centralidade ou a autarquia os quais em contraste com o padrão de mercado são meros traços e não criam instituições designadas para uma função apenas A simetria nada mais é do que um arranjo sociológico que não dá origem a instituições isoladas mas apenas padroniza as já existentes se uma tribo ou uma aldeia é ou não simetricamente padronizada isto não envolve qualquer instituição distinta A centralidade embora crie freqüentemente instituições distintas não implica motivação que particularizaria a instituição resultante para uma função específica única o chefe de uma aldeia ou qualquer outra autoridade central pode assumir por exemplo uma série de funções política militar religiosa ou econômica indiscriminadamente Finalmente a autarquia econômica é apenas um traço acessório de um grupo fechado existente Por outro lado o padrão de mercado relacionandose a um motivo peculiar próprio o motivo da barganha ou da permuta é capaz de criar uma instituição específica a saber o mercado Em última instância é por isto que o controle do sistema econômico pelo mercado é conseqüência fundamental para toda a organização da sociedade significa nada menos dirigir a sociedade como se fosse um acessório do mercado Em vez de a economia estar embutida nas relações sociais são as relações sociais que estão embutidas no sistema econômico A importância vital do fator econômico para a existência da sociedade antecede qualquer outro resultado Desta vez o sistema econômico é organizado em instituições separadas baseado em motivos específicos e concedendo um status especial A sociedade tem que ser modelada de maneira tal a permitir que o sistema funcione de acordo com as suas próprias leis Este é o significado da afirmação familiar de que uma economia de mercado só pode funcionar numa sociedade de mercado Na verdade foi crucial o passo que transformou mercados isolados numa econômica de mercado mercados reguláveis num mercado autoregulável O século XIX aclamando o fato como o ápice da civilização ou deplorandoo como um crescimento canceroso imaginava ingenuamente que um tal desenvolvimento era o resultado natural da difusão dos mercados Não se compreendeu que a engrenagem de mercados num sistema autoregulável de tremendo poder não foi o resultado de 78 qualquer tendência inerente aos mercados em direção à excrescência e sim o efeito de estimulantes altamente artificiais administrados ao corpo social a fim de fazer frente a uma situação criada pelo fenômeno não menos artificial da máquina Não foi reconhecida a natureza limitada e não expansiva do padrão de mercado como tal e no entanto é este o fato que emerge com toda clareza da moderna pesquisa Os mercados não são encontrados em todos os lugares a sua ausência embora indicando um certo isolamento e uma tendência à reclusão não está associada a qualquer desenvolvimento particular e o mesmo também pode ser auferido da sua presença Essa frase incolor transcrita do Economics in Primitive Communities de Thurnwald resume os resultados significativos da moderna pesquisa sobre o assunto Um outro autor repete em relação ao dinheiro o que Thurnwald diz a respeito dos mercados O simples fato de uma tribo usar dinheiro diferenciase muito pouco do ponto de vista econômico de quaisquer outras tribos do mesmo nível cultural que não o utilizam Não precisamos mais do que salientar algumas das implicações mais importantes dessas afirmativas A presença ou a ausência de mercados ou de dinheironâoafera necessariamente o sistema econômico de uma sociedade primitiva Isto refuta o mito do século XIX de que o dinheiro foi uma invenção cujo aparecimento transformava inevitavelmente uma sociedade com a criação de mercados forçando o ritmo da divisão de trabalho liberando a propensão natural do homem à permuta à barganha e à troca Com efeito a história econômica ortodoxa se baseou numa perspectiva imensamente exagerada do significado dos mercados como tais Um certo isolamento ou talvez uma tendência à reclusão é o único traço econômico que pode ser indeferido corretamente da ausência de mercados no que diz respeito à organização interna de uma economia sua presença ou ausência não faz necessariamente qualquer diferença As razões são simples Os mercados não são instituições que funcionam principalmente dentro de um economia mas fora dela Eles são locais de encontro para um comércio de longa distância Os mercados locais propriamente ditos são de pouca importância Além disso nem os mercados de longa distância nem os mercado locais são essencialmente competitivos Conseqüentemente tanto num como noutro caso é pouca a pressão para se criar um comércio territorial o assim chamado mercado interno ou nacional Cada uma dessas afirmativas chocase com algum pressuposto axiomático dos economistas clássicos entretanto elas seguem muito de perto os fatos que aparecem à luz da pesquisa moderna 79 De fato a lógica do caso é quase o oposto do que subentende a doutrina clássica O ensino ortodoxo partiu da propensão do indivíduo à permuta deduziu daí a necessidade de mercados locais bem como a divisão do trabalho inferiu finalmente a necessidade do comércio eventualmente do comércio exterior incluindo até mesmo o comércio de longa distância À luz do nosso conhecimento atual podíamos quase reverter a seqüência do argumento o verdadeiro ponto de partida é o comércio de longa distância um resultado da localização geográfica das mercadorias e da divisão do trabalho dada pela localização O comércio de longa distância muitas vezes engendra mercados uma instituição que envolve atos de permuta e se o dinheiro é utilizado de compra e venda Eventualmente porém não necessariamente isto oferece a alguns indivíduos a oportunidade de utilizar a sua alegada propensão para a barganha e o regateio O aspecto dominante desta doutrina é a origem do comércio numa esfera externa não relacionada com a organização interna da economia A aplicação dos princípios observados na caça para obter bens encontrados fora dos limites do distrito levou a certas formas de troca que nos pareceram mais tarde como comércio3 Procurando as origens do comércio nosso ponto de partida deveria ser a obtenção de bens distantes como numa caça Os Dieri da Austrália Central todos os anos em julho ou agosto fazem uma expedição ao sul para conseguir o ocre vermelho que eles usam para pintar seus corpos Seus vizinhos os Yantruwunta organizam empreendimentos semelhantes para conseguir o ocre vermelho e blocos de arenito para moer sementes em Flinders Hills distante oitocentos quilômetros Em ambos os casos era às vezes necessário lutar pelos artigos desejados quando o povo local oferecia resistência à sua remoção Esta espécie de requisição ou caça ao tesouro é claramente tão semelhante ao roubo e à pirataria quanto aquilo que costumamos ver como comércio basicamente é um negócio unilateral Ele se torna bilateral ie uma certa forma de troca apenas através da chantagem praticada pelos poderes locais ou também através de acordos de reciprocidade como no anel Kula nas cerimônias de visita dos Pengwe da África Ocidental ou com os Kpelle onde o chefe monopoliza o comércio exterior insistindo em entreter todos os hóspedes É verdade que tais visitas não são acidentais e sim em nossos termos não deles genuínas viagens de negócios 3 Thurnwald R C Economics in Primitive Communities 1932 p 147 80 a troca de bens porém é sempre feita sob o disfarce de presentes recíprocos e sob a forma ainda de retribuição de visitas Chegamos à conclusão assim de que embora as comunidades humanas nunca tenham deixado de lado inteiramente o comércio exterior esse comércio nem sempre envolvia mercados necessariamente Originalmente o comércio exterior sempre esteve mais ligado à aventura exploração caça pirataria e guerra do que à permuta Ele pode implicar tanto em paz como em bilateralidade porém mesmo quando implica ambos ele é baseado habitualmente no princípio da reciprocidade e não da permuta A transição para a permuta pacífica pode se orientar em duas direções a saber na da troca e na da paz Como acima indicado uma expedição tribal pode ter que cumprir as condições estabelecidas pelos poderes locais os quais podem exigir dos estrangeiros um tipo de contrapartida Esse tipo de relacionamento embora não inteiramente pacífico pode dar origem à permuta uma transação unilateral será transformada em bilateral O outro tipo de desenvolvimento é o de comércio silencioso que ocorre nas selvas africanas onde se evita o risco do combate através de uma combinação organizada com o qual se introduz na própria transação com a devida circunspecção um elemento de paz aceitação e confiança Como sabemos num estágio posterior os mercados se tornaram predominantes na organização do comércio exterior Entretanto do ponto de vista econômico os mercados externos são algo inteiramente diferente tanto dos mercados locais quanto dos mercados internos Eles não diferem apenas em tamanho são instituições de função e origem diferentes O mercado externo é uma transação a questão é a ausência de alguns tipos de mercadorias naquela região A troca de lãs inglesas por vinhos portugueses constitui um exemplo O comércio local é limitado às mercadorias da região as quais não compensa transportar porque são demasiado pesadas volumosas ou perecíveis Assim tanto o comércio exterior quanto o local são relativos à distância geográfica sendo um confinado às mercadorias que não podem superáIa e o outro às que podem fazêlo Um comércio desse tipo é descrito corretamente como complementar A troca local ente cidade e campo e o comércio exterior entre diferentes zonas climáticas baseiamse neste princípio Um tal comércio não implica competição necessariamente e se a competição levasse à desorganização do comércio não haveria contradição em elimináIa Em contraste com o comércio externo e o local o comércio interno por seu lado é essencialmente competitivo 81 Além das trocas complementares ele inclui um número muito maior de trocas nas quais mercadorias similares de fontes diferentes são oferecidas em competição umas com as outras Assim somente com a emergência do comércio interno ou nacional é que a competição tende a ser aceita como princípio geral de comércio Esses três tipos de comércio os quais diferem acentuadamente na sua função econômica também são distintos na sua origem Já falamos sobre o começo do comércio externo A partir dele os mercados se desenvolveram naturalmente em todos os lugares onde os transportadores tinham que parar nos vaus portos marítimos cabeceiras de rios ou onde as rotas das expedições se encontravam Os portos se desenvolveram nos locais de transbordo4 O breve florescimento das famosas feiras da Europa constitui um outro exemplo de um tipo definido de mercado produzido pelo comércio de longa distância Os empórios da Inglaterra são um outro exemplo Entretanto enquanto as feiras e os empórios desapareceram de forma abrupta desconcertando o evolucionista dogmático o portus desempenhou um papel importantíssimo no estabelecimento de cidades na Europa Ocidental Entretanto mesmo nos locais em que as cidades foram fundadas em sítios de mercados externos os mercados locais freqüentemente permaneceram separados não apenas em relação à sua função mas também à sua organização Nem o porto nem a feira nem o empório foi o pai dos mercados internos ou nacionais Onde então poderemos procurar a sua origem Poderia parecer natural presumir que em função dos atos individuais de permuta os mercados locais se desenvolveriam no correr do tempo e que tais mercados uma vez existindo levariam naturalmente ao estabelecimento de mercados internos ou nacionais Entretanto nem um nem outro aconteceu Atos individuais de permuta ou troca esta é a verdade não levam como regra ao estabelecimento de mercados em sociedades onde predominam outros princípios de comportamento econômico Tais atos são comuns em quase todos os tipos de sociedades primitivas porém são considerados incidentais uma vez que não preenchem as necessidades da vida Nos amplos sistemas antigos de redistribuição os atos de permuta e os mercados locais eram uma constante porém apenas em caráter subordinado O mesmo se aplica onde a reciprocidade é a regra aqui os atos de permuta são geralmente inseridos em relações de longo alcance que implicam aceitação 4 Pirenne H Medieval Cities 1925 p 148 nota 12 82 e confiança uma situação que tende a obliterar o caráter bilateral da transação Os fatores limitantes surgem de todos os pontos do compasso sociológico o costume e a lei a religião e a magia contribuem igualmente para o resultado que é restringir os atos de troca em relação a pessoas e objetos tempo e ocasião Como regra aquele que permuta apenas entra em um tipo de transação já determinado no qual tanto os objetos como as quantias a eles equivalentes já são dados Utu na linguagem dos Tikopia5 denota tal equivalente tradicional como parte da troca recíproca Aquilo que parece como o aspecto essencial da troca para o pensamento do século XVIII o elemento voluntário da barganha e do regateio tão expressivo como motivação presumida da permuta tem realmente um objetivo muito limitado na verdadeira transação Mesmo que seu motivo fosse subjacente ao ato raramente se lhe permite atingir a superfície A forma costumeira de comportamento ao contrário é dar oportunidade a uma motivação oposta O doador pode simplesmente largar o objeto no chão e o receptor fingirá apanháIo acidentalmente ou deixará que um dos seus seguidores o faça por ele Nada pode ser mais contrário ao comportamento aceito do que examinar a contrapartida recebida Como temos toda a razão para crer que esta atitude sofisticada não é o resultado de uma falta genuína de interesse pelo lado material da transação podemos descrever a etiqueta da permuta como um desenvolvimento contraditório destinado a limitar o escopo da transação Com efeito em face da evidência seria audacioso afirmar que os mercados locais se desenvolveram a partir de atos individuais de permuta Embora seja muito obscuro o início do mercado local podemos afirmar com segurança que desde o princípio essa instituição foi cercada por uma série de salvaguardas destinadas a proteger a organização econômica vigente na sociedade de interferência por parte das práticas de mercado A paz do mercado era garantida ao preço de rituais e cerimônias que restringiam seu objetivo enquanto asseguravam sua capacidade de funcionar dentro dos estreitos limites dados O resultado mais significativo dos mercados o nascimento de cidades e a civilização urbana foi de fato o produto de um desenvolvimento paradoxal As cidades as crias dos mercados não eram apenas as suas protetoras mas também um meio de impedilos de se expandirem pelo campo e assim incrustaremse na organização econômica corrente da sociedade 5 Firth R Primitive Polynesian Economics 1939 p 347 83 Os dois significados da palavra conter talvez expressem melhor esta dupla função das cidades em relação aos mercados que elas tanto envolviam corno impediam de se desenvolver Se a permuta era cercada de tabus destinados a impedir que esse tipo de relação humana abusasse das funções da organização econômica propriamente dita a disciplina do mercado era ainda mais restrita Eis aqui um exemplo do país Chaga O mercado deve se visitado regularmente nos dias de mercado Se qualquer ocorrência impedir a abertura do mercado por alguns dias os negócios não serão retomados até que a praça do mercado tenha sido purificada Qualquer ocorrência na praça do mercado que envolva derramamento de sangue exige a imediata expiação A partir desse momento não é permitido a qualquer mulher abandonar a praça do mercado e nenhuma mercadoria pode ser tocada tudo tem que ser muito bem limpo antes de ser levado para fora e usado corno alimento Pelo menos um bode tem que ser sacrificado imediatamente Se urna mulher der à luz ou abortar na praça do mercado é necessária urna expiação mais séria e mais dispendiosa Nesse caso é necessário o sacrifício de um anirnalleiteiro Além disso o ambiente doméstico do chefe tem que ser purificado com o sangue do sacrifício de uma vaca leiteira Todas as mulheres do campo têm que ser aspergidas distrito por distrito6 Regras corno estas não tornariam mais fácil a difusão dos mercados O mercado local típico no qual as donas de casa vão comprar algumas de suas necessidades domésticas diárias e nos quais os agricultores de cereais ou verduras assim corno os artesãos locais oferecem Seus artigos à venda revelam uma impressionante indiferença quanto a tempo e lugar Reuniões desse tipo são não só bastante generalizadas nas sociedades primitivas como também permanecem praticamente imutáveis até meados do século XVIII nos países mais adiantados da Europa Ocidental Elas constituem um acessório da o existência local e diferem muito pouco quer façam parte da vida tribal centroafricana que de urna cité da França merovíngia ou de urna aldeia escocesa da época de Adam Smith O que é verdadeiro em relação à aldeia é também verdadeiro em relação à cidade Os mercados locais são essencialmente mercados de vizinhança e embora importantes para a vida das comunidades em nenhum lugar revelam indícios de reduzir o sistema econômico vigente a seus padrões Eles não foram pontos de partida do comércio interno ou naciona 6 Thurnwald RC op Cit pp 162164 84 Na Europa Ocidental o comércio interno foi criado na verdade por intervenção do estado Até a época da Revolução Comercial o que pode nos parecer como comércio nacional não era nacional e sim municipal Os hanseáticos não eram mercadores germânicos eles eram uma corpo ração de oligarcas comerciais sediados em diversas cidades do Mar do Norte e do Báltico Longe de nacionalizarem a vida econômica germânica a Hansa deliberadamente isolava o interior do comércio O comércio da Antuérpia ou Hamburgo Veneza ou Lyon não era de forma alguma holandês ou germânico italiano ou francês Londres não era exceção ela era tão pouco inglesa como Luebeck era germânica O mapa comercial da Europa nesse período mostraria corretamente apenas cidades deixando em branco o campo este pareceria não existir no que concerne ao comércio organizado As assim chamadas nações eram apenas unidades políticas na verdade bastante frouxas e que consistiam economicamente de inúmeros ambientes domésticos autosuficientes maiores ou menores e insignificantes mercados locais nas aldeias O comércio limitavase a distritos organizados que o praticavam localmente como comércio de vizinhança ou como comércio de longa distância os dois eram estritamente separados e a nenhum deles era permitido infiltrarse no campo indiscriminadamente Um separação tão constante entre o comércio local e de longa distância dentro da organização da cidade deve parecer mais um choque para o evolucionista para quem as coisas sempre parecem se imiscuir facilmente umas nas outras E no entanto este fato peculiar constitui a chave da história social da vida urbana na Europa Ocidental Isto comprova claramente nossa afirmativa a respeito da origem dos mercados que inferimos a partir das condições existentes nas economias primitivas A acentuada distinção entre o comércio local e de longa distância pode parecer demasiado rígida especialmente porque ela nos leva à conclusão um tanto surpreendente de que nem o comércio de longa distância nem o comércio local foi o pai do comércio interno dos tempos modernos não nos deixando aparentemente outra alternativa senão voltarmonos a título de explicação para o deus ex machina da intervenção estatal Veremos em seguida que outras investigações recentes apóiam nossas conclusões a esse respeito Todavia queremos fazer primeiro um rápido esboço da história da civilização urbana conforme foi modelada pela separação peculiar entre o comércio e a longa distância dentro dos limites da cidade medieval 85 Essa separação foi na verdade o cerne da instituição dos centros urbanos medievais7 A cidade era uma organização de burgueses Só eles tinham direito à cidadania e o sistema repousava na distinção entre burgueses e não burgueses Nem os camponeses nem os mercadores de outras cidades eram burgueses naturalmente Entretanto enquanto a influência militar e política da cidade tornava possível lidar com os camponeses das redondezas tal autoridade não podia ser exercida em relação ao mercador estrangeiro Em conseqüência os burgueses se encontravam numa posição inteiramente diferente em relação ao comércio local e ao comércio a longa distância No que se refere ao suprimento de alimentos a regulamentação envolvia a aplicação de métodos tais como a publicidade obrigatória das transações e a exclusão de intermediários a fim de controlar o comércio e impedir a elevação dos preços Tal regulamentação porém só era efetiva no comércio que era levado a efeito entre a cidade e suas cercanias A situação era inteiramente diferente no comércio de longa distância As especiarias o peixe salgado ou o vinho tinham que ser transportados de longa distância e constituíam assim o domínio do mercador estrangeiro e dos seus métodos de comércio atacadista capitalista Esse tipo de comércio fugia à regulamentação local A proibição total da venda a varejo pelos mercadores estrangeiros se destinava a alcançar essa finalidade À medida que crescia o volume do comércio atacadista capitalista mais estrita se tornava a sua exclusão dos mercados locais reforçado ainda no que concernia às importações No que diz respeito aos artefatos industriais a separação entre o comércio local e o de longa distância era ainda mais profunda pois neste caso toda a organização de produção para exportação era afetada A razão disto estava na própria natureza das guildas e corporações artesanais nas quais se organizava a produção industrial No mercado local a produção era regulada de acordo com as necessidades dos produtores restringindo a produção a um nível remunerativo Este princípio não se aplicava naturalmente às exportações onde os interesses dos produtores não estabeleciam limites à produção Em conseqüência enquanto o comércio local era estritamente regulado a produção para exportação da época era apenas formalmente controlada pelas corporações de artesãos A indústria de exportação da época o comércio de tecidos era organizada na verdade na base capitalista do trabalho assalariado A separação crescente mente estrita entre o comércio local e o de exportação foi a reação da vida urbana à ameaça do capital móvel de 7 Nossa formulação segue as obras bem conhecidas de H Pirenne 86 desintegrar as instituições da cidade A cidade medieval típica não tentou evitar o perigo diminuindo o abismo entre o mercado local controlável e as incertezas do um comércio de longa distância incontrolável mas ao contrário enfrentou o perigo reforçando com o máximo rigor aquela política de exclusão e proteção que era o rationale da sua existência Na prática isto significa que as cidades levantaram todos os obstáculos possíveis à formação daquele mercado nacional ou interno pelo qual pressionava o atacadista capitalista Mantendo o princípio de um comércio local nãocompetitivo e um comércio a longa distância igualmente nãocompetitivo levado a efeito de cidade a cidade os burgueses dificultaram por todos os meios a seu dispor a inclusão do campo no compasso do comércio e a abertura de um comércio indiscriminado entre as cidades e o campo Foi esse desenvolvimento que forçou o estado territorial a se projetar como instrumento da nacionalização do mercado e criador do comércio interno A ação deliberada do estado nos séculos XV e XVI impingiu o sistema mercantil às cidades e às municipalidades ferrenhamente protecionistas O mercantilismo destruiu o particularismo desgastado do comércio local e intermunicipal eliminando as barreiras que separavam esses dois tipos de comércio nãocompetitivo e assim abrindo caminho para um mercado nacional que passou a ignorar cada vez mais a distinção entre cidade e campo assim como as que existiam entre as várias cidades e províncias O sistema mercantil foi na verdade uma resposta a vários desafios Do ponto de vista político o estado centralizado era uma nova criação estimulada pela Revolução Comercial que mudara o centro de gravidade do mundo ocidental do Mediterrâneo para as costas do Atlântico compelindo assim os povos atrasados de grandes países agrários a se organizarem para o comércio e os negócios Na política externa o estabelecimento de um poder soberano era a necessidade do dia a nova política estatal mercantilista envolvia a disciplina dos recursos de todo território nacional para os objetos de poder nos assuntos externos Na política interna a unificação de países fragmentados pelo patticularismo feudal e municipal foi o subproduto necessário a um tal empreendimento Do ponto de vista econômico o instrumento de unificação foi o capital ie os recursos privados disponíveis sob a forma de dinheiro acumulado e portanto peculiarmente adequado para o desenvolvimento do comércio Finalmente a técnica administrativa subjacente à política econômica do governo central foi fornecida pela ampliação do sistema municipal tradicional ao território mais amplo do estado Na 87 França onde as corporações artesanais tendiam a se tornar órgãos do estado o sistema de guildas foi simplesmente ampliado para todo o território do país Na Inglaterra onde a decadência das cidades fortificadas havia enfraquecido fatalmente aquele sistema o campo foi industrializado sem a supervisão de guildas enquanto em ambos os países os negócios e o comércio se espalhavam por todo o território da nação e se tornavam a forma dominante da atividade econômica Nesta situação reside a origem da política comercial interna do mercantilismo A intervenção estatal que havia liberado o comércio dos limites da cidade privrlegiada era agora chamada a lidar com dois perigos estreitamente ligados os quais a cidade havia contornado com sucesso a saber o monopólio e a competição Já se compreendia naquela época que a competição levaria em última instância ao monopólio mas o monopólio era ainda mais temido do que posteriormente pois ele muitas vezes estava ligado às necessidades da vida e portanto podia tornarse facilmente um perigo para a comunidade O remédio encontrado foi a total regulamentação da vida econômica só que agora em escala nacional e não mais apenas municipal O que para a mente moderna pode facilmente parecer como uma imprevidente exclusão da competição foi na realidade um meio de salvaguardar o funcionamento dos mercados naquelas circunstâncias Qualquer intrusão temporária de compradores ou vendedores no mercado poderia destruir o equilíbrio e decepcionar os compradores e vendedores regulares e o resultado seria a cessação do funcionamento do mercado Os fornecedores antigos deixaram de oferecer suas mercadorias por não terem uma garantia de preço e o mercado sem suprimentos suficientes tornarseia uma presa do monopólio Numa escala menor o mesmo perigo estava presente no lado da demanda onde uma queda rápida poderia ser seguida por um monopólio da demanda Cada passo que o estado tomava para livrar o mercado de restrições particularistas tributos e proibições punha em perigo o sistema organizado de produção e distribuição o qual se via agora ameaçado por uma competição não regulada e pela intrusão de aventureiros que esvaziavam o mercado mas não ofereciam nenhuma garantia de permanência Ocorreu assim que embora os novos mercados nacionais até certo ponto fossem competitivos inevitavelmente o que prevalecia era o aspecto tradicional da regulamentação e não o novo elemento de cornpetiçâo8 A domesticidade autosuficiente do 8 Montesquieu Lesprit de Lois 1748 O inglês restringe o mercador mas é em favor do comércio 88 camponês que trabalhava para sua subsistência continuou sendo a base mais ampla do sistema econômico que agora se integrava em grandes unidades nacionais através da formação do mercado interno Este mercado nacional assumiu o seu lugar ao lado dos mercados local e estrangeiro às vezes sobrepujandoos em parte A agricultura era suplementada agora pelo comércio interno um sistema de mercados relativamente isolados inteiramente compatível com o princípio da domesticidade ainda dominante no campo Isto conclui nossa sinopse da história do mercado até a época da Revolução Industrial O estágio seguinte na história da humanidade como sabemos acarretou uma tentativa de estabelecer um grande mercado autoregulável Nada no mercantilismo essa política distinta do estadonação ocidental deixava prever um desenvolvimento tão singular A libertação do comércio levada a efeito pelo mercantilismo apenas liberou o comércio do particularismo porém ao mesmo tempo ampliou o escopo da regulamentação O sistema econômico estava submerso em relações sociais gerais os mercados eram apenas um aspecto acessório de uma estrutura institucional controlada e regulada mais do que nunca pela autoridade social 89 6 O MERCADO AUTOREGULÁVEL E AS MERCADORIAS FICTíCIAS TRABALHO TERRA E DINHEIRO O rápido esboço dos sistemas econômicos e dos mercados tomados em separado mostra que até a nossa época os mercados nada mais eram do que acessórios da vida econômica Como regra o sistema econômico era absorvido pelo sistema social e qualquer que fosse o princípio de comportamento predominante na economia a presença do padrão de mercado sempre era compatível com ele O princípio da permuta ou troca subjacente a esse padrão não revelava qualquer tendência de expandirse às expensas do resto do sistema Mesmo quando os mercados se desenvolveram muito como ocorreu sob o sistema mercantil eles tiveram que lutar sob o controle de uma administração centralizada que patrocinava a autarquia tanto no ambiente doméstico do campesinato como em relação à vida nacional De fato as regulamentações e os mercados cresceram juntos O mercado autoregulável era desconhecido e a emergência da idéia da autoregulação se constituiu numa inversão completa da tendência do desenvolvimento Assim somente à luz desses fatos é que podem ser inteiramente compreendidos os extraordinários pressupostos subjacentes à economia de mercado Um economia de mercado é um sistema econômico controlado regulado e dirigido apenas por mercados a ordem na produção e distribuição dos bens é confiada a esse mecanismo autoregulável Uma economia desse tipo se origina da expectativa de que os seres humanos se comportem de maneira tal a atingir o máximo de ganhos monetários Ela pressupõe mercados nos quais o fornecimento dos bens disponíveis 90 incluindo serviços a um preço definido igualarão a demanda a esse mesmo preço Pressupõe também a presença do dinheiro que funciona como poder de compra nas mãos de seus possuidores A produção será então controlada pelos preços pois os lucros daqueles que dirigem a produção dependerão dos preços pois estes formam rendimentos e é com a ajuda desses rendimentos que os bens produzidos são distribuídos entre os membros da sociedade Partindo desses pressupostos a ordem na produção e na distribuição de bens é assegurada apenas pelos preços A autoregulação significa que toda a produção é para venda no mercado e que todos os rendimentos derivam de tais vendas Por conseguinte há mercados para todos os componentes da indústria não apenas pata os bens sempre incluindo serviços mas também para o trabalho a terra e o dinheiro sendo seus preços chamados respectiva mente preços de mercadorias salários aluguel e juros Os próprios termos indicam que os preços formam rendas juro é o preço para o uso do dinheiro e constitui a renda daqueles que estão em posição de fornecêlo Aluguel é o preço para o uso da terra e constitui a renda daqueles que a fornecem Salários são os preços para o uso da força de trabalho que constitui a renda daqueles que a vendem Finalmente os preços das mercadorias contribuem para a renda daqueles que vendem seus serviços empresariais sendo a renda chamada de lucro na verdade a diferença entre dois conjuntos de preços o preço dos bens produzidos e seus custos ie o preço dos bens necessários para produzilos Se essas condições são preenchidas todas as rendas derivarão das vendas no mercado e as rendas serão apenas suficientes para comprar todos os bens produzidos Seguese um outro conjunto de pressupostos em relação ao estado e à sua política A formação dos mercados não será inibida por nada e os rendimentos não poderão ser formados de outra maneira a não ser através das vendas Não deve existir ainda qualquer interferência no ajustamento dos preços às mudanças das condições do mercado quer sejam preços de bens trabalho terra ou dinheiro Assim é preciso que existam não apenas mercados para todos os elementos da indústria1 como também não deve ser adotada qualquer medida ou política que possa influenciar a ação desses mercados Nem o preço nem a oferta 1 Henderson H D Supply and Demand 1922 A prática do mercado é dupla a divisão de fatores entre os diferentes usos e a organização das forças que influenciam o fornecimento agregado de fatores 91 nem a demanda devem ser fixados ou regulados só terão validades as políticas e as medidas que ajudem a assegurar a autoregulação do mercado críando condição para fazer do mercado o único poder organizador na esfera econômica Para compreender inteiramente o que isto significa vamos voltar por um momento ao sistema mercantil e aos mercados nacionais que ele tanto concorreu para desenvolver Sob o feudalismo e o sistema de guildas a terra e o trabalho formavam parte da própria organização social o dinheiro ainda não se tinha desenvolvido no elemento principal da indústria A terra o elemento crucial da ordem feudal era a base do sistema militar jurídico administrativo e político seu statús e função eram determinados por regras legais e costumeiras Se à sua posse era transferível ou não e em caso afirmativo a quem e sob quais restrições em que implicavam os direitos de propriedade de que forma podiam ser utilizados alguns tipos de terra todas essas questões ficavam à parte da organização de compra e venda e sujeitas a um conjunto inteiramente diferente de regulamentações institucionais O mesmo também se aplicava à organização do trabalho Sob o sistema de guildas como sob qualquer outro sistema econômico na história anterior as motivações e as circunstâncias das atividades produtivas estavam inseridas na organização geral das sociedades As relações do mestre do jornaleiro e do aprendiz as condições do artesanato o número de aprendizes os salários dos trabalhadores tudo era regulamentado pelo costume e pelas regras da guilda e da cidade O que o sistema mercantil fez foi apenas unificar essas condições quer através de estatutos como na Inglaterra quer através de nacionalização das guildas como na França Quanto à terra seu status feudal só foi abolido naquilo que estava ligado aos privilégios provinciais no restante a terra permaneceu extra commercium tanto na Inglaterra como na França Até a época da Grande Revolução de 1789 a propriedade fundiária continuou sendo fonte de privilégios sociais na França e mesmo depois dessa época a lei comum sobre a terra na Inglaterra era basicamente medieval O mercantilismo com toda a sua tendência em direção à comercialização jamais atacou as salvaguardas que protegiam estes dois elementos básicos da produção trabalho e terra e os impedia de se tornarem objetos de comércio Na Inglaterra a nacionalização da legislação do trabalho por meio do Statute of Artificers Estatuto dos Artífices 1563 e da Poor Law Lei dos Pobres 1601 retirou o trabalho da zona de perigo e a política anticercamento dos Tudors e dos primeiros Stuarts foi um protesto concreto contra o princípio do uso lucrativo da propriedade fundiária 92 O mercantilismo por mais que tivesse insistido enfaticamente na comercialização como política nacional pensava a respeito dos mercados de maneira exatamente contrária à economia de mercado o que fica bem demonstrado pela amplitude da intervenção estatal na indústria Neste ponto não havia diferença entre mercantilistas e feudalistas entre planejadores coroados e interesses investidos entre burocratas centralizadores e particularistas conservadores Eles discordavam apenas quanto aos métodos de regulamentação as guildas as cidades e as províncias apelavam para a força dos costumes e da tradição enquanto a nova autoridade estatal favorecia o estatuto e as leis Todos eles porém eram igualmente avessos à idéia da comercialização do trabalho e da terra a precondição da economia de mercado As guildas artesanais e os privilégios feudais só foram abolidos na França em 1790 na Inglaterra o Statute of Artificers só foi revogado entre 1813 e 1814 e a Poor Law elisabetana em 1834 O estabelecimento do mercado livre de trabalho não foi sequer discutido em ambos os países antes da última década do século XVIII e a idéia da auto regulação da vida econômica estava inteiramente fora de cogitação nesse período O mercantilismo se preocupava com o desenvolvimento dos recursos do país inclusive o pleno emprego através dos negócios e do comércio e levava em conta como um dado certo a organização tradicional da terra e do trabalho Neste ponto ele estava tão afastado dos conceitos modernos como do campo da política onde a sua crença nos poderes absolutos de um déspota esclarecido não continha quaisquer laivos Ae democracia A transição para um sistema democrático e uma política representativa significou a total reversão da tendência da época e da mesma forma a mudança de mercados regulamentados para autoreguláveis ao final do século XVIII representou uma transformação completa na estrutura da sociedade Um mercado autoregulável exige no mínimo a separação institucional da sociedade em esferas econômica e política Do ponto de vista da sociedade como um todo uma tal dicotomia é com efeito apenas um reforço da existência de um mercado autoregulável Podese argumentar que a separação dessas duas esferas ocorra em todos os tipos de sociedade em todos os tempos Um tal inferência porém seria baseada numa falácia É verdade que nenhuma sociedade pode existir sem algum tipo de sistema que assegure a ordem na produção e distribuição de bens Entretanto isto não implica a existência de instituições econômicas separadas Normalmente a ordem econômica é apenas uma função da social na qual ela está inserida Como já demonstramos não 93 havia um sistema econômico separado na sociedade seja sob condições tribais feudais ou mercantis A sociedade do século XIX revelouse de fato um ponto de partida singular no qual a atividade econômica foi isolada e imputada a uma motivação econômica distinta Um tal padrão institucional não poderia funcionar a menos que a sociedade fosse subordinada de alguma forma às suas exigências Uma economia de mercado só pode existir numa sociedade de mercado Chegamos a esta conclusão de uma maneira geral em nossa análise do padrão de mercado Podemos especificar agora as razões desta nossa afirmativa Uma economia de mercado deve compreender todos os componentes da indústria incluindo trabalho terra e dinheiro Numa economia de mercado este último é também um elemento essencial da vida industrial e a sua inclusão no mecanismo de mercado acarretou como veremos adiante conseqüências institucionais de grande alcance Acontece porém que o trabalho e a terra nada mais são do que os próprios seres humanos nos quais consistem todas as sociedades e o ambiente natural no qual elas existem Incluílos no mecanismo de mercado significa subordinar a substância da própria sociedade às leis do mercado Estamos agora em posição de desenvolver numa forma mais concreta a natureza institucional de uma economia de mercado e os perigos que ela acarreta para a sociedade Em primeiro lugar procuraremos descrever os métodos através dos quais o mecanismo de mercado fica capacitado a controlar e dirigir os elementos reais da vida industrial em seguida tentaremos avaliar a natureza dos efeitos de um tal mecanismo sobre a sociedade que está sujeita à sua ação É com a ajuda do conceito de mercadoria que o mecanismo do mercado se engrena aos vários elementos da vida industrial As mercadorias são aqui definidas empiricamente como objetos produzidos para a venda no mercado por outro lado os mercados são definidos empiricamente como contatos reais entre compradores e vendedores Assim cada componente da indústria aparece como algo produzido para a venda pois só então pode estar sujeito ao mecanismo da oferta e procura com a intermediação do preço Na prática isto significa que deve haver mercado para cada um dos elementos da indústria que nesses mercados cada um desses elementos é organizado num grupo de oferta e procura Esses mercados e eles são numerosos são interligados e constituem Um Grande Mercado2 2 Hawtrey G R op cit Hawtrey vê a sua função tornando mutuamente consistente os valores relativos de mercado de todas as mercadorias 94 O ponto crucial é o seguinte trabalho terra e dinheiro são elementos essenciais da indústria Eles também têm que ser organizados em mercados e de fato esses mercados formam uma parte absolutamente vital do sistema econômico Todavia o trabalho a terra e o dinheiro obviamente não são mercadorias O postulado de que tudo o que é comprado e vendido tem que ser produzido para venda é enfaticamente irreal no que diz respeito a eles Em outras palavras de acordo com a definição empírica de urna mercadoria eles não são mercadorias Trabalho é apenas um outro nome para atividade humana que acompanha a própria vida que por sua vez não é produzida para venda mas por razões inteiramente diversas e essa atividade não pode ser destacada do resto da vida não pode ser armazenada ou mobilizada Terra é apenas outro nome para a natureza que não é produzida pelo homem Finalmente o dinheiro é apenas um símbolo do poder de compra e como regra ele não é produzido mas adquire vida através do mecanismo dos bancos e das finanças estatais Nenhum deles é produzido para a venda A descrição do trabalho da terra e do dinheiro como mercadorias é inteiramente fictícia Não obstante é com a ajuda dessa ficção que são organizados os mercados reais do trabalho da terra e do dinheiro3 Esses elementos são na verdade comprados e vendidos no mercado sua oferta e procurá são magnitudes reais e quaisquer medidas ou políticas que possam inibir a formação de tais mercados poriam em perigo ipso facto a autoregulaçâo do sistema A ficção da mercadoria portanto oferece um princípio de organização vital em relação à sociedade como um todo afetando praticamente todas as suas instituições nas formas mais variadas Isto significa o princípio de acordo com o qual não se pode permitir qualquer entendimento ou comportamento que venha a impedir o funcionamento real do mecanismo de mercado nas linhas de ficção da mercadoria Ora em relação ao trabalho à terra e ao dinheiro não se pode manter um tal postulado Permitir que o mecanismo de mercado seja o único dirigente do destino dos seres humanos e do seu ambiente natural e até mesmo o árbitro da quantidade e do uso do poder de compra resultaria no desmoronamento da sociedade Esta suposta mercadoria a força de trabalho não pode ser impelida usada indiscriminadamente 3 A afirmativa de Marx do caráter fetichista do valor das mercadorias se refere ao valor de troca de mercadorias genuínas e não tem nada em comum com as mercadorias fictícias mencionadas no texto 95 ou até mesmo nãoutilizada sem afetar também o indivíduo humano que acontece ser o portador dessa mercadoria peculiar Ao dispor da força de trabalho de um homem o sistema disporia também incidentalmente da entidade física psicológica e moral do homem ligado a essa etiqueta Despojados da cobertura protetora das instituições culturais os seres humanos sucumbiriam sob os efeitos do abandono social morreriam vítimas de um agudo transtorno social através do vício da perversão do crime e da fome A natureza seria reduzida a seus elementos mínimos conspurcadas as paisagens e os arredores poluídos os rios a segurança militar ameaçada e destruído o poder de produzir alimentos e matériasprimas Finalmente a administração do poder de compra por parte do mercado liquidaria empresas periodicamente pois as faltas e os excessos de dinheiro seriam tão desastrosos para os negócios como as enchentes e as secas nas sociedades primitivas Os mercados de trabalho terra e dinheiro são sem dúvida essenciais para uma economia de mercado Entretanto nenhuma sociedade suportaria os efeitos de um tal sistema de grosseiras ficções mesmo por um período de tempo muito curto a menos que a sua substância humana natural assim como a sua organização de negócios fosse protegida contra os assaltos desse moinho satânico A extrema artificialidade da economia de mercado está enraizada no fato de o próprio processo de produção ser aqui gozado sob a forma de de compra e venda Numa sociedade comercial não é possível outra forma de organizar a produção para o mercado Durante a Idade Média a produção industrial para exportação foi organizada por burgueses ricos e levada a efeito sob sua supervisão direta em sua cidade natal Mais tarde na sociedade mercantil a produção foi organizada por mercadores e não se restringia mais às cidades Esta foi a época dos deslocamentos quando a indústria doméstica era provida de matériasprimas pelo capitalista mercador o qual controlava o processo de produção como uma empresa puramente comercial Foi nessa ocasião que a produção industrial se colocou definitivamente e em grande escala sob a liderança organizadora do mercador Ele conhecia o mercado o volume e a qualidade da demanda e podia se encarregar também dos suprimentos que incidentalmente consistiam apenas em lã tinturas e às vezes molduras ou teares usados pela indústria doméstica Se não houvesse suprimentos o aldeão era o mais prejudicado pois perdia seu emprego durante algum tempo O caso não envolvia nenhuma fábrica dispendiosa e o mercador não incorria em risco sério ao assumir a responsabilidade da produção Durante séculos esse sistema cresceu em 96 poder e objetivo até que finalmente num pais como a Inglaterra a indústria da lã produto básico nacional atingiu grandes setores do pais onde a produção era organizada pelo negociante de tecidos A propósito aquele que comprava e vendia provia também a produção não era preciso uma outra motivação A criação de bens não envolvia atitudes recíprocas de ajuda mútua não havia a preocupação do chefe de família por aqueles cujas necessidades provia nem o orgulho do artesão no exercício da sua profissão nem a satisfação do elogio público nada além do motivo simples do lucro tão familiar ao homem cuja profissão é comprar e vender Até o final do século XVIII a produção industrial na Europa Ocidental já era um mero acessório do comércio Enquanto a máquina foi uma ferramenta barata e nãoqualificada não houve qualquer mudança nesta situação O simples fato do tecelão doméstico poder produzir quantidades maiores do que antes no mesmo espaço de tempo poderia induzilo a usar máquinas para aumentar seus ganhos porém este fato em si mesmo não afetava necessariamente a organização da profissão O fato da maquinaria barata ser propriedade do trabalhador ou do mercador fazia alguma diferença quanto à posição social das partes e sem dúvida influía nos ganhos do trabalhador que ficava em melhor situação enquanto proprietário das suas ferramentas de trabalho Entretanto isto não obrigava o mercador a tornarse um capitalista industrial ou o limitava a emprestar seu dinheiro às pessoas interessadas O fluxo de bens raramente se expandia a dificuldade maior continuava a ser o fornecimento de matériasprimas às vezes inevitavelmente interrompido Mesmo em tais casos o prejuízo do mercador proprietário das máquinas não era substancial Não foi o aparecimento da máquina em si mas a invenção de maquinarias e fábricas complicadas e portanto especializadas que mudou completamente a relação do mercador com a produção Embora a nova organização produtiva tenha sido introduzida pelo mercador fato esse que determinou todo o curso da transformação a utilização de maquinarias e fábricas especializadas implicou o desenvolvimento do sistema fabril e com ele ocorreu uma alteração decisiva na importância relativa do comércio e da indústria em favor dessa última A produção industrial deixou de ser um acessório do comércio organizado pelo mercador como proposição de compra e venda ela envolvia agora investimentos a longo prazo com os riscos correspondentes e a menos que a continuidade da produção fosse garantida com certa margem de segurança um tal risco não seria suportável 97 Quanto mais complicada se tornou a produção industrial mais numerosos passaram a ser os elementos da indústria que exigiam garantia de fornecimento Três deles eram de importância fundamental o trabalho a terra e o dinheiro Numa sociedade comercial esse fornecimento só podia ser organizado de uma forma tornandoos disponíveis à compra Agora eles tinham que ser organizados para a venda no mercado em outras palavras como mercadorias A ampliação do mecanismo de mercado aos componentes da indústria trabalho terra e dinheiro foi a conseqüência inevitável da introdução do sistema fabril numa sociedade comercial Esses elementos da indústria tinham que estar à venda Isto estava de acordo com a exigência de um sistema de mercado Sabemos que num sistema como esse os lucros só podem ser assegurados se se garante a auto regulação através de mercados competitivos interdependentes Como o desenvolvimento do sistema fabril se organizara como parte de um processo de compra e venda o trabalho a terra e o dinheiro também tiveram que se transformar em mercadorias para manter a produção em andamento É verdade que eles não puderam ser transformados em mercadorias reais pois não eram produzidos para venda no mercado Entretanto a ficção de serem assim produzidos tonouse o princípio organizador da sociedade Dos três elementos um se destaca mais trabalho mãodeobra é o termo técnico usado para os seres humanos na medida em que não são empregadores mas empregados Seguese daí que a organização do trabalho mudaria simultaneamente com a organização do sistema de mercado Entretanto como a organização do trabalho é apenas um outro termo para as formas de vida do povo comum isto significa que o desenvolvimento do sistema de mercado seria acompanhado de uma mudança na organização da própria sociedade Seguindo este raciocínio a sociedade humana tornarase um acessório do sistema econômico Relembremos nosso paralelo entre as devastações dos cercamentos na história inglesa e a catástrofe social que se seguiu à Revolução Industrial Dissemos que como regra o progresso é feito à custa da desarticulação social Se oritmo desse transtorno é exagerado a comunidade pode sucumbir no processo Os Tudors e os primeiros Stuarts salvaram a Inglaterra do destino da Espanha regulamentando o curso da mudança de forma a tornáIa suportável e puderam canalizar seus efeitos por caminhos menos destruidores Nada porém foi feito para salvar o povo comum da Inglaterra do impacto da Revolução Industrial Um fé cega no progresso espontâneo havia se apossado da mentalidade 98 das pessoas e com o fanatismo de sectários os mais esclarecidos pressionavam em favor de uma mudança na sociedade sem limites nem regulamentações Os efeitos causados nas vidas das pessoas foram terríveis quase indescritíveis A sociedade humana poderia ter sido aniquilada de fato não fosse a ocorrência de alguns contramovimentos protetores que cercearam a ação desse mecanismo autodestrutivo A história social do século XIX foi assim o resultado de um duplo movimento a ampliação da organização do mercado em relação às mercadorias genuínas foi acompanhada pela sua restrição em relação às mercadorias fictícias Enquanto de um lado os mercados se difundiam sobre toda a face do globo e a quantidade de bens envolvidos assumiu proporções inacreditáveis de outro uma rede de medidas e políticas se integravam em poderosas instituições destinadas a cercear a ação do mercado relativa ao trabalho à terra e ao dinheiro Enquanto a organização dos mercados mundiais de mercadorias dos mercados mundiais de capitais e dos mercados mundiais de moedas sob a égide do padrãoouro deu um momentum sem paralelo ao mecanismo de mercados surgiu um movimento bem estruturado para resistir aos efeitos perniciosos de uma economia controlada pelo mercado A sociedade se protegeu contra os perigos inerentes a um sistema de mercado autoregulável e este foi o único aspecto abrangente na história desses período 99 7 SPEENHAMLAND 1795 A sociedade do século XVIII resistiu inconscientemente a qualquer tentativa de transformáIa em mero apêndice do mercado Não era concebível uma economia de mercado que não incluísse um mercado de trabalho mas estabelecêlo especialmente na civilização rural da Inglaterra significava nada menos do que destruir totalmente o tecido tradicional da sociedade Mesmo durante o período mais ativo da Revolução Industrial de 1795 a 1834 impediuse a criação de um mercado de trabalho na Inglaterra através da Speenharnland Law Lei Speenhamland Com efeito o mercado de trabalho foi o último dos mercados a ser organizado sob o novo sistema industrial e esse passo final só foi tomado quando a economia de mercado foi posta em marcha e a ausência de um mercado de trabalho provou ser um mal ainda maior para o próprio povo comum do que as calamidades que acompanhariam a sua introdução No final o mercado livre de trabalho a despeito dos métodos desumanos empregados na sua criação provou ser financeiramente benéfico para todas as partes envolvidas Entretanto só agora surgia o problema crucial As vantagens econômicas de um mercado livre de trabalho não podiam compensar a destruição social que ele acarretaria Tiveram que ser introduzidas regulamentações de um novo tipo para mais uma vez proteger o trabalho só que agora contra o funcionamento do próprio mecanismo de mercado Embora as novas instituições protetoras sindicatos e leis fabris fossem adaptadas tanto quanto possível às exigências do mecanismo econômico elas interferiam com a sua autoregulação e finalmente destruíram o sistema 100 Dentro da ampla lógica desse desenvolvimento a Speenharnland Law ocupou uma posição estratégica Na Inglaterra tanto a terra como o dinheiro foram mobilizados antes do trabalho Este se viu impedido de formar um mercado nacional pelas restrições estritamente legais impostas à sua mobilidade física o trabalhador estava praticamente restrito à sua paróquia O Act of Settlement Decreto de Domicílio de 1662 que estabeleceu as regras da assim chamada servidão paroquial só foi abrandado em 1795 Esse passo tornaria possível o estabelecimento de um mercado nacional de trabalho se não tivesse surgido no mesmo ano a Speenharnland Law ou sistema de abonos A intenção dessa lei tinha um sentido oposto isto é o de reforçar poderosamente o sistema paternalista da organização de trabalho nos moldes herdados dos Tudors e dos Stuarts Os juízes de Berkshire num encontro no Pelikan Inn em Speenharnland próximo a Newbury em 6 de maio de 1795 numa época de grande perturbação decidiram conceder abonos em aditamento aos salários de acordo com uma tabela que dependeria do preço do pão Assim ficaria assegurada ao pobre uma renda mínima independente dos seus proventos A famosa recomendação dos magistrados dizia Quando o preço do quilo de pão de uma determinada qualidade custar 1 shilling qualquer pessoa pobre e diligente terá 3 shillings por semana para seu sustento quer ganhos por ela própria ou pelo trabalho de sua família quer como um abono proveniente do imposto dos pobres e 1 shilling e 6 pence para o sustento de sua mulher e qualquer outro membro da sua família Quando o quilo de pão custar 16 4 shillings por semana mais 110 A cada pence acima de 1 shilling no aumento do preço do pão corresponderão 3 pences para ele e 1 pence para os demais Essas cifras variavam em alguns condados mas na maioria dos casos adotavase a tabela de Speenharnland Isto foi feito como uma medida de emergência introduzida informalmente Embora chamada comumente de lei a própria tabela nunca foi promulgada Passou porém vigorar como lei na maior parte do campo e mais tarde até mesmo em alguns distritos manufatureiros Na verdade ela introduziu uma inovação social e econômica que nada mais era que o direito de viver e até ser abolida em 1834 ele impediu efetivamente o estabelecimento de um mercado de trabalho competitivo Desde 1832 dois anos antes portanto a classe média vinha forçando seu caminho em direção ao poder em parte para remover esse obstáculo à nova economia capitalista Com efeito nada poderia ser mais óbvio do que o fato de o sistema de salários exigir imperativamente a abolição do direito de viver conforme proclamada pela Speenharnland sob o 101 novo regime do homem econômico ninguém trabalharia por um salário se pudesse sobreviver sem fazer nada Um outro aspecto da anulação do método Speenharnland revelouse menos óbvio para a maioria dos escritores do século XIX a saber que o sistema de salários teria que se tornar universal no interesse dos próprios assalariados embora isto significasse privá los da sua exigência legal à subsistência O direito de viver provara ser uma armadilha mortal O paradoxo foi apenas aparente Através da Speenhamland pretendiase que a Poor Law fosse administrada liberalmente porém ela se transformou de fato no oposto do seu intento original Sob a lei elisabetana os pobres era forçados a trabalhar com qualquer salário que pudessem conseguir e somente aqueles que não conseguiam trabalho tinham direito a assistência social nunca se pretendeu e nem se concedeu qualquer assistência sob a forma de abono salarial Durante a vigência da Speenharnland Law o indivíduo recebia assistência mesmo quando empregado se seu salário fosse menor do que a renda familiar estabelecida pela tabela Ora nenhum trabalhador tinha qualquer interesse material em satisfazer seu empregador uma vez que a sua renda era a mesma qualquer que fosse o seu salário A situação era diferente apenas no caso dos saláriospadrão ie quando os salários pagos excediam a tabela ocorrência esta muito pouco comum no campo uma vez que o empregador podia conseguir trabalhadores a qualquer preço Por menos que ele pagasse o subsídio auferido através dos impostos sempre elevava a renda do trabalhador até o nível determinado pela tabela Em poucos anos a produtividade do trabalho começou a declinar até o nível do trabalho indigente oferecendo aos empregadores mais um motivo para não elevar os salários além da tabela Depois que a intensidade do trabalho o cuidado e a eficiência com o qual era executado caíram abaixo de um nível definido ele chegou quase a inutilidade a um simulacro de trabalho apenas para salvar as aparências Apesar de o trabalho ainda ser obrigatório em princípio na prática a assistência externa se tornou geral e mesmo quando prestada nos asilos de indigentes dificilmente se poderia chamar de trabalho a ocupação obrigatória a que se entregavam os seus internos Isto resultou no abandono da legislação Tudor não em nome de um menor paternalismo mas de um ainda maior A ampliação da assistência externa a introdução de abonos salariais suplementados ainda por abonos separados para a mulher e os filhos e que aumentavam ou diminuíam de acordo com o preço do pão significavam em relação ao 102 trabalho uma renovação dramática do mesmo princípio regulador que se estava eliminando rapidamente na vida industrial como um todo Nenhuma outra medida se popularizou mais amplamente1 Pais não precisavam cuidar dos filhos filhos não dependiam mais dos pais os empregadores podiam reduzir os salários a belprazer e os trabalhadores não passavam fome quer fossem diligentes ou preguiçosos Os humanitaristas aplaudiam a medida como ato de piedade senão de justiça e os egoístas se consolavam com o pensamento de que se tratava de um gesto de caridade e não de um ato liberal Mesmo os contribuintes dos impostos custaram a compreender o que aconteceria a esses impostos num sistema que proclamava o direito de viver quer um homem trabalhasse por um salário vivo ou não A longo prazo o resultado foi estarrecedor Embora levasse algum tempo até que o respeito próprio do homem comum descesse a um nível tão baixo a ponto dele preferir a assistência aos pobres ao salário a verdade é que esse salário subsidiado através de fundos públicos chegou a um ponto tal que ele se viu forçado a recorrer à assistência dos impostos Pouco a pouco o pessoal do campo foi se pauperizando o adágio uma vez por conta dos impostos sempre por conta deles passou a ser uma verdade incontestável Seria impossível explicar a degradação humana e social do capitalismo primitivo sem os prolonga dos efeitos do sistema de abonos O episódio de Speenharnland revelou ao povo do principal país do século a verdadeira natureza da aventura social na qual estavam embarcando Dirigentes e dirigidos jamais esqueceram a lição daquele paraíso de todos Se o Reform Bill projeto de Reforma de 1832 e a Poor Law Amendment Emenda da Lei dos Pobres de 1834 foram vistos como pontos de partida do capitalismo moderno é porque puseram um ponto final no domínio do latifundiário benevolente seu sistema de abono A tentativa de criar uma ordem capitalista sem um mercado de trabalho falhara redondamente As leis que governavam uma tal ordem já se haviam afirmado e manifestavam seu antagonismo radical ao princípio do paternalismo Seu rigor era visível e sua violação acarretava sanções cruéis contra aqueles que a tentavam Sob a Speenhamland Law a sociedade se debatia entre duas influências opostas a que emanava do paternalismo e que protegia a mãodeobra dos perigos de um sistema de mercado e a que organizava 1 Meredith H O Outlines of the Econômicas History of England 1908 103 os elementos da produção inclusive a terra sob um sistema de mercado afastando a gente comum do seu status anterior compelindoa a ganhar a vida oferecendo seu trabalho à venda enquanto ao mesmo tempo privava esse trabalho do seu valor de mercado Criavase uma nova classe de empregadores mas não se podia constituir uma classe correspondente de empregados Uma nova onda gigantesca de cercamentos mobilizava a terra e produzia um proletariado rural enquanto a má administração da Poor Law impedia esse proletariado de ganhar a vida com o seu trabalho Não é de admirar que os contemporâneos se sentissem estarrecidos diante da aparente contradição entre um aumento quase miraculoso na produção e uma quase inanição das massas Já em 1831 havia a convicção geral e uma convicção apaixonante para muitas pessoas de responsabilidade de que qualquer coisa era preferível à continuação da Speenhamland Law Ou as máquinas teriam que ser desmontadas como os Ludistas tentaram fazer ou tinha que ser criado um mercado de trabalho regular Assim a humanidade se viu forçada a ingressar no caminho de uma experiência utópica Este não é o lugar para se discorrer sobre a economia da Speenharnland será oportuno fazêlo mais adiante Em face do teor dessa tal lei o direito de viver deveria ter acabado de vez com o trabalho assalariado Os saláriospadrão deveriam ter baixado gradualmente até o nível zero ficando totalmente por conta da paróquia o pagamento dos salários Se isto ocorresse ficaria patente o absurdo desse dispositivo Esse porém era um período essencialmente précapitalista em que as pessoas comuns ainda pensavam de modo tradicional e ainda não pautavam seu comportamento apenas por motivações monetárias A grande maioria do pessoal do campo era de posseiros proprietários ou foreiros vitalícios que preferiam qualquer tipo de vida à situação de indigente ainda que esta não fosse deliberadamente sobrecarregada por limitações penosas e ignominiosas como aconteceu posteriormente Se os trabalhadores tivessem a liberdade de fazer combinações para favorecer seus interesses o sistema de abonos talvez pudesse ter causado efeito contrário no padrão de salários a assistência aos empregados implícita numa administração tão liberal da Poor Law teria ajudado muito a ação dos sindicatos Talvez esta tenha sido uma das razões da promulgação das AntiCombination Laws Leis Anticornbinação de 17991800 tão injustas pois seria difícil explicáIas de outra maneira uma vez que tanto os magistrados de Berkshire como os membros do Parlamento se preocupavam de modo geral pela condição econômica dos pobres e após 104 1797 a agitação política já havia diminuído Podese argumentar de fato que a intervenção paternalista da Speenhamland contribuiu para o aparecimento das Anti Combination Laws uma intervenção posterior e se não fosse por elas a Speenharnland poderia ter atuado no sentido de elevar os salários em vez de rebaixálos como realmente ocorreu Vigorando em conjunto com as AntiCombination Laws que não foram revogadas por mais um quarto de século Speenharnland culminou no resultado irônico de arruinar eventualmente as pessoas a que ela ostensivamente se destinava socorrer através do direito de viver financeiramente implementado Para as gerações mais velhas ficou claramente patente a incompatibilidade mútua entre instituições tais como o sistema de salários e o direito de viver em outras palavrasja impossibilidade do funcionamento de uma ordem capitalista enquanto os salários fossem subsidiados por fundos públicos Os contemporâneos não compreendiam porém qual o tipo de ordem para a qual preparavam o caminho Só quando a grave deterioração da capacidade produtiva das massas se fez sentir uma verdadeira calamidade nacional que obstruía o progresso da civilização da máquina é que se impôs à consciência da comunidade a necessidade de abolir o direito incondicional do pobre à assistência A complicada economia da Speenhamland transcendia a compreensão até mesmo dos observadores mais atentos da época A conclusão a que se chegou porém não deixava margem de dúvidas o abono salarial só podia ser inerentemente falho pois prejudicava miraculosamente até mesmo aqueles que o recebiam As ciladas do sistema de mercado não eram prontamente visíveis Para compreender isto com mais clareza temos que distinguir entre as várias vicissitudes a que os trabalhadores estiveram expostos na Inglaterra desde o aparecimento da máquina Primeiro aquelas do período Speenharnland 1795 a 1834 Segundo as dificuldades causadas pela Poor Law Reform na década que se seguiu a 1834 Terceiro os efeitos deletérios de um mercado de trabalho competitivo após 1834 até que o reconhecimento dos sindicatos nos anos 1870 passou a oferecer a necessária proteção Cronologicamente a Speenharnland antecedeu a economia de mercado a década do Poor Law Reform Act representou o período de transição para essa economia O último período que superou este foi o da economia de mercado propriamente dita Os três períodos diferiram acentuadamente O da Speenhamland se destinou a impedir a proletarização do homem comum ou pelo menos diminuir o seu ritmo O resultado foi apenas a 105 pauperização das massas que quase perderam a sua forma humana no decorrer do processo A Poor Law Reform de 1834 acabou com essa obstrução do mercado de trabalho foi abolido o direito de viver A crueldade científica desse decreto foi tão chocante para o sentimento público nos anos 18301840 que os protestos veementes dos contemporâneos obscureceram o quadro aos olhos da posteridade É verdade que muitos dos pobres mais necessitados foram abandonados à sua sorte quando se retirou a assistência externa e entre aqueles que sofreram mais amargamente estavam os pobres merecedores orgulhosos demais para se recolherem aos albergues que se haviam tornado um abrigo vergonhoso Em toda a história moderna talvez jamais se tenha perpetrado um ato mais impiedoso de reforma social Ele esmagou multidões de vidas quando pretendia apenas criar um critério de genuína indigência com a experiência dos albergues Defendeuse friamente a tortura psicológica e ela foi posta em prática por filantropos benignos como meio de lubrificar as rodas do moinho de trabalho O comum das queixas porém relacionavase realmente com a erradicação abrupta de uma instituição tão antiga ao mesmo tempo que se efetuava uma transformação tão radical Disraeli denunciou essa revolução inconcebível na vida do povo Entretanto se se levasse em conta apenas a renda monetária a condição do povo logo poderia ser considerada como melhor Os problemas do terceiro período foram incomparavelmente mais profundos As atrocidades burocráticas cometidas contra os pobres durante a década seguinte a 1834 pela nova autoridade centralizada da Poor Law foram apenas esporádicas e quase nulas quando comparadas aos efeitos gerais da mais potente de todas as instituições modernas o mercado de trabalho Quanto à extensão era similar à ameaça representada pela Speenhamland com a diferença significativa de que a fonte de perigo era agora não a ausência mas a presença de um mercado de trabalho competitivo Se a Speenharnland impedira a emergência de uma classe trabalhadora agora os trabalhadores pobres estavam sendo formados nessa classe pela pressão de um mecanismo insensível Se durante a vigência da Speenharnland cuidavase do povo como de animais não muito preciosos agora esperavase que ele se cuidasse sozinho com todas as desvantagens contra ele Se a Speenhamland significava a miséria da degradação abrigada agora o trabalhador era um homem sem lar na sociedade Se a Speenhamland havia sobrecarregado os valores da comunidade da família e do ambiente rural agora o homem estava afastado do lar e da família arrancado das suas raízes e de todo o ambiente de significado 106 para ele Resumindo se a Speenhamland significava a decomposição da imobilidade agora o perigo era a morte pela exposição Um mercado de trabalho competitivo só foi estabelecido na Inglaterra após 1834 assim não se pode dizer que o capitalismo industrial como sistema social tenha existido antes desta data Quase imediatamente porém a autoproteção da sociedade se manifestou surgiram leis fabris e uma legislação social assim como a movimentação política e industrial da classe trabalhadora Foi justamente com essa tentativa de evitar os perigos totalmente novos do mecanismo de mercado que a ação protetora entrou em conflito fatal com a autoregulação do sistema Não é exagero dizer que a história social do século XIX foi determinada pela lógica do sistema de mercado propriamente dito após ter sido ele liberado pelo Poor Law Reform Act de 1834 O ponto de partidadessa dinâmica foi a Speenhamland Law Se sugerimos que o estudo da Speenhamland é o estudo do nascimento da civilização do século XIX não temos em mente exclusivamente seus efeitos econômicos e sociais nem mesmo a influência determinante desses efeitos sobre a moderna história política mas o fato de que a nossa consciência social foi fundida nesse molde fato esse desconhecido da atual geração A figura do indigente quase esquecida desde então dominava uma discussão que deixou marcas tão profundas como as dos acontecimentos mais espetaculares da história Se a Revolução Francesa muito deveu ao pensamento de Voltaire e Diderot Quesnay e Rousseau a discussão em torno da Poor Law formou as mentes de Bentham e Burke Godwin e Malthus Ricardo e Marx Robert Owen e John Stuart Mill Darwin e Spencer que partilharam com a Revolução Francesa a paternidade espiritual da civilização do século XIX Durante as décadas que se seguiram à Speenhamland e à Poor Law Reform foi que a mente do homem se voltou para a sua própria comunidade com um nova angústia e preocupação a revolução que os juízes de Berkshire em vão tentaram frear e que a Poor Law Reform eventualmente liberou modificara a visão dos homens em relação a seu ser coletivo como se a sua presença tivesse sido esquecida até então Descobriuse um mundo de presença insuspeitada o das leis que governam uma sociedade complexa Embora a emergência da sociedade neste sentido novo e característico tenha ocorrido no campo econômico seu referencial foi muito mais abrangente universal A realidade nascente chegou à nossa consciência através da economia política Com efeito suas regularidades surpreendentes e contradições assombrosas tinham que ser enquadradas num esquema de filosofia 107 e teologia para poderem ser assimiladas como significados humanos Os fatos obstinados e as leis brutais e inexoráveis que surgiram para abolir nossa liberdade tinham que se reconciliar de uma forma ou de outra com essa mesma liberdade Isto se tornou a mola mestra das forças metafísicas que secretamente sustentaram os positivistas e os utilitaristas A resposta ambivalente da mente a essas terríveis limitações foi uma esperança irrestrita e um desespero ilinútado que se voltavam para as regiões ainda nãoexploradas das possibilidades humanas Do pesadelo da população e das leis salariais destilouse a esperança a visão do aperfeiçoamento e ela se materializou num conceito de progresso tão inspirado r que parecia justificar as enormes e dolorosas distorções por vir O desespero provaria ser um agente ainda mais poderoso da transformação O homem foi forçado a resignarse à perdição secular seu destino era limitar a procriação da sua raça ou condenarse irremediavelmente à liquidação através da guerra e da peste da fome e do vício A pobreza representava a sobrevivência da natureza na sociedade A limitação dos alimentos e a ilimitação dos homens chegaram a um impasse justamente quando surgia a promessa de um aumento ilimitado de riqueza o que apenas tornava a ironia mais amarga Foi assim que a descoberta da sociedade integrouse ao universo espiritual do homem Mas de que forma essa nova realidade da sociedade seria traduzida em termos de vivência Como guias para a prática os princípios morais da harmonia e do conflito tinham atingido seu limite e pelejavam dentro de um padrão de completa contradição Diziase que a harmonia era inerente à economia pois em última instância os interesses do indivíduo e da comunidade eram idênticos Todavia uma tal autoregulação harmoniosa exigia que o indivíduo respeitasse a lei econômica mesmo que ela o destruísse O conflito também parecia inerente à economia seja como competição entre indivíduos seja como luta de classes mas esse conflito poderia transformarse apenas no veículo de uma harmonia mais profunda imanente numa sociedade atual ou talvez futura O pauperismo a economia política e a descoberta da sociedade estavam estreitamente interligados O pauperismo fixou a atenção no fato incompreensível de que a pobreza parecia acompanhar a abundância Este porém foi apenas o primeiros dos surpreendentes paradoxos com os quais a sociedade industrial confrontou o homem moderno Este penetrara no seu novo domínio pela porta da economia e essa circunstância fortuita envolveu o período com a sua aura materialista Para 108 Ricardo e Malthus nada parecia mais real do que os bens materiais As leis do mercado significavam para eles o limite de as possibilidades humanas Godwin acreditava em possibilidades ilimitadas e portanto tinha que negar as leis do mercado O fato de as possibilidades humanas serem ilimitadas não pelas leis do mercado porém da própria sociedade foi um reconhecimento reservado a Owen e somente ele discerniu a realidade emergente por trás do véu da economia de mercado a sociedade Sua visão porém foi perdida de novo por um século Enquanto isto foi em relação ao problema da pobreza que as pessoas começaram a explorar o significado da vida numa sociedade complexa A introdução da economia política no reino do universal aconteceu em duas perspectivas opostas a do progresso e do aperfeiçoamento de uma lado e a do determinismo e da perdição do outro A sua tradução para a prática também foi alcançada por dois caminhos opostos através do princípio da harmonia e da autoregulação de um lado e da competição e do conflito do outro O liberalismo econômico e o conceito de classe foram moldados dentro dessas contradições Foi com a finalidade de um acontecimento elementar que um novo conjunto de idéias penetrou a nossa consciência 109 8 ANTECEDENTES E CONSEQÜÊNCIAS O sistema Speenharnland nada mais foi originalmente do que um paliativo No entanto poucas instituições modelaram mais decisivamente o destino de toda uma civilização do que esta que teve de ser abandonada antes de se iniciar um nova era Ela foi o produto típico de uma época de transformação e merece a atenção de qualquer estudioso de assuntos humanos hoje em dia Sob o sistema mercantil a organização de trabalho na Inglaterra baseavase na Poor Law e no Statute of Artificers A Poor Law conforme aplicada às leis de 1536 até 1601 pode ser considerada um verdadeiro equívoco mas foi ela e as emendas subseqüentes que se constituíram a meta do código de trabalho da Inglaterra A outra metade consistiu no Statute of Artificers de 1563 Este dizia respeito àqueles que estavam empregados enquanto a Poor Law aplicava àqueles que podemos chamar de desempregados e incapazes de se empregarem além de velhos e crianças Posteriormente como já vimos foi acrescentado a essas medidas o Act of Settlement de 1662 relativo ao domicílio legal das pessoas que restringia ao máximo a sua mobilidade A distinção clara entre empregado desempregado e incapaz de ser empregado é naturalmente anacrônica pois ela implicaria a existência de um sistema moderno de salários que não existiu por mais de 250 anos aproximadamente Utilizamos esses termos como forma de simplificar as coisas nesta apresentação bastante ampla A organização do trabalho segundo o Statute of Artificers baseavase em três pilares obrigatoriedade do trabalho sete anos de aprendizado e um salário anual determinado pela autoridade pública A lei e isto tem de ser enfatizado aplicavase tanto aos trabalhadores agrícolas 110 como aos artesãos e era imposta igualmente aos distritos rurais e às cidades Durante 80 anos o Statute foi seguido estritamente mais tarde as cláusulas referentes ao aprendizado caíram parcialmente em desuso ficando restritas a profissões tradicionais Elas simplesmente não se aplicavam às novas indústrias como a do algodão A avaliação dos salários anuais baseada no custo de vida também foi suspensa em grande parte do país após a Restauração 1660 Formalmente as cláusulas de avaliação do Statute só foram revogadas em 1813 e as cláusulas de salário em 1814 Em muitos sentidos porém a regra do aprendizado sobreviveu ao Statute e ainda é uma prática generalizada na Inglaterra nas profissões especializadas A obrigatoriedade do trabalho no campo foi abandonada pouco a pouco Podese dizer porém que durante os dois séculos e meio em questão o Statute of Artificers preparou o esboço de uma organização nacional do trabalho baseada nos princípios da regulamentação e do paternalismo O Statute of Artificers foi suplementado pela Poor Law um termo muito confuso aos ouvidos modernos para os quais pobre e indigente soam muito semelhantes Na verdade os cavalheiros da Inglaterra julgavam pobres todas as pessoas que não possuíam renda suficiente para mantêIas ociosas Assim pobre era praticamente sinônimo de povo comum e no povo comum estavam incluídos todos menos as classes fundiárias dificilmente um mercador bemsucedido deixava de adquirir alguma terra um propriedade fundiária Daí o termo pobre significar todas as pessoas que passavam necessidades e o povo em geral se e quando sofriam necessidades Naturalmente isto incluía os indigentes mas não apenas eles Os velhos os enfermos os órfãos deviam receber cuidados numa sociedade que proclamava haver lugar para qualquer cristão no seu âmbito Acima de todos porém estavam os pobres