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EDITORAELEFANTECOMBR ISBN 9788593115035 SILVIA FEDERICI SILVIA FEDERICI As acadêmicas feministas desenvolveram um esquema interpretativo que lança bastante luz sobre duas questões históricas muito importantes como explicar a execução de centenas de milhares de bruxas no começo da Era Moderna e por que o surgimento do capitalismo coincide com essa guerra contra as mulheres Segundo esse esquema a caça às bruxas buscou destruir o controle que as mulheres haviam exercido sobre sua própria função reprodutiva e preparou o terreno para o desenvolvimento de um regime patriarcal mais opressor Essa interpretação também defende que a caça às bruxas tinha raízes nas transformações sociais que acompanharam o surgimento do capitalismo No entanto as circunstâncias históricas específicas em que a perseguição às bruxas se desenvolveu e as razões pelas quais o surgimento do capitalismo exigiu um ataque genocida contra as mulheres ainda não tinham sido investigadas Essa é a tarefa que empreendo em Calibã e a bruxa começando pela análise da caça às bruxas no contexto das crises demográfica e econômica europeias dos séculos XVI e XVII e das políticas de terra e trabalho da época mercantilista Meu esforço aqui é apenas um esboço da pesquisa que seria necessária para esclarecer as conexões mencionadas e especialmente a relação entre a caça às bruxas e o desenvolvimento contemporâneo de uma nova divisão sexual do trabalho que confinou as mulheres ao trabalho reprodutivo No entanto convém demonstrar que a perseguição às bruxas assim como o tráfico de escravos e os cercamentos constituiu um aspecto central da acumulação e da formação do proletariado moderno tanto na Europa como no Novo Mundo SILVIA FEDERICI TRADUÇÃO COLETIVO SYCORAX MULHERES CORPO E ACUMULAÇÃO PRIMITIVA MULHERES CORPO E ACUMULAÇÃO PRIMITIVA CALIBÃ E A BRUXA CALIBAJAQUETAƒ6indd 13 290617 1342 9 8 editado também no México na Argentina na Áustria e recen temente no Equador e na França Essa repercussão revela a importância da obra cuja publicação vinculase a editoras e projetos que insistem na necessidade de oferecer ferramentas intelectuais para o ciclo de lutas em curso formando assim uma espécie de círculo conspiratório A publicação de Calibã e a bruxa ganha pertinência após a onda de levantes ocorridos em todo o mundo e sobretudo na América Latina onde a contribuição dos afrodescendentes e dos indígenas recolocou conceitos e afrmou posicionamentos que provocaram mudanças no movimento feminista além de suscitar certa inquietude sobre as bases e as fontes do conheci mento no Ocidente Para o Coletivo Sycorax a publicação deste livro no Brasil é uma possibilidade de ampliar a compreensão sobre as conse quências do processo de acumulação primitiva do capital nas Américas como a invisibilização de grupos politicamente mi noritários e a perda de direitos comuns arduamente conquista dos outrora A obra também enriquece o conhecimento sobre as técnicas de controle social e extermínio tomando como base o caso da caça às bruxas na Europa e na América Lançamos uma versão eletrônica do livro em setembro de 2016 com uma mesa de debates composta por Silvia Federici Débora Maria da Silva Movimento Mães de Maio Regiany Silva Nós Mulheres da Periferia e Monique Prada Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais O debate foi realizado na Escola Ocupada Livre em São Paulo edifício ocupado por integrantes do Movimento Terra Livre que abriga uma série de eventos formativos na linha da educação popular Agradecemos imensamente a todas e todos que possibilitaram esse encontro e deixamos o endereço eletrô nico para quem se interessar pela leitura no arquivo digital coletivosycoraxorg Na ocasião discutimos a atualidade do tema da caça às bruxas no Brasil tendo como foco as estratégias relançadas pelo capitalismo a cada grande crise e as possibilidades de resistência dos movimentos de mulheres Para além de pensar o tema apenas circunscrito à Inquisição no Brasil e à caça às bruxas do período colonial entendemos que esse fenômeno ainda está presente no encarceramento massivo de mulheres negras perpetrado pelo Estado na subrepresen tação ou representação deturpada da mulher nos meios de comunicação nas violências obstétricas contra as cidadãs que recorrem ao Sistema Único de Saúde SUS nos corpos das vítimas da violência policial nas periferias e na expe riência cotidiana de perseguição silenciamento agressão e invisibilização das mulheres trans travestis e prostitutas entre tantos paralelos essenciais Nesse sentido durante o debate de lançamento da edição eletrônica de Calibã e a bruxa todas as convidadas dialoga ram com as ponderações de Silvia Federici a partir das suas próprias experiências sublinhando em cada caso como as dis cussões travadas no livro poderiam contribuir para os desafos que enfrentam no dia a dia A publicação em português é uma iniciativa independente e coletiva inicialmente vinculada à Revista Geni e concebida como uma tradução em fascículos que comporia por alguns meses uma coluna na revista Ao longo do processo opta mos pela publicação integral da obra mas o apoio da Geni continuou Conforme nos debruçávamos na tarefa fomos constituindo as bases do que se tornou o Coletivo Sycorax Aline Sodré Cecília Rosas Juliana Bittencourt Leila Giovana Izidoro Lia Urbini e Shisleni de OliveiraMacedo Mulheres de diferentes áreas de trabalho formação e militância Optamos por batizar o coletivo infuenciadas pela leitura do livro de Silvia e pelo referencial da obeah woman representada 11 10 por Sycorax em A tempestade de Shakespeare Carolina Menegatti Gustavo Motta Mariana Kinjo Marcos Visnadi Raquel Parrine e Nina Meirelles se somaram ao percurso tri lhado para o projeto de Calibã e a bruxa A edição impressa só foi possível graças ao estímulo de Ana Rüsche à parceria com a Editora Elefante e ao apoio do escritório regional da Fundação Rosa Luxemburgo em São Paulo Somos profundamente gratas Encerramos esta pequena nota recomendando a leitura de outro livro de Silvia Federici Revolution at Point Zero Housework Reproduction and Feminist Strugle Revolução no ponto zero trabalho doméstico reprodução e lutas feministas ainda sem edição em português mas publicado em espanhol pela Trafcantes de Sueños Esta compilação de textos escritos pela pensadora italiana ao longo de mais quarenta anos de ativismo combinando uma análise marxista e anticapitalista a uma aguda crítica feminista oferece ferramentas sólidas para o entendimento da forma de narrar e articular as fontes históricas e referências que fundamentam a argumentação da autora COLETIVO SYCORAX SÃO PAULO VERÃO DE 2017 PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA Realizado durante quase três décadas Calibã e a bruxa foi originalmente concebido como uma contribuição para o mo vimento de libertação das mulheres e em particular para o combate à subordinação das mulheres aos homens luta que foi a força motriz do movimento feminista Seu objetivo ori ginal era demonstrar a partir de uma análise histórica que a discriminação contra as mulheres na sociedade capitalista não é o legado de um mundo prémoderno mas sim uma formação do capitalismo construída sobre diferenças sexuais existentes e reconstruída para cumprir novas funções sociais Esse ponto foi importante no contexto da política feminis ta dos anos 1970 como contraponto à teoria marxistaleninista de que as mulheres têm menos poder social do que os homens no capitalismo porque como donas de casa estão fora das relações capitalistas uma visão cuja tradução política seria a emancipação das mulheres por meio do trabalho assala riado Para muitas feministas especialmente na Wages for Housework Campaign Campanha por um salário para o traba lho doméstico à qual me juntei em 1972 isso era inaceitável Rejeitamos a suposição de que o caminho para a libertação das mulheres seria ocupar os mesmos empregos fabris que os trabalhadores estavam recusando Sabíamos também dos esforços que os governos da Europa e da América do Norte tinham feito após 1945 para mandar as mulheres de volta ao lar e reconstituir a fgura da dona de casa em tempo integral que havia sido minada pelo esforço de guerra Não podería mos portanto acreditar que o trabalho doméstico fosse um remanescente do passado que não desempenhasse nenhuma função na organização capitalista do trabalho ou que nossa su bordinação aos homens pudesse ser atribuída à nossa exclusão 13 12 da produção socialmente necessária como os marxistas ortodoxos com base em A origem da família da propriedade privada e do Estado de Engels ainda sustentam Contra esse ponto de vista argumentamos em vários arti gos panfetos e folhetos que longe de ser um resquício préca pitalista o trabalho doméstico não remunerado das mulheres tem sido um dos principais pilares da produção capitalista ao ser o trabalho que produz a força de trabalho Argumentamos ainda que nossa subordinação aos homens no capitalismo foi causada por nossa não remuneração e não pela natureza im produtiva do trabalho doméstico e que a dominação masculi na é baseada no poder que o salário confere aos homens Foi nesse contexto que nasceu Calibã e a bruxa já que pa recia importante identifcar os processos históricos pelos quais essas relações estruturais foram construídas A este respeito o trabalho de Marx não nos foi útil Os três tomos de O capital foram escritos como se as atividades diárias que sustentam a reprodução da força de trabalho fossem de pouca importância para a classe capitalista e como se os trabalhadores se repro duzissem no capitalismo simplesmente consumindo os bens comprados com o salário Tais suposições ignoram não só o trabalho das mulheres na preparação desses bens de consumo mas o fato de que muitos dos bens consumidos pelos traba lhadores industriais como açúcar café e algodão foram produzidos pelo trabalho escravo empregado por exemplo nas plantações de cana brasileiras A tarefa que Calibã e a bruxa se propôs realizar foi a de escrever a história esquecida das mulheres e da reprodução na transição para o capitalismo Entretanto o livro não é um apêndice ao relato de Marx sobre a acumulação primitiva Como eu estava por descobrir analisar o capitalismo do ponto de vista da reprodução da vida e da força de trabalho signifca va repensar todo o processo de sua formação É por isso que além de revisitar a caça às bruxas dos sécu los XVI e XVII a ascensão da família nuclear e a apropriação es tatal da capacidade reprodutiva das mulheres Calibã e a bruxa também estuda a colonização da América a expulsão do cam pesinato europeu dos seus bens comuns e o processo pelo qual o corpo proletário foi transformado em uma máquina de trabalho De fato uma das principais contribuições de Calibã e a bruxa para a história das transformações na reprodução da vida e na força de trabalho durante a transição para o capita lismo é que o livro reúne análises sociais políticas e flosóf cas que geralmente são separadas por linhas disciplinares Desta história Calibã e a bruxa narra apenas uma parte Falta ainda uma análise da exploração capitalista da natureza e seu impacto no trabalho reprodutivo A função que o tra balho escravo desempenhou na reprodução do proletariado industrial e sua integração com a produção industrial por meio da produção de açúcar café chá e rum os combustíveis da Revolução Industrial também são apenas mencionadas Uma análise muito mais ampla seria necessária para entender totalmente como a caça às bruxas foi usada como um instru mento de colonização bem como quais foram as resistências encontradas nessa perseguição Mas apesar dessas omissões o quadro teórico que o livro fornece reorienta nossa com preensão sobre o capitalismo de forma a dialogar com desen volvimentos econômicos contemporâneos e debates radicais razões pelas quais acredito que o livro tenha recebido uma resposta extremamente positiva Observando o desenvolvimento capitalista do ponto de vista dos não assalariados que trabalham nas cozinhas nos campos e nas plantações fora de relações contratuais cuja exploração foi naturalizada creditada a uma inferioridade natural Calibã e a bruxa desmistifca a natureza democrática da sociedade capitalista e a possibilidade de qualquer troca 15 14 igualitária dentro do capitalismo Seu argumento é o de que o compromisso com o barateamento do custo da produção do trabalho ao longo do desenvolvimento capitalista exige o uso da máxima violência e da guerra contra as mulheres que são o sujeito primário dessa produção Logo tratase de um livrochave para entender por quê no começo do século XXI depois de mais de quinhentos anos de exploração capitalista a globalização ainda é movida pelo esta do de guerra generalizado e pela destruição de nossos sistemas reprodutivos e de nossa riqueza comum e por quê novamente são as mulheres que pagam o preço mais alto Observem o aumento da violência de gênero especialmente intensifcada em regiões como África e América Latina onde a solidariedade comunal está desmoronando sob o peso do empobrecimento e das múltiplas formas de despossessão Dentro da mesma lógica este livro também é um desafo aos programas políticos que propõem reformar o capitalismo ou presumir que a expansão das relações capitalistas e a apli cação da tecnologia capitalista podem melhorar as condições de existência do proletariado mundial ou ter como resultado a sua unifcação política Se é verdade como o livro argumenta que a produção de uma população sem direitos e a criação de divisões dentro da força de trabalho global são condiçõescha ve para o processo de acumulação então o horizonte de nossas lutas deve ser uma mudança sistêmica já que precisamos excluir a possibilidade de um capitalismo com rosto humano Igualmente importante é o fato de que Calibã e a bruxa coloca a reprodução no centro da mudança política social apoiando a visão de que se não revalorizar nossa capacidade de cooperação mútua e as atividades que atendam à reprodu ção de nossas vidas a política radical pode apenas racionalizar as contradições que o capital está enfrentando Nesse sentido a história está a serviço da política pois ela confrma que nas regiões onde povos oprimidos mantêm suas estruturas comu nais e algum controle sobre as condições de sua reprodução há maior sucesso na resistência à exploração SILVIA FEDERICI NOVA YORK PRIMAVERA DE 2017 17 16 PREFÁCIO À EDIÇÃO ESTADUNIDENSE Calibã e a bruxa apresenta as principais linhas de um projeto de pesquisa sobre as mulheres na transição do feudalismo para o capitalismo que iniciei em meados dos anos 1970 em colaboração com a feminista italiana Leopoldina Fortunati Os primeiros resultados apareceram em um livro que publicamos na Itália em 1984 Il Grande Calibano Storia del corpo social ribelle nella prima fase del capitale O grande Calibã história do corpo social rebelde na primeira fase do capital Milão Franco Agneli Meu interesse nessa pesquisa foi motivado originalmente pelos debates que acompanharam o desenvolvimento do mo vimento feminista nos Estados Unidos em relação às raízes da opressão das mulheres e das estratégias políticas que o pró prio movimento deveria adotar na luta por libertação Naquele momento as principais perspectivas teóricas e políticas a partir das quais se analisava a realidade da discriminação sexual vinham sendo propostas principalmente por dois ramos do movimento de mulheres as feministas radicais e as feministas socialistas Do meu ponto de vista no entanto nenhum deles oferecia uma explicação satisfatória sobre as raízes da explora ção social e econômica das mulheres Na época eu questionava as feministas radicais pela sua tendência a explicar a discri minação sexual e o domínio patriarcal a partir de estruturas transhistóricas que presumivelmente operavam com indepen dência das relações de produção e de classe As feministas so cialistas por outro lado reconheciam que a história das mulhe res não podia ser separada da história dos sistemas específcos de exploração e em sua análise davam prioridade às mulheres como trabalhadoras na sociedade capitalista Porém o limite de seu ponto de vista segundo o que eu entendia naquele momen to estava na incapacidade de reconhecer a esfera da reprodução como fonte de criação de valor e exploração o que as levava a localizar as raízes da diferença de poder entre mulheres e ho mens na exclusão das mulheres do desenvolvimento capitalista uma posição que mais uma vez nos obrigava a depender de esquemas culturais para dar conta da sobrevivência do sexismo dentro do universo das relações capitalistas Foi nesse contexto que tomou forma a ideia de esboçar a his tória das mulheres na transição do feudalismo para o capitalismo A tese que inspirou essa pesquisa foi articulada por Mariarosa Dalla Costa e Selma James bem como por outras ativistas do Wages for Housework Movement Movimento por um salário para o trabalho doméstico em uma série de textos muito controver sos durante os anos 1960 mas que terminaram por reconfgurar o discurso sobre as mulheres a reprodução e o capitalismo Os mais infuentes foram The Power of Women and the Subversion of the Community 1971 O poder das mulheres e a subversão da co munidade de Mariarosa Dalla Costa e Sex Race and Class 1975 Sexo raça e classe de Selma James Contra a ortodoxia marxista que explicava a opressão das mulheres e a subordinação aos homens como um resíduo das relações feudais Dalla Costa e James defendiam que a exploração das mulheres havia cumprido uma função central no processo de acumulação capitalista na medida em que as mulheres foram as produtoras e reprodutoras da mercadoria capitalista mais essen cial a força de trabalho Como dizia Dalla Costa o trabalho não remunerado das mulheres no lar foi o pilar sobre o qual se cons truiu a exploração dos trabalhadores assalariados a escravidão do salário assim como foi o segredo de sua produtividade 1972 p 31 Desse modo a assimetria de poder entre mulheres e ho mens na sociedade capitalista não podia ser atribuída à irrelevân cia do trabalho doméstico para a acumulação capitalista o que vinha sendo desmentido pelas regras estritas que governavam a vida das mulheres nem à sobrevivência de esquemas culturais 19 18 atemporais Pelo contrário devia ser interpretada como o efeito de um sistema social de produção que não reconhece a produção e a reprodução do trabalho como uma fonte de acumulação do capital e por outro lado as mistifca como um recurso natural ou um serviço pessoal enquanto tira proveito da condição não assalariada do trabalho envolvido Ao apontarem a divisão sexual do trabalho e o trabalho não remunerado realizado pelas mulheres como a raiz da explo ração feminina na sociedade capitalista Dalla Costa e James demonstraram que era possível transcender a dicotomia entre o patriarcado e a classe e deram ao patriarcado um conteúdo histórico específco Também abriram o caminho para uma reinterpretação da história do capitalismo e da luta de classes por um ponto de vista feminista Foi com esse espírito que Leopoldina Fortunati e eu come çamos a estudar aquilo que apenas eufemisticamente pode ser descrito como a transição para o capitalismo e a procurar por uma história que não nos fora ensinada na escola mas que se mostrou decisiva para nossa educação Essa história não apenas oferecia uma explicação teórica da gênese do trabalho doméstico em seus principais componentes estruturais a separação entre produção e reprodução o uso especifcamente capitalista do salário para comandar o trabalho dos não assalariados e a desva lorização da posição social das mulheres com o advento do capita lismo fornecia também uma genealogia dos conceitos modernos de feminilidade e masculinidade que questionava o pressuposto pósmoderno da existência na cultura ocidental de uma predisposição quase ontológica para enfocar o gênero a partir de oposições binárias Descobrimos que as hierarquias sexuais quase sempre estão a serviço de um projeto de dominação que só pode se sustentar por meio da divisão constantemente renovada daqueles a quem se procura governar O livro que resultou dessa investigação o já citado Il Grande Calibano 1984 foi uma tentativa de repensar a análise da acumulação primitiva de Marx a partir de um ponto de vista feminista Nesse processo porém as categorias marxianas amplamente aceitas se demonstraram inadequadas Dentre as baixas podemos mencionar a identifcação marxiana do capitalismo com o advento do trabalhador livre que contribui para a ocultação e a naturalização da esfera da reprodução Il Grande Calibano também fazia uma crítica à teoria do corpo de Michel Foucault Como destacamos a análise de Foucault sobre as técnicas de poder e as disciplinas a que o corpo se sujeitou ignora o processo de reprodução funde as histórias feminina e masculina num todo indiferenciado e se desinteressa pelo dis ciplinamento das mulheres a tal ponto que nunca menciona um dos ataques mais monstruosos perpetrados na Era Moderna contra o corpo a caça às bruxas A tese principal de Il Grande Calibano sustentava que para poder compreender a história das mulheres na transição do feudalismo para o capitalismo devemos analisar as mudanças que o capitalismo introduziu no processo de reprodução social e especialmente de reprodução da força de trabalho O livro examina assim a reorganização do trabalho doméstico da vida familiar da criação dos flhos da sexualidade das relações entre homens e mulheres e da relação entre produção e repro dução na Europa dos séculos XVI e XVII Essa análise é reprodu zida aqui em Calibã e a bruxa No entanto o alcance do presente volume difere do de Il Grande Calibano na medida em que responde a um contexto social diferente e a um conhecimento cada vez maior sobre a história das mulheres Pouco tempo depois da publicação de Il Grande Calibano saí dos Estados Unidos e aceitei um trabalho como professora na Nigéria onde permaneci durante quase três anos Antes de ir embora guardei meus papéis num sótão acreditando que não precisaria deles por um tempo Porém as circunstâncias de 21 20 minha temporada na Nigéria não me permitiram esquecêlos Os anos compreendidos entre 1984 e 1986 constituíram um ponto de infexão para a Nigéria bem como para a maioria dos países afri canos Foram os anos em que em resposta à crise da dívida o go verno nigeriano entrou em negociações com o Fundo Monetário Internacional FMI e com o Banco Mundial negociações que fnalmente implicaram na adoção de um programa de ajuste es trutural a receita universal do Banco Mundial para a recuperação econômica em todo o planeta O propósito declarado do programa consistia em fazer com que a Nigéria chegasse a ser competitiva no mercado internacio nal Mas logo se percebeu que isso pressupunha um novo ciclo de acumulação primitiva e uma racionalização da reprodução social orientada para destruir os últimos vestígios de proprieda de comunitária e relações comunitárias impondo desse modo formas mais intensas de exploração Foi assim que assisti diante de meus olhos ao desenvolvimento de processos muito similares aos que havia estudado na preparação de Il Grande Calibano Entre eles o ataque às terras comunitárias e uma intervenção decisiva do Estado instigada pelo Banco Mundial na reprodução da força de trabalho com o objetivo de regular as taxas de procriação e no caso nigeriano reduzir o tamanho de uma população que era considerada muito exigente e indiscipli nada do ponto de vista de sua esperada inserção na economia global Junto a essas políticas chamadas adequadamente de Guerra contra a Indisciplina também testemunhei a insti gação de uma campanha misógina que denunciava a vaidade e as excessivas demandas das mulheres e o desenvolvimento de um debate acalorado semelhante em muitos sentidos às querelles des femmes querelas das mulheres do século XVII Era uma discussão que tocava em todos os aspectos da reprodução da força de trabalho a família opondo poligamia e monogamia família nuclear e família estendida a criação das crianças o trabalho das mulheres as identidades masculinas e femininas e as relações entre homens e mulheres Nesse contexto meu trabalho sobre a transição adquiriu um novo sentido Na Nigéria compreendi que a luta contra o ajuste estrutural fazia parte de uma grande luta contra a privatização da terra e o cercamento não só das terras comunitárias mas também das relações sociais que data das origens do capitalis mo na Europa e na América no século XVI Também compreendi como era limitada a vitória que a disciplina do trabalho capitalis ta havia obtido neste planeta e quanta gente ainda via sua vida de uma forma radicalmente antagônica aos requisitos da produ ção capitalista Para os fomentadores do desenvolvimento as agências multinacionais e os investidores estrangeiros esse era e continuava sendo o problema de lugares como a Nigéria Mas para mim foi uma grande fonte de força pois demonstrava que ainda existem no mundo forças extraordinárias que enfrentam a imposição de uma forma de vida concebida exclusivamente em termos capitalistas A força que obtive também esteve ligada ao meu encontro com a Women in Nigeria Mulheres na Nigéria primeira organização feminista do país que me permitiu enten der melhor as lutas que as mulheres nigerianas travaram para defender seus recursos e rechaçar o novo modelo patriarcal que lhes era imposto agora promovido pelo Banco Mundial No fnal de 1986 a crise da dívida alcançou as instituições acadêmicas e como já não podia me sustentar deixei a Nigéria em corpo mas não em espírito A preocupação com os ataques efetuados contra o povo nigeriano nunca me abando nou Desse modo o desejo de voltar a estudar a transição ao capitalismo me acompanhou desde meu retorno A princípio havia lido os processos nigerianos por um prisma da Europa do século XVI Nos Estados Unidos foi o proletariado nigeriano que me fez retornar às lutas pelo comum e contra a submissão capitalista das mulheres dentro e fora da Europa Ao regressar 23 22 também comecei a lecionar num programa interdisciplinar em que devia fazer frente a um tipo distinto de cercamento o