capacitados a quem poderíamos chamar de desempregados presumindo que poderiam ganhar a vida com seu trabalho manual se pudessem encontrar emprego A mendicância era severamente punida a vagabundagem era uma ofensa capital em caso de reincidência A Poor Law de 1601 decretou que os pobres capacitados deveriam trabalhar para ganhar seu sustento e a paróquia deveria providenciar esse trabalho Toda a carga da assistência recaiu sobre a paróquia através de impostos ou taxações locais Estes incidiam sobre todos os donos de casas e arrendatários ricos ou não de acordo com o aluguel das terras ou casas que ocupavam O Statute of Artificers e a Poor Law juntos formavam o que pode ser chamado de Código de Trabalho Todavia a Poor Law tinha administração 111 local cada paróquia unidade insignificante dispunha de seus próprios meios para empregar os homens capazes para manter um asilo de pobres para o aprendizado de órfãos e de crianças carentes para tomar conta de velhos e dos enfermos para o enterros dos indígenas e cada paróquia tinha sua própria tabela de impostos Tudo isto soa muito mais grandioso do que a realidade muitas paróquias não tinham asilos de pobres e grande número delas não dispunha de recursos razoáveis para ocupar de forma útil os homens capazes Havia uma variedade infindável de formas de burlar a lei evasão dos contribuintes locais de impostos indiferença dos fiscais dos pobres a insensibilidade dos interesses centralizados no pauperismo viciava o funcionamento da lei Entretanto de um modo geral as quase dezesseis mil autoridades do país ligadas à Poor Laws conseguiram manter intacto e ileso o tecido social da vida na aldeia Sob um sistema nacional de trabalho porém a organização local do desemprego e de assistência social tornouse uma anomalia patente Quanto maior a variedade de recursos locais para os pobres maior era o perigo de uma paróquia bemsucedida ser invadida por indigentes profissionais Após a Restauração foi decretado o Act of Settlement and Rernoval para proteger as paróquias melhores contra o fluxo de indigentes Mais de um século mais tarde Adam Smith denunciou essa lei porque imobilizava o povo impedindoo de encontrar emprego útil da mesma forma que impedia os capitalistas de encontrar empregados Um homem só podia ficar fora da sua paróquia se contasse com a boa vontade do magistrado local e das autoridade paroquiais Em qualquer outro lugar ele era passível de expulsão mesmo estando em boa situação e empregado O status legal do povo era portanto o de liberdade e igualdade mas sujeito a limitações incisivas Eles eram iguais perante a i e livres como pessoas mas não eram livres para escolher suas ocupações ou a de seus filhos não eram livres para se estabelecer onde quisessem e eram forçados a trabalhar Os dois grandes Statutes elisabetanos e Act of Settlement juntos compunham um quadro de liberdade para o povo comum mas ao mesmo tempo estabeleciam a sua incapacidade A Revolução Industrial já estava a caminho quando em 1795 sob a ressão das necessidades da indústria o decreto de 1662 foi parcialmente revogado foi abolida a servidão paroquial e restaurada a mobilidade física do trabalhador Assim pôde ser estabelecido um mercado de trabalho em escala nacional No mesmo ano porém como já vimos foi introduzida uma prática na administração da Poor Law que significava o inverso do princípio elisabetano do trabalho obrigatório A Speenhamland 112 garantia o direito de viver Os abonos salariais passaram a ser gerais os abonos familiares foram aumentados e tudo isto fazia parte de um assistência social externa ie sem o compromisso do indivíduo de permanecer no asilo de indigentes Embora a tabela de assistência social fosse exígua ela era suficiente para a mera subsistência Isto significou um retorno à regulamentação e ao paternalismo como uma vingança justamente quando parecia que a máquina a vapor clamava por liberdade e as máquinas reclamavam o emprego de braços humanos A Speenhamland Law coincidiu no tempo com a revogação do Act of Settlement A contradição era patente o Act of Settlement estava sendo abolido porque a Revolução Industrial exigia um suprimento nacional de trabalhadores que poderiam trabalhar em troca de salários enquanto a Speenharnland proclamava o princípio de que nenhum homem precisava temer a fome porque a paróquia o sustentaria e à sua familia por menos que ele ganhasse Havia contradição marcante entre as duas políticas industriais Que se poderia esperar da aplicação simultânea e continuada dessas práticas a não ser uma monstruosidade social Entretanto a geração da Speenhamland não tinha consciência do que estava a caminho Às vésperas da maior Revolução Industrial da história não surgiram quaisquer indícios ou presságios o capitalismo chegou sem se anunciar Ninguém havia previsto o desenvolvimento de uma indústria de máquinas ela chegou como uma surpresa total Na verdade durante algum tempo a Inglaterra vivia na expectativa de uma recessão permanente do comércio exterior quando o dique estourou e o velho mundo foi colhido por onda inabalável no caminho de uma economia planetária Antes de 1850 porém ninguém poderia afirmar tal coisa com total segurança A chave para compreender a recomendação dos magistrados da Speenharnland está justamente no fato de eles ignorarem as implicações mais amplas do desenvolvimento que vinham enfrentando Em retrospecto pode parecer que eles estavam tentando não apenas o impossível mas através de meios cujas contradições internas já deveriam ser aparentes na ocasião De fato eles conseguiram atingir seu objetivo de proteger a aldeia contra a desarticulação mas os efeitos dessa sua política foram os mais desastrosos possíveis em outras direções não previstas A política da Speenharnland foi o resultado de uma fase definida no desenvolvimento de um mercado para a força de trabalho e ela só pôde ser compreendida em face das concepções sobre a situação assumidas por aqueles que estavam em posição de formular essa política Visto desse ângulo o sistema de abonos pode parecer um artifício maquinado 113 pela classe dos proprietários rurais para enfrentar uma situação em que já não se podia mais negar a mobilidade física à mãodeobra enquanto os proprietários queriam evitar uma perturbação das condições locais inclusive salários mais elevados o que seria uma decorrência natural da aceitação de mercado nacional livre para o trabalho A dinâmica da Speenharnland se fundamentava assim nas circunstâncias da sua origem O aumento do pauperismo rural foi o primeiro sintoma da convulsão social iminente Na época porém ninguém conseguia imagináIa A ligação entre a pobreza rural e o impacto do comércio mundial não era suficientemente óbvia Os contemporâneos não tinham qualquer motivo que os levasse a ligar a quantidade de pobres nas aldeias com o desenvolvimento do comércio nos Sete Mares O aumento inexplicável no número de pobres era geralmente atribuído ao método de administração da Poor Law e sem dúvida havia razão para isso Na verdade oculto sob a superfície o crescimento ameaçador do pauperismo rural se ligava diretamente à tendência da história econômica geral Todavia essa conexão ainda era pouco perceptível Muitos autores tentavam investigar os caminhos que levavam tantos pobres às aldeias e era surpreendente o número e a variedade de razões citadas como explicações Mas apenas alguns autores contemporâneos focalizaram esses sintomas de desarticulação que costumamos associar à Revolução Industrial Até 1785 o público inglês desconhecia qualquer mudança importante na vida econômica a não ser um aumento intermitente no comércio e o crescimento do pauperismo De onde vêm tantos pobres era a questão levantada por uma quantidade de panfletos que crescia no decorrer do século É claro que as causas do pauperismo e os meios de combatêlo não poderiam se manter afastados de uma literatura inspirada na convicção de que se os males mais aparentes do pauperismo pudessem ser suficientemente aliviados ele deixaria de existir Parecia haver um consenso geral em relação a um ponto a saber a grande variedade de causas responsáveis por esse aumento Entre elas estava a escassez de cereais os salários agrícolas muito elevados que aumentavam o preço dos alimentos salários agrícolas muito baixos salários urbanos muito altos irregularidade no emprego urbano o desaparecimento dos posseiros a inaptidão do trabalhador urbano nas ocupações rurais a relutância dos fazendeiros em pagar salários mais altos o receio dos senhores de terra de que os aluguéis teriam que ser reduzidos se pagassem salários mais altos o fracasso dos albergues na competição com a maquinaria a falta de uma economia doméstica habitações inconvenientes dietas intoleráveis o consumo 114 de drogas Alguns autores atribuíam a culpa a um novo tipo de carneiros bem desenvolvidos outros à necessidade dos bois substituírem os cavalos e outros ainda achavam que se deveriam manter menos cães Alguns autores acreditavam que o pobre deveria comer menos pão ou não cornêlo enquanto outros pensavam que mesmo o melhor pão não deverlhesia ser cobrado Alguns alegavam que o chá prejudicava a saúde dos pobres enquanto a cerveja doméstica a restaurava Eles insistiam até que o chá não era melhor que a bebida mais ordinária Quarenta anos mais tarde Harriet Martineau ainda pregava as vantagens de se abandonar o hábito do chá como forma de aliviar o pauperisrno1 Muitos autores na verdade reclamavam dos resultados instáveis dos cercamentos e vários outros insistiam no prejuízo que as altas e as baixas das manufaturas causavam ao emprego rural De modo geral porém prevalecia a impressão de que o pauperismo era visto como um fenômeno sui generis uma doença social provocada por uma série de razões cuja maior parte se ativou apenas porque a Poor Law falhou na aplicação do remédio certo A resposta correta seria com certeza que o agravamento do pauperismo e os impostos mais elevados se deviam ao aumento daquilo que hoje chamaríamos desemprego invisível Tal fato não poderia ser aparente numa época em que até mesmo o emprego no geral era invisível como necessariamente o foi até certo ponto sob a indústria caseira Todavia estas questões ainda ficam de pé como justificar esse aumento no número de desempregados e subempregados Por que os indícios de mudanças iminentes na indústria escaparam à visão até mesmo dos contemporâneos observadores Em primeiro lugar a explicação se baseia nas fluruaçôes excessivas do comércio na sua época inicial o que levava a encobrir o aumento absoluto no comércio Enquanto este último era o responsável pelo aumento dos empregos as flutuações justificavam um aumento muito maior no desemprego Além disso enquanto o aumento do emprego era lento em nível geral o aumento do desemprego e do subemprego tendia a ser rápido Assim a formação daquilo que Friedrich Engels chamou de exército industrial de reserva ultrapassou em muito a criação do exército industrial propriamente dito Isto teve como conseqüência importante o fato de escapar facilmente à observação a conexão entre o desemprego e o incremento do 1 Martineau H The Hamlet 1833 115 comércio total Embora se observasse freqüentemente que o aumento do desemprego era devido às grandes flutuações no comércio não se notou que essas flutuações eram parte de um processo subjacente de amplitude ainda maior isto é um incremento geral do comércio crescentemente com base nas manufaturas Para os contemporâneos parecia não haver conexão entre as manufaturas principalmente urbanas e o grande aumento no número de pobres no campo O aumento no conjunto do comércio expandia naturalmente o volume de empregos enquanto a divisão territorial do trabalho em combinação com as agudas flutuações do comércio era responsável pela severa desarticulação das ocupações tanto na aldeia como na cidade o que resultava no rápido crescimento do desemprego O boato distante de salários elevados tornava os pobre insatisfeitos com aqueles que a agricultura podia oferecer e criava aversão por um trabalho tão mal remunerado As regiões industriais daquela época se assemelhavam a um novo país a uma outra América atraindo imigrantes aos milhares A migração se faz acompanhar geralmente por uma remigração acentuada E parece que esse refluxo para a aldeia realmente ocorreu o que encontra comprovação também no fato de não ter se verificado uma diminuição absoluta na população rural Ocorria assim um deslocamento cumulativo da população à medida que diferentes grupos se integravam na esfera do emprego comercial e manufatureiro por períodos variáveis e depois abandonados voltavam ao seu habitat rural original Grande parte do dano social ocorrido no campo inglês se originou inicialmente nos efeitos desarticuladores que o comércio exerceu diretamente no campo A Revolução Agrícola antecedeu definitivamente à Revolução Industrial Tanto os cercamentos das terras comuns quanto as consolidações dos arrendamentos compactos que acompanharam o novo e grande avanço nos métodos agrícolas acarretavam resultados muito perturbadores A guerra contra as habitações do campo a absorção das hortas e terrenos que rodeavam essas habitações o confisco dos direitos sobre as terras comuns privaram a indústria doméstica de seus dois esteios os rendimentos familiares e o pano de fundo agrícola Enquanto a indústria doméstica era suplementada pelas facilidades e amenidades de um canteiro de horta um pedaço de terra ou direitos de pastagem a dependência do trabalhador aos rendimentos monetários não era absoluta Fazia uma diferença enorme ter um lote de batatas ou de gansos teimosos uma vaca ou até mesmo um burro pastando nas terras comuns e os ganhos familiares eram uma espécie 116 de seguro contra o desemprego A racionalização da agricultura desenraizou inevitavelmente o trabalhador e solapou a sua segurança social No cenário urbano eram manifestos os efeitos do novo nível de emprego flutuante A indústria era vista geralmente como uma ocupação esporádica Os operários que hoje estão empregados podem muito bem estar nas ruas amanhã mendigando o pão escreveu David Davies e acrescentou A incerteza quanto às condições de trabalho é o resultado mais perverso destas inovações Quando uma cidade empregada em uma manufatura é dela privada os habitantes ficam como que atacados de paralisia e se tornam instantaneamente uma carga para a paróquia mas a desgraça não acaba com essa geração E de fato pois enquanto isto a divisão do trabalho exerce a sua vingança os artesãos desempregados retomam em vão à sua aldeia pois o tecelão já não pode mais utilizar as mãos para o que quer que seja A irreversibilidade fatal da urbanização girava em torno deste simples fato que Adam Smith previu quando descreveu o operário industrial como intelectualmente inferior ao mais pobre cultiva dor do solo uma vez que este ainda pode assumir qualquer emprego Na época em que Adam Smith publicou o livro Riqueza das Nações porém o pauperismo ainda não havia assumido proporções tão alarmantes O quadro mudou subitamente nas duas décadas seguintes Em seu Thoughts Details on Scarcity que Burke submeteu a Pitt em 1795 o autor admitia que a despeito do progresso geral ocorrera um último ciclo mau de vinte anos De fato na década que se seguiu à Guerra dos Sete Anos 1763 o desemprego aumentara visivelmente como o demonstrava a ampliação da assistência social externa Observouse pela primeira vez que um surto vigoroso no comércio se fazia acompanhar por indícios de crescentes dificuldades para os pobres Esta contradição aparente seria o mais desconcertante dos fenômenos periódicos da vida social para a nova geração da humanidade ocidental O espectro da superpopulação começava a obcecar a mente das pessoas Em sua Dissertation on the Poor Laws Dissertação sobre a Lei dos Pobres prevenia William Townsend Especulação à parte o fato é que temos na Inglaterra mais gente do que podemos alimentar e muito além do que podemos empregar com proveito sob o atual sistema de leis Adam Smith em 1776 ainda refletia uma atmosfera de progresso tranqüilo Townsend que escreveu apenas dez anos mais tarde já tinha consciência do vagalhão que se aproximava 117 Entretanto muitas coisas ainda aconteceriam antes que apenas cinco anos mais tarde um homem tão afastado da política tão bem sucedido e tão racional como Telford um escocês construtor de pontes pudesse irromper com reclamações amargas sobre o pouco que se podia esperar da ação normal do governo e que a revolução seria assim a única esperança Uma única cópia dos Rights of Man de Paine enviada por Telford à sua aldeia natal provocou um tumulto naquele local Paris estava catalisando a fermentação européia A convicção de Canning era de que a Poor Law salvara a Inglaterra de uma revolução Ele pensava basicamente na década de 1790 e nas guerras francesas O novo surto de cercamentos depreciou ainda mais os padrões dos pobres no campo JH Clapham um defensor desses cercamentos concordava que era uma coincidência marcante o fato da área na qual os salários tiveram que ser aumentados sistematicamente por conta dos impostos coincidir com a área onde ocorreram os maiores cercamentos recentes Em outras palavras não fossem os abonos salariais os pobres cairiam abaixo do nível de inanição em grandes áreas da Inglaterra rural A queima de medas era freqüente a conjuração Popgun encontrava grande ressonância os distúrbios eram constantes e seus boatos se difundiam amplamente Em Hampshire e não apenas lá os tribunais ameaçavam com a condenação à morte qualquer tentativa de baixar obrigatoriamente o preço de mercadorias tanto no mercado como em caminho Simultaneamente porém os magistrados do mesmo condado pressionavam com insistência pela concessão geral de abonos em aditamento aos salários Está claro que chegara a hora de uma ação preventiva Mas por que será que de todos os cursos de ação foi escolhido justamente aquele que mais tarde demonstrou ser o mais impraticável de todos Consideremos a situação e os interesses envolvidos O proprietário rural e o pároco dirigiam a aldeia Townsend resumiu a situação quando disse que o cavalheiro fundiário mantém as manufaturas a uma distância conveniente porque acha que as manufaturas flutuam que o benefício que ele pode usufruir com elas não é proporcional ao encargo que passa a recair sobre a sua propriedade Esse encargo consistia principalmente nos dois efeitos aparentemente contraditórios da manufatura isto é o aumento no pauperismo e a elevação dos salários Estes dois itens só eram contraditórios porém se fosse assumida a existência de um mercado de trabalho competitivo que naturalmente tenderia a diminuir o desemprego através da redução dos salários dos empregados Na falta de um tal mercado e o Act of Settlement ainda 118 estava em vigor o pauperismo e os salários podiam aumentar simultaneamente Sob tais condições o ônus social do desemprego urbano recaía principalmente sobre a aldeia natal à qual freqüentemente retomavam aqueles que ficavam sem trabalho Os salários elevados das cidades representavam uma carga ainda maior para a economia rural Os salários agrícolas estavam acima do que o fazendeiro podia suportar embora abaixo do nível de subsistência do trabalhador Parece claro que a agricultura não podia competir com os salários das cidades Por outro lado havia um consenso geral de que o Act of Settlement deveria ser abolido ou pelo menos abrandado para ajudar o trabalhador a encontrar emprego e os empregadores a arranjar trabalhadores Sentiase que isto aumentaria a produtividade do trabalho em todos os sentidos e incidentalmente diminuiria o encargo dos salários Mas a questão imediata do diferencial de salários entre cidade e aldeia tornarse ia ainda mais premente para a aldeia obviamente permitindo que os salários encontrassem seu próprio nível O fluxo e refluxo do emprego industrial alternandose com espasmo de desemprego transformaria ainda mais as comunidades rurais Era preciso erguer um dique para proteger a aldeia contra a onda de salários ascendentes Teriam que ser adota dos métodos que protegessem o setor rural contra a desarticulação social que reforçassem a autoridade tradicional que impedissem o êxodo da mãode obra rural e que elevassem os salários agrícolas sem sobrecarregar o fazendeiro Este artifício foi a Speenhamland Law Atirada nas águas turbulentas da Revolução Industrial ela sem dúvida criaria um redemoinho econômico Todavia as suas implicações sociais enfrentaram nitidamente a situação a julgar pelos interesses dominantes da aldeia os do proprietário rural Do ponto de vista da administração da Poor Law a Speenharnland foi um passo terrivelmente regressivo A experiência de 25 ano s já havia demonstrado ser a paróquia uma unidade demasiado pequena para a administração da Poor Law Não podia ser adequado um tratamento que não fazia distinção entre os desempregados capacitados de um lado e os idosos enfermos e crianças de outro Seria o mesmo que um distrito hoje em dia tentar tratar sozinho dosegurodesemprego ou se esse seguro envolvesse ainda a responsabilidade com os velhos Em conseqüência somente nos curtos períodos em que a administração da Poor Law foi ao mesmo tempo nacional e diferenciada é que ela pôde ser mais ou menos satisfatória Esse período ocorreu de 1590 a 1640 sob 119 Burleigh e Laud quando a Coroa dirigia a Poor Law através de juízes de paz e se iniciou um esquema ambicioso de construir asilos de indigentes ao mesmo tempo que surgia a obrigatoriedade do trabalho Mas a Commonwealth 16421660 destruiu novamente o qut era então denunciado como controle pessoal da Coroa e bem ironicamente a res tauração completou o trabalho da Commonwealth O Act of Settlement de 1662 restringiu a Poor Law à base paroquial e a legislação dedicou muito pouca atenção ao pauperismo até a terceira década do século XVIII Finalmente em 1722 começaram a ser feitos esforços para uma diferenciação os albergues seriam construídos por uniões de paróquias e seriam diferentes dos asilos de indigentes locais Era permitida a assistência externa pois o albergue forneceria a prova da necessidade Em 1782 com o Gilberts Act deuse um passo maior no sentido de expandir as unidades de administração encorajando a formação de uniões paroquiais Nessa ocasião instavase para que as paróquias encontrassem emprego para os indivíduos capazes nas próprias vizinhanças Essa política seria complementada pela assistência externa e até mesmo por abonos salariais a fim de diminuir o custo da assistência aos elementos capacitados Embora a formação de uniões de paróquias fosse sugerida e não obrigatória ela já significava um progresso no sentido de unidades maiores de administração e da diferenciação das várias categorias de pobres assistidos socialmente Assim a despeito das deficiências do sistema o Gilberts Act representou uma tentativa na direção correta e enquanto a assistência externa e os abonos salariais eram apenas subsidiários em relação a uma legislação social positiva eles não representavam necessariamente algo fatal para uma solução racional A Speenharnland porém colocou um ponto final na reforma Tornando gerais a assistência externa e os abonos salariais ela não conseguiu a orientação do Gilberts Act como se tem afirmado falsamente mas inverteu completamente a sua tendência e de fato destruiu todo o sistema da Poor Law elisabetana A distinção laboriosamente estabelecida entre albergues e asilos de indigentes perdeu o seu significado As várias categorias de indigentes e desempregados capacitados tendiam agora a confundirse em uma só massa indiscriminada de pobreza dependente Criouse o oposto de um processo de diferenciação o albergue fundiuse com o asilo de indigentes e este mesmo tendia a desaparecer cada vez mais A paróquia tornouse novamente a unidade solitária e final nesta verdadeira obraprima de degeneração institucional A supremacia do proprietário de terras e do pároco foi até aumentada em conseqüência da Speenharnland se é que tal coisa era possível 120 A benevolência indistinguível do poder da qual se queixavam os inspetores dos pobres assumia a sua melhor forma naquele papel de socialismo conservador que juízes de paz se arrogavam para manejar o poder benevolente enquanto o impacto dos impostos recaía sobre a classe média rural Grande parte da classe dos pequenos proprietários rurais há muito se extinguira nas vicissitudes da Revolução Agrícola e os restantes foreiros vitalícios e posseiros tendiam a confundirse com os aldeões e os pequenos proprietários em um único estrato social aos olhos do potentado do campo Ele não distinguia muito bem entre pessoas necessitadas e pessoas que precisavam de ajuda num dado momento Do alto da perspectiva através da qual observava a luta pela vida na aldeia parecia não haver qualquer linha de demarcação que separasse os pobres dos miseráveis Muitas vezes ele se surpreendia ao tomar conhecimento de que um pequeno fazendeiro tinha que se valer da taxa de impostos num ano mau após ter sido arruinado pelo nível desastroso desses impostos Tais casos não eram freqüentes é verdade mas a própria possibilidade de ocorrerem enfatizava o fato de que muitos contribuintes de impostos eram pobres De um modo geral a relação entre o contribuinte de impostos e o indigente era algo semelhante à existente entre o empregado e o desempregado em nossa época com os vários esquemas de seguro social que fazem incidir sobre aquele que está empregado o encargo de manter o desempregado temporário O contribuinte típico porém não podia apelar para a assistência aos pobres e o trabalhador agrícola típico não pagava impostos Politicamente a influência do proprietário rural sobre os pobres da aldeia se fortaleceu com a Speenharnland enquanto a da classe média rural se enfraqueceu O aspecto mais extravagante do sistema foi a sua economia propriamente dita A pergunta Quem pagou pela Speenharnland ficou praticamente sem resposta Diretamente a carga maior recaiu sobre os contribuintes de impostos sem dúvida Os fazendeiros porém foram parcialmente compensados pelos baixos salários que pagavam a seus trabalhadores um resultado direto do sistema Speenharnland Além disso o fazendeiro conseguia abater sua parte dos impostos empregando um aldeão que de outra forma passaria a depender desses impostos A conseqüente superlotação da cozinha e das terras do fazendeiro com trabalhadores desnecessários e alguns deles pouco diligentes tinha que figurar na conta de débitos Saía muito mais barato o trabalho daqueles que já estavam por conta dos impostos Eles tinham que trabalhar muitas vezes como jornaleiros em lugares alternados tendo como pagamento 121 apenas a comida ou eram postos em leilão na praça da aldeia por alguns pences por dia Quanto valia essa espécie de trabalho deprimente é uma outra questão Para coroar tudo isto concediase às vezes aos pobres um abono para aluguel e o proprietário inescrupuloso das casas ainda ganhava mais dinheiro sublocando habitações insalubres AB autoridades da aldeia fechavam os olhos a isto desde que os impostos sobre os galpões continuassem a ser pagos É evidente que uma tal mistura de interesses subverteria qualquer senso de responsabilidade financeira e encorajaria todos os tipos de corrupção mesquinha Todavia num sentido mais amplo a Speenhamland compensou Ela começou com abonos salariais beneficiando ostensivamente os empregados mas na verdade utilizando fundos públicos para subsidiar os empregadores De fato o resultado principal do sistema de abonos foi baixar os salários a nível inferior ao de subsistência Nas áreas mais profundamente pauperizadas os fazendeiros não empregavam os trabalhadores agrícolas que ainda possuíam um pedaço de terra porque quem dispunha de alguma propriedade não podia recorrer à assistência paroquial e o saláriopadrão era tão baixo que sem alguma espécie de auxílio ele era insuficiente para um homem casado Em conseqüência só encontravam emprego em algumas áreas aquelas pessoas que já viviam à custa dos impostos aqueles que tentavam manterse sem recorrer aos impostos e ganhar a vida por seu próprio esforço raramente conseguiam emprego No campo como um todo porém a grande maioria devia ser ainda desse último tipo e os empregadores como classe tinham um lucro extra em relação a cada um deles uma vez que se beneficiavam do baixo nível dos salários sem ter que compensáIos com os impostos A longo prazo um sistema tão antieconômico como esse teria que afetar a produtividade do trabalho e baixar os saláriospadrão e até mesmo a tabela estabelecida pelos magistrados em benefício dos pobres Na década de 1820 a tabela de pão já vinha sendo diminuída em vários condados e os miseráveis proventos dos pobres eram ainda mais reduzidos Entre 1815 e 1830 a tabela Speenharnland praticamente a mesma em todo o país foi reduzida em quase um terço e essa redução também foi de âmbito geral Clapham duvidava que fosse tão pesado o encargo total dos impostos como queriam fazer acreditar com a súbita explosão de reclamações E ele tinha razão Embora a aumento dos impostos fosse espetacular e tivesse o efeito de uma calamidade em algumas regiões parece mais provável que a raiz do problema não fosse tanto o peso desse encargo como o efeito econômico que os abonos salariais 122 exerciam sobre a produtividade do trabalho O sul da Inglaterra o mais diretamente atingido não chegava a despender 33 da sua renda com a taxa dos pobres um ônus bastante tolerável pensava Clapham em vista do fato de que parte considerável desta soma deveria reverter aos pobres sob a forma de salários De fato os impostos totais decresciam rapidamente na década de 1830 e seu peso relativo deve ter diminuído ainda mais rapidamente em vista do crescente bemestar nacional Em 1818 as somas realmente gastas na assistência aos pobres totalizaram aproximadamente oito milhões de libras elas decresceram continuamente até atingirem menos de seis milhões em 1826 enquanto a renda nacional se elevava rapidamente E no entanto a crítica à Speenhamland se tornava cada vez mais violenta parece que em virtude do fato de que a desumanização das massas começara a paralisar a vida nacional e principalmente a restringir as energias da própria indústria Speenhamland precipitou uma catástrofe social Acostumamonos a encarar as sombrias apresentações do capitalismo primitivo como dramalhões Não há justificativa para isto O quadro pintado por Harriet Martineau a fervorosa apóstola da Poor Law Reform coincide com o dos propagandistas cartistas que dirigiam o clamor contra a mesma Poor Law Reform Os fatos apresentados no famoso Report of the Commision on the Poor Law Relatório da Comissão sobre a Lei dos Pobres 1834 defendendo a abolição imediata da Speenhamland Law poderiam ter servido de material para a campanha de Dickens contra a política da Comissão Nem Charles Kingsley nem Friedrich Engels nem Blake ou Carlyle se enganaram ao acreditar que a própria imagem do homem fora maculada por alguma terrível catástrofe Mais impressionante ainda do que as explosões de dor e de ira que poetas e filantropos expressaram foi o gélido silêncio de Malthus e Ricardo que ignoraram o cenário no qual nasceu a sua própria filosofia de danação secular Não há dúvida de que a desarticulação social causada pela máquina e pelas circunstâncias sob as quais o homem estava agora condenado a serviIa teve muitos resultados que eram inevitáveis Faltava à civilização rural da Inglaterra aqueles arredores urbanos a partir dos quais cresceram mais tarde as cidades industriais do continente2 Nas novas cidades não havia uma classe média urbana estabelecida nem aqueles núcleos de artesâos e profissionais formados por uma pequena burguesia 2 O Professor Usher cita 1795 como a data aproximada do início da urbanização geral 123 respeitável e gente da cidade que poderiam ter servido de meio assimilador para o trabalhador rude que labutava nos primitivos moinhos atraídos por salários altos ou expulsos da terra por espertos cercadores A cidade industrial tanto no Midlands como no North West era um deserto cultural suas favelas apenas refletiam sua falta de tradição e de respeito cívico próprio Mergulhado nesse lamaçal desolador de miséria o camponês imigrante ou até mesmo o antigo pequeno proprietário rural ou o foreiro logo se transformava em um indefinível animal do pântano Não era porque se lhe pagava muito pouco ou até mesmo porque trabalhasse muitas horas embora ambas as coisas ocorressem às vezes e em excesso mas sim o fato de ele viver agora em condições físicas que negavam a própria forma humana da vida Os negros das florestas africanas que se viam enjaulados lutando pelo ar nos porões dos navios negreiros deviam sentir o mesmo que essas pessoas E no entanto nada disto era irremediável Enquanto um homem tinha uma posição à qual se apegar um padrão restabelecido por seus parentes ou companheiros ele podia lutar por eles e readquirir sua alma Mas no caso do trabalhador isto só podia ocorrer de uma única forma fazendo de si mesmo o membro de uma nova classe Se não pudesse ganhar a vida com seu próprio trabalho ele não era um trabalhador mas um indigente ReduziIa artificialmente a uma tal condição foi a suprema abominação da Speenharnland Essa lei de um humanitarismo ambíguo impediu os trabalhadores de se constituírem numa classe econômica privandoos assim do único meio de enfrentar o destino que lhes fora reservado no moinho econômico Speenhamland foi um instrumento infalível de desmoralização popular Se uma sociedade humana é uma máquina de atuação própria para manter os padrões sobre os quais é construída a Speenharnland foi um autômato para a destruição dos padrões sobre os quais qualquer tipo de sociedade poderia se basear Ela não só colocou como prêmio a evasão do trabalho e a desculpa da inadequação como ainda aumentou a atração do pauperismo precisamente numa conjuntura em que o homem lutava para fugir à sina da miséria Desde que um homem fosse para um asilo de indigentes e acabava indo para lá se ele e sua família dependessem dos impostos durante algum tempo a armadilha se fechava e era raro ele poder escapar A decência e o autorespeito inculcados durante séculos de vida organizada desapareciam rapidamente na promiscuidade do asilo de indigentes onde um homem tinha que ser cuidadoso para não o julgarem em melhor situação que seu vizinho pois do contrário ele seria forçado a sair à caça de trabalho em vez de vagabundear 124 no abrigo habitual O imposto dos pobres se tornara uma espoliação pública Para conseguir a sua parte os mais brutos bajulavam a administração os dissolutos exibiam seus bastardos que precisavam ser alimentados os preguiçosos cruzavam os braços e esperavam Rapazes e moças ignorantes casavamse contando com ele caçadores furtivos ladrões e prostitutas extorquiamno através da intimidação juízes do campo esbanjavamno em busca de popularidade e os guardiães por conveniência Esta era a forma de gerir o fundo O fazendeiro em vez de dispor de um número satisfatório de trabalhadores para cultivar sua terra trabalhadores pagos por ele mesmo era forçado a manter o dobro da quantidade e os salários eram parcialmente pagos com os impostos Esses homens empregados por ele através de compulsão ficavam fora de seu controle trabalhavam ou não conforme lhes aprazia diminuíam a qualidade da sua terra e impediamno de empregar homens melhores que trabalhariam duramente pela sua independência Esses homens melhores acabavam se perdendo entre os piores o aldeão contribuinte de impostos após uma luta vã terminava procurando a assistência na mesa paga Eis aí Harriet Martineau3 Muitos liberais de última hora constrangidos negligenciaram de uma forma ingrata a memória desta sincera apóstola do seu credo E no entanto mesmo os seus exageros que eles agora temiam colocavam os enfoques no lugar certo Ela mesma pertencia àquela classe média sempre em luta cuja pobreza bem educada a tornava ainda mais sensível às complexidades morais da Poor Law Ela compreendia e expressava claramente a necessidade que a sociedade tinha de uma nova classe uma classe de trabalhadores independentes Eles eram os heróis dos seus sonhos e ela fez um deles um trabalhador cronicamente desempregado que se recusava a apelar para a assistência social dizer com orgulho a um colega que se decidira a depender dos impostos Aqui estou eu e desafio qualquer um a desprezarme Eu poderia deixar meus filhos no meio da nave da igreja e desafiar qualquer um a zombar deles quanto ao lugar que ocupam na sociedade Pode haver alguns mais sábios outros muitos mais ricos mas nenhum mais honrado Os grandes homens da classe dominante ainda estavam longe de compreender a necessidade dessa nova classe A senhorita Martineau apontou o erro vulgar da aristocracia em supor existir apenas uma espécie de sociedade abaixo da rica com a qual em função 3 Martineau H History of England During the Thirty Years Peace 18161846 1849 125 dos seus interesses econômicos eles se viam obrigados a manter negócios Lorde Eldon se queixava ela tal como outros que deveriam compreender melhor incluía sob apenas uma cabeça as classes baixas todos os que estavam abaixo dos banqueiros mais ricos fabricantes comerciantes artesãos trabalhadores e indigentes 4 Mas insistia ela com ardor era da diferença entre essas duas últimas categorias que dependia o futuro da sociedade Exceto pela distinção entre soberano e súdito não existe na Inglaterra uma diferença social tão grande como a que ocorre entre o trabalhador independente e o indigente e é ao mesmo tempo sinal de ignorância de imoralidade e de falta de visão política confundir as duas escreveu ela É claro que não se tratava da constatação de um fato a diferença entre os dois estratos deixara de existir sob a Speenharnland Tratavase mais de uma afirmação política baseada numa antecipação profética A política era a dos Poor Laws Reform Commissioners Comissários da Reforma da Lei dos Pobres a profecia visava a um mercado livre e de trabalho competitivo e a conseqüente emergência de um proletariado industrial A abolição da Speenhamland representou o nascimento real da moderna classe trabalhadora cujo imediato interesse próprio destinoua a tornarse a protetora da sociedade contra os perigos intrínsecos de uma civilização de máquinas O que quer que o futuro lhes reservasse a classe trabalhadora e a economia de mercado surgiram na história ao mesmo tempo O horror à assistência pública a desconfiança na ação do estado a insistência na respeitabilidade e na autoconfiança permaneceram como características do trabalhador britânico durante gerações A revogação da Speenhamland foi conseqüência do trabalho de uma nova classe que entrava no cenário histórico as classes médias da Inglaterra A classe dos proprietários rurais não podia fazer o trabalho que essas classes se destinavam a executar a transformação da sociedade em uma economia de mercado Dezenas de leis foram abolidas e outras tantas promulgadas antes que a transformação tomasse o seu rumo A Parliamentary Reform Bill Lei Parlamentar da Reforma de 1832 retirou os direitos políticos dos burgos infectos e deu poder de uma vez por todas aos membros da Câmara dos Comuns O primeiro grande ato da reforma foi a abolição da Speenharnland Agora que avaliamos o grau em que seus métodos paternalistas se imiscuíram com a vida no campo compreenderemos melhor por que até mesmo os 4 Martineau H The Parish 1833 126 defensores mais radicais da reforma hesitaram em propor um período mais curto do que dez ou quinze anos para a transição Na verdade ela ocorreu de forma tão abrupta que desmascara a lenda do gradualismo inglês adotada em época posterior quando se procurava argumentos contra a reforma radical O choque brutal desses acontecimento foi o pesadelo de inúmeras gerações da classe trabalhadora britânica O sucesso dessa operação dilacerante no entanto foi conseqüência da profunda convicção de amplos estratos da população inclusive os próprios trabalhadores de que o sistema que pretendia auxiliáIos na aparência estava de fato espoliandoos e que o direito de viver era uma enfermidade que os levaria à morte A nova lei estabelecia que no futuro não seria concedida qualquer assistência externa Sua administração era nacional e diferenciada e também neste sentido ela se constituiu numa reforma bastante ampla Naturalmente aboliuse também o sistema de abonos salariais Reintroduziuse a experiência dos albergues mas num novo sentido Ficava agora a critério do candidato decidir se ele se considerava realmente tão destruído de meios que iria voluntariamente procurar um abrigo que fora transformado deliberadamente num antro de horror O albergue se investira de um estigma e permanecer nele se tornara uma tortura psicológica e moral embora ele atendesse às exigências de higiene e decência requisitos estes engenhosamente usados como pretexto para outras privações Já não eram mais os juízes de paz ou os inspetores locais que administravam a lei e sim autoridades com um poder mais amplo os guardiães sob uma supervisão central ditatorial Até a cerimônia de enterro de um indigente tornavase um ato no qual os seus companheiros renunciavam mesmo na morte à solidariedade que lhes era devida Em 1834 o capitalismo industrial estava prestes a se iniciar e foi então introduzida a Poor Law Reform A Speenhamland Law que havia resguardado a Inglaterra rural e portanto a população trabalhadora em geral contra o funcionamento total do mecanismo de mercado devorara parte da medula da sociedade Na ocasião que foi revogada grandes massas da população trabalhadora pareciam mais espectros de um pesadelo do que seres humanos Mas se os trabalhadores estavam fisicamente desumanizados as classes dominantes estavam moralmente degradadas A unidade tradicional de uma sociedade cristã cedia lugar a uma negação de responsabilidade por parte dos ricos em relação às condições dos seus semelhantes As Duas Nações assumiam a sua forma Para espanto dos pensadores da época uma riqueza nunca 127 vista passou a ser a companheira inseparável de uma pobreza nunca vista Os estudiosos proclamavam em uníssono a descoberta de uma nova ciência que colocava além de qualquer dúvida as leis que governam o mundo dos homens Em obediência a essas leis a compaixão não habitava mais os corações e a determinação estóica de renunciar à solidariedade humana em nome da maior felicidade para um número maior de pessoas adquiriu a dignidade de uma religião secular O mecanismo do IIiercado defendia seus direitos e reivindicava seu acabamento o trabalho humano teve que transformarse em mercadoria O paternalismo reacionário tentara em vão resistir a essa necessidade Fugindo aos horrores da Speenharnland os homens correram cegamente para o abrigo de uma utópica economia de mercado 128 9 PAUPERISMO E UTOPIA O problema da pobreza se concentrava em tono de dois termos estreitamente relacionados pauperismo e economia política Embora abordemos separadamente o impacto de ambos sobre a consciência moderna eles formaram parte de um todo indivisível a descoberta da sociedade Até a época da promulgação da Speenharnland não se encontrara uma resposta satisfatória à pergunta de onde vêm os pobres Entre os pensadores do século XVIII porém existia o consenso geral de que pauperismo e progresso eram inseparáveis Em 1782 escrevia John MFarlane que o maior número de pobres não se encontrava nos países áridos ou entre as nações bárbaras mas naquelas mais férteis e mais civilizadas Giammaria Ortes o economista italiano pronunciava como axioma que a riqueza de uma nação corresponde à sua população e a sua miséria corresponde à sua riqueza 1774 Até mesmo Adam Smith declarava à sua maneira cautelosa que não são nos países mais ricos que os salários dos trabalhadores são mais elevados MFarlane não estava portanto aventando uma opinião incomum quando expressava a crença de que o número de pobres continuaria a crescer agora que a Inglaterra se aproximava do meridiano da sua grandeza1 Repetimos que o fato de um inglês prever a estagnação comercial significava apenas fazer eco a uma opinião quase geral Se de fato foi 1 MFarlane J Enquiries Concerning the Poor 1782 Cf Também a obsrvação no editorial de Postlethwayt no dicionário Universal de 1757 sobre a Poor Law holandesa de 7 de outubro de 1531 129 marcante o aumento nas exportações durante o meio século que precedeu 1782 os altos e baixos do comércio eram ainda mais acentuados O comércio estava apenas começando a se recuperar de uma queda que reduzira as cifras de exportação ao nível de quase meio século antes Para os contemporâneos a grande expansão do comércio e o aparente crescimento da prosperidade nacional que se seguira à Guerra dos Sete Anos significava apenas que também a Inglaterra havia tido a sua oportunidade depois de Portugal Espanha Holanda e França Sua acentuada ascensão era agora tema do passado e não havia razão para acreditar na continuidade do seu progresso que parecia apenas o resultado de uma guerra proveitosa Como vimos aguardavase quase unanimemente um declínio no comércio O fato verdadeiro porém era que a prosperidade estava bem próxima uma prosperidade de proporções gigantescas que estava destinada a tornarse uma nova forma de vida não apenas para uma nação mas para toda a humanidade Nem os estadistas nem os economistas tinham a mais remota idéia desse porvir No que se refere aos estadistas pode ser que o assunto fosse encarado com indiferença pois durante mais duas gerações a subida vertiginosa das cifras de comércio apenas tocou a fímbria da miséria popular No caso dos economistas porém isto foi singularmente infeliz pois todo o seus sistema teórico foi construído durante esse espaço de anormalidade quando uma tremenda ascensão no comércio e na produção se fez acompanhar de um enorme aumento da miséria humana Com efeito os fatos aparentes sobre os quais se basearam os princípios de Malthus Ricardo e James Mill apenas refletiam as tendências paradoxais que prevalecem durante um período de transição nitidamente definido De fato a situação era enigmática Os pobres começaram a surgir na Inglaterra na primeira metade do século XVI Eles se tornaram conspícuos como indivíduos desligados da herdade feudal ou de qualquer superior feudal e sua transformação gradual em uma classe de trabalhadores livres foi o resultado conjunto da feroz perseguição à vagabundagem e do patrocínio da indústria doméstica poderosamente auxiliados pela contínua expansão do comércio exterior No decorrer do século XVII aludiase menos ao pauperismo e até mesmo a medida incisiva do Act of Settlement foi promulgada sem uma discussão pública Quando se reanimou a discussão no final do século a Utopia de Thomas More e as primeiras Poor Laws tinham mais de 150 anos e já haviam sido esquecidas há muito a dissolução dos monastérios e a rebelião de Kett Durante todo esse tempo já vinham ocorrendo alguns 130 cercamentos e monopólios como por exemplo durante o reinado de Carlos I mas as novas classes como um todo já haviam se acomodado Enquanto os pobres na metade do século XVI representavam um perigo para a sociedade sobre a qual desciam com exércitos inimigos o final do século XVII eles constituíam apenas um carga para os postos Por outro lado já não se tratava mais de uma sociedade sernifeudal porém de uma semicomercial cujos membros representativos favoreciam o trabalho por ele mesmo e não podiam mais aceitar nem a perspectiva medieval de que a pobreza não era um problema nem a opinião do cercador bemsucedido de que os desempregados eram apenas pessoas capazes preguiçosas A partir dessa época as opiniões sobre o pauperismo começaram a refletir uma concepção filosófica como ocorrera anteriormente com as questões teológicas As opiniões sobre os pobres espelhavam cada vez mais as perspectivas em relação à existência como um todo Daí a variedade e a aparente confusão dessas opiniões mas ao mesmo tempo seu interesse primordial para a história da nossa civilização Os quacres pioneiros na exploração das possibilidades da existência moderna foram os primeiros a reconhecer que o desemprego involuntário devia ser o resultado de algum defeito na organização do trabalho Com a sua fé poderosa nos métodos sistemáticos eles aplicaram o princípio da autoajuda coletiva aos mais pobres dentre eles o mesmo princípio que usavam ocasionalmente como contestadores conscienciosos quando queriam evitar apoiar as autoridades e pagavam pelo seu sustento na prisão Lawson um quacre zeloso publicou um Appeal to the Parliament concerning the Poor that there be no beggar in England Apelo ao Parlamento relativo aos pobres para que não haja mendigos na Inglaterra como uma plataforma na qual sugeria o estabelecimento da Labor Exchange Bolsa de Trabalho no sentido moderno da agência pública de empregos Isto ocorreu em 1660 dez anos antes Henry Robinson já havia proposto um Office of Adresses and Encounter Escritório de Endereços e Encontros Mas o governo da Restauração favorecia métodos mais prosaicos A tendência do Act of Settlement em 1662 era diretamente contrária a qualquer sistema racional de bolsas de trabalho o que criaria um mercado mais amplo para a mãode obra O domicílio termo usado pela primeira vez no Act Decreto prendia a mãode obra à paróquia Após a Revolução Gloriosa 1688 a filosofia quacre transformou John Bellers num verdadeiro profeta da tendência das idéias sociais do 131 futuro distante Foi na atmosfera dos Meetings of Sufferings nos quais se utilizavam agora e com freqüência dados estatísticos para dar precisão científica às políticas religiosas de assistência social que nasceu em 1696 sua sugestão para a criação dos Colleges of Industry nos quais o lazer involuntário dos pobres poderia se transformar em algo de bom Subjacente ao esquema de Bellers estavam não os princípios de uma Bolsa de Trabalho mas os princípios bem diferentes da troca de trabalhos A primeira estava associada à idéia convencional de encontrar um empregador para o desempregado a última significava simplesmente que os trabalhadores não precisavam de um empregador enquanto pudessem trocar diretamente seus produtos Se o trabalho do pobre é a mina do rico dizia Bellers por que eles não poderiam se manter explorando essas riquezas em seu próprio benefício e mesmo deixando sobrar alguma coisa O que se precisava era apenas organizáIos em um College ou corporação onde poderiam conjugar seus esforços Isto constituiria o cerne de todo o pensamento socialista posterior em relação à pobreza quer tomasse a forma dos Villages of Union de Owen das Phalanstêres de Fourier dos Banks of Exchange de Proudhon dos Ateliers Nationaux de Louis Blanc do Nationale Werkstéitten de Lassalle ou até se quisermos os Planos Qüinqüenais de Stalin O livro de Bellers continha in nuce a maioria das propostas ligadas à solução desse problema desde o primeiro momento em que começaram a surgir as grandes desarticulações que a máquina produziu na sociedade moderna Essa corporação fará do trabalho e não do dinheiro o padrão pelo qual será valorizado tudo que é necessário Seu planejamento era o de uma corporação de todos os tipos de profissões úteis que trabalhariam umas pelas outras sem qualquer assistência pública A ligação entre notas de trabalho autoajuda e cooperação é significativa Os trabalhadores em número de trezentos se autosustentariam e trabalhariam em comum pela mera sobrevivência e quem fizer mais será pago por isto Seriam combinadas as reações para a subsistência e o pagamento conforme os resultados obtidos No caso de algumas pequenas experiências de autoajuda o excedente fora encaminhado para o Meeting of Sufferings e gasto em benefício de outros membros da comunidade religiosa Esse excedente se destinava a ter um grande futuro a novidade da idéia de lucro era a panacéia da época O esquema nacional de Bellers para a assistência ao desemprego na verdade seria dirigido por capitalistas e com lucro No mesmo ano 1696 John Cary promoveu a Bristol Corporation for the Poor a qual após 132 algum sucesso inicial deixou de render lucros como ocorreu em última instância com todos os empreendimentos desse tipo A proposta de Bellers porém assentavase no mesmo pressuposto do sistema de imposto de trabalho de John Locke também apresentado em 1696 e segundo o qual os pobres da aldeia deveriam ser alocado aos contribuintes locais de impostos para trabalhar proporcionalmente ao pagamento desses contribuintes Esta foi a origem do infortunado sistema de bóiasfrias praticado sob a lei Gilbert A idéia de que o pauperismo poderia ser rentável realmente se apossara da mentalidade das pessoas Foi exatamente um século mais tarde que Jeremy Bentham o mais prolífero de todos os projetistas sociais formou o plano de usar indigentes em grande escala para pôr em funcionamento a maquinaria para trabalhar madeira e metal projetada por Samuel seu irmão ainda mais inventivo Bentham diz Sir Leslie Stephen juntarase a seu irmão e estavam ambos na expectativa de uma máquina a vapor Ocorreulhes agora empregar criminosos condenados em vez do vapor Isto aconteceu em 1794 O plano Panopticon de Jeremy Bentham pelo qual as prisões seriam projetadas de forma a tornar barata e efetiva a sua supervisão já existia há alguns anos e ele decidira agora simplesmente aplicálo à sua fábrica que funcionava com prisioneiros o lugar dos prisioneiros seria assumido pelos pobres Em pouco tempo o empreendimento comercial particular dos irrnâos Bentham fundiuse num esquema geral para a solução do problema social como um todo A decisão dos magistrados de Speenharnland a proposta de salário mínimo de Whitbread e acima de tudo a minuta feita por Pitt e que só circulou em particular de um projeto de grande alcance para a reforma da Poor Law tudo isto fazia do pauperismo um tópico importante entre os estadistas Bentham cuja crítica ao projeto de Pitt supõese acarretou a sua retirada aparece agora nos Annals de Arthur Young com projetos próprios mais elaborados 1797 Suas IndustryHouses Casas de Indústrias constantes do plano Panopticon cinco andares em doze setores para a exploração dos pobres assistidos seriam dirigi das por uma comissão central localizada na capital seguindo o modelo da comissão do Banco da Inglaterra e tendo direito a voto todos os membros que possuíssem ações no valor de cinco ou dez libras Um texto publicado alguns anos mais tarde dizia 1 A administração das empresas dos pobres em todo o sul da GrãBretanha será atribuída a uma autoridade e as despesas debitadas a um fundo único 2 Essa 133 autoridade será a de uma jointStock Company e poderá ter como nome o de National Charity Company2 Seriam construídas pelo menos 250 IndustryHouses com aproximadamente 500000 internos O plano se fazia acompanhar de uma análise detalhada das várias categorias de desempregados e nessa análise Bentham antecipou em mais de um século os resultados obtidos por outros investigadores Sua mente classificatória demonstrava o melhor da sua capacidade de realismo Mãodeobra fora do lugar aqueles recentemente demitidos de empregos se distinguiam de outros que não podiam encontrar emprego em função de uma estagnação casual a estagnação periódica dos trabalhadores sazonais se distinguia da mãodeobra superada a que se tornava supérflua pela introdução da maquinaria ou em termos ainda mais modernos os tecnologicamente desempregados Um último grupo consistia em mãode obra dispersa outra categoria moderna que adquiriu proeminência com a guerra francesa à época de Bentham A categoria mais significativa porém foi a da estagnação casual acima mencionada que incluía não apenas profissionais e artistas que exerciam ocupações dependentes da moda mas também o grupo muito mais importante dos desempregados no caso de uma estagnação geral das manufaturas O plano de Bentham representava nada menos do que o nivelamento do ciclo de negócios através da comercialização do desemprego em escala gigantesca Robert Owen em 1819 reeditou os planos de Bellers de mais de 120 anos para a organização dos Colleges of Industry A destituição esporádica transformarase agora numa torrente de miséria As suas próprias Villages of Union diferiam das de Bellers principalmente por serem muito maiores incluindo 1200 pessoas no mesmo número de acres da terra A comissão que angariava subscrições para este plano experimental de resolução do problema de desemprego incluía nada menos do que uma autoridade como David Ricardo Mas não apareceram subscritores Algum tempo mais tarde o francês Charles Fourier foi exposto ao ridículo por esperar dia após dia algum sócio que qui sesse investir em seu plano Phalanstêre baseado em idéias muito semelhantes àquelas patrocinadas por um dos maiores especialistas contemporâneos em finanças E por acaso a firma de Robert Owen em New Lanark com Jeremy Bentham como sócio passivo não se tornou mundialmente famosa com o sucesso financeiro de seus esquemas 2 Bentham J Pauper Management Primeira publicação em 1797 134 filantrópicos Mas não existia ainda uma visão padronizada da pobreza nem qualquer forma aceitável para se obter lucro por intermédio dos pobres Owen encampou de Bellers a idéia das notas de trabalho e aplicouas em seu National Equitable Labor Exchange em 1832 e fracassou a princípio estreitamente relacionado da autosuficiência econômica da classe trabalhadora também uma idéia de Bellers estava por trás do famoso movimento TradesUnion Sindicato de Profissionais dos dois anos seguintes a TradesUnion era uma associação geral de todas as profissões artesanatos e artes não excluindo os pequenos mestres com o vago propósito de constituílos como um órgão da sociedade em manifestação pacífica Quem poderia imaginar que este foi o embrião da tentativa de formar o violento One Big Union Sindicato Único nos próximos cem anos Nos seus planos em relação aos pobres de fato quase não se distinguiam o sindicalismo o capitalismo o socialismo e o anarquismo a Bank of Exchange de Proudhon a primeira exploração prática do anarquismo filosófico em 1848 foi basicamente uma excrescência da experiência de Owen Marx o socialista de estado atacou severamente as idéias de Proudhon e a partir daí o estado é que teria a função de fornecer o capital para esquemas coletivistas desse tipo dos quais passaram à história os de Louis Blanc e Lassalle Não deveria haver mistério quanto à razão econômica porque não se podia fazer dinheiro como os indigentes Ela já havia sido fornecida há quase 150 anos por Daniel Defoe cujo panfleto publicado em 1704 fora o pretexto para a discussão iniciada por Bellers e Locke Defoe insistia em que se os pobres fossem assistidos socialmente eles não trabalhariam por salários e se eles fossem obrigados a manufaturar bens em instituições públicas eles apenas criariam um maior desemprego nas manufaturas privadas Seu panfleto tinha o título satânico Giving Alms no Charity and Employing the Poor a Grievance to the Nation e a ele se seguiram as mais famosas sátiras do doutor Mandeville sobre as abelhas sofisticadas cuja comunidade era próspera apenas porque ela encorajava a vaidade e a inveja o vício e o desperdício Entretanto enquanto o espirituoso doutor abordava um paradoxo moral superficial o panfletário acertara justamente os elementos básicos da nova política econômica Seu ensaio foi logo esquecido fora dos círculos da política inferior como eram chamados os problemas de policiamento no século XVIll enquanto o paradoxo barato de Mandeville excitava mentes da qualidade de um Berkeley um Hume e um Smith 135 É evidente que na primeira metade do século XVIII a riqueza móvel ainda se constituía num tema moral enquanto a pobreza ainda não era As classes puritanas ficavam chocadas com as formas feudais de evidente desperdício que suas consciências coordenavam como luxo e vício embora tivessem que concordar ainda que com relutância com as abelhas de Mandeville de que o comércio e os negócios decairiam rapidamente se não existissem esses males Esses ricos mercadores se reassegurariam depois sobre a moralidade dos negócios os novos moinhos de algodão já não satisfaziam mais a ostentação ociosa e sim as monótonas necessidades diárias ocorriam formas sutis de desperdício e se imaginava serem menos evidentes quando na verdade eram ainda mais esbanjadoras que as anteriores O palavreado de Defoe em relação aos perigos da assistência social aos pobres não foi suficientemente importante para penetrar as consciências preocupadas com os perigos morais da riqueza a Revolução Industrial ainda estava para chegar No entanto o paradoxo de Defoe teve o alcance de uma previsão das perplexidades que surgiriam Não dar esmolas como caridade abrandando a fome prejudicavase a produção e se criava simplesmente a inanição empregar os pobres uma ofensa à nação pois criando empregos públicos apenas se incrementava a Superabundância de mercadorias no mercado e se apressava a ruína dos comerciantes privados Os temas foram abordados já na virada do século XVII por J ohn Bellers os quacres e Danel Defoe jornalistas da época santos e cínicos porém transcorreram mais de dois séculos de trabalho e pensamento de esperança e sofrimento até que surgissem as soluções trabalhistas Na época da Speenharnland porém a verdadeira natureza do pauperismo ainda permanecia oculta à visão dos homens Havia um consenso geral quanto à validade de uma grande população tão grande quanto possível pois o poder do estado consistia em homens Havia também uma concordância geral quanto às vantagens da mãodeobra barata pois só com ela as manufaturas podiam prosperar Além disso se não fossem os pobres quem tripularia os navios e iria à guerra Todavia permanecia a dúvida se o pauperismo não seria um mal afinal de contas De qualquer forma por que os indigentes não deveriam ser empregados com sucesso em proveito público como acontecia obviamente em proveito particular Não se encontrava qualquer resposta convincente a estas questões Defoe enfrentara a verdade uma verdade que Adam Smith pode ou não ter compreendido setenta anos mais tarde a condição subdesenvolvida do sistema de mercado ocultava as suas inerentes fraquezas Tanto a nova riqueza como a nova pobreza ainda não eram bem compreendidas 136 O fato da questão ainda estar em seu estágio de crisálida é suficientemente demonstrado pela surpreendente congruência dos projetos que refletiam mentalidades tão diferentes como as do quacre Bellers do ateísta Owen e do utilitarista Bentham Owen um socialista era um crente ardoroso na igualdade dos homens e nos seus direitos naturais enquanto Bentham desprezava a igualdade ridicularizava os direitos humanos e se inclinava totalmente para o laissezfaire No entanto os paralelogramos de Owen se pareciam tanto com as IndustryHouses de Bentham que se pode imaginar que Owen se inspirou apenas nelas antes de nos lembrarmos da sua dívida para com Bellers Os três homens estavam convencidos de que uma organização correta do trabalho dos desempregados deveria produzir um excedente e Bellers o humanista queria usáIo basicamente na assistência a outros sofredores Betham o liberal utilitarista desejava repassál o aos acionistas e Owen o socialista queria devolvêlo aos próprios desempregados Enquanto as suas diferenças revelavam apenas os sinais quase imperceptíveis de futuras brechas a sua ilusão comum refletia o mesmo equívoco radical quanto à natureza do pauperismo na nascente da economia de mercado Mais importante do que todas as outras diferenças entre eles é que enquanto isso havia ocorrido um crescimento contínuo no número de pobres em 1696 quando Bellers escreveu os impostos totais se aproximavam de 400000 libras em 1796 quando Bentham atacou o projeto de Pitt eles já passavam a marca de 2 milhões em 1818 quando Robert Owen começou eles já se aproximavam de 8 milhões Nos 120 anos que decorreram entre Bellers e Owen a população pode ter triplicado mas os impostos aumentaram vinte vezes O pauperismo se tornara um portento mas o seu significado ainda era uma incógnita 137 10 A ECONOMIA POLíTICA E A DESCOBERTA DA SOCIEDADE Quando se apreendeu o significado da pobreza estava preparado o cenário para o século XIX e o divisor de águas pode ser colocado em torno de 1780 Na grande obra de Adam Smith a assistência social ao pobre ainda não era um problema somente uma década mais tarde ele foi levantado já como tema amplo no Dissertation on the Poor Laws de Townsend e a partir daí não cessou de ocupar a atenção dos homens durante um século e meio De fato foi marcante a mudança de atmosfera entre Adam Smith e Townsend O primeiro marcou o fim de uma era que se abriu com os inventores do estado Thomas More e Maquiavel Lutero e Calvino o último já pertencia ao século XIX no qual Ricardo e Hegel descobriram a partir de ângulos opostos a existência de uma sociedade que não estava sujeita às leis do estado mas ao contrário sujeitava o estado às suas próprias leis É verdade que Adam Smith tratou a riqueza material como um campo de estudo separado o fato de fazêlo e com grande senso de realismo tornouo fundador de uma nova ciência a economia Apesar disso para ele a riqueza era apenas um aspecto da vida da comunidade a cujas finalidades ela permanecia subordinada ela era um complemento das nações que lutavam pela sobrevivência na história e delas não podia ser dissociada Na sua opinião um dos conjuntos de condições que governavam a riqueza das nações derivava da situação de progresso estacionária ou declinante do país como um todo Outro conjunto derivava da importância da segurança e da estabilidade assim como da necessidade de equilíbriode poder Um outro 138 conjunto ainda era proporcionado pela política do governo conforme ela favorecia a cidade ou o campo a indústria ou a agricultura Em conseqüência somente dentro de um dado arcabouço político é que ele considerava possível formular a questão da riqueza cujo significado para ele era o bemestar material do grande organismo do povo Seu trabalho não deixa entrever que são os interesses econômicos dos capitalistas que organizam a lei da sociedade nenhuma indicação de serem eles os portavozes seculares da providência divina que governava o mundo econômico como uma entidade isolada Para ele a esfera econômica ainda não está sujeita a leis próprias que nos indicam o padrão do bem e do mal Smith olhava a riqueza das nações como uma função da vida nacional delas física e moral É por isso que sua política naval combinava tão bem com as Navigation Laws Leis de Navegação de Cromwell e suas noções sobre a sociedade humana se harmonizavam com o sistema dos direitos naturais de John Locke Em sua opinião nada indica a presença na sociedade de uma esfera econômica que possa se tornar a fonte de uma lei moral e de uma obrigação política O interesse próprio apenas nos impele a fazer aquilo que intrinsecamente também beneficiará outros como o interesse próprio do açougueiro fornecernosá o jantar em última instância Um grande otimismo flui do pensamento de Smith já que as leis que governam a parte econômica do universo estão em consonância com o destino do homem da mesma forma que aquelas que governam as outras partes Nenhuma mão oculta tenta nos impor os ritos do canibalismo em nome do interesse próprio A dignidade de um homem é a de um ser moral que como tal é membro da ordem cívica da família do estado e da grande sociedade da humanidade A razão e a humanidade estabelecem um limite para a tarefa a emulação e o ganho devem dar lugar a elas Natural é tudo que está de acordo com os princípios incorporados à mentalidade do homem e a ordem natural é aquela que está de acordo com esses princípios A natureza no seu sentido físico foi conscientemente excluída por Smith do problema da riqueza Qualquer que seja o solo o clima ou a extensão de território de qualquer nação particular a abundância ou escassez de seu abastecimento anual nessa situação particular deve depender de duas circunstâncias a saber a capacidade do trabalho e a proporção entre os membros úteis e ociosos da sociedade Não é o fator natural que conta mas apenas o fator humano Esta exclusão do fator biológico e geográfico logo no começo do seu livro foi deliberada As falácias dos fisiocratas serviramlhe de aviso a predileção deles 139 pela agricultura levouos a confundir a natureza física com a natureza humana induzindolhes a argumentar que apenas o solo era realmente criativo Nada estava mais afastado da mentalidade de Smith do que uma tal glorificação do Physis A economia política deveria ser uma ciência humana deveria lidar com o que é natural ao homem e não à natureza A Dissertation de Townsend dez anos depois enfocou o teorema das cabras e dos cães O cenário é a ilha de Robinson Crusoé no Oceano Pacífico próximo à costa do Chile Juan Fernandez deixou nessa ilha algumas cabras para que fornecessem carne em caso de visitas futuras As cabras se multiplicaram em proporção bíblica e se tornaram um estoque de alimento muito conveniente para os corsários na maioria ingleses que molestavam o comércio espanhol Para destruílos as autoridades espanholas deixaram na ilha um cão e uma cadela que também se multiplicaram no devido tempo diminuindo o número de cabras com as quais se alimentavam Um novo tipo de equilíbrio foi estabelecido escreveu Townsend Os mais fracos de ambas as espécies foram os primeiros a pagar seu débito com a natureza os mais ativos e vigorosos conservaram suas vidas E acrescentou É a quantidade de alimento que regula o número da espécie humana Observamos que uma pesquisa1 nas fontes não autentica a história Juan Fernandez de fato desembarcou as cabras mas os lendários cães foram descritos por William Funnell como lindos gatos e não se sabe da multiplicação nem dos cães nem dos gatos Ocorre também que as cabras habitam rochedos inacessíveis enquanto as praias e nisso todos os registros concordam estavam repletas de gordas focas que constituiriam uma presa muito mais tentadora para cães selvagens Todavia o paradigma não depende de suporte empírico A falta de autenticidade comprovada não depõe contra o fato de que Malthus e Darwin se inspiraram nessa fome Malthus aprendeua com Condorcet e Darwin com Malthus Entretanto nem a teoria da seleção natural de Darwin nem as leis populacionais de Malthus exerceriam qualquer influência apreciável sobre a sociedade moderna não fossem as máximas seguintes que Townsend deduziu a partir de suas cabras e cães e que ele desejava que aplicassem à reforma da Poor Law A fome doma os animais mais ferozes 1 Cf Antônio de ulloa Wafer William Funnell bem como Isaac James que também contém o relatório do capitão Wood Rogers sobre Alexander Selkirk e as observações de Edward Cooke 140 ensina a decência e a civilidade a obediência e a sujeição ao mais perverso De uma forma geral só a fome pode incentivar e incitar os pobres ao trabalho mas as nossas leis já estabeleceram que eles não devem passar fome As leis é preciso confessar também estipulam que eles devem ser compelidos a trabalhar Mas o constrangimento legal é sempre atendido com muito aborrecimento violência e barulho cria mávontade e nunca pode produzir um serviço bom e aceitável Enquanto isso a fome não é apenas uma pressão pacífica silenciosa e incessante mas como a motivação mais natural para a diligência e o trabalho ela se constitui no mais poderoso dos incentivos Quando satisfeita pela livre generosidade de outrem ela cria os fundamentos mais seguros e duradouros para a boa vontade e a gratidão O escravo deve ser compelido a trabalhar mas o homem livre deve ter seu próprio julgamento e critério deve ser protegido no pleno gozo do que tem seja muito ou pouco e punido quando invade a propriedade de seu vizinho Surgia aqui um novo ponto de partida para a ciência política Ao abordar a comunidade humana do ponto de vista animal Townsend se desviou da questão supostamente inevitável dos fundamentos do governo e ao fazêlo introduziu um novo conceito de lei nos assuntos humanos os das leis da natureza As inclinações geométricas de Hobbes assim como os anseios de Hume e Hartley Quesnay e Helvetius pela aplicação de leis newtonianas à sociedade foram apenas metafóricas eles ansiavam por descobrir uma lei tão universal para a sociedade quanto a da gravidade em relação à natureza mas eles pensavam nela como uma lei humana por exemplo uma força mental tal como o medo em Hobbes a associação na psicologia de Hartley o interesse próprio em Quesnay ou a procura da utilidade em Helvetius Não havia excesso de escrúpulo nesse sentido Quesnay como Platão assumia ocasionalmente a perspectiva de criador do homem e Adam Smith não ignorava certamente a ligação entre salários reais e o fornecimento da mãodeobra a longo prazo Todavia Aristóteles ensinara que só os deuses ou os animais podiam viver fora da sociedade e o homem não era nem um nem outro No pensamento cristão a divisão entre o homem e o animal também era constitutiva Nenhuma incursão no reino dos fatos fisiológicos poderia confundir a teologia quanto às raízes espirituais da comunidade humana Se para Hobbes o homem era o lobo do homem era porque fora da sociedade os homens se comportavam como lobos e não porque houvesse qualquer fator biológico em comum entre homens e lobos Isto ocorreu em última instância porque até então não se concebera qualquer comunidade humana que 141 não se identificasse com a lei e o governo Na ilha de Juan Fernandez porém não havia governo ou lei e no entanto havia um equilíbrio entre cabras e cães Esse equilíbrio se mantinha pela dificuldade que os cães encontravam em devorar as cabras que fugiam para as partes rochosas da ilha e as inconveniências que as cabras tinham que enfrentar quando se procuravam se proteger dos cães Não era preciso um governo para manter esse equilíbrio ele era restaurado pelo aguilhão da fome de um lado e pela escassez de alimentos de outro Hobbes argumentara sobre a necessidade de um déspota porque os homens eram como animais Townsend insistia que eles eram verdadeiramente animais e que precisamente por essa razão só era preciso um mínimo de governo A partir deste ponto de vista novo uma sociedade livre podia ser vista como se consistisse de apenas duas raças proprietários e trabalhadores O número desses últimos era limitado pela quantidade de alimento e a fome impelilosia ao trabalho enquanto a propriedade estivesse em segurança Não havia necessidade de magistrados pois a fome era um disciplinador melhor que o magistrado Apelar para ele observava Townsend pungentemente seria como um apelo da autoridade mais forte para a mais fraca Os novos fundamentos combinavam acertadamente com a sociedade que emergia Desde meados do século XVIII já vinham se desenvolvendo os mercados nacionais O preço do cereal já não era mais local mas regional e isto pressupunha o uso quase geral do dinheiro e uma grande negociabilidade de bens Os preços de mercado e os rendimentos inclusive aluguéis e salários mostravam uma considerável estabilidade Os fisiocratas foram os primeiros a observar essa regularidade que todavia eles não podiam enquadrar num todo mesmo teoricamente pois na França ainda prevaleciam as rendas feudais e o trabalho ainda era serniservil e assim nem os aluguéis nem os salários eram determinados pelo mercado como regra Mas à época de Adam Smith o campo inglês já se tornara parte integrante de uma sociedade comercial O aluguel devido ao proprietário fundiário assim como o salário do trabalhador agrícola mostravam uma dependência marcante aos preços Salários ou preços só eram fixados pelas autoridades em casos excepcionais E no entanto nesta curiosa nova ordem as antigas classes da sociedade continuavam a existir mais ou menos em sua hierarquia anterior apesar do desaparecimento de seus privilégios e incapacidades legais Embora nenhuma lei obrigasse o trabalhador a servir o fazendeiro nem o fazendeiro a contribuir para a abundância do proprietário fundiário trabalhadores e fazendeiros agiam como se ainda 142 existisse uma tal compulsão Que lei ordenava ao trabalhador obedecer a um senhor ao qual não estava mais ligado por qualquer laço legal Que força mantinha as classes da sociedade à parte como se se tratasse de e pécies diferentes de seres humanos O que mantinha o equilíbrio e a ordem nessa coletividade humana que não invocava e nem mesmo tolerava a intervenção do governo político O paradigma das cabras e dos cães parece oferecer resposta a essas questões A natureza biológica do homem surgia como o fundamento de uma sociedade que não era de ordem política Foi assim que os economistas abandonaram os fundamentos humanistas de Adam Smith e incorporaram os de Townsend A lei populacional de Malthus e a lei dos rendimentos diminuídos apresentada por Ricardo tornaram a fertilidade do homem e do solo os elementos constitutivos do novo reino cuja existência havia sido descoberta A sociedade econômica emergira como algo separado do estado político As circustâncias sob as quais a existência desse agregado humano uma sociedade complexa se tornou aparente foram de extrema importância para a história de pensamento do século XIX Uma vez que a sociedade emergente nada mais era do que o sistema de mercado a sociedade humana estava agora ameaçada de mudar as suas bases para outras inteiramente estranhas ao mundo moral do qual fizera parte até então o corpo político O problema do pauperismo aparentemente insolúvel forçava Malthus e Ricardo a sancionar o mergulho de Townsend no naturalismo Burke abordou o tema do pauperismo a partir do ângulo estrito da segurança pública As condições existentes nas Índias Ocidentais convenceramno do perigo de manter uma grande população escravizada sem condições adequadas para a segurança dos senhores brancos principalmente porque muitas vezes se permitia que os negros andassem armados Considerações semelhantes pensava ele podiam se aplicar ao aumento no número de desempregados em seu país natal uma vez que o governo não dispunha de força policial Embora um defensor ferrenho das tradições patriarcais ele era um adepto apaixonado do liberalismo econômico no qual via a resposta ao candente problema administrativo do pauperismo As autoridades locais aproveitavam com satisfação a demanda inesperada dos moinhos de algodão por menores carentes cujo aprendizado ficava a cargo da paróquia Centenas deles eram encaminhados às manufaturas muitas vezes em partes distantes do país As novas cidades pareciam ter desenvolvido 143 um apetite saudável por indigentes as fábricas estavam até prontas a pagar pela utilização dos pobres Adultos eram encaminhados a qualquer um que quisesse ernpregáIos em troca do mero sustento e eles podiam ainda ser alocados entre os fazendeiros da paróquia por vezes em uma ou outra forma de sistema de trabalho rotativo Era mais barato sustentálos no cultivo da terra do que nas prisões sem culpa como eram às vezes chamados os albergues Do ângulo administrativo isto significava que a autoridade mais persistente e mais minunciosamente detalhada do empregador2 assumia o lugar da exigência do trabalho do governo e da paróquia É claro que a questão envolvia a autoridade do estado Por que deveriam os pobres se tornar um encargo público e a paróquia cuidar da sua manutenção se em última instância essa mesma paróquia se desobrigava dessa função encaminhando os homens capazes aos empresários capitalistas e estes queriam tanto encher os seus moinhos com eles que estavam até dispostos a gastar dinheiro para obter os seus serviços Por acaso isto não indicava claramente que existia uma outra forma bem menos dispendiosa de obrigar os pobres a ganhar o seu sustento do que através