cercamento do saber isto é a crescente perda entre as novas gerações do sentido histórico de nosso passado comum É por isso que em Calibã e a bruxa reconstruo as lutas antifeudais da Idade Média e as lutas com as quais o proletariado europeu resistiu à chegada do capitalismo Meu objetivo não é apenas colocar à disposição dos não especialistas as provas que sus tentam as minhas análises mas reviver entre as gerações mais jovens a memória de uma longa história de resistência que hoje corre o risco de ser apagada Preservar essa memória é crucial se quisermos encontrar uma alternativa ao capitalismo pois essa possibilidade dependerá de nossa capacidade de ouvir as vozes daqueles que percorreram caminhos semelhantes INTRODUÇÃO Desde Marx estudar a gênese do capitalismo é um passo obrigatório para ativistas e acadêmicos convencidos de que a primeira tarefa da agenda da humanidade é a construção de uma alternativa à sociedade capitalista Não surpreende que cada novo movimento revolucionário tenha retornado à tran sição para o capitalismo trazendo ao tema as perspectivas de novos sujeitos sociais e descobrindo novos terrenos de explo ração e resistência1 Embora este livro tenha sido concebido dentro dessa tradição há duas considerações em particular que também o motivaram Em primeiro lugar havia um desejo de repensar o de senvolvimento do capitalismo a partir de um ponto de vista feminista ao mesmo tempo evitando as limitações de uma história das mulheres separada do setor masculino da classe trabalhadora O título Calibã e a bruxa inspirado na peça A tempestade de Shakespeare refete esse esforço Na minha interpretação no entanto Calibã não apenas representa o rebelde anticolonial cuja luta ressoa na literatura caribenha contemporânea mas também é um símbolo para o proletaria do mundial e mais especifcamente para o corpo proletário como terreno e instrumento de resistência à lógica do capi talismo Mais importante ainda a fgura da bruxa que em A tempestade fca relegada a segundo plano neste livro situase no centro da cena enquanto encarnação de um mundo de 1 O estudo da transição para o capitalismo tem uma longa história que não por acaso coincide com a dos principais movimentos políticos do século XX Historiadores marxistas como Maurice Dobb Rodney Hilton e Christopher Hill 1953 revisitaram a transição nos anos 1940 e 1950 depois dos debates gerados pela consolidação da União Soviética pela emergência dos Estados socialistas na Europa e na Ásia e pelo que nesse momento aparecia como uma iminente crise capitalista A transição foi mais uma vez revisitada em 1960 pelos teóricos terceiromundistas como Samir Amin e André Gunder Frank no contexto dos debates do momento sobre neocolonialismo subdesen volvimento e intercâmbio desigual entre o primeiro e o terceiro mundo 25 24 Bruxas conjurando um aguaceiro xilogravura em Ulrich Molitor De Lamiies et Pythonicis Mulieribus 1489 Sobre mulheres feiticeiras e adivinhas sujeitos femininos que o capitalismo precisou destruir a he rege a curandeira a esposa desobediente a mulher que ousa viver só a mulher obeah que envenenava a comida do senhor e incitava os escravos à rebelião A segunda motivação deste livro foi com a nova expansão das relações capitalistas o retorno em escala mundial de um conjunto de fenômenos que normalmente vinham associados à gênese do capitalismo Entre eles se encontra uma nova série de cercamentos que expropriou milhões de produtores agrários de suas terras além da pauperização massiva e da criminalização dos trabalhadores por meio de políticas de encarceramento que nos remetem ao Grande Confnamento descrito por Michel Foucault em seu estudo sobre a história da loucura Também fomos testemunhas do desenvolvimento mundial de novos movimentos de diáspora acompanhados pela perseguição dos trabalhadores migrantes Algo que nos remete uma vez mais às Leis Sangrentas introduzidas na Europa dos séculos XVI e XVII com o objetivo de colocar os vagabundos à disposição da exploração local Ainda mais importante para este livro foi a intensifcação da violência contra as mulheres inclusive o retorno da caça às bruxas em alguns países como por exemplo África do Sul e Brasil Por que depois de quinhentos anos de domínio do capital no início do terceiro milênio os trabalhadores ainda são massi vamente defnidos como pobres bruxas e bandoleiros De que maneira se relacionam a expropriação e a pauperização com o permanente ataque contra as mulheres O que podemos apren der sobre o desdobramento capitalista passado e presente quando examinado em perspectiva feminista Com essas perguntas em mente volto a analisar a transi ção do feudalismo para o capitalismo a partir do ponto de vista das mulheres do corpo e da acumulação primitiva Cada um desses conceitos se conecta a um marco conceitual que serve como ponto de referência para este trabalho o feminista o fou caultiano e o marxista Por isso vou começar esta introdução com algumas observações sobre a relação entre minha própria perspectiva de análise e cada um desses marcos de referência A acumulação primitiva é o termo usado por Marx no tomo I de O capital com a fnalidade de caracterizar o processo político no qual se sustenta o desenvolvimento das relações capitalistas Tratase de um termo útil na medida em que pro porciona um denominador comum que permite conceituar as 27 26 mudanças produzidas pelo advento do capitalismo nas relações econômicas e sociais Sua importância está especialmente no fato de Marx tratar a acumulação primitiva como um processo fundacional o que revela as condições estruturais que torna ram possível a sociedade capitalista Isso nos permite ler o pas sado como algo que sobrevive no presente uma consideração essencial para o uso do termo neste trabalho Porém minha análise se afasta da de Marx por duas vias distintas Enquanto Marx examina a acumulação primitiva do ponto de vista do proletariado assalariado de sexo masculino e do desenvolvimento da produção de mercadorias eu a examino do ponto de vista das mudanças que introduziu na posição social das mulheres e na produção da força de trabalho2 Daí que a minha descrição da acumulação primitiva inclui uma série de fenômenos que estão ausentes em Marx e que no entanto são extremamente importantes para a acumulação capitalista Entre esses fenômenos estão i o desenvolvimento de uma nova divisão sexual do trabalho ii a construção de uma nova ordem patriarcal baseada na exclusão das mulheres do trabalho assalariado e em sua subordinação aos homens iii a mecanização do corpo proletário e sua transformação no caso das mulheres em uma máquina de produção de novos trabalhadores E o que é mais importante coloquei no centro da análise da acumulação primitiva a caça às bruxas dos sécu los XVI e XVII sustento aqui que a perseguição às bruxas tanto na Europa quanto no Novo Mundo foi tão importante para o desenvolvimento do capitalismo quanto a colonização e a ex propriação do campesinato europeu de suas terras Essa análise se diferencia também da marxiana em sua ava liação do legado e da função da acumulação primitiva Embora 2 Essas duas realidades estão estreitamente conectadas nesta análise pois no capitalismo a reprodução geracional dos trabalhadores e a regeneração cotidiana de sua capa cidade de trabalho se converteram em um trabalho de mulheres embora mistificado pela sua condição de não assalariado como serviço pessoal e até mesmo como recurso natural Marx fosse profundamente consciente do caráter criminoso do desenvolvimento capitalista sua história declarou está escri ta nos anais da humanidade com letras de sangue e fogo não cabe dúvida de que considerava isso como um passo necessário no processo de libertação humana Marx acreditava que o desen volvimento capitalista acabava com a propriedade em pequena escala e incrementava até um grau não alcançado por nenhum outro sistema econômico a capacidade produtiva do trabalho criando as condições materiais para liberar a humanidade da escassez e da necessidade Também supunha que a violência que havia dominado as primeiras fases da expansão capitalista retro cederia com a maturação das relações capitalistas a partir desse momento a exploração e o disciplinamento do trabalho seriam alcançados fundamentalmente por meio do funcionamento das leis econômicas Marx 1867 1909 t I Nisso estava profunda mente equivocado Cada fase da globalização capitalista incluin do a atual vem acompanhada de um retorno aos aspectos mais violentos da acumulação primitiva o que mostra que a contínua expulsão dos camponeses da terra a guerra e o saque em escala global e a degradação das mulheres são condições necessárias para a existência do capitalismo em qualquer época Devo acrescentar que Marx nunca poderia ter suposto que o capitalismo preparava o caminho para a libertação humana se tivesse olhado sua história do ponto de vista das mulheres Essa história ensina que mesmo quando os homens alcançaram cer to grau de liberdade formal as mulheres sempre foram tratadas como seres socialmente inferiores exploradas de modo similar às formas de escravidão Mulheres então no contexto deste livro signifca não somente uma história oculta que necessita se fazer visível mas também uma forma particular de explo ração e portanto uma perspectiva especial a partir da qual se deve reconsiderar a história das relações capitalistas Esse projeto não é novo Desde o começo do movimento 29 28 feminista as mulheres se voltaram vez ou outra para a transição ao capitalismo ainda que nem sempre o tenham reconhecido Durante certo tempo o marco principal que confgurava a história das mulheres foi de caráter cronológico A designação mais comum que as historiadoras feministas utilizaram para descrever o período de transição foi Early Modern Times prin cípio da Idade Moderna que dependendo da autora podia designar o século XIII ou XVII Nos anos 1980 no entanto apareceu uma série de traba lhos que assumiram uma perspectiva mais crítica Entre eles estavam os ensaios de Joan Kelly sobre o Renascimento e as querelles des femmes The Death of Nature 1981 A morte da na tureza de Carolyn Merchant LArcano della Riproduzione 1981 O arcano da reprodução de Leopoldina Fortunati Working Women in Renaissance Germany 1986 Mulheres trabalhadoras no Renascimento alemão e Patriarchy and Accumulation on a World Scale 1986 Patriarcado e acumulação em escala global de Maria Mies A esses trabalhos devemos acrescentar uma grande quantidade de monografas que ao longo das últimas duas décadas reconstruíram a presença das mulheres nas eco nomias rural e urbana da Europa medieval assim como a vasta literatura e o trabalho de documentação que se realizou sobre a caça às bruxas e as vidas das mulheres na América précolonial e nas ilhas do Caribe Entre estas últimas quero recordar espe cialmente The Moon the Sun and the Witches 1987 A lua o sol e as bruxas de Irene Silverblatt o primeiro relato sobre a caça às bruxas no Peru colonial e Natural Rebels A Social History of Barbados 1995 Rebeldes naturais uma história social de Barbados de Hilary Beckles que junto com Slave Women in Caribbean Society 16501838 1990 Mulheres escravas na sociedade caribenha 16501838 de Barbara Bush se encontra entre os textos mais importantes sobre a história das mulheres escravizadas nas plantações do Caribe Essa produção acadêmica confrmou que a reconstrução da história das mulheres ou o olhar sobre a história por um ponto de vista feminino implica uma redefnição fundamen tal das categorias históricas aceitas e uma visibilização das estruturas ocultas de dominação e exploração Desse modo o ensaio de Joan Kelly Did Women Have a Renaissance 1984 As mulheres tiveram um Renascimento solapou a periodização histórica clássica que celebra o Renascimento como um exem plo excepcional de façanha cultural The Death of Nature de Carolyn Merchant questionou a crença no caráter socialmente progressista da revolução científca ao defender que o advento do racionalismo científco produziu um deslocamento cultural de um paradigma orgânico para um mecânico que legitimou a exploração das mulheres e da natureza De especial importância foi Patriarchy and Accumulation on a World Scale 1986 de Maria Mies um trabalho já clássico que reexamina a acumulação capitalista de um ponto de vista não eurocêntrico conectando o destino das mulheres na Europa ao dos sujeitos coloniais europeus e proporcionando uma nova compreensão do lugar das mulheres no capitalismo e no proces so de globalização Calibã e a bruxa se baseia nesses trabalhos e nos estudos contemporâneos contidos em Il Grande Calibano analisado no Prefácio Porém seu alcance histórico é mais amplo tendo em vista que o livro conecta o desenvolvimento do capitalismo com a crise de reprodução e as lutas sociais do período feudal tardio por um lado e com o que Marx defne como a formação do pro letariado por outro Nesse processo o livro aborda uma série de questões históricas e metodológicas que estiveram no centro do debate sobre a história das mulheres e da teoria feminista A questão histórica mais importante que este livro aborda é como explicar a execução de centenas de milhares de bru xas no começo da Era Moderna e por que o surgimento do 31 30 capitalismo coincide com essa guerra contra as mulheres As acadêmicas feministas desenvolveram um esquema que lança bastante luz sobre a questão Existe um acordo generalizado sobre o fato de que a caça às bruxas buscou destruir o controle que as mulheres haviam exercido sobre sua função reprodutiva e serviu para preparar o terreno para o desenvolvimento de um regime patriarcal mais opressor Defendese também que a caça às bruxas tinha raízes nas transformações sociais que acompa nharam o surgimento do capitalismo No entanto as circuns tâncias históricas específcas em que a perseguição de bruxas se desenvolveu e as razões pelas quais o surgimento do capitalismo exigiu um ataque genocida contra as mulheres ainda não foram investigadas Essa é a tarefa que empreendo em Calibã e a bruxa começando pela análise da caça às bruxas no contexto da crise demográfca e econômica dos séculos XVI e XVII e das políticas de terra e trabalho da era mercantilista Meu trabalho aqui é apenas um esboço da pesquisa que seria necessária para esclarecer as conexões mencionadas e especialmente a relação entre a caça às bruxas e o desenvolvimento contemporâneo de uma nova divisão sexual do trabalho que confna as mulheres ao trabalho reprodutivo No entanto convém demonstrar que a perseguição às bruxas assim como o tráfco de escravos e os cercamentos constituiu um aspecto central da acumulação e da formação do proletariado moderno tanto na Europa como no Novo Mundo Há outros caminhos através dos quais Calibã e a bruxa dialoga com a história das mulheres e a teoria feminista Em primeiro lugar confrma que a transição para o capitalismo é uma questão primordial para a teoria feminista já que a redefnição das tarefas produtivas e reprodutivas e as relações homemmulher nesse período ambas realizadas com máxima violência e intervenção estatal não deixam dúvidas quanto ao caráter construído dos papéis sexuais na sociedade capitalista A análise que aqui se propõe também nos permite transcender a dicotomia entre gênero e classe Se é verdade que na socieda de capitalista a identidade sexual se transformou no suporte específco das funções do trabalho o gênero não deveria ser tratado como uma realidade puramente cultural mas como uma especifcação das relações de classe Desse ponto de vista os debates que tiveram lugar entre as feministas pósmodernas acerca da necessidade de desfazerse do termo mulher como categoria de análise e defnir o feminismo em termos pura mente oposicionais foram mal orientados Para reformular o argumento que apresentei se na sociedade capitalista a femi nilidade foi construída como uma funçãotrabalho que oculta a produção da força de trabalho sob o disfarce de um destino biológico a história das mulheres é a história das classes e a pergunta que devemos nos fazer é se foi transcendida a divisão sexual do trabalho que produziu esse conceito em particular Se a resposta for negativa tal como ocorre quando consideramos a organização atual do trabalho reprodutivo então mulher é uma categoria de análise legítima e as atividades associadas à reprodução seguem sendo um terreno de luta fundamental para as mulheres como eram para o movimento feminista dos anos 1970 e um nexo de união com a história das bruxas Outra pergunta que Calibã e a bruxa analisa é aquela proposta pelas perspectivas opostas que oferecem as análises feministas e foucaultianas sobre o corpo tal como são aplicadas na interpretação da história do desenvolvimento capitalista Desde o início do movimento de mulheres as ativistas e teóricas feministas viram o conceito de corpo como uma chave para compreender as raízes do domínio masculino e da construção da identidade social feminina Para além das diferenças ideológicas chegaram à conclusão de que a catego rização hierárquica das faculdades humanas e a identifcação das mulheres com uma concepção degradada da realidade corporal foi historicamente instrumental para a consolidação 33 32 do poder patriarcal e para a exploração masculina do trabalho feminino Desse modo a análise da sexualidade da procriação e da maternidade foi colocada no centro da teoria feminista e da história das mulheres Em particular as feministas coloca ram em evidência e denunciaram as estratégias e a violência por meio das quais os sistemas de exploração centrados nos homens tentaram disciplinar e apropriarse do corpo feminino destacando que os corpos das mulheres constituíram os princi pais objetivos lugares privilegiados para a implementação das técnicas de poder e das relações de poder De fato a enorme quantidade de estudos feministas que foi produzida desde os princípios dos anos 1970 a respeito do controle exercido sobre a função reprodutiva das mulheres dos efeitos dos estupros e dos maustratos e da imposição da beleza como uma condição de aceitação social constitui uma imensa contribuição ao discurso sobre o corpo em nossos tempos e assinala a errônea percepção tão frequente entre os acadêmicos que atribui seu descobri mento a Michel Foucault Partindo de uma análise da política do corpo as femi nistas não somente revolucionaram o discurso flosófco e político mas também passaram a revalorizar o corpo Esse foi um passo necessário tanto para confrontar a negatividade que acarreta a identifcação de feminilidade com corporalidade como para criar uma visão mais holística do que signifca ser um ser humano3 Essa valorização ganhou várias formas desde 3 Não surpreende que a valorização do corpo tenha estado presente em quase toda a literatura da segunda onda do feminismo do século XX tal como foi caracterizada a literatura produzida pela revolta anticolonial e pelos descendentes de escravos africa nos Nesse terreno cruzando grandes fronteiras geográficas e culturais A Room of Ones Own 1929 Um teto todo seu de Virgina Woolf antecipou Cahier dun retour au pays natal 1938 Diário de um retorno ao país natal de Aimé Césaire quando repreende seu público feminino e por detrás disso o mundo feminino por não ter conseguido produzir outra coisa além de filhos Jovens diria que vocês nunca realizaram um descobrimento de certa impor tância Nunca fizeram tremer um império ou conduziram um exército à batalha As obras de Shakespeare não são suas Que desculpa vocês têm Vocês podem muito bem dizer apontando para as ruas e praças e para as selvas do mundo infestadas de habitantes ne gros e brancos e de cor de café que estivemos fazendo outro trabalho Sem ele esses a busca de saberes não dualistas até a tentativa com feministas que veem a diferença sexual como um valor positivo de de senvolver um novo tipo de linguagem e de repensar as raízes corporais da inteligência humana4 Tal como destacou Rosi Braidotti o corpo retomado não há de entenderse nunca como algo biologicamente dado No entanto slogans como recuperar a posse do corpo ou fazer o corpo falar5 foram criticados por teóricos pósestruturalistas e foucaultianos que rejeitam como ilusório qualquer chamamento à liberação dos instintos De sua parte as feministas acusaram o discurso de Foucault sobre a sexualidade de omitir a diferenciação sexual ao mesmo tempo que se apropriava de muitos saberes desenvolvidos pelo mares não seriam navegados e essas terras férteis seriam um deserto Temos erguido e criado e ensinado talvez até a idade de seis ou sete aos mil seiscentos e vinte e três milhões de seres humanos que de acordo com as estatísticas existem algo que mesmo quando algumas tenham tido ajuda requer tempo Woolf 1929 p 112 Essa capacidade de subverter a imagem degradada da feminilidade que foi cons truída por meio da identificação das mulheres com a natureza a matéria o corporal é a potência do discurso feminista sobre o corpo que trata de desenterrar o que o controle masculino de nossa realidade corporal sufocou No entanto é uma ilusão conceber a libertação feminina como um retorno ao corpo Se o corpo feminino como discuto neste trabalho é um significante para o campo de atividades reprodutivas que foi apropriado pelos homens e pelo Estado e convertido em um instrumento de produção de força de trabalho com tudo aquilo que isso pressupõe em termos de regras e regulações sexuais cânones estéticos e castigos então o corpo é o lugar de uma alienação funda mental que só pode ser superada com o fim da disciplinatrabalho que o define Essa tese se verifica também para os homens A descrição de um trabalhador que se sente à vontade apenas em suas funções corporais feita por Marx já intuía tal fato Marx porém nunca expôs a magnitude do ataque a que o corpo masculino estava submetido com o advento do capitalismo Ironicamente assim como Foucault Marx enfatizou também a produtividade do trabalho a que os trabalhadores estão subordinados uma produtividade que para ele é a condição para o futuro domínio da sociedade pelos trabalhadores Marx não observou que o desenvolvimento das potências industriais dos trabalhadores se deu à custa do subdesenvolvimento de seus poderes enquanto indivíduos sociais ainda que reconhecesse que os trabalhadores na sociedade capitalista estão tão alienados de seu trabalho de suas relações com os outros e dos produtos de seu trabalho como se estivessem dominados por estes parecendo tratarse de uma força alheia 4 Braidotti 1991 p 219 Para uma discussão do pensamento feminista sobre o corpo ver EcoFeminism as Politics 1997 O ecofeminismo como política de Ariel Salleh especialmente os capítulos 3 4 e 5 e Patterns of Dissonance 1991 Padrões de dissonância de Rosi Braidotti especialmente a seção intitulada Repossessing the Body A Timely Project Repossuindo o corpo um projeto oportuno pp 21924 5 Estou me referindo ao projeto de écriture féminine escrita feminina uma teoria e movimento literários que se desenvolveram na França na década de 1970 entre as feministas estudiosas da psicanálise lacaniana que buscavam criar uma lingua gem que expressasse a especificidade do corpo feminino e da subjetividade feminina Braidotti op cit 35 34 movimento feminista Essa crítica é bastante acertada Além disso Foucault fca tão intrigado pelo caráter produtivo das técnicas de poder de que o corpo foi investido que sua análise praticamente descarta qualquer crítica das relações de poder O caráter quase defensivo da teoria de Foucault sobre o corpo se vê acentuado pelo fato de que considera o corpo como algo constituído puramente por práticas discursivas e de que está mais interessado em descrever como se desdobra o poder do que em identifcar sua fonte Assim o Poder que produz o corpo aparece como uma entidade autossufciente metafísica ubíqua desconectada das relações sociais e econômicas e tão misteriosa em suas variações quanto uma força motriz divina Uma análise da acumulação primitiva e da transição para o capitalismo é capaz de nos ajudar a ir além dessas alternativas Acredito que sim No que diz respeito ao enfoque feminista nosso primeiro passo deve ser documentar as condições sociais e históricas nas quais o corpo se tornou elemento central e esfera de atividade defnitiva para a constituição da feminilidade Nessa linha Calibã e a bruxa mostra que na sociedade capitalista o corpo é para as mulheres o que a fábrica é para os homens tra balhadores assalariados o principal terreno de sua exploração e resistência na mesma medida em que o corpo feminino foi apro priado pelo Estado e pelos homens forçado a funcionar como um meio para a reprodução e a acumulação de trabalho Neste sentido é bem merecida a importância que adquiriu o corpo em todos os seus aspectos maternidade parto sexualidade tanto dentro da teoria feminista quanto na história das mulhe res Calibã e a bruxa também corrobora o saber feminista que se nega a identifcar o corpo com a esfera do privado e nessa linha fala de uma política do corpo Além disso explica como para as mulheres o corpo pode ser tanto uma fonte de identidade quanto uma prisão e por que ele tem tanta importância para as feminis tas ao mesmo tempo que é tão problemática a sua valoração Quanto à teoria de Foucault a história da acumulação primitiva oferece muitos contraexemplos demonstrando que a teoria foucaultiana só pode ser defendida à custa de omis sões históricas extraordinárias A mais óbvia é a omissão da caça às bruxas e do discurso sobre a demonologia na sua análise sobre o disciplinamento do corpo Sem dúvida se es sas questões tivessem sido incluídas teriam inspirado outras conclusões já que ambas demonstram o caráter repressivo do poder aplicado contra as mulheres e o inverossímil da cumplicidade e da inversão de papéis que Foucault em sua descrição da dinâmica dos micropoderes imagina que exis tem entre as vítimas e seus perseguidores O estudo da caça às bruxas também desafa a teoria de Foucault relativa ao desenvolvimento do biopoder despo jandoa do mistério com que cobre a emergência desse regime Foucault registra a virada alegadamente na Europa do século XVIII de um tipo de poder constituído sobre o direito de matar para um poder diferente que se exerce por meio da administra ção e da promoção das forças vitais como o crescimento da po pulação Porém ele não oferece pistas sobre suas motivações No entanto se situamos essa mutação no contexto do surgimento do capitalismo o enigma desaparece a promoção das forças da vida se revela como nada mais que o resultado de uma nova preocu pação pela acumulação e pela reprodução da força de trabalho Também podemos observar que a promoção do crescimento populacional por parte do Estado pode andar de mãos dadas com uma destruição massiva de vidas pois em muitas circunstâncias históricas como por exemplo a história do tráfco de escravos uma é condição para a outra Efetivamente num sistema em que a vida está subordinada à produção de lucro a acumulação de força de trabalho só pode ser alcançada com o máximo de vio lência para que nas palavras de Maria Mies a própria violência se transforme na força mais produtiva 37 36 Para concluir o que Foucault teria aprendido caso tivesse estudado em sua História da sexualidade 1978 a caça às bruxas em vez de ter se concentrado na confssão pastoral é que essa história não pode ser escrita do ponto de vista de um sujeito universal abstrato assexuado Além disso teria reconhecido que a tortura e a morte podem se colocar a serviço da vida ou melhor a serviço da produção da força de trabalho dado que o objetivo da sociedade capitalista é transformar a vida em capa cidade para trabalhar e em trabalho morto6 Desse ponto de vista a acumulação primitiva foi um pro cesso universal em cada fase do desenvolvimento capitalista Não é por acaso que seu exemplo histórico originário tenha sedimentado estratégias que diante de cada grande crise capi talista foram relançadas de diferentes maneiras com a fna lidade de baratear o custo do trabalho e esconder a exploração das mulheres e dos sujeitos coloniais Isso é o que ocorreu no século XIX quando as respostas ao surgimento do socialismo à Comuna de Paris e à crise de acu mulação de 1873 foram a Partilha da África e a invenção da família nuclear na Europa centrada na dependência econômica das mulheres aos homens seguida da expulsão das mulheres dos postos de trabalho remunerados Isso é também o que ocorre na atualidade quando uma nova expansão do mercado de trabalho busca colocarnos em retrocesso no que tange à luta anticolonial e às lutas de outros sujeitos rebeldes estudantes feministas trabalhadores industriais que nos anos 1960 e 1970 debilitaram a divisão sexual e internacional do trabalho Não é de surpreender portanto que a violência em grande escala e a escravidão tenham estado na ordem do dia do mesmo modo que estavam no período de transição com a 6 O trabalho morto é o trabalho já realizado que fica objetivado nos meios de produção Segundo Marx o trabalho morto depende da capacidade humana presente trabalho vivo mas o capital é trabalho morto que subordina e explora essa capaci dade Marx 2006 t I NTE diferença de que hoje os conquistadores são os ofciais do Banco Mundial e do FMI que ainda pregam o valor de um centavo às mesmas populações que as potências mundiais dominantes têm roubado e pauperizado durante séculos Uma vez mais muito da violência empregada é dirigida contra as mulheres porque na era do computador a conquista do corpo feminino continua sendo uma precondição para a acumulação de traba lho e riqueza tal como demonstra o investimento institucional no desenvolvimento de novas tecnologias reprodutivas que mais do que nunca reduzem as mulheres a meros ventres Ademais a feminização da pobreza que acompanhou a difusão da globalização adquire um novo signifcado quando recordamos que foi o primeiro efeito do desenvolvimento do capitalismo sobre as vidas das mulheres Com efeito a lição política que podemos extrair de Calibã e a bruxa é que o capitalismo enquanto sistema econômico social está necessariamente ligado ao racismo e ao sexismo O capitalismo precisa justifcar e mistifcar as contradições incrustadas em suas relações sociais a promessa de liber dade frente à realidade da coação generalizada e a promessa de prosperidade frente à realidade de penúria generalizada difamando a natureza daqueles a quem explora mulheres sujeitos coloniais descendentes de escravos africanos imi grantes deslocados pela globalização No cerne do capitalismo encontramos não apenas uma relação simbiótica entre o trabalho assalariado contratual e a escravidão mas também e junto com ela a dialética que existe entre acumulação e destruição da força de trabalho tensão pelas quais as mulheres pagaram o preço mais alto com seus corpos seu trabalho e suas vidas É portanto impossível associar o capitalismo com qual quer forma de libertação ou atribuir a longevidade do sistema à sua capacidade de satisfazer necessidades humanas Se o 38 capitalismo foi capaz de reproduzirse isso se deve somente à rede de desigualdades que foi construída no corpo do proleta riado mundial e à sua capacidade de globalizar a exploração Esse processo segue desenvolvendose diante de nossos olhos tal como se deu ao longo dos últimos quinhentos anos A diferença é que hoje a resistência ao capitalismo tam bém atingiu uma dimensão global CAPÍTULO 1 O MUNDO PRECISA DE UMA SACUDIDA OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A CRISE POLÍTICA NA EUROPA MEDIEVAL INTRODUÇÃO 44 A SERVIDÃO COMO RELAÇÃO DE CLASSE 47 A LUTA PELO COMUM 54 LIBERDADE E DIVISÃO SOCIAL 60 OS MOVIMENTOS MILENARISTAS E HERÉTICOS 66 A POLITIZAÇÃO DA SEXUALIDADE 80 AS MULHERES E A HERESIA 83 LUTAS URBANAS 89 A PESTE NEGRA E A CRISE DO TRABALHO 96 A POLÍTICA SEXUAL O SURGIMENTO DO ESTADO E A CONTRARREVOLUÇÃO 103 Albrecht Dürer A queda do homem 1510 Esta cena impactante da expulsão de Adão e Eva dos Jardins do Éden evoca a expulsão do campesinato das terras comunais que começou a ocorrer na Europa Ocidental exatamente na época em que Dürer produzia este trabalho O MUNDO DEVERÁ SOFRER UMA GRANDE SACUDIDA ACONTECERÁ UMA SITUAÇÃO TAL QUE OS ÍMPIOS SERÃO EXPULSOS DE SEUS LUGARES E OS OPRIMIDOS SE LEVANTARÃO THOMAS MÜNTZER OPEN DENIAL OF THE FALSE BELIEF OF THE GODLESS WORLD ON THE TESTIMONY OF THE GOSPEL OF LUKE PRESENTED TO MISERABLE AND PITIFUL CHRISTENDOM IN MEMORY OF ITS ERROR 1524 NÃO SE PODE NEGAR QUE DEPOIS DE SÉCULOS DE LUTA A EXPLORAÇÃO CONTINUA EXISTINDO SOMENTE SUA FORMA MUDOU O MAIS TRABALHO EXTRAÍDO AQUI E ALI PELOS ATUAIS SENHORES DO MUNDO NÃO É MENOR EM PROPORÇÃO À QUANTIDADE TOTAL DE TRABALHO QUE O MAISTRABALHO QUE SE EXTRAÍA HÁ MUITO TEMPO PORÉM A MUDANÇA NAS CONDIÇÕES DE EXPLORAÇÃO NÃO É INSIGNIFICANTE O QUE IMPORTA É A HISTÓRIA A LUTA POR LIBERTAÇÃO PIERRE DOCKES MEDIEVAL SLAVERY AND LIBERATION 1982 45 44 INTRODUÇÃO Uma história das mulheres e da reprodução na transição para o capitalismo deve começar com as lutas que o proletariado medieval pequenos agricultores artesãos trabalhadores travou contra o poder feudal em todas as suas formas Apenas se invocarmos essas lutas com sua rica carga de demandas aspirações sociais e políticas e práticas antagônicas podemos compreender o papel que tiveram as mulheres na crise do feu dalismo e os motivos pelos quais seu poder devia ser destruído a fm de que se desenvolvesse o capitalismo tal como ocorreu com a perseguição às bruxas durante três séculos Da perspectiva estratégica dessa luta é possível observar que o capitalismo não foi o produto do desenvolvimento evolutivo que deu à luz forças que estavam amadurecendo no ventre da antiga ordem O capitalismo foi uma resposta dos senhores feudais dos mer cadores patrícios dos bispos e dos papas a um confito social centenário que chegou a fazer tremer seu poder e que realmente produziu uma grande sacudida mundial O capitalismo foi a contrarrevolução que destruiu as possibilidades que haviam emergido da luta antifeudal possibilidades que se tivessem sido realizadas teriam evitado a imensa destruição de vidas e de espaço natural que marcou o avanço das relações capitalistas no mundo Devemos enfatizar este aspecto pois a crença de que o capitalismo evoluiu a partir do feudalismo e de que representa uma forma mais elevada de vida social ainda não se desfez No entanto o modo como a história das mulheres se entre cruza com a história do desenvolvimento capitalista não pode ser compreendida se nos preocuparmos apenas com os terrenos clássicos da luta de classes serviços laborais labor services índices salariais rendas e dízimos e ignorarmos as novas visões da vida social e da transformação das relações de gênero que tais confitos produziram Elas não foram insignifcantes É na luta antifeudal que encontramos o primeiro indício na história europeia da existência das raízes de um movimento de mulheres que se opunha à ordem estabelecida e contribuía para a construção de modelos alternativos de vida comunal A luta contra o poder feudal produziu também as primeiras ten tativas organizadas de desafar as normas sexuais dominantes e de estabelecer relações mais igualitárias entre mulheres e homens Combinadas à recusa do trabalho servil e das relações comerciais estas formas conscientes de transgressão social construíram uma poderosa alternativa não só ao feudalismo mas também à ordem capitalista que estava substituindo o feudalismo demonstrando que outro mundo era possível o que nos encoraja a perguntar por que ele não se desenvolveu Este capítulo procura respostas para essa pergunta ao mesmo tempo que examina os modos como se redefniram as relações entre as mulheres e os homens e a reprodução da força de traba lho em oposição ao regime feudal As lutas sociais da Idade Média também devem ser lembra das porque escreveram um novo capítulo na história da liber tação Em seu melhor momento exigiram uma ordem social igualitária baseada na riqueza compartilhada e na recusa às hie rarquias e ao autoritarismo Estas reivindicações continuariam sendo utopias No lugar do reino dos céus cujo advento foi pro fetizado na pregação dos movimentos heréticos e milenaristas o que resultou do fnal do feudalismo foram as enfermidades a guerra a fome e a morte os quatro cavaleiros do Apocalipse tal como estão representados na famosa gravura de Albrecht Dürer verdadeiros presságios da nova era capitalista No entanto as tentativas do proletariado medieval de colocar o mundo de cabeça para baixo devem ser levadas em conta ape sar de sua derrota conseguiram pôr em crise o sistema feudal e em sua época foram genuinamente revolucionários já que 47 46 Camponeses preparando a terra para semear O acesso à terra era a base do poder dos servos Miniatura em The Luttrell Psalter entre 1325 e 1340 não poderiam ter triunfado sem uma reconfguração radical da ordem social Hilton 1973 pp 2234 Realizar uma leitura da transição a partir do ponto de vista da luta antifeudal na Idade Média nos ajuda também a reconstruir as dinâmicas sociais que subjaziam no fundo dos cercamentos ingleses e da conquista da América nos ajudam sobretudo a desenterrar algumas das razões pelas quais nos séculos XVI e XVII o exter mínio das bruxas e a extensão do controle estatal a qualquer aspecto da reprodução se converteram nas pedras angulares da acumulação primitiva A SERVIDÃO COMO RELAÇÃO DE CLASSE Embora as lutas antifeudais da Idade Média lancem um pouco de luz sobre o desenvolvimento das relações capitalistas seu signifcado político permanece oculto a menos que as enqua dremos no contexto mais amplo da história da servidão isto é da relação de classe dominante na sociedade feudal e até o século XIV foco da luta antifeudal A servidão se desenvolveu na Europa entre os séculos V e VII em resposta ao desmoronamento do sistema escravagista sobre o qual se havia edifcado a economia da Roma Imperial Foi o resultado de dois fenômenos relacionados entre si Por volta do século IV nos territórios romanos e nos novos Estados germânicos os senhores de terra se viram obrigados a conceder aos escravos o direito a possuir uma parcela de terra e uma fa mília própria com a fnalidade de conter assim suas rebeliões e evitar sua fuga para o mato onde comunidades autogover nadas começavam a organizarse às margens do Império7 Ao 7 O melhor exemplo deste tipo de comunidade foram os bagaudae ou bacau dae que ocuparam a Gália por volta do ano 300 Dockes 1982 p 87 Eram campo neses e escravos libertos que exasperados pelas penúrias que haviam sofrido devido às disputas entre os aspirantes ao trono romano perambulavam sem rumo armados com ferramentas de cultivo e cavalos roubados em bandos errantes daí seu nome bando de combatentes RandersPehrson 1983 p 26 Os citadinos se uniam a eles e formavam comunidades autogovernadas nas quais cunhavam moedas com a palavra Esperança elegiam líderes e administravam a justiça Derrotados no campo aberto por Maximiliano correligionário do imperador Diocleciano lançaramse na guerra de guerrilhas para reaparecerem com força no século V quando se converteram em alvo de reiteradas ações militares No ano de 407 foram os protagonistas de uma feroz insurreição O impe rador Constantino os derrotou em batalha na Armórica Bretanha Ibidem p 124 Os escravos rebeldes e camponeses haviam criado uma organização estatal autônoma expulsando os oficiais romanos expropriando os proprietários reduzindo a escravos quem possuía escravos e organizando um sistema judicial e um exército Dockes 1982 p 87 Apesar das numerosas tentativas de reprimilos os bagaudae nunca foram com pletamente derrotados Os imperadores romanos tiveram que recrutar tribos de invasores bárbaros para dominálos Constantino retirou os visigodos da Espanha e fez generosas doações de terra a eles na Gália esperando que pusessem sob controle os bagaudae Até mesmo os hunos foram recrutados para perseguilos RandersPehrson 1983 p 189 Porém novamente encontramos os bagaudae lutando com os visigodos e os alanos contra o avanço de Átila 49 48 mesmo tempo os senhores de terra começaram a subjugar os camponeses livres que arruinados pela expansão do trabalho escravo e depois pelas invasões germânicas buscaram a proteção dos senhores ainda que a custo de sua independência Assim uma vez que a escravidão nunca foi completamente abolida desenvolveuse uma nova relação de classe que homo geneizou as condições dos antigos escravos e dos trabalhadores agrícolas livres Dockes 1982 p 151 relegando todo o cam pesinato a uma relação de subordinação Deste modo durante três séculos do século IX ao XI camponês rusticus villanus seria sinônimo de servo servus Pirenne 1956 p 63 Enquanto relação de trabalho e estatuto jurídico a servidão era uma carga pesada Os servos estavam atados aos senhores de terra suas pessoas e posses eram propriedades de seus senhores e suas vidas estavam reguladas em todos os aspectos pela lei do feudo Entretanto a servidão redefniu a relação de classe em termos mais favoráveis para os trabalhadores A servidão marcou o fm do trabalho com grilhões e da vida no ergástulo8 e uma diminuição dos castigos atrozes as coleiras de ferro as queima duras as crucifcações de que a escravidão havia dependido Nos feudos os servos estavam submetidos à lei do senhor porém suas transgressões eram julgadas a partir de acordos consuetudi nários de usos e costumes e com o tempo até mesmo por um sistema de júri constituído por seus pares Do ponto de vista das mudanças introduzidas na relação senhorservo o aspecto mais importante da servidão foi a con cessão aos servos do acesso direto aos meios de sua reprodução Em troca do trabalho que estavam obrigados a realizar na terra 8 Os ergástulos eram as vivendas dos escravos nas vilas romanas Tratavase de prisões subterrâneas onde os escravos dormiam acorrentados as janelas eram tão altas de acordo com a descrição de um senhor de terras da época que os escravos não podiam alcançálas Dockes 1982 p 69 Era possível encontrálas quase em qualquer parte nas regiões conquistadas pelos romanos onde os escravos superavam de forma ampla numericamente os homens livres Ibidem p 208 O termo ergastolo ainda é utilizado na justiça penal italiana com o significado de prisão perpétua do senhor a demesne os servos recebiam uma parcela de terra mansus ou hide9 que podiam utilizar para manterse e deixar a seus flhos como uma verdadeira herança simplesmente pagan do uma dívida de sucessão Boissonnade 1927 p 1934 Como assinala Pierre Dockes em Medieval Slavery and Liberation 1982 Escravidão medieval e libertação este acordo aumentou a autonomia dos servos e melhorou suas condições de vida já que agora podiam dedicar mais tempo à sua reprodução e negociar o alcance de suas obrigações em vez de serem tratados como bens móveis sujeitos a uma autoridade ilimitada O que é mais importante por terem o uso e a posse efetiva de uma parcela de terra os servos sempre dispunham de recursos inclusive no ponto máximo de seus enfrentamentos com os senhores não era fácil forçálos a obedecer pela ameaça de passar fome É verdade que o senhor podia expulsar da terra os servos rebeldes mas isso raramente ocorria dadas as difculdades para recrutar novos trabalhadores em uma economia bastante fechada e devido à natureza coletiva das lutas camponesas É por isso que no feudo como apontou Marx a exploração do trabalho sempre dependia do uso direto da força10 A experiência de autonomia adquirida pelos camponeses a partir do acesso à terra teve também um potencial político e ideológico Com o tempo os servos começaram a sentir como própria a terra que ocupavam e a considerar intoleráveis as restrições de liberdade que a aristocracia lhes impunha A terra é de quem a trabalha a mesma demanda que ressoou ao longo do século XX das revoluções mexicana e russa até as 9 Demesne mansus e hide eram termos usados no direito medieval inglês NTE 10 Marx referese a esta questão no tomo III de O capital quando compara a economia da servidão às economias escravista e capitalista O grau no qual o trabalhador servo autossuficiente pode ganhar aqui um excedente além de seus meios de subsistên cia imprescindíveis depende se outras circunstâncias permanecem constantes da proporção em que se divide seu tempo de trabalho em tempo de trabalho para si mesmo e em tempo de prestação pessoal servil para o senhor feudal Nestas condições o ex cedente de trabalho realizado pelos servos só pode ser subtraído mediante uma coerção extraeconômica seja qual for a forma que esta assuma Marx 1909 t III pp 9178 51 50 lutas de nossos dias contra a privatização da terra é um grito de batalha com o qual os servos medievais certamente se iden tifcariam No entanto a força dos servos provinha do fato de que o acesso à terra era para eles uma realidade Com o uso da terra também apareceu o uso dos espa ços comunais11 pradarias bosques lagos pastos que proporcionavam recursos imprescindíveis para a economia camponesa lenha para combustível madeira para construção tanques de peixes terras de pastoreio ao mesmo tempo que fo mentavam a coesão e a cooperação comunitárias Birrell 1987 p 23 No norte da Itália o controle sobre estes recursos serviu de base para o desenvolvimento de administrações autônomas comunais Hilton 1973 p 76 Os espaços comunais eram tão importantes na economia política e nas lutas da população rural medieval que sua memória ainda aviva nossa imaginação projetando a visão de um mundo em que os bens podem ser compartilhados e a solidariedade em vez do autoengrandeci mento pode ser o fundamento das relações sociais12 A comunidade servil medieval não alcançou esses objetivos e não deve ser idealizada como um exemplo de comunalismo Na verdade seu exemplo nos recorda que nem o comunalis mo nem o localismo podem garantir relações igualitárias a menos que a comunidade controle seus meios de subsistência e todos seus membros tenham igual acesso a eles Não era o caso dos servos e dos feudos Apesar de terem prevalecido formas 11 A expressão inglesa commons adquiriu com seu uso a condição de substantivo Referese ao comum ou ao tido em comum quase sempre com uma conotação espacial Decidimos traduzilo quando corresponda como terras comunais ou o comum Vários autores contribuíram com a discussão acerca da permanência da acumulação primitiva em termos de enclosure cercamento dos commons Entre eles cabe mencionar além de Silvia Federici George Caffentzis Peter Linebaugh Massimo de Angelis Nick DyerWitheford o coletivo Midnight Notes e os que contribuem com a revista The Commoner NTE 12 Para uma discussão sobre a importância dos bens e direitos comuns na Inglaterra ver Joan Thrisk 1964 Jean Birrell 1987 e J M Neeson 1993 Os movi mentos ecologistas e ecofeministas deram ao comum um novo sentido político Para uma perspectiva ecofeminista da importância do comum na economia da vida das mulheres ver Vandana Shiva 1989 coletivas de trabalho e contratos coletivos com os senhores feudais e apesar do caráter local da economia campesina a aldeia medieval não era uma comunidade de iguais Tal como se deduz de uma vasta documentação proveniente de todos os países da Europa Ocidental existiam muitas diferenças sociais entre os camponeses livres e os camponeses com um estatuto servil entre camponeses ricos e pobres entre aqueles que tinham assegurada posse da terra e os trabalhadores semterra que trabalhavam por um salário na demesne do senhor assim como também entre mulheres e homens13 Geralmente a terra era entregue aos homens e transmitida pela linhagem masculina embora tenha havido muitos casos de mulheres que a herdavam e administravam em seu nome14 As mulheres também foram excluídas dos cargos para os quais se designavam camponeses mais abastados e para todos os efeitos tinham um status de segunda classe Bennett1988 pp 1829 Shahar 1983 Talvez seja este o motivo pelo qual seus nomes raramente são mencionados nas crônicas dos feudos com exceção dos arquivos das cortes nos quais se registravam infrações dos servos No entanto as servas eram menos depen dentes de seus parentes de sexo masculino se diferenciavam menos deles física social e psicologicamente e estavam menos subordinadas a suas necessidades do que logo estariam as mu lheres livres na sociedade capitalista 13 Para uma discussão sobre a estratificação do campesinato europeu ver R Hil ton 1985 pp 1167 14151 e J Z Titow 1969 pp 569 É de especial importância a distinção entre liberdade pessoal e liberdade de posse A primeira significava que um camponês não era um servo ainda que ele ou ela tivesse a obrigação de fornecer serviços laborais A última queria dizer que um camponês tinha uma terra que não estava asso ciada a obrigações servis Na prática ambas tendiam a coincidir isso começou a mudar entretanto quando os camponeses livres passaram a adquirir terras que acarretavam encargos servis a fim de expandir suas propriedades Assim encontramos camponeses livres liberi em posse de terra vilã e encontramos vilões villani nativi em posse vitalí cia de terras embora ambos os casos sejam raros e estivessem mal considerados Titow 1969 pp 567 14 O exame de testamentos de Kibworth Inglaterra no século xv realizado por Barbara Hanawalt mostra que em 41 dos testamentos os homens preferiram filhos homens adultos enquanto em 29 dos casos escolheram somente a mulher ou a mulher e um filho homem Hanawalt 1986b p 155 53 52 A dependência das mulheres em relação aos homens na comunidade servil estava limitada pelo fato de que sobre a au toridade de seus maridos e de seus pais prevalecia a autoridade dos senhores que se declaravam em posse das pessoas e da pro priedade dos servos e tentavam controlar cada aspecto de suas vidas desde o trabalho até o casamento e a conduta sexual Era o senhor que mandava no trabalho e nas relações sociais das mulheres e decidia por exemplo se uma viúva deveria se casar novamente e quem deveria ser seu esposo Em algumas regiões reivindicavam inclusive o ius primae noctis o direito de deitarse com a esposa do servo na noite de núpcias A autoridade dos servos homens sobre suas parentas também estava limitada pelo fato de que a terra era entregue geralmente à unidade familiar e as mulheres não somente trabalhavam nela mas também podiam dispor dos produtos de seu trabalho e não precisavam depender de seus maridos para se manter A participação da esposa na posse da terra era tão aceita na Inglaterra que quando um casal aldeão se casava era comum que o homem fosse devolver a terra ao senhor retomandoa tanto em seu nome quanto no de sua esposa Hanawalt 1986b p 15515 Além disso dado que o trabalho no feudo estava orga nizado com base na subsistência a divisão sexual do trabalho era menos pronunciada e exigente que nos estabelecimen tos agrícolas capitalistas Na aldeia feudal não existia uma separação social entre a produção de bens e a reprodução da força de trabalho todo o trabalho contribuía para o sustento familiar As mulheres trabalhavam nos campos além de criar os flhos cozinhar lavar far e manter a horta suas atividades 15 Hanawalt vê a relação matrimonial entre camponeses como uma sociedade As transações de terra nas cortes feudais indicam uma forte prática de responsabilidade e tomada de decisões de ambos Marido e mulher também aparecem comprando e vendendo terrenos para eles ou para seus filhos Hanawalt 1986b p 16 Sobre a contribuição das mulheres ao trabalho agrícola e ao controle do excedente de produtos alimentícios ver Shahar 1983 pp 23942 E sobre a contribuição extralegal das mu lheres em seus lares B Hanawalt 1986b p 12 Na Inglaterra o espigamento ilegal era a forma mais comum para uma mulher obter mais grãos para sua família Ibidem domésticas não eram desvalorizadas e não supunham relações sociais diferentes das dos homens tal como ocorreria em breve na economia monetária quando o trabalho doméstico deixou de ser visto como um verdadeiro trabalho Se também levarmos em consideração que na sociedade medieval as relações coletivas prevaleciam sobre as familiares e que a maioria das tarefas realizadas pelas servas lavar far fazer a colheita e cuidar dos animais nos campos comunais era realizada em cooperação com outras mulheres nos damos conta de que a divisão sexual do trabalho longe de ser uma fon te de isolamento constituía uma fonte de poder e de proteção para as mulheres Era a