da paróquia A solução estava na abolição da legislação elisabetana sem substituíIa por qualquer outra Nenhuma avaliação de salários nenhuma assistência social para os desempregados capazes mas também nenhum salário mínimo nem a proteção ao direito de viver O trabalho deveria ser manuseado como aquilo que ele era uma mercadoria que deve encontrar seu preço no mercado leis do comércio eram as leis da natureza e portanto as leis de Deus O que era isto senão um apelo do magistrado mais fraco para o mais forte do juiz de paz para o todopoderoso aguilhão da fome Tanto para o político como para o administrador o laissezfaire era simplesmente um princípio de garantia da lei e da ordem com um mínimo de custo e de esforço Que o mercado tome os pobres a seu encargo e as coisas correrão por si mesmas Neste ponto Bentham o racionalista concordava com Burke o tradicionalista O cálculo da dor e do prazer exigia que não fosse infligida qualquer dor desnecessária Se a fome cumprisse essa finalidade não se exigia outra penalidade À questão o que pode fazer a lei em relação à subsistência Bentham respondeu diretamente nada3 A pobreza 2 Webb S e B English Local Government vols VIIIX Poor Law History 3 Bentham J Principles of Civil Code Cap 4 Bowring vol I p 333 144 era a sobrevivência da natureza na sociedade a fome era a sua sanção física Se a força da sanção física é suficiente seria supérfluo o emprego da sanção política4 Só o que se precisava era dar tratamento científico e econômico aos pobres5 Bentham se opunha fortemente à Poor Law Bill de Pitt que resultaria numa renovação da Speenharnland uma vez que ela previa tanto assistência social externa como os abonos salariais E todavia Bentham diferente de seus seguidores não era na época nem um liberal econômico rígido nem um democrata Suas IndustryHouses eram um pesadelo de administração utilitarista minunciosa reforçada por todo o engodo da direção científica Ele afirmava que elas seriam sempre necessárias pois a comunidade não podia se desinteressar completamente pelo destino dos indigentes Bentham acreditava que a probreza era parte da opulência No estágio mais elevado da prosperidade social dizia ele a grande massa dos cidadãos provavelmente disporá de poucos outros recursos além do seu trabalho diário e conseqüentemente estará sempre a um passo da indigência Daí recomendar ele organizarse uma contribuição regular para as necessidades da indigência embora com isso a necessidade decresça em teoria e atinja portanto a indústria Esse acréscimo ele o fazia com pesar uma vez que do ponto de vista utilitarista a tarefa do governo era aumentar a necessidade a fim de tornar efetiva a sanção física da fome6 A aceitação da quaseindigência da massa dos cidadãos como o preço a ser pago por um estágio mais elevado de prosperidade se fazia acompanhar de atitudes humanas muito diferentes Townsend corrigia seu equilíbrio emocional inclinandose para o preconceito e o sentimentalismo A imprevidência do pobre era uma lei da natureza do contrário o trabalho servil sórdido e ignóbil não poderia ser feito E o que aconteceria com a pátria se não pudéssemos confiar nos pobres Se não fosse a angústia e a probreza que se impõem sobre as classes baixas do povo como eles iriam enfrentar os horrores que os aguardam nos oceanos tempestuosos ou nos campos de batalha Mas esta demonstração de um áspero patriotismo ainda deixava lugar para sentimentos mais ternos É claro que a assistência social aos pobres deveria ser abolida imediatamente As Poor Laws provêm de princípios que 4 Bentham J Principles of Civil Code Cap 4 Bowring vol I p 333 5 Bentham J Observation on the Poor Bill 1797 6 Bentham J Principles of Civil Code p 314 145 raiam o absurdo sob o pretexto de cumprir aquilo que é impraticável à própria natureza e constituição do mundo Deixando os indigentes à mercê dos ricos quem poderia duvidar que a única dificuldade seria restringir a impetuosidade da benevolência desses últimos E por acaso os sentimentos de caridade não são mais nobres do que aqueles que se originam de obrigações legais inflexíveis Pode haver coisa mais bela na natureza do que a suave complacência da benevolência Alegava ele contrastandoa com a fria impessoalidade da caridade paroquial que não conhecia as cenas da expressão natural de uma gratidão sincera por favores inesperados Quando o pobre é obrigado a cultivar a amizade do rico o rico nunca sentirá a inclinação de procurar aliviar a necessidade do pobre Quem quer que tenha lido esse tocante retrato da vida íntima das Duas Nações jamais poderá duvidar de que inconscientemente foi a partir da ilha das cabras e dos cães que a Inglaterra vitoriana aprendeu a sua educação sentimental Edmund Burke foi um homem de estatura diferente Onde homens como Townsend fracassaram em pequena escala ele fracassou em grande estilo Seu gênio transformou o fato brutal numa tragédia e investiu o sentimentalismo de um halo de misticismo Quando fingimos lamentar como pobres aqueles que precisavam trabalhar do contrário o mundo não poderia existir estamos brincando com a própria condição da humanidade Isto era sem dúvida melhor que a indiferença grosseira as lamentações vazias ou a lamúria de um enaltecimento indulgente Todavia a virilidade dessa atitude realista foi empanada pela complacência sutil com a qual ele enfocava as cenas da pompa aristocrática O resultado foi afastar Herodes mas também subestimar as oportunidades de uma reforma oportuna Podese supor que se Burke vivesse a Reform Bill parlamentar de 1832 que colocou um ponto final no ancien régime só seria aprovada ao preço de uma revolução sangrenta evitável E Burke poderia ainda ter contraposto já que as massas estavam sendo condenadas a penar na miséria pelas leis da economia política o que era a idéia da igualdade senão uma isca cruel para atrair a humanidade para a autodestruição Bentham não possuía nem a complacência insinuante de um Townsend nem o historicismo muito precipitado de um Burke Pelo contrário para este adepto da razão e da reforma o reino da lei social recentemente descoberto surgia como a cobiçada terra de ninguém da experiência utilitária Como Burke ele se recusava a aceitar o determinismo zoológico e também ele rejeitava a ascendência do econômico sobre o político propriamente dito Embora autor de um Essay on 146 Usury e de um Manual of Political Economy ele era um amador nessa ciência e deixou até mesmo de proporcionar a única grande contribuição que o utilitarismo poderia fazer à economia isto é a descoberta de que o valor provinha da utilidade Ao invés disso ele se deixou induzir pela psicologia associacionista a dar rédeas às suas ilimitadas faculdades imaginativas como engenheiro social Para Bentham o laissezfaire significava apenas um outro artifício na mecânica social A invenção social e não a técnica era a fonte intelectual da Revolução Industrial A contribuição decisiva das ciências naturais à engenharia só foi feita um século mais tarde quando já terminara há muito a Revolução Industrial Para o construtor prático de uma ponte ou de um canal para o desenhista de máquinas e motores o conhecimento das leis gerais da natureza era inteiramente inútil antes de terem sido desenvolvidas as novas ciências aplicadas à mecânica e à química Telford fundador e presidente vitalício da Sociedade dos Engenheiros Civis recusava receber como membros desse órgão os candidatos que haviam estudado física e segundo Sir David Brewster ele mesmo nunca se familiarizou com os elementos da geometria Os triunfos da ciência natural haviam sido teóricos no verdadeiro sentido da palavra e não podiam se comparar em importância prática aos das ciências sociais da época Deveuse a essas últimas o prestígio da ciência em oposição à rotina e à tradição e por mais incrível que possa parecer à nossa geração o prestígio da ciência natural cresceu muito através da sua ligação com as ciências humanas A descoberta da economia foi uma revelação assombrosa que apressou em muito a transformação da sociedade e o estabelecimento de um sistema de mercado enquanto as máquinas decisivas haviam sido invenções de artesãos nãoeducados alguns dos quais mal sabiam ler ou escrever Era portanto bastante justo e apropriado considerar as ciências sociais e não as naturais como mentores intelectuais da revolução mecânica que sujeitou os poderes da natureza ao homem O próprio Bentham estava convencido de que havia descoberto uma nova ciência social a da moral e da legislação Ela se fundamentaria no princípio da utilidade que permitia o cálculo exato com a ajuda da psicologia associacionista Precisamente porque se tornou efetiva dentro da circunferência dos assuntos humanos a ciência significava invariavelmente na Inglaterra do século XVIII uma arte prática baseada no conhecimento empírico Era de fato irresistível a necessidade de uma tal atitude pragmática Como não dispunham de estatísticas muitas vezes não era possível dizer se a população aumentava ou diminuía 147 qual era a tendência da balança do comércio exterior ou que classe da população crescia em relação à outra Era apenas tema de conjecturas freqüentemente saber se a riqueza do país aumentava ou diminuía de onde vinham os pobres qual a situação do crédito dos bancos ou dos lucros O que a ciência significava em primeiro lugar era apenas uma abordagem empírica em vez de uma puramente especulativa ou antiquada em relação a assuntos como esses Como os interesses práticos eram naturalmente mais importantes coube à ciência sugerir como regular e organizar o vasto reino dos novos fenômenos Já vimos como os Santos se sentiam intrigados pela natureza da pobreza e a forma engenhosa das suas experiências com tipos de auto ajuda como a noção do lucro era proclamada a cura para os mais diversos males como ninguém podia dizer se o pauperismo era um sinal bom ou mau como as direções científicas dos albergues ficavam atônitas por se sentirem incapazes de ganhar dinheiro com os pobres como Owen fez fortuna dirigindo suas fábricas na linha de uma filantropia consciente como uma série de outras experiências que pareciam envolver a mesma técnica de autoajuda esclarecida fracassaram redondamente causando imensa perplexidade a seus autores filantrópicos Se ampliássemos nosso campo de ação do pauperismo para o crédito para a moeda sonante monopólios poupança seguro investimento finança pública ou ainda para as prisões educação e loterias poderíamos facilmente acrescentar outros tipos de empreendimento em relação a cada um deles Este período chegou ao seu final aproximadamente com a morte de Bentham7 Desde a década de 1840 os planejadores de negócios já eram simplesmente organizadores de empreendimentos definidos e não mais pretensos descobridores de novas aplicações de princípios universais de mutualidade confiança riscos e outros elementos da empresa humana Doravante os homens de negócios imaginavam saber exatamente as formas que suas atividades iriam tomar raramente inquiriam sobre a natureza do dinheiro antes de fundar um banco Os engenheiros sociais só eram encontrados agora entre os excêntricos ou os embusteiros e muitas vezes iam parar atrás das grades A torrente de sistemas industriais e bancários que havia inundado as bolsas de valores desde Paterson e John Law até os Pereires com projetos de sectários religiosos sociais e acadêmicos tornarase agora um simples 7 1832 148 filete As idéias analíticas já não tinham interesse para os que se envolviam na rotina dos negócios A exploração da sociedade estava terminada ou pelo menos assim se pensava e não havia mais espaços em branco no mapa humano Durante um século seria impossível imaginar um homem do tipo de Bentham Uma vez dominante a organização de mercado da vida industrial todas as outras áreas institucionais foram subordinadas a esse padrão o gênio pelos artefatos sociais não encontrava mais lugar O Panopticon de Bentham não era apenas um moinho que transformava vagabundos em honestos e preguiçosos em diligentes8 ele tinha também que pagar dividendos como os do Banco da Inglaterra Bentham patrocinava projetos tão diferentes como um melhor sistema de patentes companhias de responsabilidade limitada um censo decenal da população a criação de um Ministério da Saúde letras que rendiam juros para tornar a poupança geral um frigorífico para frutas e legumes fábricas de armamentos apoiadas em novos princípios técnicos e que podiam funcionar tanto pelo trabalho dos presos como alternativamente dos pobres assistidos socialmente uma Chrestomathic Day School para ensinar o utilitarismo às classes médias altas um registro geral da prosperidade real um sistema de contabilidade pública reformas da instrução pública registros uniformes libertarse da usura o abandono das colônias o uso de anticoncepcionais para diminuir o nascimento de pobres a junção dos oceanos Atlântico e Pacífico através de uma sociedade anônima e outros Alguns desses projetos abrigavam uma quantidade enorme de pequenos progressos como por exemplo as IndustryHouses um conjunto de inovações para a melhoria e a exploração do homem com base nas conquistas da psicologia associacionista Enquanto Townsend e Burke ligavam o laissezfaire ao quietismo legislativo Bentham não via nele qualquer obstáculo às amplitudes da reforma Antes de chegar à resposta que Malthus deu a Godwin em 1798 e com a qual a economia clássica propriamente dita se inicia voltemos às recordações O Political Justice de Godwin foi escrito em oposição às Reflections on the French Revolution 1790 de Burke Ele surgiu justamente antes que começasse a onda de repressão com a suspensão do habeascorpus 1794 e a perseguição às democráticas Correspondence Societies Sociedades de Correspondentes Nessa ocasião a Inglaterra 8 Stephen Sir L The English Utilitarians 1900 149 estava em guerra com a França e o terreur fez da palavra democracia o sinônimo de revolução social O movimento democrático na Inglaterra porém que se inaugurou com o sermão do Dr Price Old Jewry1789 e alcançou o seu cume literário com The Rights of Man 1791 de Paine se restringia ao campo político O descontentamento dos trabalhadores pobres não encontrava qualquer ressonância nessa democfãcia A questão da Poor Law quase não era mencionada nos panfletos que levantaram a campanha pelo sufrágio universal e por parlamentos anuais No entanto foi na esfera da Poor Law que surgiu o contramovimento decisivo dos proprietários fundiários so a forma da Speenharnland A paróquia se escondeu por trás de uma muralha artificial sob cuja proteção ela sobreviveu a Waterloo por mais de vinte anos Embora as maléficas conseqüências dos terríveis atos de repressão política da década de 1790 pudessem ser logo superadas se entregues a si mesmo o processo degenerativo iniciado pela Speenharnland deixou sua marca indelével no país O prolongamento de quarenta anos da classe dos proprietários rurais que ela produziu foi conseguido ao preço do sacrifício da virilidade do povo comum Quando as classes proprietárias reclamavam que os impostos para os pobres eram cada vez mais pesados diz Mantoux elas esqueciam o fato de que estes impostos eram na verdade um seguro contra a revolução enquanto a classe trabalhadora quando aceitava o minguado abono que lhe era concedido não compreendia que ele era conseguido em parte pela redução dos seus proventos legítimos O resultado inevitável desses abonos era manter os salários no seu nível mais ínfimo e até mesmo forçálos abaixo do limite correspondente às necessidades mínimas dos assalariados O fazendeiro ou o fabricante contava com a paróquia para contrabalançar a diferença entre o que ele pagava aos homens e a importância suficiente para sobreviverem Por que deveriam incorrer em mais despesas se estas eram tão facilmente cobertas pelo conjunto de contribuintes de impostos Por outro lado aqueles que recebiam assistência social da paróquia estavam dispostos a trabalhar por um salário mais baixo o que tornava a competição impossível para os que não recebiam ajuda paroquial O resultado paradoxal a que se chegou foi que o assim chamado imposto dos pobres significava uma economia para os empregados e uma perda para o trabalhador diligente que não contava com a caridade pública Assim a interposição impiedosa de interesses transformou uma lei caridosa num grilhão de ferro9 9 Mantoux P L The Industrial Revolution in teh Eighteenh Centrury 1928 150 Calculamos que foi justamente nesse grilhão que se apoiou a nova lei de alários e de população O próprio Malthus como Burke e Bentham se opunha violentamente à Speenhamland e defendia a revogação completa da Poor Law Nenhum deles poderia prever que a Speenharnland forçaria os salários dos trabalhadores até o nível da subsistência e mesmo abaixo Pelo contrário eles esperavam que ela elevasse os salários ou pelo menos os mantivesse artificialmente o que poderia ter ocorrido se não fossem promulgadas as AntiCombination Laws Esta falsa previsão ajuda a explicar por que eles não conseguiram ligar o baixo nível dos salários rurais à Speenharnland que foi a sua causa verdadeira e o viam como prova inconteste do funcionamento da assim chamada lei de ferro dos salários Devemos voltar agora a este fundamento da nova ciência econômica O naturalismo de Townsend não foi certamente a única base possível da nova ciência da economia política A existência de uma sociedade econômica era manifesta na regularidade dos preços e a estabilidade dos rendimentos dependia desses preços Em conseqüência a lei econômica poderia perfeitamente se basear diretamente nos preços O que induziu os economistas ortodoxos a procurar seus fundamentos no naturalismo foi a miséria de outro modo inexplicável da grande massa de produtores que como sabemos hoje jamais deveria ter sido subtraída às leis do antigo mercado Conforme apareciam aos contemporâneos os fatos eram estes em resumo em tempos passados o povo trabalhador vivia praticamente à beira da indigência pelo menos se se levava em conta as mudanças nos níveis dos padrões costumeiros A introdução da máquina certamente não concorrera para que eles se elevassem acima do nível de subsistência e agora que a sociedade econômica finalmente tomava forma era um fato indubitável que década após década o nível material da existência do trabalhador pobre não melhorava em nada se é que não se tornava pior Se jamais houve ocasião em que a superabundante evidência dos fatos parecia apontar numa direção isto ocorreu com certeza no caso da lei férrea dos salários Esta afirmava que o nível de mera subsistência em que viviam os trabalhadores resultava de uma lei que tendia a manter seus salários tão baixos que para eles não havia outro padrão possível É claro que esta semelhança não era apenas enganadora mas implicava ainda um absurdo do ponto de vista de qualquer teoria sólida de preços e rendimentos sob o capitalismo Entretanto em última análise foi por causa dessa falsa aparência que a lei dos salários não pôde se basear em qualquer regra racional de comportamento humano 151 e teve que ser deduzida a partir dos fatos naturalistas da fertilidade do homem e do solo conforme apresentadas ao mundo pela lei de população de Malthus em combinação com a lei dos rendimentos diminuídos O elemento naturalista nos fundamentos da economia ortodoxa foi o resultado de condições criadas basicamente pela Speenharnland Deduzse daí que nem Ricardo nem Malthus entenderam o funcionamento do sistema capitalista Não foi senão um século após a publicação de Riqueza das Nações que se compreendeu claramente que sob um sistema de mercado os fatores de produção participavam do produto e como o produto aumentava a sua participação absoluta também deveria aumentar10 Embora Adam Smith seguisse o falso ponto de partida de Locke sobre as origens do valor do trabalho seu senso de realismo impediuo de ser incongruente Daí ter ele opiniões confusas sobre os elementos do preço embora insistindo com muita justiça que nenhuma sociedade pode progredir se a grande maioria de seus membros é pobre e miserável Entretanto o que nos parece hoje um truísmo era na sua época um paradoxo A própria opinião de Smith era que a abundância universal não poderia deixar de fluir para o povo era impossível que a sociedade se tornasse cada vez mais rica e o povo cada vez mais pobre Infelizmente os fatos não parecem têlo comprovado por um longo tempo Como os teóricos tinham que justificar os fatos Ricardo argumentava que quanto mais a sociedade progredisse maior seria a dificuldade de encontrar alimentos e mais ricos se tornariam os senhores de terra explorando simultaneamente os capitalistas e os trabalhadores que os interesses dos capitalistas e dos trabalhadores estavam em oposição fatal uns com os outros e que essa oposição era inefetiva em última instância porque os salários dos trabalhadores jamais poderiam elevarse acima do nível de subsistência e de qualquer forma os lucros deveriam estacionar Em algum sentido remoto todas essas afirmativas continham um elemento de verdade mas como explicação do capitalismo nada poderia ser mais irreal e ininteligível Todavia os próprios fatos se formaram em padrões contraditórios e ainda hoje encontramos dificuldade em desenredálos Não é de admirar pois que o deus ex machina da propagação do animal e da planta tivesse que ser invocado num sistema científico cujos autores alegavam deduzir as leis da produção e da 10 Cannan E A Review of Economic Theory 1930 152 distribuição não a partir do comportamento das plantas ou dos animais mas dos homens Vamos examinar resumidamente as conseqüências do fato de que os fundamentos da teoria econômica foram estabelecidos durante o período Speenhamland o que fez parecer como economia competitiva de mercado aquilo que era na verdade um capitalismo sem um mercado de trabalho Primeiro a teoria econômica dos economistas clássicos era essencialmente confusa O paralelismo entre riqueza e valor gerou os mais desconcertantes pseudoproblemas em quase todos os setores da economia ricardiana A teoria do fundo salarial um legado de Adam Smith foi uma rica fonte de desentendimentos À parte algumas teorias especiais como as do aluguel da taxação e do comércio exterior de profunda perspicácia a teoria consistiu em tentativas frustradas de chegar a conclusões categóricas sobre termos maldefinidos que se propunham a explicar o comportamento dos preços o nível de lucros salários e juros a maioria dos quais continuou tão obscura como antes Segundo dadas as condições sob as quais o problema se apresentava não era possível obter outro resultado Nenhum sistema unitário poderia ter explicado os fatos pois eles não eram parte de qualquer sistema único e eram na verdade o resultado da ação simultânea de dois sistemas mutuamente exclusivos sobre o corpo social isto é uma economia de mercado nascente e uma regulamentação paternalista na esfera do fator mais importante da produção o trabalho Terceiro a solução a que chegaram os economistas clássicos teve conseqüências de grande alcance para a compreensão da natureza da sociedade econômica À medida que as leis que governavam uma economia de mercado iam sendo apreendidas essas leis eram colocadas sob a autoridade da própria natureza A lei dos rendimentos diminuídos foi uma lei de fisiologia da planta A lei de população malthusiana refletiu a relação entre a fertilidade do homem e do solo Em ambos os casos as forças em jogo eram as forças da natureza o instinto animal do sexo e o crescimento da vegetação num dado solo O princípio envolvido era o mesmo do caso das cabras e cães de Townsend havia um limite além do qual os seres humanos não podiam se multiplicar e esse limite era estabelecido pelo abastecimento de alimentos disponíveis Como Townsend Malthus concluiu que os espécimes supérfluos seriam mortos enquanto as cabras são mortas pelos cães os cães devem passar fome por falta de alimento Com Malthus o controle repressivo consistia na destruição dos espécimes excedentes pelas forças brutas da 153 natureza Como os seres humanos são destruídos por outras causas além da inanição guerra peste e vício essas causas se equiparavam às forças destrutivas da natureza Num âmbito estrito isto envolvia uma contradição pois tornava as forças sociais responsáveis pelo alcance do equilíbrio exigido pela natureza A esta crítica porém Malthus poderia ter respondido que na falta de guerras e vícios isto é numa comunidade virtuosa teriam que passar fome tantas pessoas quantas aquelas poupadas por suas virtudes pacíficas Na sua essência a sociedade econômica se fundamentava nas inflexíveis realidades da natureza se o homem desobedecesse as leis que dirigiam tal sociedade o carrasco cruel estrangularia os rebentos dos imprevidentes As leis de uma sociedade competitiva eram colocadas sob a sanção da selva O verdadeiro significado do tormentoso problema da pobreza se revelava agora por inteiro a sociedade econômica estava sujeita a leis que não eram leis humanas A brecha entre Adam Smith e Townsend se transformara num abismo surgia uma dicotomia que marcaria o nascimento da consciência do século XIX A partir deste período o naturalismo passou a assombrar a ciência do homem e a reintegração da sociedade no mundo humano tornouse o objetivo perseguido com persistência na evolução do pensamento social A economia marxista nesta linha de argumentação foi uma tentativa malograda de atingir esse objetivo um fracasso devido à adesão muito estrita de Marx às teorias de Ricardo e às tradições da economia liberal Os próprios economistas clássicos estavam longe da inconsciência em relação a essa necessidade Malthus e Ricardo não eram de forma alguma indiferentes ao destino dos pobres porém sua preocupação humana apenas forçou uma falsa teoria por caminhos ainda mais tortuosos A lei férrea dos salários dispunha de uma cláusula de segurança bem conhecida segundo a qual quanto mais elevada as necessidades costumeiras da classe trabalhadora mais elevado era o nível de subsistência abaixo do qual nem mesmo a lei férrea podia diminuir os salários Malthus colocou suas esperanças nesse padrão de miséria11 e queria que ele fosse elevado por todos os meios pois somente assim pensava ele poderiam ser salvos das formas mais abjetas da miséria aqueles que por força da lei estavam condenados a essa desgraça Pela mesma razão também Ricardo desejava que as classes trabalhadoras em todos os países tivessem o prazer do conforto e da alegria e eles 11 Hazlitt W A Reply to the Essay on Population by the Rev T A Malthus in a Series of Letters 1803 154 deveriam ser estimulados por todos os meios legais no seu afã para atingilos De forma irônica e a fim de fugir à lei da natureza prescreviase aos homens a tarefa de elevar seu próprio nível de inanição E no entanto estas eram sem dúvida tentativas sinceras por parte dos economistas clássicos para salvar os pobres de um destino que as suas próprias teorias ajudaram a preparar para eles O caso de Ricardo a própria teoria incluía um elemento que contrabalançava o rígido naturalismo Esse elemento que permeava todo o seu sistema e se assentava firmemente em sua teoria de valor era o princípio do trabalho Ele completará o que Locke e Smith haviam começado a humanização do valor econômico aquilo que os fisiocratas haviam creditado à natureza Ricardo reclamava para o homem Num teorema equivocado de alcance tremendo ele investiu o trabalho com a capacidade única de constituir valor reduzindo assim todas as transações concebíveis na sociedade econômica ao princípio da troca igual numa sociedade de homens livres Dentro do próprio sistema de Ricardo coexistiam os fatores naturalista e humanista que lutavam pela supremacia na sociedade econômica A dinâmica dessa situação foi de um poder esmagador e como seu resultado a indução para um mercado competitivo adquiriu o ímpeto irresistivel de um processo da natureza Acreditavase que o mercado autoregulável provinha das leis inexoráveis da natureza e que o mercado se desprenderia como uma necessidade inelutável A criação de um mercado de trabalho foi um ato de vivissecção executado no corpo da sociedade por aqueles que já estavam fortalecidos na sua tarefa pela segurança que apenas a ciência podia oferecer O fato de a Poor Law ter que desaparecer era parte dessa certeza O princípio da gravidade não é mais certo do que a tendência de tais leis de mudar a riqueza e o vigor em miséria e fraqueza até que finalmente todas as classes sejam infectadas pela praga da pobreza universal escreveu Ricardo12 Ele seria com efeito um covarde moral se sabendo disto deixasse de encontrar forças para salvar a humanidade de si mesma através da cruel operação da abolição da assistência social aos pobres Sobre este ponto havia o consenso geral de Townsend Malthus e Ricardo Bentham e Burke Por mais diametralmente que diferissem em método e perspectiva eles concordavam na oposição aos princípios da economia política e à Speenhamland O que fez do liberalismo 12 Ricardo D Principles of Political Economy and Taxation ed Gonner 1929 p86 155 econômico uma força irresistível foi essa congruência de opiniões entre perspectivas diametralmente opostas Aquilo que o ultrareformador Bentham e O ultratradicionalista Burke aprovavam igualmente assumia automaticamente o caráter de autoevidência Apenas um homem percebeu o significado da provação talvez porque entre os espíritos dominantes da época somente ele possuía um íntimo conhecimento prático da indústria e também estava aberto a uma visão anterior Nenhum pensador chegou tão longe quanto Robert Owen no reino da sociedade industrial Ele tinha profunda consciência da distinção entre sociedade e estado embora não tivesse qualquer preconceito contra esse último como ocorreria com Godwin ele via o estado apenas por aquilo que ele podia executar uma intervenção que afastasse da comunidade qualquer perigo mas não enfaticamente para a organização da sociedade Da mesma forma ele não nutria qualquer animosidade contra a máquina cujo caráter neutro ele reconhecia Nem o mecanismo político do estado nem o aparato tecnológico da máquina esconderam dele o fenômeno a sociedade Ele rejeitava a abordagem anirnalista da sociedade refutando suas limitações malthusianas e ricardianas O fulcro de seu pensamento porém foi o seu afastamento do Cristianismo a quem ele acusava de individualização ou de fixar no próprio indivíduo a responsabilidade pelo caráter negando assim segundo Owen a realidade da sociedade e sua influência formativa e todopoderosa sobre o caráter O verdadeiro significado do ataque à individualização estava na sua insistência sobre a origem social das motivações humanas O homem individualizado e tudo o que o Cristianismo realmente valoriza estão tão separados que são inteiramente incapazes de se unirem por toda a eternidade Foi a descoberta da sociedade que fez Owen transcender o Cristianismo e atingir uma posição além dele Ele apreendeu a verdade de que uma vez que a sociedade é real o homem deve se submeter a ela em última instância Podese dizer que o seu socialismo se baseava numa reforma da consciência humana a ser atingida pelo reconhecimento da realidade da sociedade Se qualquer das causas do mal não puder ser removida pelos novos poderes que os homens estão a ponto de adquirir escreveu ele eles saberão que tais males são necessários e inevitáveis e cessarão de fazer queixas infantis e inúteis Owen pode ter abrigado uma noção exagerada desses poderes pois do contrário ele dificilmente poderia ter sugerido aos magistrados do Condado de Lanark que a sociedade deveria começar novamente e incontinenti a partir do núcleo de sociedade que ele havia descoberto 156 nas suas comunidades aldeãs Um tal fluxo de imaginação é privilégio do gênio sem o qual a humanidade poderia não existir pela falta de compreensão que ela tem de si mesma Mais significativa ainda foi a irremovível fronteira de liberdade para a qual ele apontava e que era estipulada pelos limites necessários da ausência do mal na sociedade Owen sentia porém que essa fronteira só se tornaria aparente quando o homem transformasse a sociedade com a ajuda dos novos poderes que adquirira O homem teria então que aceitar essa fronteira com o espírito de maturidade que não conhece queixas infantis Robert Owen em 1817 descreveu o caminho no qual penetrara o homem ocidental e suas palavras resumiam o problema do século vindouro Ele apontou as importantes conseqüências que decorrem das manufaturas deixadas a seu progresso natural A difusão geral das manufaturas através de um país gera um novo caráter em seus habitantes Como esse caráter se forma à base de um princípio bastante desfavorável à felicidade individual ou geral ele produzirá os males mais lamentáveis e permanentes a não ser que sua tendência seja contrabalançada pela interferência e direção legislativa A organização do total da sociedade sob o princípio do ganho e do lucro deveria ter resultados de longo alcance Ele formulou esses resultados em termos de caráter humano O efeito mais óbvio do novo sistema institucional era sem dúvida a destruição do caráter tradicional das populações organizadas e sua transmutação em um novo tipo de gente migratório nômade carente de autorespeito e disciplina seres rudes e brutais dos quais eram exemplo tanto o trabalhador como o capitalista Ele prosseguiu com a generalização de que o princípio envolvido era desfavorável à felicidade individual e social Dessa maneira graves males seriam produzidos a menos que as tendências inerentes às instituições de mercado fossem contidas por uma direção social consciente efetivada através da legislação É verdade que a condição dos trabalhadores que ele deplorava decorria parcialmente do sistema de abonos Mas na sua essência o que ele observava era verdadeiro tanto em relação aos trabalhadores da cidade como das aldeias isto é que eles estão agora numa situação infinitamente mais degradante e miserável do que antes da introdução dessas manufaturas de cujo sucesso depende agora a sua mera subsistência Mais uma vez ele atinge aqui o fundo da questão enfatizando não os rendimentos mas a degradação e a miséria Como causa primeira dessa degradação ele aponta mais uma vez corretamente a dependência à fábrica para a mera subsistência Ele apreendeu o fato de que o que parecia basicamente um problema econômico era essencialmente um problema social É claro que 157 o trabalhador era explorado em termos econômicos ele não recebia em troca aquilo que lhe era devido Todavia por mais importante que isto fosse não era tudo A despeito da exploração financeiramente ele estava melhor do que antes Mas um princípio bastante desfavorável à felicidade individual e geral trabalhava na destruição de seu ambiente social sua vizinhança sua posição na comunidade sua profissão numa palavra de todas aquelas relações com a natureza e o homem na qual estava embutida a sua existência econômica anterior A Revolução Industrial estava causando uma desarticulação social de estupendas proporções e o problema da probreza era apenas o aspecto econômico desse acontecimento Owen afirmou com muita justeza que a menos que a interferência e a direção legislativas contrabalançassem essas forças devastadoras ocorreriam grandes e permanentes males Nessa ocasião ele não previa que a autoproteção da sociedade pela qual ele clamava provaria ser incompatível com o funcionamento do próprio sistema econômico 158 FOLHA EM BRANCO 159 II AUTOPROTEÇÃO DA SOCIEDADE 160 FOLHA EM BRANCO 161 11 HOMEM NATUREZA E ORGANIZAÇÃO PRODUTIVA Durante um século a dinâmica da sociedade moderna foi governada por um duplo movimento o mercado se expandia continuamente mas esse movimento era enfrentado por um contramovimento que cercava essa expansão em direções definidas Embora tal contramovimento fosse vital para a proteção da sociedade ele era em última análise incompatível com a autoregulação do mercado e portanto com o próprio sistema de mercado Esse sistema se desenvolveu aos saltos engolfou espaço e tempo e criando o dinheiro bancário produziu uma dinâmica até então desconhecida Quando alcançou ua extensão máxima em torno de 1914 ele compreendia cada uma das partes do globo terrestre todos os seus habitantes e as gerações ainda não nascidas pessoas físicas e imensos corpos fictícios chamados corporações Um novo tipo de vida se difundiu sobre o planeta reivindicando uma universalidade sem paralelo desde a época em que o Cristianismo começou sua carreira só que agora o movimento era num nível puramente material Simultaneamente porém ocorreu um contramovimento e ele foi mais do que o costumeiro comportamento defensivo de uma sociedade que enfrenta mudanças Foi uma reação contra um transtorno que atacava o tecido da sociedade e que teria destruído a própria organização da produção a que mercado dera vida A perspicácia de Robert Owen provou ser verdadeira se se deixasse a economia de mercado desenvolverse de acordo com as suas próprias leis ela criaria grandes e permanentes males 162 A produção é a interação do homem e da natureza Se este processo se organizar através de um mecanismo autoregulador de permuta e troca então o homem e a natureza têm que ingressar na sua órbita têm que se sujeitar à oferta e à procura isto é eles passam a ser manuseados como mercadorias como bens produzidos para venda Foi este precisamente o ajuste que ocorreu sob o sistema de mercado O homem sob o nome de mãodeobra e a natureza sob o nome de terra foram colocados à venda A utilização da força de trabalho podia ser comprada e vendida universalmente a um preço chamado salário e o uso da terra podia ser negociado a um preço chamado aluguel Havia um mercado tanto para o trabalho como para a terra e em ambos os casos a oferta e a procura eram reguladas respectivamente pelo nível de salários e aluguéis A ficção de que o trabalho e a terra eram produzidos para a venda conservou a sua solidez O capital investido nas várias combinações de trabalho e terra podiam fluir assim de um ramo de produção para outro conforme exigido pelo nivelamento automático dos vencimentos nos vários ramos Todavia enquanto a produção teoricamente podia ser organizada dessa forma a ficção da mercadoria menosprezou o fato de que deixar o destino do solo e das pessoas por conta do mercado seria o mesmo que aniquilálost Assim o contramovimento se propunha a enfrentar a ação do mercado em relação aos fatores de produção trabalho e terra Foi esta a função principal do intervencionisrno A organização produtiva também se viu ameaçada do mesmo ângulo perigo se abatia sobre a empresa individual industrial agrícola ou comercial na medida em que ela era afetada pelas mudanças no nível de preço Sob um sistema de mercado se os preços caíssem o negócio era prejudicado a menos que todos os elementos de custo caíssem proporcionalmente empresas atuantes eram forçadas a liquidar embora a queda nos preços pudesse ocorrer não por uma queda geral nos custos mas apenas pela maneira como se organizava o sistema monetário Como veremos era isto o que ocorria de fato sob um mercado autoregulável Em princípio o poder de compra é provido e regulado aqui pela ação do próprio mercado é este o significado quando afirmamos que o dinheiro é uma mercadoria cuja quantidade é controlada pela oferta e procura de bens que funcionam como dinheiro a bem conhecida teoria clássica do dinheiro De acordo com essa doutrina o dinheiro é apenas um outro nome para uma mercadoria usada na troca com mais freqüência que outra e que portanto é adquirida principalmente a fim 163 de facilitar a troca É imaterial se se usam peles bois conchas ou ouro com esta finalidade o valor dos objetivos que funcionam como dinheiro é determinado como se eles fossem procurados apenas pela sua utilidade em relação à nutrição vestuário ornamentos ou outros propósitos Se por acaso é o ouro que é usado como dinheiro seu valor quantidade e movimentos são governados exatamente pelas mesmas leis que se aplicam a outras mercadorias Qualquer outro meio de troca envolveria a criação de moeda circulante fora do mercado e o ato da sua criação seja através de bancos ou governos constituiria uma interferência na autoregulação do mercado O ponto crucial é que os bens usados como dinheiro não são diferentes de outras mercadorias que sua oferta e procura é regulada pelo mercado como a de qualquer mercadoria e que portanto são inerentemente falsas todas as noções que conferem ao dinheiro qualquer outro caráter que não o de uma mercadoria usada como meio de troca indireta Seguese daí que se o ouro é usado como dinheiro as notas de banco se existem devem representar ouro Foi por sua concordância com essa doutrina que a escola ricardiana se propôs a organizar o fornecimento da moeda circulante por intermédio do Banco da Inglaterra De fato não era concebível qualquer outro método para impedir o estado de interferir no sistema monetário e assim resguardar a autoregulação do mercado Existia portanto em relação aos negócios uma situação muito semelhante à que dizia respeito à substância natural e humana da sociedade O mercado autoregulável era uma ameaça a todos eles e por razões basicamente similares Se a legislação fabril e as leis sociais eram exigidas para proteger o homem industrial das implicações da ficção da mercadoria em relação à força de trabalho se leis para a terra e tarifas agrárias eram criadas pela necessidade de proteger os recursos naturais e a cultura do campo contra as implicações da ficção de mercadoria em relação a eles era também verdade que se faziam necessários bancos centrais e a gestão do sistema monetário para manter as manufaturas e outras empresas produtivas a salvo do perigo que envolvia a ficção da mercadoria aplicada ao dinheiro Por mais paradoxal que pareça não eram apenas os seres humanos e os recursos naturais que tinham que ser protegidos contra os efeitos devastadores de um mercado autoregulável mas também a própria organização da produção capitalista Voltemos agora àquilo que chamamos de duplo movimento Ele pode ser personificado como a ação de dois princípios organizadores da sociedade cada um deles determinando seus objetivos institucionais específicos com o apoio de forças sociais definidas e utilizando diferentes 164 métodos próprios Um foi o princípio do liberalismo econômico que objetivava estabelecer um mercado autoregulável dependia do apoio das classes comerciais e usava principalmente o laissezfaire e o livre comércio como seus métodos O outro foi o princípio da proteção social cuja finalidade era preservar o homem e a natureza além da organização produtiva e que dependia do apoio daqueles mais imediatamente afetados pela ação deletéria do mercado básica mas não exclusivamente as classes trabalhadoras e fundiárias e que utilizava uma legislação protetora associações restritivas e outros instrumentos de intervenção como seus métodos A ênfase sobre a classe é importante Os serviços prestados à sociedade pelas classes fundiária média e trabalhadora modelaram toda a história social do século XIX Esse papel lhes foi atribuído pelo fato de estarem aptas a desempenhar várias funções decorrentes da situação global da sociedade As classes médias foram as condutoras da nascente economia de mercado seus interesses comerciais como um todo eram paralelos ao interesse geral quanto à produção e ao emprego Se os negócios progrediam havia oportunidade de empregos para todos e de aluguéis para os proprietários se os mercados se expandiam podia se investir livremente se a comunidade comercial tinha sucesso ao competir com a estrangeira a moeda circulante estava segura Por outro lado as classes comerciais não tinham um órgão que pressentisse os perigos acarretados pela exploração da força física do trabalhador a destruição da vida familiar a devastação das cercanias o desnudamento das florestas a poluição dos rios a deterioração dos padrões profissionais a desorganização dos costumes tradicionais e a degradação geral da existência inclusive a habitação e as artes assim como as inumeráveis formas de vida privada e pública que não afetam os lucros As classes médias cumpriram a sua função desenvolvendo uma crença quase sacramental na beneficência universal dos lucros embora isto as desqualificasse como mantenedoras de outros interesses tão vitais para um bom padrão de vida como o incremento da produção Surgiu assim uma oportunidade para aquelas classes que não se ocupavam em aplicar à produção máquinas dispendiosas complicadas ou especializadas Em resumo recaiu sobre a aristocracia fundiária e o campesinato a tarefa de resguardar as qualidades marciais da nação que em grande parte continuava a depender dos homens e do solo O povo trabalhador numa extensão maior ou menor tornouse representante dos interesses humanos comuns que estavam ao desamparo Cada classe 165 social porém mesmo inconscientemente representou numa ou noutra ocasião interesses mais amplos que os seus próprios Na virada do século XIX o sufrágio universal já tinha agora uma abrangência bastante ampla a classe trabalhadora era um fator de influência no estado Por outro lado as classes comerciais cujo domínio sobre a legislatura começava a ser desafiado tomaram consciência do poder político que a sua liderança na indústria abrangia Essa localização peculiar da influência e do poder não causou problema enquanto o sistema de mercado continuou a funcionar sem grande pressão e esforço Quando porém por razões intrínsecas isto já não mais ocorria e começaram a surgir tensões entre as classes sociais a própria sociedade se viu em perigo pelo fato de as partes rivais fazerem do governo e dos negócios do estado e da indústria respectivamente os seus baluartes Duas funções vitais da sociedade a política e a econômica estavam sendo usadas e abusadas como armas em uma luta por interesses seccionais A crise fascista do século XX teve origem justamente nesse perigoso impasse É a partir desses dois ângulos portanto que pretendemos esboçar o movimento que modelou a história social do século XIX Um se originou do choque entre os princípios organizadores do liberalismo econômico e a proteção social que levou a uma tensão institucional profundamente arraigada O outro surgiu do conflito de classes que interagindo com o primeiro transformou a crise numa catástrofe 166 12 O NASCIMENTO DO CREDO LIBERAL O liberalismo econômico foi o princípio organizador de uma sociedade engajada na criação de um sistema de mercado Nascido como mera propensão em favor de métodos nãoburocráticos ele evoluiu para uma fé verdadeira na salvação secular do homem através de um mercado autoregulável Um tal fanatismo resultou do súbito agravamento da tarefa pela qual ele se responsabilizara a magnitude dos sofrimentos a serem infligidos a pessoas inocentes assim como o amplo alcance das mudanças entrelaçadas que a organização da nova ordem envolvia O credo liberal só assumiu seu fervor evangélico em resposta às necessidades de uma economia de mercado plenamente desenvolvida Seria inteiramente ahistórico antecipar a política do laissezfaire para a época em que essa palavrachave foi usada pela primeira vez na França em meados do século XVIII como ocorre com freqüência Podese dizer com segurança que o liberalismo econômico não era mais que uma tendência espasmódica até duas gerações mais tarde Foi somente nos anos 1820 que ele passou a representar os três dogmas clássicos o trabalho deveria encontrar seu preço no mercado a criação do dinheiro deveria sujeitar se a um mecanismo automático os bens deveriam ser livres para fluir de país a país sem empecilhos ou privilégios Em resumo um mercado de trabalho o padrãoouro e o livrecomércio Estaríamos bem próximos do fantástico se quiséssemos dar a François Quesnay o crédito de ter sequer considerado um tal estado de coisas Tudo o que os fisiocratas exigiam num mundo mercantilista era 167 a livre exportação de cereais para garantir rendas melhores para os fazendeiros posseiros e senhores de terra Para os demais a sua ordre naturel nada mais era do que um princípio diretivo para a regulação da indústria e da agricultura por parte de um governo supostamente todo poderoso e onisciente As Maximes de Quesnay pretendiam fornecer a esse governo os pontos de vista necessários para transformar em prática política os princípios do Tableau à base dos dados estatísticos que ele se comprometia a suprir periodicamente A idéia de um sistema de mercados autoreguláveis jamais sequer penetrara a sua mente Na Inglaterra o laissezfaire também foi interpretado de forma muito estreita ele significava apenas libertarse das regulamentações da produção e o comércio não estava incluído As manufaturas de algodão a maravilha da época haviam crescido da insignificância para a principal indústria de exportação do país e no entanto a importação de algodões estampados continuava a ser proibida por um estatuto indiscutível Não obstante o monopólio tradicional do mercado interno conseguiuse uma subvenção de exportação para o morim e a musselina O protecionismo estava tão entranhado que os fabricantes de algodão de Manchester em 1800 exigiram a proibição da exportação do fio embora tivessem consciência do fato de que isso significava perda de negócio para eles Um decreto promulgado em 1791 estendeu as penalidades que incidiam sobre a exportação de ferramentas usadas na manufatura dos tecidos de algodão à exportação de modelos ou especificações As origens do livre comércio da indústria do algodão são realmente um mito A indústria só queria libertarse da regulamentação na esfera da produção pois a liberdade na esfera da troca ainda era considerada um perigo Poderseia supor que a liberdade da produção se difundiria naturalmente do campo puramente tecnológico para o do emprego da mãodeobra porém só comparativamente mais tarde foi que Manchester começou a exigir um trabalho livre A indústria do algodão jamais fora sujeita ao Statute of Artificers e conseqüentemente não se via tolhida pelas avaliações anuais dos salários ou pelas regras do aprendizado Por outro lado a antiga Poor Law contra a qual os liberais de última hora objetavam tão fortemente era uma ajuda para os fabricantes Ela não só lhes fornecia os aprendizes da paróquia como lhes permitia ainda isentarse da responsabilidade para com os empregados demitidos jogando assim para os fundos públicos grande parte da carga do desemprego A princípio nem mesmo o sistema Speenhamland foi impopular junto aos fabricantes de algodão Enquanto o efeito moral dos abonos 168 não reduziu a capacidade produtiva do trabalhador a indústria podia até ver o abono familiar como uma ajuda para manter aquele exército de reserva de mãodeobra exigido com tanta premência para enfrentar as tremendas flutuações do comércio Numa época em que o emprego na agricultura ainda era em termos anuais tornavase muito importante existir um fundo de mãodeobra móvel à disposição da indústria nos períodos de expansão Daí os ataques dos fabricantes contra o Act of Settlement que impedia a mobilidade física da mãodeobra Todavia a abolição desse ato só ocorreu após 1795 mas apenas para ser substituído por um paternalismo maior e não menor em relação à Poor Law O pauperismo continuava a ser a preocupação do proprietário fundiário e do campo Até mesmo críticos acerbos da Speenhamland como Burke Bentham e Malthus viamse menos como representantes do progresso industrial do que como proponentes de princípios sólidos de administração rural Não foi senão nos anos 1830 que o liberalismo econômico explodiu como uma cruzada apaixonante e o laissezfaire se tornou um credo militante A classe manufatureira pressionava pela emenda da Poor Law uma vez que esta impedia a criação de uma classe trabalhadora industrial que só assim poderia conseguir uma renda própria Tornavase aparente agora a magnitude do empreendimento que significava a criação de um mercado de trabalho livre bem como a extensão da miséria a ser infligi da às vítimas do progresso Assim já no início da década de 1830 era visível um clima de mudança acentuada Uma reedição da Dissertation de Townsend em 1817 continha um prefácio elogiando a previsão do autor em relação às Poor Laws e exigindo seu completo abandono Os editores alertavam porém contra a sugestão impetuosa e precipitada do autor de que a assitência social externa aos pobres fosse abolida no curto período de dez anos Os Principies de Ricardo que apareceram no mesmo ano insistiam na necessidade de abolir o sistema de abonos mas recomendava também que isto só fosse feito muito gradualmente Pitt um discípulo de Adam Smith havia rejeitado essa sugestão alegando que ela implicaria em sofrimento para inocentes Já em 1829 Peel ainda duvidava se o sistema de abonos poderia ser removido com segurança a não ser de forma gradual1 Entretanto após a vitória política da classe média em 1832 a Poor Law Amendment Bill foi posta em prática na forma mais extremada 1 Webb S e B op cit 169 e sem que houvesse qualquer período de espera O laissezfaire havia sido catalisado num impulso de intransigente ferocidade Incitado pelo liberalismo econômico que mudou de um interesse acadêmico para um ativismo ilimitado algo semelhante ocorreu em duas outras áreas da organização industrial meio circulante e comércio O laissezfaire se transformou num credo fervoroso em relação a essas duas áreas quando se tornou aparente a inutilidade de qualquer outra solução que não a mais extremada O tema do meio circulante chegou à atenção da comunidade inglesa primeiro sob a forma de um aumento geral no custo de vida Os preços duplicaram entre 1790 e 1815 Os salários reais caíram e os negócios foram atingidos por uma queda brusca no câmbio exterior Entretanto só depois do pânico de 1825 é que o meio circulante sólido se tornou um dogma do liberalismo econômico i e só quando os princípios ricardianos se arraigaram profundamente na mentalidade tanto dos políticos quanto dos homens de negócios é que se manteve o padrão a despeito da quantidade enorme de vítimas financeiras Isto marcou o início daquela crença inabalável no mecanismo automático da orientação do padrãoouro sem o qual o sistema de mercado jamais poderia ter entrado em funcionamento O comércio livre internacional envolvia também um mesmo ato de fé Suas implicações eram extremamente extravagantes Ele significava que a Inglaterra dependeria de fontes externas para seu abastecimento alimentar que ela sacrificaria sua agricultura se necessário para ingressar em uma nova forma de vida na qual ela seria parte integrante de uma unidade mundial do futuro vagamente concebida que essa comunidade planetária teria que ser pacífica pois do contrário ela seria tornada segura para a GrãBretanha pelo poder da sua marinha e que a nação inglesa enfrentaria a perspectiva de deslocamentos industriais contínuos pela firme crença na sua capacidade superior inventiva e produtiva Entretanto acreditavase que os cereais do mundo inteiro pudessem fluir livremente para a GrãBretanha só então suas fábricas poderiam vender mais barato que todo mundo Assim mais uma vez a medida da determinação exigida foi estabelecida pela magnitude da proposta e pela vastidão dos riscos envolvidos na sua aceitação total pois uma aceitação menos global certamente significaria alguma ruína As fontes utópicas do dogma do laissezfaire não podem ser inteiramente compreendidas enquanto examinadas separadamente Os três pilares mercado de trabalho competitivo padrãoouro automático e comércio internacional livre formavam um todo Eram inútei ou 170 talvez pior os sacrifícios exigidos para atingir qualquer um deles a menos que os dois outros fossem igualmente garantidos Era tudo ou nada Qualquer um podia ver que o padrãoouro por exemplo significava risco de uma deflação mortal e talvez uma fatal rigidez monetária num pânico Assim o fabricante só poderia manterse se lhe fosse assegurada uma escala progressiva da produção a preços remunerados em outras palavras somente se os salários caíssem pelo menos em proporção à queda geral dos preços de forma a permitir a exploração de um mercado mundial em expansão A AntiCorn Law Bill de 1846 foi o corolário do Bank Act de 1844 de Peel e ambos presumiam a existência de uma classe trabalhadora a qual desde a Poor Law Amendment Act de 1834 havia sido forçada a dar o melhor de si sob a ameaça da fome de forma que os salários eram regulados pelo preço do cereal As três grandes medidas formaram um todo coerente O alcance global do liberalismo econômico pode ser visto agora de um relance Nada menos do que um mercado autoregulável em escala mundial poderia assegurar o funcionamento desse mecanismo estupendo A menos que o preço do trabalho dependesse do cereal mais barato disponível não havia garantia para as indústrias não protegidas de que elas não sucumbiriam sob o guante do senhor voluntariamente aceito o ouro A expansão do sistema de mercado no século XIX foi sinônimo do comércio livre internacional do mercado de trabalho competitivo e do padrãoouro eles formavam um conjunto Não é de admirar que o liberalismo econômico tenha se transformado numa religião secular depois que se tornaram evidentes os grandes riscos desse empreendimento Não havia nada natural em relação ao laissezfaire os mercados livres jamais poderiam funcionar deixando apenas que as coisas seguissem o seu curso Assim como as manufaturas de algodão a indústria mais importante do livre comércio foram criadas com a ação de tarifas protetoras de exportações subvencionadas e de subsídios indiretos dos salários o próprio laissezfaire foi imposto pelo estado As décadas de 1930 e 1940 presenciaram não apenas uma explosão legislativa que repelia as regulamentações restritivas mas também um aumento enorme das funções administrativas do estado dotado agora de uma burocracia central capaz de executar as tarefas estabelecidas pelos adeptos do liberalismo Para o utilitarista típico o liberalismo econômico era um projeto social que deveria ser posto em prática para grande felicidade do maior número de pessoas o laissezfaire não era o método 171 para atingir alguma coisa era a coisa a ser atingida É verdade que a legislação nada podia fazer diretamente a não ser abolir as restrições prejudiciais mas isto não significava que o governo não podia fazer alguma coisa ainda que indiretamente Pelo contrário o liberal utilitarista via no governo o grande agente para atingir a felicidade Em relação ao bemestar material acreditava Bentham a influência da legislação não é nada se comparada à contribuição inconsciente do ministro da polícia Das três coisas necessárias para o sucesso econômico inclinação conhecimento e poder a pessoa privada possuía apenas a inclinação O conhecimento e o poder ensinava Bentham podem ser administrados pelo governo de forma muito mais barata do que através de pessoas privadas Era tarefa do executivo coletar estatísticas e informações patrocinar as ciências e as experiências assim como fornecer os inúmeros instrumentos de realização final no campo do governo O liberalismo benthamita significava a substituição da ação parlamentar pela ação dos órgãos administrativos Havia muito campo para isto Na Inglaterra a reação não governara como na França através de métodos administrativos mas utilizara exclusivamente a legislação parlamentar para fazer funcionar a repressão política Os movimentos revolucionários de 1785 e de 18151820 foram combatidos não por uma ação departamental mas pela legislação parlamentar A suspensão do Habeas Corpus Act Lei do Habeas Corpus a votação do Libel Act Lei do Libelo e do Six Acts Seis Leis de 1819 foram medidas severamente coersivas mas elas não comprovam qualquer tentativa de dar um caráter continental à administração Na medida em que a liberdade individual foi destruída ela o foi através de e de acordo com os atos do parlamento2 Os liberais econômicos ainda não haviam adquirido qualquer influência no governo em 1832 quando a posição mudou completamente em favor dos métodos administrativos O resultado líquido da atividade legislativa que caracterizou o período desde 1832 embora com diferentes graus de intensidade foi a construção fragmentária de uma máquina administrativa de grande complexidade que exige a necessidade constante de reparos renovações reconstruções e adaptações a novas exigências da mesma forma que uma fábrica numa manufatura moderna3 Esse crescimento da administração refletia 2 Redlich e Hist J Local Government in England vol II p 240 itando Dicey A V Law and Opinion in England p 305 3 Ilbert Legislative Methods pp 2123 citando Dicey A V op cit 172 o espírito do utilitarismo O fabuloso Panopticon de Bentham sua utopia mais pessoal era um edifício em formato de estrela e da sua parte central os guardas de prisão podiam exercer a mais efetiva supervisão sobre o maior número de prisioneiros com o menor custo para o público De forma similar no estado utilitarista o seu princípio favorito de inspeção assegurava que o ministro no cargo mais alto devia manter um controle efetivo sobre toda a administração local O caminho para o mercado livre estava aberto e se mantinha aberto através do incremento de um intervencionismo contínuo controlado e organizado de forma centralizada Tornar a liberdade simples e natural de Adam Smith compatível com as necessidades de uma sociedade humana era tarefa assaz complicada Vejam a complexidade das cláusulas nas inumeráveis leis do cercamento o total de controle burocrático inserido na administração das New Poor Laws que pela primeira vez desde o reinado da Rainha Elisabeth eram supervisionadas efetivamente por uma autoridade central ou o aumento da administração governamental inserido na tarefa meritória da reforma municipal Todos esses baluartes da interferência governamental no entanto foram criados com a finalidade de organizar uma simples liberdade a da terra do trabalho e da administração municipal Assim como contrariando as expectativas a invenção da maquinaria que economizaria trabalho não diminuíra mas na verdade aumentara a utilização do trabalho humano a introdução dos mercados livres longe de abolir a necessidade de controle regulamentação e intervenção incrementou enormemente o seu alcance Os administradores tinham que estar sempre alertas para garantir o funcionamento livre do sistema Assim mesmo aqueles que desejavam ardentemente libertar o estado de todos os deveres desnecessários e cuja filosofia global exigia a restrição das atividades do estado não tinham outra alternativa senão confiar a esse mesmo estado os novos poderes órgãos e instrumentos exigidos para o estabelecimento do laissezfaire Esse paradoxo foi sobrepujado por um outro Enquanto a economia laissezjaire foi o produto da ação deliberada do estado as restrições subseqüentes ao laissezfaire se iniciaram de maneira espontânea O laissezfaire foi planejado o planejamento não A primeira metade desta afirmativa é verdadeira como mostramos acima Se alguma vez já se fez uso consciente do executivo a serviço de uma política deliberadamente controlada pelo governo isto ocorreu com os benthamitas no período heróico do laissezfaire A outra metade foi posta em debate em primeiro lugar pelo eminente liberal Dicey que tomou a si a tarefa de inquirir 173 as origens do antiIaissezfaire ou como ele a chamava a tendência coletivista da opinião pública inglesa cuja existência era manifesta desde o final da década de 1860 Ele ficou surpreso de não encontrar qualquer prova dessa tendência a não ser nos práprios decretos legislativos Falando com mais exatidão nenhuma prova de uma tendência coletivista na opinião pública pôde ser encontrada anterior às leis que pareciam representar tal tendência Quanto à opinião coletivista posterior Dicey inferiu que a própria legislação coletivista poderia ter sido a sua fonte primordial Com essa sagaz investigação ele constatou a ausência total de qualquer intenção deliberada de ampliar as funções do estado ou restringir a liberdade do indivíduo por parte daqueles diretamente responsáveis pelas legislações restritivas das décadas de 1870 e 1880 A pontadelança legislativa do contramovimento que se opôs ao mercado autoregulável conforme se desenvolveu na metade do século após 1860 revelouse espontânea não dirigida pela opinião e induzida por um espírito puramente pragmático Os liberais econômicos certamente não partilham essa opinião Toda a sua filosofia social gira em torno da idéia de que la issezfaire foi um desenvolvimento natural enquanto a legislação antiIaissezfaire subseqüente foi o resultado de uma ação propositada por parte dos que se opunham aos princípios liberais Não seria demais dizer que nessas duas interpretações mutuamente exclusivas do duplo movimento ainda se envolve hoje em dia a verdade ou inverdade da posição liberal Autores liberais como Spencer e Sumner Mises e Lippmann nos oferecem um relato desse duplo movimento bastante similar ao nosso mas lhe dão uma interpretação inteiramente diferente Enquanto em nossa opinião o conceito de um mercado auto regulável era utópico e seu progresso foi obstruído pela autoproteção realista da sociedade na perspectiva deles todo o protecionsimo foi um erro resultante da impaciência ambição e estreiteza de visão e sem elas o mercado teria resolvido suas dificuldades Resolver qual dessas duas perspectivas é a correta é talvez o problema mais importante da história social recente uma vez que ela envolve nada menos que uma decisão quanto à alegação do liberalismo econômico de ser o princípio básico organizador da sociedade Antes de nos voltarmos para o testemunho dos fatos é necessária uma formulação mais precisa do tema Em retrospecto nossa época terá o crédito de ter visto o fim do mercado auto regulável A década de 1920 viu o prestígio do liberalismo econômico no seu apogeu Centenas de milhões de pessoas haviam sido afetadas pelo flagelo da inflação classes sociais inteiras 174 naçõe inteiras haviam sido espoliadas A estabilização da moeda se tomara o ponto focal no pensamento político de povos e governos a restauração do padrãoouro era o objetivo supremo de todo o esforço organizado na área econômica O pagamento dos empréstimos externo e o retorno às moedas estáveis eram reconhecidos como as pedras de toque da racionalidade política Nenhum sofrimento particular nenhuma violação de soberania era considerada um sacrifício demaziado grande para a recuperação da integridade monetária As privações dos desempregados sem emprego devido à deflação a demissão de funcionários públicos afastados sem uma pensão até mesmo o abandono dos direitos nacionais e a perda das liberdades constitucionais eram considerados um preço justo a pagar pelo cumprimento da exigência de orçamentos estáveis e moedas sólidas estes a priori do liberalismo econômico A década de 1930 viu as proposições absolutas de década de 1920 serem questionadas Após vários anos durante os quais as moedas foram praticamente restauradas e os orçamentos equilibrados os dois países mais poderosos GrãBretanha e Estados Unidos encontraramse em dificuldades abandonaram o padrãoouro e começaram a dirigir suas próprias moedas As dívidas internacionais eram repudiadas integralmente e os pilares do liberalismo econômico eram abandonados pelos mais ricos e mais respeitáveis Em meados da década de 1930 a França e alguns outros países que ainda aderiam ao ouro foram forçados a abandonar esse padrão pelos Tesouros da GrãBretanha e dos Estados Unidos anteriormente os zelosos guardiães do credo liberal Na década de 1940 o liberalismo econômico sofreu uma derrota ainda maior Embora a GrãBretanha e os Estados Unidos tivessem abandonado a ortodoxia monetária eles ainda guardavam os princípios e os métodos do liberalismo na indústria e no comércio na organização geral da sua vida econômica Isto provaria ser um fator na precipitação da guerra e uma desvantagem em combatêIa pois o liberalismo econômico havia criado e alimentado a ilusão de que as ditaduras só podiam resultar em catástrofe econômica Em razão desse credo os governos democráticos foram os últimos a compreender as implicações das moedas administradas e do comércio dirigido mesmo quando eram eles mesmos que utilizavam esses métodos por força das circunstâncias O legado do liberalismo econômico também impedia o caminho para um rearmamento oportuno em nome dos orçamentos equilibrados e da livre empresa que se imaginava serem os fornecedores dos únicos fundamentos seguros da força econômica na guerra Na Grã 175 Bretanha a ortodoxia orçamentária e monetária levou um país que enfrentava realmente uma guerra total a aderir ao princípio estratégico tradicional de compromissos limitados Nos Estados Unidos os interesses investidos tais como petróleo e alumínio se entrincheiraram por trás dos tabus do negócio liberal e resistiram com sucesso aos preparativos de uma emergência industrial Não fosse a insistência teimosa e apaixonante dos liberais econômicos em relação às suas falácias os líderes da raça assim como as massas de homens livres estariam mais bem equipados para enfrentar a tragédia da época e talvez pudessem até evitáIa Os dogmas seculares de uma organização social que inclui todo o mundo civilizado não são derrubados pelos acontecimentos de apenas uma década Tanto na GrãBretanha como nos Estados Unidos milhões de unidades de negócios independentes deviam sua existência aos princípios do laissezfaire e o fracasso espetacular em uma determinada área não destruiu sua autoridade em todas elas Na verdade o seu eclipse parcial pode até ter fortalecido a sua influência uma vez que permitiu a seus defensores argumentar que as razões de todas as dificuldades a ele atribuídas resultavam da aplicação incompleta dos seus princípios De fato este é o último argumento do liberalismo econômico que resta hoje em dia Seus defensores repetem com infindáveis variações que se não fossem as políticas apoiadas pelos seus críticos o liberalismo teria atingido a sua meta que não foram o sistema competitivo e o mercado autoregulável os responsáveis pelos nossos males e sim a interferência com esse sistema e as intervenções nesse mercado Esse argumento não encontra apoio apenas nas recentes e inumeráveis violações da liberdade econômica mas também no fato indubitável de que o movimento para difundir o sistema de mercados autoreguláveis foi enfrentado na segunda metade do século XIX por um contramovimento persistente que obstruiu o livre funcionamento de tal economia O liberal econômico está portanto em condições de formular um caso que liga o presente ao passado num todo coerente Quem iria negar que a intervenção governamental nos negócios pode minar a confiança Quem poderia negar que o desemprego talvez fosse menor se a lei não fornecesse benefícios aos sem trabalhoQue os negócio particulares são prejudicados pela competição de obras públicas Que o déficit financeiro pode ameaçar os investimentos privados Que o paternalismo tende a desalentar a iniciativa dos negócios Se isto acontece no presente certamente não era diferente no passado Em 1870 176 quando começou o movimento protecionista geral na Europa social e nacional quem poderá duvidar que ele dificultou e restringiu o comércio Quem poderá duvidar que as leis fabris o seguro social o comércio municipal os serviços de saúde de utilidade pública tarifas subvenções e subsídios cartéis e trustes embargos à emigração a movimentos de capital a importações para não falar de restrições menos claras a movimentos de homens bens e pagamentos devem ter atuado como tantos outros empecilhos para o funcionamento do sistema competitivo adiando as depressões nos negócios agravando o desemprego aprofundando os declínios financeiros diminuindo o comércio e danificando severamente o mecanismo autoregulador do mercado A raiz de todo mal insistem os liberais foi precisamente essa interferência com a liberdade de emprego comércio e moedas praticada pelas várias escolas de protecionismo social nacional e monopolista desde o terceiro quarto do século XIX Não fosse a aliança profana dos sindicatos profissionais e partidos trabalhistas com os fabricantes monopolistas e os interesses agrários que na sua ambição tacanha uniram forças para frustrar a liberdade econômica o mundo estaria gozando agora dos frutos de um sistema quase automático de criar bemestar material Os líderes liberais jamais se cansam de repetir que a tragédia do século XIX resultou da incapacidade do homem de permanecer fiel à inspiração dos primeiros liberais Que a generosa iniciativa de nossos ancestrais foi frustrada pelas paixões do nacionalismo e da luta de classes dos interesses investidos e dos monopolistas e acima de tudo pela cegueira do povo trabalhador em relação ao benefício final de uma liberdade econômica irrestrita para todos os interesses humanos inclusive os dele mesmo Alegase assim que um grande progresso intelectual e moral foi frustrado pela fraqueza intelectual e moral da massa do povo O que o espírito do Iluminismo havia alcançado fora derrotado pelas forças do egoísmo Em poucas palavras esta é a defesa do liberal econômico e a menos que ela seja refutada ele continuará a ser exibido na discussão dos argumentos Focalizemos o assunto Concordase que o movimento liberal preocupado em difundir o sistema de mercado foi enfrentado por um contramovimento protetor que se empenhava em restringilo Esse pressuposto está de fato implícito em nossa tese do duplo movimento Enquanto afirmamos porém que o absurdo inerente à idéia de um sistema de mercado autoregulável teria destruído a sociedade eventualmente o liberal acusa os elementos variados de haverem destruído 177 uma grande iniciativa Incapaz de acrescentar a prova de qualquer esforço conjunto para dissolver o movimento liberal ele recai na hipótese praticamente irrefutável da ação oculta Este é o mito da conspiração antiliberal que de uma forma ou outra é comum a todas as interpretações liberais dos acontecimentos das décadas de 1870 e 1880 A forma mais comum é atribuir ao nascimento do nacionalismo e do socialismo o crédito de agente principal nessa mudança de cenário as associações e os monopólios de fabricantes os interesses agrários e os sindicatos profissionais são os vilões da peça Assim na sua forma mais espiritualizada a doutrina liberal consubstancia o funcionamento de alguma lei dialética na sociedade moderna invalidando os empenhos da razão esclarecida enquanto na sua versão mais crua ela se reduz a um ataque à democracia política como fonte presumível do intervencionismo O testemunho dos fatos contradiz decisivamente a tese liberal A conspiração antiliberal é pura invenção A grande variedade de formas nas quais surgiu o contramovimento coletivista não foi devida a qualquer preferência pelo socialismo ou pelo nacionalismo por parte dos interesses envolvidos mas deveuse exclusivamente ao alcance mais amplo dos interesses sociais vitais afetados pela expansão do mecanismo de mercado Isto justifica as reações quase universais de caráter eminentemente prático convocadas pela expansão desse mecanismo Os modismos intelectuais não desempenharam qualquer papel nesse processo de fato não havia lugar para o preconceito que o liberal vê como força ideológica por trás do desenvolvimento antiliberal Embora seja verdade que as décadas de 1870 e 1880 viram o fim do liberalismo ortodoxo e que todos os problemas cruciais do presente têm sua raiz nesse período seria incorreto dizer que a mudança para um protecionismo social e nacional fosse devida a qualquer outra causa além da manifestação das fraquezas e perigos inerentes a um sistema de mercado antiregulável Isto pode ser demonstrado em mais de uma forma Primeiro existe a surpreendente diversidade dos assuntos em relação aos quais a ação se fez sentir Só isto excluiria a possibilidade de uma ação combinada Podemos citar exemplos a partir de uma lista de intervenções compilada por Herbert Spencer em 1884 quando acusou os liberais de terem desertado seus princípios em favor de uma legislção restritiva4 A variedade de assuntos não podia ser maior Em 1860 concedeu se permissão para que os analistas de alimentos e 4 Spencer H The Man vs the State 1884 178 bebidas fossem pagos através dos impostos locais a isto seguiuse um decreto autorizando a inspeção das obras de gás uma ampliação do Mines Act determinando penalidades para aqueles que empregassem meninos abaixo de doze anos que não freqüentassem escolas e que não soubessem ler e escrever Em 1861 foi autorizado aos guardiães da Poor Law tornar a vacinação obrigatória as juntas locais foram autorizadas a fixar taxas de aluguel para os meios de transporte alguns órgãos de formação local haviam assumido poderes para taxar a localidade por obras de drenagem e irrigação rural e para o fornecimento de água ao gado Em 1862 foi promulgado um decreto tornando ilegal uma mina de carvão com apenas um poço um decreto concedeu ao Council of Medical Education o direito exclusivo de suprir a farmacopéia cujo preço será fixado pelo Tesouro Spencer horrorizado prencheu diversas páginas com a enumeração destas e de outras medidas similares Em 1863 a vacina compulsória foi estendida à Escócia e à Irlanda Houve também um decreto nomeando inspetores para as condições de higiene dos alimentos um ChimneySweepers Act Decreto sobre Limpadores de Chaminés para impedir a tortura e a morte eventual de crianças que limpavam aberturas muito estreitas um Contagious Diseases Act Decreto sobre Moléstias Contagiosas um Public Libraries Act Decreto sobre Bibliotecas Públicas concedendo poderes locais pelos quais uma maioria pode taxar uma minoria pelos seus livros Spencer acrescentouos como outra prova irrefutável de uma conspiração antiliberal No entanto cada um desses decretos lidava com algum problema originado das modernas condições industriais e objetivava defender algum interesse público contra os perigos inerentes a tais condições ou pelo menos ao método do mercado de lidar com eles Para uma mente imparcial essas medidas comprovam a natureza puramente prática pragmática do contramovimento coletivista A maioria daqueles que punham em prática essas medidas eram partidários convictos do laissez faire e certamente não achavam que seu consentimento para a organização de um corpo de bombeiros em Londres implicasse um protesto contra os princípios do liberalismo econômico Pelo contrário os patrocinadores desses atos legislativos eram em regra oponentes intransigentes do socialismo ou de qualquer outra forma de coletivismo Segundo a mudança de soluções liberais para coletivistas ocorria às vezes da noite para o dia e sem qualquer conscientização por parte dos que se engajavam no processo de ruminação legislativa Dicey acrescentou ainda o exemplo clássico do Workmens Compensation 179 Act Decreto da Compensação do Trabalhador que tratava da responsabilidade dos empregadores pelos danos causados aos seus empregados durante o período do emprego A história dos vários decretos que incorporaram essa idéia desde 1880 demonstra a adesão total ao princípio individualista de que a responsabilidade do empregador para com seu empregado deveria ser regulamentada de maneira estritamente idêntica à do governo em relação aos outros ie aos estrangeiros Sem que ocorresse qualquer mudança de opinião em 1897 o empregador passou a ser subitamente o segurador dos seus trabalhadores contra qualquer dano ocorrido durante o seu tempo de empregado uma legislação perfeitamente coletivista conforme observou Dicey muito justamente Não se poderia acrescentar melhor prova de que não foi a mudança no tipo de interesses