base de uma intensa sociabilidade e so lidariedade feminina que permitia às mulheres enfrentar os ho mens embora a Igreja pregasse pela submissão e a Lei Canônica santifcasse o direito do marido a bater em sua esposa No entanto a posição das mulheres nos feudos não pode ser tratada como se fosse uma realidade estática16 O poder das mu lheres e suas relações com os homens estavam determinados a todo momento pelas lutas de suas comunidades contra os senhores feudais e pelas mudanças que essas lutas produziam nas relações entre senhores e servos 16 Esta é a limitação de alguns estudos em outros sentidos excelentes produzidos em anos recentes sobre as mulheres na Idade Média por parte de uma nova geração de historiadoras feministas Compreensivelmente a dificuldade de apresentar uma visão sintética de um campo cujos contornos empíricos ainda estão sendo reconstruí dos levou a certa tendência por análises descritivas focadas nas principais classificações da vida social das mulheres a mãe a trabalhadora mulheres em zonas rurais mulheres nas cidades com frequência abstraídas da mudança social e econômica e da luta social 55 54 A LUTA PELO COMUM Por volta do fm do século XIV a revolta do campesinato contra os senhores feudais havia se tornado constante massiva e frequentemente armada No entanto a força organizativa que os camponeses demonstraram nesse período foi resultado de um longo confito que de um modo mais ou menos manifesto atravessou toda a Idade Média Contrariamente à descrição da sociedade feudal como um mundo estático no qual cada estamento aceitava o lugar que lhe era designado na ordem social descrição que costumamos en contrar nos livros escolares o retrato que emerge do estudo sobre o feudo é na verdade de uma luta de classes incansável Como indicam os arquivos das cortes senhoriais inglesas a aldeia medieval era o cenário de uma luta cotidiana Hilton 1966 p 154 Hilton 1985 pp 1589 Em alguns casos alcança vamse momentos de grande tensão como quando os aldeões matavam o administrador ou atacavam o castelo de seu senhor Com mais frequência entretanto consistia em um permanente litígio pelo qual os servos tratavam de limitar os abusos dos senhores fxar seus fardos e reduzir os muitos tributos que lhes deviam em troca do uso da terra Bennett 1967 Coulton 1955 pp 3591 Hanawalt 1986a pp 325 O objetivo principal dos servos era preservar seu excedente de trabalho e seus produtos ao mesmo tempo que ampliavam a esfera de direitos econômicos e jurídicos Esses dois aspectos da luta servil estavam estreitamente ligados já que muitas obrigações decorriam do estatuto legal dos servos Assim na Inglaterra do século XIII tanto nos feudos laicos quanto nos religiosos os camponeses homens eram frequentemente multados por declarar que não eram servos mas homens livres um desafo que podia acabar num desagradável litígio seguido inclusive por apelação à corte real Hanawalt 1986a p 31 Os camponeses também eram multados por se recusarem a assar seu pão no forno dos senhores ou a moer seus grãos ou azeitonas em seus moinhos o que lhes permitia evitar os one rosos impostos que lhes impunham pelo uso destas instalações Bennett 1967 pp 1301 Dockes 1982 pp 1769 No entanto a questão mais importante da luta dos servos se tratava do tra balho que em certos dias da semana eles deviam executar nas terras dos senhores Esses serviços laborais eram as cargas que afetavam mais diretamente a vida dos servos e ao longo do século XIII foram o tema central na luta por liberdade17 A atitude dos servos ante a corveia outra das denomina ções dos serviços laborais se faz visível por meio das anotações nos livros das cortes senhoriais em que se registravam os castigos impostos aos arrendatários Em meados do século XIII há provas de uma deserção massiva dos serviços laborais Hilton 1985 pp 1301 Os arrendatários não iam nem envia vam seus flhos para trabalhar na terra dos senhores quando eram convocados para a colheita18 ou iam tarde demais para os campos de forma que a colheita estragava ou trabalhavam de má vontade demorandose em descansos mantendo em geral uma atitude insubordinada Daqui a necessidade dos senhores em exercer uma vigilância constante e estreita como demons tra a seguinte recomendação 17 Como escreve J Z Titow no caso dos camponeses ingleses sob regime de ser vidão Não é difícil ver por que o aspecto pessoal da vilanagem seria eclipsado na mente dos camponeses pelo problema dos serviços laborais As incapacidades que surgem do status submisso teriam lugar somente de forma esporádica Não tanto quanto os serviços laborais em particular o trabalho semanal que obrigava um homem a trabalhar para seu senhor tantos dias da semana todas as semanas além de prestar outros serviços ocasionais Titow 1969 p 59 18 Se tomarmos as primeiras páginas dos registros de Abbots Langley multavamse os homens por não irem à colheita ou por não irem com uma quantidade suficiente de homens chegavam tarde e quando chegavam faziam mal seu trabalho ou com preguiça Às vezes não apenas um servo mas um grupo inteiro faltava e deixava os cultivos do senhor sem serem colhidos Outros chegavam a ir mas se mostravam muito antipáticos Bennett 1967 p 112 57 56 Deixem que o administrador e o assistente estejam o tempo todo com os lavradores para que se assegurem de que estes façam bem e conscientemente seu trabalho e que no fnal do dia vejam quanto fzeram E dado que costumeiramente os servos se descuidam de seu trabalho é necessário que sejam vigiados com frequência e o administrador deve supervisionálos bem de perto para que trabalhem bem e se não fzerem de forma adequada seu trabalho que os repreenda Bennett 1967 p 113 Uma situação similar é ilustrada em Piers the Plowman c 13621370 Pedro o lavrador o poema alegórico de William Langland em que numa cena os peões que haviam estado ocupados durante a manhã passam a tarde sentados e cantan do e em outra se fala de folgazões que na época da colheita se reúnem em massa sem buscar nada para fazer além de beber e dormir Coulton 1955 p 87 A obrigação de prestar serviços militares em tempos de guerra também era objeto de forte resistência Tal como re lata H S Bennett nas aldeias inglesas sempre era necessário recorrer à força para o recrutamento e os comandantes me dievais raramente conseguiam reter seus homens na guerra pois os alistados depois de assegurarem seu pagamento desertavam assim que aparecesse a primeira oportunidade Exemplo disso são os registros de pagamento da campanha escocesa do ano 1300 que indicam que enquanto em junho havia sido ordenado o alistamento de 16 mil recrutas na metade de julho só conseguiram reunir 76 mil e essa foi a crista da onda em agosto restaram pouco mais de 3 mil Como consequência o rei dependia cada vez mais de criminosos indultados e foragidos para reforçar seu exército Bennett 1967 pp 1235 Outra fonte de confito vinha do uso das terras não cultiva das incluindo os bosques os lagos e as montanhas que os servos consideravam propriedade coletiva Podemos ir aos bosques declaravam os servos numa crônica inglesa de meados do século XII e tomar o que quisermos pescar peixes do tanque e caçar nos bosques faremos o que for nossa vontade nos bosques nas águas e nas pradarias Hilton 1973 p 71 Ainda assim as lutas mais duras foram aquelas contra os impostos e encargos que surgiam do poder jurisdicional da nobreza Elas incluíam a mãomorta um imposto que o senhor angariava quando um servo morria a mercheta mu lierum um imposto sobre o casamento que aumentava quan do um servo se casava com alguém de outro feudo o heriot um imposto sobre herança que era pago pelo herdeiro de um servo falecido pelo direito de obter acesso à sua propriedade que geralmente consistia no melhor animal do falecido e o pior de todos a talha uma quantia em dinheiro decidida arbitrariamente que os senhores podiam exigir à vontade Finalmente embora não menos significativo o dízimo era um décimo do ingresso do camponês que ia para o clero geralmente recolhido pelos senhores em nome deles Esses impostos contra a natureza e a liberdade eram junto com o serviço laboral os impostos feudais mais odiados pois como não eram compensados com nenhuma adjudicação de terra ou outros benefícios revelavam a arbitrariedade do poder feudal Em consequência eram energicamente rechaçados Um caso típico foi a atitude dos servos dos monges de Dunstable que em 1299 declararam que preferiam ir ao inferno a serem derrotados pela talha e depois de muita controvérsia compraram sua liberdade Bennett 1967 p 139 De maneira similar em 1280 os ser vos de Hedon uma aldeia de Yorkshire deixaram claro que se a talha não fosse abolida preferiam ir viver nas cidades vizinhas Revensered e Hull que dispõem de bons portos crescendo diariamente e não têm talha ibidem p 141 Não 59 58 eram ameaças vãs A fuga para cidades ou vilarejos19 era um elemento permanente da luta dos servos de tal maneira que em alguns feudos ingleses se dizia uma vez ou outra que ha via homens fugitivos que viviam nas cidades vizinhas e apesar de que se dessem ordens para que fossem trazidos de volta o vilarejo continuava dandolhes refúgio ibidem pp 2956 A estas formas de enfrentamento aberto devemos acrescen tar as múltiplas e invisíveis formas de resistência pelas quais os camponeses subjugados se tornaram famosos em todas as épocas e lugares má vontade dissimulação falsa docilidade ignorância fngida deserção furtos contrabando tráfco de animais Scott 1989 p 5 Essas formas cotidianas de re sistência tenazmente continuadas durante anos sem as quais não é possível qualquer descrição adequada das relações de classe eram abundantes na aldeia medieval Isso pode explicar a meticulosidade com que as cargas ser vis eram especifcadas nos registros dos feudos Por exemplo com frequência as crônicas feudais não dizem simplesmente que um homem deve arar semear e rastelar um acre da terra do senhor Dizem que deve lavrálo com tantos bois quanto houver em seu arado rastelálo com seu próprio cavalo e sacos Os serviços também eram registrados nos mínimos detalhes Devemos recordar os camponeses de Elton que admitiram que eram obrigados a empilhar o feno do senhor em seu campo e também em seu estábulo mas sustentavam que o costume não os obrigava a carregálos em carros para serem levados de um lugar a outro Homans 1960 p 272 Em alguns lugares da Alemanha onde as obrigações incluíam doações anuais de ovos e aves domésticas foram 19 A distinção entre cidade e vilarejo nem sempre é clara Para nossos propósitos neste trabalho cidade é um centro povoado com carta régia sede episcopal e mercado enquanto vilarejo é um centro povoado geralmente menor que a cidade com um mercado permanente designados exames de saúde para evitar que os servos entregas sem aos senhores os piores frangos A galinha é colocada então em frente à cerca ou portão se quando é assustada tem força sufciente para voar ou se movimentar rapidamente o administrador deve aceitála pois goza de boa saúde De novo um flhote de ganso deve ser aceito se está maduro o sufciente para arrancar pasto sem perder o equilíbrio e cair sentado vergonhosamente Coulton 1955 pp 745 Regulações tão minuciosas dão testemunho da difculdade de fazerse cumprir o contrato social medieval e a variedade de campos de batalha disponíveis para uma aldeia ou um arrendatário combativos Os direitos e obrigações dos servos estavam regulados por costumes mas sua interpretação tam bém era objeto de muitas disputas A invenção de tradições era uma prática comum na confrontação entre senhores feudais e camponeses já que ambos tratavam de redefnilas ou esque cêlas até que chegou um momento no fnal do século XIII em que os senhores as estabeleceram de forma escrita 61 60 LIBERDADE E DIVISÃO SOCIAL Em termos políticos a primeira consequência das lutas servis foi a concessão de privilégios e cartas de foral que fxavam as cargas e asseguravam um elemento de autonomia na adminis tração da comunidade aldeã garantindo em certos momentos para muitas aldeias particularmente no norte da Itália e na França verdadeiras formas de autogoverno local Estes forais es tipulavam as multas que as cortes feudais deviam impor e esta beleciam regras para os procedimentos judiciais eliminando ou reduzindo a possibilidade de prisões arbitrárias e outros abusos Hilton 1973 p 75 Também aliviavam a obrigação dos servos de alistaremse como soldados e aboliam ou fxavam a talha Com frequência outorgavam a liberdade de ter um posto isto é de vender bens no mercado local e menos frequentemente o direito de alienar a terra Entre 1177 e 1350 somente em Lorena foram concedidos 280 forais ibidem p 83 No entanto a resolução mais importante do confito entre se nhores e servos foi a substituição dos serviços laborais por um pa gamento em dinheiro arrendamentos em dinheiro impostos em dinheiro que colocava a relação feudal sobre uma base mais con tratual Com esse desenvolvimento de importância fundamental a servidão praticamente acabou mas assim como acontece com muitas vitórias dos trabalhadores que apenas satisfazem par cialmente as demandas originais a substituição também cooptou os objetivos da luta funcionou como um meio de divisão social e contribuiu para a desintegração da aldeia feudal Para os camponeses abastados que por possuir grandes extensões de terra podiam ganhar dinheiro sufciente para por exemplo comprar seu sangue e empregar outros trabalhadores a substituição deve ter sido um grande passo no caminho até a in dependência econômica e pessoal na mesma medida em que os senhores diminuíam seu controle sobre os arrendatários quando eles já não dependiam diretamente de seu trabalho Entretanto os camponeses mais pobres que possuíam somente uns poucos acres de terra apenas o sufciente para a sua sobrevivência per deram até o pouco que tinham Obrigados a pagar suas obrigações em dinheiro contraíram dívidas crônicas pegando emprestado da conta de colheitas futuras um processo que terminou fazendo com que muitos perdessem suas terras Em consequência no fnal do século XIII quando as substituições se difundiram por toda a Europa Ocidental as divisões sociais nas áreas rurais se aprofundaram e parte do campesinato sofreu um processo de proletarização Como escreve Bronislaw Geremek 1994 p 56 Os documentos do século XIII contêm grandes quantidades de informação sobre os camponeses semterra que a duras penas se ajeitam para viver às margens da vida aldeã ocupandose dos rebanhos Encontramse crescentes quantidades de jardineiros camponeses semterra ou quase semterra que ganhavam a vida oferecendo seus serviços No sul da França os brassiers viviam inteiramente da venda da força de seus braços bras oferecendose a camponeses mais ricos ou à aristocracia proprietária Desde o começo do século XIV os registros de impostos mostram um aumento marcante do número de camponeses pobres que aparecem nesses documentos como indigentes pobres ou até mendigos20 A substituição por dinheiroaluguel teve outras duas consequências negativas Primeiro tornou mais difícil para os produtores medirem sua exploração na medida em que os 20 O seguinte trecho é um retrato estatístico da pobreza rural em Picardy no sé culo XIII indigentes e mendigos representavam 13 proprietários de pequenas parcelas de terra economicamente tão instáveis que uma má colheita representava uma ameaça à sua sobrevivência eram 33 camponeses com mais terra porém sem animais de tra balho 36 camponeses ricos 19 Geremek 1994 p 57 Na Inglaterra em 1280 os camponeses com menos de três acres de terra insuficientes para alimentar uma família representavam 46 do campesinato ibidem 63 62 serviços laborais eram substituídos por pagamentos em dinhei ro os camponeses deixavam de diferenciar entre o trabalho que faziam para si mesmos e aquele que faziam para os senhores A substituição também possibilitou que os arrendatários agora livres empregassem e explorassem outros trabalhadores de tal maneira que em um desenvolvimento posterior promoveu o crescimento independente da propriedade camponesa trans formando os antigos possuidores camponeses em arrendatá rios capitalistas Marx 1909 t III p 924 e segs A monetização da vida econômica não benefciou portanto a todos contrariamente do que é afrmado pelos partidários da economia de mercado que lhe dão as boasvindas como se tivesse sido a criação de um novo bem comum que substitui a sujeição à terra e que introduz na vida social critérios de objeti vidade racionalidade e inclusive de liberdade pessoal Simmel 1978 Com a difusão das relações monetárias os valores certa mente mudaram mesmo dentro do clero que passou a repensar a doutrina aristotélica da esterilidade do dinheiro Kaye 1998 e não por acaso a rever sua visão do caráter redentor da caridade aos pobres Porém seus efeitos foram destrutivos e excludentes O dinheiro e o mercado começaram a dividir o campesinato ao transformar as diferenças de rendimentos em diferenças de clas se e ao produzir uma massa de pobres que só conseguiam sobre viver graças a doações periódicas Geremek 1994 pp 5662 O ataque sistemático a que os judeus foram submetidos a partir do século XII e a constante deterioração de seu estatuto legal e social nesse mesmo período também devem ser atribuídos à crescente infuência do dinheiro De fato existe uma correlação reveladora entre por um lado o deslocamento de judeus por concorrentes cristãos como fnanciadores de reis de papas e do alto clero e por outro as novas regras de discriminação por exemplo o uso de roupa distintiva que foram adotadas pelo clero contra eles assim como sua expulsão da Inglaterra e da França Degradados pela Igreja diferenciados pela população cristã e forçados a confnar seus empréstimos ao nível da aldeia uma das poucas ocupações que podiam exercer os judeus se transformaram em alvo fácil para os camponeses endividados que descarregavam neles seu enfrentamento contra os ricos Barber 1992 p 76 As mulheres em todas as classes também se viram afetadas de um modo muito negativo A crescente comercialização da vida reduziu ainda mais seu acesso à propriedade e à renda Nas cidades comerciais italianas as mulheres perderam o direito a herdar um terço da propriedade de seu marido a tertia Nas áreas rurais foram excluídas da posse da terra especialmente quando eram solteiras ou viúvas Consequentemente no fnal do século XIII encabeçaram o movimento de êxodo do campo sendo as mais numerosas entre os imigrantes rurais nas cidades Hilton 1985 p 212 e no século XV constituíam uma alta porcentagem da população das cidades Aqui a maioria vivia em condições de pobreza fazendo trabalhos mal pagos como servas vendedoras ambulantes comerciantes com frequência multadas por não terem licença fandeiras membros de guildas menores e prostitutas21 No entanto a vida nos centros urbanos entre a parte mais combativa da população medieval davalhes uma nova autonomia social As leis das cidades não libertavam as mulheres poucas podiam arcar com os custos da liberdade citadina como eram chamados os privilégios ligados à vida na cidade Porém na cidade a subordinação das mulheres à tutela masculina era menor pois agora podiam viver sozinhas ou como chefes de família com seus flhos ou podiam formar 21 A seguinte canção das fiandeiras de seda oferece uma imagem gráfica da pobreza em que viviam as trabalhadoras não qualificadas das cidades Geremek 1994 p 65 Sempre fiando lençóis de seda Nunca estaremos mais bem vestidas Porém sempre desnudas e pobres E sempre sofrendo de fome e sede Nos arquivos munici pais franceses as fiandeiras e outras assalariadas eram associadas com as prostitutas possivelmente porque viviam sozinhas e não contavam com uma estrutura familiar Nas cidades as mulheres não sofriam apenas pela pobreza mas também devido à falta de parentes o que as deixava vulneráveis ao abuso Hughes 1975 p 21 Geremek 1994 pp 656 Otis 1985 pp 1820 Hilton 1985 pp 2123 65 64 Mulheres pedreiras construindo o muro de uma cidade século xv Detalhe de uma miniatura de Cristina de Pisano antes das personificações de Retidão Razão e Justiça em seu estudo ajudando outra senhora a construir a Cidade das damas presente no manuscrito conhecido como O livro da rainha que inclui obras de Cristina de Pisano NTP novas comunidades frequentemente compartilhando a moradia com outras mulheres Embora geralmente fossem os membros mais pobres da sociedade urbana com o tempo as mulheres ganharam acesso a muitas ocupações que posteriormente seriam consideradas trabalhos masculinos Nas cidades medievais as mulheres trabalhavam como ferreiras açougueiras padeiras candeleiras chapeleiras cervejeiras cardadeiras de lã e comer ciantes Shahar 1983 pp 189200 King 1991 pp 647 Em Frankfurt havia aproximadamente duzentas ocupações nas quais participavam entre 1300 e 1500 mulheres Williams e Echols 2000 p 53 Na Inglaterra 72 das 85 guildas incluíam mulheres entre seus membros Algumas guildas incluindo a da indústria da seda eram controladas por elas em outras a porcentagem de trabalho feminino era tão alta quanto a dos homens22 No século XIV as mulheres também estavam tornan dose professoras escolares bem como médicas e cirurgiãs e começavam a competir com homens formados em universida des obtendo em certas ocasiões uma alta reputação Dezesseis médicas dentre elas várias mulheres judias especializadas em cirurgia ou terapia ocular foram contratadas no século XVI pela prefeitura de Frankfurt que como outras administrações urbanas oferecia à sua população um sistema público de saúde Médicas assim como parteiras ou sagefemmes predominavam na obstetrícia tanto contratadas por governos urbanos quanto se mantendo por meio da compensação paga por seus pacientes Após a introdução da cesariana no século XIII as obstetras eram as únicas que a praticavam Optiz 1996 pp 3701 À medida que as mulheres ganhavam mais autonomia sua presença na vida social passou a ser mais constante nos sermões dos padres que repreendiam sua indisciplina Casagrande 1978 nos arquivos dos tribunais aonde iam denunciar quem abusava 22 Para uma análise sobre as mulheres nas guildas medievais ver Maryanne Kowaleski e Judith M Bennett 1989 David Herlihy 1995 e Williams e Echols 2000 delas S Cohn 1981 nas ordenações das cidades que regulavam a prostituição Henriques 1966 entre as centenas de não comba tentes que seguiam os exércitos Hacker 1981 e sobretudo nos movimentos populares especialmente nos heréticos Logo veremos o papel que desempenharam nos movimentos heréticos Por ora basta dizer que em resposta à nova inde pendência feminina vemos o começo de uma reação misógina mais evidente nas sátiras dos fabliaux23 em que encontramos os primeiros indícios do que os historiadores defniram como a luta pelas calças 23 Fabliaux é o nome dado a pequenas estórias satíricas e narrativas populares cômicas muitas vezes em versos na literatura francesa da Idade Média NTP 67 66 Procissão de flagelantes durante a Peste Negra seus mais fervorosos seguidores Nicholas 1992 p 155 Essa gente pobre tecelões lavadores entrava para suas fleiras apa rentemente convencidos de que isso lhes daria prata ou ouro e possibilitaria uma reforma social total Volpe 1922 pp 2989 O movimento dos pastoureaux pastores camponeses e traba lhadores urbanos que arrasaram o norte da França por volta de OS MOVIMENTOS MILENARISTAS E HERÉTICOS O crescente proletariado semterra que surgiu destas mudan ças foi o protagonista dos movimentos milenaristas dos sécu los XII e XIII nestes podemos encontrar além de camponeses empobrecidos todos os párias da sociedade feudal prostitu tas padres afastados do sacerdócio trabalhadores urbanos e rurais N Cohn 1970 Os vestígios da breve aparição dos milenaristas na cena histórica são escassos e nos contam uma história de revoltas passageiras e de um campesinato bruta lizado pela pobreza e pela pregação infamada do clero que acompanharam o lançamento das cruzadas A importância de sua rebelião todavia está no fato de ter inaugurado um novo tipo de luta que já se projetava para além dos confns do feu do e que foi impulsionada por aspirações de mudança total Não é por acaso que o surgimento do milenarismo foi acom panhado pela difusão de profecias e de visões apocalípticas que anunciavam o fm do mundo e a iminência do Juízo Final não como visões de um futuro mais ou menos distante a ser esperado mas como acontecimentos iminentes nos quais muitos dos que estavam vivos naquele momento podiam ser participantes ativos Hilton 1973 p 223 O movimento que desencadeou a aparição em Flandres do pseudoBalduíno em 1224 e 1225 constitui um exemplo típico de milenarismo O homem um ermitão dizia ser o popular Balduíno IX que havia sido assassinado em Constantinopla em 1204 Embora não fosse possível provar sua identidade sua promessa de um mundo novo provocou uma guerra civil em que os trabalhadores têxteis famencos se transformaram em 69 68 1251 incendiando e saqueando as casas dos ricos exigindo uma melhoria de sua condição Russell 1972 p 136 Lea 1961 pp 126724 e o movimento dos fagelantes que começou em Úmbria Itália e se espalhou por vários países em 1260 momen to em que de acordo com a profecia do abade Joachim da Flora o mundo estaria fadado a acabar Russell 1972a p 137 com partilhava semelhanças com o movimento do pseudoBalduíno No entanto não foi o movimento milenarista mas a heresia popular a que melhor expressou a busca por uma alternativa concreta às relações feudais por parte do proletariado medieval e sua resistência à crescente economia monetária A heresia e o milenarismo são frequentemente tratados como se fossem a mesma coisa mas embora não seja possível fazer uma distinção precisa é necessário ressaltar que existem diferenças signifcativas entre ambos Os movimentos milenaristas eram espontâneos sem uma estrutura ou programa organizativo Geralmente eram incitados por um acontecimento específco ou por um líder carismático mas assim que eram enfrentados com violência colapsavam Em contraste os movimentos heréticos foram uma tentativa consciente de criar uma sociedade nova As principais seitas hereges tinham um programa social que reinterpretava a tradição religiosa