envolvidos ou a tendência das opiniões em relação ao assunto que levaram à substituição de um princípio liberal por um antiliberal e sim exclusivamente a evolução das condições sob as quais o problema surgiu e para o qual se buscou uma solução Terceiro existe a prova indireta mas bastante marcante que nos oferece a comparação do desenvolvimento de uma configuração política e ideológica bastante diferente em vários países A Inglaterra vitoriana e a Prússia de Bismarck eram pólos à parte e ambos eram muito diferentes da França da Terceira República ou do Império dos Habsburgs No entanto cada um deles passou por um período de livrecomércio e laissezfaire seguido por um período de legislação antiliberal em relação à saúde pública condições fabris comércio municipal seguro social subsídios de navegação utilidades públicas associações comerciais e assim por diante Seria fácil apresentar um calendário regular marcando os anos em que ocorreram tais mudanças análogas nos diversos países A compensação dos trabalhadores foi decretada na Inglaterra em 1880 e 1897 na Alemanha em 1879 na Áustria em 1887 na França em 1899 A inspeção das fábricas foi introduzida na Inglaterra em 1833 na Prússia em 1853 na Áustria em 1883 na França em 1874 e 1883 O comércio municipal inclusive a direção das utilidades públicas foi introduzido por Joseph Chamberlain um dissidente e um capitalista em Birrningham na década de 1870 na Viena imperial na década de 1890 pelo socialista católico perseguidor de judeus Karl Lueger e nas municipalidades alemãs e francesas através de uma série de coalizões locais As forças de apoio eram às vezes violentamente reacionárias e antisocialistas como em Viena outras vezes imperialistas radicais como em Birmingham ou tinham uma tonalidade puramente liberal como aconteceu com o francês Edouard 180 Herriot prefeito de Lyon Na Inglaterra protestante os gabinetes Conservador e Liberal agiam de forma intermitente para completar a legislação fabril Na Alemanha tanto os católicos romanos quanto os socialdemocratas tomaram parte na sua consecução na Áustria a Igreja e seus partidários mais ativos Na França os inimigos da Igreja e os clericais mais ardentes foram responsáveis pela promulgação de leis quase idênticas Assim sob os lemas mais variados com as motivações mais diferentes uma multidão de partidos e estratos sociais colocou em funcionamento medidas quase exatamente iguais numa série de países e em relação a um grande número de assuntos complicados Em face disto nada é mais absurdo do que inferir que eles eram secretamente impulsionados pelos mesmos preconceitos ideológicos ou restritos interesses de grupo como quer fazer crer a lenda da conspiração antiliberal Pelo contrário tudo parece confirmar o pressuposto de que foram razões objetivas de natureza premente que forçaram a atuação dos legisladores Quarto existe o fato significativo de que em várias ocasiões os projetos liberais econômicos defenderam restrições à liberdade do contrato e do laissezfaire em um número de casos bem definidos de grande importância teórica e prática O preconceito antiliberal certamente não poderia ter sido a sua motivação Temos em mente de um lado o princípio da associação do trabalho e do outro a lei das corporações de negócios O primeiro referese ao direito dos trabalhadores de se associarem com o propósito de elevar seus salários o último ao direito dos trustes cartéis ou outras formas de associações capitalistas de elevar os preços Em ambos os casos acusavase justamente a liberdade de contrato ou o laissezfaire de estar sendo usado para restringir o comércio Seja no caso das associações de trabalhadores para elevar salários ou das associações comerciais para elevar preços é óbvio que o princípio do laissezfaire podia ser usado pelas partes interessadas para estreitar o mercado tanto para o trabalho como para outras mercadorias É altamente significativo que tanto num como noutro caso sólidos liberais de Lloyd George a Theodore Roosevelt até Thurman Arnold e Walter Lippmann subordinaram o laissezfaire à exigência de um mercado competitivo livre Eles pressionaram por regulamentações e restrições por leis penais e compulsão argumentando como o faria qualquer coletivista que a liberdade de contrato estava sendo abusada por sindicatos ou corporações qualquer que fosse o caso Teoricamente o laissezfaire ou a liberdade de contrato implicava a liberdade dos trabalhadores de recusarse a trabalhar individual ou 181 coletivamente se assim decidissem implicava também a liberdade dos homens de negócios de ajustar os preços de venda independentemente da vontade dos consumidores Na prática porém tal liberdade entrava em conflito com a instituição de um mercado autoregulável e em tal conflito concediase precedência invariavelmente ao mercado autoregulável Em outras palavras se as necessidades do mercado autoregulável provavam ser incompatíveis com as exigências do laissez faire o liberal econômico voltavase contra o laissezfaire e preferia como qualquer antiliberal os métodos assim chamados coletivistas de regulamentação e restrição A lei dos sindicatos profissionais e a legislação antitruste surgiram em consequência dessa atitude Não se poderia oferecer prova mais conclusiva da inevitabilidade dos métodos antiliberal ou coletivista sob as condições da moderna sociedade industrial do que o fato de que até mesmo os próprios liberais econômicos usavam regularmente tais métodos em áreas de importância decisiva da organização industrial A propósito isto ajuda a esclarecer o verdadeiro significado do termo intervencionismo com o qual os liberais econômicos gostam de demonstrar o oposto da sua própria política mas que apenas demonstra confusão de pensamento O oposto do intervencionismo é o laissezfaire e acabamos justamente de ver que o liberalismo econômico não pode ser identificado com o laissezfaire embora na linguagem comum não exista qualquer prejuízo em intercarnbiálos De forma estrita o liberalismo econômico é o princípio organizado r de uma sociedade na qual a indústria se baseia na instituição de um mercado autoregulável É verdade que uma vez atingido um tal sistema mesmo aproximadamente é cada vez menos necessário um certo tipo de intervenção Todavia isto não quer dizer que sistema de mercado e intervenção são termos mutuamente exclusivos Enquanto esse sistema não é estabelecido os liberais econômicos apelarão sem hesitar para a intervenção do estado a fim de estabelecêlo e uma vez estabelecido a fim de mantêlo O liberal econômico pode portanto sem qualquer contradição pedir que o estado use a força da lei pode até mesmo apelar para as forças violentas da guerra civil a fim de organizar as precondições de um mercado autoregulável Na América do Norte o Sul apelou para os argumentos do laissezfaire para justificar a escravidão O Norte apelou para a intervenção das armas para estabelecer um mercado de trabalho livre A acusação de intervencionismo por parte de autores liberais é portanto um slogan vazio implicando a denúncia de um único e idêntico conjunto de ações conforme eles possam aprováIas 182 ou não O único princípio que os liberais podem manter sem cair em contradição é o do mercado autoregulável quer ele os envolva em intervenção ou não Resumindo o contramovimento que se opôs ao liberalismo econômico e ao laissezfaire teve todas as características inequívocas de uma reação espontânea Em inúmeros pontos isolados ele surgiu sem que houvesse ligações aparentes entre os interesses diretamente afetados ou qualquer conformidade ideológica entre eles Até na resolução do mesmo problema como no caso da compensação aos trabalhadores as soluções mudavam de individualista para coletivista de liberal para antiliberal do laissezfaire para formas intervencionistas sem que ocorresse qualquer mudança no interesse econômico nas influências ideológicas ou nas forças políticas em jogo mas apenas como resultado da crescente compreensão da natureza do problema em questão Podese demonstrar também que uma mudança bastante similar do laissez faire para o coletivismo ocorreu em vários países num estágio definido do seu desenvolvimento industrial revelando a profundidade e independência das causas subjacentes ao processo que os liberais econômicos atribuíram de forma tão superficial a climas de mudança ou a interesses diversos Finalmente a análise revela que nem mesmo os adeptos mais radicais do liberalismo econômico puderam fugir à regra que tornou o laissezfaire inaplicável às condições industriais avançadas No caso crítico da lei dos sindicatos profissionais e das regulamentações antitrustes os próprios liberais extremados apelaram para intervenções múltiplas do estado a fim de garantir as precondições de funcionamento de um mercado autoregulável contra acordos mono polistas Até mesmo o livre comércio e a competição exigiam a intervenção para poderem funcionar É portanto contrário a todos os fatos o mito liberal da conspiração coletivista das décadas de 1870 e 1880 Achamos assim que a evidência comprova a interpretação que damos ao duplo movimento Se a economia de mercado foi uma ameaça para os componentes humano e natural do tecido social como insistimos o que mais se poderia esperar senão que uma ampla gama de pessoas exercesse a maior pressão no sentido de obter alguma espécie de proteção Foi isto o que encontramos Seria de se esperar também que isto acontecesse sem qualquer prevenção teórica ou intelectual por parte deles e a despeito da atitude que assumiam em relação aos princípios subjacentes a uma economia de mercado Mais uma vez este foi o caso Além disso sugerimos que a história comparativa dos governos poderia oferecer um apoio quase experimental à nossa tese se pudéssemos 183 demonstrar serem os interesses particulares independentes das ideologias específicas presentes em uma série de diferentes países Também nesse caso pudemos apresentar provas conclusivas Finalmente o comportamento dos próprios liberais provou que a manutenção da liberdade de comércio em nossos termos de um mercado auto regulável longe de excluir a intervenção na verdade exigia tal ação e que os próprios liberais apelaram sistematicamente para a atuação compulsória do estado como no caso da lei dos sindicatos profissionais e das leis antitrustes Assim nada poderia ser mais incisivo que a evidência da história sobre qual das duas interpretações conflitantes do duplo movimento é correta a do liberal econômico que afirma que sua política jamais teve uma oportunidade tendo sido estrangulada por sindicalistas de visão estreita intelectuais marxistas fabricantes gananciosos e latifundiários reacionários ou a dos seus críticos que podem apontar para a reação coletivista universal contra a expansão da economia de mercado na segunda metade do século XIX como prova conclusiva do perigo para a sociedade inerente ao princípio utópico de um mercado autoregulável 184 13 O NASCIMENTO DO CREDO LIBERAL CONTINUAÇÃO O INTERESSE DE CLASSE E A MUDANÇA SOCIAL O mito liberal da conspiração coletivista deve ser dissipado inteiramente antes de se colocar a nu a verdadeira base das políticas do século XIX Essa fábula alega que o protecionismo foi apenas o resultado dos sinistros interesses agrários dos fabricantes e dos sindicalistas que arruinaram de forma egoísta a maquinaria automática do mercado De uma outra forma e com uma tendência política oposta naturalmente os partidos marxistas argumentavam em termos igualmente seccionais Não é relevante aqui o fato da filosofia básica de Marx centralizarse na totalidade da sociedade e na natureza não econômica do homem1 O próprio Marx seguiu Ricardo ao definir as classes em termos econômicos e a exploração econômica foi sem dúvida um aspecto da era burguesa No marxismo popular isto levou a uma incipiente teoria de classe do desenvolvimento social A pressão por mercados e zonas de influência foi simplesmente atribuída à motivação do lucro de um punhado de financistas O imperialismo foi explicado como uma conspiração capitalista para induzir governos a se lançarem a guerras no interesse d grandes negócios Atribuíase as guerras a esses interesses combinados 1 Marx K Nationalökonomie und Philosophie Em Der Historische Materialismus 1932 185 aos das firmas de armamentos que adquiriam miraculosamente a capacidade de levar nações inteiras a políticas fatais contrárias a seus interesses vitais De fato liberais e marxistas estavam de acordo ao inferir o movimento protecionista a partir da força dos interesses seccionais em responsabilizar as tarifas agrárias pela força política dos latifundiários reacionários em fazer da fome de lucro dos magnatas industriais a responsável pelo crescimento das formas monopolísticas de empresa em apresentar a guerra como resultado da agressividade dos negócios A perspectiva econômica liberal encontrou assim um apoio poderoso numa estreita teoria de classe Defendendo a perspectiva das classes em oposição liberais e marxistas apresentaram proposições idênticas Estabeleceram um caso inequívoco para a afirmativa de que o protecionismo do século XIX foi o resultado da ação de classe e que essa ação deveria atender basicamente aos interesses econômicos dos membros das classes envolvidas Entre si eles quase obstruíram por completo uma visão geral da sociedade de mercado e a função do protecionismo em tal sociedade Na verdade os interesses de classe oferecem apenas uma explicação limitada para os movimentos da sociedade a longo prazo O destino das classes é muito mais determinado pelas necessidades da sociedade do que o destino da sociedade é determinado pelas necessidades das classes Dada uma estrutura definida da sociedade a teoria de classe funciona mas o que acontece se esta estrutura sofre mudança Uma classe que perde a sua função pode se desintegrar e ser rapidamente suplantada por uma nova classe ou classes Ocorre ainda que as oportunidades das classes em luta dependerão da sua habilidade em ganhar apoio fora da sua própria coletividade e isso também dependerá da possibilidade de executarem as tarefas estabelecidas por interesses mais amplos do que o seu próprio Assim nem o nascimento nem a morte das classes nem os seus objetivos nem o grau em que elas o atingem nem as suas cooperações ou os seus antagonismos podem ser compreendidos fora da situação da sociedade como um todo Ora em regra essa situação é criada por causas externas como uma mudança no clima no resultado das colheitas um novo inimigo uma nova arma usada por um antigo inimigo a emergência de novas finalidades comunais ou se for o caso a descoberta de novos métodos para alcançar os fins tradicionais Os interesses seccionais têm que estar relacionados com esta situação total em última instância para tornar bem clara a sua função no desenvolvimento social 186 O papel essencial desempenhado pelos interesses de classe na mudança social está na natureza das coisas Qualquer forma ampla de mudança deve afetar as várias partes da comunidade de diferentes maneiras ainda que não seja por outra razão que as diferenças de locação geográfica e de equipamento econômico e cultural Os interesses seccionais são portanto o veículo natural da mudança social e política Qualquer que seja a fonte da mudança guerra ou comércio invenções assombrosas ou mudanças nas condições naturais as várias secçôes da sociedade procurarão métodos diferentes de ajustamento inclusive pela força e conciliarão seus interesses de modo diferente dos escolhidos por outros grupos os quais talvez até procurem conduzir Daí somente quando se pode apontar o grupo ou grupos que efetuaram a mudança podese explicar como essa mudança ocorreu Entretanto a causa última é estabelecida por forças externas e a sociedade depende das forças internas apenas para o mecanismo da mudança O desafio é para a sociedade como um todo a resposta chega através de grupos secções e classes Os meros interesses de classe não podem portanto oferecer uma explicação satisfatória para qualquer processo social a longo prazo Primeiro porque o processo em questão pode decidir sobre a existência da própria classe segundo porque os interesses de dadas classes determinam apenas os objetivos e os propósitos em cuja direção essas classes lutam e não também o sucesso ou fracasso de tais esforços Não existe qualquer mágica nos interesses de classe que possa garantir aos membros de uma classe o apoio dos membros de outras classes E no entanto esse apoio é uma ocorrência diária e o protecionismo constitui um bom exemplo O problema aqui não é por que o campo os fabricantes ou os sindicalistas desejaram elevar suas rendas através da ação protecionista mas porque conseguiram fazêlo não por que homens de negócios e trabalhadores desejaram estabelecer monopólios para seus produtos mas porque atingiram o seu objetivo não por que alguns grupos agiram de modo semelhante em uma série de países continentais mas porque tais grupos existiram nesses países tão diferentes em outros sentidos e atingiram igualmente seus objetivos em todos os lugares não porque aqueles que cultivavam o trigo tentavam vendêlo mais caro mas porque eles conseguiam regularmente persuadir aqueles que compravam o trigo a ajudar no aumento do seu preço Segundo existe a doutrina igualmente equívoca da natureza essencialmente econômica dos interesses de classe Embora a sociedade humana seja naturalmente condicionada por fatores econômicos as 187 motivações dos indivíduos humanos só excepcionalmente são determinadas pelas necessidades do desejosatisfação material O fato de a sociedade do século XIX ser organizada a partir do pressuposto de que tal motivação poderia tornarse universal foi uma peculiaridade da época Era apropriado portanto oferecer um campo comparativamente mais amplo para o desempenho das motivações econômicas quando se analisava essa sociedade Temos que nos resguardar porém contra o prejulgamento do assunto que é precisamente em que medida uma tal motivação insólita podia se tornar efetiva Assuntos puramente econômicos como os que afetam o desejosatisfação são incomparavelmente menos relevantes para o comportamento de classe do que questões de reconhecimento social O desejosatisfação pode ser sem dúvida o resultado de um tal reconhecimento especialmente como seu indício ou prêmio exterior Todavia os interesses de uma classe se referem mais diretamente à sua posição e lugar ao status e segurança isto é eles são basicamente nãoeconômicos mas sociais As classes e os grupos que tomaram parte intermitentemente no movimento geral em direção ao protecionismo após 1870 não o fizeram basicamente por conta dos seus interesses econômicos As medidas coletivistas promulgadas nos anos críticos revelam que só excepcionalmente estaria envolvido o interesse de uma única classe e neste caso esse interesse raramente poderia ser descrito como econômico É certo que nenhum interesse econômico estreito poderia ser atendido por um decreto que autorizava as autoridades da cidade assumir responsabilidade sobre espaços ornamentais negligenciados por regulamentações que exigiam a limpeza das padarias com água quente e sabão pelo menos uma vez em seis meses ou um decreto que tornava compulsório examinar cabos e âncoras Tais medidas corresponderam simplesmente às necessidades de uma civilização industrial às quais os métodos dos mercados não eram capazes de atender A grande maioria dessas intervenções não teve qualquer influência direta e pouco mais que indireta nos rendimentos Isto ocorreu com praticamente todas as leis relacionadas à saúde e à habitação às amenidades e às bibliotecas públicas às condições fabris e ao seguro social O mesmo aconteceu em relação às utilidades públicas educação transporte e inúmeros outros assuntos Mesmo nos casos que envolviam valores monetários eles eram secundários em relação a outros interesses Quase invariavelmente o que estava em questão era o status profissional a segurança e a estabilidade a forma da vida de um homem a extensão da sua exitência 188 a estabilidade do seu ambiente A importância monetária de algumas intervenções típicas como tarifas aduaneiras ou compensação dos trabalhadores não deve ser minimizada de forma alguma Porém mesmo nesses casos os interesses não monetários eram inseparáveis dos monetários As tarifas aduaneiras que implicavam lucro para os capitalistas e salários para os trabalhadores significavam também em última instância segurança contra o desemprego estabilidade para as condições regionais segurança contra a liquidação de indústrias e talvez o melhor anulação da dolorosa perda de status que acompanha inevitavelmente a mudança para um emprego no qual o homem se sente menos habilitado e experimentado do que no seu próprio Já que nos livramos da obsessão de que apenas os interesses seccionais e nunca os gerais podem se tornar efetivos assim como do preconceito gêmeo de restringir os interesses dos grupos humanos a seus rendimentos monetários a amplitude e a compreensão do movimento protecionista perdem seu mistério Enquanto os interesses monetários são veiculados necessariamente apenas pelas pessoas a quem eles pertencem outros interesses têm uma clientela mais ampla Eles afetam os indivíduos de inúmeras maneiras como vizinhos profissionais consumidores pedestres viajantes esportistas andarilhos jardineiros pacientes mães ou amantes e são passíveis de serem representados por quase todos os tipos de associação territorial ou funcional como igrejas distritos fraternidades clubes sindicatos ou mais comumente partidos políticos de amplas bases de adesão Uma concepção de interesse demasiado estreita pode levar com efeito a uma visão deturpada da história social e política e nenhuma definição puramente monetária dos interesses deixa espaço para aquela necessidade vital de proteção social cuja representação recai habitualmente nas pessoas encarregadas dos interesses gerais da comunidade sob condições modernas os governos do dia Foram precisamente os interesses sociais e não os econômicos de diferentes segmentos da população que se viram ameaçados pelo mercado e pessoas pertencentes a vários estratos econômicos inconscientemente conjugaram forças para conjurar o perigo A ampliação do mercado foi pois simultaneamente adiantada e obstruída pela ação das forças de classes Dada a necessidade de uma produção de máquina para o estabelecimento de um sistema de mercado somente as classes comerciais estavam em posição de assumir a liderança nessa primeira transformação Surgiu uma nova classe de empresários dos remanescentes das antigas classes a fim de tomar conta de um desenvolvimento que estava em consonância com os interesses da 189 comunidade como um todo Entretanto se a ascensão dos industriais empresários e capitalistas foi o resultado do seu papel dominante no movimento expansionista a defesa recaiu sobre as classes fundiárias tradicionais e a nascente classe trabalhadora Se dentre a comunidade comercial coube aos capitalistas representar os princípios estruturais do sistema de mercado o papel de defensor ferrenho do tecido social coube de um lado à aristocracia feudal e de outro ao ascendente proletariado industrial Entretanto enquanto as classes fundiárias naturalmente procuravam a solução de todos os males na manutenção do passado os trabalhadores estavam até certo ponto em posição de transcender os limites de uma sociedade de mercado e pedir soluções ao futuro Isto não significa que a volta ao feudalismo ou a proclamação do socialismo estavam entre as linhas de ação possíveis mas indica as direções inteiramente diferentes para as quais tendiam as forças agrárias e da classe trabalhadora urbana na busca de solução para uma emergência Se a economia de mercado entrasse em colapso como ameaçou ocorrer em cada uma das crises maiores as classes fundiárias podiam tentar um retorno a um regime militar ou feudal de paternalismo enquanto os trabalhadores fabris viam a necessidade de estabelecer uma comunidade de trabalho cooperativo Numa crise as respostas podem apontar para soluções mutuamente exclusivas Um simples choque de interesses de classe que poderia ser solucionado pelo compromisso se revestiu de um significado fatal Tudo isto deveria alertarnos contra confiar demais nos interesses econômicos de dadas classes para a explicação da história Uma abordagem como essa implicaria a admissão tácita dessas classes num sentido que só seria possível numa sociedade indestrutível Isto deixaria fora do alcance aquelas fases críticas da história quando uma civilização desmorona ou passa por uma transformação ocasião em que como regra novas classes se formam às vezes no mais curto espaço de tempo a partir de ruínas de classes antigas ou até mesmo a partir de elementos extrínsecos como aventureiros estrangeiros ou proscritos Uma conjuntura histórica é freqüente surgirem novas classes simplesmente em virtude das exigências da hora Assim em última instância é a relação que uma classe tem com a sociedade como um todo que delimita a sua parte no drama Seu sucesso é determinado pela amplitude e variedade dos interesses além dos seus próprios que ela é capaz de servir Na verdade nenhuma política de interesse de classe restrito pode defender bem até mesmo esse interesse uma regra que só permite poucas exceções Nenhuma classe brutalmente egoísta pode manterse 190 na liderança a não ser que a alternativa para a conjuntura social seja um mergulho na destruição total Para poder jogar a culpa na suposta conspiração coletivista os liberais econômicos têm que negar em última instância que jamais tenha ocorrido qualquer necessidade de proteção para a sociedade Em época recente aplaudiram as opiniões de alguns eruditos que abandonaram a doutrina tradicional da Revolução Industrial segundo a qual desabou uma catástrofe sobre as infelizes classes trabalhadoras da Inglaterra na década de 1790 Conforme esses autores o povo comum jamais foi atingido por algo semelhante à súbita deterioração dos padrões Em média ele estava bem melhor do que antes da introdução do sistema fabril e quanto aos números ninguém poderia negar o seu rápido crescimento Os autores confirmavam ainda que baseando se nos índices aceitos de bemestar econômico salários reais e dados populacionais o inferno do capitalismo primitivo jamais existiu Longe de terem sido exploradas as classes trabalhadoras foram economicamente as vencedoras e era obviamente impossível discutir a necessidade de proteção social contra um sistema que beneficiava a todos Os críticos do capitalismo liberal ficaram surpresos Durante cerca de setenta anos estudiosos e comissões reais denunciaram os horrores da Revolução Industrial e uma galáxia de poetas pensadores e autores estigmatizaram as suas crueldades Era considerado fato estabelecido que as massas estavam sendo exauridas e definhavam com a exploração impiedosa do seu desamparo que os cercamentos haviam privado os moradores do campo de seus lares e terras atirandoos ao mercado de trabalho criado pela Poor Law Reform e que as tragédias comprovadas das crianças que trabalhavam até morrer nas minas e fábricas ofereciam prova impressionante da destituição das massas De fato a explicação habitual da Revolução Industrial se baseava no grau de exploração que os cercamentos do século XVIII tornaram possível nos baixos salários oferecidos aos trabalhadores sem lar responsáveis pelos elevados lucros da indústria do algodão assim como pela rápida acumulação de capital nas mãos dos primeiros fabricantes A acusação contra estes era de exploração uma exploração ilimitada dos seus semelhantes considerada a causa básica de tanta miséria e aviltamento Tudo isto estava sendo agora aparentemente refutado Historiadores econômicos aplaudiam o fato de se ter dispersado a sombra negra que encobria as primeiras décadas do sistema fabril Como poderia ocorrer uma catástrofe social onde havia sem dúvida progresso econômico 191 É fora de dúvida que uma calamidade social é basicamente um fenômeno cultural e não um fenômeno econômico que pode ser medido por cifras de rendimentos ou estatísticas populacionais Catástrofes culturais que envolvem amplos estratos do povo comum não podem ser freqüentes naturalmente Mas também não o são acontecimentos cataclísmicos como a Revolução Industrial um terremoto econômico que em menos de meio século transformou grandes massas de habitantes do campo inglês de gente estabelecida em migrantes ineptos Todavia se desmoronamentos destrutivos como esses são excepcionais na história das classes eles são uma ocorrência comum na esfera dos contatos culturais entre povos de raças diferentes Intrinsecamente as condições são as mesmas A diferença está principalmente no fato de que uma classe social é parte de uma sociedade que habita a mesma área geográfica enquanto o contato cultural ocorre geralmente entre sociedades estabeleci das em diferentes regiões geográficas Em ambos os casos o contato pode ter efeito devastador sobre a parte mais fraca A causa da degradação não é portanto a exploração econômica como se presume muitas vezes mas a desintegração do ambiente cultural da vítima O processo econômico pode naturalmente fornecer o veículo da destruição e quase invariavelmente a inferioridade econômica fará o mais fraco se render mas a causa imediata da sua ruína não é essa razão econômica ela está no ferimento letal infligido às instituições nas quais a sua existência social está inserida O resultado é a perda do autorespeito e dos padrões seja a unidade um povo ou uma classe quer o processo resulte do assim chamado conflito cultural ou de uma mudança na posição de uma classe dentro dos limites de uma sociedade Para o estudioso do capitalismo primitivo o paralelo é altamente significativo A condição de algumas tribos nativas na África hoje em dia tem uma semelhança indiscutível com as das classes trabalhadoras inglesas durante os primeiros anos do século XIX O cafre da África do Sul um nobre selvagem que não podia se sentir mais seguro socialmente no seu kraal nativo foi transformado numa variedade humana de animal semidomesticado vestido com os trapos mais disparatados mais imundos mais disformes que o mais degenerado homem branco jamais usaria2 um ser indescritível sem autorespeito ou padrão um verdadeiro refugo humano A descrição lembra o retrato que Robert 2 Millin Mrs S G The South Africans 1926 192 Owen descreveu de seus próprios trabalhadores quando a eles se dirigiu em New Lanark dizendolhes na cara serena e objetivamente como um pesquisador social registraria os fatos por que eles haviam se transformado na ralé degradada que eram E a verdadeira causa da sua degradação não poderia ser mais habilmente descrita do que pelo fato deles viverem num vácuo cultural o termo usado por um antropólogo3 para descrever a causa do aviltamento cultural de algumas das tribos negras mais valentes da África sob a influência do contato com a civilização branca Suas habilidades haviam decaído as condições políticas e sociais da sua existência haviam sido destruídas eles estão morrendo de tédio segundo a famosa frase de Rivers ou desperdiçando suas vidas e substâncias na dissipação Enquanto sua própria cultura não mais lhes oferece quaisquer objetivos dignos de esforço ou sacrifício o esnobismo racial e o preconceito barram o caminho para sua participação adequada na cultura dos invasores brancos4 Substituamos a exclusão de cor pela exclusão social e emergirá as Duas Nações da década de 1840 sendo o cafre apropriadamente substituído pelo cambaleante morador da favela das novelas de Kingsley Mesmo aqueles que podem concordar inteiramente que a vida num vazio cultural não é vida parecem esperar que as necessidades econômicas preencham automaticamente aquele vazio e tornem a vida mais suportável sob quaisquer condições Esse pressuposto é contestado de forma contundente pelo resultado da pesquisa antropológica Os objetivos pelos quais os indivíduos irão trabalhar são determinados culturalmente e não são uma resposta do organismo a uma situação externa culturalmente indefinida como uma simples escassez de alimento diz a Dra Mead O processo pelo qual se converte um grupo de selvagens em mineiros de ouro ou tripulações de navios ou ele é simplesmente espoliado de todo incentivo para o esforço e abandonado a uma morte indolor ao lado de correntes ainda repletas de peixes pode parecer tão bizarro tão alheio à natureza da sociedade e seu funcionamento normal que pode parecer patológico e no entanto acrescenta ela é precisamente o que acontece com o povo em regra em meio a uma mudança externa violentamente introduzida ou pelo menos produzida externamente E conclui ela Este contato rude este desenraizamento de pessoas simples dos seus mores é demasiado freqüente para não merecer séria atenção por parte do historiador social 3 Goldenweiser A Anthropoly 1937 4 Goldenweiser A ibid 193 O historiador social porém não segue a sugestão Ele ainda se recusa a ver que a força elementar do contato cultural que está agora revolucionando o mundo colonial é a mesma que há um século criou as cenas funestas do capitalismo primitivo Um antropólogo5 chegou à conclusão geral A despeito de numerosas divergências existem no fundo as mesmas situações entre os povos exóticos de hoje que existiam entre nós há décadas ou séculos Os novos dispositivos técnicos o novo conhecimento as novas formas de riqueza e poder acentuaram a mobilidade social ie a migração de indivíduos o aumento e diminuição das famílias a diferenciação de grupos novas formas de liderança novos modelos de vida diferentes valorizações A mente penetrante de Thurnwald reconheceu que a catástrofe cultural da sociedade negra hoje é bastante análoga à de uma grande parte da sociedade branca nos primeiros dias do capitalismo Só o historiador social ainda perde este ponto de analogia Nada obscurece mais a nossa visão social do que o preconceito econômico A exploração tem sido colocada tão persistentemente à frente do problema colonial que este ponto exige uma atenção especial A exploração feita pelo homem branco num sentido obviamente humano tem sido perpetrada com tanta freqüência com tanta persistência e com tanta impiedade em relação aos povos atrasados do mundo que poderia aparecer apenas uma total insensibilidade não atribuirlhe um lugar de destaque em qualquer discussão sobre o problema colonial No entanto é precisamente essa ênfase na exploração que tende a ocultar da nossa perspectiva o tema ainda maior da degeneração cultural Se a exploração é definida em termos estritamente econômicos como uma insuficiência permanente na proporção da troca então podese duvidar se de fato existiu a exploração A catástrofe da comunidade nativa é um resultado direto da ruptura rápida e violenta das instituições básicas da vítima não parece relevante se a força é usada ou não no processo Essas instituições são dilaceradas pelo próprio fato de que uma economia de mercado é impingida a uma comunidade organizada de modo inteiramente diverso o trabalho e a terra se transformam em mercadorias o que mais uma vez é apenas a fórmula abreviada para a liquidação de toda e qualquer instituição cultural numa sociedade orgânica As alterações nos rendimentos e nas cifras 5 Thurnwald R C Black and White in East África The Fabric of a New Civilization 1935 194 populacionais são evidentemente incomensuráveis em tal processo Quem por exemplo poderia negar que um povo anteriormente livre tenha sido explorado arrastado para a escravidão embora seu padrão de vida em algum sentido artificial possa ter melhorado no país para o qual foi vendido se comparado ao que tinha na sua floresta nativa E no entanto nada seria alterado se imaginássemos que os nativos conquistados haviam sido libertos e não teriam sequer que pagar o preço excessivo dos algodões baratos a eles impingidos e que a sua inanição era causada simplesmente pela ruptura de suas instituições sociais Podemos citar o famoso exemplo da Índia As massas indianas não morriam de fome na segunda metade do século XIX porque eram exploradas pelo Lacanshire elas pereciam em grande número porque a comunidade aldeã indiana havia sido abalada É uma verdade indiscutível que isto ocorreu através das forças da competição econômica isto é o constante barateamento dos chaddar feitos à mão em função das mercadorias feitas à máquina Todavia isto prova o oposto da exploração econômica uma vez que o dumping significa o inverso da oneração A verdadeira fonte da penúria dos últimos cinqüenta anos foi a livre comercialização de cereais em conjunto com a baixa dos rendi mentos locais O fracasso nas colheitas é parte do quadro sem dúvida mas as áreas ameaçadas foram amparadas com a remessa de cereais através de ferrovias O problema porém era que o povo não podia comprar o trigo aos preços astronômicos que num mercado livre mas incompletamente organizado seriam a reação à escassez Em épocas anteriores havia pequenos depósitos locais para o abastecimento no caso de fracassarem as colheitas mas eles não foram conservados ou foram absorvidos pelo grande mercado Por esta razão a prevenção contra a fome assumia agora a forma de obras públicas que permitissem à população comprar a preços elevados As três ou quatro grandes fomes que dizimaram a Índia sob o governo britânico desde a rebelião não foram portanto conseqüência nem dos elementos nem da exploração mas simplesmente da nova organização do mercado de trabalho e da terra que desmoronou a antiga aldeia sem resolver realmente os seus problemas Enquanto sob o regime do feudalismo e da comunidade aldeã a noblesse oblige a solidariedade do clã e a regulamentação do mercado de trigo controlavam a fome sob a direção do mercado não se podia impedir que as pessoas morressem de fome segundo as regras do jogo O termo exploração descreve mal uma situação que se tornou realmente 195 grave apenas depois que se aboliu o impiedoso monopólio da Companhia das Índias Orientais e se introduziu o livre comércio na Índia Durante a época dos monopólios a situação se mantinha sob controle com a ajuda da organização arcaica do campo inclusive a livre distribuição do trigo enquanto sob uma troca livre e igual os indianos pereciam aos milhões A Índia pode ter sido beneficiada economicamente e certamente foi a longo prazo mas ela foi desorganizada socialmente e se tornou presa da miséria e da degradação Em alguns casos pelo menos o oposto da exploração se assim podemos dizer iniciou o contato cultural desintegrador A concessão territorial obrigatória feita em 1887 aos índios norteamericanos beneficiouos individualmente segundo a nossa tabela financeira de cálculo Entretanto a medida quase destruiu a raça na sua existência física o caso mais importante de degeneração cultural em registro O gênio moral de um John Collier redimiu a situação quase meio século mais tarde insistindo na necessidade de um retorno às possessões tribais hoje os índios norteamericanos pelo menos em alguns lugares têm novamente uma comunidade viva e não foi a melhoria econômica mas a restauração social que fez o milagre O choque de um contato cultural devastador foi registrado pelo nascimento patético da famosa Dança do Espectro versão da Pawnee Hand Game em 1890 mais ou menos exatamente na ocasião em que a melhoria das condições econômicas tornava anacrônica a cultura aborígine desses pelesvermelhas Além disso o fato de que nem mesmo um aumento de população o outro índice econômico precisa excluir uma catástrofe cultural é igualmente apoiado pela pesquisa antropológica As taxas naturais de aumento da população podem ser na verdade tanto um índice de vitalidade cultural como de degradação cultural O significado original da palavra proletário ligando fertilidade e mendicidade é uma expressão marcante dessa ambivalência O preconceito economista foi ao mesmo tempo a fonte da teoria da exploração cruel do capitalismo primitivo e do equívoco não menos cruel porém mais erudito que negou mais tarde a existência de uma catástrofe social A implicação significativa dessa última e mais recente interpretação da história foi a reabilitação da economia do laissez faire Se a economia liberal não causou qualquer desastre então o protecionismo que roubou ao mundo os benefícios dos mercados livres foi um crime desumano O próprio termo Revolução Industrial era encarado como se transmitisse uma idéia exagerada daquilo que foi na sua essência um vagaroso processo de mudança Nada mais aconteceu insistiam 196 esses eruditos do que o desdobramento gradual das forças do progresso tecnológico que transformaram as vidas das pessoas Muitos sofreram no decurso da mudança sem dúvida mas no seu todo a história foi a de um progresso contínuo Esse produto feliz foi resultado do funcionamento quase inconsciente das forças econômicas que executaram seu trabalho beneficente apesar da interferência de elementos impacientes que exageraram as dificuldades inevitáveis da época A inferência foi nada menos que a negação do perigo que ameaçava a sociedade a partir da nova economia Se a revisão da história da Revolução Industrial se ativesse aos fatos o movimento protecionista perderia toda a justificação objetiva e o laissezfaire estaria vingado A falácia materialista em relação à natureza da catástrofe social e cultural sustentaria assim a fábula de que todos os males da época ocorreram por termos abandonado o liberalismo econômico Resumindo não foram grupos ou classes únicas a fonte do assim chamado movimento coletivista embora o resultado tenha sido influenciado decisivamente pelo caráter dos interesses de classe envolvidos Em última instância o que fez as coisas acontecerem foram os interesses da sociedade como um todo embora sua defesa tenha recaído basicamente numa secçâo da população em preferência a outra Parece razoável agrupar nosso relato do movimento protetor não em torno de interesses de classe mas em torno das substâncias sociais ameaçadas pelo mercado Os pontos perigosos foram indicados pelas direções principais do ataque O mercado de trabalho competitivo atingiu o possuidor da força de trabalho isto é o homem O comércio livre internacional foi basicamente uma ameaça à maior indústria dependente da natureza isto é a agricultura O padrãoouro ameaçou as organizações produtivas que dependiam do movimento relativo de preços para o seu funcionamento Os mercados se desenvolveram em cada uma dessas áreas o que implicou uma ameaça latente para a sociedade em alguns dos aspectos mais vitais da sua existência Os mercados de trabalho terra e dinheiro são fáceis de distinguir não é tão fácil distinguir aquelas partes de uma cultura cujo núcleo é formado por seres humanos seus ambientes naturais e as organizações produtoras respectivamente O homem e a natureza são praticamente um na esfera cultural O aspecto de dinheiro da empresa produtiva penetra apenas em um interesse socialmente vital isto é a unidade e a coesão da nação Assim enquanto os mercados para as mercadori fictícias trabalho terra e dinheiro eram distintos e separados 197 ameaças à sociedade que eles envolviam nem sempre podiam ser estritamente separadas A despeito disso um esboço do desenvolvimento institucional da sociedade ocidental durante os críticos oitenta anos 18341914 pode referirse a cada um desses pontos ameaçadores em termos semelhantes A organização do mercado cresceu a ponto de se tornar um perigo e tanto no que concerne ao homem à natureza ou à organização produtiva grupos ou classes definidas pressionaram por proteção Em cada um dos casos o espaço de tempo considerável que decorreu entre o desenvolvimento inglês continental e norteamericano teve uma orientação importante e no entanto na virada do século o contramovimento protecionista havia criado uma situação análoga em todos os países ocidentais Sendo assim trataremos separadamente da defesa do homem da natureza e da organização produtiva um movimento de autopreservação do qual emergiu um tipo de sociedade mais intimamente entrelaçada e que no entanto estava ameaçada de total rompimento 198 14 MERCADO E HOMEM Separar o trabalho das outras atividades daa vida e sujeitálo às leis do mercado foi o mesmo que aniquilar todas as formas orgânicas da existência e substituíIas por um tipo diferente de organização uma organização atomista e individualista Tal esquema de destruição foi ainda mais eficiente com a aplicação do princípio da liberdade de contrato Na prática isto significava que as organizações nãocontratuais de parentesco vizinhança profissão e credo teriam que ser liquidadas pois elas exigiam a alienação do indivíduo e restringiam portanto sua liberdade Representar esse princípio como o da não interferência como os liberais econômicos se propunham a fazer era expressar simplesmente um preconceito arraigado em favor de uma espécie definida de interferência isto é que iria destruir as relações nãocontratuais entre indivíduos e impedir a sua reformulação espontânea Este resultado do estabelecimento de um mercado de trabalho é perfeitamente aparente nas regiões coloniais de hoje em dia Os nativos são forçados a ganhar a vida vendendo o seu trabalho Para atingir essa finalidade suas instituições tradicionais têm que ser destruídas e impedidas de se reformularem pois em regra o indivíduo numa sociedade primitiva não se vê ameaçado de inanição a menos que a comunidade como um todo também esteja numa situação semelhante Sob o sistema de terra kraal dos cafres por exemplo a miséria é impossível quem quer que precise de assistência pode recebêIa incondicionalmente1 1 Mair LP An African People in the Twentieth Century 1934 199 Nenhum Kwakiutl jamais correu o menor risco de ficar faminto2 Não existe a inanição em sociedades que vivem à margem da subsistência3 O princípio de independer da carência era conhecido também na comunidade aldeã hindu e podemos ainda acrescentar em quase todos os tipos de organização social até aproximadamente o início do século XVI na Europa quando as idéias modernas em relação aos pobres apresentadas pelo humanista Vives foram discutidas na Sorbonne É justamente a ausência da ameaça de inanição individual que torna a sociedade primitiva num certo sentido mais humana que a economia de mercado e ao mesmo tempo menos econômica De forma irônica a contribuição inicial do homem branco para o mundo do homem negro consistiu principalmente em acostumálo a sentir o aguilhão da fome Assim o colonizador pode decidir cortar árvores de frutapão a fim de criar uma escassez artificial de alimentos ou pode impor uma taxação sobre a cabana do nativo para forçá lo a permutar o seu trabalho Em ambos os casos o efeito é similar ao dos cercamentos da era Tudor com sua esteira de hordas errantes Um relatório da Liga das Nações mencionou com o devido horror o aparecimento recente daquela indescritível figura do cenário europeu do século XVI o homem sem dono na floresta africana4 No final da Idade Média ele só era encontrado nos interstícios da sociedade5 E no entanto ele foi o precursor do trabalhador nômade do século XIX 6 Ora o que o homem branco ainda pratica ocasionalmente em regiões remotas hoje em dia isto é a derrubada das estruturas sociais a fim de extrair delas o elemento do trabalho foi feito no século XVIII com as populações brancas por homens brancos com propósitos similares A visão grotesca do Estado de Hobbes um Leviatã humano cujo corpo imenso era formado por um número infinito de corpos humanos foi eclipsada pelo construto ricardiano do mercado de trabalho um fluxo de vidas humanas cujo abastecimento era regulado pela quantidade de alimentos à sua disposição Embora reconhecendo 2 Loeb EM The Distribution and Function of Money in Early Society Em Essays in Anthropology 1936 3 Herskovits MJ The Economic Life of Primitive Peoples 1940 4 Thurnwald RC op cit 5 Brinkmann C Das soziale System dês Kapitalismus Grundriss der Sozialökonomik 1924 6 Toynbee A Lectures on the Industrial Revolution 1887 p 98 200 que existia um padrão costumeiro abaixo do qual nenhum salário de trabalhador poderia diminuir considerouse também essa limitação como efetiva apenas no caso do trabalhador estar reduzido à escolha entre ficar sem alimento ou oferecer seu trabalho no mercado pelo preço que pudesse conseguir A propósito isto explica uma omissão dos economistas clássicos de outra forma inexplicável isto é porque somente a penalidade da inanição e não o atrativo dos ordenados altos era considerada capaz de criar um mercado de trabalho atuante Aqui também a experiência colonial confirmou a desses economistas Quanto mais elevado o salário menor era a atração que exercia sobre o nativo que diferente do homem branco não era compelido pelos seus padrões culturais a ganhar tanto dinheiro quanto lhe fosse possível A analogia era ainda mais mar cante pois também o trabalhador primitivo tinha horror à fábrica onde se sentia degradado e torturado como o nativo que muitas vezes se resigna a trabalhar à nossa maneira apenas quando é ameaçado de castigos corporais e até de mutilação física Os fabricantes de Lyon do século XVIII impunham salários baixos basicamente por razões sociais7 Somente um trabalhador exausto e oprimido argumentavam eles renunciaria à associação com seus camaradas para escapar à condição de servidão pessoal sob a qual ele se via obrigado a fazer aquilo que seu senhor dele exigia Assim como na Inglaterra foi a compulsâo legal e a servidão paroquial e no Continente os rigores de uma política de trabalho absolutista nas Américas primitivas foi o trabalho encomendado o prérequisito do trabalhador voluntário O estágio final porém só foi alcançado com a aplicação da penalidade da natureza a fome Para conseguilo foi necessário liquidar a sociedade orgânica que se recusava a permitir que o indivíduo passasse fome A proteção da sociedade no primeiro exemplo recai sobre os dominadores que podem impor sua vontade diretamente Entretanto os liberais econômicos adotam com muita facilidade a noção de que os dirigentes econômicos tendem a ser beneficentes enquanto o mesmo não ocorre com os dirigentes políticos Este não parece ser o pensamento de Adam Smith pois ele insistia para que um governo britânico direto na Índia substituísse a administração feita por uma companhia privilegiada Os dirigentes políticos argumentava ele teriam interesses paralelos aos dos dominados cuja riqueza avolumaria a sua receita pública 7 Heckscher EF op cit vol II p 168 201 enquanto os interesses do mercador eram naturalmente antagônicos aos dos seus clientes Por interesse e inclinação recaiu sobre os senhores de terra da Inglaterra a tarefa de proteger vidas do povo comum contra a investida da Revolução Industrial A Speenhamland foi um fosso cavado em defesa da organização rural tradicional quando a agitação da mudança avassalava o campo e transformava a agricultura incidentalmente numa indústria precária Em sua relutância natural de inclinarse às necessidades das cidades manufatureiras os proprietários rurais foram os primeiros a resistir naquela que provou ser a luta perdida de um século Sua resistência porém não foi em vão Durante várias gerações ela impediu a ruína e deu tempo para que houvesse um reajustamento quase completo Ela retardou o progresso econômico por um período crítico de quase quarenta anos e quando a reforma parlamentar de 1834 aboliu a Speenhamland os senhores de terra mudaram o foco da sua resistência para as leis fabris A Igreja e a herdade feudal agora agitavam o povo contra o proprietário do moinho cuja predominância tornaria irresistivel a grita por alimentos baratos e assim indiretamente ameaçava solapar os aluguéis e os dízimos Oastler por exemplo foi um homem da Igreja um Tory e um Protecionista8 mas era também um Humanista Assim eram também com misturas variadas desses ingredientes de socialismo conservador as outras grandes figuras do movimento fabril Sadler Southey e Lorde Shaftesbury Mas o pressentimento das perdas ameaçadoras pecuniárias que impelia o grosso de seus seguidores tinha realmente bons fundamentos os exportadores de Manchester logo começaram a clamar por salários mais baixos que significariam cereais mais baratos a abolição da Speenharnland e o desenvolvimento das fábricas realmente prepararam o caminho para o sucesso da agitação que envolveu as AntiCorn Laws em 1846 Entretanto por razões fortuitas a ruína da agricultura na Inglaterra foi retardada durante toda uma geração Enquanto isso Disraeli baseou o socialismo Tory num protesto contra a Poor Law Reform Act e os latifundiários conservadores da Inglaterra impuseram técnicas de vida radicalmente novas à sociedade industrial A Ten Hours Bill Lei das Dez Horas de 1847 que Karl Marx aplaudiu como a primeira vitória do socialismo foi obra de reacionários esclarecidos 8 Dicey A V op cit P 226 202 Os próprios trabalhadores não eram praticamente um fator nesse grande movimento cujo resultado falando figurativamente era perrnitirlhes sobreviver à Passagem Intermediária Eles tinham tão pouco a dizer na determinação de seu próprio destino como a carga negra dos navios de Hawkins E no entanto foi precisamente esta falta de participação ativa por parte da classe trabalhadora britânica na decisão do seu próprio destino que determinou o curso da história social inglesa e tornoua para melhor ou para pior tão diferente da do continente Existe um toque peculiar no que diz respeito aos incitamentos nãodirigidos às excitações e erros de uma classe nascente cuja verdadeira natureza a história já revelou há tempos Politicamente a classe trabalhadora britânica foi definida pela Parliamentary Reform Act de 1832 que recusoulhe o voto Economicamente pela Poor Law Reform Act de 1834 que excluiua da assistência social e separoua dos indigentes Durante algum tempo ainda a futura classe trabalhadora britânica estava em dúvida quanto a sua salvação se ela não estaria afinal de contas num retorno à existência rural e às condições do artesanato Nas duas décadas seguintes à Speenharnland seus esforços se concentraram em parar o livre uso da maquinaria quer reforçando as cláusulas de aprendizado do Statute of Artificers quer pela ação direta como no ludismo Essa atitude aparentemente atrasada prolongouse como uma corrente subterrânea durante o movimento owenita até o final da década de 1940 quando a Ten Hours Bill o eclipse do cartismo e o início da Idade de Ouro do capitalismo obliteraram a visão do passado Até então a classe trabalhadora britânica in statu nascendi era um enigma para si mesma e somente quando se acompanha com toda a compreensão suas agitações serni inconscientes é que se pode avaliar a imensidade da perda que a Inglaterra sofreu com a exclusão da classe trabalhadora de uma participação igualitária na vida nacional Quando O owenismo e o cartismo se consumiram a Inglaterra tornouse mais pobre naquela substância a partir da qual o ideal anglosaxão de uma sociedade livre poderia ter sido estruturado durante os séculos vindouros Mesmo se o movimento owenita tivesse se restringido apenas a atividades locais de pouca monta ele poderia terse tornado um monumento à imaginação criativa da raça Mesmo se o cartismo jamais tivesse ido além dos limites daquele núcleo que concebera a idéia de um feriado nacional para obter os direitos do povo ele poderia ter demonstrado que algumas pessoas ainda podiam sonhar seus próprios sonhos e tomavam a medida de uma sociedade que 203 havia esquecido a forma do homem Todavia este não foi o caso nem de um nem de outro O owenismo não foi a inspiração de uma seita insignificante nem o cartismo se restringiu a uma elite política ambos os movimentos incluíam centenas de milhares de profissionais e artesãos operários e trabalhadores e com seus inúmeros adeptos podem se classificar entre os maiores movimentos sociais da história moderna No entanto diferentes como eram semelhantes apenas na medida do seu fracasso eles serviram para provar como era inevitável desde o primeiro momento a necessidade de proteger o homem contra o mercado O movimento owenita não foi originalmente nem político nem da classe trabalhadora Ele representava os anseios do povo comum esmagado pelo surgimento da fábrica de descobrir uma forma de existência que tornasse o homem senhor da máquina Na sua essência ele visava àquilo que pode nos parecer como um desvio do capitalismo Uma fórmula como essa teria que ser um tanto equívoca sem dúvida uma vez que o papel organizador do capital e a natureza de um mercado autoregulável ainda eram desconhecidos Entretanto talvez ela expresse melhor o espírito de Owen que enfaticamente não era um inimigo da máquina Ele acreditava que o homem continuaria a ser o seu próprio patrão a despeito da máquina o princípio da cooperação ou sindicato resolveria o problema da máquina sem sacrificar nem a liberdade individual nem a solidariedade social nem a dignidade do homem ou a sua simpatia para com seus semelhantes A força do owenismo estava no fato da sua inspiração ser eminentemente prática porém seus métodos se baseavam numa apreciação do homem como um todo Embora os problemas fossem intrinsecamente os da vida cotidiana como a qualidade do alimento a habitação e a educação o nível dos salários a fuga ao desemprego a ajuda na doença e outros similares os temas envolvidos eram tão amplos como as forças morais para as quais apelavam A convicção de que a existência do homem poderia ser restaurada se fosse descoberto o método certo permitiu que as raízes do movimento penetrassem naquela camada profunda onde se forma a própria personalidade Raramente surgiu um movimento social menos intelectualizado com objetivo semelhante as convicções daqueles que nele se engajavam imbuíam de significado até mesmo as atividades mais aparentemente triviais de forma que não era necessário um credo organizado Na verdade a sua fé era profética pois insistia em métodos de reconstrução que transcendiam a economia de mercado 204 O owenismo foi uma religião da indústria cujo portador era a classe trabalhadora9 sua riqueza de formas e iniciativas não teve rival Ele foi praticamente o iniciador do movimento sindicalista moderno Sociedades cooperativas eram fundadas e se ocupavam principalmente das vendas a varejo a seus membros Não se tratava certamente de cooperativas de consumidores regulares mas de lojas sustentadas por elementos entusiastas determinados a devotar os lucros do empreendimento à continuidade dos planos owenitas preferindoas à organização das Villages of Cooperation Suas atividades eram tanto educacionais e propagandistas como comerciais seu objetivo era a criação de uma Nova Sociedade através de seus esforços conjuntos As Union Shops criadas pelos membros dos sindicatos profissionais eram mais da natureza de cooperativas de produtores e os artesãos desempregados podiam lá encontrar trabalho ou em caso de greves ganhar algum dinheiro ao invés do pagamento de greve No Labour Exchange owenita a idéia da loja cooperativa se desenvolveu numa instituição sui generis No coração do Exchange ou Bazar havia confiança na natureza complementar das profissões provendo as necessidades uns dos outros os artesãos poderiam se emancipar das altas e baixas do mercado era o que se pensava Mais tarde isto se fez acompanhar da utilização de notas de trabalho que tinham uma circulação considerável Um tal artifício pode nos parecer fantástico hoje em dia mas na época de Owen não só o caráter do trabalho assalariado como também das notas bancárias permanecia inexplorado O socialismo não era essencialmente diferente desses projetos e invenções que fervilhavam no movimento bentharnita Tanto a oposição rebelde quanto a respeitável classe média estavam numa atmosfera experimental O próprio Jeremy Bentham investiu no futurístico esquema educacional de Owen em New Lanark e apurou um dividendo As Sociedades Owenitas propriamente ditas eram associações ou clubes que se destinavam a apoiar os planos das Villages of Cooperation que já descrevemos em relação à assistência social aos pobres Esta foi a origem da cooperativa dos produtores agrícolas uma idéia que teve uma carreira longa e destacada A primeira organização nacional de produtores com objetivos sindicalistas foi a Operative Builders Union que tentou regulamentar diretamente o negócio das construções criando construções na escala mais extensa possível introduzindo 9 Cole GDH Robert Owen 1925 uma obra sobre a qual nos apoiamos decisivamente 205 uma moeda própria e exibindo os meios de realizar a grande associação para a emancipação das classes produtivas As cooperativas de produtores industriais do século XIX datam desse empreendimento Foi do Builders Union ou Guild e seu Parlamento que surgiu consolidado o ainda mais ambicioso Trades Union que durante um curto prazo abrangeu quase um milhão de trabalhadores e artesãos na sua frouxa federação de sindicatos profissionais e sociedades cooperativas Sua idéia era a revolta industrial por meios pacíficos o que não parecerá uma contradição se nos lembrarmos que no messiânico amanhecer do seu movimento a mera conscientização da sua missão parecia tornar irresistível as aspirações do povo trabalhador Os mártires de Tolpuddle pertenciam a uma filial rural dessa organização A propaganda a favor de uma legislação fabril foi levada a efeito pelas Regeneration Societies estas foram as pioneiras do movimento secularista embora mais tarde fossem fundadas sociedades éticas A idéia da resistência não violenta se desenvolveu plenamente no meio delas Como o saintsimonisrno na França o owenismo na Inglaterra mostrou todas as características de uma inspiração espiritual Entretanto enquanto SaintSimon trabalhava por um renascimento do Cristianismo Owen foi o primeiro adversário do Cristianismo entre os líderes da classe trabalhadora moderna As cooperativas de consumidores da GrãBretanha que encontraram imitadores em todo o mundo foram certamente a iniciativa mais eminentemente prática do owenismo O fato de ter perdido seu ímpeto ou têlo mantido apenas na esfera periférica do movimento de consumidores foi a maior derrota individual das forças espirituais na história da Inglaterra industrial Todavia um povo que após a degradação moral do período do Speenharnland ainda possuía a exuberância exigida por um esforço criador tão imaginativo e ininterrupto deve ter possuído um vigor intelectual e emocional quase ilimitado No owenismo com a sua consideração do homem como um todo ainda restava algo daquela herança medieval de vida corporativa que encontrou sua expressão na Builders Guild e no cenário rural do seu ideal social as Villages of Cooperation Embora tenha sido a fonte do socialismo moderno suas proposições não se baseavam no tema da propriedade que é o aspecto legal apenas do capitalismo Atingido o novo fenômeno da indústria como havia feito SaintSimon ele reconheceu o desafio da máquina Mas o traço característico do owenismo foi sua insistência na abordagem social ele se recusava a aceitar a divisão da sociedade em esferas econômica e política e em conseqüência rejeitava a ação 206 política A aceitação de uma esfera econômica separada teria implicado o reconhecimento do princípio do ganho e do lucro como a força organizadora da sociedade e isto Owen recusavase a fazer Seu gênio reconheceu que a incorporação da máquina só era possível numa nova sociedade O aspecto industrial das coisas para ele não se restringia ao econômico isto teria implicado uma visão de mercado da sociedade que ele rejeitava Em Lanark lhe havia ensinado que na vida do trabalhador o salário era apenas um entre muitos outros fatores como as circunvizinhanças natural e doméstica a qualidade e os preços das mercadorias a estabilidade do emprego e a segurança na posse da terra As fábricas de New Lanark como algumas outras firmas antes delas conservavam seus empregados na folha de pagamento mesmo quando não havia trabalho para eles Mas havia muito mais nesse ajuste A educação das crianças e dos adultos a provisão de lazer a dança e a música e a suposição geral de que uma moral elevada e padrões pessoais para velhos e jovens criavam a atmosfera na qual a população industrial como um todo atingia um novo status Milhares de pessoas de toda a Europa e até mesmo da América do Norte visitavam New Lanark como se ela fosse uma reserva do futuro na qual fora consumado o feito impossível de dirigir um negócio fabril bemsucedido com uma população humana E no entanto a firma de Owen pagava salários consideravelmente menores do que algumas cidades vizinhas Os lucros de New Lanark derivavam principalmente da grande produtividade do trabalho em menos horas em conseqüência de uma excelente organização e de trabalhadores repousados vantagens que compensavam o aumento dos salários reais incluídos em provisões generosas para uma vida decente Só esta última pode explicar os sentimentos de quase adulação que os trabalhadores tinham para com Owen Foi a partir de experiências como essas que ele extraiu a abordagem social isto é maiorqueeconômica do problema da indústria É mais um tributo à sua visão o fato de que a despeito dessa perspectiva compreensiva ele apreendeu a natureza incisiva dos fatos físicos concretos que dominavam a existência do trabalhador Seu senso religioso se revoltava contra o transcendentalismo prático de uma Hannah More e suas Cheap Repository Tracts Um deles exaltava o exemplo de uma moça mineira do Lancashire Ela fora levada para o poço na idade de nove anos para empurrar o carrinho junto com seu irmão dois anos mais novo10 Ela o seguia seu pai alegremente no poço de carvão 10 More H The Lancashire Colliery Girl maio de 1795 cf Hammond J L E B The Town Labourer 1917 p 230 207 enterrandose nas profundezas da terra e lá numa tenra idade sem usar seu sexo como desculpa ela acompanhava o trabalho dos mineiros uma raça de homens bastante rude mas muito útil para a comunidade O pai foi morto num acidente no poço diante dos filhos Ela então pediu emprego como criada mas havia um preconceito contra ela porque havia sido mineira e ela não conseguiu o emprego Felizmente através dessa reconfortante compensação que transforma as aflições em bênçãos seu caráter e paciência atraíram a atenção foram feitas indagações na mina e as recomendações foram tão elevadas que ela conseguiu o emprego Esta história conclui o folheto pode ensinar ao pobre que é raro ele se encontrar numa condição de vida tão baixa que o impeça de atingir algum grau de independência ao procurar esforçarse e que não pode existir uma situação tão indigna que impeça a prática de muitas virtudes nobres As irmãs More preferiam trabalhar entre operários famintos mas se recusavam a se interessar sequer pelos seus sofrimentos físicos Elas procuravam solucionar o problema físico do industrialismo simplesmente concedendo status e função aos trabalhadores do alto da sua magnanimidade Hannah More insistia que o pai da sua heroína era um membro útil da comunidade a situação da filha foi reconhecida pela compreensão dos seus patrões Hannah More acreditava que nada mais era preciso para o funcionamento de uma sociedade11 Owen afastouse de um Cristianismo que renunciara à tarefa de dominar o mundo do homem e preferia exaltar o status e a função imaginários da desgraçada heroína de Hannah More em vez de enfrentar a terrível revelação que transcendia o Novo Testamento a condição do homem numa sociedade complexa Ninguém pode duvidar da sinceridade que inspirava a convicção de Hannah More de que quanto mais rapidamente o pobre admitisse a sua condição de degradação mais facilmente ele se voltaria para o consolo do céu o único em que ela confiava tanto para a salvação do pobre como para o perfeito funcionamento de uma sociedade de mercado na qual ela acreditava firmemente Mas esses cascos vazios de Cristianismo nos quais vegetava a vida interior dos mais generosos representantes das classes superiores faziam um contraste deficiente com a fé criativa daquela religião de diligência em cujo espírito o povo comum da Inglaterra tentava redimir a sociedade O capitalismo porém ainda tinha um futuro à sua frente 11 Cf Drucker PF The End of Economic Man 1939 p 93 nos English Evangelicalls e The Future of Industrial Man 1942 pp 21 e 194 sobre statutus e função 208 O movimento cartista apelava para um conjunto de impulsos tão diferentes que sua emergência quase poderia ser predita após o fracasso prático do owenismo e de suas iniciativas prematuras Ele foi um esforço puramente político que tentou ganhar influência no governo atravé de canais constitucionais Sua tentativa de pressionar o governo mantinha a linha tradicional do movimento da reforma que havia garantido o voto para as classes médias Os Six Points of the Charter Seis Pontos da Carta Magna exigiam um sufrágio popular efetivo A rigidez intransigente com que o Parlamento reformulado rejeitou esta extensão do voto durante um terço de século o uso da força em razão do apoio da massa em favor da Carta Magna a contrariedade dos liberais da década de 1840 em relação à idéia de um governo popular tudo isso prova que o conceito de democracia era estranho às classes médias inglesas Somente depois que a classe trabalhadora aceitou os princípios de uma economia capitalista e os sindicatos profissionais fizeram do pleno funcionamento da indústria a sua preocupação máxima foi que as classes médias concederam o voto aos trabalhadores mais bem situados Isto só ocorreu porém muito tempo depois que o movimento cartista declinara e havia a certeza de que os trabalhadores não tentariam usar esse privilégio a serviço de quaisquer idéias próprias Do ponto de vista da difusão de formas de existência do mercado isto encontra justificativa pois ajudou a superar os obstáculos apresentados pelas formas subservientes de vida orgânica e tradicional entre o povo trabalhador Nada foi feito porém em relação à tarefa totalmente diversa de restabelecer o povo comum cujas vidas haviam sido desenraizadas na Revolução Industrial e introduzilo no desdobramento de uma cultura nacional comum Não havia mais como recuperar a posi ção pois o investimento que fizeram com o voto ocorrera justamente na ocasião em que já fora infligido um dano irreparável à capacidade do povo de participar da liderança As conclusões dominantes haviam cometido o erro de ampliar o princípio da inflexível dominação de classe para abarcar um tipo de civilização que exigia a unidade cultural e educacional da comunidade para não ser vítima de influências degenerativas O movimento cartista era político e portanto mais fácil de compreender do que o owenismo Todavia é difícil apreender a intensidade emocional ou até mesmo a amplitude desse movimento sem se fazer alguma referência imaginativa à época As décadas de 1789 e 1830 fizeram da revolução uma instituição regular na Europa Em 1848 a data do levante de Paris já havia sido prevista em Berlim e 209 Londres com uma precisão muito mais comum em relação à abertura de uma feira do que de uma sublevação social e revoluções de reforço estouraram prontamente em Berlim Viena Budapeste e algumas cidades da Itália Em Londres também havia grande tensão pois todos inclusive os próprios cartistas esperavam uma ação violenta para compelir o Parlamento a conceder o voto ao povo Menos de 15 dos homens adultos tinham direito ao voto Em toda a história da Inglaterra jamais ocorreu semelhante concentração de forças de prontidão para a defesa da lei e da ordem do que em 12 de abril de 1848 Nesse dia centenas de milhares de cidadãos foram investidos de autoridade policial especial para enfrentar os cartistas A revolução de Paris porém chegou tarde demais para assegurar a vitória de um movimento popular na Inglaterra Nessa ocasião já se dissipava o espírito de revolta acirrado pela Poor Law Reform Act e pelo sofrimento causado pela fome da década de 1840 A onda do comércio ascendente incrementava o emprego e o capitalismo começava a cumprir a sua parte Os cartistas se dispersaram pacificamente O caso deles não foi sequer considerado pelo Parlamento a não ser em data posterior quando sua proposta foi derrotada por uma maioria de cinco a um na Câmara dos Comuns Foi em vão que recolheram milhões de assinaturas foi em ão que os cartistas se comportaram como cidadãos obedientes à lei Seu movimento foi ridicularizado pelos vencedores a ponto de se extinguir Assim terminou o maior esforço político do povo da glaterra para fazer desse país uma democracia popular Um ou dois os mais tarde o cartismo já estava praticamente esquecido Revolução Industrial chegou ao continente meio século mais tarde Lá a classe trabalhadora não havia sido forçada a abandonar a terra por um movimento de cercamento Ao contrário foi o atrativo dos salários os e da vida urbana que levaram o trabalhador agrícola semiservil a donar a pequena propriedade e migrar para a cidade onde ele se associou à classe média baixa tradicional e teve oportunidade de adquirir uma tonalidade urbana Longe de se sentir rebaixado ele se sentiu levado pelo seu novo ambiente É fora de dúvida que as condições de radia eram abomináveis e o alcoolismo e a prostituição imperaram tre os estratos mais baixos dos trabalhadores citadinos até o início do século XX Todavia não havia comparação entre a catástrofe moral e tural do foreiro ou posseiro inglês de ancestralidade decente que se riu afundar sem defesa no lamaçal social e físico das favelas na vizinhança de alguma fábrica e os eslovacos ou o trabalhador agrícola da 210 Pomerânia que se transformava quase que da noite para o dia de peão morador de estábulo em operário industrial de uma metrópole moderna Um trabalhador irlandês ou galês ou um montanhês da Escócia podia passar por uma experiência semelhante vadiando pelas ruas de Manchester ou Liverpool mas o filho de um pequeno proprietário rural inglês ou foreiro despedido certamente não sentia o seu status mais elevado Não foi apenas o lábrego camponês do continente recentemente emancipado que tivera a oportunidade de ascender para as classes médias baixas dos profissionais e comerciantes com suas antigas tradições culturais Até a burguesia socialmente muito acima dele politicamente se situava no mesmo nível tão afastada das fileiras da classe dominante como o próprio camponês As forças da ascendente classe média e da classe trabalhadora se aliavam estreitamente contra a aristocracia feudal e o episcopado romano A intelligentsia principalmente os estudantes universitários cimentava a união entre essas duas classes no seu ataque comum contra o absolutismo e o privilégio Na Inglaterra as classes médias tanto os proprietários rurais e os mercadores do século XVII como os fazendeiros e os comerciantes do século XIX eram fortes o bastante para reivindicar sozinhos os seus direitos e não procuraram o apoio dos trabalhadores nem mesmo durante o seu esforço quase revolucionário de 1832 Além disso a aristocracia inglesa procurava assimilar os recémchegados mais ricos alargando os níveis mais altos da hierarquia social enquanto no continente a aristocracia ainda semifeudal não permitia o casamento de seus pares com a burguesia e a ausência da instituição da primogenitura isolavaa hermeticamente das outras classes Assim cada passo bemsucedido em direção à igualdade de direitos e das liberdades beneficiava tanto as classes médias continentais como as classes trabalhadoras Desde 1830 ou talvez desde 1789 fazia parte da tradição continental contar com a ajuda da classe trabalhadora nas batalhas da burguesia contra o feudalismo ainda que como diz o ditado a classe média lhe roubasse depois os frutos da vitória No entanto quer a classe trabalhadora ganhasse ou perdesse sua experiência se fortalecia e seus objetivos se elevavam a um nível político É isto o que significa adquirir uma consciência de classe As ideologias marxistas cristalizaram a perspectiva do trabalhador urbano a quem as circustâncias ensinaram a usar sua força industrial e política como arma de uma política mais ambiciosa Enquanto os trabalhadores britânicos adquiriam uma experiência incomparável nos problemas pessoais e sociais do sindicalismo inclusive as táticas e as estratégias da ação industrial e deixavam a política 211 nacional para os seus superiores o trabalhador da Europa Central tornvase um socialista político acostumado a lidar com os problemas do estado é verdade que basicamente aqueles que visavam seus prórios interesses tais como leis fabris e legislação social Se decorreu um espaço de tempo de cerca de meio século entre a industrialização da GrãBretanha e a do continente transcorreu um espaço ainda maior na organização da unidade nacional A Itália e a Alemanha só chegaram ao estágio da unificação durante a segunda metade do século XIX unificação essa que a Inglaterra já alcançara séculos antes e os estados menores da Europa Oriental só alcançaram ainda mais tarde As classes trabalhadoras desempenharam um papel vital nesse processo de construção do estado o que fortaleceu ainda mais a sua experiência política Numa era industrial um processo como esse não podia deixar de compreender também uma política social Bismarck procurou a unificação do Segundo Reich introduzindo um esquema de legislação social que marcou época A unidade italiana foi ativada pela nacionalização das ferrovias Na monarquia austrohúngara esse conjunto de raças e povos a própria coroa apelou repetidas vezes para o apoio das classes trabalhadoras na tarefa de realizar a centralização e a unidade imperial Assim através da sua influência na legislação os partidos socialistas e os sindicatos profissionais encontraram muitas aberturas para atender aos interesses do trabalhador industrial também nessa esfera mais ampla As prevenções materialistas toldaram os contornos do problema da classe trabalhadora Os autores britânicos achavam difícil compreender a terrível impressão que as condições capitalistas primitivas no Lancashire causavam aos observadores continentais Eles apontavam para os padrões de vida ainda mais baixos de muitos artesãos da Europa Central nas indústrias têxteis cujas condições de trabalho eram talvez tão ruins como a de seus camaradas ingleses Entretanto tal comparação obscureceu um ponto saliente precisamente aquele que foi a ascensão no status social e político do trabalhador no continente em contraste com a queda nesse status ocorrida na Inglaterra O trabalhador continental não havia sofrido a pauperização degradante da Speenharnland e nem havia na sua experiência qualquer paralelo com a provação arrasadora da New Poor Law Ele mudara ou se elevara do seu status de servo feudal para a condição de operário fabril e logo depois e com participação política para a de operário sindicalizado Assim ele escapou à catástrofe cultural que seguiu na esteira da Revolução Industrial na Inglaterra Além disso o continente foi industrializado 212 numa época em que já se tornara possível o ajuste às novas técnicas produtivas graças quase que exclusivamente à imitação dos métodos ingleses de proteção social12 O trabalhador continental não precisava tanto de proteção contra o impacto da Revolução Industrial num sentido social nunca ocorreu semelhante coisa no continente mas sim contra a ação normal das condições fabris e do mercado de trabalho Isto ele conseguiu principalmente com a ajuda da legislação enquanto seus camaradas britânicos confiavam mais na associação voluntária sindicatos profissionais e seu poder de monopolizar o trabalho Relativamente o seguro social chegou muito mais cedo ao continente do que à Inglaterra A diferença se explica através da inclinação política continental pela concessão do voto às massas trabalhadoras do continente em época comparativamente anterior Embora a diferença entre métodos de proteção compulsório e voluntário legislação versus sindicalismo possa ser facilmente exagerada do ponto de vista econômico do ponto de vista político as suas conseqüências foram amplas No continente os sindicatos profissionais foram uma criação do partido político da classe trabalhadora na Inglaterra o partido político foi uma criação dos sindicatos profissionais Enquanto no continente o sindicalismo se tornou mais ou menos socialista na Inglaterra até mesmo o socialismo político permaneceu essencialmente sindicalista Assim enquanto na Inglaterra o sufrágio universal tendeu a aumentar a unidade nacional no continente ele teve algumas vezes o efeito oposto Foi no continente e não na Inglaterra que se tornaram realidade os pressentimentos de Pitt e Peel de Tocqueville e Macaulay de que um governo popular envolveria uma ameaça para o sistema econômico Do ponto de vista econômico os métodos de proteção social ingleses e continentais levaram a resultados quase idênticos Eles atingiram aquilo a que se propunham a ruptura do mercado para aquele fator de produção conhecido como força de trabalho Um tal mercado só atenderia a seus propósitos se os salários fossem paralelos aos preços Em termos humanos um tal postulado implicava uma extrema instabilidade de vencimentos para o trabalhador a ausência completa de padrões profissionais e a facilidade abjeta de ser impelido e empurrado indiscriminadamente urna completa dependência às fantasias do mercado 12 Knowles L The Industrial and Commercial Revolution in Great Britain During the 19th Century 1926 213 Mises argumentou com razão que se os trabalhadores não agissem como sindicalistas profissionais mas reduzissem suas exigências e mudassem suas localizações e ocupações de acordo com os requisitos do mercado de trabalho eles poderiam eventualmente encontrar trabalho Isto resume a situação vigente sob um sistema baseado no postulado do caráter de mercadoria do trabalho Não cabe à mercadoria decidir onde será oferecida à venda para que finalidade será usada a que preço serlhe á permitido trocar de mãos e de que maneira ela deve ser consumida ou destruída Não ocorreu a ninguém escreveu esse liberal convicto que a falta de salários seria um termo melhor que a falta de emprego porque o que falta à pessoa desempregada não é o trabalho mas a remuneração do trabalho Mises estava certo embora não houvesse qualquer originalidade na sua alegação 150 anos antes dele dizia o bispo Whately Quando o homem pede trabalho ele não está pedindo o trabalho mas o salário Falando tecnicamente é verdade que o desemprego nos países capitalistas se deve ao fato de que tanto a política do governo como a dos sindicatos profissionais objetiva manter um nível de salários que não combina com a produtividade do trabalho existente Como poderia haver desemprego perguntava Mises a não ser pelo fato de que os trabalhadores não querem trabalhar pelo salário que podem obter num mercado de trabalho para esse trabalho particular que são capazes e desejam executar Isto esclarece o que significa realmente a insistência dos patrões em favor da mobilidade da mãodeobra e da flexibilidade dos salários precisamente aquilo que circunscrevemos acima como um mercado no qual o trabalho humano é uma mercadoria O objetivo natural de toda a proteção social era destruir tal instituição e tornar impossível a sua existência Com efeito só se poderia permitir que o mercado de trabalho conservasse a sua função principal desde que os salários e as condições de trabalho os padrões e as regulamentações pudessem resguardar o caráter humano da suposta mercadoria o trabalho Argumentar que a legislação social as leis fabris o seguro desemprego e acima de tudo os sindicatos profissionais não interferiram com a mobilidade da mãodeobra e a flexibilidade dos salários como ocorre algumas vezes é deixar implícito que essas instituições falharam redondamente em seu propósito que foi exatamente interferir com as leis da oferta e da procura em relação ao trabalho humano afastandoo da órbita do mercado 214 15 MERCADO E NATUREZA Aquilo que chamamos terra é um elemento da natureza inexplicavelmente entrelaçado com as instituições do homem IsoláIa e com ela formar um mercado foi talvez o empreendimento mais fantástico dos nossos ancestrais Tradicionalmente a terra e o trabalho não são separados o trabalho é parte da vida a terra continua sendo parte da natureza a vida e a natureza formam um todo articulado A terra se liga assim às organizações de parentesco vizinhança profissão e credo como a tribo e o templo a aldeia a guilda e a igreja Por outro lado Um Grande Mercado é uma combinação de vida econômica que inclui mercados para os fatores da produção Uma vez que esses fatores não se distingam dos elementos das instituições humanas homem e natureza podese ver claramente que a economia de mercado envolve uma sociedade cujas instituições estão subordinadas às exigências do mecanismo de mercado O pressuposto é tão utópico em relação à terra como em relação ao trabalho A função econômica é apenas uma entre as muitas funções vitais da terra Esta dá estabilidade à vida do homem é o local da sua habitação é a condição da sua segurança física é a paisagem e as estações do ano Imaginar a vida do homem sem a terra é o mesmo que imaginálo nascendo sem mãos e pés E no entanto separar a terra homem e organizar a sociedade de forma tal a satisfazer as exigência de um mercado imobiliário foi parte vital do conceito utópico de uma economia de mercado Mais uma vez é na área da colonização moderna que se tor manifesto o verdadeiro significado de um tal empreendimento É irrelevante 215 às vezes se o colonizador precisa da terra em função das riquezas nela contidas ou se ele deseja obrigar os nativos a produzir um excedente de alimentos e matériasprimas E nem faz muita diferença se o nativo trabalha sob a supervisão direta do colonizador ou apenas coagido por uma compulsão indireta o fato é que qualquer que seja o caso o sistema social e cultural da vida nativa tem que ser arrasado antes de mais nada Existe uma estreita analogia entre a situação colonial de hoje em dia e a da Europa Ocidental de um ou dois séculos passados A mobilização da terra que pode ter sido comprimida em alguns poucos anos ou décadas nas regiões exóticas pode ter levado o mesmo número de séculos na Europa Ocidental O desafio se originou do crescimento de outras formas do capitalismo além das puramente comerciais Com os Tudors na Inglaterra surgiu o capitalismo agrícola e sua necessidade de um tratamento individualizado para a terra inclusive as conversões e os cercamentos Já no início do século XVIII surgiu o capitalismo industrial que tanto na França como na Inglaterra foi basicamente rural e precisava de locais para seus moinhos e o alojamento dos trabalhadores Mais poderosa ainda embora afetasse mais o uso da terra do que a sua propriedade foi a ascendência das cidades industriais com sua exigência praticamente ilimitada de alimentos e matériasprimas durante o século XIX Superficialmente havia pouca semelhança nas respostas a esses desafios e no entanto eles foram estágios na subordinação da superfície do planeta às exigências de uma sociedade industrial O primeiro estágio foi a comercialização do solo mobilizando o rendimento feudal da terra O segundo foi o incremento da produção de alimentos e de matériasprimas orgânicas para atender às exigências em escala nacional de uma produção industrial em rápido crescimento O terceiro foi estender esse sistema de produção excedente aos territórios de alémmar e coloniais Com esse último passo a terra e sua produção se inseriram finalmente no esquema de um mercado autoregulável A comercialização do solo foi apenas um outro nome para a liquidação do feudalismo que se iniciou nos centros urbanos ocidentais inclusive na Inglaterra no século XIV e terminou cerca de quinhentos anos mais tarde no decurso das revoluções européias quando foram abolidos os remanescentes da servidão feudal Tirar o homem da terra significava reduzir o corpo econômico a seus elementos de forma que cada elemento pudesse inserirse naquela parte do sistema onde fosse 216 mais útil O novo sistema se organizou de início lado a lado com o antigo que ele tentou assimilar e absorver através da manutenção do controle daquela terra ainda ligada a laços précapitalistas O seqüestro feudal da terra foi abolido O objetivo era a eliminação de todas as reivindicações por parte das organizações de vizinhança ou de parentesco principalmente as da viril estirpe aristocrática assim como as da Igreja reivindicações que isentavam a terra da comercialização ou da hipoteca1 Parte desse objetivo foi atingido pela força individual e a violência parte por revoluções do alto ou de baixo parte pela guerra e a conquista parte pela ação legislativa parte por pressão administrativa parte pela ação espontânea de pessoas privadas em pequena escala ao longo de muito tempo O fato desse transtorno ser rapidamente absorvido ou causar um ferimento aberto no corpo social dependeu basicamente das medidas tomadas para regular o processo Os próprios governos introduziram fatores poderosos de mudança e ajustamento A secularização das terras da Igreja por exemplo foi um dos fundamentos do estado moderno até a época do Risorgimento italiano e bem a propósito ele foi um dos meios principais da transferência ordenada da terra para as mãos de indivíduos privados Os maiores passos isolados foram dados pela Revolução Francesa e pelas reformas benthamitas das décadas de 1830 e 1840 A condição mais favorável para a prosperidade da agricultura escreveu Bentham aparece quando não há entraves doações inalienáveis terras comuns direitos de redenção dízimos Uma tal liberdade no tratamento da propriedade especialmente a propriedade da terra era parte essencial da concepção benthamita de liberdade individual Ampliar essa liberdade de qualquer maneira foi o objetivo e o resultado da legislação do tipo dos Prescriptions Acts dos Inheritance Act Fines and Recoveries Act Real Property Act do amplo Enclosure Act de 1801 e seus sucessores2 assim como os Copyhold Acts de 1841 até 1926 Na França e em grande parte do continente o Code Napoléon instituiu formas de propriedade para a classe média transformando a terra em bem comerciável e tornando a hipoteca um contrato civil privado O segundo passo que superou o primeiro foi a subordinação da terra às necessidades de uma população urbana em rápida expansão Embora o solo não possa ser mobilizado fisicamente a sua produção 1 Brinkmann C Das soziale System dês Kapitalismus Grundriss der Sozialökonomik 1924 2 Dicey A V op citp 226 217 pode se os meios de transporte e a lei permitem Assim a mobilidade dos bens compensa de alguma forma a falta de mobilidade interregional dos fatores ou o que é a mesma coisa o comércio atenua as desvantagens da distribuição geográfica inconveniente dos recursos produtivos3 Uma noção como essa era totalmente estranha à perspectiva tradicional Nem na antiguidade nem no princípio da Idade Média e isto deve ser afirmado enfaticamente eram regularmente comprados e vendidos os bens da vida cotidiana4 Suponhase que os excedentes de cereais aprovisionariam a vizinhança especialmente a cidade local e até o século XV os mercados de trigo tinham uma organização estritamente local Todavia o crescimento das cidades induziu os senhores de terra a produzir basicamente para a venda no mercado e na Inglaterra o crescimento das metrópoles compeliu as autoridades a abrandar as restrições sobre o comércio do trigo e permitirlhe tornarse regional embora nunca nacional A aglomeração das populações nas cidades industriais na segunda metade do século XVIII mudou completamente a situação primeiro em escala nacional depois em escala mundial Efetuar essa transformação foi o verdadeiro significado do livre comércio A mobilização do produto da terra se estendeu do campo vizinho para as regiões tropical e subtropical a divisão do trabalho industrialagrícola foi aplicada ao planeta O resultado foi que os povos de zonas distantes foram engolfados pelo turbilhão da mudança cujas origens eram obscuras para eles enquanto as nações européias se tornavam dependentes de uma integração ainda não garantida na vida da humanidade para as suas atividades cotidianas Com o livre comércio as novas e tremendas casualidades da interdependência planetária ganharam corpo O escopo da defesa social contra o deslocamento total foi tão amplo quanto a frente do ataque Embora a lei comum e a legislação apressassem a mudança em certas ocasiões elas a atrasaram em outras Todavia a lei comum e a lei estatutária não atuavam necessariamente na mesma direção em qualquer tempo dado 3 Ohlin B Interregional and International Trade 1935 p 42 4 Bücher K Entstehung der Volkwirtschaft 1904 Cf também Penrose E F Population Theories and their Application 1934 que cita Longfield 1834 como a primeira menção da idéia de que os movimentos das mercadorias podem ser vistos como substitutos para movimentos dos fatores de produção 218 A lei comum desempenhou um papel eminentemente positivo no advento do mercado de trabalho a teoria do trabalho como mercadoria foi apresentada em primeiro lugar e enfaticamente não por economistas mas por advogados Também no caso das combinações de trabalho e da lei de conspiração a lei comum favoreceu um mercado livre de trabalho embora isto significasse restringir a liberdade de associação dos trabalhadores organizados No que diz respeito à terra porém a lei comum abandonou o seu papel de encorajadora da mudança opondose a ela Durante os séculos XVI e XVII era mais freqüente a lei comum insistir no direito do proprietário de melhorar a sua terra em seu proveito mesmo que isto implicasse um grave deslocamento de habitações e emprego Como sabemos no continente esse processo de mobilização estava sob a jurisdição da lei romana enquanto na Inglaterra a lei comum se fez valer e conseguiu diminuir o abismo entre os direitos restritos da propriedade medieval e da propriedade individual moderna sem sacrificar o princípio da lei jurídica vital para a liberdade constitucional Por outro lado desde o século XVIII a lei comum da terra atuava como preservadora do passado em face da legislação modernizadora Os benthamitas porém acabaram conseguindo o seu intento e entre 1830 e 1860 a liberdade de contrato foi estendida à terra Essa po ero tendência só se inverteu na década de 1870 quando a legislação alterou radicalmente o seu curso Havia começado o período coletivista A inércia da lei comum foi deliberadamente acentuada por estatutos expressamente votados para proteger as habitações e as ocupações das classes rurais contra os efeitos da liberdade de contrato Desenvolveuse um amplo esforço para assegurar algum grau de higiene e salubridade na moradia dos pobres fornecerlhes loteamentos concederlhes a oportunidade de fugir das favelas e respirar o ar fresco da natureza o parque dos cavalheiros Infelizes irlandeses e favelados londrinos eram salvos do guante das leis de mercado através de atos legislativos destinados a proteger suas habitações contra o monstro o progresso No continente foi principalmente a lei estatutária e a ação administrativa que salvaram o rendeiro o camponês o trabalhador agrícola dos efeitos mais violentos da urbanização Prussianos conservadores como Rodbertus cujo socialismo Junker influenciou Marx eram irmãos de sangue dos democratas Tory da Inglaterra Surgiu assim o problema da proteção para as populações agrícolas de países e continentes inteiros O comércio livre internacional sem barreiras deveria necessariamente eliminar organismos cada vez mais 219 compactos de produtores agrícolas5 Esse processo inevitável de destruição se agravava ainda mais com a descontinuidade inerente ao desenvolvimento dos meios de transporte modernos demasiado dispendiosos para se estenderem às novas regiões do planeta a menos que a recompensa fosse bastante alta Realizados os grandes investimentos a construção de navios a vapor e ferrovias continentes inteiros se abriam e uma avalanche de cereais invadiu a infeliz Europa Isto contrariava o prognóstico clássico Ricardo transformara num axioma que a terra mais fértil se consolidaria primeiro Numa ironia espetacular as ferrovias encontraram terras mais férteis nas antípodas A Europa entral temendo a destruição total da sua sociedade rural se viu forçada a proteger o seu campesinato introduzindo leis do trigo Entretanto se os estados organizados da Europa podiam se proteger contra a repercussão do comércio livre internacional o mesmo não ocorria com os povos coloniais politicamente não organizados A revolta contra o imperialismo foi principalmente uma tentativa dos povos exóticos de alcançar o status político necessário para protegêIos das distorções sociais causadas pelas políticas comerciais européias A proteção de que o homem branco podia assegurarse com facilidade pelo status soberano de suas comunidades estava fora do alcance do homem de cor enquanto lhe faltasse o prérequisito o governo político As classes comerciais patrocinavam a exigência de mobilização da terra Cobden deixou estarrecidos os senhores rurais da Inglaterra com sua descoberta de que cultivar a terra era um negócio e aqueles que estavam falidos deveriam abandonáIa As classes trabalhadoras foram conquistadas pelo livre comércio quando se tornou aparente que ele tornava o alimento mais barato Os sindicatos profissionais se tornaram os bastiões do antiagrarianismo e o socialismo revolucionário estigmatizou o campesinato do mundo como massa indiscrirninada de reacionários A divisão internacional do trabalho foi um credo progressista sem dúvida e seus adversários eram recrutados muitas vezes entre aqueles cujo julgamento já estava viciado por interesses investidos ou por falta de inteligência natural As poucas mentes independentes e desinteressadas que descobriram as falácias do comércio livre irrestrito eram em número demasiado pequeno para causar qualquer impacto 5 Borkenau F The Totalitarian Enemy 1939 capítulo Towards Collectivism 220 Todavia as suas conseqüências não foram menos reais pelo fato de não terem sido reconhecidos conscientemente Com efeito a grande influência exerci da pelos interesses fundiários na Europa Ocidental e a sobrevivência de formas de vida feudal na Europa Central e Oriental durante o século XIX têm uma explicação cabal na função protetora vital dessas forças ao retardarem a mobilização da terra A questão surgia sempre o que permitiu à aristocracia feudal do continente manter sua influência num estado de classe média quando já havia perdido as funções militar jurídica e administrativa às quais deviam a sua ascendência A teoria das sobrevivências aparecia às vezes corno explicação mercê da qual instituições sem função ou certas características podem continuar a existir em virtude da inércia Todavia seria mais correto dizer que nenhuma instituição jamais sobrevive à sua função quando parece fazê lo é porque ela atende a alguma outra função ou funções que não precisam incluir a original Assim o feudalismo e o conservadorismo fundiário mantiveram a sua força enquanto serviram um propósito que por acaso foi o de restringir os efeitos desastrosos da mobilização da terra Nessa ocasião os adeptos do livre comércio já haviam esquecido que a terra era parte do território do país e que o caráter territorial de soberania não era apenas um resultado de associações sentimentais porém de fatos concretos inclusive fatos econômicos Em contraste com os povos nômades o cultivador se incumbe de aperfeiçoamentos determinados para um lugar particular Sem esses aperfeiçoamentos a vida humana continuaria a ser elementar e pouco diferente da dos animais E quão grande foi o papel desempenhado por essas benfeitorias na história humana São elas as terras limpas e cultivadas as casas e outras construções os meios de comunicação a fábrica multiforme necessária à produção inclusive a indústria e a mineração todos os aperfeiçoamentos permanentes e irremovíveis que ligam urna comunidade humana à localidade em que se situa Eles não podem ser improvisados têm que ser construídos gradualmente por gerações de esforço paciente e a comunidade não pode se permitir sacrificáIos e começar novamente em outro lugar Daí o caráter territorial da soberania que impregna nossas concepções políticas6 Durante um século essas verdades óbvias foram ridicularizadas O argumento econômico podia se ampliar facilmente de forma a englobar as condições de segurança e estabilidade ligadas à integridade 6 Hawtrey RG The Economic Problem 1933 221 do solo e dos seus recursos o vigor e a perseverança da população a abundância de alimentos a quantidade e o caráter dos materiais de defesa até mesmo o clima do país que podia sofrer com o desnudamento das florestas as erosões e as dunas tudo aquilo que em última análise depende do fator terra embora nenhuma das quais responda ao mecanismo de oferta e procura do mercado Dado um sistema inteiramente dependente das funções do mercado para a defesa das suas necessidades existenciais a confiança voltarseá naturalmente para aquelas forças fora do sistema de mercado capazes de proteger os interesses comuns ameaçados por aquele sistema Essa perspectiva combina com a apreciação que fazemos das verdadeiras fontes de influência da classe ao invés de tentar explicar os acontecimentos que ocorrem contrariamente à tendência geral da época através da influência inexplicável das classes reacionárias preferimos explicar a influência de tais classes pelo fato de que elas embora casualmente apóiam os acontecimentos só aparentemente contrários ao interesse geral da comunidade O fato dos seus próprios interesses serem quase sempre bem atendidos por uma tal política apenas oferece mais uma ilustração da verdade do fato de que as classes conseguem se aproveitar desproporcionalmente daqueles mesmos serviços que parecem prestar à comunidade como um todo A Speenhamland aparece como exemplo O proprietário rural que dominava a aldeia descobriu uma forma de diminuir a alta dos salários rurais e a distorção que ameaçava a estrutura tradicional da vida aldeã A longo prazo o método escolhido estava fadado a produzir os resultados mais nefastos Os proprietários rurais porém não poderiam manter os seus métodos a não ser que ao fazêlo eles tenham ajudado o país como um todo a enfrentar o vagalhão da Revolução Industrial No continente da Europa o protecionismo agrário também foi uma necessidade As forças intelectuais mais ativas da época porém estavam engajadas numa aventura que modificou seu ângulo de visão de forma a lhes ocultar o verdadeiro significado da condição agrária Sob as circunstâncias um grupo capaz de representar os interesses rurais ameaçados poderia adquirir uma influência fora de proporção com o seu número O contramovimento protecionista na verdade conseguiu estabilizar o campo europeu e enfraquecer o fluxo em direção às cidades que era o tormento da época A reação foi a beneficiária de uma função socialmente útil que lhe coube executar A mesma função que permitiu às classes reacionárias da Europa jogar com os sentimentos tradicionais em sua luta por tarifas agrárias foi responsável na América do Norte cerca de meio século mais 222 tarde pelo sucesso da TVA e outras técnicas sociais progressistas As mesmas necessidades da sociedade que beneficiaram a democracia no Novo Mundo fortaleceram a influência da aristocracia no Velho Mundo A oposição à mobilização da terra foi o pano de fundo sociológico na luta entre o liberalismo e a reação que constituiu a história política da Europa continental no século XIX Nessa luta os militares e o clero mais elevado eram aliados das classes fundiárias que haviam praticamente perdido suas funções mais imediatas na sociedade Essas classes estavam prontas para qualquer solução reacionária do impasse ao qual ameaçava conduzir a economia de mercado e seu corolário o governo constitucional já que por tradição e ideologia elas não estavam ligadas às liberdades públicas e regras parlamentares Em resumo o liberalismo econômico estava aferrado ao estado liberal enquanto o mesmo não ocorria com os interesses fundiários esta foi a fonte do seu significado político permanente no continente que produziu as correntes cruzadas da política prussiana sob Bismarck que alimentou a revanche clerical e militarista na França que garantiu a influência da aristocracia feudal na corte do império dos Habsburgs que fez da Igreja e do exército os guardiães dos tronos em derrocada Uma vez que a ligação sobreviveu às duas gerações críticas que John Maynard Keynes uma vez indicou como a alternativa prática da eternidadeta terra e a propriedade fundiária recebiam agora a pecha de um preconceito congênito de reação A Inglaterra do século XVIII com o seu livre comércio Tory e seus pioneiros agrários já estava tão esquecida quanto os açambarcadores Tudors e seus métodos revolucionários de ganhar dinheiro com a terra Os senhores de terra fisiocratas da França e da Alemanha com seu entusiasmo pelo comércio livre foram obliterados da mentalidade pública pelo preconceito moderno do atraso permanente do cenário rural Herbert Spencer para quem uma geração era suficiente como amostra de eternidade identificava simplesmente o militarismo com a reação A adaptabilidade social e tecnológica recentemente demonstrada pelos exércitos japonês russo e nazista seria inconcebível para ele É claro que tais pensamentos eram limitados pela época As estupendas realizações industriais da economia de mercado haviam sido atingidas ao preço de grande dano para a substância da sociedade As classes feudais encontraram aí uma oportunidade para recuperar parte do prestígio perdido transformandose em defensoras das virtudes da terra e dos seus cultivadores No romantismo literário a natureza havia feito uma aliança com o passado no movimento agrário do século XIX o 223 feudalismo tentava e às vezes com sucesso recuperar seu passado apresentandose como o guarclião do habitat do homem o solo Se o perigo não fosse genuíno o estratagema não surtiria efeito O exército e a Igreja também adquiriram prestígio por estarem aptos a defender a lei e a ordem agora mais vulneráveis enquanto a classe média dominante não estava aparelhada para garantir essa exigência da nova economia O sistema de mercado era mais alérgico a tumultos do que qualquer outro sistema econômico que conhecemos Os governos Tudors dependiam dos tumultos para chamar a atenção para as reclamações locais alguns líderes podiam ser enforcados mas não havia outros danos A ascensão do mercado financeiro significou uma ruptura total nessa atitude após 1797 o tumulto deixou de ser um aspecto popular da vida londrina e seu lugar foi sendo ocupado gradualmente por reuniões nas quais pelo menos no princípio era escasso o número de participantes pois do contrário elas seriam dissolvidas7 O rei prussiano que proclamou que manter a paz era o primeiro e mais importante dever do súdito ficou famoso por esse paradoxo que no entanto logo tornouse um lugarcomum No século XIX os rompimentos da paz se feitos por multidões armadas eram considerados rebelião incipiente e um grande perigo para o estado as ações entravam em colapso e não havia mais fundo para os preços Uma desordem com tiroteio nas ruas da metrópole podia destruir parte substancial do capital nacional nominal E no entanto as classes médias eram antirnilitares a democracia popular se orgulhava de dar voz às massas No continente a burguesia ainda se apegava à lembrança da sua juventude revolucionária quando ela própria enfrentara uma aristocracia tirânica nas barricadas O campesinato menos contaminado pelo vírus liberal foi casualmente reconhecido como o único estrato que os apoiaria na manutenção da lei e da ordem Compreendeuse que uma das funções da reação era manter as classes trabalhadoras em seu lugar de forma a não ocorrer pânico nos mercados Embora esse serviço fosse exigido com pouca freqüência a disponibilidade do campesinato como defensor do direito de propriedade era um trunfo para a área agrária 7 Trevelyan G M History of England 1926 p 533 A Inglaterra sob Walpole ainda era uma aristrocracia temperada por tumultos A canção The Riot do depósito de Hannah More foi escrita em novemta e cinco um ano de escassez e alarme foi o ano da Speenhamland Cf The Repository Tracts vol I Nova York 1835 Tambem The Library 1940 quarta série vol XX p 295 da Cheap Repository Tracts 1795 1798 224 A história da década de 1920 não poderia ter outra explicação Na Europa Central quando a estrutura social ruiu sob a pressão da guerra e da derrora só a classe trabalhadora estava apta para a tarefa de manter as coisas em andamento Assim em todos os lugares atribuiuse poder aos sindicatos profissionais e partidos social democratas a Áustria a Hungria e até mesmo a Alemanha foram declaradas repúblicas embora não se soubesse da existência de um partido republicano ativo em qualquer desses países Entretanto logo que passou o período mais agudo da dissolução e os serviços dos sindicatos profissionais se tornaram supérfluos as classes médias tentaram excluir as classes trabalhadoras de toda influência na vida pública Esta é conhecida como a fase contrarevolucionária do período pósguerra Na verdade jamais existiu o perigo real de um regime comunista pois os operários estavam organizados em partidos e sindicatos ativamente hostis aos comunistas Na Hungria o episódio bolchevista foi literalmente imposto ao país quando a defesa contra a invasão francesa não deixou outra alternativa à nação O perigo não era o bolchevismo mas o desprezo às regras da economia de mercado por parte dos sindicatos profissionais e partidos da classe trabalhadora numa emergência Sob uma economia de mercado as interrupções às vezes inofensivas da ordem pública e das práticas comerciais podiam representar uma ameaça letal8 já que podiam acarretar a quebra do regime econômico do qual a sociedade dependia para o seu pão cotidiano Isto explica a mudança marcante ocorrida em alguns países de uma supostamente iminente ditadura do operariado industrial para a verdadeira ditadura do campesinato Durante a década de 1930 o campesinato determinou a política econômica de uma série de estados nos quais normalmente desempenharia um papel modesto Mas ele era agora a única classe apta a manter a lei e a ordem no sentido moderno muito revigorado do termo O agrarianismo feroz da Europa pósguerra é apenas uma ilustração do tratamento preferencial dispensado à classe camponesa por razões políticas Desde o movimento Lappo na Finlândia até o Heimwehr austríaco os camponeses provaram ser os campeões da economia de mercado o que os tornou politicamente indispensáveis A escassez de alimentos nos primeiros anos do pósguerra à qual muitas vezes se credita a ascendência deles na verdade pouco teve a ver com isto A Áustria por exemplo para poder beneficiar financeiramente os camponeses teve que baixar 8 Hayes C A Generation of Materialism 18701890 observa qaue a maioria dos estados individuais pelo menos na Europa Central e Ocidental possuía agora uma estabilidade interna aparentemente exagerada 225 seus padrões alimentícios impondo taxações aos cereais embora dependesse fortemente das importações para atender as suas exigências alimentares O interesse camponês tinha que ser defendido a todo custo ainda que o protecionismo agrário significasse miséria para os habitantes da cidade e um custo irracionalmente elevado da produção para as indústrias de exportação A classe dos camponeses anteriormente pouco influente ganhou assim uma ascendência bastante desproporcional à sua importância econômica O medo do bolchevismo era a força que tornava inexpugnável a sua posição política Esse receio porém como vimos não era o medo de uma ditadura da classe trabalhadora não havia qualquer perspectiva de algo remotamente semelhante mas o medo de uma paralisia na economia de mercado a menos que fossem eliminadas do cenário político todas as forças que sob coação poderiam colocar de lado as regras do jogo de mercado Enquanto os camponeses eram a única classe capaz de eliminar essas forças seu prestígio permaneceu elevado e eles puderam exercer pressão sobre a classe média urbana Entretanto com a consolidação do poder do estado e mesmo antes disso com a arregimentação da classe média baixa urbana para a formação das tropas de choque fascistas a burguesia se libertou da sua dependência ao campesinato e o prestígio desse último decaiu rapidamente Uma vez neutralizado ou diminuído o inimigo interno nas cidades e fábricas o campesinato foi relegado à sua modesta posição anterior na sociedade industrial A influência dos grandes proprietários rurais não partilhou porém desse eclipse Um fator mais constante trabalhava a seu favor a crescente importância militar da auto suficiência agrícola A Grande Guerra havia tornado públicos os fatos estratégicos básicos e a dependência irrestrita ao mercado mundial cedeu lugar a uma acumulação pânica da capacidade de produzir alimentos A reagrarianização da Europa Central iniciada pelo medo bolchevique foi completada sob o signo da autarquia Além do argumento do inimigo interno havia agora o do inimigo externo Os economistas liberais como sempre viam apenas uma aberração romântica provocada por doutrinas econômicas pouco sólidas quando na realidade os acontecimentos políticos despertavam até mesmo as mentes mais simples para a irrelevância das considerações econômicas em face da dissolução iminente do sistema internacional Genebra prosseguia nas suas fúteis tentativas de convencer os povos de que se precaviam contra perigos imaginários e que se todos agissem em uníssono o livre comércio poderia ser restaurado e beneficiaria a todos Na atmosfera curiosamente crédula da época muitos consideravam que a solução do problema econômico o que quer que isto significasse não evitaria apenas a ameaça de 226 guerra mas a afastaria para sempre Uma paz de cem anos havia criado uma muralha intransponível de ilusões que ocultava os fatos Os autores desse período se excediam pela falta de realismo O estadonação era considerado um preconceito paroquial por A J Toynbee a soberania uma ilusão ridícula por Ludwig von Mises a guerra um cálculo errado dos negócios por Norman Angell A percepção da natureza fundamental dos problemas da política caiu a um nível sem precedentes O livre comércio que em 1846 havia sido combatido e fora vitorioso com as Com Laws oitenta anos mais tarde foi combatido novamente e desta vez perdeu em relação ao mesmo assunto Desde o seu início o problema da autarquia assombrava a economia de mercado Assim os liberais econômicos exorcizavam o espectro da guerra e baseavam ingenuamente seu caso no pressuposto de uma economia de mercado indestrutível Passou despercebido que seus argumentos apenas demostravam quão grande era o perigo para a segurança de um povo depender de uma instituição tão frágil como um mercado autoregulável O movimento autárquico da década de 1920 foi essencialmente profético ele mostrou a necessidade de se ajustar ao desaparecimento de uma ordem A guerra revelara o perigo e os homens agiram em conformidade com ele mas como agiram dez anos mais tarde a ligação entre causa e efeito foi descartada como irracional Por que protegerse contra perigos ultrapassados Era o comentário de muitos contemporâneos Essa lógica capenga não obscureceu apenas a compreensão da autarquia mas também do fascismo muito mais importante Na verdade ambos eram explicados pelo fato de que quando a mente comum recebe a impressão de um perigo o medo permanece latente enquanto não se removem as suas causas Sustentamos que as nações da Europa jamais superaram o choque da experiência de guerra que confrontouas inesperadamente com os perigos da interdependência O comércio foi retomado em vão e foi em vão que uma série de conferências internacionais exibiu idílios da paz e que dúzias de governos se declararam a favor do princípio da liberdade de comércio nenhum povo podia esquecer que nem uma moeda sólida nem um crédito ilimitado poderia salválo do seu desamparo a menos que ele tivesse a posse dos seus próprios alimentos e de fontes de matériasprimas ou a garantia do acesso militar a eles Nada havia de mais lógico do que a solidez dessa consideração fundamental que modelou a política das comuni dades A fonte do perigo não fora removida por que esperar então que o medo se dissipasse 227 Uma falácia semelhante enganava aqueles críticos do fascismo e eles eram a grande maioria que o descreviam como uma extravagância isenta de qualquer ratio político Mussolini alegava ter evitado o bolchevismo na Itália diziase mas as estatísticas comprovaram que a onda de greves já havia diminuído mais de um ano antes da Marcha sobre Roma Trabalhadores armados haviam ocupado as fábricas em 1921 admitiase mas seria essa uma razão válida para desarrnálos em 1923 quando eles já haviam abandonado há muito os muros onde montavam guarda Hitler sustentava ter salvo a Alemanha do bolchevismo Mas não se podia demonstrar então que o fluxo de desemprego que precedera a sua ascensão a chanceler já havia diminuído antes mesmo da sua subida ao poder Alegar que ele havia impedido aquilo que não mais existia quando ele apareceu como se argumentava então era contrário à lei de causa e efeito que também deve contar na política Na verdade tanto na Alemanha quanto na Itália a estória do período imediato pósguerra provou que o bolchevismo não tinha mais a remota possibilidade de sucesso Mas ele provou também conclusivamente que numa emergência a classe trabalhadora seus sindicatos profissionais e partidos podiam abandonar as regras do mercado que estabeleciam a liberdade do contrato e a santidade da propriedade privada como algo absoluto uma possibilidade que poderia ter os efeitos mais deletérios sobre a sociedade desencorajando investimentos impedindo a acumulação do capital mantendo os salários em nível nãoremunerativo ameaçando a moeda minando o crédito estrangeiro enfraquecendo a confiança e paralisando o empreendimento A fonte do medo latente que numa conjuntura crucial se transformou no pânico fascista não foi o perigo ilusório de uma revolução comunista mas o fato inegável de que as classes trabalhadoras estavam em posição de forçar intervenções possivelmente ruinosas Os perigos que ameaçam o homem e a natureza não podem ser separados simplesmente As reações da classe trabalhadora e do campesinato à economia de mercado levaram ao protecionismo a primeira principalmente sob a forma de uma legislação social e leis fabris a última sob a forma de tarifas agrárias e leis fundiárias Todavia havia essa importante diferença numa emergência os fazendeiros e os camponeses da Europa defenderam o sistema de mercado que a política das classes trabalhadoras ameaçava Embora a crise do sistema inerentemente instável fosse acarretada por ambas as alas do movimento protecionista os estratos sociais ligados à terra estavam inclinados a um compromisso com o sistema de mercado enquanto a ampla classe do trabalho não se furtava a quebrar suas regras e desafiálo abertamente 228 16 MERCADO E ORGANIZAÇÃO PRODUTIVA O próprio negócio capitalista também teve que ser protegido do funcionamento irrestrito do mecanismo de mercado Isto deveria dissipar a suspeita que os termos simples homem e natureza às vezes despertam nas mentes sofisticadas que procuram denunciar toda conversa sobre proteção ao trabalho e à terra como o produto de idéias antiquadas ou como simples camuflagem de interesses investidos Na verdade no caso da empresa produtiva o perigo era tão real e objetivo como no do homem e no da natureza A necessidade de proteção surgiu em decorrência da maneira pela qual se organizou o fornecimento de dinheiro sob um sistema de mercado O Banco Central moderno foi de fato um artifício desenvolvido basicamente com o propósito de oferecer proteção e sem ele o mercado teria destruído seus próprios filhos as empresas comerciais de todos os tipos Foi essa forma de proteção porém que contribuiu mais imediatamente para a queda do sistema internacional Enquanto são bastante óbvios os perigos que ameaçaram a terra e o trabalho com a voragem do mercado os perigos para os negócios inerentes a um sistema monetário não são prontamente apreendidos Se os lucros dependem dos preços então os ajustes monetários dos quais os preços dependem têm que ser vitais para o funcionamento de qualquer sistema motivado pelo lucro A longo prazo as mudança nos preços de venda não precisam afetar o lucro pois os custos subirão ou descerão de forma correspondente isto não ocorre porém a curto prazo pois deve transcorrer num lapso de tempo antes que se 229 modifiquem os preços fixados contratualmente Entre estes está o preço do trabalho que como muitos outros preços seria fixado por contrato naturalmente Assim se o nível de preço baixasse durante um tempo considerável por razões monetárias o negócio correria o risco da liquidação acompanhada pela dissolução da organização produtiva e a destruição maciça do capital O perigo não era portanto os baixos preços mas a queda desses preços Hume tornouse fundador da teoria quantitativa do dinheiro com suas descobertas de que os negócios não são afetados se a quantidade de dinheiro diminuir pela metade pois os preços simplesmente se ajustarão à metade do seu nível anterior Mas ele se esqueceu de que o negócio poderia ser destruído durante o processo Esta é a razão facilmente compreensível por que um sistema de dinheiro como mercadoria tal como o mecanismo do mercado tende a produzir sem interferência externa é incompatível com a produção industrialÍá mercadoria dinheiro é simplesmente uma mercadoria que pode funcionar como dinheiro e portanto em princípio sua quantidade não pode ser aumentada de forma alguma exceto diminuindo a quantidade das mercadorias que não funcionam como dinheiro Na prática a mercadoria dinheiro é geralmente o ouro ou a prata cuja quantidade pode ser aumentada mas pouco a curto prazo Entretanto a expansão da produção e do comércio desacompanhada de um aumento na quantidade de dinheiro deve causar uma queda no nível dos preços precisamente o tipo de deflação ruinosa que temos em mente A escassez do dinheiro era uma queixa permanente e grave das comunidades mercadoras do século XVII Em época primitiva já se desenvolvera um tipo de dinheiro convencional para proteger o comércio contra as deflações forçadas que acompanhavam o uso das espécies quando aumentava o volume dos negócios Não era possível uma economia de mercado sem a mediação desse dinheiro artificial A dificuldade real surgiu com a necessidade de câmbios externos estáveis e a conseqüente introdução do padrãoouro aproximadamente à época das guerras napoleônicas Os câmbios estáveis se tornaram fundamentais para a própria existência da economia inglesa Londres se tornara o centro financeiro de um crescente comércio mundial Entretanto só a mercadoria dinheiro poderia servir a essa finalidade pela razão óbvia de que um dinheiro convencional seja bancário ou de curso forçado não pode circular em solo estrangeiro Daí entrar em evidência o padrãoouro o nome aceito para um sistema de mercadoria internacional dinheiro 230 Sabemos que a espécie é um dinheiro inadequado para propósitos domésticos justamente porque ela é uma mercadoria e sua quantidade não pode ser aumentada a belprazer A quantidade de ouro disponível pode ser aumentada de alguns por cento durante um ano porém não por muitas dezenas em poucas semanas como pode ocorrer numa expansão súbita de transações Na falta de um dinheiro convencional os negócios teriam que ser cerceados ou levados a efeito a preços muito mais baixos provocando um colapso e criando o desemprego A sua forma mais simples o problema era o seguinte a mercadoria dinheiro era vital para a existência do comércio exterior e o dinheiro convencional para a existência do comércio doméstico Até que ponto eles concordavam um com o outro Nas condições do século XIX o comércio exterior e o padrãoouro tiveram uma prioridade indiscutível sobre as necessidades dos negócios domésticos O funcionamento do padrãoouro exigia o rebaixamento dos preços domésticos sempre que o câmbio era ameaçado de depreciação Uma vez que a deflação surge através das restrições do crédito seguese que o funcionamento da mercadoria dinheiro interferia com o funcionamento do sistema de crédito Este era um perigo permanente para os negócios Todavia estava inteiramente fora de questão abandonar completamente o dinheiro convencional e restringir o meio circularte à mercadoria dinheiro pois esse remédio seria pior que a doença O Banco Central abrandou muito esse defeitedo dinheiro de crédito Centralizando o fornecimento de crédito num país era possível impedir o deslocamento total dos negócios e do emprego envolvidos na deflação e organizar a deflação de modo a absorver o choque e distribuir sua carga sobre todo o país Na sua função normal o banco estava amortecendo os efeitos imediatos das retiradas de ouro sobre a circulação d9 notas bem como sobre a circulação diminuída de papéis de negócios O banco podia usar vários métodos Os empréstimos a curto prazo podiam cobrir a brecha provocada pela perdas de ouro a curto prazo e evitar a necessidade de restringir o crédito Mesmo quando as restrições de crédito eram inevitáveis como acontecia muitas vezes a atuação do banco tinha um efeito amortecedor a elevação da taxa bancária assim como as operações de mercado aberto distribuíam os efeitos das restrições por toda a comunidade enquanto o encargo das restrições era transferido para os ombros mais fortes Observemos o caso crucial da transferência de pagamentos unilaterais de um país para outro como os que podiam ser provocados por 231 uma mudança na demanda de tipo de alimentos de domésticos para estrangeiros O ouro que precisa ser remetido para o exterior agora em pagamento dos alimentos importados teria sido usado para pagamentos dentro do país e sua falta deve causar uma queda nas vendas domésticas e uma conseqüente baixa nos preços Chamaremos de transacional a esse tipo de deflação pois ela se espalha de uma firma individual para outra de acordo com suas transações comerciais fortuitas A difusão da deflação alcançará por fim as firmas de exportação atingindo assim o excedente exportável que representa a transferência real O prejuízo e dano causado à comunidade em geral serão muito maiores do que os estritamente necessários para atingir esse excedente exportável Sempre existem firmas a ponto de poderem exportar que precisam apenas do incentivo de uma pequena redução nos custos para lançarse ao ataque e essa redução pode ser alcançada na forma mais econômica distribuindo a deflação levemente sobre toda a comunidade de negócios Esta foi precisamente uma das funções do Banco Central A grande pressão da sua política de descontos e mercado aberto forçou a baixa mais ou menos eqüitativa dos preços domésticos e permitiu às firmas a ponto de exportar retomarem ou aumentarem as exportações enquanto apenas as firmas menos eficientes eram obrigadas a liquidar A transferência real seria obtida assim à custa de um deslocamento em quantidade muito menor do que o necessário para atingir o mesmo excedente exportável através do método irracional dos choques acidentais e muitas vezes catastróficos transmitidos pelos estreitos canais da deflação transacional O fato de que apesar da utilização desses mecanismos para minorar os efeitos da deflação o resultado ser cada vez mais uma completa desorganização dos negócios e o conseqüente desemprego em massa representa a mais poderosa de todas as acusações ao padrãoouro O caso do dinheiro revelou uma analogia muito real à do trabalho e da terra A aplicação da ficção da mercadoria a cada um deles levou à sua inclusão efetiva no sistema de mercado enquanto se desenvolveram ao mesmo tempo graves riscos para a sociedade No caso do dinheiro a ameaça era à empresa produtiva cuja existência era arriscada por qualquer queda no nível de preços provocada pelo uso da mercadoria dinheiro Aqui também medidas de proteção tiveram que ser tomadas e o resultado foi colocar fora de ação o mecanismo autodiretivo do mercado O Banco Central reduziu o automatismo do padrãoouro a uma simples pretensão Ele significava uma direção central para o meio circulante 232 e a substituição da manipulação pelo mecanismo autoregulador do fornecimento de crédito aipda que esse artifício nem sempre tenha ido deliberado e consciente Reconheciase cada vez mais que o adrãoouro internacional só poderia tornarse auto regulador se os países abandonassem a instituição bancária central Um dos adeptos mais sólidos do padrãoouro e que defendia essa medida desesperada era Ludwig von Mises seu conselho se seguido teria transformado as economias nacionais num monte de ruínas A maior parte da confusão existente na teoria monetária se devia à eparação entre política e economia esta característica mar cante de uma sociedade de mercado Durante mais de um século o dinheiro foi visto como uma categoria puramente econômica uma mercadoria usada com a finalidade da troca indireta Se o ouro era a mercadoria preferida então existia o padrãoouro O atributo internacional em relação a esse padrão não tinha qualquer significado pois para o economista as nações não existiam as transações não eram efetuadas entre nações mas entre indivíduos cuja lealdade política era tão irrelevante como a cor dos seus cabelos filicardo doutrinou a Inglaterra do século XIX com a convicção de que o termo dinheiro significava um meio de troca que as notas bancárias eram um simples caso de conveniência pois sua utilidade consistia em serem mais fáceis de lidar do que o ouro mas que o seu valor derivava da certeza em que a sua posse nos fornecia os meios de adquirir a qualquer tempo a própria mercadoria ou ouro Seguese daí que o caráter nacional das moedas não tinha qualquer conseqüência uma vez que elas eram apenas símbolos que representavam a mesma mercadoriajSe era imprudente um governo desenvolver qualquer esforço para se apossar do ouro uma vez que a distribuição dessa mercadoria se regulava no mercado mundial exatamente como qualquer outra era ainda mais imprudente imaginar que os símbolos nacionalmente diferentes tinham qualquer relevância para o bemestar e a prosperidade dos países em questão Ora a separação institucional das esferas política e econômica nunca foi completada e foi precisamente em relação ao meio circulante que ela se tornou necessariamente incompleta O estado cuja Casa da Moeda parecia apenas certificar o peso das moedas era de fato o fiador do valor do dinheiro convencional que ele aceitava em pagamento de impostos e outrosÍlisse dinheiro não era um meio de troca era um meio de pagamento não era uma mercadoria era o poder de compra longe de ter utilidade em si mesmo ele era apenas um signo que incorporava um dado quantificado em relação às coisas 233 que podiam ser compradas É claro que uma sociedade na qual a distribuição dependia da posse de tais símbolos do poder de compra era uma construção inteiramente diferente de uma economia de mercado Não estamos lidando aqui sem dúvida com quadros da atualidade mas com padrões conceituais utilizados com o fito de esclarecer Não é possível uma economia de mercado separada da esfera política Todavia esta foi a construção subjacente à economia clássica desde David Ricardo e afastados dela os seus conceitos e pressupostos seriam incompreensíveis Segundo esse planejamento a sociedade consistia em permutadores individuais que possuíam um conjunto de mercadorias bens terra trabalho e seus compostos O dinheiro era simplesmente uma das mercadorias permutada com mais freqüência que outras e portanto adquirida com a finalidade de uso na troca Uma sociedade como essa pode parecer irreal mas ela contém o esqueleto da construção do qual partiram os economistas clássicos Um quadro ainda menos completo da atualidade se oferece com a economia do poder de compra1 Entretanto alguns dos seus aspectos se assemelham mais à nossa atual sociedade do gue o paradigma da economia de mercado Tentemos imaginar a sociedade na qual se atribui a cada indivíduo uma quantidade definida de poder de compra permitindolhe considerar como bens cada item que tem uma etiqueta de preço Numa economia como essa o dinheiro não é uma mercadoria não tem utilidade em si mesmo e sua única utilidade é comprar bens que dispõem de uma etiqueta de preços como ocorre em nossas lojas hoje em dia Embora o teorema do dinheiro mercadoria fosse muito superior a seu rival do século XIX quando as instituições se ajustaram aos padrões de mercado em muitas coisas essenciais desde o início do século XX a concepção do poder de compra ganhou corpo Com a desintegração do padrãoouro o dinheiro mercadoria praticamente deixou de existir e foi apenas natural que o concejto de poder de compra do dinheiro o substituísse Passando dos mecanismos e conceitos para as forças sociais em jogo é importante compreender que as próprias classes dominantes emprestaram seu apoio à direção do meio circulante através do Banco Central Essa direcão não era vista naturalmente como uma interferência na instituição do padrãoouro pelo contrário era parte das 1 A teoria subjacente foi elaborada por F Schafer Wellington Nova Zelândia 234 regas do sob o qual deveria funcionar esse padrão Uma vez que a manutenção do padrãoouro era axiomátlca nao era permitido ao mecanismo do Banco Central agir de forma a deixar o país fora do ouro ao contrário a diretiva suprema do banco era sempre continuar com o ouro sob quaisquer circunstâncias e assim portanto não estava envolvida qualquer questão de princípio Isto só perdurou porém enquanto os movimentos do nível de preço em questão eram no máximo os insignificantes 23 que separavam as chamadas cotações do ouro Quando se ampliou o movimento do nível interno de preços necessário para manter os câmbios estáveis quando ele pulou para 10 ou 30 a situação mudou inteiramente Esses movimentos descendentes do nível de preço disseminariam a miséria e a destruição O fato de os meios circulantes serem dirigidos passou a ter importância primordial pois significava que os métodos do Banco Central eram um caso de política ie algo sobre o qual o organismo político teria que decidir Com efeito o grande significado do Banco Central está no fato de a política monetária ter sido introduzida por ele na esfera política As conseqüências só poderiam ser de grande alcance Elas foram de duas ordens Na área doméstica a política monetária foi apenas uma outra forma de intervencionismo e os choques das classes econômicas tendiam a cristalizarse em torno desse assunto tão intimamente ligado ao padrãoouro e aos orçamentos equilibrados Como veremos os conflitos internos da década de 1930 se concentraram amiúde nesse tema que desempenhou um papel importante no crescimento do movimento antidemocrático Na área externa o papel das moedas nacionais foi de importância fundamental embora esse fato tenha sido pouco reconhecido na época A filosofia dominante no século XIX era pacifista e internacionalista em princípio todas as pessoas educadas eram comerciantes livres e com qualificações que nos parecem hoje ironicamente modestas eles não o eram menos na prática A fonte dessa perspectiva era econômica sem dúvida uma grande dose de genuíno idealismo derivava da esfera da permuta e do comércio por um supremo paradoxo os desejos do homem validavam os seus impulsos mais generosos Desde a década de 1870 porém observouse uma mudança emocional embora não houvesse urna ruptura correspondente nas idéias dominantes O mundo continuava a acreditar no internacionalismo e na interdependência enquanto agia sob os impulsos do nacionalismo e da autosuficiência O nacionalismo ilberal transformava num liberalismo nacional com seus mercados se apoiando no protecionismo e no 235 imperialismo na área externa e no conservadorismo monopolista na área interna A contradição jamais se revelou tão aguda e tão pouco conscien mo no setor monetário A crença dogmática no padrãoouro internacional continuava a arregimentar a ilimitada lealdade dos homens enquanto ao mesmo tempo estabeleciamse moedas convencionais baseadas na soberania dos vários sistemas de bancos centrais Sob a égide de princípios internacionais erguiamse inconscientemente bastiões impregnados de um novo nacionalismo sob a forma de bancos centrais de emissão Na verdade o novo nacionalismo foi o corolário do novo internacionalismo O padrãoouro internacional não podia ser sustentado pelas nações a quem ele supostamente servia a menos que elas se sentissem seguras contra os perigos com que ele ameaçava as comunidades que a ele aderiram As comunidades inteiramente monetarizadas não poderiam suportar os efeitos ruinosos das mudanças abruptas no nível dos preços exigidos pela manutenção de câmbios estáveis a menos que o choque fosse amortecido pela intermediação de uma política independente de bancos centrais A moeda convencional nacional era a garantia certa dessa relativa segurança pois ela permitia ao Banco Central agir como párachoque entre a economia interna e a externa Se a balança de pagamentos era ameaçada de insolvência as reservas e os empréstimos estrangeiros venceriam as dificuldades se tivesse que ser criado um novo equilíbrio econômico abrangendo uma queda no nível doméstico dos preços a restrição do crédito poderia ser distribuída de modo mais racional eliminando o ineficiente e colocando o encargo sobre o eficiente A falta desse mecanismo tornaria impossível a qualquer país desenvolvido ficar no ouro sem incorrer no risco de efeitos devastadores sobre o seu bemestar seja em termos de produção renda ou emprego Se a classe comercial foi a protagonista da economia de mercado o banqueiro foi o líder nato dessa classe O emprego e os vencimentos dependiam da lucratividade dos negócios mas a lucratividade dos negócios dependia de câmbios estáveis e condições sólidas de crédito e ambos estavam sob os cuidados do banqueiro Era parte do seu credo serem os dois inseparáveis Um orçamento sólido e condições estáveis de crédito interno pressupunham câmbios externos estáveis os câmbios não podiam ser estáveis a menos que o crédito doméstico fosse seguro e as finanças internas do estado estivessem equilibrada Resumindo a custódia gêmea do banqueiro compreendia uma sólida finança doméstica e a estabilidade externa do meio circulante Foi por 236 isto que os banqueiros como classe foram os últimos a observar que ambas haviam perdido o seu significado Na verdade nada existe de surpreendente tanto na influência dominante dos banqueiros internacionais na década de 1920 como no seu eclipse na década de 1930 Na década de 1920 o padrãoouro ainda era visto como a precondição de um retorno à estabilidade e à prosperidade e em conseqüência nenhuma exigência feita pelos seus guardiães profissionais os banqueiro era considerada demasiado pesada desde que ela prometesse garantir taxas de câmbio estáveis Quando após 1929 isto se tornou impossível a necessidade imperativa era a de um meio circulante interno estável e ninguém estava tão pouco qualificado a fornecêlo como o banqueiro Em nenhum outro setor foi tão abrupta a queda da economia de mercado como no do dinheiro As tarifas agrárias interferindo com a importação dos produtos de terras estrangeiras destruiu o mercado livre o estreitamento e a regulação do mercado de trabalho restringiu a barganha àquilo que a lei permitia às partes decidirem Mas nem no caso do trabalho nem no caso da terra houve uma divisão formal tão súbita e completa no mecanismo de mercado como a que aconteceu na área do dinheiro Nos outros mercados nada aconteceu de comparável ao abandono o padrãoouro feito pela Grã Bretanha em 21 de setembro de 1931 nem mesmo ao acontecimento subsidiário uma ação Igual por parte da América do Norte em junho de 1933 Embora nessa época a Grande Depressão que começara em 1929 já hovesse destruído a maior parte do comércio mundial isto não significou qualquer mudança nos métodos e nem afetou as idéias dominantes Todavia o fracasso final do padrãoouro foi o fracasso final da economia de mercado O liberalismo econômico havia começado uma centena de anos antes e fora enfrentado por um contramovimento protecionista que atingia agora o último bastião da economia de mercado Um novo conjunto de idéias dominantes desbancava o mundo do mercado autoregulável Para estupefação da grande maioria dos contemporâneos forças insuspeitadas de liderança carismática e de isolacionismo autárquico irromperam e uniram as sociedades sob novas formas 237 17 AUTOREGULAÇÃO IMPERFEITA No meio do século que decorreu entre 1879 e 1929 as sociedades ocidentais se transformaram em unidades estreitamente ligadas na qual estavam latentes tensões profundamente inquietantes A fonte mais imediata dessa transformação foi a auto reguIação imperfeita da economia de mercado Como a sociedade fora levada a se adaptar ás necessidades do mecanismo de mercado as imperfeições do funcionamento desse mecanismo criam tensões cumulativas no organismo social A autoregulação imperfeita foi um resultado do protecionismo Num certo sentido os mercados são sempre autoreguláveis já que eles tendem a produzir um preço que desanuvia o mercado mas isto de aplica a todos os mercados sejam livres ou não Como já tivemos a oportunidade de mostrar porém um sistema de mercado auto regulável implica algo muito diferente isto é mercados para os elementos da produção trabalho terra e dinheiro Quando o funcionamento desses mercados ameaça destruir a sociedade a ação autopreservativa da comunidade visa impedir o seu estabelecimento ou interferir com o seu livre funcionamento quando já estabelecido Os liberais econômicos utilizaram o exemplo norteamericano como prova conclusiva da capacidade de funcionamento de uma economia de mercado Durante um século o trabalho a terra e o dinheiro foram comerciados nos Estados Unidos com total liberdade e no entanto aparentemente não foram necessárias medidas de proteção social a não ser pelas tarifas aduaneiras a vida industrial continuava a funcionar sem a interferência do governo 238 A explicação é sem dúvida bastante simples o trabalho a terra e o dinheiro eram livres Até a década de 1890 a fronteira estava aberta e havia muita terra disponível até a Primeira Guerra Mundial o abastecimento da mãodeobra de baixo padrão fluía livremente1 e até a virada do século não havia qualquer compromisso de manter os câmbios estrangeiros estáveis A livre provisão de terra trabalho e dinheiro continuava disponível portanto não existia um mercado autoregulável Enquanto prevaleceram essas condições nem o homem nem a natureza nem a organização dos negócios precisou de proteção do tipo que somente a intervenção governamental pode fornecer Logo que essas condições cessaram de existir a proteção social começou a manifestarse Como as camadas mais baixas de mãodeobra já não podiam mais ser substituídas livremente por uma reserva inesgotável de imigrantes enquanto suas camadas mais altas eram incapazes de se estabelecer livremente na terra como o solo e os recursos naturais se tornaram escassos e tinham que ser poupados como o padrão ouro foi introduzido a fim de tirar o meio circulante da política e ligar o comércio doméstico ao do mundo os Estados Unidos logo alcançaram o desenvolvimento europeu de um século proteção do solo e dos seus cultivadores seguro social para a mãode obra através do sindicalismo e da legislação e o Banco Central tudo na escala mais ampla fez a sua aparição O protecionismo monetário chegou em primeiro lugar a criação do Federal Reserve System pretendia harmonizar as necessidades do padrão ouro e as exigências regionais A ele se seguiu o protecionismo em relação ao trabalho e à terra A prosperidade na década de 1920 foi suficiente para acarretar uma depressão tão violenta que no seu curso o New Deal começou a cavar um fosso em torno do trabalho e da terra muito mais amplo do que jamais visto na Europa Assim a América do Norte também oferece uma prova cabal tanto positiva como negativa da nossa tese de que a proteção social foi o acompanhamento de um suposto mercado autoregulável Nessa ocasião o protecionismo construía em todos os lugares a couraça da unidade emergente da vida social A nova entidade foi forjada num molde nacional mas não teve qualquer outra semelhança com suas predecessoras as despreocupadas nações do passado O novo tipo crustáceo de nação expressava sua identidade através de meios circulantes 1 Penrose E F op cit A lei malthusiana só é válida sob o pressuposto de que é limitado o fornecimento de terra 239 convencionais resguardados por um tipo jamais antes conhecido de soberania ciumenta e absoluta Esses meios circulantes eram também focalizados do exterior pois foi deles que se construiu o padrãoouro internacional o instrumento principal da economia mundial Se o dinheiro dominava o mundo agora reconhecidamente esse dinheiro era estampado com a marca nacional Uma tal ênfase sobre nações e meios circulantes seria incompreensível para os liberais cujas mentes como de hábito perdiam as verdadeiras características do mundo em que viviam Se a nação era por eles considerada um anacronismo os meios circulantes nacionais não eram sequer dignos de atenção Nenhum economista da era liberal que se respeitasse duvidava da irrelevância do fato de diferentes pedaços de papel serem chamados de modo diferente em diferentes lados das fronteiras políticas Nada era mais simples do que mudar uma denominação pela outra através do uso do mercado cambial uma instituição que não poderia deixar de funcionar uma vez que felizmente ela não estava sob o controle do estado ou dos políticos A Europa Ocidental passava por um novo lluminismo e entre os seus fantasmas estava o conceito tribal da nação cuja suposta soberania era para os liberais o resultado de um pensamento paroquial Até a década de 1930 o Baedecker econômico incluía a informação certa de que o dinheiro era apenas um instrumento de troca e portanto não essencial por definição O ponto cego da mentalidade de mercado era igualmente insensível aos fenômenos da nação e do dinheiro O comerciante livre foi um nominalista a respeito de ambos Essa conexão foi muito significativa mas passou despercebida na época Aqui e ali surgiam críticos das doutrinas do livre comércio assim como críticos das doutrinas monetárias ortodoxas mas dificilmente alguém reconheceu que esses dois conjuntos de doutrinas estabeleciam o mesmo caso em termos diferentes e se uma era falsa a outra também deveria ser William Cunningham ou Adolph Wagner mostraram as falácias do comércio livre cosmopolita mas eles não as ligaram ao dinheiro por outro lado Macleod ou Gesell atacavam as teorias monetárias clássicas enquanto aderiam a um sistema comercial cosmopolita A importância constitutiva do meio circulante ao estabelecer a nação como unidade decisiva da época econômica e política foi inteIramente menosprezada pelos autores do uminismo liberal como já ocorrera com seus predecessores do século XVIII em relação à existência da história Esta foi a posição mantida pelos pensadores econômicos mais brilhantes de Ricardo a Wieser de John Stuart Mil a 240 Marshall e Wicksell enquanto o fluxo comum dos estudantes era educado para crer que a preocupação com o problema econômico da nação ou do meio circulante marcava uma pessoa com o estigma da inferioridade Combinar essas falácias na monstruosa proposição de que os meios circulantes nacionais desempenhavam um papel vital no mecanismo institucional da nossa civilização seria julgado um paradoxo despropositado sem qualquer sentido e significado Na verdade a nova unidade nacional e o novo meio circulante nacional eram inseparáveis Foi o meio circulante que dotou os sistemas nacional e internacional de seus mecanismos e introduziu no quadro aqueles aspectos que resultaram em derrocada abrupta O sistema monetário no qual o crédito se baseava tornarase a linha da vida da economia tanto nacional quanto internacional O protecionismo foi um impulso de três gumes A terra o trabalho e o dinheiro cada um deles desempenhou o seu papel mas enquanto o trabalho e a terra estavam ligados a estratos sociais definidos embora amplos tais como os trabalhadores ou o campesinato o protecionismo monetário foi numa extensão mais ampla um fator nacional fundindo às vezes interesses diversos em um todo coletivo Embora a política monetária pudesse também ao mesmo tempo dividir e unir o sistema monetário objetivamente era a mais forte entre as forças econômicas que integravam a nação O trabalho e a terra foram responsáveis basicamente pela legislação social e taxações do trigo respectivamente Os fazendeiros protestavam contra os encargos que beneficiavam o trabalhador e elevavam os salários enquanto os trabalhadores objetavam contra qualquer aumento no preço dos alimentos Todavia quando as leis do trigo e as leis do trabalho foram postas em vigor na Alemanha desde o início dos anos oitenta tornouse difícil remover uma sem remover a outra A relação era ainda mais estreita entre as tarifas agrícolas e as industriais Desde que a idéia de um protecionista total fora popularizada por Bismarck 1879 a aliança política dos proprietários de terra e dos industriais para a salvaguarda recíproca das tarifas havia sido um aspecto da política alemã o pacto tarifário era tão comum como a organização de cartéis para garantir benefícios privados a partir das tarifas O protecionismo interno e externo social e nacional tendia a fundirse2 A elevação do custo de vida provocada pelas leis do trigo induzia 2 Carr E H The Twenty Years Crisis 191919391940 241 o fabricante a exigir tarifas protetoras das quais se valia quase sempre para implementar a política de cartéis Os sindicatos profissionais naturalmente insistiam em salários mais altos para compensar o elevado custo de vida e não podiam discordar dessas tarifas aduaneiras que permitiam ao patrão atender a uma folha de pagamento inflacionada Todavia quando a contabilização da legislação social passou a se basear no nível salarial condicionado pelas tarifas não se podia mais esperar que os patrões ficassem com o encargo dessa legislação a menos que se lhes garantisse uma proteção continuada A propósito esta foi a tênue base factual da acusação de conspiração coletivista supostamente responsável pelo movimento protecionista Todavia isto representa assumir o efeito como causa As origens do movimento foram espontâneas e amplamente dispersas mas uma vez iniciadas não podiam deixar de criar interesses paralelos que se comprometiam com a sua continuidade Mais importante do que a similaridade de interesses foi a difusão uniforme das condições reais criadas pelos efeitos combinados de tais medidas Embora a vida fosse diferente nos diferentes países como sempre fora a disparidade podia ser ligada a atos legislativos e administrativos definidos de intenção protetora uma vez que as condições de produção e de trabalho dependiam agora principalmente de tarifas taxações e leis sociais Antes mesmo que os Estados Unidos e os domínios britânicos restringissem a imigração o número de emigrantes do Reino Unido já diminuíra a despeito do severo desemprego possivelmente em virtude do clima social muito avançado da pátriamãe Se as tarifas aduaneiras e as leis sociais produziam um clima artificial a política monetária criava condições meteoro lógicas verdadeiramente artificiais que variavam dia a dia e afetavam cada membro da comunidade nos seus interesses imediatos O poder integrador da política monetária superava em muito o dos outros tipos de protecionismo com seu aparato lento e embaraçoso pois a influência da proteção monetária era sempre ativa e mutável Aquilo que o homem de negócios o trabalhador organizado e a dona de casa ponderavam aquilo que o fazendeiro que planejava a sua colheita os pais que pesavam as oportunidades dos filhos os amantes que esperavam casarse resolviam em suas mentes levando em conta a favorabilidade da época era determinado mais diretamente pela política monetária do Banco Central do que por qualquer outro fator isolado Se isso já era verdade com uma moeda estável tornouse incomparavelmente mais verdadeiro quando a moeda se tornou instável e teve que ser tomada a decisão fatal de inflacionar ou deflacionar Do ponto de vista político a identidade 242 da nação era estabelecida pelo governo do ponto de vista econômico ela cabia de direito ao Banco Central Do pomo de vista internacional o sistema monetário assumiu importância ainda maior se possível A liberdade do dinheiro foi o resultado das restrições ao comércio por mais paradoxal que isto pareça Quanto mais numerosos se tornaram os obstáculos à movimentação de bens e homens através das fronteiras tanto mais efetivamente tinha que ser resguardada a liberdade dos pagamentos Dinheiro a curto prazo era transferido de um ponto do globo para outro com o aviso de horas as modalidades de pagamentos internacionais entre governos e entre corporações privadas ou indivíduos eram uniformemente reguladas o repúdio de dívidas externas ou as tentativas de mexer nas garantias orçamentárias mesmo por parte de governos atrasados era considerado um ultraje e punido relegandose aqueles que não mereciam crédito à total obscuridade Em todos os assuntos relevantes para o sistema monetário mundial estabeleciamse instituições similares em todos os lugares tais como organismos representativos constituições escritas definindo a sua jurisdição e regulando a publicação de orçamentos a promulgação de leis a ratificação de tratados os métodos para incorrer em obrigações financeiras as regras de contabilidade pública os direitos dos estrangeiros a jurisdição das cortes de justiça o domicílio das notas de câmbio e assim por implicação a situação do banco de emissão dos acionistas estrangeiros dos credores de todos os tipos Isto levou à concordância no uso de notas bancárias e espécies de regulamentações postais e quanto aos métodos das bolsas de valores e bancos Nenhum governo com exceção talvez dos mais poderosos podia se permitir desprezar os tabus do dinheiro Para propósitos internacionais o meio circulante era a nação e nenhuma poderia sobreviver fora do esquema internacional em qualquer espaço de tempo Em contraste com os homens e os bens o dinheiro estava livre de quaisquer medidas embaraçosas e continuava a desenvolver sua capacidade de transacionar negócios a qualquer distância e a qualquer tempo Quanto mais difícil se tornava transferir objetos reais mais fácil se tornava transmitir os direitos sobre eles Enquanto diminuía o ritmo do comércio de mercadorias e serviços e seu equilíbrio oscilava precariamente a balança de pagamentos se mantinha líquida quase que automaticamente com a ajuda de empréstimos a curto prazo que perpassavam sobre todo o globo e de operações de capital que só de leve tomavam conhecimento do comércio visível Pagamentos débitos e reclamações 243 continuavam insensíveis às crescentes barreiras rígidas contra a troca de bens A ascendência rápida da elasticidade e da universalidade do mecanismo monetário internacional compensava de certo modo os canais cada vez mais estreitos do comércio mundial No princípio da década de 1930 quando o comércio mundial se reduziu a um filete o empréstimo internacional a curto prazo atingiu um grau de mobilidade sem precedentes Enquanto funcionou o mecanismo dos movimentos do capital internacional e dos créditos a curto prazo nenhum desequilíbrio do comércio real era demasiado grande para ser superado por métodos de contabilização Evitavase a distorção social com a ajuda dos movimentos de crédito e corrigiase o desequilíbrio econômico através de meios financeiros Como último recurso a autoregulação imperfeita do mercado levou a uma intervenção política Os governos tiveram que responder às pressões quando o ciclo comercial deixou de corresponder e restaurar o emprego quando as importações deixaram de produzir exportações quando as regulamentações da reserva bancária ameaçaram os negócios com o pânico quando devedores estrangeiros recusaramse a pagar Numa emergência a unidade da sociedade afirmouse por intermédio da intervenção Em que medida o estado foi induzido a interferir dependeu da constituição da esfera política e do grau da perturbação econômica Enquanto o voto era restrito e apenas alguns exerciam influência política o intervencionismo era um problema muito menos urgente do que se tornou quando o sufrágio universal transformou o estado em órgão do milhão dominante o mesmo milhão que no setor econômico tinha que suportar muitas vezes com amargura o encargo dos dominados Enquanto o empregro era abundante os rendimentos seguros a produção contínua o padrão de vida seguro e os preços estáveis a pressão intervencionista era naturalmente menor do que se tornou quando as quedas adiadas transformaram a indústria num amontoado de ferramentas em desuso e esforços frustrados Também do ponto de vista internacional os métodos políticos eram usados para suplementar a autoregulação imperfeita do mercado A teoria ricardiana do comercio e meio circulante ignorou em vão á diferença de status existente entre os vários países segundo a sua diferente capacidade de produzir riquezas capacidade de exportação de comércio de navegação e de experiência bancária Pela teoria liberal a GrãBretanha era apenas mais um átomo no universo do comércio e ocupava precisamente o mesmo lugar que a Dinamarca e a 244 Guatemala Na verdade o mundo contava com um número limitado de paí e dividido em países que emprestavam e países que pediam emprestado países exportadores e países praticamente autosuficientes países com exportações variadas e países que dependiam de uma única mercadoria como o trigo ou o café para suas importações ou empréstimos estrangeiros Tais diferenças podiam ser ignoradas pela teoria mas suas conseqüências não podiam ser abandonadas da mesma forma na prática Era freqüente os países ultramarinos estarem impossibilitados de atender às suas dívidas externas ou verem suas moedas depreciadas o que ameaçava sua solvência Às vezes eles decidiam corrigir a balança através de meios políticos e interferiam na propriedade de investidores estrangeiros Em nenhum desses casos podia se depender de processos econômicos autocurativos embora de acordo com a doutrina clássica esses processos devessem infalivelmente reembolsar os credores restaurar a moeda e resguardar o estrangeiro contra a repetição de perdas semelhantes Isto exigiria que os países envolvidos fossem participantes mais ou menos igualitários num sistema de divisão internacional do trabalho o que não era o caso enfaticamente Seria ocioso esperar que por um processo invariável o país cuja moeda se desvalorizasse aumentaria automaticamente suas exportações restaurando assim o seu balanço de pagamentos ou que a sua necessidade de capital estrangeiro pudesse cornpelilo a compensar o estrangeiro e reassumir o montante da sua dívida O aumento nas vendas de café ou de nitratos por exemplo poderia destruir o mercado e repudiar uma dívida externa exorbitante poderia parecer preferível a depreciar a moeda nacional O mecanismo do mercado mundial não podia se permitir correr tais riscos Assim enviavamse navios de guerra para o local e o governo