e ao mesmo tempo eram bem organizadas do ponto de vista de sua disseminação da difusão de suas ideias e até mesmo de sua autodefesa Não foi por acaso que apesar da perseguição extrema que sofreram persistiram durante muito tempo e tive ram um papel fundamental na luta antifeudal 24 O movimento dos pastoureaux também foi provocado pelos acontecimentos do Oriente neste caso a captura do rei Luís IX da França pelos muçulmanos no Egito em 1249 Hilton 1973 pp 1002 Um movimento formado por gente pobre e simples se organizou para libertálo mas rapidamente adquiriu um caráter anticlerical Os pastoureaux reapareceram no sul da França na primavera e no verão de 1320 ainda diretamente influenciados pela atmosfera das cruzadas Eles não tiveram a oportu nidade de participar das cruzadas no Oriente em seu lugar utilizaram suas energias para atacar as comunidades judaicas do sudoeste da França Navarra e Aragão muitas vezes com a cumplicidade dos consulados locais antes de serem barrados ou dispersados pelos funcionários reais Barber 1992 pp 1356 Atualmente pouco se sabe sobre as diversas seitas hereges cátaros valdenses os Pobres de Lyon espirituais apostólicos que durante mais de três séculos foresceram entre as classes baixas de Itália França Flandres e Alemanha no que sem dúvida foi o movimento de oposição mais importante da Idade Média Werner 1974 Lambert 1977 Isso se deve funda mentalmente à ferocidade com que foram perseguidas pela Igreja que não poupou esforços para apagar todo rastro de suas doutrinas Foram convocadas cruzadas contra os hereges tal como a dirigida contra os albigenses25 da mesma maneira que se convocaram cruzadas para libertar a Terra Santa dos in féis Os hereges eram queimados aos milhares na fogueira e para erradicar sua presença o papa criou uma das instituições mais perversas jamais conhecidas na história da repressão esta tal a Santa Inquisição Vauchez 1990 pp 1627026 25 A cruzada contra os albigenses cátaros do povoado de Albi no sul da França foi o primeiro ataque em grande escala contra os hereges e a primeira cruzada contra europeus O papa Inocêncio III colocoua em marcha nas regiões de Toulouse e Montpel lier depois de 1209 A partir desse momento a perseguição aos hereges se intensificou de forma dramática Em 1215 por ocasião do quarto Concílio de Latrão Inocêncio III incluiu nos cânones conciliares um conjunto de medidas que condenavam os hereges ao exílio e ao confisco de suas propriedades ao mesmo tempo que os excluía da vida civil Mais tarde em 1224 o imperador Frederico II uniuse à perseguição com o ordenamento Cum ad conservandum que definia a heresia como um crime de lesa maiestatis que devia ser castigado com a morte na fogueira Em 1229 o Concílio de Toulouse estabeleceu que os hereges deveriam ser identificados e castigados Os hereges declarados e seus proteto res deviam ser queimados na fogueira A casa onde um herege era descoberto devia ser destruída e a terra sobre a qual estava construída devia ser confiscada Aqueles que rene gavam suas crenças deviam ser emparedados enquanto aqueles que reincidissem tinham que sofrer o suplício da fogueira Depois entre 1231 e 1233 Gregório IX instituiu um tribunal especial com a função específica de erradicar a heresia a Inquisição Em 1254 o papa Inocêncio IV com o consenso dos principais teólogos da época autorizou o uso da tortura contra os hereges Vauchez 1990 pp 1635 26 André Vauchez atribui o sucesso da Inquisição a seus procedimentos A prisão de suspeitos era planejada em absoluto segredo A princípio a perseguição consistia em incursões contra as reuniões dos hereges organizadas em colaboração com as autoridades públicas Mais adiante quando os valdenses e cátaros já haviam sido forçados à clandestinidade os suspeitos eram chamados a comparecer ante um tribunal sem que lhes fossem ditas as razões pelas quais haviam sido convocados O mesmo sigilo caracterizava o processo de investigação Não eram informadas aos investigados quais eram as acusações contra eles e era permitido manterse o anonimato daqueles que denunciavam Os suspeitos eram liberados se dessem informações sobre seus cúmplices e prometessem manter suas confissões em silêncio Desta forma quando os hereges eram presos nunca podiam saber se alguém de sua congregação havia declarado em seu prejuízo Vauchez 1990 pp 1678 Como destaca Italo Mereu o trabalho da Inquisição romana deixou cicatrizes profundas na história da cultura europeia criando um clima de 71 70 No entanto tal como Charles H Lea entre outros demons trou em sua monumental história da perseguição da heresia apesar das poucas crônicas disponíveis é possível criar uma imagem imponente de suas atividades e credos assim como do papel da resistência herege nas lutas antifeudais Lea 1888 Apesar de ter infuência das religiões orientais que mer cadores e cruzados traziam à Europa a heresia popular era menos um desvio da doutrina ortodoxa do que um movimento de protesto que aspirava a uma democratização radical da vida social27 A heresia era o equivalente à teologia da libertação para o proletariado medieval Selou um marco às demandas populares de renovação espiritual e justiça social desafando em seu apelo a uma verdade superior tanto a Igreja quanto a autoridade secular A heresia denunciou as hierarquias sociais a propriedade privada e a acumulação de riquezas e difundiu entre o povo uma concepção nova e revolucionária da socie dade que pela primeira vez na Idade Média redefnia todos os aspectos da vida cotidiana o trabalho a propriedade a repro dução sexual e a situação das mulheres colocando a questão da emancipação em termos verdadeiramente universais O movimento herético proporcionou também uma estrutura comunitária alternativa de dimensão internacional permitindo aos membros das seitas viverem suas vidas com maior auto nomia ao mesmo tempo que se benefciavam da rede de apoio constituída por contatos escolas e refúgios com os quais podiam contar como ajuda e inspiração nos momentos de necessidade Efetivamente não é exagero dizer que o movimento herético foi a primeira internacional proletária esse era o alcance das intolerância e suspeita institucional que continua corrompendo o sistema legal até nossos dias O legado da Inquisição é uma cultura de suspeita que depende da denúncia anônima e da detenção preventiva e trata os suspeitos como se sua culpabilidade já tivesse sido demonstrada Mereu 1979 27 Lembremos aqui da distinção de Friedrich Engels entre as crenças hereges de camponeses e artesãos associadas à sua oposição à autoridade feudal e aquelas dos burgueses que eram principalmente um protesto contra o clero Engels 1977 p 43 seitas particularmente dos cátaros e dos valdenses e as cone xões que estabeleceram entre si por meio das feiras comerciais das peregrinações e dos permanentes cruzamentos de fronteiras dos refugiados gerados pelas perseguições Camponeses enforcam monge que vendeu indulgências Niklaus Manuel Deutsch 1525 73 72 Na raiz da heresia popular estava a crença de que Deus já não falava por meio do clero devido à sua ganância à sua corrupção e ao seu comportamento escandaloso As duas seitas principais apresentavamse como as igrejas autênticas O desafo dos hereges porém era principalmente político já que desafar a Igreja pressupunha enfrentar ao mesmo tempo o pilar ideológico do poder feudal o principal senhor de terras da Europa e uma das instituições que mais contribuía com a exploração cotidiana do campesinato Até o século XI a Igreja havia se transformado num poder despótico que usava sua pretensa investidura divina para governar com mão de ferro e encher seus cofres com o uso de incontáveis meios de extorsão Vender absolvições indulgên cias e ofícios religiosos chamar os féis à Igreja só para pregar a santidade do dízimo e fazer de todos os sacramentos um mer cado eram práticas comuns que iam desde o papa até o padre da aldeia de forma que a corrupção do clero se tornou notória em todo o mundo cristão As coisas degeneraram a tal ponto que o clero não enterrava os mortos nem batizava ou dava absolvição dos pecados se não recebesse alguma compensação Até mesmo a comunhão se tornou ocasião para negociar e se alguém re sistia a uma demanda injusta o recalcitrante era excomungado e depois precisava pagar pela reconciliação uma soma maior do que a original Lea 1961 p 11 Nesse contexto a propagação das doutrinas heréticas não apenas canalizava o desdém que as pessoas sentiam pelo clero mas também dava a elas confança em suas opiniões e instigava sua resistência à exploração clerical Sob a égide do Novo Testamento os hereges ensinavam que Cristo não possuía propriedades e que se a Igreja queria recuperar seu poder espi ritual deveria desprenderse de todas as suas posses Também ensinavam que os sacramentos não eram válidos quando ministrados por padres pecaminosos e que as formas exterio res de adoração edifícios imagens símbolos deviam ser descartadas porque só o que importava era a crença interior Além disso exortavam as pessoas a não pagarem os dízimos e negavam a existência do Purgatório cuja invenção havia servi do ao clero como fonte de lucro por meio das missas pagas e da venda de indulgências A Igreja por sua vez usava a acusação de heresia para atacar toda forma de insubordinação social e política Em 1377 quando os trabalhadores têxteis de Ypres Flandres se levantaram empunhando armas contra seus empregadores não apenas foram enforcados como rebeldes mas também foram queimados pela Inquisição como hereges N Cohn 1970 p 105 Também há documentos que mostram que algumas tecelãs foram ameaçadas de excomunhão por não terem entregado a tempo o produto de seu trabalho aos mercadores ou por não terem feito adequadamente seu trabalho Volpe 1971 p 31 Em 1234 para castigar os arrendatários que se negavam a pagar os dízimos o bispo de Bremen convocou uma cruzada contra eles como se fossem hereges Lambert 1992 p 98 Entretanto os hereges também eram perseguidos pelas autoridades seculares desde o Imperador até os patrícios urbanos que percebiam que o apelo herético à verdadeira religião tinha implicações sub versivas e questionava os fundamentos de seu poder A heresia constituía tanto uma crítica às hierarquias sociais e à exploração econômica quanto uma denúncia da corrupção clerical Como destaca Gioacchino Volpe a rejeição a todas as formas de autoridade e um forte sentimento anticlerical eram elementos comuns a todas as seitas Muitos hereges comparti lhavam do ideal da pobreza apostólica28 e do desejo de regressar à 28 A politização da pobreza junto com o surgimento de uma economia monetá ria introduziu uma mudança decisiva na atitude da Igreja perante os pobres Até o século XIII a Igreja exaltou a pobreza como um estado de santidade e se dedicou à distribuição de esmolas tratando de convencer os rústicos a aceitarem sua situação e não invejarem os ricos Nos sermões dominicais os padres eram pródigos em histórias como a do pobre Lázaro sentado no céu ao lado de Jesus e vendo seu vizinho rico mas avarento ardendo em chamas A exaltação da sancta paupertas santa pobreza também servia para demar car para os ricos a necessidade da caridade como meio de salvação Com esta tática a 75 74 simples vida comunal que havia caracterizado a Igreja primitiva Alguns como os Pobres de Lyon e a Irmandade do Espírito Livre viviam de esmolas doadas Outros sustentavamse com trabalho manual29 Outros ainda faziam experiências com o comunismo como os primeiros taboritas na Boêmia para quem o estabelecimento da igualdade e a propriedade comunal eram tão importantes quanto a reforma religiosa30 Sobre os Igreja conseguia doações substanciais de terras edifícios e dinheiro supostamente a fim de distribuir entre os necessitados assim tornouse uma das instituições mais ricas da Europa Porém quando o número de pobres aumentou e os hereges começaram a desafiar a ganância e a corrupção da Igreja o clero retirou suas homilias sobre a pobreza e intro duziu muitos matizes A partir do século XIII a Igreja afirmou que somente a pobreza voluntária tinha mérito ante os olhos de Deus como sinal de humildade e renúncia aos bens materiais na prática isso significava que agora apenas seria oferecida ajuda aos pobres que merecessem isto é aos membros empobrecidos da nobreza e não aos que mendigavam nas ruas ou nas portas da cidade Esses últimos eram vistos cada vez mais como suspeitos de vadiagem ou fraude 29 Entre os valdenses se deu uma grande polêmica sobre qual era a forma correta de manterse Ela foi resolvida no Encontro de Bérgamo em 1218 com uma importante ruptura entre as duas vertentes principais do movimento Os valdenses franceses Pobres de Lyon optaram por uma vida baseada na esmola enquanto os da Lombardia decidiram que cada um deveria viver de seu próprio trabalho e formar coletivos de trabalhadores ou cooperativas congregationes laborantium Di Stefano 1950 p 775 Os valdenses lombardos mantiveram seus pertences casas e outras formas de propriedade privada e aceitaram o matrimônio e a vida familiar Little 1978 p 125 30 Holmes 1975 p 202 Hilton 1973 p 124 e N Cohn 1970 pp 2157 Segundo descrição de Engels os taboritas eram a ala democrática revolucionária do movimento nacional de libertação hussita contra a nobreza alemã na Boêmia Sobre isso Engels apenas nos diz que suas demandas refletiam o desejo do campesinato e das classes baixas urbanas de acabar com toda a opressão feudal Engels 1977 p 44n Porém sua história surpreendente é narrada com maiores detalhes em The Inquisition of the Middle Ages de H C Lea 1961 pp 52340 em que lemos que eram camponeses e pessoas pobres que não queriam nobres e senhores entre eles e que tinham tendências republicanas Eram chamados de taboritas porque em 1419 quando os hussitas de Praga foram atacados seguiram viagem até o monte Tabor Ali fundaram uma nova cidade que se tornou o centro tanto da resistência contra a nobreza alemã quanto de experimentos comunistas A história conta que quando chegaram de Praga abriram grandes baús nos quais foi pedido a cada um que guardasse suas posses para que todas as coisas pudessem ser comuns Aparentemente este acordo coletivo não durou muito mas seu espírito perdurou durante algum tempo depois de sua desaparição Demetz 1997 pp 1527 Os taboritas se distinguiam dos utraquistas mais moderados pois dentre seus objetivos estava a independência da Boêmia e a retenção da propriedade que haviam con fiscado Lea 1961 p 530 Ambos coincidiam nos quatro artigos de fé em que se uniam ao movimento hussita frente a inimigos externos i Livre pregação da Palavra de Deus ii Comunhão tanto do vinho quanto do pão iii Abolição do domínio do clero sobre as posses temporais e seu retorno à vida evangélica de Cristo e dos apóstolos e iv Castigo de todas as ofensas à lei divina sem exceção de pessoa ou condição A unidade era muito necessária Para sufocar a revolta dos hussitas em 1421 a Igreja enviou um exército de 150 mil homens contra taboritas e utraquistas Cinco vezes escreve Lea ao longo de 1421 os cruzados invadiram a Boêmia e nas cinco vezes foram derrotados Dois anos mais tarde no Concílio de Siena a Igreja decidiu que se não podia derrotar militarmente os hereges da Boêmia tinha que isolálos e matálos de fome por meio de um bloqueio valdenses um inquisidor relatou também que eles evitam todas as formas de comércio para se esquivarem das mentiras fraudes e blasfêmias e os descreveu caminhando descalços vestidos com roupas de lã sem nada que lhes pertencesse e assim como os apóstolos possuindo tudo comunitariamente Lambert 1992 p 64 O conteúdo social da heresia encontrase entretanto mais bem expresso nas palavras de John Ball o líder intelectual da Revolta Camponesa de 1381 na Inglaterra que denunciou fomos feitos à imagem de Deus mas nos tratam como animais e acrescentou nada estará bem na Inglaterra enquanto houver cavaleiros e servos Dobson 1983 p 37131 Os cátaros a mais infuente das seitas hereges destacamse na história dos movimentos sociais europeus pela sua singular aversão à guerra inclusive às cruzadas pela oposição à pena de morte que provocou o primeiro pronunciamento explícito da Igreja a favor da pena capital32 e pela sua tolerância com outras Mas isso também falhou e as ideias hussitas continuaram sendo difundidas na Alemanha na Hungria e nos territórios eslavos do sul Outro exército de 100 mil homens foi lançado contra eles em 1431 novamente em vão Desta vez os cruzados fugiram do campo de batalha ainda antes que a batalha começasse ao ouvirem o canto de batalha das temidas tropas hussitas ibidem O que finalmente destruiu os taboritas foram as negociações entre a Igreja e a ala moderada dos hussitas Habilmente os diplomatas eclesiásticos aprofundaram a divisão entre os utraquistas e os taboritas Assim quando se empreendeu outra cruzada contra os hussitas os utraquistas se uniram aos barões católicos pagos pelo Vaticano e extermina ram seus irmãos na Batalha de Lipany em 30 de maio de 1434 Nesse dia 13 mil taboritas foram mortos no campo de batalha As mulheres do movimento taborita eram muito ativas assim como todos os movimentos hereges Muitas lutaram na batalha por Praga em 1420 quando 1500 mulheres taboritas cavaram uma trincheira que defenderam com pedras e forquilhas Demetz 1997 31 Estas palavras o chamamento à igualdade social mais comovente da história da língua inglesa de acordo com o historiador R B Dobson foram postas na boca de John Ball para incriminálo e fazêlo parecer um idiota por Jean Froissart um cronista francês contemporâneo severo opositor da Revolta Camponesa na Inglaterra A primeira oração do sermão que segundo se dizia John Ball havia proferido muitas vezes é a seguinte na tradução de Lord Berners século XVI Ah vocês pessoas de bem as coisas não estão bem na Inglaterra não estarão até que tudo seja comum e até que não haja mais servos nem cavaleiros mas estejamos todos unidos e os senhores não sejam mais senhores que nós mesmos Dobson 1983 p 371 32 Por volta de 1210 a Igreja havia estabelecido que a reivindicação da abolição da pena de morte era um erro herege que atribuía aos valdenses e aos cátaros A pres suposição de que os opositores à Igreja eram abolicionistas era tão forte que cada herege que queria se submeter à Igreja tinha que afirmar que o poder secular pode sem cometer o pecado capital praticar juízos de sangue com a condição de que castigue com justiça não por ódio com prudência sem precipitação Mergivern 1997 p 101 Como destaca 77 76 religiões A França meridional seu bastião antes da cruzada albigense era um refúgio seguro para os judeus quando o antissemitismo crescia na Europa aqui uma fusão do pen samento cátaro e do pensamento judaico produziu a Cabala a tradição do misticismo judaico Spencer 1995b p 171 Os cáta ros também repudiavam o matrimônio e a procriação e eram estritamente vegetarianos tanto porque se recusavam a matar animais quanto porque desejavam evitar qualquer comida que como ovos e carnes fosse gerada sexualmente Tal atitude negativa contra a natalidade foi atribuída à in fuência exercida por seitas orientais dualistas sobre os cátaros como os paulicianos uma seita de iconoclastas que repudiava a procriação por considerar que é o ato pelo qual a alma fca presa ao mundo material Erbstosser 1984 pp 134 e sobre tudo os bogomilos que no século X faziam proselitismo entre os camponeses dos Bálcãs Os bogomilos movimento popular nascido entre camponeses cuja miséria física os tornou cons cientes da perversidade das coisas Spencer 1995b p 15 pre gavam que o mundo visível era obra do diabo pois no mundo de Deus os bons seriam os primeiros e se negavam a ter flhos para não trazer novos escravos a esta terra de atribulações tal como defniam a vida em um de seus panfetos Wakefeld e Evans 1991 p 457 A infuência dos bogomilos sobre os cátaros está compro vada33 e é possível que o repúdio ao matrimônio e à procriação J J Mergiven o movimento herege adotou superioridade moral nesta questão e forçou os ortodoxos ironicamente a assumir a defesa de uma prática muito questionável ibidem p 103 33 Entre as provas da influência dos bogomilos sobre os cátaros se encontram dois trabalhos que os cátaros da Europa Ocidental tomaram dos bogomilos The Vision of Isaiah A visão de Isaías e The Secret Supper A ceia secreta citados na resenha de literatura cátara de Wakefield e Evans 1969 pp 44765 Os bogomilos eram para a Igreja oriental o que os cátaros foram para a ocidental Além de seu maniqueísmo e antinatalismo o que mais alarmava as autoridades bizantinas era o anarquismo radical a desobediência civil e o ódio de classe dos bogomilos Como escreveu o presbítero Cosmo em seus sermões contra eles Ensinam sua gente a não obedecer a seus senhores inju riam os ricos odeiam o rei ridicularizam os anciãos condenam os boiardos veem como vis ante os olhos de Deus aqueles que servem ao rei e proíbem os servos de trabalhar para por parte dos cátaros provenha de uma recusa similar a uma vida degradada à mera sobrevivência Vaneigem 1998 p 72 mais do que uma pulsão de morte ou um desprezo pela vida Isso é o que sugere o fato de que o antinatalismo dos cátaros seu patrão A heresia teve uma enorme e longa influência no campesinato dos Bálcãs Os bogomilos pregavam na linguagem do povo e sua mensagem foi compreendida pelo povo sua organização flexível suas soluções atraentes para o problema do mal e seu compromisso com o protesto social tornaram o movimento praticamente indestru tível Browning 1975 pp 1646 A influência dos bogomilos sobre a heresia pode ser rastreada no uso frequente no século XIII da expressão buggery sodomia para conotar primeiro heresia e depois homossexualidade Bullough 1976a p 76 e segs Buggery é uma palavra utilizada em inglês como sinônimo de sodomia e deriva de búlgaro Os bogomilos eram frequentemente associados aos povos da região que hoje é ocupada pela Bulgária NTE John Hus martirizado em Gottlieben sobre o Rio Reno em 1413 Depois de sua morte suas cinzas foram arremessadas ao rio Ver nota de rodapé 30 79 78 não estava associado a uma concepção degradante da mulher e de sua sexualidade como é frequente no caso das flosofas que desprezam a vida e o corpo As mulheres ocupavam um lugar importante nas seitas Quanto à atitude dos cátaros acerca da sexualidade parece que enquanto os perfeitos se abstinham do coito não era esperado dos outros membros a prática da abstinência sexual Alguns desdenhavam da importância que a Igreja designava à castidade argumentando que implicava uma sobrevaloração do corpo Outros hereges atribuíam um valor místico ao ato sexual tratandoo inclusive como um sacramento Christeria e pregando que praticar sexo em vez de absterse era a melhor forma de alcançar um estado de inocên cia Assim ironicamente os hereges eram perseguidos tanto por serem libertinos quanto por serem ascetas extremos As crenças sexuais dos cátaros eram obviamente uma elaboração sofsticada de questões desenvolvidas por meio do encontro com religiões orientais mas a popularidade de que go zaram e a infuência que exerceram sobre outras heresias ressal tam também uma realidade experimental mais ampla arraigada nas condições do matrimônio e da reprodução na Idade Média Sabemos que na sociedade medieval devido à escassa dis ponibilidade de terras e às restrições protecionistas impostas pelas guildas para a entrada nos ofícios tanto para os campo neses quanto para os artesãos não era possível ou desejável ter muitos flhos e com efeito as comunidades de camponeses e artesãos esforçavamse para controlar a quantidade de crianças que nascia entre eles O método mais comumente usado para esta fnalidade era a postergação do matrimônio um aconteci mento que até mesmo entre os cristãos ortodoxos ocorria em idade madura se ocorria sob a regra de se não há terra não há casamento Homans 1960 pp 379 Consequentemente uma grande quantidade de jovens tinha que praticar a abstinên cia sexual ou desafar a proibição eclesiástica relativa ao sexo fora do casamento É possível imaginar que o repúdio herege à procriação deve ter encontrado ressonância entre eles Em outras palavras é concebível que nos códigos sexuais e repro dutivos dos hereges possamos ver realmente resquícios de uma tentativa de controle medieval da natalidade Isso explicaria o motivo pelo qual quando o crescimento populacional se tornou uma preocupação social fundamental durante a profunda crise demográfca e com a escassez de trabalhadores no fnal do século XIV a heresia passou a ser associada aos crimes reprodu tivos especialmente à sodomia ao infanticídio e ao aborto Isso não quer dizer que as doutrinas reprodutivas dos hereges tiveram um impacto demográfco decisivo mas que pelo me nos durante dois séculos na Itália na França e na Alemanha criouse um clima político em que qualquer forma de anticon cepção incluindo a sodomia isto é o sexo anal passou a ser associada à heresia A ameaça que as doutrinas sexuais dos hereges representava para a ortodoxia também deve ser levada em conta no contexto dos esforços realizados pela Igreja para estabelecer um controle sobre o matrimônio e a sexualidade que lhe permitia colocar a todos do imperador até o mais pobre camponês sob seu escrutínio disciplinar 81 80 A POLITIZAÇÃO DA SEXUALIDADE Como assinalou Mary Condren em The Serpent and the Goddess 1989 A serpente e a deusa um estudo sobre a entrada do cris tianismo na Irlanda céltica a tentativa eclesiástica de regular o comportamento sexual tem uma longa história na Europa Desde tempos muito antigos depois que o cristianismo se tor nou a religião estatal no século IV o clero reconheceu o poder que o desejo sexual conferia às mulheres sobre os homens e tentou persistentemente exorcizálo identifcando o sagrado com a prática de evitar as mulheres e o sexo Expulsar as mu lheres de qualquer momento da liturgia e do ministério dos sa cramentos tentar roubar os poderes mágicos das mulheres de dar vida ao adotar trajes femininos e fazer da sexualidade um objeto de vergonha esses foram os meios pelos quais uma cas ta patriarcal tentou quebrar o poder das mulheres e de sua atra ção erótica Neste