negligente fraudulento ou não se defrontava com a alternativa de um bombardeio ou um ajuste Não havia outro método capaz de obrigar o pagamento impedir grandes perdas e manter o sistema em funcionamento Prática semelhante era utilizada para induzir os povos coloniais a reconhecerem as vantagens do comércio quando o argumento teoricamente infalível da vantagem mútua não era prontamente reconhecido pelos nativos e talvez jamais o fosse A necessidade de métodos intervencionistas era ainda mais evidente se a região em questão fosse rica nas matériasprimas exigidas pelos fabricantes europeus e nenhuma harmonia preestabelecida podia garantir a emergência de um anseio por manufaturas européias por parte dos nativos cujas necessidades naturais já haviam tomado um rumo inteiramente diferente É claro que nenhuma dessas dificuldades 245 deveria surgir sob um sistema supostamente autoregulável Todavia enquanto cada vez mais os pagamentos só eram feitos sob a ameaça da intervenção armada e as rotas comerciais se mantinham abertas apenas com a ajuda dos navios de guerra isto é o comércio seguia a bandeira enquanto a bandeira seguia as necessidades dos governos invasores mais patente se tornava o fato de que era preciso utilizar instrumentos políticos para manter o equilíbrio da economia mundial 246 18 FORÇAS DE RUPTURA Dessa uniformidade de ajustes institucionais subjacentes é que derivou a intrigante similaridade no padrão dos acontecimentos que se difundiram sobre uma enorme expansão da terra no meio século 1879 1929 Uma variedade infinita de personalidades e ambientes de mentalidades e antecedentes históricos deu cor local e uma ênfase tópica às vicissitudes de muitos países e no entanto a tessitura era a mesma na maior parte da civilização mundial Essa afinidade transcendia a dos traços culturais comuns a povos que usam ferramentas similares que gozam dos mesmos prazeres e que recompensam os esforços com os mesmos prêmios Ao contrário a semelhança compreendia a função dos acontecimentos concretos no contexto histórico da vida o componente de tempo da existência coletiva Uma análise dessas tensões e esforços típicos deveria revelar muito do mecanismo que produziu o padrão singularmente uniforme da história durante esse período As tensões podem ser simplesmente apupadas de acordo com as esferas institucionais mais importantes Na economia doméstica os mais variados sintomas de desequilíbrio declínio de produção emprego e rendimentos serão representados aqui pelo flagelo típico do desemprego Na política doméstica havia a luta e impasse das forças sociais que especificaremos como tensão de classes As dificuldades no campo da economia internacional que se agrupavam em torno do chamado balanço de pagamentos e compreendia uma queda nas exportações termos desfavoráveis de comércio escassez de matériasprimas importadas e perdas nos investimentos estrangeiros designaremos 247 aqui como um grupo com uma forma característica de tensão a saber pressão sobre o câmbio Finalmente as tensões na política internacional serão resumidas com rivalidades imperialistas Consideremos agora um país que no ecurso e uma depressão de negócios é atingido pelo desemprego É fácil ver que todas as medidas de política econômica que os bancos possam tomar para criar empregos são limitadas pelas exigências de câmbios estáveis Os bancos não poderão se expandir ou estender novos critérios à indústria sem apelar para o Banco Central que de sua parte se recusará a acompanhálos uma vez que a segurança da moeda exige um caminho oposto Por outro lado se a tensão se distribui da indústria para o estado os sindicatos profissionais podem induzir os partidos políticos associados a abordar o tema no congresso o alcance de qualquer política de assistência ou de obras públicas será limitado pelas exigências do equilíbrio orçamentário outra precondição de câmbios estáveis O padrãoouro cerceará assim a ação do Tesouro tão efetivamente como do banco em questão e o legislativo confrontar seá com as mesmas limitações que se aplicam à indústria No âmbito da nação a tensão do desemprego pode recair alternadamente na zona industrial ou governamental Se num caso particular a crise foi superada por uma pressão deflacionária dos salários podese dizer então que a carga recaiu basicamente na esfera econômica Se porém essa medida dolorosa foi evitada com a ajuda de obras públicas subsidiadas por impostos a fundo perdido o choque de tensão recairá na esfera política o mesmo ocorreria se a diminuição dos salários fosse imposta aos sindicatos profissionais por alguma medida governamental em desafio aos direitos adquiridos No primeiro caso pressão deflacionária sobre salários a tensão permanece dentro da zona de mercado que se expressa numa mudança de rendimentos transmitida por uma mudança nos preços No último caso obras públicas ou restrições sindicais ocorre uma mudança no status legal ou na taxação que afeta basicamente a posição política do grupo envolvido Pode ocorrer que a tensão o esemprego nha se espalhado fora dos limites da nação e afetado os câmbios estrangeiros Isto pode acontecer quer sejam usados métodos políticos ou econômicos no combate ao desemprego Sob o padrãoouro que presumimos estar em vigor o tempo todo qualquer medida governamental que cause um déficit orçamentário pode iniciar uma depreciação da moeda Se por outro lado o desemprego está sendo atacado pela expansão do crédito bancário ascensão dos preços domésticos pode atingir as exportações e 248 afetar dessa forma a balança de pagamentos Em qualquer caso os câmbio diminuirão e o país sentirá a pressão na sua moeda De forma alternativa a tensão que decorre do desemprego pode levar a uma tensão externa No caso de um país fraco isto teve algumas vezes as conseqüências mais graves para a sua posição internacional Deteriorado o seu status desprezados os seus direitos o controle estrangeiro é imposto a ele com a derrota das suas aspirações nacionais No caso dos estados fortes a pressão pode ser contrabalançada pela disputa de mercados estrangeiros colônias zonas de influência e outras formas de rivalidade imperialista As tensões que emanavam do mercado corriam assim para e contra o mercado e as outras zonas institucionais principais afetando algumas vezes o funcionamento da área de governo outras vezes a do padrãoouro ou do sistema de equilíbriodepoder conforme o caso Cada área era comparativamente independente das outras e procurava um equilíbrio próprio quando esse equilíbrio não era alcançado o desequilíbrio se difundia sobre as outras esferas Foi a relativa autonomia das esferas que o acúmulo de tensões e gerou pressões que eventualmente explodiram sob as formas mais ou menos estereotipadas Enquanto na imaginação o século XIX se ocupava em construir a utopia liberal na realidade ela estava transferindo as coisas para um número definido de instituições concretas cujos mecanismos dominavam a época A abordagem que mais se aproximou da compreensão da verdadeira situação foi talvez a dúvida retórica de um economista que ainda em 1933 denunciava as políticas protecionistas da grande maioria dos governos Pode ser correta indagava ele uma política unanimemente condenada por todos os especialistas como completamente errônea grosseiramente falaciosa e contrária a todos os princípios de teoria econômica Sua resposta foi um não incondicional1 Todavia em vão procuraria na literatura liberal qualquer coisa que se aproximasse uma explicação dos fatos patentes A única resposta era a denúncia uma corrente infindável de abusos por parte de governos políticos estadistas cuja ignorância ambição ganância e estreito preconcei eram supostamente responsáveis pelas políticas protecionistas segui pela grande maioria dos países Era raro encontrar um argumen racional sobre o assunto Desde o desafio dos filósofos aos fatos empicos da ciência jamais se viu um preconceito tão claro exibido em uma 1 Haberler G Der internationale Handel 1933 p vi 249 coleção tão assustadora A única resposta intelectual era suplementar o mito da conspiração protecionista com o mito da loucura imperialista O argumento liberal na medida em que se tornou articulado afirmava que já no início da década de 1880 as paixões imperialistas começavam a surgir nos países ocidentais destruindo o frutífero trabalho dos pensadores econômicos pelo seu apelo emocional ao preconceito tribal Essas políticas sentimentais ganharam forças gradualmente e conduziram finalmente à Primeira Guerra Mundial Após a Grande Guerra as forças do Iluminismo tiveram uma outra oportunidade de restaurar o império da razão mas um surto inesperado de imperialismo principalmente por parte de pequenos países novos e mais tarde também dos não possuidores como a Alemanha a Itália e o Japão derrubaram o vagão do progresso O animal astucioso o político havia derrotado os centros cerebrais da raça Genebra Wall Street e a City de Londres Nesta peça de teologia política popular o imperialismo toma o lugar do velho Adão Os estados e os impérios são considerados congenitamente imperialistas eles devorarão seus vizinhos sem qualquer compulsão moral A última metade da controvérsia é verdadeira mas não a primeira Embora o imperialismo quando e onde aparece não dependa de justificativa racional ou moral para a sua expansão é contrário aos fatos que estados e impérios sejam sempre expansionistas Nem sempre as associações territoriais estão preocupadas em ampliar suas fronteiras nem as cidades nem os estados nem os impérios sofrem tal compulsão Argumentar o oposto é transformar algumas situações típicas em lei geral De fato ao contrário dos pressupostos populares o capitalismo moderno começou com um longo período de contração Ele só se voltou para o imperialismo quando já bem adiantado na sua carreira O antiimperialismo foi iniciado por Adam Smith que portanto antecipou não apenas a revolução norteamericana mas também o movimento Little EngIand do século seguinte Os motivos dessa ruptura foram econômicos a rápida expansão dos mercados iniciada pela Guerra dos Sete Anos fez com que os impérios saíssem de moda Enquanto as descobertas geográficas combinadas com meios de transportes relativamente lentos favoreciam as plantações de alémmar as comunicações rápidas transformaram as colônias num luxo dispendioso Um outro fator desfavorável às plantações foi o significado das exportações que agora eclipsava o das importações O ideal do mercado comprador cedeu lugar ao mercado vendedor um objetivo atingido agora pelo simples meio de vender mais barato que os competidores 250 inclusive os próprios colonialistas Uma vez perdidas as colônias marítimas do Atlântico o Canadá só conseguiu se manter no império com certa dificuldade 1837 até um Disraeli defendia a liquidação das possessões africanas ocidentais o estado de Orange em vão se oferecia para fazer parte do império e a algumas ilhas do Pacífico hoje vistas orno pontos importantes de estratégia mundial eram constantemente recusadas à admissão ao império Comerciantes livres e protecionistas liberais e conservadores fanáticos uniramse na convicção popular de que as colônias eram um ativo pródigo que se transformaria num passivo político e financeiro Quem quer que falasse de colônias no século entre 1780 e 1880 era visto como partidário do ancien régime A classe média denunciava a guerra e a conquista como maquinações dinésticas e servia de instrumento ao pacifismo François Quesnay fora o primeiro a reclamar os lauréis da paz para o laissezfaire A França e a Alemanha seguiam na esteira da Inglaterra A primeira diminuiu de forma apreciável a sua taxa de expansão e até mesmo o seu imperialismo era agora mais continental do que colonial Bismarck desdenhosamente declinava pagar o preço de uma só vida pelos Bálcãs e colocou toda a sua influência por trás da propaganda anticolonial Essa era a atitude governamental na época em que as companhias capitalistas invadiam continentes inteiros quando a Companhia das Índias Orientais já fora dissolvida por insistência de preocupados exportadores do Lancashire e comerciantes varejistas anônimos substituíam na Índia as figuras resplandecentes de Warren Hastings e Clive O governo se mantinha à parte Cunning ridicularizava a noção da intervenção em favor de investidores de risco e especuladores de alémmar A separação do político e do econômico atingia agora os assuntos internacionais Enquanto a Rainha Elisabeth relutava em distinguir muito estritamente entre sua renda particular e a renda dos corsários Gladstone teria considerado uma calúnia a alegação de que a política externa britânica estava a serviço dos investidores estrangeiros Permitir que o poder do estado e os interesses comerciais se fundissem ão era uma idéia do século XIX pelo contrário os primeiros estadistas vitorianos já haviam proclamado a independência do político e do econômico como uma máxima de comportamento internacional As representações diplomáticas só podiam agir em favor dos interesses privados dos seus nacionais em casos muito definidos e a ampliação clandestina dessas oportunidades era negada publicamente e quando comprovada repreendia da mesma maneira O princípio da não intervenção do estado nos casos de negócios privados era mantido não apenas internamente 251 mas também no exterior O governo nacional não devia intervir no comércio privado e se esperava que os ministérios do exterior vissem os interesses privados externos apenas em amplas linhas nacionais Os investimentos eram majontariamente agrícoIas e se localizavam internamente Os investimentos externos ainda eram considerados um jogo e as frequents perdas totais incorridas pelos investidores eram consideradas como amplamente compensadas pelos escandalosos termos do empréstimo usurário A mudança ocorreu subitamente e agora simultaneamente em todos os países ocidentais Enquanto a Alemanha só repetiu o desenvolvimento doméstico da Inglaterra após um lapso de meio século os acontecimentos externos de âmbito mundial afetariam necessariamente todos os países comerciais da mesma forma Esse evento foi o incremento no ritmo e no volume do comércio internacional assim comoa mobilização universal da terra implícita no transporte em massa de cereais e matériasprimas agrícolas de uma parte do planeta para outra a um custo fracionário Esse terremoto econômico transtornou a vida de dezenas de miíhões na Europa rural Em poucos anos o livre comércio era assunto do passado e a expansão posterior da economia de mercado ocorreu sob condições inteiramente novas Essas mesmas condições foram determinadas pelo duplo movimento O padrão de comércio internacional que se desenvolvia agora a uma taxa acelerada foi interceptado pela introdução de instituições protecionistas destinadas a cercear a ação global do mercado A crise agrária e a Grande Depressão de 18731886 haviam abalado a confiança na economia autocurativa A partir de agora as instituições típicas da economia de mercado só podiam ser introduzidas se acompanhadas de medidas protecionistas tanto mais que desde o final da década de 1870 e princípio de 1880 as nações se formavam em unidades organizadas aptas a sofrerem dolorosamente as distorções envolvidas em qualquer ajuste súbito às necessidades do comércio exterior ou dos câmbios externos O veículo supremo da expansão da economia de mercado o padrãoouro era assim geralmente acompanhado pela introdução simultânea de políticas protecionistas típicas da época como legislação social e tarifas aduaneiras Também neste ponto a tradicional versão liberal da conspiração coletivista não se ateve aos fatos O comércio livre e o sistema do padrãoouro não foram arruinados por capricho por traficantes de tarifas egoístas nem por ternas leis sociais Pelo contrário o próprio aparecimento do padrãoouro apressou a difusão dessas instituições protecionistas 252 que eram tanto mais bemvindas quanto mais pesado era o encargo dos câmbios estabelecidos A partir de então as tarifas as leis fabris e uma ativa política colonial eram prérequisitos de uma moeda externa estável a GrãBretanha com sua grande superioridade industrial foi a exceção que confirmou a regra Só quando esses pré requisitos eram dados é que os métodos da economia de mercado podiam ser introduzidos com segurança Quando esses métodos eram impostos a povos desamparados sem medidas protetoras como em regiões exóticas e semicoloniais o sofrimento que ocorria era indescritível Temos aqui a chave do aparente paradoxo do imperialismo a economicamente inexplicável e portanto supostamente irracional recusa dos países de comerciarem juntos indiscriminadamente e em vez disso colocarem como objetivo a aquisição de mercados exóticos e ultramarinos O que fazia os países agirem dessa maneira era simplesmente o receio de conseqüências similares àquelas que os povos desprotegidos eram incapazes de evitar A diferença no entanto estava no ponto de que enquanto a população tropical da infeliz colônia se via atirada a uma miséria e degradação totais a ponto até da extinção física a recusa do país ocidental era induzida pelo receio de um perigo menor mas suficientemente real para ser evitado a todo custo Não fazia diferença que a ameaça não fosse essencialmente econômica como no caso das colônias à parte o preconceito não havia razão para procurar a medida da distorção social nas magnitudes econômicas De fato seria proporse um absurdo esperar que uma comunidade permanecesse indiferente ao aguilhão do desemprego à mudança das indústrias e das ocupações e à tortura moral e psicológica que as acompanhava apenas porque os efeitos econômicos podiam ser insignificantes a longo prazo A nação podia ser tanto o recipiente passivo como o indicador ativo da tensão Se algum acontecimento externo pesasse fortemente sobre o país seu mecanismo interno funcionava da maneira habitual transferindo a pressão da zona econômica para a política ou viceversa Exemplos significativos ocorreram no período pósguerra Para alguns países da Europa Central a derrota criou condições altamente artificiais que incluíam uma feroz pressão externa sob a forma de reparações Durante mais de uma década o cenário doméstico alemão foi dominado por um deslocamento da carga externa entre a indústria e o estado entre os salários e lucros de um lado benefícios sociais e impostos de outro A nação como um todo foi sustentáculo das reparações a situação interna mudava de acordo com o modo com que o país governo e negócios combinados abordava a tarefa A solidariedade nacional estava 253 portanto fixada no padrãoouro e a obrigação mais importante era a manutenção do valor externo da moeda O Plano Dawes foi expressamente projetado para resgarudar o meio circluante alemão O Plano Young tornou absoluta a mesma condição Não fosse essa obrigação de manter o valor externo do reichsmark inalterado o curso dos assuntos domésticos alemães durante esse período seria ininteligível A responsabilidade coletiva pelo meio circulante criou o indestrutível arcabouço dentro do qual os negócios e os partidos a indústria e o estado se ajustavam à tensão No entanto aquilo que a Alemanha derrotada teve que suportar como conseqüência de uma guerra perdida todos os povos haviam suportado voluntariamente até a guerra isto é a integração artificial de seus países através da pressão de câmbios estáveis Somente a resignação às leis inevitáveis do mercado poderia explicar a aquiescência orgulhosa com a qual a cruz era carregada Podese objetar que este esboço é o resultado de uma supersimplificação sustentada A economia de mercado não começou num só dia nem os três mercados correram como uma troika nem o protecionismo teve efeitos paralelos em todos os mercados etc Isto é verdade sem dúvida mas perde de vista o ponto em questão Admitese que o liberalismo econômico apenas criou um mecanismo novo a partir de mercados mais ou menos desenvolvidos ele unificou vários tipos de mercado já existentes e coordenou suas funções num único todo A separação do trabalho e da terra já estava em andamento nessa ocasião assim como o desenvolvimento de mercados para o dinheiro e o crédito O presente estava ligado ao passado em toda a linha e não se encontrava uma brecha sequer A mudança institucional porém pela sua própria natureza começou a operar abruptamente O estágio crítico fora atingido com o estabelecimento de um mercado de trabalho na Inglaterra no qual os trabalhadores ficavam ameaçados pela fome se deixassem de cumprir os ditames do trabalho assalariado Logo que foi dado esse passo drástico o mecanismo do mercado autoregulável entrou em funcionamento Seu impacto sobre a sociedade foi tão violento que quase instantaneamente e sem qualquer mudança de opinião anterior organizaramse poderosas reações protetoras A despeito da grande diferença de natureza e origem os mercados dos vários elementos da indústria revelavam agora um desenvolvimento paralelo E não poderia ser de outra maneira A proteção do homem da natureza e da organização produtiva atingiu o nível de uma interferência nos mercados do trabalho e da terra bem como na 254 mediação da troca o dinheiro e assim ipso fato prejudicaram a autoregulação do sistema Uma vez que o propósito da intervenção era reabilitar as vidas dos homens e do seu meio ambiente e proporcionarlhes alguma segurança de status essa intervenção visava naturalmente reduzier a flexibilidade dos salários e a mobilidade da mãodeobra dando estabilidade aos rendimentos continuidade à produção introduzindo o controle público dos recursos nacionais e a administração do meio circulante a fima de impedir mudnças desordenadas no nívle de preço A Depressão de 18731886 e a dificuldade agrária da década de 1870 aumentaram permanentemente a tensão No início da depressão a Europa estava no apogeu do livre comércio O novo Reich alemão havia imposto à França a cláusula de nação mais favorecida no acordo entre ele e esta última comprometerase a abandonar as tarifas sobre o ferrogusa e introduzira o padrãoouro No final da depressão a Alemanha já se havia cercado de tarifas protetoras estabelecera uma organização geral de cartéis organizara um sistema de seguro social global e praticava uma polícia colonial de alta pressão O Prussianismo que havia sido pioneiro do livre comércio foi evidentemente tão pouco responsável pela mudança para o protecionismo como pela introdução do coletivismo Os Estados Unidos tinham tarifas ainda mal altas que o Reich e eram tão coletivistas como este à sua própria maneira eles subsidiaram fortemente a construção de ferrovias de longo curso e desenvolveram a elefantina formação de trustes Todos os países ocidentais seguiram a mesma tendência independente da mentalidade nacional e da história2 Com o padrãoouro internacional foi posto em atividade o mais ambicioso esquema de mercado implicando a independência absoluta dos mercados às autoridádes nacionais O comércio internacional significava agora a organização da vida no planeta sob um mercado autoregulável que compreendia o trabalho a terra e o dinheiro sendo o padrãoouro o guardião desse gigantesco autômato Nações e povos eram apenas bonecos num espetáculo inteiramente fora do seu controle Eles se protegiam do desemprego e da instabilidade com a ajuda dos bancos centrais e das tarifas aduaneiras suplementadas por leis de migração Esses artifícios se destinavam a neutralizar os efeitos destrutivos do comércio livre mais moedas determinadas e na medida em que alcançavam esse proposito 2 G D H Cole chama a década de 1870 de longe o período ativo de legislação social de todo o século XIX 255 eles interferiam no desempenho desses mecanismos Embora da uma dessas restrições tivesse os seus beneficiários cujos superluos ou supersalários representavam uma taxação imposta a todos os utros cidadãos muitas vezes era apenas o montante dessa taxação que era injustificado não a proteção em si mesma A longo prazo ocorreu uma queda global nos preços que beneficiou a todos Quer a proteção fosse justificada ou não a debilidade do sistema mundial de mercado foi trazida à luz pelos efeitos das intervenções As tarifas de importação de um país dificultavam as exportações de outro e forçavamno a procurar mercados em regiões politicamente desproregidas O imperialismo econômico era principalmente uma luta entre potências pelo privilégio de estender seu comércio aos mercados politicamente desprotegidos A pressão exportadora foi reforçada pela disputa de suprimentos de matériasprimas causada pela febre manufarureira Os governos emprestavam apoio a seus nacionais engajados em negócios nos países atrasados O comércio e a bandeira corriam na esteira um do outro O imperialismo e a preparação semiconsciente para a autarquia eram a inclinação das potências que se encontravam mais e mais dependentes de um sistema crescentemente falível de economia mundial E no entanto era imperativa a rígida manutenção da integridade do padrãoouro internacional Esta foi uma fonte institucional da ruptura Uma contradição similar operava dentro das fronteiras nacionais O protecionismo ajudou a transformar os mercados competitivos em mercados monopolistas Cada vez menos os mercados podiam ser descritos como autônomos e como mecanismos automáticos de átomos em competição Cada vez mais os indivíduos eram substituídos por associações homens e capital ligados a grupos não competitivos O ajuste econômico se tornou lento e difícil A autoregulação dos mercados fora gravemente atingida Ocasionalmente o desajuste dos preços e as estruturas de custo prolongavam as depressões o equipamento desajustado retardava a liquidação de investimentos não lucrativos o desajuste dos preços e os níveis de renda causavam tensão social Qualquer que fosse o mercado em questão trabalho terra ou dinheiro a tensão transcendia a zona econômica e o equilíbrio tinha que ser restaurado por meios políticos Todavia a separação instirucional da esfera política e da esfera econômica era constitutiva da sociedade de mercado e tinha que ser mantida qualquer que fosse a tensão envolvida Esta foi a outra fonte de tensão demolidora 256 Estamos nos aproximando da conclusão de nossa narrativa mas parte considerável do nosso argumento precisa ser desdobrada Mesmo que consigamos provar fora de qualquer dúvida que no cerne da transformação estava o fracasso da utopia do mercado ainda temos a tarefa de mostrar de que maneira os acontecimentos reais foram determinado por essa causa Num certo sentido esta é uma tarefa impossível pois a história não é modelada por qualquer fator único Entretanto a despeito de toda a sua riqueza e variedade o fluxo da história tem suas situações e alternativas periódicas que respondem pela ampla similaridade na tessitura dos acontecimentos de uma época Não precisamos nos preocupar com as fímbrias dos torvelinhos imprevisíveis se podemos dar conta até certo ponto das regularidades que governam as correntes e contracorrentes sob condições típicas No século XIX tais condições foram dadas pelo mecanismo do mercado auto regulável cujas exigências tiveram que ser cumpridas pela vida nacional e internacional A partir desse mecanismo seguiramse duas peculiaridades da civilização seu rígido determinismo e seu caráter econômico A perspectiva contemporânea tendia a ligar os dois e presumir que o determinismo derivava da natureza da motivação econômica pela qual se esperava que os indivíduos perseguissem seus interesses monetários O fato é que não havia conexão entre os dois O determinismo tão proeminente em tantos detalhes foi simplesmente o resultado do mecanismo de uma sociedade de mercado com suas alternativas previsíveis cuja rigidez foi erroneamente atribuída à força das motivações materialistas O sistema ofertaprocura preço sempre equilibrarseà quaisquer que sejam os motivos dos indivíduos e as motivaçôes econômicas per se são notoriamente muito menos efetivas para a maioria das pessoas do que as chamadas motivações emocionais A humanidade estava sob o guante não de novas motivações mas de novos mecanismos Resumindo a tensão surgiu da zona de mercado e daí se difundiu para a esfera política compreendendo assim o todo da sociedade Dentro das próprias nações porém a tensão continuava latente enquanto a economia mundial continuava a funcionar Somente quando se dissolveu a última das suas instituições sobreviventes padrãoouro foi que a expressão existente dentro das nações finalmente se liberou Diferentes como foram suas respostas à nova situação e essência elas representaram os ajustes ao desaparecimento da econo mundial tradicional quando esta se desintegrou a própria civilização 257 de mercado foi engolfada Isto explica o fato quase inacreditável de uma civilização estar se desmoronando pela atuação cega de instituições sem alma cujo único propósito era o incremento automático do bemestar material Mas como aconteceu realmente o inevitável Como ele se traduziu nos eventos políticos que são o cerne da história Foi nesta fase final da queda da economia de mercado que o conflito das forças de classe penetrou decisivamente 258 FOLHA EM BRANCO 259 TERCEIRA PARTE TRANSFORMAÇÃO EM PROGRESSO 260 FOLHA EM BRANCO 261 19 GOVERNO POPULAR E ECONOMIA DE MERCADO Quando o sistema internacional fracassou na década de 1920 reapareceram os temas quase esquecidos do capitalismo primitivo O primeiro e mais importante entre eles foi o do governo popular O ataque fascista à democracia popular reviveu simplesmente o tema do intervencionismo político que assombrava a história da economia de mercado já que este tema nada mais era que um outro nome para a separação entre as esferas econômica e política O tema do intervencionismo foi primeiro levantado em relação ao trabalho de um lado pela Speenhamland e a New Poor Law e de outro pela reforma parlamentar e pelo movimento cartista Quanto à terra e ao dinheiro a importância do intervencionismo não foi menor embora os choques tenham sido menos espetaculares No continente dificuldades semelhantes em relação ao trabalho terra e dinheiro surgiram com um intervalo de tempo que levou os conflitos a recaírem num meio industrialmente mais moderno mas socialmente menos unificado Em todos os lugares a separação entre a esfera econômica e a política foi o resultado do mesmo tipo de desenvolvimento Tanto na Inglaterra como no continente os pontos de partida foram a criação de um mercado de trabalho competitivo e a democratização do estado político A Speenharnland tem sido descrita com muita propriedade como um ato preventivo de intervenção que obstruiu a criação de um mercado de trabalho A batalha por uma Inglaterra industrial foi travada em primeiro lugar e perdida na ocasião pela Speenharnland Nessa luta o 262 lema do intervencionismo foi cunhado pelos economistas clássicos e a Speenharnland estigmatizada como uma interferência artificial numa ordem de mercado ainda não existente Townsend Malthus e Ricardo erigiram o edifício da economia clássica sobre as fundações inconsistentes das condições da Poor Law e ele foi o mais formidável instrumento conceitual de destruição jamais dirigido contra uma ordem desgastada Todavia durante mais uma geração o sistema de abonos protegeu os limites da aldeia contra o atrativo dos elevados salários urbanos Em meados da década de 1820 Huskisson e Peel ampliavam os caminhos do comércio exterior surgiu a permissão para a exportação de maquinaria foi levantado o embargo sobre a exportação da lã abolidas as restrições à navegação a emigração foi facilitada e a revogação formal do Statute of Artificers sobre aprendizado e avaliações salariais foi seguida pela abolição das Anti Combination Laws Ainda assim a desmoralizante Speenharnland Law se difundia de condado a condado privando o operário do trabalho honesto e transformando em incongruência o próprio conceito de homem trabalhador independente Embora já tivesse chegado a oportunidade para um mercado de trabalho sua criação foi impedida pela lei dos proprietários rurais O parlamento da reforma atacou de imediato a abolição do sistema de abonos A New Poor Law que atingiu essa finalidade foi considerada o ato mais importante de legislação social jamais votado pela Câmara dos Comuns No entanto o cerne desse decreto foi simplesmente a abolição da Speenharnland Não existe prova mais decisiva do que o fato de que nessa ocasião a simples ausência de intervenção no mercado de trabalho era reconhecida como algo de importância constitutiva para toda a futura estrutura da sociedade O mesmo se pode dizer em relação à fonte econômica da tensão Quanto à fonte política a reforma parlamentar de 1832 realizou uma revolução pacífica A estratificação social do país foi alterada pela Poor Law Amendment de 1834 e alguns dos fatos básicos da vida inglesa foram reinterpretados ao longo de linhas radicalmente novas A New Poor Law aboliu a categoria geral dos pobres o pobre honesto ou pobre trabalhador termos contra os quais Burke já havia investido Os pobres anteriores se dividiam agora em indigentes fisicamente desamparados cujo lugar era nos albergues e trabalhadores independentes que ganhavam sua vida com o trabalho assalariado Isto criou uma categoria de pobres inteiramente nova o desempregado que fez sua aparição no cenário social Enquanto o indigente deveria ser atendido por uma questão de humanidade o desempregado não deveria 263 ser assistido em favor da indústria Não importava o fato de que o trabalhador desempregado não era responsável pela sua própria sorte O ponto não era se ele podia ou não encontrar trabalho caso tentasse mas que o sistema salarial sofreria uma derrocada atirando a sociedade na miséria e no caos a não ser que ele se sentisse ameaçado pela fome tendo como alternativa apenas o detestado albergue Reconhecia se que isto significava castigar um inocente mas a perversão da crueldade consistia precisamente em emancipar o trabalhador com o objetivo concreto de fazer da fome uma ameaça efetiva de destruição É justamente este procedimento que torna inteligível aquele melancólico sentimento de desolação que as obras dos economistas clássicos nos transmitem Assim fechando as portas aos excedentes que se encontravam agora aprisionados dentro dos limites do mercado de trabalho o governo se colocou sob um estatuto que negava a si mesmo pois nas palavras de Harriet Martineau fornecer qualquer assistência às vítimas inocentes passou a ser uma violação dos direitos do povo por parte do estado Quando o movimento cartista exigiu a entrada dos deserdados nos limites do estado a separação do econômico e do político deixou de ser um tema acadêmico e passou a ser incontestável condição do sistema vigente na sociedade Teria sido um ato de loucura entregar a administração da New Poor Law com seus métodos científicos de tortura mental aos representantes do mesmo povo a quem esse tratamento era dispensado Lorde Macaulay estava apenas sendo coerente quando exigiu na Câmara dos Lordes num dos discursos mais eloqüentes jamais feitos por um grande liberal a rejeição incondicional da petição cartista em nome da instituição da propriedade sobre a qual repousava toda a civilização Sir Robert Peel acusou a Carta de ser um ataque à Constituição Quanto mais viciosamente o mercado de trabalho retorcia as vidas dos trabalhadores mais insistentemente eles clamavam pelo voto A exigência de um governo popular foi a fonte política da tensão Sob tais condições o constitucionalismo adquiriu um significado inteiramente novo Até então as salvaguardas constitucionais contra a interferência ilegítima nos direitos de propriedade eram dirigidas apenas contra os atos arbitrários vindos de cima A visão de Lock não transcendeu os limites da propriedade fundiária e comercial e objetivava apenas excluir os decretos despóticos da Coroa como as secularizações feitas sob Henrique VIII o roubo da Casa da Moeda sob Carlos I ou a parada do Erário sob Carlos II A separação entre governo e negócios no sentido de John Locke foi alcançada de forma exemplar 264 na carta de um banco independente da Inglaterra em 1694 O capital comercial havia ganho a sua luta contra a Coroa Cem anos mais tarde era a propriedade industrial e não mais a comercial que devia ser protegida e não mais contra a Coroa mas contra o povo Só uma noção equivocada poderia levar à aplicação das acepções do século XVII às situações do século XIX A separação de poderes que Montesquieu 1748 havia inventado nesse intervalo era usada agora para isolar o povo do poder sobre a sua própria vida econômica A constituição norteamericana modelada num ambiente de fazendeiros e artífices por uma liderança já precavida pelo cenário industrial inglês isolou completamente a esfera econômica da jurisdição da constituição colocando a propriedade privada sob a mais alta proteção concebível e criou a única sociedade de mercado legalmente constituída no mundo Apesar do sufrágio universal os eleitores norteamericanos não tinham poder contra os proprietários1 Na Inglaterra tornouse uma lei não escrita na Constituição que deveria ser negado o voto à classe trabalhadora Os líderes cartistas foram presos seus partidários que atingiam milhões foram ridicularizados por um legislativo que representava apenas uma pequena fração da população e a simples exigência de eleição era tratada pelas autoridades como um ato criminal Não havia qualquer indício do espírito de compromisso supostamente característico do sistema britânico uma invenção posterior Só depois que a classe trabalhadora atravessou os Hungry Forties a fome dos anos quarenta é que emergiu uma geração mais dócil para colher os benefícios da Idade de Ouro do capitalismo só depois que uma camada superior de trabalhadores especializados criou os seus sindicatos e separouse da negra massa de paupérrimos trabalhadores só depois que os trabalhadores aquiesceram ao sistema que a New Poor Law impunha a eles é que se permitiu ao estrato mais bem remunerado de trabalhadores participar nas assembléias da nação Os cartistas haviam lutado pelo direito de parar o moinho do mercado que triturava as vidas do povo mas esses direitos só foram concedidos ao povo depois que o terrível ajuste fora concretizado Dentro e fora da Inglaterra de Macaulay a Mises de Spencer a Sumner não houve um único militante liberal que deixasse de expressar a sua convicção de que a democracia popular era um perigo para o capitalismo 1 Hadley A T Economics an Account of the Relations between Private Prosperty and Public Welfare 1896 265 A experiência do tema trabalhista foi repetida no item moeda e também nele a década de 1920 foi prefigurada pela década de 1790 Bentham foi o primeiro a reconhecer que a inflação e a deflação eram intervenções no direito à propriedade a primeira um imposto sobre a última uma interferência nos negócios2 Desde então o trabalho e o dinheiro o desemprego e a inflação estiveram politicamente na mesma categoria Cobbett denunciou o padrãoouro juntamente com a New Poor Law Ricardo apoiou ambos e com argumentos bastante similares sendo o trabalho e o dinheiro mercadorias e não tendo o governo o direito de interferir com qualquer dos dois Banqueiros se opunham à introdução do padrãoouro como Atwood de Birmingham encontravamse do mesmo lado que os socialistas como Owen Um século mais tarde Mises ainda reiterava que o trabalho e o dinheiro não eram uma preocupação maior do governo do que qualquer outra mercadoria do mercado No século XVIII na América do Norte préfederativa o dinheiro barato era o equivalente da Speenhamland isto é uma concessão economicamente desmoralizante feita pelo governo para atender ao clamor popular A Revolução Francesa e os seus assignats mostraram que o povo podia destruir a moeda e a história dos estados americanos não ajudava a dissipar essa suspeita Burke identificava a democracia norteamericana com problemas na moeda e Hamilton receava não apenas as facções mas também a inflação Todavia enquanto na América do Norte do século XIX as escaramuças dos partidos populistas e greenback com os magnatas de Wall Street eram endêrnicas na Europa a acusação de inflacionismo só se tornou um argumento efetivo contra legislativos democráticos na década de 1920 com conseqüências políticas de longo alcance A proteção social e a interferência na moeda não eram simplesmente temas análogos mas freqüentemente idênticos Desde o estabelecimento do padrãoouro a moeda passou a ser ameaçada tanto pela elevação do nível salarial quanto pela inflação direta ambas podiam diminuir as exportações e até depreciar os câmbios Esta simples conexão entre as duas formas básicas de intervenção tornouse o fulcro da política na década de 1920 Partidos preocupados com a segurança da 2 Bentham J Manual of Political Economy p 44 sobre inflação como frugalidade forçada p 45 préde página como taxação indireta Cf também Principles of Civil Code cap 15 Papelmoeda emitido pelo governo da Revolução Francesa N do R 266 moeda protestavam tanto contra os déficits orçamentários ameaçadores como contra as políticas do dinheiro barato opondose assim tanto à inflação do tesouro quanto à inflação do crédito ou em termos mais práticos denunciando os encargos sociais e os altos salários os sindicatos profissionais e os partidos trabalhistas Não era a forma que importava mas a essência e quem poderia duvidar que os benefícios irrestritos ao desemprego poderiam ser tão efetivos na perturbação do equilíbrio do orçamento como uma taxa de juros demasiado baixa no inflacionamento dos preços e com as mesmas conseqüências nefastas para os câmbios Gladstone havia feito do orçamento a consciência da nação britânica Para povos menos importantes uma moeda estável poderia ocupar o lugar do orçamento O resultado porém era bastante aproximado Quer fossem os salários ou os serviços sociais que tivessem que ser cortados as conseqüências de não cortálos eram determinadas inexoravelmente pelo mecanismo do mercado Do ponto de vista desta análise o governo nacional de 1931 na GrãBretanha executou de forma modesta a mesma função que o New Deal norteamericano Ambos foram movimentos de ajuste de países isolados à grande transformação Mas o exemplo britânico teve a vantagem de estar livre de fatores complicadores como lutas civis ou conversões ideológicas revelando assim mais claramente os aspectos decisivos Desde 1925 que não era sólida a situação da moeda da GrãBretanha O retorno ao ouro não se fez acompanhar de um ajuste correspondente ao nível de preços que estava bastante acima da paridade mundial Muito poucas pessoas tinham consciência do absurdo do curso que seguiam conjuntamente governo e banco partidos e sindicatos profissionais Snowden Chanceler do Erário no primeiro governo trabalhista 1924 foi um adepto do padrãoouro como jamais existiu outro e no entanto ele compreendeu que assumindo a tarefa de restaurar a libra esterlina ele havia comprometido seu partido a apoiar uma queda nos salários ou então levar a breca Sete anos mais tarde o partido trabalhista foi forçado a ambas as coisas pelo próprio Snowden No outono de 1931 o contínuo vazamento da depressão já começava a se refletir sobre a libra esterlina Foi em vão que o colapso da greve geral de 1926 procurou garantir a impossibilidade de um novo aumento no nível salarial ele não impediu o aumento do encargo financeiro dos serviços sociais especialmente através do benefício incondicional ao desemprego Não era preciso que um banqueiro esbravejasse embora ocorressem esses acessos para impressionar a 267 nação com a alternativa da moeda sólida e orçamentos sólidos de um lado e a melhoria dos serviços sociais e uma moeda desvalorizada do outro não importava que a depreciação fosse causada pelos salários altos e quedas das exportações ou simplesmente por gastos deficitários Em outras palavras ou se fazia uma redução nos serviços sociais ou se agüentaria uma queda nos câmbios Já que o partido trabalhista era incapaz de se decidir entre um e outro a redução era contrária à política sindicalista e abandonar o ouro seria considerado um sacrilégio ele teve que deixar o governo e os partidos tradicionais acabaram reduzindo os serviços sociais e abandonando o ouro eventualmente O benefício incondicional ao desemprego foi arrasado sendo introduzidos recursos experimentais Ao mesmo tempo as tradições políticas do país sofreram uma mudança significativa O sistema bipartidário foi suspenso e não se mostrou qualquer precipitação em restaurálo Doze anos mais tarde ele ainda estava em eclipse e todos os indícios eram contra um próximo retorno Sem qualquer perda trágica de bemestar ou de liberdade o país suspendendo o padrãoouro dava um passo decisivo em direção à transformação Durante a Segunda Guerra Mundial isto se fez acompanhar de mudanças nos métodos do capitalismo liberal Todavia esses últimos não mudaram em caráter permanente e portanto não tiraram o país da zona de perigo Em todos os países europeus importantes estava em atividade um mecanismo semelhante e praticamente com os mesmos resultados Na Áustria em 1923 na Bélgica e na França em 1926 na Alemanha em 1931 os partidos trabalhistas tiveram que abandonar seu posto para salvar amoeda Estadistas como Seipel Francqui Poincaré ou Brüning eliminaram os trabalhistas do governo reduziram os serviços sociais e tentaram quebrar a resistência dos sindicatos nos ajustes salariais Invariavelmente o perigo era em relação à moeda e com igual regularidade a responsabilidade era atribuída aos salários inflacionados e aos orçamentos desequilibrados Uma tal simplificação não faz justiça à variedade dos problemas envolvidos que compreendiam praticamente todas as questões de política econômica e financeira inclusive as de comércio exterior agricultura e indústria Entretanto quanto mais de perto considerarmos essas questões mais claro se torna que na verdade a moeda e o orçamento focalizavam os temas pendentes entre empregadores e empregados e o resto da população oscilava no apoio a um ou outro dos grupos principais A chamada experiência Blun 1936 oferece mais um exemplo Os trabalhadores estavam no governo mas sob a condição de não ser 268 imposto qualquer embargo às exportações de ouro O New Deal francê não teve qualquer oportunidade de atuação pois o governo estava pre o à questão crucial da moeda O caso é conclusivo já que na França como na Inglaterra uma vez tornado inócuo o trabalhismo os partido de classe média abandonavam a defesa do padrãoouro sem mais explicações Estes exemplos revelam como era frustrante o efeito do postulado da moeda sólida sobre a política popular A experiência norteamericana ensinou a mesma lição de outra forma O New Deal não poderia ter sido lançado sem que se abandonasse o ouro embora o câmbio estrangeiro realmente importasse pouco Sob o padrãoouro os líderes do mercado financeiro pela própria natureza das coisas são incumbidos de resguardar os câmbios estáveis e o crédito interno sólido dos quais muito dependem as finanças governamentais Assim a organização bancária está em situação de obstruir qualquer movimentação interna na esfera econômica que lhe desagrade sejam as suas razões boas ou más Em termos de política os governos têm que acatar os conselhos dos banqueiros no que se refere à moeda e ao crédito pois só eles sabem se uma determinada medida financeira ameaçará ou não o mercado de capital e os câmbios O fato de o protecionismo social não resultar num impasse neste caso foi porque os Estados Unidos abandonaram o ouro a tempo Embora as vantagens técnicas dessa medida tenham sido poucas e os motivos apresentados pela administração foram falhos como acontece quase sempre o despojamento político de Wall Street foi conseqüência desse passo O mercado financeiro governa através do pânico mas o eclipse de Wall Street na década de 1930 salvou os Estados Unidos de uma catástrofe social do tipo continental Todavia só nos Estados Unidos com sua independência frente ao mercado mundial e sua posição monetária excessivamente forte é que o padrãoouro foi primordialmente assunto de política interna Nos outros países abandonar o ouro significava nada menos que retirarse da economia mundial A única exceção talvez seja a GrãBretanha pois sua participação no comércio mundial era tão ampla que ela já havia conseguido estabelecer as modalidades sob as quais deveria funcionar o sistema monetário internacional atirando a maior parte da carga do padrãoouro sobre os outros Nenhuma dessas condições subsistia em países como Alemanha França Bélgica e Áustria Neles a destruição da moeda significava cortar os laços com o mundo exterior sacrificando as indústrias dependentes de matériasprimas importadas desorganizando o comércio exterior sobre o qual o emprego se firmava e tudo 269 isto sem a possibilidade de impor a seus fornecedores um mesmo grau de depreciação para fugir às conseqüências internas de uma queda no valor de ouro da moeda como fizera a GrãBretanha Os câmbios eram o braço mais atuante da alavanca que pressionava o nível salarial Antes que os câmbios trouxessem o assunto à baila era tema salarial que aumentava a tensão sob a superfície O que as leis do mercado freqüentemente não podiam impor aos relutantes assalariados o mecanismo do câmbio externo conseguiu da forma mais efetiva O indicador da moeda tornou visível a todos os efeitos desfavoráveis que a política intervencionista dos sindicatos profissionais impunha ao mecanismo de mercado cujas fraquezas inerentes inclusive o ciclo comercial eram agora levadas em conta De fato a natureza utópica de uma sociedade de mercado não pode ser mais bem ilustrada do que através dos absurdos com os quais a ficção mercadoria em relação ao trabalho envolve a comunidade A greve essa arma normal de barganha da ação industrial era considerada cada vez com mais freqüência como uma interrupção injustificada do trabalho socialmente útil e que ao mesmo tempo diminuía o dividendo social do qual em última instância provinham os salários As greves de apoio provocavam ressentimentos as greves gerais eram vistas como ameaça à existência da comunidade De fato as greves nos serviços vitais e de utilidade pública mantinham os cidadãos presos enquanto os envolviam nos problemas labirínticos das verdadeiras funções de um mercado de trabalho Supõese que o trabalho encontre o seu preço no mercado e qualquer preço além do estabelecido por ele é considerado antieconômico Enquanto o trabalho corresponde a essa responsabilidade ele cornportarseá como um elemento na provisão daquilo que ele é a mercadoria trabalho e recusarseá a vender abaixo do preço que o comprador pode se permitir pagar Seguido esse raciocínio isto significa que a principal obrigação do trabalho é estar em greve quase que continuamente A proposição pode ser considerada um mero disparate mas ela é a única inferência lógica a partir da teoria do trabalho como mercadoria A fonte da incoerência entre teoria e prática é que o trabalho não é realmente uma mercadoria e se o seu fornecimento fosse sustado para atingir um preço satisfatório como acontece com o abastecimento de todas as outras mercadorias em circustâncias similares a sociedade logo teria que se dissolver por falta de sustento É notável que tal consideração jamais tenha sido incluída pelos economistas liberais na discussão do tema da greve 270 Voltando à realidade o método grevista para a fixação salarial seria desastroso em qualquer tipo de sociedade incluindo a nossa que se orgulha da sua racionalidade utilitarista Na verdade o trabalhador não tem qualquer segurança no seu emprego sob um sistema de empresa privada uma circunstância que envolve grave deterioração em seu status Acrescentemos a isto a ameaça do desemprego em massa e a função dos sindicatos profissionais se torna moral e culturalmente vital para a manutenção de padrões mínimos para a maioria do povo Mas é claro que qualquer método de intervenção que ofereça proteção aos trabalhadores deve obstruir o mecanismo do mercado autoregulável e até mesmo diminuir o fundo de bens de consumo que provê os salários dos trabalhadores Por necessidade inerente ressurgiram os problemas cruciais da sociedade de mercado intervencionismo e meio circulante Eles se tornaram o centro da política da década de 1920 O liberalismo econômico e o intervencionismo socialista se voltaram para as diferentes respostas dadas a eles O liberalismo econômico fez um esforço supremo para restaurar a autoregulação do sistema eliminando todas as políticas intervencionistas que interferiam com a liberdade dos mercados de terra trabalho e dinheiro Ele se propôs nada menos que resolver numa emergência o problema secular envolvido nos três princípios fundamentais do livrecomércio do mercado livre do trabalho e do livre funcionamento do padrãoouro Ele se tornou de fato a pontadelança de uma heróica tentativa de restaurar o comércio mundial de remover todos os empecilhos evitáveis para a mobilidade do trabalho e de reconstruir câmbios estáveis Este último objetivo tinha precedência sobre os demais A menos que fosse restaurada a confiança nas moedas o mecanismo de mercado não poderia funcionar e nesse caso seria ilusório esperar que os governos deixassem de proteger as vidas de seus povos por todos os meios ao seu alcance Na natureza das coisas esses meios eram basicamente tarifas e leis sociais destinadas a garantir alimentos e empregos isto é precisamente o tipo de intervenção que tornava impraticável um sistema autoregulável Havia uma outra razão mais imediata para colocar em primeiro lugar a restauração do sistema monetário internacional em face dos mercados desorganizados e dos câmbios instáveis o crédito internacional desempenhava um papel cada vez mais vital Antes da Primeira Guerra Mundial os movimentos do capital internacional além daqueles ligados aos investimentos de longo prazo apenas ajudavam a conservar 271 líquido o balanço de pagamentos mas eram estritamente limitados até mesmo nessa posição por considerações econômicas O crédito só era concedido àqueles que mereciam confiança na área dos negócios Agora a posição se invertia surgiram as dívidas na área política as reparações e os empréstimos concedidos numa base semipolítica para tornar possível o pagamento das reparações Mas os empréstimos eram concedidos também por razões de política econômica para estabilizar os preços mundiais ou restaurar o padrãoouro O mecanismo do crédito passou a ser utilizado por aquela parte da economia mundial relativamente sólida para diminuir a diferença nas partes relativamente desorganizadas dessa economia independente das condições de produção e de comércio As balanças de pagamento os orçamentos e os câmbios passaram a se equilibrar artificialmente numa série de países com a ajuda de um mecanismo de crédito internacional supostamente todopoderoso Esse mesmo mecanismo se baseava na expectativa de um retorno a câmbios estáveis que mais uma vez era sinônimo de um retorno ao ouro Uma espécie de cinta elástica de força descomunal ajudava a manter uma aparência de unidade num sistema econômico em dissolução mas essa cinta talvez só agüentasse a pressão se o retorno ao ouro fosse feito a tempo A realização de Genebra foi notável à sua maneira Não fora o fato do objetivo ser intrinsecamente impossível ele teria sido certamente atingido pois as tentativas nesse sentido foram suficientemente hábeis constantes e coerentes Conforme a situação porém nenhuma intervenção foi provavelmente mais desastrosa nos seus resultados do que a de Genebra Como ela parecia estar sempre à beira do sucesso ela agravou enormemente os efeitos do fracasso final Entre 1923 quando o marco alemão foi pulverizado em poucos meses e o começo de 1930 quando todas as moedas importantes do mundo estavam no ouro Genebra utilizou o mecanismo de crédito internacional para aliviar a carga das economias incompletamente estabilizadas da Europa Oriental primeiro em cima dos vitoriosos ocidentais depois para os ombros ainda mais largos dos Estados Unidos3 O colapso ocorreu na América durante o ciclo normal de negócios mas quando chegou a rede financeira criada por Genebra e pelos bancos anglosaxões enredou a economia do planeta numa confusão total e absoluta 3 Polanyi K Der Mechanismus der Weltwirtschaftskrise Der Österreichische Volkswirt 1933 suplemento 272 Muito mais foi envolvido ainda Durante a década de 1920 de acordo com Genebra as questões de organização social tinham que ser inteiramente subordinadas às necessidades de restauração da moeda A deflação era a necessidade básica e as instituições internas tinham que se ajustar da melhor maneira que pudessem Enquanto isto era preciso adiar até mesmo a restauração dos mercados internos livres e do estado liberal Nas palavras da Delegação do Ouro a deflação falhara em afetar certas classes de bens e serviços e portanto falhara também em atingir um novo equilíbrio estável Os governos tinham que intervir para reduzir os preços dos artigos monopolizados para reduzir as tabelas salariais já determinadas e cortar os aluguéis O ideal deflacionista passou a ser uma economia livre sob um governo forte Entretanto enquanto a frase tinha significado real quanto ao governo isto é poderes de emergência e suspensão das liberdades públicas a economia livre significava na prática o oposto do que se dizia isto é os preços e os salários eram ajustados pelo governo embora o ajuste fosse feito com o propósito expresso de restaurar a liberdade dos câmbios e libertar os mercados internos A prioridade dos câmbios envolvia nada menos que o sacrifício dos mercados livres e dos governos livres os dois pilares do capitalismo liberal Genebra representou portanto uma mudança de objetivo mas nenhuma mudança nos métodos enquanto os governos inflacionários condenados por Genebra subordinavam a estabilidade da moeda à estabilidade das rendas e do emprego os governos deflacionários colocados no poder por Genebra utilizavam as mesmas intervenções para subordinar a estabilidade das rendas e do emprego à estabilidade da moeda Em 1932 o relatório da Delegação do Ouro da Liga das Nações declarou que com a volta da incerteza do câmbio havia sido eliminada a principal realização monetária da última década O que o relatório não disse foi que no decurso desses vãos esforços deflacionários os mercados livres não haviam sido restaurados embora os governos livres fossem sacrificados Embora se opusessem em teoria tanto ao intervencionismo como à inflação os liberais econômicos haviam escolhido entre os dois e colocado o ideal da moeda sólida acima da não intervenção Ao fazêlo eles seguiram a lógica inerente a uma economia autoregulável Todavia um curso de ação como esse tendia a difundir a crise sobrecarregava a finança com a tensão insuportável dos deslocamentos econômicos maciços e acumulava os déficits de várias economias nacionais a ponto de tornar inevitável a ruptura dos remanescentes da divisão internacional do trabalho A teimosia dos 273 liberais econômicos em apoiar o intervencionismo autoritário durante uma década crítica a serviço de políticas deflacionárias resultou apenas no enfraquecimento decisivo das forças democráticas que talvez pudessem ter impedido a catástrofe fascista A Grã Bretanha e os Estados Unidos senhores e não servos do meio circulante abandonaram o ouro a tempo de escapar a esse perigo O socialismo é na sua essência a tendência inerente a uma civilização industrial de transcender o mercado autoregulável subordinandoo conscientemente a uma sociedade democrática Ele é a solução natural para os trabalhadores industriais que não vêem qualquer motivo para que a produção não seja diretamente regulada e que os mercados sejam mais do que uma característica útil mas subordinada numa sociedade livre Do ponto de vista da comunidade como um todo o socialismo é apenas a continuidade do esforço de fazer da sociedade uma relação de pessoas nitidamente humana e que na Europa Ocidental sempre esteve associada às tradições cristãs Do ponto de vista do sistema econômico ele é ao contrário uma ruptura radical com o passado imediato na medida em que ele rompe com a tentativa de fazer dos ganhos monetários privados o incentivo geral para as atividades produtivas e não reconhece aos indivíduos particulares o direito de disporem dos principais instrumentos de produção Em última instância é isto que torna difícil a reforma da economia capitalista pelos partidos socialistas mesmo quando estes estão dispostos a não interferir com o sistema de propriedade A mera possibilidade de que eles decidam fazêlo corrói aquele tipo de confiança que é vital na economia liberal isto é a confiança absoluta na continuidade dos títulos de propriedade Embora o teor real dos direitos de propriedade possam sofrer uma redefinição por parte da legislação a segurança da continuidade formal é essencial para o funcionamento do sistema de mercado Desde a Primeira Guerra Mundial ocorreram duas mudanças que afetam a posição do socialismo Primeiro o sistema de mercado mostrouse falível a ponto de um colapso quase total uma deficiência não esperada sequer pelos seus críticos Segundo criouse na Rússia uma economia socialista representando um ponto de partida inteiramente novo Embora as condições sob as quais esse empreendimento ocorreu o tornassem inaplicável aos países ocidentais a simples existência da Rússia soviética provou ser uma influência incisiva É verdade que ela se voltou para o socialismo por falta de indústrias de uma população alfabetizada e de tradições democráticas todas as três precondições do socialismo de acordo com as idéias ocidentais Essas diferenças 274 tornaram seus métodos e soluções inaplicáveis em qualquer outro lugar mas não impediram que o socialismo se tornasse um poder mundial O continente os partidos dos trabalhadores sempre foram socialistas em sua perspectiva e qualquer reforma que desejassem alcançar era de imediato suspeita de servir a objetivos socialistas Em épocas mais tranqüilas essa suspeita seria injustificada pois os partidos socialistas da classe trabalhadora como um todo estavam mais comprometidos com a reforma do capitalismo do que com a sua derrubada revolucionária Uma emergência porém a situação se modificava Se os métodos normais não eram válidos então poderiam ser tentados outros métodos anormais e em se tratando de um partido de trabalhadores tais métodos poderiam incluir o desprezo aos direitos de propriedade Sob a pressão de um perigo iminente os partidos dos trabalhadores podiam apelar para medidas de caráter socialista ou que assim pareciam aos partidários militantes da empresa privada Um simples indício nesse sentido seria suficiente para atirar os mercados numa confusão e começar um pânico universal Sob condições como essas o rotineiro conflito de interesses entre patrões e empregados assumiu um caráter sinistro Embora uma divergência de interesses econômicos terminasse sempre em compromisso normalmente a separação das esferas econômica e política na sociedade tendia a investir tais choques de graves conseqüências para a comunidade Os patrões eram os proprietários das fábricas e das minas e portanto diretamente responsáveis pelo andamento da produção na sociedade além do seu interesse pessoal nos lucros Em princípio eles teriam o apoio de todos na sua tentativa de manter a indústria em andamento Por outro lado os empregados representavam uma grande secçâo da sociedade seus interesses também eram e num grau importante coincidentes com os da comunidade como um todo Eles constituíam a única classe apta a proteger os interesses dos consumidores dos cidadãos dos seres humanos como tais e com o sufrágio universal a sua quantidade numérica lhes conferia uma preponderância na esfera política Entretanto o legislativo como a indústria desempenhava funções normais na sociedade Seus membros tinham a seu cargo a formação da vontade comunal a administração da política pública a elaboração de programas a longo prazo internos e externos Nenhuma sociedade complexa podia passar sem órgãos legislativos atuantes e corpos executivos de tipo político Um choque de interesses de grupo que resultasse na paralisação de órgãos da indústria ou do estado um deles ou ambos criava um perigo imediato para a sociedade 275 E no entanto foi precisamente este o caso da década de 1920 O trabalho se entrincheirou no parlamento onde o seu número lhe dava peso os capitalistas fizeram da indústria uma fortaleza para dirigir o país Os órgãos populares responderam com uma impiedosa intervenção nos negócios desprezando as necessidades de uma dada forma de indústria Os capitães de indústria subvertiam a lealdade da população para com os seus próprios dirigentes livremente eleitos enquanto órgãos democráticos entravam em luta contra o sistema industrial do qual dependia a subsistência de todos É claro que chegaria o momento em que ambos os sistemas econômico e político se veriam ameaçados de uma paralisia total O medo atingiria o povo e a liderança seria entregue àqueles que oferecessem uma saída fácil a qualquer preço A época estava madura para a solução fascista 276 20 A HISTÓRIA NA ENGRENAGEM DA MUDANÇA SOCIAL Se jamais existiu um movimento político que correspondeu às necessidades de uma situação objetiva e que não foi resultado de causas fortuitas ele foi o fascismo Ao mesmo tempo o caráter degenerativo da solução fascista era evidente Ela oferecia um escape a um impasse institucional que era essencialmente semelhante em grande número de países e no entanto se esse remédio fosse aplicado em todo lugar ele teria produzido uma doença que levaria à morte Esta é a maneira na qual perecem as civilizações A solução fascista do impasse atingido pelo capitalismo liberal pode ser descrita como uma reforma da economia de mercado alcançada ao preço da extinção de todas as instituições democráticas tanto no campo industrial como no político O sistema econômico ameaçado de ruptura poderia ser revitalizado mas os povos ficaram sujeitos a uma reeducação que se propunha a desnaturalizar o indivíduo e torná 10 incapaz de funcionar como unidade responsável do corpo político1 Essa reeducação que abrangia o dogma de uma religião política que negava a idéia da fraternidade do homem em todas as suas formas foi alcançada através de um ato de conversão de massa imposta aos recalcitrantes por métodos científicos de tortura 1 Polanyi K The Essence of Fascin Em Chistianity and the Social Revolution 1935 277 O aparecimento desse movimento nos países industrializados do globo e até mesmo em alguns menos industrializados jamais pode ser atribuído a causas locais mentalidades nacionais ou formação histórica como fizeram sistematicamente os contemporâneos O fascismo teve tão pouco a ver com a Primeira Guerra Mundial como com o Tratado de Versalhes com o militarismo Junker como com o temperamento italiano O movimento surgiu em países derrotados como a Bulgária e em países vitoriosos como a Iugoslávia em países de temperamento nórdico como a Finlândia e a Noruega e de temperamento sulista como a Itália e a Espanha em países de raça ariana como a Inglaterra a Irlanda ou a Bélgica e de raças nãoarianas como o Japão a Hungria ou a Palestina em países de tradição católica como Portugal e em países protestantes como a Holanda em comunidades militares como a Prússia e unidades civis como a Áustria em culturas antigas como a França e novas como os Estados Unidos e os países latinoamericanos De fato não houve qualquer tipo de formação de tradição religiosa cultural ou nacional que tornasse um país imune ao fascismo uma vez dadas as condições para a sua emergência Ademais foi marcante a falta de relação entre a sua força material e numérica e a sua efetividade política O próprio termo movimento era equivocado uma vez que implicava uma espécie de alistamento ou participação pessoal de grandes massas Se houve alguma coisa característica no fascismo foi a sua independência de tais manifestações populares Embora seu objetivo fosse um cortejo de massas sua força potencial era reconhecida não pelo número dos seus adeptos mas pelo fato de os líderes fascistas gozarem da boa vontade de pessoas em postos de relevância cuja influência na comunidade podia defendêlos das conseqüências eventuais de uma revolta abortada afastando assim os riscos da revolução Um país que se avizinhava da fase fascista revelava sintomas e entre eles não era necessária a existêricia de um movimento fascista propriamente dito Entre esses indícios importantes estavam a difusão de filosofias irracionais estéticas raciais demagogia anticapitalista opiniões heterodoxas sobre a moeda crítica do sistema partidário a depreciação amplamente difundida do regime ou qualquer que seja o nome dado ao conjunto democrático vigente Na Áustria a chamada filosofia universalista de Othmar Spann na Alemanha a poesia de Stephan George e o romantismo cosmogônico de Ludwig Klages na Inglaterra a vitalidade erótica de D H Lawrence na França o culto do mito político de Georges Sorel estavam entre os seus precursores 278 extremamente diversificados Hitler foi colocado no poder eventualmente pela facção feudalista em torno do presidente Hindemburg da mesma forma que Mussolini e Primo de Rivera foram elevados a seus cargos pelos seus respectivos soberanos No entanto Hitler tinha um vasto movimento a apoiálo Mussolini tinha um movimento pequeno Primo de Rivera não tinha nenhum Em nenhum dos casos ocorreu uma verdadeira revolução contra a autoridade constituída As táticas fascistas foram invariavelmente as de uma rebelião simulada arranjada com a aprovação tácita das autoridades que fingiam ter sido superadas pela força Este é o e boço simples de um quadro complexo no qual ainda teria que se dar lugar a figuras tão diversas como o demagogo independente e católico da Detroit industrial ou o Kingfish da atrasada Louisiana os conspiradores militares japoneses e os sabotadores ucranianos antisoviéticos O fascismo era uma possibilidade política constante uma reação emocional quase instantânea em cada comunidade industrial desde 1930 Podese chamálo um passo de preferência a um movimento para indicar a natureza impessoal da crise cujos sintomas eram freqüentemente vagos e ambíguos Muitas vezes as pessoas não estavam certas se um discurso político ou uma peça um sermão ou uma parada pública uma meta física ou uma exposição artística um poema ou um programa partidário era fascista ou não Não havia um critério aceito para o fascismo e nem ele possuía dogmas convencionais Entretanto um aspecto significativo de todas as suas formas organizadas foi a maneira abrupta na qual ele aparecia e desaparecia outra vez apenas para irromper com mais violência após um período indefinido de latência Tudo isso assenta no quadro de uma força social que aumenta e diminui de acordo com a situação objetiva O que intitulamos como situação fascista para resumir nada mais foi do que a ocasião tipica das vitórias fáceis e completas do fascismo De repente pareciam dissolverse as tremendas organizações do trabalho industrial e político e outros devotados mantenedores da liberdade constitucional e minúsculas forças fascistas punham de lado o que parecia até então a força irresistivel de governos democráticos partidos sindicatos profissionais Se uma situação revolucionária é caracterizada pela desintegração psicológica e moral de todas as forças de resistência a ponto de um punhado de rebeldes mal armados ser capaz de assaltar as fortalezas aparentemente intransponíveis da reação então a situação fascista é seu paralelo total exceto pelo fato de que aqui os baluartes da democracia e liberdades constitucionais foram 279 assaltados e suas defesas ruíram da mesma forma espetacular Na Prússia em julho de 1932 o governo legal dos socialdemocratas entrincheirado na sede do poder legítimo capitulou diante da simples ameaça de uma violência inconstitucional por parte de Herr von Papen Cerca de seis meses mais tarde Hitler se apoderou pacificamente dos postos mais altos do poder de onde lançou um ataque revolucionário de destruição total contra as instituições da República de Weimar e os partidos constitucionais Imaginar que foi a força do movimento que criou situações como essas e não ver que foi a situação que fez nascer o movimento neste caso é perder de vista a lição mais importante das últimas décadas O fascismo como o socialismo enraizavase numa sociedade de mercado que se recusava a funcionar Daí ser ele de caráter mundial de alcance católico universal na aplicação os temas transcendiam a esfera econômica e geravam uma transformação geral de um tipo distintamente social Ele se irradiou para quase todos os campos da atividade humana seja político ou econômico cultural filosófico artístico ou religioso Até certo ponto ele aglutinouse às tendências locais e tópicas Não é possível entender a história desse período a menos que se distinga entre o movimento fascista subjacente e as tendências efêmeras com as quais esse movimento se fundiu em diferentes países Na Europa da década de 1920 duas dessas tendências assumem forma proeminente e encobrem o padrão do fascismo mais débil porém amplamente mais compreensível contrarevolução e revisionismo nacionalista Seu ponto de partida mais imediato foram os tratados e as revoluções pósguerra Embora estritamente condicionados e limitados a seus objetivos específicos eles foram facilmente confundidos com o fascismo As contrarevoluções eram o retorno habitual do pêndulo político em direção a um estado de coisas que havia sido perturbado violentamente Tais movimentos foram típicos da Europa pelo menos desde o estabelecimento do Commonwealth inglês e tinham apenas uma conexão limitada com os processos sociais da sua época Na década de 1920 ocorreram numerosas situações do mesmo tipo uma vez que os levantes que derrubaram mais de uma dúzia de tronos na Europa Central e Oriental deviamse em parte à repercussão da derrota e não a um movimento em direção à democracia A tarefa da contrarevolução era principalmente política e recaiu naturalmente sobre as classes destituídas e grupos tais como dinastias aristocracias igrejas indústrias pesadas e partidos a eles filiados As alianças e os choques de conservadores 280 e fascistas durante esse período estavam relacionados basicamente com a parte que caberia aos fascistas na intentona contrarevolucionária Ora o fascismo foi urna tendência revolucionária dirigida tanto contra o conservadorismo como contra as forças revolucionárias competidoras do socialismo Isto não impediu aos fascistas de procurar o poder na área política oferecendo seus serviços à contrarevolução Pelo contrário eles reclamaram a ascendência principalmente pela suposta impotência do conservadorismo em cumprir a tarefa inevitável de impedir o socialismo Os conservadores naturalmente tentaram monopolizar as honras da contrarevolução e na verdade fizeramna sozinhos corno ocorreu na Alemanha Eles privaram os partidos da classe trabalhadora da influência e do poder sem porém transmitilos aos nazistas O mesmo ocorreu na Áustria onde os socialistas cristãos um partido conservador desarmaram os trabalhadores em grande escala 1927 sem fazer qualquer concessão à revolução da direita Mesmo quando era inevitável a participação fascista na contrarevolução os governos fortes estabelecidos relegaram o fascismo ao esquecimento Isto aconteceu na Estônia em 1929 na Finlândia em 1932 na Lituânia em 1934 Regimes pseudoliberais enfraqueceram o poder do fascismo pelo menos durante algum tempo na Hungria em 1922 e na Bulgária em 1926 Só na Itália é que os conservadores foram incapazes de restaurar a disciplina do trabalho na indústria sem fornecer aos fascistas urna oportunidade de adquirir poder Nos países derrotados militarmente mas também na Itália derrotada psicologicamente agigantavase o problema nacional Aqui havia uma tarefa cuja premência não podia ser negada O desarmamento permanente dos países derrotados era o mais profundo dos temas Num mundo no qual a única organização existente de lei internacional de ordem internacional e de paz internacional repousava no equilíbriode poder uma série de países se via impotente sem poder imaginar que tipo de sistema substituiria o antigo A Liga das Nações representava quando muito um sistema avançado de equilíbriodepoder mas na verdade ela não se aproximava sequer do nível do antigo Concerto da Europa pois faltavalhe o prérequisito de uma difusão geral de poder O nascente movimento fascista se colocou praticamente em todos os lugares a serviço do tema nacional dificilmente ele teria sobrevivido sem assumir essa tarefa Entretanto ele usou esse tema apenas como degrau em outras ocasiões seu tom era pacifista e isolacionista Na Inglaterra e nos Estados p Unidos ele se aliou ao apaziguamento na Áustria o Heimwehr cooperou 281 com diferentes pacifistas católicos e o fascismo católico era antinacionalista por princípio Huey Long não precisou do conflito de fronteiras com o Mississippi ou o Texas para lançar seu movimento fascista em Baton Rouge Movimentos similares na Holanda e na Noruega foram nãonacionalistas ao ponto da traição Quisling pode ter sido um nome para um bom fascista mas certamente não era o nome de um bom patriota Na sua luta pelo poder político o fascismo está inteiramente livre para desprezar ou utilizar temas locais à vontade Seu objetivo transcende o arcabouço político e econômico é social Ele coloca uma religião política a serviço de um processo degenerativo No seu processo de ascensão ele exclui apenas algumas emoções na sua orquestração uma vez vitorioso porém ele afasta da sua banda todas as outras motivações a não ser um pequeno grupo um grupo extremamente característico A menos que possamos distinguir perfeitamente entre esta pseudointolerância no caminho para o poder e a intolerância genuína quando no poder dificilmente poderemos compreender a diferença sutil mas decisiva entre o suposto nacionalismo de alguns movimentos fascistas durante a revolução e o nãonacionalismo especificamente imperialista que eles desenvolveram depois da revolução2 Embora os conservadores fossem bemsucedidos em regra em conduzir as contrarevoluções internas dificilmente eles conseguiam resolver o problema nacional internacional dos seus países Brüning afirmava em 1940 que as reparações alemãs e o desarmamento haviam sido solucionados por ele antes que a facção em torno de Hindemburg decidisse afastálo do cargo e dar o poder aos nazistas e alegou que a razão deste ato era não quererem dispensarlhe as honras devidas3 Num sentido muito limitado se isto aconteceu ou não parece imaterial pois a questão da igualdade de status da Alemanha não se restringia ao desarmamento técnico conforme alegava Brüning mas incluía a questão igualmente vital da desmilitarização Também não era realmente possível desprezar a força que a diplomacia alemã conseguiu através da existência das massas nazistas devotadas a políticas nacionalistas radicais Os eventos provaram conclusivamente que a igualdade de status da Alemanha não podia ter sido atingida sem uma partida 2 Heymann H Plan for Permanent Peace 1942 Cf A carta de 8 de janeiro de 1940 de Brüning 3 Rauschning H The Voice of Destruction 1940 282 revolucionária e é a essa luz que se tornou aparente a terrível responsabilidade do nazismo que empenhou uma Alemanha livre e igualitária numa carreira de crimes Tanto na Alemanha quanto na Itália o fascismo só pôde assumir o poder porque foi capaz de usar como alavanca problemas nacionais insolúveis enquanto na França ou na Grã Bretanha o fascismo foi enfraquecido decisivamente pelo seu antipatriotismo Somente em países pequenos naturalmente dependentes é que o espírito da subserviência a um poder estrangeiro provou ser um ativo para o fascismo Foi apenas por acidente como vemos que o fascismo europeu na década de 1920 se ligou às tendências nacionais e contrarevolucionárias Foi um caso de simbiose entre movimentos de origens independentes que se reforçaram uns aos outros e criaram a impressão de uma similaridade básica quando na verdade não estavam relacionados Na realidade o papel desempenhado pelo fascismo foi determinado por um fator a condição do sistema de mercado Durante o período 19171923 os governos procuraram ocasionalmente a ajuda fascista para restaurar a lei e a ordem nada mais era preciso para que o sistema de mercado continuasse a funcionar O fascismo continuou subdesenvolvido No período 19241929 quando parecia garantida a restauração do sistema de mercado o fascismo desapareceu como força política Após 1930 a economia de mercado enfrentava uma crise geral Em poucos anos o fascismo se tornou um poder mundial O primeiro período 19171923 produziu pouco mais do que pretendia Numa série de países europeus Finlândia Lituânia Estônia Letônia Polônia Rumânia Bulgária Grécia Hungria haviam ocorrido revoluções agrárias ou socialistas enquanto em outros entre eles Itália Alemanha e Áustria a classe trabalhadora industrial havia adquirido influência política As contrarevoluções eventualmente restabeleceram o equilíbriodepoder interno Na maioria dos países o campesinato voltouse contra os trabalhadores urbanos em alguns países os movimentos fascistas foram iniciados por oficiais e a pequena nobreza que dirigia o campesinato em outros como na Itália os desempregados e a pequena burguesia se constituíram em tropas fascistas Em nenhum lugar foi debatido outro problema se não o da lei e da ordem e não se levantava qualquer questão de reforma radical em outras palavras não era aparente qualquer indício de uma revolução fascista Esses movimentos só eram fascistas na forma isto é na medida em que bandos de civis chamados elementos irresponsáveis faziam 283 uso da força e da violência com a conivência de pessoas em posição de autoridade A filosofia antidemocrática do fascismo já havia nascido mas não era ainda um fator político Trotski fez um volumoso relatório sobre a situação da Itália às vésperas do segundo congresso do Comintern em 1920 mas nem sequer mencionou o fascismo embora o fasei já existisse há muito tempo Levou ainda dez anos ou mais antes que o fascismo italiano há muito estabelecido no governo do país desenvolvesse algo da natureza de um sistema social distinto Em 1924 e depois a Europa e os Estados Unidos foram o cenário de um surto impetuoso que afogou todas as preocupações quanto à solidez do sistema de mercado Consideravase restabelecido o capitalismo Tanto o bolchevismo como o fascismo estavam liquidados exceto nas regiões periféricas O Comintern declarou a consolidação do capitalismo um fato consumado Mussolini elogiava o capitalismo liberal todos os países importantes exceto a GrãBretanha estavam em ascensão Os Estados Unidos gozavam de uma prosperidade legendária e o continente saíase quase tão bem O putsch havia sido sufocado a França evacuara o Ruhr o Reichsmark se restabelecia como por milagre o Plano Dawes havia retirado a política das reparações Locarno estava distante e a Alemanha estava iniciando os sete anos gordos Antes do final de 1926 o padrãoouro dominava novamente de Moscou até Lisboa Foi no terceiro período após 1929 que se tornou aparente o verdadeiro significado do fascismo O impasse do sistema de mercado era evidente Até então o fascismo havia sido apenas um traço do governo autoritário da Itália que porém pouco se diferenciava daqueles de um tipo mais tradicional Ele emergia agora como uma solução alternativa para o problema de uma sociedade industrial A Alemanha tomou a iniciativa numa revolução de âmbito europeu e o alinhamento fascista deu à sua luta pelo poder uma dinâmica que logo abarcou os cinco continentes A história estava na engrenagem de uma mudança social Um acontecimento fortuito mas de forma alguma acidental iniciou a destruição do sistema internacional A queda de Wall Street atingiu dimensões imensas e foi seguida pela decisão da GrãBretanha de se afastar do ouro e dois anos mais tarde por um passo semelhante por parte dos Estados Unidos Simultaneamente a Conferência do Desarmamento deixou de se reunir e em 1934 a Alemanha abandonou a Liga das Nações Esses eventos simbólicos introduziram uma época de mudança espetacular na organização do mundo Três potências Japão Alemanha e 284 Itália rebelaramse contra o status quo e sabotaram a minguada instituição da paz Ao mesmo tempo a organização factual da economia mundial se recusava a funcionar O padrãoouro foi posto fora de ação temporariamente pelos seus criadores anglosaxões sob o disfarce de uma insolvência as dívidas externas eram repudiadas os mercados de capital e o comércio mundial minguaram O sistema político e o sistema econômico do planeta se desintegraram conjuntamente Dentro das próprias nações a mudança não era menos completa Os sistemas bipartidários eram substituídos por governos unipartidários e às vezes por governos nacionais Todavia as similaridades externas entre países ditatoriais e países que conservavam uma opinião pública democrática apenas serviam para enfatizar a importância superlativa das instituições livres de discussão e decisão A Rússia se voltou para o socialismo sob formas ditatoriais O capitalismo liberal desapareceu nos países que se preparavam para a guerra como a Alemanha o Japão e a Itália e em menor extensão também nos Estados Unidos e na GrãBretanha Mas os regimes emergentes do fascismo socialismo e do New Deal eram semelhantes apenas no abandono dos princípios do laissezfaire Enquanto a história iniciou seu curso por um acontecimento externo a todos as nações individuais reagiam ao desafio segundo podiam fazêlo Algumas se opunham à mudança algumas percorreram um grande caminho para encontráIa quando ela surgiu algumas ficaram indiferentes As soluções também foram buscadas em várias direções Do ponto de vista da economia de mercado essas soluções às vezes radicalmente diferentes representavam apenas alternativas dadas Entre aqueles determinados a fazer uso de uma desarticulação geral para incrementar seus próprios interesses estava o grupo de potências insatisfeitas para as quais o sistema de equilíbriodepoder mesmo em sua forma enfraquecida impingido pela Liga parecia oferecer uma oportunidade rara A Alemanha estava agora ansiosa para apressar a queda da economia mundial tradicional que ainda dava apoio à ordem internacional e ela procurava anteciparse a esse colapso de forma a começar antes de seus oponentes Ela se separou deliberadamente do sistema internacional de capital mercadoria e moeda de forma a diminuir a autoridade do mundo exterior sobre si mesma quando achasse conveniente repudiar suas obrigações políticas Patrocinou a autarquia econômica para garantir a liberdade necessária a seus planos a longo termo Malbaratou suas reservas de ouro destruiu seu crédito exterior pelo repúdio gratuito de suas obrigações e durante algum tempo até 285 mesmo aniquilou sua balança comercial externa favorável Conseguiu camuflar facilmente suas verdadeiras intenções uma vez que nem Wall Street nem a City de Londres nem Genebra suspeitavam que os nazistas estavam realmente operando a dissolução final da economia do século XIX Sir John Simon e Montagu Norman acreditavam firmemente que no devido tempo Schacht restauraria a economia ortodoxa na Alemanha ainda sob pressão e que ela retomaria à congregação se fosse ajudada financeiramente ilusões como essas sobreviveram em Downing Street até a época de Munich e mesmo depois Enquanto a Alemanha era ajudada desta forma em seus planos conspiratórios pela sua habilidade de ajustarse à dissolução do sistema tradicional a GrãBretanha se encontrava severamente prejudicada por aderir a esse sistema Embora a Inglaterra tivesse abandonado o outro temporariamente sua economia e suas finanças continuavam a se basear nos princípios de câmbios estáveis e moeda sólida Daí as limitações sob as quais se encontrou em relação ao rearmamento Assim como a autarquia alemã foi um resultado de considerações militares e políticas que decorreram da sua intenção de antecipar urna transformação geral a estratégia e a política externa britânicas foram reprimidas pela sua perspectiva financeira conservadora A estratégia de uma guerra limitada refletia a visão de um empório ilhado que se vê seguro enquanto a sua marinha é forte o bastante para garantir o abastecimento que seu dinheiro sólido pode comprar nos Sete Mares Hitler já estava no poder quando em 1933 Duff Cooper um conservador ferrenho defendia os cortes no orçamento militar de 1932 como feitos em face da bancarrota nacional considerada então um perigo ainda maior do que um serviço militar eficiente Mais de três anos mais tarde Lorde Halifax assegurava que se poderia conseguir a paz com ajustes econômicos e que não deveria ocorrer qualquer interferência no comércio já que isto dificultaria os ajustes No mesmo ano de Munich Halifax e Chamberlain ainda formulavam a política britânica em termos de balas de prata e dos tradicionais empréstimos americanos à Alemanha De fato mesmo depois que Hitler cruzara o Rubicão e já havia ocupado Praga Lorde Simon aprovava na Câmara dos Comuns a proposta de Montagu Norman de entregar as reservas de ouro tchecas a Hitler Simon estava convicto de que a integridade do padrãoouro a cuja restauração ele dedicava a sua função de estadista superava todas as outras considerações Os contemporâneos acreditavam que a ação de Simon era o resultado de uma política determinada de apaziguamento Na verdade 286 ela foi uma homenagem ao espírito do padrãoouro que continuava a governar a perspectiva dos líderes da City de Londres em relação a assunto estratégicos e políticos Na mesma semana em que irrompeu a guerra o Foreign Office em resposta a uma comunicação verbal de Hitler a Chamberlain formulava a política britânica em termos dos tradicionais empréstimos americanos à Alemanha4 O despreparo militar da Inglaterra foi principalmente o resultado da sua adesão à economia do padrãoouro A Alemanha em princípio colheu as vantagens daqueles que matam aquilo que está destinado a morrer Sua vantagem durou enquanto a liquidação do desgastado sistema do século XIX permitiulhe manterse na liderança A destruição do capitalismo liberal do padrãoouro e das soberanias absolutas foi o resultado incidental das suas incursões de pilhagem Ajustandose a um isolamento procurado por ela mesma e mais tarde no decurso das suas expedições escravagistas ela desenvolveu tentativas de solução para alguns dos problemas da transformação Seu maior acervo político porém foi sua habilidade em compelir os países do mundo a se alinharem contra o bolchevismo Ela se transformou na principal beneficiária da transformação assumindo a liderança para a solução do problema da economia de mercado que durante muito tempo pareceu congregar a aliança incondicional das classes proprietárias e na verdade não só dessas classes Sob o pressuposto liberal e marxista do primado dos interesses econômicos de classe Hitler destinavase a vencer Mas a longo prazo a unidade social da nação provou ser ainda mais relevante do que a unidade econômica de classe A ascensão da Rússia também estava ligada ao seu papel na transformação De 1917 a 1929 o medo do bolchevismo não era mais do que o medo da desordem que poderia prejudicar fatalmente a restauração de uma economia de mercado e esta não poderia funcionar exceto numa atmosfera de confiança irrestrita Na década seguinte o socialismo se tornou uma realidade na Rússia A coletivização das fazendas significava a superação da economia de mercado por métodos cooperativos em relação ao fator decisivo da terra A Rússia que havia sido apenas um local de agitação revolucionária dirigida para o mundo capitalista emergia como representante de um novo sistema que podia substituir a economia de mercado 4 British Blue Book nº 74 Cmd 6106 1939 287 Não é geralmente apreendido o fato de que os bolcheviques embora eles mesmos ardentes socialistas se recusavam teimosamente a estabelecer o socialismo na Rússia As suas próprias convicções marxistas impediam tal tentativa num país agrário atrasado Entretanto à parte o episódio inteiramente excepcional do chamado comunismo de guerra em 1920 os líderes aderiam à posição de que a revolução mundial deveria começar na Europa Ocidental industrializada O socialismo em um único país parecia a eles uma contradição em termos e quando ele se tornou uma realidade os velhos bolcheviques rejeitaramno quase que em uníssono E no entanto foi precisamente esse ponto de partida que provou ser um sucesso extraordinário Retomando à história russa de um quarto de século parece que aquilo que chamamos Revolução Russa consistiu realmente em duas revoluções separadas a primeira das quais incorporava ideais europeus ocidentais tradicionais enquanto a segunda foi parte de um desenvolvimento inteiramente novo da década de 1930 A Revolução de 1917 1924 foi de fato o último dos levantes políticos da Europa que seguiram o padrão do Commonwealth inglês e da Revolução Francesa A revolução que começou com a coletivização das fazendas por volta de 1930 foi a primeira das grandes mudanças sociais que transformaram o nosso mundo na década de 1930 Com a primeira revolução os russos conseguiram a destruição do absolutismo do domínio feudal da terra e da opressão racial uma verdadeira herança dos ideais de 1789 A segunda revolução estabeleceu uma economia socialista Dito isso a primeira foi apenas um acontecimento russo ela cumpriu um longo processo de desenvolvimento ocidental em solo russo enquanto a segunda fez parte de uma transformação universal simultânea Aparentemente na década de 1920 a Rússia estava afastada da Europa e trabalhava pela sua própria salvação Uma análise mais apurada poderia desaprovar essa aparência O fracasso do sistema internacional foi um dos fatores que levaramna a uma decisão nos anos que decorreram entre as duas revoluções Em 1924 o Comunismo de Guerra era um incidente esquecido e a Rússia havia restabelecido um mercado interno livre de cereais enquanto mantinha o controle estatal do comércio exterior e das indústrias básicas Ela procurava agora aumentar seu comércio exterior que dependia principalmente da exportação de cereais madeira peles e algumas outras matériasprimas orgânicas cujos preços caíram sistematicamente no decur o da depressão agrária que precedeu a ruptura geral do comércio A incapacidade da Rússia de desenvolver um comércio de exportação em termos 288 favoráveis restringiu suas importações de maquinaria e portanto o estabelecimento de uma indústria nacional Isto mais uma vez afetou desfavoravelmente os termos da permuta entre cidade e campo a chamada tesouras aumentando assim o antagonismo do campesinato à dominação dos trabalhadores urbanos Dessa forma a desintegração da economia mundial aumentou a pressão sobre as soluções improvisadas para a questão agrária na Rússia e apressou o surgimento do Kolkhoz O fracasso do sistema político tradicional da Europa em fornecer apoio e segurança atuou no mesmo sentido uma vez que ele levou à necessidade de armamentos aumentando a carga de uma industrialização de alta pressão A ausência do sistema de equilíbriode poder do século XIX bem como a incapacidade de um mercado mundial em absorver a produção agrícola da Rússia forçoua a seguir relutantemente os caminhos da auto suficiência O socialismo em um único país foi originado pela incapacidade da economia de mercado em estabelecer uma ligação entre todos os países o que parecia uma autarquia russa era apenas a morte do internacionalismo capitalista O fracasso do sistema internacional desprendeu as energias da história os trilhos foram fixados pelas tendências inerentes numa sociedade de mercado 289 21 A LIBERDADE NUMA SOCIEDADE COMPLEXA A civilização do século XIX não foi destruída por ataques de bárbaros externos ou internos sua vitalidade não foi solapada pelas devastações da Primeira Guerra Mundial nem pela revolta de um proletariado socialista ou de uma classe média baixa fascista Seu fracasso não foi conseqüência de alguma suposta lei de economia como a taxa de lucros decrescentes a do subconsumo ou a da superprodução Ela se desintegrou como resultado de um conjunto de causas inteiramente diferentes as medidas que a sociedade adotou para não ser aniquilada por sua vez pela ação do mercado autoregulável À parte as circunstâncias excepcionais que existiram na América do Norte na época da fronteira aberta o conflito entre o mercado e as exigências elementares de uma vida social organizada tanto proporcionou ao século a sua dinâmica como produziu as tensões e pressões típicas que em última instância destruíram aquela sociedade As guerras externas apenas apressaram essa destruição Após um século de desenvolvimento cego o homem está restaurando o seu habitat Se a industrialização não deve extinguir a raça ela precisa se subordinar às exigências da natureza do homem A verdadeira crítica à sociedade de mercado não é pelo fato de ela se basear na economia num certo sentido toda e qualquer sociedade tem que se basear nela mas que a sua economia se baseava no autointeresse Uma tal organização de vida econômica é inteiramente antinatural no sentido estritamente empírico de excepcional Os pensadores do século 290 XIX supunham que o homem só visava ao lucro em sua atividade econômica que suas propensões materialistas induziI oiam a escolher o menor em vez do maior esforço na expectativa do pagamento pelo seu trabalho Em resumo que na sua atividade econômica ele tenderia a guiarse por aquilo que eles descreviam como racionalidade econômica e que todo comportamento em contrário seria o resultado de uma interferência externa Decorria daí que os mercados eram instituições naturais que surgiriam espontaneamente se apenas se deixassem os homens em paz Nada era mais natural portanto do que um sistema econômico que consistia em mercados sob o controle único dos preços de mercado e uma sociedade humana baseada em tais mercados seria assim o objetivo de todo o progresso Qualquer que fosse a desejabilidade ou indesejabilidade de uma tal sociedade sob o ponto de vista moral sua praticabilidade isto era axiomático se fundamentava nas características imutáveis da raça Na verdade como sabemos agora o comportamento do homem tanto em seu estado primitivo como através do curso da história foi praticamente o oposto do comportamento implícito nessa perspectiva A frase de Frank H Knight nenhum motivo especificamente humano é econômico aplicase não apenas à vida social em geral mas também à própria vida econômica A tendência à permuta da qual Adam Smith tão confiantemente se valeu ao retratar o homem primitivo não é uma tendência comum ao ser humano nas suas atividades econômicas mas uma tendência bastante infreqüente Não é apenas a antropologia moderna que comprova a mentira desses construtos racionalistas mas a história do comércio e dos mercados também foi completamente diferente daquela assumida pelos harmoniosos ensinamentos dos sociólogos do século XIX A história econômica mostra que a emergência de mercados nacionais não foi de forma alguma o resultado da emancipação gradual e espontânea da esfera econômica do controle governamental Pelo contrário o mercado foi a conseqüência de uma intervenção consciente e às vezes violenta por parte do governo que impôs à sociedade a organização do mercado por finalidades nãoeconômicas Examinado mais de perto o mercado autoregulável do século XIX se revela radicalmente diferente até mesmo do seu predecessor imediato pois ele dependia do autointeresse econômico para a sua regulação A fraqueza congênita da sociedade do século XIX não foi o fato de ser uma sociedade industrial e sim uma sociedade de mercado A civilização industrial continuará a existir mesmo quando a experiência utópica de um mercado autoregulâvel não for mais que uma lembrança 291 Todavia a mudança de uma civilização industrial para uma nova base de negação do mercado parece a muitos uma tarefa demasiado árdua Eles receiam um vácuo institucional ou o que é pior a perda da liberdade Será que esses perigos precisam realmente prevalecer Grande parte do maciço sofrimento de um período de transição já está bem para trás Já experimentamos o pior com a desarticulação social e econômica da nossa era com as trágicas vicissitudes da depressão de flutuações da moeda do desemprego em massa de mudanças de status social da destruição espetacular de estados históricos Mesmo a contragosto vimos pagando o preço dessa mudança Embora a humanidade ainda esteja longe de se adaptar ao uso da máquina e apesar das mudanças pendentes ainda serem imensas a restauração do passado é tão impossível como transferir nossos problemas para outro planeta Ao invés de eliminar as forças demoníacas da agressão e da conquista uma tentativa fútil como essa apenas garantiria a sobrevivência dessas forças mesmo após a sua total derrota militar A causa do mal se revestiria da vantagem decisiva na política de representar o possível em oposição àquilo que é impossível atingir por melhor que seja a situação O colapso do sistema tradicional não nos deixará num vazio Não seria a primeira vez na história em que as improvisações conteriam os germes de grandes e permanentes instituições Dentro das nações testemunhamos agora um desenvolvimento em que o sistema econômico deixa de organizar a lei da sociedade e se garante o primado da sociedade sobre esse sistema Isto pode acontecer numa grande variedade de formas democrática e aristocrática constitucionalista e autoritária talvez até de uma forma ainda não prevista O futuro de alguns países já pode ser o presente em outros enquanto alguns ainda podem incorporar o passado dos demais Mas o resultado é comum a todos eles o sistema de mercado não será mais autoregulável mesmo em princípio uma vez que ele não incluirá o trabalho a terra e o dinheiro Retirar o trabalho do mercado significa uma transformação tão radical como foi a criação de um mercado de trabalho competitivo O contrato salarial deixa de ser um contrato privado exceto em pontos subordinados e acessórios Não apenas as condições fabris as horas de trabalho e as modalidades do contrato mas o próprio salário básico passa a ser determinado fora do mercado O papel que será atribuído aos sindicatos profissionais ao estado e a outros órgãos públicos dependerá não apenas do caráter dessas instituições mas também da 292 organização real da administração da produção Embora seja da natureza das coisas que os diferenciais salariais possam e devam continuar a desempenhar um papel essencial no sistema econômico outras motivações além daquelas diretamente envolvidas nos rendimentos monetários podem compensar em muito o aspecto financeiro do trabalho Retirar a terra do mercado é o mesmo que incorporáIa a instituições definidas como o ambiente doméstico a cooperativa a fábrica o distrito a escola a igreja os parques as reservas de vida selvagem e assim por diante Todavia continuará a existir em caráter amplo a propriedade individual das fazendas mas os contratos de arrendamento da terra só precisarão lidar com os aspectos acessórios pois os essenciais serão retirados da jurisdição do mercado O mesmo se aplica aos alimentos principais e às matériasprimas orgânicas já que a fixação de preços em relação a elas não é mais função do mercado O fato de os mercados competitivos para uma infinita variedade de produtos continuarem a funcionar não precisa interferir com a constituição da sociedade da mesma forma que a fixação de preços fora do mercado para o trabalho a terra e o dinheiro não interfere com a função de custo dos preços de vários produtos É claro que a natureza da propriedade sofre uma mudança profunda em conseqüência de tais medidas já que nâo se faz necessário que as rendas dos títulos de propriedade cresçam sem limites simplesmente para garantir emprego produção e a utilização dos recursos da sociedade A retirada do controle do dinheiro do mercado já está sendo feita em todos os países hoje em dia Inconscientemente foi a criação dos depósitos que levou a isto em grande parte mas a crise do padrãoouro na década de 1920 provou que ainda não havia sido cortado o elo entre o dinheiromercadoria e o dinheiro convencional Desde a introdução da finança funcional em todos os estados importantes a administração dos investimentos e a regulamentação da taxa de poupança passaram a ser tarefas governamentais Retirar do mercado os elementos da produção terra trabalho e dinheiro é portanto um ato uniforme apenas do ponto de vista do mercado que lidava com eles como se fossem mercadorias Do ponto de vista da realidade humana aquilo que é restaurado pelo desmantelamento da ficção mercadoria está em todas as direções do compasso social Com efeito a desintegração de uma economia uniforme já está dando origem a uma variedade de sociedades novas O fim da sociedade de mercado não significa de forma alguma a ausência de mercados Estes continuam de várias maneiras a garantir a liberdade do consumidor 293 a indicar a mudança da demanda a influenciar a renda dos produtores e a servir como instrumento de contabilização embora deixe de ser totalmente um órgão de auto regulação econômica Tanto nos seus métodos internacionais como nos seus métodos internos a sociedade do século XIX se viu limitada pela economia O setor dos câmbios estrangeiros fixados coincidia com a civilização Enquanto o padrãoouro e o que se tornou quase o seu corolário os regimes constitucionais estavam em funcionamento o equilíbriode poder era um veículo de paz O sistema funcionou através da instrumentalização daquelas grandes potências em primeiro lugar a GrãBretanha que eram o centro da finança mundial e que pressionavam pelo estabelecimento de governos representativos em países menos desenvolvidos Isto era exigido como garantia das finanças e moedas de países devedores com a conseqüente necessidade de orçamentos controlados que somente organismos responsáveis podiam oferecer Como regra tais considerações não estavam conscientemente presentes na mente dos estadistas e isto ocorria apenas porque as exigências do padrãoouro eram consideradas axiomáticas O padrão mundial uniforme de instituições monetárias e representativas foi o resultado da rígida economia do período Dois princípios da vida internacional do século XIX conseguiram sua relevância a partir dessa situação soberania anarquista e intervenção justificada nos assuntos de outros países Embora aparentemente contraditórios os dois se interrelacionavam A soberania era um termo puramente político sem dúvida pois sob a circunstância de um comércio exterior nãoregulável e o padrãoouro os governos não possuíam qualquer poder em relação à economia internacional Eles não podiam nem iriam atrelar seus países em relação a assuntos monetários esta era a posição legal Na verdade só eram reconhecidos como estados soberanos aqueles países que possuíam um sistema monetário controlado por bancos centrais Nos poderosos países ocidentais essa soberania monetária nacional ilimitada e irrestrita se combinava com o seu oposto total uma pressão inflexível para ampliar a tessitura da economia de mercado e da sociedade de mercados a todos os lugares Em conseqüência no final do século XIX os povos do mundo estavam padronizados institucionalmente num grau jamais conhecido Esse sistema prejudicava a ambos em virtude da sua meticulosidade e sua universalidade A soberania anarquista era um empecilho a todas as formas efetivas de cooperação internacional como a história da Liga das Nações provou de forma marcante A uniformidade obrigatória 294 dos sistemas internos rondava como ameaça permanente obre a liberdade do desenvolvimento nacional principalmente nos países arrasados e às vezes até nos países desenvolvidos mas financeiramente fracos A cooperação econômica era limitada às instituições privadas tão caprichosas e inefetivas como o livre comércio enquanto a colaboração real entre os povos isto é entre governos não podia ser sequer visualizada A situação parecia fazer duas exigências à política externa aparentemente incompatíveis ela exigia uma cooperação mais estreita entre países amigos a um nível jamais imaginado na soberania do século XIX enquanto ao mesmo tempo a existência de mercados regulados fazia os governos nacionais mais zelosos da interferência externa do que antes Todavia com o desaparecimento do mecanismo automático do padrão ouro os governos acharam possível abandonar o aspecto mais importuno da soberania absoluta a recusa de colaborar na economia internacional Ao mesmo tempo seria possível tolerar de boa vontade que outras nações modelassem suas instituições internas de acordo com suas inclinações transcendendo assim o pernicioso dogma do século XIX da uniformidade necessária dos regimes internos dentro da órbita da economia mundial Já se pode ver assim a emergência de pedras fundamentais de um Novo Mundo a partir das ruínas do Velho colaboração econômica dos governos e a liberdade de organizar à vontade a vida nacional Sob o sistema restritivo do livre comércio não se poderia conceber qualquer dessas possibilidades excluindo assim uma variedade de métodos de cooperação entre nações Enquanto sob uma economia de mercado e do padrãoouro a idéia da federação era considerada um pesadelo de centralização e unidade o fim da economia de mercado pode muito bem significar uma cooperação efetiva com liberdade interna O problema da liberdade surge em dois níveis diferentes o institucional e o moral ou religioso No nível institucional é o caso de equilibrar o aumento e a diminuição das liberdades não se apresentam quaisquer questões radicalmente novas No nível mais fundamental a mera possibilidade de liberdade ainda é duvidosa Parece que os próprios meios de manter a liberdade adulteramna e a destroem A chave para o problema da liberdade em nossa era deve ser procurada nesse último plano As instituições são materializações do significado e do propósito humano Não podemos atingir a liberdade que procuramos a menos que compreendamos o verdadeiro significado da liberdade numa sociedade complexa 295 Em nível institucional a regulação tanto amplia como restringe a liberdade só é significativo o equilíbrio das liberdades perdidas e recuperadas Isto é verdade tanto em relação às liberdades jurídicas como às liberdades reais As classes abastadas gozam da liberdade que lhes oferece o ócio em segurança elas estão naturalmente menos propensas a ampliar a liberdade na sociedade do que aquelas que por falta de rendas têm que se contentar com um mínimo de liberdade Isto é perfeitamente visível quando surge uma cornpulsão no sentido de uma distribuição mais justa da renda do lazer e da segurança Embora as restrições se apliquem a todos os privilegiados tendem a ressentirse como se elas fossem dirigidas apenas contra eles Eles falam em escravidão quando de fato se pretende apenas distribuir entre outros a liberdade de que eles mesmos gozam É verdade que pode ocorrer inicialmente uma diminuição do seu lazer e da sua segurança e portanto da sua liberdade para que seja elevado o nível de liberdade para todos Todavia uma tal mudança a remodelação e a ampliação das liberdades não deve servir de motivo para que se afirme que a nova situação é necessariamente menos livre do que a anterior Existem porém certas liberdades cuja manutenção é de importância primordial Como a paz elas foram um subproduto da economia do século XIX e nos acostumamos a prezáIas por elas mesmas A separação institucional do político e do econômico que se revelou um perigo mortal para a substância da sociedade quase automaticamente produziu a liberdade à custa da justiça e da segurança As liberdades civis a empresa privada e o sistema salarial se mesclaram num padrão de vida que favoreceu a liberdade moral e a independência de pensamento Mais uma vez as liberdades jurídica e real se diluíram num fundo comum cujos elementos não podem ser devidamente separados Algumas foram o corolário de males como o desemprego e os lucros do especulador algumas pertenciam às tradições mais preciosas da Renascença e da Reforma Devemos tentar manter por todos os meios ao nosso alcance esses elevados valores herdados de uma economia de mercado em derrocada Esta é uma grande tarefa sem dúvida Nem a liberdade nem a paz puderam ser institucionalizadas sob aquela economia pois seu propósito era criar lucros e bemestar e não a paz e a liberdade Teremos que lutar por elas no futuro conscientemente se quisermos possuíIas elas devem tornarse os alvos escolhidos das sociedades em cuja direção caminhamos Este pode bem ser o propósito real do esforço mundial que se faz agora para garantir a paz e a liberdade Até onde poderá levar esse desejo de paz quando o interesse 296 nela decorrente da economia do século XIX deixar de existir dependerá do nosso sucesso em estabelecer uma ordem internacional Quanto à liberdade pessoal ela existirá na medida em que criarmos deliberadarnente salvaguardas para a sua manutenção e até para a sua ampliação uma sociedade estabeleci da o direito à nãoconformidade de e ser protegido institucionalmente O indivíduo deve ser livre para seguir a sua consciência sem recear os poderes incumbidos das tarefas administrativas em algumas áreas da vida social A ciência e as artes deverão permanecer sempre sob a guarda da república das letras A compulsão jamais será absoluta ao contestador deverá ser oferecido um refúgio no qual poderá se abrigar o direito de escolher um segundo melhor conforme lhe agrade Assim o direito à nãoconformidade como marco de uma sociedade livre ficará garantido Cada passo em direção à integração na sociedade será acompanhado portanto de um aumento de liberdade os passos em direção ao planejamento incluirão o fortalecimento dos direitos do indivíduo na sociedade Seus direitos inalienáveis serão validados pela lei até mesmo contra os poderes supremos sejam eles pessoais ou anônimos A verdadeira resposta à ameaça da burocracia como fonte de abuso do poder é criar esferas de liberdades arbitrárias protegidas por regras inquebrantáveis Por mais generosa que seja a prática da devolução do poder sempre haverá um fortalecimento do poder no centro e portanto ameaça à liberdade individual Isto é verdadeiro até mesmo em relação aos órgãos das próprias comunidades democráticas como os sindicatos profissionais e comerciais cuja função é proteger os direitos de cada membro individual A própria dimensão que eles atingem faz com que esse indivíduo se sinta desamparado mesmo que não tenha motivo para suspeitar de qualquer má vontade Isto ocorre ainda mais se suas opiniões ou ações forem de molde a ofender as suscetibilidades daqueles que mantêm o poder Nenhuma simples declaração de direitos é suficiente as instituições são necessárias para efetivar esses direitos O habeascorpus não precisa ser o último artifício constitucional através do qual a liberdade pessoal se apóia na lei É preciso acrescentar à Declaração dos Direitos Humanos direitos do cidadão até agora não reconhecidos Eles devem prevalecer contra todas as autoridades seja estatal municipal ou profissional A lista deve ser encabeçada pelo direito do indivíduo a um emprego sob condições aprovadas independente da sua opinião política ou religiosa de cor ou raça Isto implica garantias contra a vitimização por mais sutil que ela seja Os tribunais industriais têm sido reconhecidos na sua atuação de proteger membros 297 públicos individuais até mesmo contra as aglomerações de poder arbitrário como por exemplo as representadas pelas primeiras companhias ferroviárias Um outro exemplo de possível abuso de poder enfrentado diretamente pelos tribunais foi o Essential Works Order na Inglaterra ou o congelamento do trabalho nos Estados Unidos durante a emergência com suas oportunidades quase ilimitadas de discriminação Sempre que a opinião pública se manteve coesa na defesa das liberdades cívicas os tribunais ou cortes também foram capazes de reinvindicar a liberdade pessoal Ela deve ser mantida a todo custo mesmo à custa da eficiência na produção da economia de consumo ou da racionalidade na administração Uma sociedade industrial podese permitir ser livre O fim da economia de mercado pode se tornar o início de uma era de liberdade sem precedentes A liberdade jurídica e real pode se tornar mais ampla e mais geral do que em qualquer tempo a regulação e o controle podem atingir a liberdade mas para todos e não apenas para alguns Liberdade não como complemento do privilégio contaminada em sua fonte mas como um direito consagrado que se estende muito além dos estreitos limites da esfera política e atinge a organização íntima da própria sociedade Assim as antigas liberdades e direitos civis serão acrescentados ao fundo da nova liberdade gerada pelo lazer e pela segurança que a sociedade oferece a todos Uma tal sociedade podese permitir ser ao mesmo tempo justa e livre Entretanto encontramos o caminho bloqueado por um obstáculo moral O planejamento e o controle vêm sendo atacados como negação da liberdade A empresa livre e a propriedade privada são consideradas elementos essenciais à liberdade Não é digna de ser chamada livre qualquer sociedade construída sobre outros fundamentos A liberdade que a regulação cria é denunciada como nãoliberdade a justiça a liberdade e o bemestar que ela oferece são descritos como camuflagem da escravidão Foi em vão que os socialistas prometeram um reino de liberdade pois os meios determinam os fins a URSS que usou o planejamento a regulação e o controle como seus instrumentos ainda não pôs em prática as liberdades prometidas na sua constituição e provavelmente jamais o fará dizem os críticos Voltarse porém contra a regulação significa voltarse contra a reforma Para o liberal a idéia da liberdade degenera assim na simples defesa da livre empresa hoje reduzida a uma ficção pela dura realidade de trustes gigantescos e monopólios principescos Isto significa uma liberdade total para aqueles cuja renda lazer e segurança não precisam ser enfatizados e um 298 mínimo de liberdade para o povo que pode tentar em vão valerse dos seus direitos democráticos para se proteger do poder dos donos da propriedade E isto não é tudo Os liberais jamais conseguiram restabelecer de fato a livre empresa já destinada ao fracasso por razões intrínsecas Seus esforços apenas resultaram na instalação de grandes negócios em diversos países europeus e incidentalmente de vários tipos de fascismo como na Áustria O planejamento a regulação e o controle que eles queriam ver banidos como riscos à liberdade foram empregados pelos inimigos confessos da liberdade para abolila totalmente Entretanto a vitória do fascismo tornouse praticamente inevitável pela obstrução dos liberais a qualquer reforma que envolvesse o planejamento a regulação e o controle A total frustração da liberdade no fascismo é com efeito o resultado inevitável da filosofia liberal Esta alega que o poder e a compulsão são males que não devem existir na comunidade humana para que haja liberdade Ora tal coisa é impossível e se torna perfeitamente aparente numa sociedade complexa Não resta portanto qualquer alternativa a não ser permanecer fiel a uma idéia ilusória de liberdade e negar a realidade da sociedade ou aceitar essa realidade e rejeitar a idéia da liberdade A primeira é a conclusão do liberal a última do fascista Nenhuma outra parece possível Chegamos assim à conclusão inexorável de que está em questão a própria possibilidade de liberdade Se a regulação é o único meio de difundir e fortalecer a liberdade numa sociedade complexa e no entanto utilizar esse meio é se opor à liberdade per se então uma tal sociedade não pode ser livre É claro que na raiz do dilema está o próprio significado da liberdade A economia liberal encaminhou os nossos ideais numa falsa direção embora parecesse próxima a atingir expectativas intrinsecamente utópicas Não existe uma sociedade sem o poder e a compulsão nem um mundo em que a força não tenha qualquer função Era uma ilusão admitir uma sociedade que fosse modelada apenas pelo desejo e a vontade do homem Ela foi porém a resultante de uma visão de mercado da sociedade que igualava a economia a relações contratuais e as relações contratuais com a liberdade Essa ilusão radical sustentava que na sociedade humana não existe nada que não se origine da vontade dos indivíduos e que não possa portanto ser removida também pela vontade deles A visão era limitada pelo mercado este fragmentava a vida no setor dos produtores que terminava quando seu produto chegava ao mercado e no setor do consumidor para quem todos os bens 299 surgiam do mercado Um tinha a sua renda provida livremente pelo mercado o outro gastavaa livremente nesse mercado A sociedade como um todo permanecia invisível O poder do estado não era levado em conta pois quanto menor ele fosse mais facilmente funcionaria o mecanismo de mercado Nem os eleitores nem os proprietários nem os produtores nem os consumidores podiam ser responsabilizados por essas brutais restrições à liberdade que resultaram na ocorrência do desemprego e da destituição Qualquer indivíduo decente podia se considerar isento de qualquer responsabilidade por atos de compulsão por parte de um estado que ele pessoalmente rejeitava ou pelo sofrimento econômico inflingido à sociedade e que não o beneficiava pessoalmente Ele pagava as suas contas não devia a ninguém e não se envolvia nos males do poder e do valor econômico Ele se sentia tão isento dessa responsabilidade que negava a sua realidade em nome da própria liberdade Mas o poder e o valor econômico são um paradigma da realidade social Eles não surgem da vontade humana é impossível a nãocooperação em relação a eles A função do poder é assegurar aquela medida de conformidade necessária à sobrevivência do grupo sua fonte última é a opinião e quem não teria algumas opiniões a oferecer O valor econômico garante a utilidade dos bens produzidos ele deve ser anterior à decisão de produzilos ele é um selo aposto à divisão do trabalho Sua fonte são os desejos humanos e a escassez e como se pode esperar que não desejemos uma coisa mais do que outra Qualquer opinião ou desejo farnosá participantes na criação do poder e na constituição do valor econômico Não é concebível uma liberdade que atue de outra maneira Chegamos ao estágio final da nossa argumentação O abandono da utopia do mercado colocanos face a face com a realidade da sociedade Ela é a linha divisória entre o liberalismo de um lado o fascismo e o socialismo de outro A diferença entre esses dois não é basicamente econômica é moral e religiosa Mesmo quando professam economias idênticas eles não são apenas diferentes mas são também manifestações de princípios opostos E a liberdade é mais uma vez o ponto extremo no qual eles se separam A realidade da sociedade é aceita tanto por fascistas como por socialistas com a mesma finalidade com que o conhecimento da morte moldou a consciência humana O poder e a compulsão fazem parte dessa realidade e não seria válido qualquer ideal que os banisse da sociedade Se a idéia da liberdade pode ser mantida ou não em face desse conhecimento é 300 o tema sobre o qual eles divergem É a liberdade uma palavra vazia uma tentação destinada a arruinar o homem e suas obras ou o homem pode reafirmar a sua liberdade em face desse conhecimento e lutar para que a sociedade a atinja sem cair num ilusionismo moral Esta questão aflitiva resume a condição do homem O espírito e o conteúdo deste estudo devem indicar uma resposta Invocamo aqueles que acreditávamos ser os três fatos constitutivos da con ciência do homem ocidental o conhecimento da morte o conhecimento da liberdade o conhecimento da sociedade O primeiro segundo a lenda judaica foi revelado pela história do Velho Testamento O segundo se revelou com a descoberta da singularidade da pessoa nos ensinamentos de Jesus conforme registrados no Novo Testamento A terceira revelação chegounos com a vivência numa sociedade industrial Não existe nenhum grande nome ligado a ela talvez Robert Owen seja o que mais se aproxima de ser seu portavoz Ele é o elemento constitutivo da consciência do homem moderno A resposta fascista ao reconhecimento da realidade da sociedade é a rejeição do postulado de liberdade A descoberta cristã da singularidade do indivíduo e unicidade da humanidade é negada pelo fascismo Aqui está a raiz da sua inclinação degenerativa Robert Owen foi o primeiro a reconhecer que os Evangelhos ignoravam a realidade da sociedade Ele chamava a isto a individualização do homem por parte do Cristianismo e parecia acreditar que tudo aquilo que é realmente valioso no Cristianismo só seria incorporado ao homem numa comunidade cooperativa Owen reconhecia que a liberdade adquirida através dos ensinamentos de Jesus não se aplicava a uma sociedade complexa Seu socialismo sustentava a exigência de liberdade do homem numa sociedade como essa A era póscristã da civilização ocidental havia começado e os Evangelhos não eram mais suficientes embora continuassem a ser a base da nossa civilização A descoberta da sociedade é portanto o final ou o renascimento da liberdade Enquanto o fascista se resigna a abandonar a liberdade e glorifica o poder que é a liberdade da sociedade o socialista se resigna a essa realidade e mantém a exigência da liberdade a despeito dessa realidade O homem amadurece e é capaz de existir como ser humano numa sociedade complexa Para citar mais uma vez as inspiradas palavras de Robert Owen Se quaisquer causas do mal são irremovíveis pelos novos poderes que os homens estão a ponto de adquirir eles saberão que esses males são necessários e inevitáveis e deixarão de fazer reclamações infantis e desnecessárias 301 A resignação sempre foi a fonte da força do homem e de suas esperanças renovadas O homem aceitou a realidade da morte e construiu o sentido da sua vida física baseandose nela Ele se resignou à realidade de possuir uma alma que podia perder e que havia coisas piores que a morte Sobre isto fundamentou a sua liberdade Em nossa época ele se resigna à realidade da sociedade que significa o fim dessa liberdade Mais uma vez a vida ressurge da resignação final A aceitação sem queixas da realidade da sociedade dá ao homem uma coragem indómita e forças para afastar todas as injustiças e a falta de liberdade que podem ser eliminadas Enquanto ele se conservar fiel à sua tarefa de criar uma liberdade mais ampla para todos ele não precisa temer que o poder ou o planejamento se voltem contra ele e que destruam através da sua instrumentalidade a liberdade que ele está construindo Este é o significado da liberdade numa sociedade complexa e ele nos dá toda a certeza de que precisamos 302 APÊNDICE NOTAS SOBRE AS FONTES Ao capítulo 1 1 O equilíbriodepoder como política lei histórica princípio e sistema 1 Política de equilíbriodepoder A política de equilíbriodepoder é uma instituição nacional inglesa Ela é puramente pragmática e factual e não deve ser confundida com o princípio do equilíbrio depoder ou com o sistema de equilíbriodepoder Essa política foi o resultado da sua posição de ilha fora de um litoral continental ocupado por comunidades politicamente organizadas Sua ascendente escola de diplomacia de Wolseya Cecil perseguia o EquilíbriodePoder como a única possibilidade de segurança da Inglaterra em face dos grandes estados continentais que se formavam diz Trevelyan Essa política foi estabeleci da definitivamente sob os Tudors e foi praticada por Sir William Temple por Canning Palmerston ou Sir Edward Grey Ela antecipou em quase dois séculos a emergência de um sistema de equilíbriodepoder no continente e seu desenvolvimento foi totalmente independente das fontes continentais da doutrina do equilíbriodepoder como princípio conforme apresentada por Fénélon ou Vatte Entretanto a política nacional da Inglaterra foi bastante apoiada pelo crescimento desse sistema pois lhe facilitou a organização de alianças contra qualquer poder dominante no continente Em conseqüência os estadistas britânicos tendiam a patrocinar a idéia de que a política de equilíbriodepoder da Inglaterra era na verdade uma expressão do princípio de equilíbriodepoder e que seguindo tal política a Inglaterra estava apenas desempenhando seu papel num sistema com base nesse princípio Todavia a diferença entre a sua própria política de autodefesa e qualquer princípio que ajudasse a sua implementação não foi propositadamente obscurecida por seus estadistas Sir Edward Grey escreveu o seguinte em seu Twentyfive Years Em teoria a GrãBretanha não se opunha à predominância de um grupo forte na Europa desde que ele representasse a estabilidade e a paz É uma escolha voluntária apoiar tal combinação Quando o poder dominante se torna agressivo porém e ela sente seus interesses ameaçados 303 é que por instinto de autodefesa ou então por uma política deliberada ela se dirige para algo que pode ser descrito como um EquilíbriodePoder Assim foi pelos seus legítimos interesses que a Inglaterra apoiou o crescimento de um sistema de equilíbriodepoder no continente e manteve os seus princípios Fazê Io era parte da sua política A confusão provocada por esse ajuste de duas referências essencialmente diferentes do equilíbriodepoder é indicada por estas citações Fox em 1787 perguntou ao governo com indignação se a Inglaterra não estava mais em posição de manter o equilíbriodepoder na Europa e ser vista como a protetora das suas liberdades Ele reclamava como direito da Inglaterra ser aceita como avalista do sistema de equilíbriodepoder na Europa Quatro anos mais tarde Burke descrevia esse sistema como a lei pública da Europa supostamente vigente durante dois séculos Tais identificações retóricas da política nacional da Inglaterra com o sistema europeu de equilíbriodepoder tornaram mais difícil para os norteamericanos distinguir entre duas concepções igualmente odiosas a eles 2 Equilíbriodepoder como lei histórica Um outro significado do equilíbriode poder se baseia diretamente na natureza das unidades de poder Ele foi introduzido por Hume pela primeira vez no pensamento moderno Seu alcance se perdeu novamente durante o eclipse quase total do pensamento político que se seguiu à Revolução Industrial Hume reconheceu a natureza política do fenômeno e ressaltou a sua independência dos fatos psicológicos e morais Ele atuava independentemente das motivações dos atores enquanto estes se comportassem como manifestações de poder A experiência demonstrou escreveu Hume que qualquer que fosse a sua motivação a emulação ciumenta ou a política cautelosa os efeitos eram semelhantes F Schuman diz Se se postula um Sistema Estatal composto de três unidades A B e C é óbvio que qualquer aumento no poder de um deles envolve um decréscimo no poder dos outros dois Ele infere que o equilíbriodepoder em sua forma elementar se destina a manter a independência de cada unidade do Sistema Estatal Ele poderia ter generalizado o postulado de forma a tornálo aplicável a todos os tipos de unidades de poder seja em sistemas políticos organizados ou não Com efeito esta é a forma como o equilíbriode poder aparece na sociologia da história Toynbee em seu Study of History menciona o fato de que as unidades de poder estão aptas a se expandir na periferia dos grupos de poder ao invés de no centro onde a pressão é maior Os Estados Unidos a Rússia e o Japão assim como os Domínios Britânicos se expandiram prodigiosamente numa época em que era praticamente impossível atingir mesmo as menores mudanças territoriais na Europa Ocidental e Central Uma lei histórica de tipo similar é mencionada ainda por Pirenne Ele observa que em comunidades comparativamente desorganizadas formase habitualmente um núcleo de resistência à pressão externa nas regiões mais afastadas do vizinho poderoso São exemplos a formação do reinado franco por Pipin de Heristal no distante norte ou a emergência da Prússia Oriental como centro organizador dos germânicos Outro exemplo desse tipo pode ser visto na lei belga de De Greef do estadotampão que parece ter influenciado a escola de Frederick Turner e levou ao conceito do oeste americano como uma Bélgica errante Estes conceitos de equilíbrio e desequilíbriodepoder são independentes de noções morais legais ou psicológicas Sua única referência é quanto ao poder e isto revela a sua natureza política 3 Equilíbriodepoder como princípio e sistema Quando um interesse hwnano é reconhecido como legítimo dele se origina um princípio de conduta Desde 164 foi 304 reconhecido o interesse dos estados europeus no status quo conforme estabelecido pelos Trajados de Münster e Westphalia e reconhecida a solidariedade dos signatários nesse sehrido O Tratado de 1648 foi assinado por praticamente todas as potências européias elas se declararam os seus avalistas Os Países Baixos e a Suíça assumem a sua posição internacional como estados soberanos a partir desse tratado Desde então os estados podiam considerar qualquer mudança maior no status quo como de interesse para rodos os demais Esta é a forma rudimentar do equilíbriodepoder como um princípio da família de nações Baseado nesse princípio não se podia considerar hostil o comportamento de qualquer estado para com uma potência suspeita correta ou erroneamente da intenção de modificar o status quo Um tal estado de coisas decerto facilitaria enormemente a formação de coalizões em oposição a tal mudança Entretanto somente após setenta e cinco anos é que o princípio foi expressamente reconhecido no Tratado de Utrecht quando ad conseruandum in Europa equilibrium os domínios espanhóis foram divididos entre os Bourbons e os Habsburgs Com esse reconhecimento formal do princípio a Europa se organizou gradualmente num sistema baseado nesse princípio Como a absorção ou dominação das pequenas potências pelas potências maiores afetaria o equilíbriodepoder a independência das pequenas potências era indiretamente resguardada pelo sistema Embora fosse difusa a organização da Europa após 1648 e mesmo após 1713 a manutenção de todos os estados grandes e pequenos por um período de cerca de duzentos anos deve ser creditada ao sistema de equilíbriodepoder Guerras inumeráveis foram travadas em seu nome e embora elas possam ser vistas sem exceção como inspiradas por considerações de poder o resultado era quase sempre como se os países agissem segundo o princípio da garantia coletiva contra atos de agressão nãoprovocados Não existe outra explicação para a sobrevivência continuada de entidades políticas inexpressivas como a Dinamarca a Holanda a Bélgica e a Suíça a despeito das grandes forças que ameaçavam as suas fronteiras Logicamente a distinção entre um princípio e uma organização nele baseado ie um sistema parece definida Entretanto não devemos subestimar a efetividade dos princípios mesmo em sua condição suborganizada isto é quando não alcançaram ainda o estágio institucional mas fornecem apenas uma diretiva a hábitos ou costumes convencionais Mesmo sem um centro estabelecido encontros regulares funcionários comuns ou um código de comportamento compulsório a Europa se transformara num sistema simplesmente através do contato estreito e contínuo entre as várias chancelarias e membros dos corpos diplomáticos A tradição estrita que regulava as investigações as dérnarches os aidemémoirs entregues em conjunto ou separado em termos idênticos ou não idênticos eram tantos outros meios de expressar as situações de poder sem leváIas a uma decisão enquanto abriam novos caminhos para o compromisso ou eventualmente para a ação conjunta no caso de falharem as negociações Na verdade o direito de uma intervenção conjunta nos negócios dos pequenos estados se ameaçados os interesses legítimos das potências correspondia à existência de um diretório europeu numa forma suborganizada O pilar mais forte desse sistema formal era a quantidade imensa de negócios privados internacionais freqüentemente transacionados em termos de uma espécie de tratado comercial ou outro instrumento internacional tornado efetivo pelo costume e pela tradição Os governos e seus cidadãos mais influentes se enredavam nas formas mais diversas nas dificuldades financeiras econômicas e jurídicas dos tipos mais variados de tais transações internacionais Uma guerra local significava apenas uma breve interrupção dessas transações enquanto os interesses investidos em outras não afeta das 305 permanente ou temporariamente constituíam um peso maior se comparadas àquelas solucionadas com desvantagem para o inimigo através da guerra Essa pressão silenciosa do interesse privado que permeava toda a vida das comunidades civilizadas e transcendia as fronteiras nacionais era o baluarte invisível da reciprocidade internacional e concedia ao princípio de equilíbriodepoder o direito de sanções efetivas mesmo quando ele não assumira ainda a forma organizada de um Concerto da Europa ou de uma Liga das Nações EQUILÍBRIODEPODER COMO LEI HISTÓRICA Hume D On the Balance of Power Works voI III 1854 p 364 Schuman F International Politics 1933 p 55 Toynbee A J Study of History voI I1I p302 Pirenne H Outline of the History of Europe from the Fali of the Roman Empire to 1600 IngI 1939 BarnesBeckerBecker sobre De Greef voI lI p 871 Hofrnann A Das deutsche Land and die deutsche Geschichte 1920 Também a Geopolitical School de Haushofer No outro extremo Power de B Russel Psychopathology and Politics de Lasswell World Politics and Personal Insecurity e outras obras CL também Social and Economic History of the Hellenistic World de Rostovtzeff capo 4 parte I EQUJLÍBRIODEPODER COMO PRINCÍPIO E SISTEMA Mayer P Political Thought 1939 p 464 Vattel Le droit des gens 1758 Hershey A S Essentials of International Public Law and Organization 1927 pp 567 69 Oppenheim L International Law Heatley D P Diplomacy and the Study of International Relations 1919 A PAZ DOS CEM ANOS Leathes Modem Europe Cambridge Modern History voI XII capo 1 Toynbee A J Study of History voI IV C pp 14253 Schuman F International Politics liv I capo 2 Clapharn J H Economic Deuelopment of France and Germany 18151914 p 3 Robbins L The Great Depression 1934 p 1 Lipmann W The Good Society Cunningham W Growth of English Industry and Commerce in Modern Times L C A Industrial and Commercial Revolutions in Great Britain during the 19th Century 1927 Carr E H The 20 Years Crisis 19191939 1940 Crossman R H S Government and the Governed 1939 p 225 Hawtrey R G The Economic Problern 1925 p 265 FERROVIA DE BAGDÁ Visão do conflito como solucionado pelo acordo anglogerrnânico de 15 de junho de 1914 Buell R L International Refations 1929 Hawtrey R G The Economic Problem 1925 Mowat R B The Concert of Europe 1930 p 313 Stolper G This Age of Fable 1942 Visão oposta Fay S B Origins of the World War p 312 Feis H Europe The Worlds Banker 18701914 1930 pp 335 e segs CONCERTO DA EUROPA Langer W L European Alliances and Alignments 18711890 1931 Sontag R European Diplomatic History 18711932 1933 Onken H The German Empire Cambridge Modern History voI XII Mayer J P Political Thought 1939 p 464 Mowat R B The Concert of Europe 1930 p 23 Phillips W A The Confederation of Europe 1914 2 ed 1920 Lasswell H D Politics p 53 Muir 306 R Nationaism and Internationalism 1917 p 176 Buell R L Internationa Relation 1929 p 512 Ao capítulo 1 2 Cem anos de paz 1 Os fatos As grandes potências da Europa estiveram em guerra umas com as outras durante o século 1815 a 1914 mas somente durante três curtos períodos durante seis meses em 1859 seis semanas em 1866 e nove meses em 18701871 A Guerra da Criméia que durou exatamente dois anos teve um caráter periférico e semicolonial como concordam os historiadores inclusive Clapham Trevelyan Toynbee e Binkley A propósito as ações russas em poder de investidores britânicos continuaram a ser negociadas em Londres durante aquela guerra A diferença básica entre o século XIX e os anteriores é justamente a que existe entre guerras generalizadas ocasionais e a ausência completa de guerras generalizadas Parece irrelevante assim a afirmativa do MajorGeneral Fuller de que não se passara sequer um ano livre de guerras no século XIX A comparação feita por Quincy Wright do número de anos de guerra nos vários séculos independente da diferença entre guerras generalizadas e locais parece ignorar este ponto significativo 2 O problema A cessação das guerras comerciais quase constantes entre a Inglaterra e a França uma fértil fonte de guerras generalizadas está precisando de uma explicação básica Ela se liga a dois fatos na esfera da política econômica a o fim do velho império colonial e b a era do livre comércio que se transformou na do padrão ouro internacional Enquanto decaía rapidamente o interesse nas guerras com as novas formas de comércio emergia um novo e positivo interesse na paz em conseqüência da nova moeda internacional e da estrutura de crédito associada ao padrãoouro O interesse de todas as economias nacionais se fixava agora na manutenção de moedas estáveis e no funcionamento de mercados mundiais dos quais dependiam as rendas e o emprego O expansionismo tradicional foi substituído por uma tendência antiimperialista quase geral das grandes potências até 1880 Tratamos disto no capítulo dezoito Parece ter ocorrido porém um hiato de mais de meio século 18151880 entre o período das guerras comerciais quando se pressupunha naturalmente que a política externa se preocupava com o incremento dos negócios lucrativos e o período seguinte no qual os interesses dos acionistas estrangeiros e dos investidores diretos eram vistos como preocupação legítima das secretarias do exterior Durante esse meio século é que se estabeleceu a doutrina de excluir a influência dos interesses comerciais privados na conduta dos assuntos externos Somente no final desse período é que as chancelarias passaram a admitir novamente essas reivindicações assim mesmo com rígidas restrições em deferência à nova tendência da opinião pública Imaginamos que essa mudança possa ser imputada ao caráter do comércio que sob as condições vigentes no século XIX já não dependia mais tão diretamente do poder político para atingir seu objetivo e seu sucesso O retorno gradual da influência dos negócios na política externa se deveu ao fato de a moeda internacional e o sistema de crédito terem criado um novo tipo de interesses nos negócios que já transcendia as fronteiras nacionais Todavia enquanto esse interesse 307 era apenas o dos acionistas estrangeiros os governos se mostravam extremamente relutantes em lhes conceder voz Durante muito tempo os empréstimos externos foram considerados puramente especulativos no sentido mais estrito do termo as rendas eram regularmente investidas em títulos do governo interno Nenhum governo julgava conveniente apoiar os seus nacionais engajados na tarefa muito arriscada de emprestar dinheiro a governos ultramarinos de reputação duvidosa Canning rejeitou peremptoriamente a insistência dos investidores que contavam com o interesse do governo britânico nos seus prejuízos no exterior e se recusou categoricamente a condicionar o reconhecimento das repúblicas latinoamericanas ao fato delas aceitarem as suas dívidas externas A famosa circular de Palmerston de 1848 é o primeiro indício de uma mudança nessa atitude mas essa mudança não chegou muito longe Os interesses de negócios da comunidade comercial eram de caráter tão amplo que o governo não podia permitir que interesses investidos de pequena monta complicassem a administração dos assuntos de um império mundial A retomada de interesse da política externa nos empreendimentos de negócios no exterior resultou principalmente do fim do livre comércio e do conseqüente retorno aos métodos do século XVIII Como o comércio tinha agora uma ligação estreita com os investidores externos já não mais de caráter especulativo mas inteiramente normal a política externa reverteu às suas linhas tradicionais de se colocar a serviço dos interessses comerciais da comunidade Não é este último fato que precisava de explicação mas justamente a falta desse interesse durante o hiato Ao capítulo 2 3 Partese o fio dourado A queda do padrãoouro foi precipitada pela estabilização forçada das moedas Genebra foi a pontadelança do movimento de estabilização ao transmitir aos estados financeiramente fracos as pressões exercidas pela City de Londres e pela Wall Street O primeiro grupo de estados a se estabilizar foi o dos países derrotados cujas moedas entraram em colapso após a Primeira Guerra Mundial O segundo grupo consistiu nos estados europeus vitoriosos que só estabilizaram suas próprias moedas depois do primeiro grupo O terceiro grupo foi o principal beneficiário do interesse no padrãoouro os Estados Unidos 308 O desequilíbrio do primeiro grupo foi sustentado pelo segundo durante algum tempo Logo que esse segundo grupo também estabilizou sua moeda foi sua vez de precisar de apoio e este foi suprido pelo terceiro Em última instância foi esse terceiro grupo o dos Estados Unidos o mais atingido pelo desequilíbrio cumulativo da estabilização européia Ao capitulo 2 4 Os balanços do pêndulo após a Primeira Guerra Mundial O balanço do pêndulo após a Primeira Guerra Mundial foi generalizado e rápido mas sua amplirude foi pequena a grande maioria dos países da Europa Central e Oriental o período 19181923 apenas resultou numa restauração conservadora em seguida a uma república democrática ou socialista a conseqüência da derrota Alguns anos mais tarde foram estabelecidos governos unipartidários de modo quase universal e novamente o movimento foi bastante generalizado Ao Capítulo 2 5 Finanças e paz Existe muito pouco material disponível em relação ao papel político da finança internacional no último meio século O livro de Corti sobre os Rothschilds cobre apenas o 309 período anterior ao Concerto da Europa Nele não estão incluídas a sua participação nas ações relativas a Suez a oferta dos Bleichroeders de financiar a indenização da Guerra Francesa de 1871 através da emissão de um empréstimo internacional as grandes transações ocorridas no período da Ferrovia Oriental Obras históricas como as de Langer e Sonrag dedicam pouca atenção à finança internacional o último omite a finança na sua enumeração dos fatores de paz As observações de Leathes na Cambridge Modern History constituem quase uma exceção A crítica liberal independente ora se propunha mostrar a falta de patriotismo dos financistas ora a sua propensão de apoiar as tendências protecionistas e imperialistas em detrimento do comércio livre como no caso de escritores tais como Lysis na França ou J A Hobson na Inglaterra As obras marxistas como os estudos de Hilferding ou Lenin enfatizavam as forças imperialistas que emanavam dos bancos nacionais e sua ligação orgânica com as indústrias pesadas Esse argumento além de se restringir principalmente à Alemanha deixou necessariamente de abordar os interesses bancários internacionais A influência de Wall Street no desenvolvimento da década de 1920 ainda é muito recente para um estudo objetivo Parece não haver dúvida porém de que no seu todo sua influência pesou na balança no lado da moderação e mediação internacional desde a época dos tratados de paz até o Plano Dawes o Plano Young e a liquidação das reparações em e depois de Lausanne A literatura recente tende a isolar o problema dos investimentos privados como na obra de Staley que exclui expressamente os empréstimos aos governos quer feitos por outros governos quer por investidores privados uma restrição que praticamente exclui do seu interessante estudo qualquer avaliação mais ampla da finança internacional O excelente relato de Feis do qual nos valemos profusamente cobre mais aproximadamente o assunto como um todo mas sofre a falta de material autêntico já que os arquivos da haute finance não são acessíveis A obra valiosa de Earle Remer e Viner também está sujeita à mesma inevitável limitação Ao capítulo 4 6 Referências selecionadas a sociedades e sistemas econômicos O século XIX tentou estabelecer um sistema econômico autoregulável com a motivação do ganho individual Constatamos que tal empreendimento era impossível pela própria natureza das coisas Preocupamonos aqui apenas com a visão distorcida da vida e da sociedade implícita numa abordagem como essa Os pensadores do século XIX presumiam por exemplo que era natural comportarse como um comerciante no mercado e qualquer outro tipo de comportamento seria um comportamento econômico artificial o resultado de uma interferência nos instintos humanos que os mercados surgiriam espontaneamente se se deixassem os homens por sua conta que qualquer que fosse a desejabilidade de uma tal sociedade em termos morais pelo menos a sua praticabilidade se fundamentava nas características imutáveis da raça e assim por diante O oposto dessas afirmativas está praticamente implícito no testemunho da pesquisa moderna em várias áreas da ciência social como a antropologia social a economia primitiva a história das primeiras civilizações e a história econômica geral De fato não existe qualquer pressuposto antropológico ou sociológico 310 explícito ou implícito contido na filosofia do liberalismo econômico que não tenha sido refutado Seguemse algumas citações a A motivação do ganho não é natural no homem O aspecto característico da economia primitiva é a ausência de qualquer desejo e obter lucros com a produção ou a troca Thurnwald Economics in Primitiue Communities 1932 p xiii Uma outra noção que deve ser abolida de alguns textos didáticos atuais de economia uma vez por todas é a do Homem Econômico Primitivo Malinowski Argonauts of the Westem Pacific 1930 p 60 Temos que rejeitar os Idealtypen do liberalismo de Manchester que não são apenas equivocados teótica mas historicamente Brinkmann Das soziale System des Kapitalismus em Grundriss der Sozialôkonomik vol IV p 11 b Contar com o pagamento do trabalho não é natural no homem O ganho que é muitas vezes o estímulo para o trabalho nas comunidades mais civilizadas jamais atua como impulso para o trabalho sob as condições nativas originais Malinowski op cit p156 Não encontramos o trabalho associado à idéia do pagamento em qualquer local de uma sociedade primitiva nãoinfluenciada Lowie Social Organization Encyclopedia of the Social Sciences vol XIV p 14 Em nenhum lugar o trabalho é alugado ou vendido Thurnwald Die menschliche Geseltschaft liv III 1932 p169 O tratamento do trabalho como uma obrigação que não exige compensação é geral Firth Primitive Economics of the New Zealand Maori 1929 Mesmo na Idade Média não se ouvia falar em pagamento pelo trabalho dos estranhos O estranho não tem qualquer laço de dever pessoal e portanto ele deve trabalhar pela honra e pelo reconhecimento Os menestréis embora fossem estranhos aceitavam pagamento e eram desprezados por isto Lowie op cit c Restringir o trabalho ao mínimo inevitável não é natural no homem Não podemos deixar de observar que o trabalho jamais se limita ao rrúnirno indispensável mas excede a quantidade absolutamente necessária em virtude de uma necessidade funcional de atividade natural ou adquirida Thurnwald Economics p 209 O trabalho é sempre feito além do estritamente necessário Thurnwald Die menschliche Geseltschaft p 163 d Os incentivos habituais do trabalho não são o ganho mas a reciprocidade a competição o prazer do trabalho e a aprovação social Reciprocidade A maioria senão todos os atos econômicos pertencem a alguma cadeia de presentes e contrapresentes recíprocos que a longo prazo chegam a um equilíbrio e beneficiam igualmente ambos os lados O homem que desobedecesse persistentemente às regras da lei nas suas transações econômicas logo se veria à margem da ordem social e econômica e ele está perfeitamente consciente disso Malinowski Crime and Custom in Savage Society 1926 pp 4041 Competição A competição é acirrada a execução embora uniforme no seu objetivo é variada por excelência Uma disputa na excelência da reprodução dos padrões Goldenweiser Loose Ends of Theory on the Individual Pattem and Involution in Primitive Society em Essays in Anthropology 1936 p 99 Os homens se rivalizam 311 uns com os outros na velocidade na eficiência e nos pesos que podem levantar quando trazem grandes estacas para o jardim ou quando transportam os inhames colhidos Malinowski Argonauts p 61 Prazer do trabalho O trabalho por ele mesmo é uma característica constante da indústria Maori Firth Some Features of Primitive Industry E vol I p 17 Dedica se muito tempo e trabalho para fins estáticos para arrumar limpar e retirar todo o entulho dos jardins para construir cercas refinadas e sólidas para conseguir estacas de inhame grandes e fortes É claro que todas essas coisas são importantes para o crescimento da planta mas não há dúvida também de que os nativos levam sua escrupulosidade além dos limites do puramente necessário Malinowski op cit p 59 Aprovação social A perfeição na jardinagem é o índice geral do valor social da pessoa Malinowski Coral Gardens and Their Magic vol II 1935 p124 Esperase que cada pessoa da comunidade mostre uma medida normal de aplicação Firth Primitive Polynesian onomy 1939 p161 Os ilhéus Andaman vêem a preguiça como um comportamento antisocial RatcliffeBrown The Andaman Islanders Colocar o trabalho de alguém sob o comando de outro é um serviço social e não apenas um serviço econômico Firth op cit p 303 e O homem sempre o mesmo em todas as épocas Linton em seu Study of Man aconselha cautela contra as teorias psicológicas da determinação da personalidade e afirma que as observações gerais levam à conclusão de que o gama total desses tipos é bastante semelhante em todas as sociedades Em outras palavras logo que ele o observador penetra o crivo da diferença cultural ele descobre que esses povos são basicamente iguais a nós p 484 Thurnwald enfatiza a similaridade dos homens em todos os estágios do seu desenvolvimento A economia primitiva conforme estudada nas páginas precedentes não se distingue de qualquer outra forma de economia no que concerne às relações humanas e se firma nos mesmos princípios gerais da vida social Economics p 288 Algumas emoções coletivas de natureza elementar são essencialmente as mesmas em todos os seres humanos e respondem pela recorrência de configurações semelhantes em sua existência social Sozialpsychische Ablãufe irn Võlkerleben em Essays in Anthropology p 383 O livro de Ruth Benedict Patterns o Culture se baseia em última instância num pressuposto similar Falei como se o temperamento humano fosse bastante constante no mundo como se em cada sociedade existisse um potencial disponível para uma distribuição praticamente igual e como se a cultura selecionada a partir daí segundo seus padrões tradicionais houvesse moldado a vasta maioria dos indivíduos numa só harmonia A experiência do transe por exemplo de acordo com esta interpretação é uma potencialidade de certo número de indivíduos em qualquer população Quando se lhe atribuem honrarias e recompensas uma proporção considerável alcançáloá ou estimuláloá p 233 Malinowski assumiu conseqüentemente posição semelhante em suas obras f Os sistemas econômicos em regra estão inseridos nas relações sociais a distribuição dos bens materiais é assegurada por motivos nãoeconômicos A economia primitiva é um assunto social que lida com uma série de pessoas como partes de um todo entrelaçado Thurnwald Economics p xii Isto é igualmente 312 verdadeiro no que se refere à riqueza ao trabalho e à permuta A riqueza primitiva não é de natureza econômica mas social ibid A mãodeobra é capaz de um trabalho efetivo porque ela está integrada pelas forças sociais num esforço organizado Malinowski Argonauts p 157 A permuta de bens e serviços é levada a efeito dentro de uma parceria constante ou associada a laços sociais definidos ou ligada a uma mumalidade em assuntos nãoeconômicos Malinowski Crime and Custom p 39 Os dois princípios mais importantes que governam o comportamento econômico parecem ser a reciprocidade e a acumulaçãocomredistribuição Toda a vida tribal é permeada por um constante dar e tomar Malinowski Argonauts p 167 A dádiva de hoje será recompensada pela retomada de amanhã Esta é a conseqüência do princípio da reciprocidade que permeia todas as relações da vida primitiva Thurnwald Economics p 106 A fim de tomar possível tal reciprocidade em todas as sociedades selvagens será encontrada uma certa dualidade de instituições ou simetria de estrutura como base indispensável de obrigações recíprocas Malinowski Crime and Custom p 25 Entre os Banaros a partilha simétrica das suas câmaras de espíritos se baseia na estrutura da sua sociedade que é igualmente simétrica Thurnwald Die Gemeinde der Bánaro 1921 p 378 Thurnwald descobriu que além desse comportamento recíproco e às vezes combinado com ele a prática da acumulação e da redistribuição era a aplicação mais generalizada desde a tribo caçadora primitiva até os maiores impérios Os bens eram coletados de forma centralizada e depois distribuídos entre os membros da comunidade numa grande variedade de formas Entre os povos micronésios e polinésios por exemplo os reis como representantes do primeiro clã recebiam o imposto e redistribuíamno mais tarde sob a forma de dádiva entre a população Thurnwald Economics p xii Esta função distributiva é a fonte primordial do poder político dos órgãos centrais ibid p 107 g A coleta individual de alimentos para uso da própria pessoa e da família não é parte da vida do homem primitivo Os clássicos pressupunham que o homem préeconômico tinha que tomar conta de si mesmo e da sua família Esse pressuposto foi revivido por Carl Buecher em sua obra pioneira na virada do século e adquiriu grande notoriedade A pesquisa recente porém unanimemente corrigiu Buecher neste ponto Firth Primitive Economics of the New Zealand Maori pp 12 206350 Thurnwald Economics pp 170 268 e Die menschliche Geselschaft vol li p 146 Herskovits The Economic Life of Primitive Peoples 1940 p 34 Malinowski Argonauts p 167 pédepágina h A reciprocidade e a redistribuição são princípios de comportamento econômico que se aplicam não apenas a pequenas comunidades primitivas mas também a grandes e poderosos impérios A distribuição tem a sua própria história particular a começar da vida mais primitiva das tribos caçadoras O caso é diferente nas sociedades que têm uma estratificação mais recente e mais pronunciada O exemplo mais impressionante é oferecido pelo contato dos pastores com os povos agrícolas As condições nessas sociedades diferem consideravelmente mas a função distributiva aumenta com o crescente poder político de algumas famílias e a ascensão de déspotas O chefe recebe os presentes do camponês que 313 se tomam agora impostos e os distribui entre seus oficiais especialmente aqueles ligados à sua corte Esse desenvolvimento implicava sistemas mais complicados de distribuição Todos os estados arcaicos a China antiga o Império dos Incas os Reinos Indianos Egito Babilônia fizeram uso de moeda metálica para impostos e salários mas dependiam principalmente dos pagamentos em espécie acumulados em celeiros e depósitos e distribuídos entre autoridades guerreiros e classes ociosas isto é a parte nãoprodutiva da população Neste caso a distribuição exerce uma função essencialmente