processo a sexualidade foi investida de um novo signifcado Transformouse num tema de confssão no qual os mais ínfmos detalhes das funções corporais mais ín timas se transformaram em tema de discussão e os diferentes aspectos do sexo foram divididos no pensamento na palavra na intenção nas vontades involuntárias e nos fatos reais do sexo para conformar uma ciência da sexualidade Condren 1989 pp 867 Os penitenciais Paenitentiali manuais que começaram a ser distribuídos a partir do século VII como guias práticos para os confessores são um dos lugares privilegiados para a reconstrução dos cânones sexuais eclesiásticos No primeiro volume da História da sexualidade 1978 Foucault en fatizou o papel que tiveram estes manuais na produção do sexo como discurso e de uma concepção mais polimorfa da sexuali dade no século XVII Mas os penitenciais já exerciam um papel decisivo na produção de um novo discurso sexual na Idade Média Esses trabalhos demonstram que a Igreja tentou impor um verdadeiro catecismo sexual prescrevendo detalhadamen te as posições permitidas durante o ato sexual na verdade só uma era permitida os dias em que se podia fazer sexo com quem era permitido e com quem era proibido Essa supervisão sexual aumentou no século XII quando os concílios de Latrão de 1123 e 1139 lançaram uma nova cruzada contra a prática corrente do casamento e do concubinato34 entre os clérigos e declararam o matrimônio como um sacramento cujos votos não podiam ser dissolvidos por nenhum poder tem poral Nesse momento foram reiteradas também as limitações impostas pelos penitenciais sobre o ato sexual35 Quarenta anos 34 A proibição que a Igreja impunha aos casamentos e concubinatos dos clérigos era motivada mais que por alguma necessidade de restaurar sua reputação pelo desejo de defender sua propriedade que estaria ameaçada por muitas subdivisões e pelo medo de que as esposas dos padres interferissem excessivamente nas questões do clero Mc Namara e Wemple 1988 pp 935 A resolução do segundo Concílio de Latrão reforçou uma outra que já havia sido adotada no século anterior mas que não havia sido colocada em prática devido a uma revolta generalizada contrária a ela O protesto atingiu seu clímax em 1061 com uma rebelião organizada que levou à eleição do bispo de Parma como antipapa sob o título de Honório II e à sua posterior tentativa frustrada de capturar Roma Taylor 1954 p 35 O Concílio de Latrão de 1123 não apenas proibiu os casamen tos no clero mas também declarou nulos os que já existiam impondo uma situação de terror e pobreza às famílias dos padres especialmente a suas esposas e filhos Brundage 1987 pp 214 2167 35 Os cânones reformados do século XII ordenavam aos casados evitar o sexo durante os três períodos da quaresma associados com a Páscoa com o Pentecostes e com Castigo por adultério Amarrados um ao outro os amantes são levados pelas ruas Miniatura de um manuscrito de 1296 Toulouse França 83 82 mais tarde com o terceiro Concílio de Latrão em 1179 a Igreja intensifcou seus ataques contra a sodomia dirigindoos simultaneamente aos homossexuais e ao sexo não procriador Boswell 1981 pp 27786 e pela primeira vez condenou a homossexualidade a incontinência que vai contra a natureza Spencer 1995a p 114 Com a adoção desta legislação repressiva a sexualidade foi completamente politizada Todavia não vemos ainda a obsessão mórbida com que a Igreja Católica abordaria depois as questões sexuais Porém já no século XII podemos ver a Igreja não somente espiando os dormitórios de seu rebanho como também fazendo da sexualidade uma questão de Estado As escolhas sexuais não ortodoxas dos hereges também devem ser vistas portanto como uma postura antiautoritária uma tentativa de arrancar seus corpos das garras do clero Um claro exemplo desta rebelião anticlerical foi o surgimento no século XIII das novas seitas panteístas como os amalricanos e a Irmandade do Espírito Livre que contra os esforços da Igreja para controlar a conduta sexual pregavam que Deus está em todos nós e que portanto é impossível pecar o Natal em qualquer domingo do ano nos dias festivos que antecediam o recebimento da comunhão nas noites de bodas durante o período menstrual da esposa durante a gravi dez durante a amamentação e enquanto faziam penitência Brundage 1987 pp 1989 Estas restrições não eram novas Eram reafirmações da sabedoria eclesiástica expressas em dúzias de penitenciais A novidade era sua incorporação ao corpo da Lei Canônica que foi transformada em um instrumento efetivo para o governo e a disciplina eclesiásticas no século XII Tanto a Igreja como os laicos reconheciam que um requisito legal com pena lidades explícitas teria um estatuto diferente a uma penitência sugerida pelo confessor pessoal de cada um Neste período as relações mais íntimas entre pessoas se converteram em assunto de advogados e criminólogos Brundage 1987 p 578 AS MULHERES E A HERESIA Um dos aspectos mais signifcativos do movimento herético é a elevada posição social que este designou às mulheres Na Igreja como destaca Gioacchino Volpe as mulheres não eram nada mas entre os heréticos eram consideradas como iguais as mulheres tinham os mesmos direitos que os ho mens e desfrutavam de uma vida social e de uma mobilidade perambulando pregando que durante a Idade Média não se encontravam em nenhum outro lugar Volpe 1971 p 20 Koch 1983 p 247 Nas seitas hereges principalmente entre os cátaros e os valdenses as mulheres tinham direito de mi nistrar os sacramentos de pregar de batizar e até mesmo de alcançar ordens sacerdotais Está documentado que Valdo se afastou da ortodoxia porque seu bispo se recusou a permitir que as mulheres pudessem pregar E dos cátaros se diz que adoravam uma fgura feminina a Senhora do Pensamento que infuenciou o modo como Dante concebeu Beatriz Taylor 1954 p 100 Os hereges também permitiam que as mulheres e os homens compartilhassem a mesma moradia mesmo sem estar casados já que não temiam que isso os instigasse a comportamentos promíscuos Com frequência as mulheres e os homens hereges viviam juntos livremente como irmãos e irmãs da mesma forma que nas comunidades ágapes da Igreja primitiva As mulheres também formavam suas próprias co munidades Um caso típico foi o das beguinas mulheres laicas das classes médias urbanas que viviam juntas especialmente na Alemanha e em Flandres e mantinham seu trabalho fora do controle masculino e sem subordinação ao controle monás tico McDonnell 1954 Neel 198936 36 A relação entre as beguinas e a heresia é incerta Enquanto alguns de seus contemporâneos como Jacques de Vitry descrito por Carol Neel como um impor 85 84 Não é de se surpreender que as mulheres estivessem mais presentes na história da heresia que em qualquer outro aspecto da vida medieval Volpe 1971 p 20 De acordo com Gottfried Koch já no século X compunham uma parte importante dos bogomilos No século XI foram mais uma vez as mulheres que deram vida aos movimentos hereges na França e na Itália Nessa ocasião as hereges provinham dos setores mais pobres dos servos e constituíram um verdadeiro movimento de mulhe res que se desenvolveu dentro do marco dos diferentes grupos hereges Koch 1983 pp 2467 As hereges também estão pre sentes nas crônicas da Inquisição sabemos que algumas delas foram queimadas na fogueira outras foram emparedadas para o resto de suas vidas É possível dizer que esta importante presença das mulheres nas seitas hereges foi responsável pela revolução sexual nesses movimentos Ou devemos assumir que o chamado ao amor livre foi uma manobra masculina para ganhar fácil acesso aos favores sexuais das mulheres Estas perguntas não podem ser respondidas facilmente Sabemos entretanto que as mulheres tentavam controlar sua função reprodutiva já que são numerosas as referências ao aborto e ao uso feminino de contraceptivos nos penitenciais De forma signifcativa em vista da futura criminalização dessas práticas durante a caça às bruxas designavamse os métodos contraceptivos como po ções para a esterilidade ou malefcia Noonan 1965 pp 15561 e se pressupunha que eram as mulheres quem os usava Na Alta Idade Média a Igreja ainda via essas práticas com certa indulgência impulsionada pelo reconhecimento de que por razões econômicas as mulheres podiam estabelecer um tante ministro eclesiástico apoiaram a iniciativa como uma alternativa à heresia as beguinas foram finalmente condenadas sob suspeita de heresia pelo Concílio de Viena de 1312 provavelmente pela intolerância do clero contra as mulheres que escapavam do controle masculino As beguinas desapareceram posteriormente forçadas a deixar de existir pela reprovação eclesiástica Neel 1989 pp 3247 329 333 339 limite para suas gestações Assim no Decretum escrito por Burcardo bispo de Worms até 1010 depois da pergunta ritual Fizeste o que algumas mulheres estão acostumadas a fazer quando fornicam e desejam matar suas crias agir com suas malefcia e suas ervas para matar ou cortar o embrião ou se ainda não o tiverem concebido conspirar para que não o concebam era estipulado que as culpadas fzessem penitência durante dez anos mas também se observava que haveria diferença entre a ação de uma pobre mulherzinha motivada pela difculdade de prover a sua própria alimentação e a de uma mulher que busca esconder um crime de fornicação ibidem As coisas no entanto mudaram drasticamente logo que o controle das mulheres sobre a reprodução começou a ser perce bido como uma ameaça à estabilidade econômica e social tal como ocorreu no período subsequente à catástrofe demográfca produzida pela Peste Negra a praga apocalíptica que entre 1347 e 1352 destruiu mais de um terço da população europeia Ziegler 1969 p 230 Mais adiante veremos qual foi o papel deste desastre de mográfco na crise do trabalho da Baixa Idade Média Aqui podemos ressaltar que depois da disseminação da praga os aspectos sexuais da heresia adquiriram maior importância em sua perseguição Estes foram grotescamente distorcidos segundo formas que anteciparam as posteriores representações dos sabás de bruxas Em meados do século XIV não bastava aos inquisidores acusar os hereges de sodomia e de licenciosidade sexual em seus informes Agora eles também os acusavam de cultuar animais de praticar o infame bacium sub cauda beijo sob o rabo e de regozijaremse em rituais orgiásticos voos no turnos e sacrifícios de crianças Russell 1972 Os inquisidores relatavam também a existência de uma seita de adoradores do 87 86 diabo conhecidos como luciferianos Coincidindo com este processo que marcou a transição da perseguição à heresia para a caça às bruxas a fgura do herege se tornou cada vez mais a de uma mulher de forma que no início do século XV a bruxa se transformou no principal alvo da perseguição aos hereges No entanto o movimento herege não parou por aqui Seu epílogo se deu em 1533 com a tentativa dos anabatistas de estabelecer uma Nova Jerusalém na cidade alemã de Münster Esta tentativa foi sufocada com um banho de sangue seguido por uma onda de represálias impiedosas que afetaram as lutas proletárias em toda a Europa PoChia Hsia 1988a pp 5169 Até então nem a perseguição feroz nem a demonização da heresia tinham sido capazes de evitar a difusão das crenças he reges Como escreve Antonino di Stefano nem a excomunhão nem o confsco de propriedades nem a tortura nem a morte na fogueira nem as cruzadas contra os hereges puderam debilitar a imensa vitalidade e popularidade da heretica pravitatis o mal herege Di Stefano 1950 p 769 Não existe nenhuma co muna escrevia Jacques de Vitry em princípios do século XIII em que a heresia não tenha seus seguidores seus defensores e seus crentes Até mesmo depois da cruzada contra os cátaros de 1215 que destruiu seus bastiões a heresia junto com o Islã continuou sendo o inimigo e a ameaça principal que a Igreja teve que enfrentar Novos seguidores apareciam em todas as profssões e camadas sociais o campesinato os setores mais pobres do clero que se identifcavam com os pobres e levaram às suas lutas a linguagem do Evangelho os burgueses urbanos e até mesmo a nobreza menor Mas a heresia popular era so bretudo um fenômeno das classes baixas O ambiente em que foresceu foi o dos proletários rurais e urbanos camponeses sapateiros e trabalhadores têxteis aos quais se pregava a igualdade fomentando seu espírito de revolta com predições proféticas e apocalípticas ibidem p 776 Podemos vislumbrar a popularidade dos hereges a partir dos julgamentos que a Inquisição ainda levava adiante em 1330 na região de Trento norte da Itália contra aqueles que haviam oferecido hospitalidade aos apostólicos quando seu líder Frei Dolcino havia passado pela região trinta anos antes Orioli 1993 pp 21737 No momento de sua chegada muitas portas se abriram para dar refúgio a Dolcino e a seus Mulher herege condenada à fogueira As mulheres tiveram uma presença muito grande no movimento herético em todos os países europeus 89 88 seguidores Mais uma vez em 1304 quando junto ao anún cio da chegada de um reino sagrado de pobreza e amor Frei Dolcino fundou uma comunidade entre as montanhas de Vercellese Piemonte os camponeses da região que já haviam se levantado contra o bispo de Vercelli lhe ofereceram seu apoio Mornese y Buratti 2000 Durante três anos os dulcinia nos resistiram às cruzadas e ao bloqueio que o bispo organizou contra eles houve mulheres vestidas como homens lutando junto aos combatentes No fm das contas foram derrotados apenas pela fome e pela esmagadora superioridade das forças que a Igreja havia mobilizado Lea 1961 pp 61520 Milton 1973 p 108 No mesmo dia em que as tropas reunidas pelo bis po de Vercelli fnalmente venceram mais de mil hereges mor reram em meio às chamas ou no rio ou pela força da espada dos modos mais cruéis Margherita a companheira de Dolcino foi queimada lentamente até morrer diante de seus olhos porque se negou a retratarse Dolcino foi arrastado e pouco a pouco sendo despedaçado pelos caminhos da montanha a fm de dar um exemplo conveniente à população local Lea 1961 p 620 LUTAS URBANAS Não apenas as mulheres e os homens mas também os campo neses e os trabalhadores urbanos descobriram nos movimentos heréticos uma causa comum Essa comunhão de interesses entre pessoas que de outra forma poderíamos supor que teriam preocupações e aspirações distintas pode ser observada em diferentes situações Em primeiro lugar na Idade Média existia uma relação estreita entre a cidade e o campo Muitos burgueses eram exservos que haviam se mudado ou fugido para a cidade com a esperança de uma vida melhor e enquanto exerciam seus ofícios continuavam trabalhando a terra particularmente em épocas de colheita Seus pensamentos e desejos ainda estavam profundamente confgurados pela vida na aldeia e por sua permanente relação com a terra Camponeses e trabalhadores também eram unidos pelo fato de estarem subordinados aos mesmos governantes No século XIII especialmente no norte e no centro da Itália a nobreza proprietária de terras e os mer cadores patrícios da cidade estavam começando a se integrar funcionando como uma estrutura única de poder Esta situação promoveu solidariedade e preocupação mútua entre os traba lhadores Assim quando os camponeses se rebelavam encon travam os artesãos e os trabalhadores a seu lado além de uma massa de pobres urbanos cada vez mais importante Foi isso que aconteceu durante a revolta camponesa no Flandres marítimo que se iniciou em 1323 e terminou em junho de 1328 depois que o rei da França e a nobreza famenca derrotaram os rebeldes em Cassel em 1327 Como escreve David Nicholas a habilidade dos rebeldes para continuar o confito durante cinco anos só pôde ser concebida a partir da participação de toda a cidade Nicholas 1992 pp 2134 Nicholas acrescenta que no fnal de 1324 os arte sãos de Ypres e Bruxelas somaramse aos camponeses rebeldes 91 90 Bruxelas agora sob o controle de um partido de tecelões e fullers seguiu o rumo da revolta camponesa Iniciouse uma guerra de propaganda na qual os monges e pregadores disseram às massas que havia chegado uma nova era e que eles eram iguais aos aristocratas Ibidem pp 2134 Outra aliança entre camponeses e trabalhadores urbanos foi a dos tuchins um movimento de bandidos que operava nas mon tanhas do centro da França na qual os artesãos se uniram a uma organização típica das populações rurais Milton 1963 p 128 O que unia camponeses e artesãos era uma aspiração comum de nivelar as diferenças sociais Como escreve Norman Cohn esse fato é evidenciado em vários tipos de documentos Desde os provérbios dos pobres nos quais lamentam que o homem pobre sempre trabalha sempre preocupado trabalha e chora não ri nunca de coração enquanto o rico ri e canta Desde peças de mistério onde se diz que cada homem deve ter tantas propriedades quanto qualquer outro e não temos nada que podemos chamar de nosso Os grandes senhores possuem tudo e os pobres só contam com o sofrimento e a adversidade Desde as sátiras mais lidas que denunciavam que os magistrados reitores sacristãos e prefeitos vivem todos do roubo Todos engordando pelo trabalho dos pobres todos querem saqueálos O forte rouba o fraco Ou também Os bons trabalhadores fazem pão do trigo mas nunca o mastigam não só recebem os resíduos do grão do bom vinho só recebem os fundos e da boa roupa apenas a palha Tudo o que é saboroso e bom vai para a nobreza e para o clero N Cohn 1970 pp 99100 Essas queixas demonstram o quão profundo era o ressen timento popular contra as desigualdades que existiam entre os peixes grandes e os peixes pequenos os gordos e os magros como ricos e pobres eram chamados na gíria política forentina do século XIV Nada fcará bem na Inglaterra até que todos tenhamos a mesma condição proclamava John Ball durante sua campanha para organizar a Revolta Camponesa de 1381 ibidem p 199 Como vimos as principais expressões dessa aspiração a uma sociedade mais igualitária eram a exaltação da pobreza e o comunismo dos bens Entretanto a afrmação de uma perspec tiva igualitária também se refetiu em uma nova atitude diante do trabalho mais evidente entre as seitas hereges De um lado temos uma estratégia de recusa ao trabalho como a adotada pelos valdenses franceses os Pobres de Lyon e os membros de algumas ordens conventuais franciscanos espirituais Jacquerie Os camponeses pegaram em armas em Flandres em 1323 na França em 1358 na Inglaterra em 1381 em Florença Gante e Paris em 1370 e 1380 93 92 que com o desejo de se libertar das preocupações mundanas dependiam das esmolas e do apoio da comunidade para sobre viver Por outro lado temos uma nova valorização do trabalho particularmente do trabalho manual que alcançou sua forma mais consciente na propaganda dos lolardos ingleses que lem bravam seus seguidores de que os nobres têm casas bonitas nós temos apenas trabalho e penúrias mas tudo vem do nosso trabalho ibidem ChristieMurray 1976 pp 1145 Sem dúvida recorrer ao valor do trabalho uma novidade numa sociedade dominada pela classe militar fun cionava principalmente como um lembrete da arbitrariedade do poder feudal Porém esta nova consciência demonstra também a emergência de novas forças sociais que tiveram um papel crucial no desmantelamento do sistema feudal A valorização do trabalho refetia a formação de um prole tariado urbano constituído em parte por ofciais e aprendizes que trabalhavam para mestres artesãos e produziam para o mercado local mas fundamentalmente por trabalhadores assalariados empregados por mercadores ricos em indústrias que produziam para exportação Na virada do século XIV em Florença Siena e Flandres era possível encontrar con centrações de até quatro mil trabalhadores tecelões fullers tintureiros na indústria têxtil Para eles a vida na cidade era apenas um novo tipo de servidão neste caso sob o domínio dos mercadores de tecido que exerciam o mais estrito controle sobre suas atividades e a dominação de classe mais despótica Os assalariados urbanos não podiam formar associações e eram proibidos até mesmo de se reunir em qualquer lugar fosse qual fosse o objetivo não podiam portar armas nem as ferramentas de seu ofício e não podiam fazer greve sob pena de morte Pirenne 1956 p 1932 Em Florença não tinham direitos civis diferentemente dos artífces não eram parte de nenhum ofício ou guilda e estavam expostos aos abusos mais cruéis nas mãos dos mercadores Estes além de controlar o governo da cidade dirigiam um tribunal próprio e com total impunidade os espiavam prendiam torturavam e enforca vam ao menor sinal de problemas Rodolico 1971 É entre esses trabalhadores que encontramos as formas mais radicais de protesto social e uma maior aceitação das ideias heréticas ibidem pp 569 Durante o século XIV par ticularmente em Flandres os trabalhadores têxteis estiveram envolvidos em constantes rebeliões contra o bispo contra a nobreza contra os mercadores e até mesmo contra as princi pais corporações de ofício Em Bruxelas quando em 1378 os ofícios mais importantes se tornaram poderosos os trabalha dores da lã continuaram a se rebelar contra eles Em Gante em 1335 uma revolta da burguesia local foi superada por uma rebelião de tecelões que tentavam estabelecer uma democra cia operária baseada na supressão de todas as autoridades exceto das que viviam do trabalho manual Boissonnade 1927 pp 3101 Derrotados por uma coalizão imponente de forças que incluía o príncipe a nobreza o clero e a burguesia os tecelões tentaram novamente em 1378 e desta vez obtiveram êxito instituindo algo que talvez com certo exagero foi chamado de a primeira ditadura do proletariado conhecida na história Segundo Peter Boissonnade seu objetivo era im pulsionar os trabalhadores qualifcados contra seus patrões os assalariados contra os grandes empresários os camponeses contra os senhores e o clero Diziase que eles pensavam em exterminar toda a classe burguesa com exceção das crianças de até seis anos e que planejavam fazer o mesmo com a nobre za ibidem p 311 Só foram derrotados por uma batalha em campo aberto ocorrida em Roosebecque em 1382 onde 26 mil deles perderam a vida ibidem Os acontecimentos em Bruxelas e Gante não foram casos isolados Na Alemanha e na Itália os artesãos e os 95 94 trabalhadores também se rebelavam a cada ocasião que se apresentava forçando a burguesia local a viver em um estado de terror constante Em Florença os trabalhadores tomaram o poder em 1379 liderados pelos ciompi os trabalhadores da indústria têxtil forentina37 Eles também estabeleceram um governo de trabalhadores que durou apenas uns poucos meses antes de ser completamente derrotado em 1382 Rodolico 1971 Os trabalhadores de Liège nos Países Baixos obtiveram maior êxito Em 1384 a nobreza e os ricos chamados de grandes incapazes de continuar uma resistência que havia persistido durante mais de um século renderamse Dali para frente as corporações de ofício dominaram completamente a cidade tornandose os árbitros do governo municipal Pirenne 1937 p 201 No Flandres marítimo os artesãos também haviam dado seu apoio à revolta camponesa em uma luta que durou de 1323 até 1328 naquilo que Pirenne descreve como uma genuína tentativa de revolução social ibidem p 195 Aqui como destaca um contemporâneo oriundo de Flandres cuja fliação de classe é evidente a praga da 37 Os ciompi eram os encarregados de lavar pentear e lubrificar a lã para que pudesse ser trabalhada Eram considerados trabalhadores não qualificados e tinham o status social mais baixo Ciompo é um termo pejorativo que significa sujo e andrajoso provavelmente devido ao fato de que os ciompi trabalhavam seminus e sempre estavam engordurados e manchados com tintas Sua revolta começou em julho de 1382 disparada pelas notícias de que um deles Simoncino havia sido preso e torturado Aparentemente fizeramlhe revelar sob tortura que os ciompi haviam tido reuniões secretas durante as quais beijandose na boca haviam prometido defenderse mutuamente dos abusos de seus empregadores Ao saberem da prisão de Simoncino os trabalhadores correram até a casa da guilda da indústria da lã o Palazzo dellArte para exigir a libertação do companheiro Depois uma vez libertado ocuparam a casa da guilda estabeleceram pa trulhas sobre a Ponte Vecchio e penduraram a insígnia das guildas menores arti minori nas janelas da sede da guilda Também ocuparam a prefeitura onde afirmaram haver encontrado uma sala cheia de cordas de forca destinadas a eles segundo acreditavam Aparentemente com a situação sob controle os ciompi apresentaram uma petição exi gindo que fossem incorporados ao governo que não continuassem sendo castigados com a amputação de uma mão pela inadimplência que os ricos pagassem mais impostos e que os castigos corporais fossem substituídos por multas em dinheiro Na primeira semana de agosto formaram uma milícia e criaram novos ofícios enquanto eram realizados prepa rativos para eleições nas quais pela primeira vez participariam membros dos ciompi No entanto seu novo poder não durou mais que um mês já que os magnatas da lã organiza ram um locaute que os reduziu à fome Depois de serem derrotados muitos foram presos enforcados e decapitados muitos mais tiveram que abandonar a cidade num êxodo que marcou o início da decadência da indústria da lã em Florença Rodolico 1971 insurreição era tal que os homens se revoltaram com a vida ibidem p 196 Assim entre 1320 e 1332 a gente de bem de Ypres implorou ao rei que não permitisse que os bastiões internos do povoado em que viviam fossem demolidos dado que os protegiam da gente comum ibidem pp 2023 97 96 A PESTE NEGRA E A CRISE DO TRABALHO A Peste Negra que matou em média entre 30 e 40 da população europeia constituiu um dos momentos decisivos no decorrer das lutas medievais Ziegler 1969 p 230 Esse colapso demográfco sem precedentes ocorreu depois que a Grande Fome de 13151322 havia debilitado a resistência das pessoas contra doenças Jordan 1996 e mudou profundamente a vida social e política da Europa praticamente inaugurando uma nova era As hierarquias sociais foram viradas de cabeça para baixo devido ao efeito nivelador da mortandade generalizada A familiaridade com a morte também debilitou a disciplina social Diante da possibilidade