econômica Thurnwald Economics pp 1068 Quando falamos no feudalismo pensamos sempre na Idade Média da Europa Entretanto ele é uma instituição que logo fez sua aparição em comunidades estratificadas O fato de a maioria das transações ser em espécie e dos estratos superiores exigirem toda a terra e o gado são as causas econômicas do feudalismo ibid p 195 Ao capítulo 5 7 Referências selecionadas à evolução do padrão de mercado O liberalismo econômico funcionou sob a ilusão de que a sua prática e seus métodos representavam o crescimento natural de uma lei geral de progresso Para fazê Ios se acomodar ao padrão os princípios subjacentes a um mercado autoregulável foram projetados em retrospecto a toda a história da civilização humana Resultou daí que a verdadeira natureza e origem do comércio dos mercados e do dinheiro da vida urbana e dos estados nacionais foram distorcidas além de todo reconhecimento a Os atos individuais de barganha permuta e troca só são praticados excepcionalmente na sociedade primitiva A permuta originalmente é inteiramente desconhecida Longe de estar possuído de uma ânsia de permuta o homem primitivo tem aversão a ela Buecher Die Entstenhung der Volkswirtschaft 1904 p 109 É impossível por exemplo expressar o valor de um anzol de bonito em termos de quantidade de alimentos uma vez que tal troca jamais é feita e seria vista como fantástica pelos Tikopia Cada tipo de objeto é apropriado a um tipo particular de situação social Firth op cit p 340 b O comércio não surge dentro de uma comunidade é assunto externo que envolve diferentes comunidades No seu início o comércio é uma transação entre grupos étnicos ele não ocorre entre membros da mesma tribo ou da mesma comunidade mas é nas comunidades sociais mais antigas um fenômeno externo que se dirige apenas às tribos estrangeiras MWeber General Economia History p 195 Embora pareça estranho o comércio medieval se desenvolveu desde o princípio sob a influência do comércio de exportação e não do comércio local Pirenne Economic and Social History of Medieval Europe p 142 O comércio a longa distância foi responsável pelo renascimento econômico da Idade Média Pirenne Medieval Cities p 125 314 c o comércio não depende de mercados ele surge de empreendimentos unilaterais pacíficos ou não Thurnwald estabeleceu o fato de que as formas mais antigas de comércio consistiam simplesmente em procurar e transportar objetos a distância Tratase na sua essência de uma expedição de caça Se a expedição é guerreira como na caça ao escravo ou na pirataria depende principalmente da resistência encontrada opcit pp 145 146 A pirataria foi a iniciadora do comércio marítimo entre os gregos da era homérica como entre os Vickings nórdicos durante muito tempo as duas vocações se desenvolveram em consonância Pirenne Economic and Social History p 109 d A presença ou ausência de mercados não é uma característica essencial os mercados locais não têm tendência a crescer Os sistemas econômicos que não possuem mercados não precisam ter quaisquer outras características em comum nesse sentido Thurnwald Die menschliche Gesellschaft vol III p 137 Nos mercados primitivos somente quantidades definidas de objetos definidos podiam ser permutadas urnas pelas outras ibid p 137 Thurnwald merece um apreço especial pela sua observação de que o dinheiro e o comércio primitivos são essencialmente de significado social ao invés de econômico Loeb The Distribution and Function of Money in Early Society em Essays in Anthropology p 153 Os mercados locais não se desenvolveram a partir do comércio armado ou da permuta silenciosa ou outras formas de comércio externo mas a partir da paz mantida num local de reunião com o propósito limitado da troca entre vizinhos O objetivo do mercado local era oferecer as provisões necessárias à vida diária da população estabelecida no distrito Isto explica o fato de elas ocorrerem semanalmente o círculo muito limitado da sua atração e a restrição da sua atividade a pequenas operações a varejo Pirenne op cit capo 4 Commerce to the End of the Twentieth Century p 97 Mesmo em época posterior os mercados locais não revelaram qualquer tendência ao crescimento em contraste com as feiras O mercado supria as necessidades da localidade e a ele compareciam apenas os habitantes das vizinhanças suas mercadorias eram produtos do campo e utensílios da vida cotidiana Lipson The Economic History of England 1935 vol I p 221 O comércio local começou a se desenvolver como uma ocupação auxiliar dos camponeses e pessoas empenhadas na indústria doméstica e em ocupações gerais ou sazonais Weberop cit p 195 Seria natural supor à primeira vista que uma classe de mercadores crescesse pouco a pouco no seio da população agrícola Nada porém dá credibilidade a essa teoria pirenne Medieval Cities p 111 e A divisão do trabalho não se origina do comércio ou da troca mas de fatos geográficos biológicos e outros não econômicos A divisão do trabalho não resulta definitivamente de uma economia complicada como afirmam as teorias racionalistas Ela se deve principalmente às diferenças fisiológicas de sexo e idade Thurnwald Economics p 212 Praticamente a única divisão de trabalho que existe é entre homens e mulheres Herskovits op cit p 13 Uma outra forma na qual a divisão do trabalho pode surgir de fatos biológicos é no caso da simbiose de diferentes grupos érnicos Os grupos érnicos se transformam em grupos profissionaissociais através da formação de uma camada superior na sociedade Criase assim uma organização baseada de um lado nas contribuições e serviços da classe dependente e de outro no poder de distribuição que possuem os chefes 315 de famílias do estrato dominante Thurnwald Economics p 86 Encontramos aqui uma das origens do estado Thurnwald Sozialpsyschische Ablaufe p 387 f O dinheiro não é uma invenção decisiva sua presença ou ausência não precisa fazer qualquer diferença essencial no tipo de economia O simples fato de uma tribo usar dinheiro diferenciase muito pouco economicamente de outras tribos que não o utilizam Loeb op cit p 154 Se o dinheiro é usado sua função é muito diferente daquela que exerce em nossa civilização Ele nunca deixa de ser um material concreto e jamais se transforma numa representação de valor inteiramente abstrata Thurnwald Economics p 107 As dificuldades da permuta não desempenharam qualquer papel na invenção do dinheiro Esta visão antiquada dos economistas clássicos é totalmente contrária às investigações etnológicas Loeb op cit p 167 pédepágina 6 Em razão da utilidade específica das mercadorias que funcionam como dinheiro assim como seu significado simbólico como atributos de poder não é possível ver a posse econômica de um ponto de vista racionalista unilateral Thurnwald Economics O dinheiro pode ser usado por exemplo apenas para o pagamento de salários e impostos ibid p 108 ou ele pode ser usado para comprar uma mulher como dinheiro de sangue ou como multa Podemos ver assim que nestes exemplos de condições préestatais a avaliação dos objetos de valor resulta da quantidade das contribuições costumeiras da posição ocupada pelos personagens mais importantes e da relação concreta que eles assumem com referência às pessoas comuns das diversas comunidades Thurnwald Economics p 263 O dinheiro como os mercados é principalmente um fenômeno externo e seu significado para a comunidade é determinado basicamente pelas relações comerciais A idéia do dinheiro é introduzida habitualmente do exterior Loebop cit p 156 A função do dinheiro como meio geral de troca se originou no comércio exterior Weber op cit p 238 g O comércio externo não foi originalmente um comércio entre indivíduos mas entre coletividades O comércio é um empreendimento grupal ele se refere a artigos obtidos coletivamente Sua origem está nas viagens comerciais coletivas O princípio da coletividade faz sua aparição nos preparativos dessas expedições que têm muitas vezes o caráter de comércio exterior Thurnwald Economics p 145 De qualquer forma o comércio mais antigo é uma relação de troca entre tribos estranhas Weberop cit p 195 O comércio medieval não foi enfaticamente um comércio intercomunal ou intermunicipal Ashley An Introduction to English Economic History and Theory Parte I The Middle Ages p 102 h O campo foi isolado do comércio na Idade Média Até e durante o decurso do século XV as cidades foram os únicos centros de comércio e indústria numa extensão tal que não lhes permitia escapar para o campo aberto Pirenne Economic and Social History p 169 A luta CONtra o comércio rural e contra o artesanato rural durou pelo menos setecentos ou oitocentos anos Heckscher Mercantilism 1935 voI I p 129 A severidade dessas medidas aumentou com a ampliação do governo democrático Durante todo o século XIV eram 316 enviadas expedições armadas contra todas as aldeias da vizinhança e todos os teares e tinas eram quebrados ou levados embora Pirenne op cit p 211 i Não havia comércio indiscriminado entre uma e outra cidade na Idade Média O mércio intermunicipal implicava relações preferenciais entre cidades particuou grupos de cidades como por exemplo a Hansa de Londres e a Hansa teutônica A reciprocidade e a retaliação eram os princípios que governavam as relações entre cidades o caso do nãopagamento de dividas por exemplo os magistrados da idade credora podiam se dirigir aos da devedora e exigir que a justiça fosse feita da mesma maneira como desejariam que seu povo fosse tratado e ameaçando fazer represálias contra o povo daquela cidade se o débito não fosse pago Ashley op cit Pane I p 109 j O protecionismo nacional era desconhecido Para propósitos econômicos é quase desnecessário distinguir países diferentes uns dos outros no século xm pois havia muito menos barreiras ao intercâmbio social nos limites da Cristandade do que as que encontramos hoje em dia Cunningham Western Civilization in Its Economic Aspects vol I p 3 Até o século XV não havia tarifas entre fronteiras políticas Antes dessa época não há qualquer prova do mínimo desejo de favorecer o comércio nacional protegendoo da competição estrangeira Pirenne Economic and Social History p 92 O comércio internacional era livre em todas as transações Power e Postan Studies in English Trade in the Pifteenth Century k O mercantilismo impôs um comércio mais livre às cidades e províncias dentro das fronteiras nacionais O primeiro volume do Mercantilism de Heckscher 1935 tem o titulo Mercantilismo como Sistema Unificador Assim o mercantilismo opôsse a tudo que limitava a vida econômica a um local particular e obstruía o comércio dentro das fronteiras do estado Heckscherop cit vol n p 273 Ambos os aspectos da política municipal a supressão do campo rural e a luta contra a competição das cidades estrangeiras estavam em conflito com os objetivos econômicos do estado ibid vol I p 131 O mercantilismo nacionalizou os países através da ação do comércio que estendeu as práticas locais a todo o território do estado pantlen Handel em Handuôrterbuch der Staatswissenschaften vol VI p 281 A competição foi freqüentemente patrocinada pelo mercantilismo de forma artificial a fim de organizar mercados com a regulação automática da oferta e da procura Heckscher O primeiro autor moderno a reconhecer a tendência liberalizante do sistema mercantil foi Schmoller 1884 l A regulação medieval teve muito sucesso A política das cidades na Idade Média foi provavelmente a primeira tentativa na Europa Ocidental após o declínio do Velho Mundo de regular a sociedade no seu setor econômico de acordo com princípios sólidos A tentativa foi coroada de um sucesso incomum O liberalismo econômico ou o laissezfaire na época da sua supremacia incontestável talvez seja um tal exemplo mas quanto à sua duração o liberalismo foi um episódio pequeno evanescente em comparação com a tenacidade persistente da política das cidades Heckscher op cit p 139 Eles a atingiram através de um 317 sistema de regulações tão maravilhosamente adaptado a seu propósito que pode ser considerado uma obraprima da sua espécie A economia da cidade era digna da arquitetura gótica que foi sua contemporânea Pirenne Medieval Cities p 217 m O mercantilismo estendeu as práticas municipais ao território nacional O resultado seria uma política de cidade ampliada para uma área maior uma espécie de política municipal superimposta numa base estatal Heckscher op cit vol I p 131 n Mercantilismo uma política muito bemsucedida O mercantilismo criou um sistema magistral de desejosatisfação complexo e elaborado Buecher op cit p 159 Foi tremendo o alcance dos Reglements de Colbert que exigia uma alta qualidade na produção como um fim em si mesmo Heckscher op cit vol I p 166 A vida econômica em escala nacional foi principalmente o resultado da centralização política Buecher op cit p 157 O sistema regulador do mercantilismo tem a seu crédito a criação de um código de trabalho e uma disciplina de trabalho muito mais estritos do que aqueles produzidos pelo estreito particularismo dos governos das cidades medievais com suas limitações morais e tecnológicas Brinkmann Das soziale System des Kapitalismus em Grundriss der Sozialõkonomik vol IV Ao capítulo 7 8 Literatura sobre Speenharnland Somente no princípio e no final da era do capitalismo liberal encontramos uma conscientização da importância decisiva da Speenhamland Tanto antes como depois de 1834 existiam naturalmente referências constantes ao sistema de abonos e à má administração da Poor Law as quais porém não datavam da Speenhamland de 1795 mas do Gilberts Act de 1782 e as verdadeiras características do sistema Speenhamland não estavam claramente definidas na mentalidade pública E nem hoje elas estão Ainda se considera que ela significou simplesmente uma assistência indiscriminada ao povo Na verdade ela foi algo inteiramente diferente isto é um abono salarial sistemático Os contemporâneos só reconheceram parcialmente que tal prática colidia frontalmente com os princípios da Lei Tudor e não compreenderam de forma alguma que ela era inteiramente incompatível com o sistema salarial emergente Quanto aos efeitos práticos não se observou até muito tarde que em conjunção com as AntiCombination Laws 17991800 ela tendia a rebaixar os salários e tornarse um subsídio para os patrões Os economistas clássicos jamais pararam para investigar os detalhes do sistema de abonos como fizeram no caso do aluguel e da moeda Eles juntaram todas as formas de abono e assistência externa com as Poor Laws e fizeram pressão para a sua revogação total Nem Townsend Malthus ou Ricardo defenderam a reforma da Poor Law eles apenas exigiram a sua revogação Só Bentham que havia feito um estudo sobre o assunto foi nesse sentido menos dogmático do que os outros Burke e ele 318 compreenderam aquilo que Pitt não havia visto que o princípio verdadeiramente vicioso era o do abono salarial Engels e Marx não fizeram qualquer estudo sobre a Poor Law Poderseia imaginar que nada Lhes seria mais conveniente do que demonstrar o pseudo humanitarismo de um sistema reputado como a serviço da fantasia dos pobres enquanto de faro reduzia seus salários abaixo do nível de subsistência ajudado poderosamente nesse sentido por uma lei especial antisindicalista e manejava o dinheiro público enrregandoo aos ricos para que pudessem ganhar mais dinheiro com os pobres a época deles a ew Poor Law era o inimigo e tanto Cobbett como os cartistas tendiam a idealizar a antiga Poor Law Além disso Engels e Marx estavam justamente convencidos de que se o capitalismo estava se implantando era inevitável a reforma da Poor Law Assim eles deixaram de lado não apenas alguns pontos de debate de primeira classe mas também o argumento com o qual a Speenharnland reforçaria o seu sistema teórico a saber de que o capitalismo não poderia funcionar sem um mercado livre de trabalho Harriet Martineau utilizou profusamente as clássicas passagens do Poor Law Report 1834 nas suas sombrias descrições das conseqüências da Speenharnland Os Goulds e os Barings que financiaram os pequenos e suntuosos volumes nos quais ela se propôs a esclarecer os pobres sobre a inevitabilidade da sua miséria ela estava profundamente convencida de que ela era inevitável e que só o conhecimento das leis da economia política faria com que tolerassem melhor a sua sorte não poderiam ter encontrado um defensor mais sincero do seu credo e mais bem informado no seu todo Illustrations to Polítical Economy 1831 vol III também The Parish e The Hamlet em Poor Law and Paupers 1834 Seu Thirty Years Peace 18161846 foi composto num ambiente refinado e revelou mais simpatia pelos cartistas do que pela memória do seu mestre Bentham vol III p 489 e vol IV p 453 Ela concluiu a sua crônica com esta significativa passagem Temos agora os melhores cérebros e corações ocupados com a grave questáo dos direitos do trabalho com alertas impressionantes que nos surgem do exterior de que eles não podem ser negligenciados sob o risco da penalidade mínima de arruinar a todos Será possível que a solução não possa ser encontrada Esta solução pode até ser o fato central do próximo período da história britânica e então melhor do que agora pode parecer que na sua preparação se firma o principal interesse da paz dos Trinta Anos precedente Esta foi uma profecia de ação retardada A questão do trabalho deixou de existir no período seguinte da história britânica mas retomou na década de 1970 e meio século mais tarde ela significou ruína para todos Obviamente era mais fácil discernir na década de 1840 do que na década de 1940 que as origens daquela questão repousavam nos princípios que governavam a Poor Law Reform Act Durante todo o período vitoriano e mesmo depois nenhum filósofo ou historiador se ocupou da insignificante economia da Speenharnland Entre os três historiadores do bentharnismo Sir Leslie Stephen não se preocupou em pesquisar os detalhes Elie Halevy o primeiro a reconhecer o papel fundamental da Poor Law na história do radicalismo filosófico tinha apenas as noções mais nebulosas sobre o assunto No terceiro relato de Dicey a omissão é ainda mais marcante Sua incomparável análise das relações entre a lei e a opinião pública trataram o laissezfaire e o coletivismo como a trama e a urdidura do tecido Ele acreditava que o próprio padrão se originava das tendências industriais e de negócios da época isto é das instituições que modelavam a vida econômica Ninguém poderia ter enfatizado mais fortemente do que Dicey o 319 dominante papel desempenhado pelo pauperismo na opinião pública nem a importância da Poor Law Reform no sistema total da legislação benthamita No entanto ele estava perplexo com a importância central atribuída à Poor Law Reform pelos benthamitas em seu esquema legislativo e acreditava de fato que o encargo dos impostos sobre a indústria era o ponto em questão Historiadores do pensamento econômico do porte de um Schumpeter ou Mitchell analisaram os conceitos dos economistas clássicos sem fazer qualquer referência às condições da Speenhamland Com as conferências de A Toynbee 1881 a Revolução Industrial se tornou um tema da história econômica Toynbee fez o socialismo Tory responsável pela Speenhamland e seu princípio de proteção aos pobres pelos ricos Nessa época William Cwmingham voltouse para o mesmo assunto e ele reviveu como por milagre mas foi apenas uma voz ressoando na selva Embora Mantoux 1907 recebesse o benefício da obraprima de Cunningham 1881 ele se referiu à Speenhamland como apenas uma outra reforma e curiosamente creditoua com o efeito de caçar os pobres para o mercado de trabalho The Industrial Revolution in the Eighteenth Century p 438 Beer cuja obra foi um monumento ao primitivo socialismo inglês quase não mencionou a Poor Law A Speenharnland só foi redescoberta quando os Hammonds 1911 conceberam a visão de uma nova civilização prenunciada pela Revolução Industrial Para eles ela constituía uma parte da história social não da econômica Os Webbs 1927 prosseguiram esse trabalho levantando a questão das precondições política e econômica da Speenharnland conscientes do fato de que estavam lidando com as origens dos problemas sociais da nossa própria época J H Clapham tentou construir um caso contra o que pode ser chamado de abordagem instirucionalista da história econômica representada por Engels Marx T oynbee Cunningham Mantoux e mais recentemente pelos Hammonds Ele se recusava a considerar o sistema Speenhamland como uma instituição e discutiao simplesmente como um traço da organização agrária do país vol I capo 4 Isto não era suficiente já que foi precisamente o fato de ela se estender às cidades que derrubou o sistema Ele também isolou o tema salarial dos efeitos da Speenhamland sobre os impostos e discutiu este último como Atividades Econômicas do Estado Isto foi artificial e omitiu a economia da Speenharnland do ponto de vista da classe dos patrões que se beneficiou com os salários baixos tanto ou mais do que perdia com os impostos O respeito consciencioso de Clapham pelos fatos porém compensou seu maltrato à instituição O efeito decisivo dos cercamentos de guerra na área em que foi introduzido o sistema Speenharnland assim como o grau verdadeiro a que os salários reais foram reduzidos por esse sistema foram revelados pela primeira vez por ele A total incompatibilidade da Speenharnland com o sistema salarial só era relembrada permanentemente na tradição dos liberais econômicos Só eles compreenderam que num sentido amplo cada forma de proteção do trabalho implicava algo do princípio de intervencionismo da Speenharnland Spencer fez a acusação de salários feitos como era chamado o sistema de abonos na sua parte do país contra qualquer prática coletivista termo esse que ele não encontrou dificuldade em aplicar à educação pública à habitação à provisão de terrenos para recreação e assim por diante Dicey em 1913 resumiu a sua crítica ao Old Age Pensions Act Lei da Aposentadoria dos Velhos 1908 nas palavras Em essência isto nada 320 mais é que uma nova forma de assistência externa aos pobres Ele duvidava que os liberais econômicos jamais tivessem uma possibilidade de atingir sucesso com a sua política Algumas de suas propostas jamais foram levadas a efeito a assistência externa por exemplo jamais foi revogada Se esta era a opinião de Dicey era apenas natural que Mises sustentasse que enquanto se pagar o benefíciodesemprego o desemprego deve existir Liberalisms 1927 p 74 e que a assistência aos desempregados provara ser uma das armas mais efetivas de destruição Sociaiism 19 p 484 Nationalôkonomie 1940 p 720 Walter Lippmann em seu Good Society 1937 tentou dissociarse de Spencer mas apenas para invocar Mises Ele e lippmann espelhavam a reação liberal ao novo protecionismo das décadas de 1920 e 1930 É fora de dúvida que muitos aspectos da situação relembravam agora a Speenhamland Na Áustria o benefíciodesemprego vinha sendo subsidiado por um Tesouro falido na GrãBretanha o benefíciodesemprego ampliado não se distinguia do donativo na América do Norte haviam sido lançados os WPA e PWA Foi em vão que Sir Alfred Mond presidente da Imperial Chemical Industries defendeu em 1926 a idéia de que os empregadores britânicos deviam receber subsídios do fundo de desemprego para compor os salários e assim ajudar o incremento do emprego Tanto no que se refere ao tema do desemprego quanto ao tema da moeda o capitalismo liberal em seus estertores mortais enfrentava os mesmos problemas ainda não solucionados a herança que arrastava desde os seus primórdios Literatura contemporânea sobre pauperismo e a Old Poor Law Acland Compulsory Saving Pians 1786 Anônimo Considerations on Several Proposals Lately Made for the Better Maintenance of the Poor Com um apêndice 2 ed 1752 Anônimo A New Plan for the Better Maintenance of the Poor of England 1784 An Address to the Public da Philanthropic Society instituída em 1788 para a Prevenção de Crimes e Reformas dos Criminosos Pobres 1788 Applegarth Rob A Plea for the Poor 1790 Belsham Will Remarks on the Bill for the Better Support and Maintenance of the Poor 1797 Bentham Pauper Management Improved 1802 Observation on the Restrictive and Prohibitory Commerciai System 1821 Observations on the Poor Bill introduced by the Right Honorabie William Pitt escrito em fevereiro de 1797 Burke E Thoughts and Detaiis on Scarcity 1795 Cowe James Religious and Philanthropic Trusts 1797 Crumple Samuel M D An Essay on the Best Means of Prividing Empioyment for the People 1793 Defoe Daniel Giving Aims No Charity and Empioying the Poor a Grievance to the Nation 1704 Dyer George A Dissertation on the Theory and Practice of Benevoience 1795 The Compiaints of the Poor People of England 1792 321 Eden On the Poor 1797 3 vols Gilbert Thomas A Plan for the Better Relief and Employment of the Poor 1781 Godwin William Thoughts Occasioned by the Perusal of Dr Parrs Spiritual Sermon Preached at Christ Church Apri115 1800 Londres 1801 Hampshire State of the Poor 1795 Hampshire Magistrate E Poulter Comments on the Poor Bill 1797 Howlett Rev J Examination of Mr Pitts Speech 1796 James Isaac Providence Displayed Londres 1800 p 20 Jones Edw The Prevention of Poverty 1796 Luson Hewling Inferior Politics or Considerations on the Wretchedness and Profligacy of the Poor 1786 MFarlane John D D Enquiries Conceming the Poor 1782 Martineau H The Parish 1833 The Hamlet 1833 The History of the Thirty Years Peace 18493 vols lllustrations ofPolitical Economy 1832349 vols Massie A Plan Penitent Prostitutes Foundling Hospital Poor and Poor Laws 1758 Nasmith James D D A Charge Isle of Ely 1799 Owen Robert Report to the Comitteee of the Association for the Relief of the Manufacturing and Labouring Poor 1818 Paine Th Angrarian justice 1797 Pew Rich Observations 1783 Pitt Wm Morton An Address to the Landed Interest of the defic of Habitation and Fuel for the Use of the Poor 1797 Plan of a Public Charity A 1790 On Starving um sketch First Report da Sociedade para a Melhoria das Condições e Aumento do Conforto dos Pobres Second Report da Sociedade para a Melhoria das Condições e Aumento do Conforto dos Pobres 1797 Ruggles Tho The History of the Poor 1793 2 vols Sabatier Wm Esq A Treatise on Poverty 1797 Saunders Robert Observations Sherer Rev G Present State of the Poor 1796 Spitalfields Institution Good Meat Soup 1799 St Giles in the Field Vestry of the United Parishes of Criticism of Bill for the Better Support and Maintenance of the Poor 1797 Suffolk Gentlemann A Letter on the Poor Rates and the High Price af Provisians 1795 Townsend Wm Dissertation on the Poor Laws 17861ry A WellWisherafMankind Vancouver John Causes and Production of Poverty 1796 Wilson Rev Edw Observatians on the Present State af the Poor 1795 Wood J Letter to Sir William Pulteney on Pitts Bill 1797 Young Sir W Poor Houses and Warkhauses 1796 Algumas obras modernas Ashlwy Sir W J An Introduction to English Economic History and Theory 1931 Belasco Ph S John Bellrs 16541725 Economics junho 1925 322 The Labour Exchange Idea in the 17th Century EcJ vol I p 275 Blackmore J S e Mellonie F c Family Endowment and the Birthrate in the Early 19th Century vol I Clapham J H Economic History of Modern Britain voI I 1926 Marshall Dorothy The Old Poor Law 16621795 The Ec Hist Rev vol VIll 193738 p 38 Palgrave Dictionary of Political Economy Art Poor Law 1925 Webb S e B English Local Government vols 79 Poor Law History 192729 Webb Sidney Social Movements C M H vol XII pp 73065 Ao capítulo 7 9 Speenhamland e Viena O que primeiro chamou a atenção do autor para o estudo da Speenharnland e seus efeitos sobre os economistas clássicos foi a situação social e econômica muito sugestiva que se desenvolveu na Áustria após a Grande Guerra Aqui num ambiente puramente capitalista uma municipalidade socialista estabelecera um regime intransigentemente atacado pelos liberais econômicos Não há dúvida de que algumas das políticas intervencionistas postas em prática pela municipalidade eram incompatíveis com o mecanismo de uma economia de mercado Todavia os argumentos puramente econômicos não exauriam um tema que era primordialmente social e não econômico Foram os seguintes os fatos mais importantes em relação a Viena Durante a maior parte dos quinze anos que se seguiram à Primeira Grande Mundial 19141918 o segurodesemprego na Áustria era fortemente subsidiado pelos fundos públicos ampliando assim indefinidamente a assistência externa Os aluguéis eram fixados numa fração mínima do seu nível anterior e a municipalidade de Viena construiu grandes conjuntos habitacionais em base nãolucrativa levantando o capital exigido através de impostos Embora não fossem concedidos abonos salariais as amplas provisões de serviços sociais apesar de modestas poderiam fazer baixar acentuadamente os salários não fosse o desenvolvimento de um movimento sindical que encontrou apoio naturalmente na ampliação do benefíciodesemprego Do ponto de vista econômico um sistema como esse era anormal certamente Os aluguéis restritos a um nível não remunerador eram incompatíveis com o sistema vigente de empresa privada principalmente a construção civil Durante os primeiros anos ainda a proteção social no país empobrecido interferiu com a estabilidade da moeda as políticas inflacionária e intervencionista caminhavam lado a lado Como a Speenharnland Viena eventualmente sucumbiu sob o ataque de forças políticas poderosamente sustentadas por argumentos puramente econômicos Os levantes políticos de 1832 na Inglaterra e 1934 na Áustria se destinavam a liberar o mercado de trabalho da intervenção protecionista Nem a aldeia do proprietário fundiário nem a classe trabalhadora de Viena podiam se isolar indefinidamente do seu meio ambiente 323 E no entanto havia uma grande diferença entre os dois períodos intervencionistas A aldeia inglesa em 1795 tinha que ser abrigada contra uma desarticulação provocada pelo progresso econômico o tremendo avanço das manufaturas urbanas A classe trabalhadora industrial de Viena em 1918 tinha que ser protegida contra os efeitos do retrocesso econômico resultante da guerra da derrota e do caos industrial A Speenharnland levou eventualmente a uma crise da organização do trabalho que abriu caminho para uma nova era de prosperidade enquanto a vitória de Heimwehr na Áustria foi parte de uma catástrofe total do sistema nacional e social O que queremos enfatizar aqui é a enorme diferença no efeito cultural e moral dos dois tipos de intervenção a tentativa da Speenharnland de impedir a chegada de uma economia de mercado e a experiência de Viena tentando transcender totalmente tal economia Enquanto a SpeenhamIand causou um verdadeiro desastre ao povo comum Viena alcançou um dos mais espetaculares triunfos culturais da história ocidental O ano de 1795 levou a uma degradação sem precedentes das classes trabalhadoras que foram impedidas de atingir o novo status de operários industriais Em 1918 teve início uma ascensão moral e intelectual igualmente sem precedentes na situação de uma classe operária industrial altamente desenvolvida que protegida pelo sistema de Viena suportou os efeitos degradantes de uma grave distorção econômica e atingiu um nível jamais superado pela massa popular em qualquer sociedade industrial É claro que isto se deveu aos aspectos sociais do assunto distintos do econômico Mas será que os economistas ortodoxos apreenderam devidamente a economia do intervencionismo Os liberais econômicos argumentavam que o regime de Viena era urna nova má administração da Poor Law um outro sistema de abonos que precisava de uma boa vassourada dos economistas clássicos Mas será que esses mesmos pensadores não se equivocavam com as condições comparativamente duradouras criadas pela Speenhamland Eles estavam certos muitas vezes em relação ao futuro que sua profunda perspicácia ajudara a moldar mas estavam completamente errados em relação à sua própria época A pesquisa moderna comprovou que eles não mereceram sua reputação de um sólido julgamento prático Malthus se enganou redondamente em relação às necessidades do seu tempo se seus alertas tendenciosos sobre superpopulação tivessem dando resultado com as noivas às quais ele se dirigia pessoalmente isto poderia ter abatido o progresso econômico na sua trilha diz T H Marshall Ricardo desvirtuou os fatos da controvérsia monetária assim como o papel do Banco da Inglaterra e deixou de apreender as verdadeiras causas da depreciação da moeda que como sabemos hoje consistiam basicamente em pagamentos políticos e dificuldades de transferência Se fosse seguido o seu conselho sobre o Bullion Report a GrãBretanha teria perdido a guerra napoleônica e o Império não existiria hoje Assim a experiência de Viena e suas semelhanças com a Speenhamland que fez alguns se voltarem para os economistas clássicos levou muitos outros a duvidar deles Ao capítulo 8 10 Por que não o Whitbreads Bill A única alternativa à política Speenharnland parece ter sido o Whitbreads Bill apresentado no inverno de 1795 Ele exigia a extensão do Statute of Artificers de 1563 de 324 forma a incluir a fixação de salários mínimos com avaliações anuais Tal medida argumentava seu autor manteria a regra elisabetana da avaliação salarial am liandoa dos salários máximos para os mínimos e impedindo a fome no campo Isto sem dúvida atenderia às necessidades de uma emergência e vale a pena observar membro representantes de Suffolk por exemplo apoiaram o Whitbreads da m ma forma como seus magistrados já haviam endossado o princípio da Speenhamland numa reunião a qual o próprio Arthur Young esteve presente Para os não parecia existir uma grande diferença entre as duas medidas o que não é se surpreender Cento e trinta anos mais tarde quando o Plano Mond 1926 ropôs a utilização do fundo de desemprego para suplementar os salários na indúsrria o público ainda achava difícil compreender a decisiva diferença econômica entre a ajuda ao desempregado e o abono salarial para o empregado Em 1795 porém a escolha era entre salários mínimos e abonos salariais A diferença entre as duas políticas pode ser mais bem aquilatada relacionandoas à abolição simultânea do Act of Settlement de 1662 A revogação desse decreto criou a possibilidade de um mercado de trabalho nacional cujo principal propósito era permitir que os salários encontrassem seu próprio nível A tendência do Whitbreads Minimum Wage era contrária à abolição do Act of Settlement enquanto a tendência da Speenharnland Law não era Ampliando a aplicação da Poor Law de 1601 em vez de o Statute of Artificers de 1563 conforme sugerira Whitbread os proprietários rurais reverteram ao paternalismo basicamente apenas em relação à aldeia e de forma tal que envolvesse um mínimo de interferência com o jogo do mercado enquanto tornava inoperante o mecanismo de fixação salarial Jamais se admitiu abertamente que esta assim chamada aplicação da Poor Law era na realidade a destruição total do princípio elisabetano do trabalho obrigatório Para os patrocinadores da Speenhamland Law as considerações pragmáticas eram primordiais O Rev Edward Wilson cônego de Windsor e juiz de paz por Berkshire e que talvez tenha sido o proponente da lei deu sua opinião num panfleto no qual se declarava categoricamente a favor do laissezfaire O trabalho como qualquer coisa que se leva ao mercado encontrou seu nível em todas as épocas sem a interferência da lei disse ele Teria sido mais apropriado para um magistrado inglês dizer que ao contrário em nenhuma época o trabalho encontrou seu nível sem a intervenção da lei Entretanto prosseguia o cônego Wilson as cifras mostraram que os salários não aumentavam tão depressa quanto o preço do trigo e portanto ele respeitosamente submetia à consideração da magistratura urna medida para o quantum de assistência a ser dispensado aos pobres A assistência chegava a cinco shillings por semana para uma família de marido mulher e filho Um anúncio do seu prospecto dizia o conteúdo do tratado a seguir foi apresentado na reunião do condado em Newbury em 6 de maio último A magistratura como sabemos foi além do cônego ela concedeu unanimemente uma tabela de cinco shillings e seis pences Ao capítulo 13 11 As duas nações de Disraeli e o problema das raças de cor Diversos autores insistiram na semelhança entre os problemas coloniais e os do capitalismo primitivo Entretanto eles não acompanharam a analogia na sua outra forma 325 isto é não aclararam as condições das classes mais pobres da Inglaterra de há um século para retratáIas como realmente eram os destribalizados e degradados nativos da sua época O motivo por que essa semelhança óbvia passou despercebida é a nossa crença ao preconceito liberalista que deu proeminência indevida aos aspectos econômicos daqueles processos que eram basicamente nãoeconômicos De fato nem a degradação racial em algumas áreas coloniais de hoje nem a desumanização análoga do povo trabalhador de um século atrás eram econômicas na sua essência a O contato cultural destrutivo não é basicamente um fenômeno econômico A maioria das sociedades nativas sofre agora um processo de transformação rápido e forçado só comparável às mudanças violentas de uma revolução diz L P Mair Embora as motivações dos invasores sejam definitivamente econômicas e o colapso da sociedade primitiva seja causado certamente pela destruição das suas instituições econômicas o fato mais saliente é que as novas instituições econômicas deixam de ser assimiladas pela cultura nativa e esta se desintegra conseqüentemente e não é substi tuida por qualquer outro sistema de valores coerente A primeira entre as tendências destrutivas inerentes às instituições ocidentais é a paz numa vasta área que abala a vida do clã a autoridade patriarcal o treinamento militar da juventude ela é praticamente proibitiva para a migração de clãs ou tribos Thurnwald Black and White in East Africa The Fabric af a New Civilizatian 1935 p 394A guerra devia dar um entusiasmo à vida nativa do qual ela muito carece nestes tempos de paz A proibição da luta diminui a população já que a guerra fazia muito poucas baixas e sua ausência significa a perda de costumes e cerimônias vitalizantes com a conseqüente monotonia e apatia perniciosas à vida da aldeia F E Williams Depopulation af the Suan District 1933 Anthropology Report n 13 p 43 Comparemos com isto a existência saudável animada excitada do nativo em seu ambiente cultural tradicional Goldenweiser Loose Ends p 99 Nas palavras de Goldenweiser o perigo real está num intermédio cultural Goldenweiser Anthrapolagy 1937 p 429 Neste ponto existe praticamente uma unanimidade As antigas barreiras se desintegram e não se oferecem quaisquer outras novas linhas de direção Thurnwald Black and White p 111 Manter uma comunidade na qual a acumulação de bens é vista como antisocial e integrar a mesma com a cultura branca contemporânea é tentar harmonizar dois sistemas institucionais incompatíveis Wissel em Introdução a M Mead The Changing Culture of an Indian Tribe 1932 Os imigrantes portadores de cultura podem conseguir extinguir uma cultura aborígine e no entanto podem falhar tanto em extinguir quanto em assimilar seus portadores Pitt Rivers The Effect on Native Races of Contact with European Civilization em Man vol XXVII 1927 Ou na frase pungente de Lesser sobre mais uma vítima da civilização industrial De uma maturidade cultural como Pawnee eles foram reduzidos à infância cultural como homens brancos The Paumee Ghost Dance Hand Game p 44 Esta condição de mortovivo não é devida à exploração econômica no sentido aceito de que a exploração significa uma vantagem econômica de uma das partes à custa da outra embora ela esteja com certeza intimamente ligada às mudanças nas condições econômicas referentes ao cultivo da terra guerra casamento e assim por diante cada uma das quais afeta um grande número de hábitos sociais costumes e tra dições 326 de todos os tipos Quando uma economia monetária é introduzi da à força em regiões esparsamente habitadas da África Ocidental não é a insuficiência dos salários que resulta no fato de os nativos não poderem comprar alimentos para substituir aqueles que não foram plantados pois ninguém dispõe de um excedente de alimentos para Ihes vender Mair An African People in the Twentieth Century 1934 p 5 Suas instituições envolvem uma escala de valores diferentes eles são ao mesmo tempo parcimoniosos e não têm mentalidade de mercado Eles pedirão o mesmo preço quando o mercado está provido e quando há grande escassez e no entanto eles viajarão grandes distâncias com considerável perda de tempo e energia para economizar uma pequena soma em suas compras Mary H Kingsley West African Studies p 339 Uma elevação de salários leva ao absenteísmo muitas vezes Falase que os índios Zapotec em T ehuantepec trabalhavam praticamente a metade quando recebiam 50 centavos ou 25 centavos por dia Este paradoxo foi bastante generalizado durante os dias iniciais da Revolução Industrial na Inglaterra O índice econômico das taxas populacionais não nos é de mais utilidade do que os salários Goldenweiser confirma a famosa observação feita por Rivers na Melanésia de que os nativos culturalmente destituídos podem estar morrendo de tédio F E Williams ele mesmo um missionário que trabalhava naquela região escreve que a influência do fator psicológico na taxa de mortalidade é inteiramente compreensível Muitos observadores chamaram a atenção para a notável facilidade e presteza com que o nativo pode morrer A restrição aos interesses e atividades anteriores parece fatal a seu espírito O resultado é que o poder de resistência do nativo é destruído e ele é facilmente atacado por qualquer tipo de doença op cit p 43 Isto nada tem a ver com a pressão do desejo econômico Assim uma taxa extremamente alta de crescimento natural tanto pode ser um sintoma de vitalidade cultural como de degradação cultural Frank Lorimer Obseruations on the Trend of Indian Population in the United States p 11 A degradação cultural só pode ser interrompida por medidas sociais desproporcionais aos padrões econômicos de vida como a restauração da posse da terra tribal ou o isolamento da comunidade da influência dos métodos capitalistas do mercado Separar o índio da sua terra foi o ÚNICO golpe mortal escreve John Collier em 1942 O General Alotrnent Act Lei do Loteamento Geral de 1887 individualizou a terra dos índios a desintegração da sua cultura que daí resultou representou a perda de cerca de 34 ou noventa milhões de acres dessa terra O Indian Reorganization Act Lei de Reorganização Índia de 1934 reintegrou as possessões tribais e salvou a comunidade índia reoitalizando a sua cultura A mesma estória nos vem da África Formas de posse da terra constituem o centro de interesse porque é delas que depende mais diretamente a organização social O que aparece como conflitos econômicos impostos e aluguéis elevados baixos salários são quase que exclusivamente formas veladas de pressão para induzir os nativos a abandonar sua cultura tradicional e compelilos a se ajustarem aos métodos da economia de mercado ie a trabalhar por salários e comprar seus bens no mercado Foi no decorrer de um processo semelhante que algumas tribos nativas como os cafres e aqueles que haviam migrado para a cidade perderam suas virtudes ancestrais e tornaramse uma turba inepta animais semidomesticados entre eles vagabundos ladrões e prostitutas uma instituição antes desconhecida por eles assemelhandose à massa da população pauperizada da Inglaterra nas décadas 17951834 327 b A degradação humana das classes trabalhadoras sob o capitalismo primitivo foi o resultado de uma catástrofe social nãomensurável em termos econômicos Já em 1816 Robert Owen observava a respeito dos seus próprios trabalhadores que qualquer que fosse o salário que recebiam como massa eles devem ser infelizes To the British Master Manufacturers p 146 É preciso lembrar que Adam Smith já esperava que os trabalhadores afastados da terra perdessem todo o interesse intelectual MFarlane também estava certo de que o conhecimento da escrita e das contas tornar seá cada dia menos freqüente entre o povo comum Enquiries Conceming the Poor 1782 pp 24950 Uma geração mais tarde Owen atribuiu a degradação dos trabalhadores à negligência na infância e ao excesso de trabalho o que os tornava incompetentes por ignorância a fazer bom uso dos salários elevados quando conseguiam obtêIos Ele próprio pagavaIhes salários baixos mas elevava seu status criando para eles artificialmente um ambiente cultural inteiramente novo Os vícios que se desenvolveram na massa do povo foram em geral os mesmos que caracterizaram as populações de cor rebaixadas pelo contato cultural desintegrador dissipação prostituição roubo falta de parcimônia e previdência preguiça baixa produtividade do trabalho falta de autorespeito e de perseverança A difusão da economia de mercado destruía o tecido tradicional da sociedade rural a comunidade aldeã a família as antigas formas de posse da terra os costumes e os padrões que sustentavam a vida dentro de um arcabouço cultural A proteção dispensada pela Speenhamland apenas piorou as coisas Na década de 1830 a catástrofe social do povo comum era tão completa como a dos cafres hoje em dia Único e sozinho um eminente sociólogo negro Charles S Johnson inverteu a analogia entre o rebaixamento racial e a degradação de classe aplicandoa desta vez à última Na Inglaterra onde incidentalmente a Revolução Industrial era mais adiantada do que no resto da Europa o caos social que se seguiu à drástica reorganização econômica converteu as crianças empobrecidas naquelas peças que os escravos africanos se tornaram mais tarde As desculpas para o sistema de servidão infantil foram quase idênticas àquelas do comércio escravagista Race Relations and Social Change em E Thompson Race Relations and the Race Problem 1939 p 274 Nota adicional 12 Poor Law e a organização do trabalho Nenhuma pesquisa foi feita ainda em relação às implicações mais amplas do sistema Speenhamland suas origens seus efeitos e as razões que levaram à sua descontinuidade abrupta Eis aqui alguns dos pontos envolvidos 1 Em que extensão a Speenhamland foi uma medida de guerra Do ponto de vista estritamente econômico a Speenhamland não pode ser considerada verdadeiramente uma medida de guerra como se afirma muitas veze Dificilmente os contemporâneos associavam a condição dos salários a uma emergência de guerra Na medida em que houve um aumento notório nos salários o movimento já começara antes da guerra A Carta Circular de Arthur Young de 1795 destinada 328 a apurar os efeitos do fracasso das colheitas nos preços do trigo continha ponto 1 esta questão Qual foi o aumento se é que houve no pagamento dos trabalhadores agrícolas em comparação com o período anterior Caracteristicamente seus correspo dentes não atribuíram qualquer significado definido à frase período anterior referências alcançavam um período de três a cinqüenta anos Elas incluíam os res períodos de tempo 3 anos J Boys p 97 34 anos J Boys p 90 10 anos Relatórios de Shropshire Middlesex Cambridgeshire 1015 anos Sussex e Hampshire 1015 anos E Harris 20 anos J Boys p 86 3040 anos William Pitt 50 anos Rev J Howlerr Ninguém estabeleceu o período em dois anos duração da Guerra Francesa que havia começado em fevereiro de 1793 Com efeito nenhum correspondente mencionou sequer a guerra Incidentalmente a forma habitual de tratar do aumento do pauperismo causado por uma colheita má e condições adversas de clima e que resultavam em desemprego consistia em 1 subscrições locais de donativos e distribuição gratuita ou a preços reduzidos de alimentos e combustível 2 arranjar empregos Os salários não eram normalmente afetados durante uma emergência similar em 17881789 conseguiuse arranjar mais empregos locais mas com salários mais baixos do que as taxas normais Cf J Harvey Worcestershire emAnn of Agr vol xn p 1321789 Também E Holrnes Cruckton lc p196 Presumiuse não obstante com uma certa boa vontade que a guerra exerceu pelo menos uma influência indireta na adoção do recurso da Speenhamland De fato duas fraquezas do sistema de mercado que se difundia rapidamente vinham sendo agravadas pela guerra e contribuíam para a situação a partir da qual surgiu a Speenhamland 1 a tendência dos preços do trigo que flutuarem 2 os efeitos deletérios que os tumultos acarretavam nessas flutuações O mercado do trigo só recentemente liberado não podia suportar a tensão da guerra e as ameaças de bloqueio E nem o mercado do trigo estava à prova do pânico causado pelo hábito dos tumultos que assumiam agora uma importância sinistra Sob o chamado sistema regulativo o tumulto ordenado era visto pelas autoridades centrais mais ou menos como um indicador de escassez local que deveria ser tratado com brandura agora ele era denunciado como uma causa da escassez e como um perigo econômico para toda a comunidade não apenas para os pobres Arthur Young publicou um alerta no seu Conseqüências dos tumultos devidos aos altos preços dos produtos alimentícios e Hannah More ajudou a divulgar opiniões semelhantes em um dos seus poemas didáticos intitulado The Riot or Half a loaf is better than no bread O tumulto ou metade de um pão é melhor que nenhum para ser cantado com a melodia de A Cobbler there was Sua resposta às donas de casa apenas colocou em rima aquilo que Young expressara como diálogo fictício Ficaremos quietos até morrer de fome Certamente que não vocês devem reclamar mas reclamar e agir de maneira 329 tal a não agravar o próprio mal ele insistia que não havia o menor perigo de inaninição desde que fiquemos livres dos tumultos Havia bons motivos de preocupação pois o abastecimento do trigo era muito sensível ao pânico Além disso a Revolução Francesa dava uma conotação ameaçadora até mesmo aos tumultos ordenados Embora o receio de um aumento de salários fosse sem dúvida a causa econômica da Speenhamland podese dizer que no que concerne à guerra as implicações da situação eram muito mais sociais e políticas do que econômicas 2 Sir William Young e o relaxamento do Act of Settlement Duas medidas incisivas da Poor Law datam de 1795 a Speenhamland e o relaxamento da servidão paroquial É difícil acreditar que houve aqui uma simples coincidência No que diz respeito à mobilidade do trabalho o resultado dessas medidas foi contraditório até certo ponto Enquanto a última tornou mais atrativo para o trabalhador sair em busca de emprego a primeira fez disso um imperativo menos premente Nos termos convenientes de empurrar e puxar às vezes utilizados nos estudos da migração enquanto o puxar do local de destino aumentava o empurrar da aldeia natal diminuía O perigo de um deslocamento da mãodeobra rural em grande escala como resultado da revisão da lei de 1662 foi sem dúvida mitigado pela Speenhamland Do ângulo da administração da Poor Law as duas medidas eram francamente complementares O relaxamento da lei de 1662 envolvia um risco que essa lei se destinava a evitar isto é a inundação das paróquias melhores pelos pobres Isto teria realmente acontecido se não fosse a Speenhamland Os contemporâneos fizeram poucas referências a respeito o que não é de surpreender quando se recorda que a própria lei de 1662 foi promulgada praticamente sem discussão pública Todavia a convicção devia estar presente na mente de Sir William Young quando patrocinou por duas vezes as duas medidas em conjunto Em 1795 ele defendeu a emenda do Act of Settlement e foi também o impulsionador do projeto de 1796 através do qual o princípio da Speenhamland foi incorporado à lei Numa ocasião anterior em 1788 ele já havia pedido a decretação das duas medidas mas sem sucesso Ele adiara a revogação do Act of Settlement praticamente nos mesmos termos que em 1795 mas patrocinou ao mesmo tempo uma medida de assistência aos pobres que propunha estabelecer um salário compatível com o nível de vida dois terços desse salário seriam custeados pelo empregador e um terço pelos impostos Nicholson History of the Poor Laws vol II Todavia foi preciso ocorrer mais um fracasso nas colheitas além da Guerra Francesa antes que esses princípios prevalecessem 3 Efeitos dos salários urbanos elevados sobre a comunidade rural O puxar da cidade provocou uma elevação nos salários rurais e ao mesmo tempo tendeu a esvaziar o campo da sua reserva de mãodeobra agrícola Dessas duas calamidades estreitamente ligadas a última era a mais significativa A existência de uma reserva de mãodeobra adequada era vital para a indústria agrícola que precisava de mais braços na primavera e em outubro do que durante os meses fracos do inverno Ora numa sociedade tradicional de estrutura orgânica a disponibilidade dessa reserva de mãodeobra não é simplesmente um caso de nível salarial mas sim da estrutura institucional que determina o status da parte mais pobre da população Em quase todas as sociedades conhecidas encontramos disposições legais ou costumeiras que mantêm os trabalhadores rurais à disposição do proprietário de terra para emprego no auge da demanda 330 Eis aqui o ponto crítico da situação criada na comunidade rural pela elevação dos salários urbano quando o status cedeu lugar ao contractus Antes da Revolução Industrial bana importantes reservas de mãodeobra no campo a indústria doméstica mantinha o homem ocupado no inverno e disponível para os trabalhos nos campos de sua mulher durante a primavera e o outono O Act of Settlement praticapunha ao pobre a servidão paroquial tornandoo dependente portanto dos fazeodeir os locais Havia ainda diversas outras formas pelas quais a Poor Law transva a mãodeobra residente em trabalhador maleável como o imposto do trabalho recrutamento ou o sistema de rodízio Pelos regulamentos das várias Houses of Industry um indigente podia ser castigado não só pelo arbítrio dos dirigentes mas até em segredo Às vezes as pessoas que procuravam assistência podiam ser detidas e encaminhadas ao albergue se as autoridades que tinham o direito de entrar no local de recolhimento durante o dia achassem que ele passava necessidades e devia ser assistido 31 Geo III C 78 A taxa de mortalidade desses albergues era assustadora Acrescentemos a isto as condições do campônio da fronteira norte que era pago em espécie e obrigado a ajudar no campo em qualquer ocasião assim como as múltiplas dependências implícitas na situação do agregado e as formas precárias da posse da terra por parte dos pobres e aí então se pode avaliar em que medida um exército de reserva latente de mãodeobra dócil estava à disposição dos empregadores rurais Assim à parte o tema salarial havia o tema da manutenção de uma mãodeobra agrícola de reserva satisfatória A importância relativa desses dois termos pode ter variado em diferentes períodos Enquanto a introdução da Speenhamland estava intimamente ligada ao receio dos fazendeiros em relação aos aumentos salariais e enquanto a rápida difusão do sistema de abonos durante os anos posteriores à depressão agrícola depois de 1815 foi determinada provavelmente pela mesma causa a insistência quase unânime da comunidade agrícola no início da década de 1930 sobre a necessidade de manter o sistema de abonos se deveu não ao medo dos aumentos salariais mas à preocupação quanto a um abastecimento satisfatório da mãodeobra em disponibilidade Todavia essa última consideração não devia estar afastada da mentalidade desses fazendeiros em qualquer época principalmente durante o longo período de prosperidade excepcional 17921813 quando o preço médio do trigo estava em ascensão e superava em muito o aumento do preço do trabalho A preocupação permanente subjacente à Speenhamland não era quanto aos salários e sim quanto ao suprimento de mãodeobra Pode parecer um tanto artificial tentar distinguir entre esses dois conjuntos de motivações uma vez que um aumento nos salários deveria atrair um maior fornecimento de mãodeobra Em alguns casos porém existe prova positiva a respeito de qual das duas preocupações era mais importante para os fazendeiros Primeiro existe ampla evidência de que mesmo no caso do pobres residentes os fazendeiros se mostravam hostis a qualquer forma de emprego extra que diminuísse a disponibilidade do trabalhador para um emprego agrícola ocasional Uma das testemunhas do Relatório de 1834 acusava os residentes pobres de pescarem arenques e cavalas e ganharem uma libra por semana enquanto suas famílias ficam aos cuidados da paróquia Quando regressam são geralmente enviados à prisão mas eles não se importam enquanto podem sair outra vez para fazer esse trabalho bem pago p 33 É por isto reclama a mesma testemunha que os fazendeiros muitas vezes não 331 conseguem um número suficiente de trabalhadores para o trabalho da primavera e de outubro Relatório de Henry Stuart Apêndice A Parte I p 334a Em segundo lugar havia a questão crucial dos loteamentos Os fazendeiros eram unânimes em afirmar que somente um pedaço de terra próprio manteria um homem e sua farrúlia afastado dos impostos assistenciais Entretanto nem mesmo o encargo desses impostos induziIosia a concordar com qualquer forma de loteamento que tornasse os pobres residentes menos dependentes do trabalho agrícola ocasional Este ponto merece atenção Em 1833 a comunidade agrícola se colocou solidamente a favor da manutenção da Speenhamland Citamos alguns trechos do relatório dos Poor Law Commissioners O sistema de abonos significava mãodeobra barata colheitas mais expeditas Power Sem o sistema de abonos os fazendeiros talvez não pudessem continuar a cultivar o solo Cowell Os fazendeiros gostam que seus homens sejam pagos através do livro de pobres U Mann Não acredito que os grandes fazendeiros em particular queiram vêIos os impostos reduzidos Enquanto os impostos estão aí eles podem conseguir quantos braços extras queiram e quando começa a chover eles os devolvem novamente à paróquia testemunho de um fazendeiro Os membros do conselho paroquial são avessos a qualquer medida que torne o trabalhador independente da assitência paroquial pois esta mantendose dentro dos seus limites o tem sempre sob as suas ordens quando um trabalho urgente o exige Eles declaram que salários altos e trabalhadores livres iriam esmagáI os Pringle Opunhamse obstinadamente a todas as propostas de conceder loteamentos aos pobres o que redundaria na independência deles Estes lotes que poderiam salváIos da miséria e mantêIos com decência e autorespeito darIhesia também a independência retirandoos das fileiras do exército de reserva exigido pela indústria agrícola Majendie um defensor dos loteamentos recomendava lotes de 14 de acre pois qualquer coisa acima disso deixaria os ocupantes da terra temerosos de tornar os trabalhadores independentes Power outro partidário dos loteamentos confirma esta opinião De uma forma geral os fazendeiros objetam contra a introdução dos loteamentos disse ele Eles se ressentem de partilhar o que possuem têm que ir muito mais longe para conseguir adubo e objetam contra a crescente independência dos seus trabalhadores Okeden propôs loteamentos de 116 de acre pois diz ele isto preencheria exatamente o tempo disponível da mesma forma que a roca e o fuso o tear e as agulhas de tricô usadas na atividade plena da indústria doméstica familiar Tudo isto deixa pouca margem de dúvida a respeito da verdadeira função do sistema de abonos do ponto de vista da comunidade agrícola que era assegurar uma reserva agrícola de pobres residentes disponível em qualquer oportunidade A propósito foi assim que a Speenhamland criou uma aparência de população rural excedente quando na realidade não havia nenhuma 4 O sistema de abonos nas cidades industriais A Speenharnland foi uma medida destinada basicamente a aliviar as dificuldades rurais Isto não implicava uma restrição às aldeias pois as cidadesmercado também pertenciam ao campo No início da década de 1930 na área típica da Speenharnland a maioria das cidades introduzira o sistema de abonos propriamente dito O condado de Hereford por exemplo classificado como bom do ponto de vista de excedente populacional revelou que seis entre oito cidades seguiam o método da Speenhamland 332 quatro definitivamente quatro provavelmente enquanto o Sussex mau mostrava que das doze cidades relacionadas três não seguiam o método Speenharnland e nove o seguiam no sentido estrito do termo A situação era muito diferente nas cidades industriais do norte e do nordeste Até 1834 o número de pobres dependentes era consideravelmente menor nas cidades industtiais do que no campo onde mesmo antes de 1795 a proximidade das manufaturas tendia a aumentar muito o número de indigentes Em 1789 o Rev John Howien argumentava convincentemente contra o erro popular de considerar a proporção de pobres nas cidades grandes e nas cidades manufatureiras populosas maior do que nas simples paróquias pois o caso é exatamente o oposto Annals ar Agriculture vol XI p 6 1789 Não se conhece infelizmente a situação exata das novas cidades industriais A Poor Law Commissioners parecia perturbada pelo perigo supostamente iminente da difusão dos métodos Speenharnland às cidades manufatureiras Reconheciase que os condados nortistas estão menos infectados por ele mas afirmavase ainda que mesmo nas cidades ele era utilizado em grau acentuado Os fatos não o comprovam É verdade que em Manchester ou Oldham se concedia assistência ocasional a pessoas em boa saúde e pleno emprego Em Preston numa reunião de pagadores de impostos assim escreveu Henderson um indigente foi citado como tendo seu salário reduzido de uma libra para dezoito shillings semanais depois que ingressou na paróquia Os distritos de Salford Padiham e Ulverston também foram classificados como praticantes regulares do método do abono salarial O mesmo se refere a Wigan no que concerne aos tecelões e fiandeiros Em Nottingham as meias eram vendidas abaixo do preço de custo com lucro para o fabricante obviamente em função dos subsídios salariais pagos pelos impostos Henderson reportandose a Preston já previa que esse sistema nefasto se insinuaria e aliciaria os interesses privados em sua defesa Segundo o relatório da Poor Law Commissioners o sistema prevalecia menos nas cidades apenas porque os capitalistas manufatureiros constituem uma pequena proporção dos pagadores de impostos e conseqüentemente têm menos influência nos conselhos paroquiais do que os fazendeiros no campo Todavia isto parece ter ocorrido a curto prazo a longo prazo é provável que outros motivos passaram a prevalecer contra a aceitação geral do sistema de abono por parte dos empregadores industriais Um deles foi a ineficiência da mãodeobra indigente A indústria de algodão funcionava principalmente à base do trabalho por peças ou trabalhotarefa como era chamado Ora mesmo na agricultura os pensionistas e os ineficientes da paróquia trabalhavam tão mal que 4 ou 5 deles correspondiam a um na tarefatrabalho Select Committee on Laborers Wages H of C 4 VI 1824 p 4 O relatório da Poor Law Commissioners observava que o trabalho por peça podia permitir a utilização do método Speenharnland sem destruir necessariamente a eficiência do trabalhador manufatureiro o fabricante podia obter mãodeobra realmente barata O fato porém é que os baixos salários do trabalhador agrícola não implicavam necessariamente em mão deobra barata pois a ineficiência do trabalhador podia pesar mais para o patrão do que o baixo preço da sua mãodeobra Um outro fator que fazia o entrepreneur se voltar contra o sistema Speenharnland era o perigo dos competidores que podiam produzir a um custosalário consideravelmente mais baixo em função do abono salarial Esta ameaça não perturbava o fazendeiro 333 que vendia para um mercado irrestrito mas podia perturbar muito o proprietário da fábrica urbana O relatório da P L C argumentava que um fabricante Macclesfield pode se encontrar em situação de insolvência e arruinarse em conseqüência da má administração da Poor Law em Essex William Cunningham viu a importância do decreto de 1834 principalmente no seu efeito nacionalizante sobre a administração da Poor Law removendo um sério obstáculo no caminho do desenvolvimento dos mercados nacionais Uma terceira objeção à Speenharnland a que talvez tivesse maior peso nos círculos capitalistas foi a sua tendência de afastar a massa vasta e inerte da mãode obra redundanteRedford do mercado de trabalho urbano No final da década de 1920 era grande a demanda de mãodeobra por parte dos fabricantes urbanos Os sindicatos profissionais de Doherty deram origem a uma inquietação em grande escala este foi o início do movimento owenita que levou às maiores greves e lockouts que a Inglaterra já havia experimentado Do ângulo dos empregadores portanto três fortes argumentos atuaram contra a Speenhamland em última instância seu efeito deletério sobre a produtividade do trabalho sua tendência a criar custos diferenciais entre várias partes do país seu estímulo dos poços estagnados de mãodeobra Webb no campo sustentando o monopólio da mãodeobra dos pequenos trabalhadores urbanos Nenhuma dessas condições importaria muito ao empregador individual ou até mesmo a um grupo local de empregadores Elas podiam ser superadas facilmente pelas vantagens do baixo custo da mãodeobra não apenas para garantir lucros como também para ajudáIas a competir com os fabricantes de outras cidades Todavia os entrepreneurs como classe teriam opinião muito diferente no decorrer do tempo quando compreenderam que aquilo que beneficiava o empregador isolado ou grupos de empregadores constituía um perigo para eles coletivamente De fato foi a ampliação do sistema de abono às cidades industriais nortistas no início da década de 1930 embora de forma atenuada que consolidou as opiniões contra a Speenhamland e levou a uma reforma em escala nacional A evidência aponta para uma política urbana dirigi da mais ou menos conscientemente para a formação de um exército industrial de reserva nas cidades principalmente para poder fazer face às agudas flutuações da atividade econômica Nesse sentido não havia muita diferença entre cidade e campo Assim como as autoridades da aldeia preferiam os impostos altos a salários altos as autoridades urbanas não estavam dispostas a devolver o indigente nãoresidente a seu local de origem Havia uma espécie de competição entre empregadores rurais e urbanos pela partilha do exército de reserva Foi somente durante a severa e prolongada depressão em meados da década de 1940 que se tornou impraticável favorecer a reserva de mão deobra à custa dos impostos Mesmo assim os empregadores rurais e urbanos se comportaram de modo semelhante a ampla remoção dos pobres das cidades industriais teve seu paralelo no esvaziamento da aldeia por parte dos proprietários de terra com o objetivo em ambos os casos de diminuir o número de pobres residentes cf Redford p 111 5 O primado da cidade contra o campo De acordo com nosso pressuposto a Speenharnland foi um movimento de proteção da comunidade rural em face da ameaça representada por um ascendente nível salarial urbano Isto envolve o primado da cidade contra o campo no que diz respeito 334 ao ciclo comercial Este pode ter sido o caso em pelo menos um exemplo o da depressão de 18371845 Uma investigação estatística cuidadosa feita em 1847 revelou que a depressão começou nas cidades industriais do noroeste depois se espalhou para os condados agrícolas mas a recuperação destes só ocorreu depois das cidades industriais As cifras revelaram que a pressão que caiu primeiro sobre os distritos manufatureiros só foi retirada dos distritos agrícolas por último Os distritos manufatureiro eram representados na investigação pelo Lancashire e o West Riding de Yockshire com uma população de 201000 em 584 Poor Law Unions enquanto os di rriros agrícolas eram formados por Northumberland Norfolk Suffolk Cambridgeshire Bucks Herts Berks Wilts e Devon com uma população de 208000 igualmente distribuída em 584 Poor Law Unions Nos distritos manufatureiros a reação começou em 1842 com uma diminuição no ritmo de aumento do pauperismo de 2937 para 1672 seguido por um decréscimo positivo em 1843 de 2980 em 1844 de 1526 e em 1845 de mais 1224 Num contraste marcante com esta situação a reação nos distritos agrícolas só começou em 1845 com um decréscimo de 90800 Em cada um dos casos foi calculada a proporção de despesa per capita da Poor Law e computada para cada condado e ano separadamente UT Danson Condition of the People of the LlK 1839 1847oum of Stat Soc vol XI p 101 1848 6 Despovoamento e superpopulação do campo A Inglaterra foi o único país da Europa com uma administração uniforme do trabalho na cidade e no campo Os estatutos de 1563 ou de 1662 eram obrigatórios tanto nas paróquias rurais como urbanas e os juízes de paz administravam a lei da mesma forma em todo o país Isto se deveu tanto à industrialização prematura do campo como à subseqüente industrialização dos sítios urbanos Em conseqüência não houve uma ruptura administrativa entre a organização do trabalho na cidade e no campo como ocorreu no continente Isto explica também a peculiar facilidade com que a mãodeobra parecia fluir da aldeia para a cidade e viceversa Evitaramse assim dois dos aspectos mais calamitosos da demografia continental isto é o súbito despovoamento do campo pela migração da aldeia para a cidade e a irreversibilidade desse processo de migração que acarretou o desenraizamento daquelas pessoas que foram trabalhar na cidade Landflucht foi o nome dado a esse esvaziamento cataclísmico do campo terror da comunidade agrícola na Europa Central desde a segunda metade do século XIX Na Inglaterra ao contrário encontramos algo parecido com uma oscilação da população entre o emprego urbano e rural Era como se grande parte da população estivesse em estado de suspensão uma circunstância que tornava muito difícil se não impossível o movimento de migração interna Devemos relembrar ainda a configuração do país com seus portos ubíquos que tornava a migração a longa distância praticamente desnecessária e então se torna perfeitamente compreensível o fácil ajustamento da Poor Law às exigências da organização do trabalho Muitas vezes a paróquia rural pagava assistência externa a indigentes nãoresidentes que se empregavam numa cidade não muito distante enviando o dinheiro da assistência a seu local de domicílio Por outro lado as cidades manufatureiras também pagavam com freqüência a assistência aos pobres residentes não estabelecidos na cidade Remoções em massa como as efetuadas pelas autoridades urbanas em 18411843 foram muito excepcionais Das 12628 pessoas pobres removidas nessa ocasião de 19 cidades manufatureiras do norte somente 1 tinha sua localização em nove distritos agrícoIas 335 de acordo com Redford Se os nove distritos agrícolas típicos selecionados por Danson em 1848 são substituídos pelos condados de Redford o resultado varia só ligeiramente ie de 100 para 13 Como Redford demonstrou ocorreu muito pouca migração a longa distância e grande parte do exército de reserva do trabalho foi conservada à disposição dos empregadores através dos métodos assistenciais liberais na aldeia e na cidade manufatureira ão é de admirar que ocorresse uma superpopulação simultânea tanto na cidade como no campo enquanto houve de fato ocasiões em que os fabricantes do Lancashire no auge da demanda tinham que importar trabalhadores irlandeses em grande número e os fazendeiros diziam enfaticamente que seriam incapazes de fazer suas colheitas em tempo se os indigentes da aldeia fossem induzidos a emigrar 336 FOLHA EM BRANCO 337 O Autor Karl Polanyi nasceu em Viena a 21 de outubro de 1886 de pais húngaros Estudou nas universidades de Budapeste e Viena formandose em filosofia e em direito Começou a praticar nos tribunais de Budapeste em 1912 mas com a eclosâo da Primeira Guerra Mundial foi servir como capitão no exército austrohúngara Terminado o conflito estabeleceuse em Viena onde logo se tornou conhecido como escritor e jornalista De 1924 até 1933 fez parte do corpo editorial do Oesterreichische Valkswirt o mais importante semanário financeiro de Viena onde escrevia sobre assuntos ligados à economia e à política internacional Com a ascensão do fascismo Polanyi teve de demitirse do jornal e em 1933 emigrou com sua família para Londres Tornouse cidadão britânico e lecionou em cursos de extensão oferecidos pelas universidades de Oxford e de Londres a alunos pertencentes à classe operária Durante esse período viajou freqüentemente para os Estados Unidos fazendo pesquisas e dando conferências até que foi convidado em 1947 a ensinar História Econômica Geral na Universidade de Colúmbia Lá permaneceu até 1953 quando se aposentou A aposentadoria entretanto não o levou a abdicar das suas atividades de pesquisa desenvolvidas com entusiasmo até quase o momento de sua morte em 23 de abril de 1964 numa casa de campo nos arredores de Toronto Canadá Entre os principais trabalhos de Karl Polanyi incluemse Trade and Market in the Early Empires Economies in Histary and Theary trabalho que reúne contribuições de diversos autores organizado por Polanyi juntamente com Conrad Arensberg e Harry Pearson Chicago Free Press 1957 Dahamey and the Save Trade An Analysis af an Archaic Economy com Abraham Rotstein Seattle Universiry ofWashington Press 1966 Primitive Archaic and Madern Economies Essays af Kar Palanyi organizado por G Dalton Nova York Doubleday 1968 The Livelihaad af Man organizado por Harry Pearson Nova York Academic Press 1977 RESENHA CRÍTICA TEXTO A GRANDE TRANSFORMÇÃO AS ORIGENS DA NOSSA ÉPOCA AUTOR KARL POLANYI Segue abaixo uma resenha crítica somente do capitulo VI do livro A Grande Transformação As Origens da Nossa Época de Karl Polanyi O título do capítulo a ser abordado é O mercado auto regulável e as mercadorias fictícias trabalho terra e dinheiro O capítulo faz considerações sobre a economia do mercado relacionando sua auto regulagem Apresenta contextos históricos assim como referências aos fatores de produção para indicar que o mercado deve sozinho organizar a economia Segundo o texto a economia de mercado seria um sistema econômico controlado onde os fatores de produção e a distribuição seriam regulados pela auto regulagem na expectativa de conseguir a maximização dos lucros De acordo ainda com esse pensamento a auto regulagem traria o equilíbrio ao mercado relacionando o preço com a demanda e a oferta A auto regulação indica que todos os fatores produtivos seriam com objetivo de vender e que todos os rendimentos seriam providos disso Os preços do mercado formam diversos tipos de rendas A renda do preço das mercadorias a renda dos juros para quem empresta o dinheiro a renda do aluguel pelo uso da terra e a renda do salário equivalente a compra da força de trabalho A formação do mercado não deve haver interferência e que suas vendas deverão proporcionar os rendimentos De acordo com o texto para o andamento do mercado não deve haver intervenção monetária nem política que influencie o mercado preço demanda ou oferta Devese deixar o mercado agir por conta própria Neste cenário o texto procura fazer comparações históricas a partir do Sistema Feudal relações mercantilistas e com a Revolução Francesa e Inglesa na tentativa de fazer o leitor compreender a ideia proposta sobre o mercado como único organizador do sistema econômico Para que o mercado funcione com auto regulagem devese haver a separação institucional da sociedade nas esferas políticas e econômicas Não intervir no mercado não significa uma sociedade sem regras econômicas É necessária uma organização do Estado na economia porém somente para manter as normas e o bom funcionamento sem necessariamente realizar interferência política dentro da economia Sendo assim definese como fundamentais para a indústria o trabalho terra e o dinheiro Embora não sejam mercadorias também devem ser organizados pelo mercado Nenhum deles é produzido para vendas mas suas funções especificas são a de colaborar para o funcionamento do mercado sem intervenção do Estado A Revolução Industrial trouxe várias mudanças no sistema produtivo e ainda mais na sociedade como um todo A maquinação do processo de produção proporcionou mudanças sociais impactantes tanto no mercado quanto na população Com a Revolução Industrial o trabalho a terra e o dinheiro passaram a ser vistos como mercadoria onde estariam disponíveis para venda Destaca se nessa linha de venda a mãodeobra onde as empresas pagavam pelo trabalho do homem dentro do sistema produtivo fazendo com que a sociedade humana seja considerada um acessório ao sistema econômico RESENHA CRÍTICA TEXTO A GRANDE TRANSFORMÇÃO AS ORIGENS DA NOSSA ÉPOCA AUTOR KARL POLANYI Segue abaixo uma resenha crítica somente do capitulo VI do livro A Grande Transformação As Origens da Nossa Época de Karl Polanyi O título do capítulo a ser abordado é O mercado auto regulável e as mercadorias fictícias trabalho terra e dinheiro O capítulo faz considerações sobre a economia do mercado relacionando sua auto regulagem Apresenta contextos históricos assim como referências aos fatores de produção para indicar que o mercado deve sozinho organizar a economia Segundo o texto a economia de mercado seria um sistema econômico controlado onde os fatores de produção e a distribuição seriam regulados pela auto regulagem na expectativa de conseguir a maximização dos lucros De acordo ainda com esse pensamento a auto regulagem traria o equilíbrio ao mercado relacionando o preço com a demanda e a oferta A auto regulação indica que todos os fatores produtivos seriam com objetivo de vender e que todos os rendimentos seriam providos disso Os preços do mercado formam diversos tipos de rendas A renda do preço das mercadorias a renda dos juros para quem empresta o dinheiro a renda do aluguel pelo uso da terra e a renda do salário equivalente a compra da força de trabalho A formação do mercado não deve haver interferência e que suas vendas deverão proporcionar os rendimentos De acordo com o texto para o andamento do mercado não deve haver intervenção monetária nem política que influencie o mercado preço demanda ou oferta Devese deixar o mercado agir por conta própria Neste cenário o texto procura fazer comparações históricas a partir do Sistema Feudal relações mercantilistas e com a Revolução Francesa e Inglesa na tentativa de fazer o leitor compreender a ideia proposta sobre o mercado como único organizador do sistema econômico Para que o mercado funcione com auto regulagem devese haver a separação institucional da sociedade nas esferas políticas e econômicas Não intervir no mercado não significa uma sociedade sem regras econômicas É necessária uma organização do Estado na economia porém somente para manter as normas e o bom funcionamento sem necessariamente realizar interferência política dentro da economia Sendo assim definese como fundamentais para a indústria o trabalho terra e o dinheiro Embora não sejam mercadorias também devem ser organizados pelo mercado Nenhum deles é produzido para vendas mas suas funções especificas são a de colaborar para o funcionamento do mercado sem intervenção do Estado A Revolução Industrial trouxe várias mudanças no sistema produtivo e ainda mais na sociedade como um todo A maquinação do processo de produção proporcionou mudanças sociais impactantes tanto no mercado quanto na população Com a Revolução Industrial o trabalho a terra e o dinheiro passaram a ser vistos como mercadoria onde estariam disponíveis para venda Destacase nessa linha de venda a mãodeobra onde as empresas pagavam pelo trabalho do homem dentro do sistema produtivo fazendo com que a sociedade humana seja considerada um acessório ao sistema econômico