de uma morte repentina as pessoas já não se preocupavam em trabalhar ou em acatar as regulações sociais e sexuais e tentavam ao máximo se divertir festejando o quanto podiam sem pensar no futuro A consequência mais importante da peste foi entretanto a intensifcação da crise do trabalho gerada pelo confito de classes ao dizimar a mão de obra os trabalhadores tornaramse extremamente escassos seu custo aumentou de forma crítica e a determinação das pessoas em romper os laços do domínio feudal foi fortalecida Como ressalta Christopher Dyer a escassez de mão de obra causada pela epidemia modifcou as relações de poder em bene fício das classes baixas Em épocas em que a terra era escassa era possível controlar os camponeses por meio da ameaça de expulsão Porém uma vez que a população foi dizimada e havia abundância de terra as ameaças dos senhores deixaram de ter um efeito signifcativo pois os camponeses podiam mudarse livremente e achar novas terras para cultivar Dyer 1968 p 26 Assim enquanto os cultivos estavam apodrecendo e o gado caminhava sem rumo pelos campos os camponeses e artesãos repentinamente tomaram conta da situação Um sintoma deste novo processo foi o aumento das greves de inquilinos reforçadas pelas ameaças de êxodo em massa para outras terras ou para a cidade Tal como mostram laconicamente as crônicas feudais os camponeses negavamse a pagar negant solvere Também declaravam que não seguiriam mais os costumes negant consuetudines e que ignorariam as ordens dos senhores de consertar suas casas limpar as valas ou capturar os servos fugitivos ibidem p 24 Até o fnal do século XIV a recusa a pagar o aluguel e a rea lizar serviços havia se transformado em um fenômeno coletivo Aldeias inteiras organizaramse conjuntamente para deixar de pagar as multas os impostos e a talha negandose a reconhecer a troca de serviços e as determinações dos tribunais senhoriais que eram os principais instrumentos do poder feudal Nesse contexto a quantidade de aluguéis e de serviços retidos era menos importante do que o fato de que a relação de classes em que se baseava a ordem feudal fosse subvertida Foi assim que um escritor do começo do século XVI cujas palavras refetiam o ponto de vista da nobreza resumiu a situação Os camponeses são ricos demais e não sabem o que signifca a obediência não levam a lei em consideração desejariam que não houvesse nobres e gostariam de decidir qual renda deveríamos obter por nossas terras ibidem p 33 Como resposta ao aumento do custo da mão de obra e ao desmoronamento da renda feudal ocorreram várias tentativas de aumentar a exploração do trabalho a partir do restabele cimento da prestação de serviços laborais compulsórios ou em alguns casos da escravidão Em Florença a importação 99 98 de escravos foi autorizada em 136638 Porém essas medidas só aprofundaram o confito de classes Na Inglaterra uma tenta tiva da nobreza para conter os custos do trabalho por meio de um Estatuto Laboral que impunha limite ao salário máximo provocou a Revolta Camponesa de 1381 Esta se estendeu de uma região a outra e terminou com milhares de camponeses marchando de Kent a Londres para falar com o rei Milton 1973 Dobson 1983 Na França entre 1379 e 1382 também hou ve um turbilhão revolucionário Boissonnade 1927 p 314 As insurreições proletárias eclodiram em Bezier onde quarenta tecelões e sapateiros foram enforcados Em Montpellier os tra balhadores insurgentes proclamaram que para o Natal ven deremos carne cristã a seis pence a libra Estouraram revoltas em Carcassone Orleans Amiens Tournai Rouen e fnalmente em Paris onde em 1413 se estabeleceu uma democracia dos trabalhadores39 Na Itália a revolta mais importante foi a dos ciompi Teve início em julho de 1382 quando os trabalhadores têxteis de Florença forçaram a burguesia durante um tempo a compartilhar o governo e a declarar uma moratória sobre todas as dívidas nas quais haviam incorrido os assalariados mais tarde proclamaram que essencialmente se tratava de 38 Depois da Peste Negra os países europeus passaram a condenar a vadiagem e a perseguir a vagabundagem a mendicância e a recusa ao trabalho A Inglaterra teve a iniciativa ao publicar o Estatuto de 1349 que condenava os salários altos e a vadiagem estabelecendo que quem não trabalhasse e não possuísse nenhum meio de sobrevivência teria que aceitar qualquer trabalho Na França foram emitidas ordenanças similares em 1351 recomendando às pessoas que não dessem comida nem hospedagem a mendigos e a vagabundos com boa saúde Uma ordenança posterior estabeleceu em 1354 que aqueles que permanecessem ociosos passassem o tempo em tavernas jogando dados ou mendigando teriam que aceitar algum trabalho ou aguentar as consequências os infratores primários iam à prisão a pão e água enquanto os reincidentes eram colocados no tronco Quem infringisse a regra pela terceira vez era marcado a fogo na fronte Na legislação francesa surgiu um novo elemento que se tornou parte da luta moderna contra os vagabundos o trabalho forçado Em Castela uma ordenança introduzida em 1387 permitia aos particulares prender vagabundos e empregálos durante um mês sem salário Geremek 1985 pp 5365 39 O conceito de democracia dos trabalhadores pode parecer absurdo quando é aplicado a estas formas de governo Porém devemos considerar que nos Estados Unidos comumente considerado um país democrático ainda nenhum trabalhador industrial se tornou presidente e que os órgãos mais altos de governo estão completamente ocupados pelos representantes da aristocracia econômica uma ditadura do proletariado o povo de Deus embora fosse rapidamente esmagada pelas forças conjuntas da nobreza e da burguesia Rodolico 1971 Agora é o momento frase que se repete nas cartas de John Ball ilustra claramente o espírito do proletariado euro peu até o fnal do século XIV uma época em que em Florença a roda da fortuna começava a aparecer nas paredes das tavernas e das ofcinas a fm de simbolizar a iminente mudança de sorte Durante esse processo o horizonte político e as dimensões organizacionais da luta dos camponeses e artesãos se expan diram Regiões inteiras rebelaramse formando assembleias e recrutando exércitos Algumas vezes os camponeses se organi zaram em bandos atacaram os castelos dos senhores e destruí ram os arquivos onde eram mantidos os registros escritos da servidão No século XV os enfrentamentos entre camponeses e nobres tornaramse verdadeiras guerras como a dos remensas na Espanha que se estendeu de 1462 a 148640 No ano de 1476 começou na Alemanha um ciclo de Guerras Camponesas cujo ponto de partida foi a conspiração liderada por Hans o Flautista Esses processos se propagaram na forma de quatro rebeliões sangrentas conduzidas pelo Bundschuh sindicato camponês que ocorreram entre 1493 e 1517 e que culminaram em uma guerra aberta que se estendeu de 1522 até 1525 em mais de quatro países Engels 1977 Blickle 1977 Em nenhum desses casos os rebeldes se conformaram ape nas em exigir algumas restrições do regime feudal tampouco 40 Os remensas eram uma liquidação de impostos que os servos camponeses tinham que pagar na Catalunha para deixar suas terras Depois da Peste Negra os campo neses sujeitos aos remensas também estavam submetidos a um novo imposto conhecido como mals usos que em épocas anteriores havia sido aplicado de maneira menos genera lizada Milton 1973 pp 1178 Estes novos impostos e os conflitos em torno do uso de terras abandonadas deram origem a uma guerra regional prolongada em cujo transcurso os camponeses catalães recrutaram um homem a cada três famílias Também estreitaram seus laços por meio de associações juramentadas tomaram decisões em assembleias camponesas e para intimidar os proprietários de terra cobriram os campos com cruzes e outros símbolos ameaçadores Na última fase da guerra exigiram o fim da renda e o estabelecimento de direitos campesinos de propriedade ibidem pp 12021 133 101 100 negociaram exclusivamente para obter melhores condições de vida O objetivo era colocar fm ao poder dos senhores Durante a Revolta Camponesa de 1381 os camponeses ingleses declararam que a velha lei deve ser abolida Efetivamente no começo do século XV pelo menos na Inglaterra a servidão ou a vilanagem haviam desaparecido quase por completo embora a revolta tenha sido derrotada política e militarmente e seus líderes executados brutalmente Titow 1969 p 58 O que se seguiu tem sido descrito como a idade de ouro do proletariado europeu Marx 1909 t I Braudel 1967 pp 128 e segs algo muito distinto da representação canônica do século XV que foi imortalizado iconografcamente como um mundo sob a maldição da dança da morte e do memento mori Thorold Rogers retratou uma imagem utópica deste perío do em seu famoso estudo sobre os salários e as condições de vida na Inglaterra medieval Em nenhum outro momento escreveu Rogers os salários foram tão altos e a comida tão barata na Inglaterra Rogers 1894 p 326 e segs Às vezes os trabalhadores eram pagos todos os dias do ano apesar de não trabalharem aos domingos ou nos principais feriados A comida corria à custa dos empregadores e era pago um viaticum para ir e vir de casa ao trabalho calculado por cada milha de distância Além disso exigiam ser pagos em dinheiro e queriam trabalhar apenas cinco dias por semana Como veremos há razões para sermos céticos com relação ao alcance dessa abundância No entanto para uma parte impor tante do campesinato da Europa Ocidental e para os trabalhado res urbanos o século XV foi uma época de poder sem preceden tes Não só a escassez de trabalho lhes deu poder de decisão mas também o espetáculo de empregadores competindo por seus serviços reforçou sua própria valorização e apagou séculos de de gradação e submissão Diante dos olhos dos empregadores o es cândalo dos altos salários que os trabalhadores demandavam só era igualado pela nova arrogância que exibiam sua recusa a tra balhar ou a continuar trabalhando depois que haviam satisfeito suas necessidades o que podiam fazer mais rapidamente agora devido aos salários mais elevados sua obstinada determinação para se oferecerem somente para tarefas limitadas em vez de períodos prolongados de tempo suas demandas por benefícios extras além do salário e sua vestimenta ostensiva que de acordo com as queixas de críticos sociais contemporâneos os tornava indistinguíveis dos senhores Os servos agora são senhores e os senhores são servos reclamava John Gower em Mirour de lomme 1378 Espelho do homem o camponês pretende imitar os costumes do homem livre e dá a si mesmo a aparência deste ao utilizar suas roupas Hatcher 1994 p 17 A condição dos semterra também melhorou depois da Peste Negra Hatcher 1994 e não apenas na Inglaterra Em 1348 os cânones da Normandia queixaramse de que não conseguiam A Peste Negra dizimou um terço da população da Europa Foi um momento social e politicamente decisivo na história europeia 103 102 encontrar ninguém que estivesse disposto a cultivar suas terras sem pedir mais do que aquilo que seus servos teriam cobrado no início do século Na Itália na França e na Alemanha os salários foram duplicados e triplicados Boissonnade 1927 pp 31620 Nas terras do Reno e do Danúbio o poder de compra do salário agrícola diário chegou a equipararse ao preço de um porco ou de uma ovelha e estes níveis salariais alcançavam também as mu lheres já que a diferença entre a renda feminina e a masculina havia diminuído drasticamente nos momentos da Peste Negra Para o proletário europeu isso signifcou não só a conquis ta de um nível de vida que não foi igualado até o século XIX mas também o desaparecimento da servidão No fm do século XIV as amarras entre os servos e a terra havia praticamente desaparecido Marx 1909 t I p 788 Por todas as partes os servos eram substituídos por camponeses livres titulares de posses consuetudinárias copyholds ou de enfteuses leaseholds que só aceitavam trabalhar em troca de uma recompensa substancial A POLÍTICA SEXUAL O SURGIMENTO DO ESTADO E A CONTRARREVOLUÇÃO Todavia no fnal do século XV foi posta em marcha uma con trarrevolução que atuava em todos os níveis da vida social e política Em primeiro lugar as autoridades políticas empreen deram importantes esforços para cooptar os trabalhadores mais jovens e rebeldes por meio de uma maliciosa política sexual que lhes deu acesso a sexo gratuito e transformou o antagonismo de classe em hostilidade contra as mulheres proletárias Como demonstrou Jacques Rossiaud em Medieval Prostitution 1988 A prostituição medieval na França as au toridades municipais praticamente descriminalizaram o estupro nos casos em que as vítimas eram mulheres de classe baixa Na Veneza do século XIV o estupro de mulheres proletárias solteiras raramente tinha como consequência algo além de um puxão de orelhas até mesmo nos casos frequentes de ataque em grupo Ruggiero 1989 pp 94 91108 O mesmo ocorria na maioria das cidades francesas Nelas o estupro coletivo de mulheres proletárias se tornou uma prática comum que se realizava aberta e ruidosamente durante a noite em grupos de dois a quinze que invadiam as casas ou arrastavam as vítimas pelas ruas sem a menor intenção de se esconder ou dissimular Aqueles que participavam desses esportes eram aprendizes ou empregados domésticos jovens e flhos das famílias ricas sem um centavo no bolso enquanto as mulheres eram meninas pobres que trabalhavam como criadas ou lavadeiras sobre as quais circulavam rumores de que eram mantidas por seus senhores Rossiaud 1988 p 22 Em média metade dos jovens participou alguma vez nesses ataques que Rossiaud descreve como uma forma de protesto de classe um meio para que 105 104 homens proletários forçados a postergar seus casamentos por muitos anos devido às suas condições econômicas cobras sem aquilo que era seu e se vingassem dos ricos Porém os resultados foram destrutivos para todos os trabalhadores pois o estupro de mulheres pobres com consentimento estatal de bilitou a solidariedade de classe que se havia alcançado na luta antifeudal Como era de se esperar as autoridades encararam os distúrbios causados por essa política as brigas a presença de bandos de jovens perambulando pelas ruas em busca de aven turas e perturbando a tranquilidade pública como um preço pequeno a se pagar em troca da diminuição das tensões sociais já que estavam obcecadas pelo medo das grandes insurreições urbanas e pela crença de que se os homens pobres conseguis sem se impor eles se apoderariam de suas esposas e disporiam delas coletivamente ibidem p 13 Para estas mulheres proletárias tão arrogantemente sacrifcadas por senhores e servos o preço a pagar foi incalcu lável Uma vez estupradas não era fácil recuperar seu lugar na sociedade Com a reputação destruída tinham que abandonar a cidade ou se dedicar à prostituição ibidem Ruggiero 1985 p 99 Porém elas não eram as únicas que sofriam A legali zação do estupro criou um clima intensamente misógino que degradou todas as mulheres qualquer que fosse sua classe Também insensibilizou a população frente à violência contra as mulheres preparando o terreno para a caça às bruxas que começaria nesse mesmo período Os primeiros julgamentos por bruxaria ocorreram no fnal do século XIV pela primeira vez a Inquisição registrou a existência de uma heresia e de uma seita de adoradores do demônio completamente feminina Outro aspecto da política sexual fragmentadora que prínci pes e autoridades municipais levaram a cabo com a fnalidade de dissolver o protesto dos trabalhadores foi a institucionaliza ção da prostituição implementada a partir do estabelecimento de bordéis municipais que logo proliferaram por toda a Europa Tornada possível graças ao regime de salários elevados a prostituição gerida pelo Estado foi vista como um remédio útil contra a turbulência da juventude proletária que podia des frutar na Grande Maison como era chamado o bordel estatal na França de um privilégio antes reservado aos homens mais velhos Rossiaud 1988 O bordel municipal também era consi derado um remédio contra a homossexualidade Otis 1985 que em algumas cidades europeias por exemplo Pádua e Florença se praticava ampla e publicamente mas que depois da Peste Negra começou a ser temida como causa de despovoamento41 Assim entre 1350 e 1450 em cada cidade e aldeia da Itália e da França foram abertos bordéis geridos publicamente e fnanciados por impostos numa quantidade muito superior à atingida no século XIX Em 1453 só Amiens tinha 53 bordéis Além disso foram eliminadas todas as restrições e penalidades 41 Assim a proliferação de bordéis públicos foi acompanhada de uma campanha contra os homossexuais que se estendeu até mesmo a Florença onde a homossexualidade era uma parte importante da tessitura social que atraía homens de todas as idades estados civis e níveis sociais A homossexualidade era tão popular em Florença que as prostitutas costumavam usar roupas masculinas para atrair seus clientes Os sinais de mudança vieram de duas iniciativas introduzidas pelas autoridades em 1403 quando a cidade proibiu os sodomitas de assumirem cargos públicos e instituiu uma comissão de controle dedicada a extirpar a homossexualidade o Escritório da Decência Significativamente o primeiro passo tomado pelo Escritório foi preparar a abertura de um novo bordel público de tal forma que em 1418 as autoridades ainda continuavam buscando meios para erradicar a sodomia da cidade e do campo Rocke 1997 pp 302 35 Sobre a promoção da prostituição financiada publicamente como remédio contra a diminuição da população e a sodomia por parte do governo florentino ver também Richard C Trexler 1993 p 32 Como outras cidades italianas do século XV Florença acreditava que a prostituição patrocinada oficialmente combatia outros dois males incomparavelmente mais impor tantes do ponto de vista moral e social a homossexualidade masculina cuja prática se atribuía ao obscurecimento da diferença entre os sexos e portanto de toda a diferença e decoro e a diminuição da população legítima como consequência de uma quantidade insuficiente de matrimônios Trexler aponta que é possível encontrar a mesma correlação entre a difusão da homossexualidade a diminuição da população e o patrocínio estatal da prostituição em Lucca Veneza e Siena entre o final do século XIV e o início do XV aponta também que o crescimento na quantidade e no poder social das prostitutas levou finalmente a uma reação violenta de tal maneira que enquanto no começo do século XV pregadores e estadistas haviam acreditado profundamente em Florença que nenhuma cidade em que mulheres e homens parecessem iguais podia se sustentar por muito tempo um século mais tarde perguntavam para si mesmos se uma cidade poderia sobreviver enquanto as mulheres de classe alta não pudessem ser diferenciadas das prostitutas de bordel ibidem p 65 107 contra a prostituição As prostitutas agora podiam abordar seus clientes em qualquer parte da cidade inclusive na frente da igreja e durante a missa Não estavam mais ligadas a nenhum código de vestimenta ou obrigadas a usar marcas distintivas pois a prostituição era ofcialmente reconhecida como um ser viço público ibidem pp 910 Até mesmo a Igreja chegou a ver a prostituição como uma atividade legítima Acreditavase que o bordel administrado pelo Estado provia um antídoto contra as práticas sexuais orgiásticas das seitas hereges e que era um remédio para a sodomia assim como também era visto como um meio para proteger a vida familiar É difícil discernir de forma retrospectiva até que ponto esse recurso sexual ajudou o Estado a disciplinar e dividir o proletariado medieval O que é certo é que esse new deal foi parte de um processo mais amplo que em resposta à intensif cação do confito social levou à centralização do Estado como o único agente capaz de confrontar a generalização da luta e de preservar as relações de classe Nesse processo como se verá mais adiante o Estado tor nouse o gestor supremo das relações de classe e o supervisor da reprodução da força de trabalho uma função que continua desempenhando até os dias de hoje No exercício desse poder em muitos países foram criadas leis que estabeleciam limites ao custo do trabalho fxando o salário máximo proibiam a vadia gem agora duramente castigada Geremek 1985 p 61 e segs e incentivavam os trabalhadores a se reproduzirem Em última instância o crescente confito de classes provocou uma nova aliança entre a burguesia e a nobreza sem a qual as revoltas proletárias não poderiam ter sido derrotadas De fato é difícil aceitar a afrmação frequentemente feita pelos historia dores segundo a qual essas lutas não tinham possibilidades de sucesso devido à estreiteza de seu horizonte político e à confusão de suas demandas Na verdade os objetivos dos camponeses e dos artesãos eram absolutamente transparentes Eles exigiam que cada homem tivesse tanto quanto qualquer outro Pirenne 1937 p 202 e para atingir tal objetivo uniamse a todos aqueles que não tinham nada a perder atuando conjuntamente em diferen tes regiões sem medo de enfrentar os exércitos bem treinados da nobreza apesar de não terem treinamento militar Se eles foram derrotados foi porque todas as forças do poder feudal a nobreza a Igreja e a burguesia apesar de suas divisões tradicionais os enfrentaram de forma unifcada por medo de uma rebelião proletária Com efeito a imagem que chegou a nós de uma burguesia em guerra permanente contra a nobreza e que levava em suas bandeiras o clamor pela igualda de e pela democracia é uma distorção Na Baixa Idade Média Bordel xilogravura alemã do século XV Os bordéis eram vistos como um remédio contra os protestos sociais a heresia e a homossexualidade 108 para onde quer que olhemos desde a Toscana até a Inglaterra e os Países Baixos encontramos a burguesia já aliada com a nobreza visando à eliminação das classes baixas42 A burguesia reconheceu tanto nos camponeses quanto nos tecelões e sapateiros democratas de suas cidades um inimigo que fez até mesmo com que valesse a pena sacrifcar sua preciosa autono mia política Foi assim que a burguesia urbana depois de dois séculos de lutas para conquistar a soberania plena dentro das muralhas de suas comunas restituiu o poder à nobreza subor dinandose voluntariamente ao reinado do Príncipe e dando assim o primeiro passo em direção ao Estado absolutista 42 Na Toscana onde a democratização da vida política havia chegado mais longe do que em qualquer outra região europeia na segunda metade do século XV se deu uma inversão desta tendência e uma restauração do poder da nobreza promovida pela burgue sia mercantil com a finalidade de bloquear a ascensão das classes baixas Nessa época foi produzida uma fusão orgânica entre as famílias dos mercadores e da nobreza por meio do casamento e de prerrogativas compartilhadas Isso acabou com a mobilidade social a conquista mais importante da sociedade urbana e da vida comunal na Toscana medieval Luzzati 1981 pp 187 206 Mattheus Merian Os quatro cavaleiros do Apocalipse 1630 Ver nota de rodapé 64 INTRODUÇÃO 114 A ACUMULAÇÃO CAPITALISTA E A ACUMULAÇÃO DO TRABALHO NA EUROPA 120 A PRIVATIZAÇÃO DA TERRA NA EUROPA A PRODUÇÃO DE ESCASSEZ E A SEPARAÇÃO ENTRE PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO 130 A REVOLUÇÃO DOS PREÇOS E A PAUPERIZAÇÃO DA CLASSE TRABALHADORA EUROPEIA 148 A INTERVENÇÃO ESTATAL NA REPRODUÇÃO DO TRABALHO A ASSISTÊNCIA AOS POBRES E A CRIMINALIZAÇÃO DA CLASSE TRABALHADORA 159 DIMINUIÇÃO DA POPULAÇÃO CRISE ECONÔMICA E DISCIPLINAMENTO DAS MULHERES 167 A DESVALORIZAÇÃO DO TRABALHO FEMININO 181 AS MULHERES COMO NOVOS BENS COMUNS E COMO SUBSTITUTO DAS TERRAS PERDIDAS 191 O PATRIARCADO DO SALÁRIO 193 A DOMESTICAÇÃO DAS MULHERES E A REDEFINIÇÃO DA FEMINILIDADE E DA MASCULINIDADE MULHERES SELVAGENS DA EUROPA 199 COLONIZAÇÃO GLOBALIZAÇÃO E MULHERES 206 SEXO RAÇA E CLASSE NAS COLÔNIAS 215 O CAPITALISMO E A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO 232 CAPÍTULO 2 A ACUMULAÇÃO DO TRABALHO E A DEGRADAÇÃO DAS MULHERES A CONSTRUÇÃO DA DIFERENÇA NA TRANSIÇÃO PARA O CAPITALISMO ME PERGUNTO SE TODAS AS GUERRAS DERRAMAMENTO DE SANGUE E MISÉRIA NÃO ASSALTARAM A CRIAÇÃO QUANDO UM HOMEM PROCUROU SER SENHOR DE OUTRO E SE ESSA MISÉRIA NÃO IRÁ EMBORA QUANDO TODAS AS RAMIFICAÇÕES DA HUMANIDADE CONSIDERAREM A TERRA COMO UM TESOURO COMUM A TODOS GERRARD WINSTANLEY THE NEW LAW OF RIGHTEOUSNESS 1649 PARA ELE ELA ERA UMA MERCADORIA FRAGMENTADA CUJOS SENTIMENTOS E ESCOLHAS RARAS VEZES ERAM CONSIDERADAS SUA CABEÇA E SEU CORAÇÃO ESTAVAM SEPARADOS DE SUAS COSTAS E MÃOS E DIVIDIDAS DE SEU ÚTERO E VAGINA SUAS COSTAS E MÚSCULOS ERAM FORÇADOS NO TRABALHO DO CAMPO ÀS SUAS MÃOS SE EXIGIA CUIDAR E NUTRIR O HOMEM BRANCO SUA VAGINA USADA PARA O PRAZER SEXUAL DELE ERA A PORTA DE ACESSO AO ÚTERO LUGAR PARA OS INVESTIMENTOS DELE O ATO SEXUAL ERA O INVESTIMENTO DE CAPITAL E O FILHO A MAIS VALIA ACUMULADA BARBARA OMOLADE HEART OF DARKNESS 1983 115 114 INTRODUÇÃO O desenvolvimento do capitalismo não foi a única resposta à crise do poder feudal Em toda a Europa vastos movimentos sociais comunalistas e rebeliões contra o feudalismo haviam oferecido a promessa de uma nova sociedade construída sobre as bases da igualdade e da cooperação Contudo em 1525 sua expressão mais poderosa a Guerra Camponesa na Alemanha ou como foi chamada por Peter Blickle a revolução do homem comum foi esmagada43 Em represália cem mil rebeldes foram massacrados Mais tarde em 1535 a Nova Jerusalém a ten tativa dos anabatistas na cidade de Münster de trazer o reino de Deus para a terra também terminou em um banho de sangue Antes essa tentativa já havia sido enfraquecida presumivel mente pela virada patriarcal de seus líderes os quais ao impor a poligamia levaram as mulheres de suas fleiras a se revoltar44 43 Peter Blickle se opõe ao conceito de uma guerra camponesa devido à composição social dessa revolução que incluía em suas fileiras muitos artesãos mineiros e intelectuais A Guerra Camponesa combinou sofisticação ideológica expressa nos doze artigos promovidos pelos rebeldes com uma poderosa organização militar Os doze ar tigos incluíam rejeição à servidão redução dos dízimos revogação das leis contra a caça clandestina afirmação do direito de coletar lenha diminuição dos serviços laborais redu ção das rendas afirmação dos direitos de uso das terras comunais e abolição dos impostos de herança Bickle 1985 pp 195201 A excepcional destreza militar demonstrada pelos rebeldes dependia em parte da participação na revolta de soldados profissionais incluindo a participação dos lansquenetes os célebres soldados suíços que nessa época eram a elite das tropas mercenárias na Europa Os lansquenetes lideraram os exércitos campone ses colocando sua experiência militar a serviço dos camponeses e em diversas situações se recusaram a atuar contra os rebeldes Em certa ocasião justificaram sua recusa com o argumento de que eles próprios também vinham do campesinato e de que dependiam dos camponeses para seu sustento em tempos de paz Quando ficou claro para os príncipes ger mânicos que não se podia confiar nos lansquenetes passaram a mobilizar tropas da Liga da Suábia Schwäbischer Bund trazidas de regiões mais afastadas para quebrar a resistência camponesa Sobre a história dos lansquenetes e sua participação na Guerra Camponesa ver Reinhard Baumann I Lanzichenacchi 1994 pp 23756 44 Politicamente os anabatistas representaram uma fusão dos movimentos sociais da Baixa Idade Média e o novo movimento anticlerical que se desencadeou a partir da Reforma Como os hereges medievais os anabatistas condenavam o individualismo econômico e a cobiça e apoiavam uma forma de comunalismo cristão A tomada de Münster teve lugar sob a Guerra Camponesa quando a agitação e as insurreições urbanas se estenderam de Frankfurt a Colônia e a outras cidades do norte da Alemanha Em 1531 as corporações tomaram o controle da cidade de Münster rebatizandoa de Nova Jeru salém e sob a influência de imigrantes anabatistas holandeses instalaram um governo Com estas derrotas agravadas pelo desdobramento da caça às bruxas e pelos efeitos da expansão colonial o processo revo lucionário na Europa chegou ao fm O poderio militar não foi sufciente entretanto para evitar a crise do feudalismo Na Baixa Idade Média ante uma crise de acumulação que se prolongou por mais de um século a economia feudal estava condenada Podemos deduzir as dimensões da crise a partir de algumas estimativas básicas que indicam que entre 1350 e 1500 houve uma mudança muito importante na relação de poder entre trabalhadores e mestres O salário real cresceu em torno de 100 os preços caíram por volta de 33 os aluguéis também caíram a jornada de trabalho diminuiu e surgiu uma tendência à autossufciência local45 No pessimismo dos mercadores e proprietários de terra da época assim como nas medidas que os Estados europeus adotaram para proteger os mercados suprimir a concorrência e forçar as pessoas a trabalhar nas condições im postas também é possível encontrar provas de uma tendência crônica à desacumulação Anotações nos registros dos feudos documentam que o trabalho não valia nem o café da manhã comunal baseado na partilha de bens Como escreveu PoChia Hsia os documentos da Nova Jerusalém foram destruídos e sua história foi contada apenas por seus inimigos Não devemos supor portanto que os acontecimentos se deram tal como foram narrados De acordo com os documentos disponíveis as mulheres primeiro desfrutaram de um alto grau de liberdade na cidade podiam se divorciar de seus maridos incrédulos e formar novos matrimônios por exemplo As coisas mudaram com a decisão do governo reformado de introduzir a poligamia em 1534 o que provocou uma resistência ativa entre as mulheres que segundo se presume foi reprimida com prisões e até execuções PoChia Hsia 1988 pp 589 Não está claro o motivo dessa decisão mas dado o papel decisivo que desempenharam as corporações na transição em relação às mulheres o episódio merece maior investigação Sabemos de fato que as corporações realizaram campanhas em vários países para remover as mulheres dos lugares de trabalho assalaria do e nada indica que se opuseram à perseguição de bruxas 45 Sobre o aumento do salário real e a queda de preços na Inglaterra ver North e Thomas 1973 p 74 Sobre os salários florentinos Carlo M Cipolla 1994 p 206 Sobre a queda do valor da produção na Inglaterra ver R H Britnel 1993 pp 15671 Sobre a estagnação da produção agrária em distintos países europeus B H Slicher Van Bath 1963 pp 16070 Rodney Hilton sustenta que neste período se experimentou uma contração das economias rurais e industriais provavelmente sentida em primei ro lugar pela classe dominante Os rendimentos senhoriais e os lucros industriais e co merciais começaram a cair A revolta nas cidades desorganizou a produção industrial e a revolta do campo fortaleceu a resistência camponesa ao pagamento da renda A renda e os lucros caíram ainda mais Milton 1985 pp 2401 117 116 Dobb 1963 p 54 A economia feudal não podia se reproduzir Nem a sociedade capitalista poderia ter evoluído a partir dela já que a autossufciência e o novo regime de salários elevados permitiam a riqueza do povo mas excluíam a possibilidade da riqueza capitalista Marx 2006 t I p 897 Foi em resposta a essa crise que a classe dominante euro peia lançou a ofensiva global que ao longo de ao menos três séculos mudaria a história do planeta estabelecendo as bases do sistema capitalista mundial no esforço implacável de se apropriar de novas fontes de riqueza expandir sua base econô mica e colocar novos trabalhadores sob seu comando Como sabemos a conquista a escravização o roubo o assassinato em uma palavra a violência foi o pilar desse pro cesso ibidem 785 Assim o conceito de uma transição para o capitalismo é em muitos sentidos uma fcção Nos anos 1940 e 1950 historiadores britânicos usaram esse conceito para defnir um período que ia aproximadamente de 1450 a 1650 em que o feudalismo na Europa estava se decompondo enquanto nenhum novo sistema socioeconômico havia ainda tomado seu lugar apesar de alguns elementos da sociedade capitalista já estarem tomando forma46 O conceito de transição portanto nos ajuda a pensar em um processo prolongado de mudança e em sociedades nas quais a acumulação capitalista coexistia com formações políticas que não eram ainda predominantemente capitalistas Contudo o termo sugere um desenvolvimento histórico gradual linear ao passo que o período a que o termo se refere foi um dos mais sangrentos e descontínuos da história mundial uma época que foi testemunha de transformações apocalípticas que os historiadores só podem descrever nos termos mais duros a Era de Ferro Kamen a Era do Saque Hoskins e a Era do Chicote Stone O termo transição então é incapaz de evocar as mudanças que 46 Sobre Maurice Dobb e o debate sobre a transição ao capitalismo ver Harvey J Kaye 1984 pp 2369 abriram o caminho para a chegada do capitalismo e das forças que conformaram essas mudanças Portanto neste livro usarei esse termo principalmente em um sentido temporal enquanto para os processos sociais que caracterizaram a reação feudal e o desenvolvimento das relações capitalistas usarei o conceito marxiano de acumulação primitiva ou originária embora concorde como apontam alguns críticos que devemos repensar a interpretação de Marx nesse ponto47 Marx introduziu o conceito de acumulação primitiva no fnal do tomo I de O capital para descrever a reestruturação social e econômica iniciada pela classe dominante europeia em resposta à crise de acumulação e para estabelecer em polêmica com Adam Smith48 que i o capitalismo não poderia ter se desenvolvido sem uma concentração prévia de capital e trabalho e que ii a dissocia ção entre trabalhadores e meios de produção e não a abstinência dos ricos é a fonte da riqueza capitalista A acumulação primitiva é então um conceito útil já que conecta a reação feudal com o desenvolvimento de uma economia capitalista e identifca as condições históricas e lógicas para o desenvolvimento do sistema capitalista em que primitiva originária indica tanto uma précondição para a existência de relações capitalistas como um 47 Entre os críticos do conceito de acumulação primitiva tal como utilizado por Marx estão Samir Amin 1974 e Maria Mies 1986 Enquanto Samir Amin volta sua atenção para o eurocentrismo de Marx Mies enfatiza sua cegueira com relação à exploração das mulheres Uma crítica distinta aparece em Yann Moulier Boutang 1998 pp 1623 que aponta em Marx a origem da impressão errônea de que o objetivo da classe dominante na Europa era se libertar de uma força de trabalho de que não necessita va Boutang salienta que ocorreu exatamente o contrário o objetivo da expropriação de terras era fixar os trabalhadores em seus empregos e não incentivar a mobilidade O capitalismo como sublinha Moulier Boutang sempre se preocupou principalmente em evitar a fuga do trabalho 48 Michael Perelman assinala que o termo acumulação primitiva foi na reali dade cunhado por Adam Smith Foi logo rechaçado por Marx devido ao caráter ahistórico do uso que Smith deu ao termo Para sublinhar sua distância em relação a Smith Marx intitulou o capítulo final do primeiro tomo de O capital consagrado ao estudo da acu mulação primitiva como a assim chamada acumulação primitiva fazendo a expressão assim chamada preceder pejorativamente o termo acumulação primitiva Fundamen talmente Marx descartou a mítica acumulação anterior a fim de centrar a atenção na experiência histórica real Perelman 1985 pp 256 119 118 evento específco no tempo49 Contudo Marx analisou a acumulação primitiva quase exclusivamente partindo do ponto de vista do proletariado industrial assalariado o protagonista sob sua perspectiva do processo revolucionário do seu tempo e a base para uma sociedade comunista futura Deste modo em sua explicação a acumulação primitiva consiste essencialmente na expropriação da terra do campesinato europeu e na formação do trabalhador independente livre Entretanto Marx também reconheceu que A descoberta de ouro e prata na América o extermínio a escravização e o sepultamento da população nativa nas minas a conquista e a pilhagem das Índias Orientais a transformação da África em uma reserva para a caça comercial de peles negras são momentos fundamentais da acumulação primitiva Marx 2006 t I p 939 Marx também reconheceu que muito capital que aparece hoje nos Estados Unidos sem certidão de nascimento é sangue infantil ainda ontem capitalizado na Inglaterra ibidem p 945 Por outro lado não encontramos em seu trabalho nenhuma men ção às profundas transformações que o capitalismo introduziu na reprodução da força de trabalho e na posição social das mulheres Na análise de Marx sobre a acumulação primitiva tampouco apa rece alguma referência à grande caça às bruxas dos séculos XVI e XVII ainda que essa campanha terrorista patrocinada pelo Estado tenha sido fundamental para a derrota do campesinato europeu facilitando sua expulsão das terras anteriormente comunais 49 Sobre a relação entre as dimensões histórica e lógica da acumulação primi tiva e suas implicações para os movimentos políticos de hoje ver Massimo de Angelis Marx and Primitive Accumulation The Continuous Character of Capital Enclosures Marx e acumulação primitiva o caráter contínuo dos cercamentos do capital em The Commoner disponível em wwwconullonerorguk Fredy Perlman The Continuing Appeal of Nationalism O apelo continuado do nacionalismo Detroit Black and Red 1985 e Mitchel Cohen Fredy Perlman Out in Front of a Dozen Dead Oceans Fredy Perlman em frente a uma dúzia oceanos mortos manuscrito inédito Neste capítulo e nos que seguem discuto esses eventos especialmente com relação à Europa defendendo que i A expropriação dos meios de subsistência dos trabalhadores europeus e a escravização dos povos originários da América e da África nas minas e nas plantações do Novo Mundo não foram os únicos meios pelos quais um proletariado mundial foi formado e acumulado ii Este processo demandou a transformação do corpo em uma máquina de trabalho e a sujeição das mulheres para a repro dução da força de trabalho Principalmente exigiu a destrui ção do poder das mulheres que tanto na Europa como na América foi alcançada por meio do extermínio das bruxas iii A acumulação primitiva não foi então simplesmente uma acumulação e uma concentração de trabalhadores explorá veis e de capital Foi também uma acumulação de diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora em que as hierarquias construídas sobre o gênero assim como sobre a raça e a idade se tornaram constitutivas da dominação de classe e da formação do proletariado moderno iv Não podemos portanto identifcar acumulação capitalista com libertação do trabalhador mulher ou homem como muitos marxistas entre outros têm feito ou ver a chegada do capitalismo como um momento de progresso histórico Pelo contrário o capitalismo criou formas de escravidão mais brutais e mais traiçoeiras na medida em que implantou no corpo do proletariado divisões profundas que servem para intensifcar e para ocultar a exploração É em grande medida por causa dessas imposições especialmente a divisão entre homens e mulheres que a acumulação capitalista continua devastando a vida em todos os cantos do planeta 121 120 A ACUMULAÇÃO CAPITALISTA E A ACUMULAÇÃO DO TRABALHO NA EUROPA Marx escreveu que o capital emerge sobre a face da terra escorrendo sangue e sujeira dos pés à cabeça Marx 2006 t I p 950 e com efeito quando olhamos para o começo do desenvolvimento capitalista temos a impressão de estar num imenso campo de concentração No Novo Mundo encontramos a submissão das populações nativas por meio dos regimes de mita e do cuatequil50 sob os quais uma multidão de pessoas deu a vida para extrair prata e mercúrio das minas de Huancavelica e Potosí Na Europa do Leste desenvolveuse uma segunda servidão que prendeu à terra uma população de produtores agrícolas que jamais havia sido serva51 Na Europa Ocidental ocorreram os cercamentos a caça às bruxas as marcações a fogo os açoites e o encarceramento de vagabundos e mendigos em workhouses52 e em casas correcionais recémconstruídas 50 Para uma descrição dos sistemas de encomienda mita e catequil ver entre outros André Gunder Frank 1978 p 45 Steve J Stern 1982 e Inga Clendinnen 1987 Gunder Frank descreveu a encomienda como um sistema sob o qual eram concedidos aos proprietários de terra espanhóis direitos sobre o trabalho das comunidades indígenas Porém em 1548 os espanhóis começaram a substituir a encomienda de servicio pelo repartimiento chamado de catequil no México e de mita no Peru que obrigava os chefes da comunidade indígena a fornecer ao juez repartidor juiz distribuidor espanhol certa quantidade de dias de trabalho por mês Por sua vez o funcionário espanhol distribuía esse fornecimento de trabalho a empreendedores qualificados contratantes de força de trabalho que deveriam pagar aos trabalhadores certo salário mínimo 1978 p 45 Sobre os esforços dos espanhóis para submeter os trabalhadores no México e no Peru por meio de diferentes etapas de colonização e seus impactos no colapso catastró fico da população indígena ver novamente Gunder Frank ibidem pp 439 51 Para uma discussão sobre a segunda servidão ver Immanuel Wallerstein 1974 e Henry Kamen 1971 Aqui é importante destacar que os camponeses trans formados em servos pela primeira vez produziam agora para o mercado internacional de cereais Em outras palavras apesar do caráter aparentemente retrógrado da relação de trabalho que lhes foi imposta sob o novo regime esses camponeses estavam integrados a uma economia capitalista em desenvolvimento e à divisão de trabalho capitalista em escala internacional 52 As workhouses literalmente casas de trabalho eram uma espécie de asilo para pobres estabelecidas na Inglaterra no século XVII NTE modelos para o futuro sistema carcerário No horizonte temos o surgimento do tráfco de escravos enquanto nos mares os barcos já transportavam indentured servants servos contrata dos53 e criminosos condenados da Europa para a América O que se deduz desse panorama é que a violência foi a principal alavanca o principal poder econômico no processo de acumulação primitiva54 porque o desenvolvimento capitalista exigiu um imenso salto na riqueza apropriada pela classe domi nante europeia e no número de trabalhadores colocado sob o seu comando Em outras palavras a acumulação primitiva consistiu uma imensa acumulação de força de trabalho trabalho mor to na forma de bens roubados e trabalho vivo na forma de seres humanos postos à disposição para sua exploração coloca da em prática numa escala nunca antes igualada na história De forma signifcativa a tendência da classe capitalista durante os primeiros três séculos de sua existência era impor a escravidão e outras formas de trabalho forçado como relação de trabalho dominante uma tendência que só foi limitada pela resistência dos trabalhadores e pelo perigo de esgotamento da força de trabalho Isso era o que ocorria não apenas nas colônias americanas onde no século XVI se formavam as economias baseadas no trabalho forçado mas também na Europa Mais adiante examinarei a importância do trabalho escravo e do sistema de plantation na acumulação capitalista Aqui quero destacar que 53 Os indentured servants eram obrigados a trabalhar por um determinado período de tempo durante o qual recebiam casa comida e às vezes uma escassa remu neração com a qual pagavam seu traslado a outro país NTE 54 Faço aqui eco da frase de Marx no tomo I de O capital A violência é ela mesma uma potência econômica Marx 2006 p 940 Muito menos convincente é a ob servação de Marx que acompanha a frase A violência é a parteira de toda velha sociedade que está prenhe de uma nova ibidem Em primeiro lugar as parteiras trazem vida ao mundo e não destruição Essa metáfora também sugere que o capitalismo evoluiu a partir de forças gestadas no seio do mundo feudal uma suposição que o próprio Marx refuta em sua discussão sobre a acumulação primitiva Comparar a violência com as potências gerado ras de uma parteira também coloca um véu de bondade sobre o processo de acumulação de capital sugerindo necessidade inevitabilidade e em última análise progresso 123 122 também na Europa do século XV a escravidão nunca completa mente abolida se viu revitalizada55 Como relata o historiador italiano Salvatore Bono a quem devemos o mais extenso estudo sobre a escravidão na Itália havia muitos escravos nas regiões do Mediterrâneo durante os séculos XVI e XVII e sua quantidade aumentou depois da Batalha de Lepanto 1571 que intensifcou as hostilidades contra o mundo muçulmano Bono calcula que em Nápoles viviam mais de dez mil escravos e em todo o reino napolitano 25 mil 1 da população em outras cidades da Itália e do sul da França registramse números similares Na Itália desen volveuse também um sistema de escravidão pública em que milhares de estrangeiros sequestrados os antepassados dos atuais imigrantes sem documentos eram empregados pelos governos municipais para obras públicas ou então entregues a particulares para trabalhar na agricultura Muitos eram desti nados a galeras de embarcações uma fonte de trabalho na qual se destacava a frota do Vaticano Bono 1999 pp 68 A escravidão é aquela forma de exploração que o senhor sempre se esforça para alcançar Dockes 1982 p 2 A Europa não era uma exceção e é importante que isso seja enfatizado para dissipar a suposição de que existe uma conexão especial entre a escravidão e a África56 No entanto a escravidão na Europa continuou sendo um fenômeno limitado já que as condições materiais para sua existência não estavam dadas 55 A escravidão nunca foi abolida na Europa Sobrevivia em certos nichos basicamente como escravidão doméstica feminina No final do século XV entretanto os portugueses começaram novamente a importar escravos da África As tentativas de esta belecer a escravidão continuaram na Inglaterra durante o século XVI resultando depois da introdução da assistência pública na construção de workhouses e casas correcionais processo em que a Inglaterra foi a pioneira na Europa 56 Sobre esse ponto ver Samir Amin 1974 Também é importante ressaltar a existência da escravidão europeia durante os séculos XVI e XVII e depois pois esse fato foi frequentemente esquecido pelos historiadores europeus De acordo com Salvatore Bono este esquecimento autoinduzido é produto da Partilha da África justificada como uma missão para pôr fim à escravidão no continente africano Bono argumenta que as elites europeias não podiam admitir ter empregado escravos na Europa o pretenso berço da democracia embora o desejo dos empregadores em implementála deva ter sido muito intenso se levarmos em conta que na Inglaterra não foi abolida até o século XVIII A tentativa de reinstaurar a servi dão também falhou exceto no Leste Europeu onde a escassez populacional conferiu aos proprietários de terra um novo poder de decisão Immanuel Wallerstein 1974 pp 905 e Peter Kriedte 1978 pp 6970 Na Europa Ocidental sua restauração foi evitada devido à resistência campesina que culminou nas Guerras Camponesas na Alemanha A revolução do homem comum um amplo esforço organizacional que se espalhou por três países Alemanha Áustria e Suíça unindo trabalhadores de todos os setores agricultores mineiros artesãos inclusive os melhores artistas alemães e austríacos57 foi um marco na história europeia Assim como a Revolução Bolchevique de 1917 na Rússia a revolução atacou diretamente o centro de poder Ao recordar a tomada de Münster pelos anabatistas os poderosos confrmaram seus temores de que estava em marcha uma conspiração internacional para destituílos58 Depois da derrota 57 Paolo Thea 1998 reconstituiu de forma poderosa a história dos artistas alemães que se posicionaram ao lado dos camponeses Durante a Reforma alguns dos melhores artistas do século XVI abandonaram seus ateliês para se unir aos camponeses em luta Escreveram documentos inspirados nos princípios da pobreza evangélica como o de compartilhar os bens e o da redistribuição da riqueza Algumas vezes empunharam armas pela causa A lista interminável de quem depois das derrotas militares de maio e junho de 1525 encarou os rigores do Código Penal aplicado de forma impiedosa pelos vencedores contra os vencidos inclui nomes famosos Entre eles estão Jorg Ratget esquartejado em Pforzheim Stuttgart Philipp Dietman decapitado e Tilman Riemenschneider mutilado ambos em Würzburg e Matthias Grunewald perseguido na corte de Magonza onde trabalhava Os aconteci mentos impactaram Holbein o Jovem a tal ponto que ele abandonou a Basileia cidade dividida pelo conflito religioso Na Suíça na Áustria e no Tirol os artistas também participaram da Guerra Cam ponesa inclusive artistas famosos como Lucas Cranach Cranach o velho e um grande número de pintores e gravadores menores ibidem p 7 Thea afirma que a participação profundamente sentida dos artistas na causa dos camponeses também está demons trada pela revalorização de temas rurais que retratam a vida campesina camponeses dançando animais e flora na arte alemã do século XVI ibidem pp 1215 73 79 80 O campo tinha se animado ele havia adquirido no levante uma personalidade que valia a pena representar ibidem p 155 58 Durante os séculos XVI e XVII os governantes europeus interpretaram e re primiram cada protesto social pelo prisma da guerra campesina e do anabatismo Os ecos da revolução anabatista foram sentidos na Inglaterra elisabetana e na França inspirando severidade e rigorosa vigilância com relação a qualquer desafio à autoridade constituída Anabatista tornouse uma palavra maldita um símbolo de opróbrio e intenção crimino 125 124 Gravura alemã do início do século XVII revelando o credo anabatista na partilha comunitária de bens Ver nota de rodapé 58 ocorrida no mesmo ano da conquista do Peru e celebrada por Albrecht Dürer em seu Monumento aos camponeses vencidos Thea 1998 pp 65 1345 a vingança foi impiedosa Milhares de cadáveres jaziam no chão da Turíngia até a Alsácia nos campos nos bosques em fossos de milhares de castelos desmantelados e incendiados assassinados torturados empalados martirizados ibidem pp 146 153 Mas o relógio não podia andar para trás Em várias regiões da Alemanha e em outros territórios que haviam estado no centro da guerra mantiveramse direitos consuetudinários e até mesmo formas de governo territorial59 sa como comunista nos Estados Unidos da década de 1950 e como terrorista nos dias de hoje 59 Em algumas cidadesEstado mantiveramse as autoridades aldeãs e os pri vilégios Em várias comarcas os camponeses continuaram negandose a pagar dívidas impostos e serviços laborais Me deixavam gritar e não me davam nada queixavase o abade de Schussenried referindose a quem trabalhava em sua terra Blickle 1985 p 172 Na Alta Suábia apesar de a servidão não ter sido abolida algumas das principais demandas dos camponeses em relação aos direitos de herança e matrimônio foram acei tas por meio do Tratado de Memmingen de 1526 No Alto Reno algumas comarcas tam No entanto essa era uma exceção Nos lugares em que não foi possível vencer a resistência dos trabalhadores que se recu savam a voltar à situação de servos a resposta foi a expropriação da terra dos camponeses e a introdução do trabalho assalariado forçado Os trabalhadores que tentavam oferecer seu trabalho de forma independente ou abandonar seus empregadores eram castigados com o encarceramento e até mesmo com a morte em caso de reincidência Na Europa não se desenvolveu um mercado de trabalho livre até o século XVIII e mesmo depois disso o trabalho assalariado contratado só foi obtido após uma intensa luta e para um grupo limitado de pessoas na maioria homens adultos No entanto o fato de que a escravidão e a servidão não puderam ser restabelecidas signifcou que a crise do trabalho que caracterizou a Baixa Idade Média continuou na Europa até a entrada do século XVII agravada pelo fato de que a campanha para maximizar a exploração do trabalho colocou em risco a reprodução da força de trabalho Essa contradição que ainda caracteriza o desenvolvimento capitalista60 explodiu de modo ainda mais dramático nas colônias americanas onde o trabalho as doenças e os castigos disciplinares destruíram dois terços da população original nas décadas imediatamente após a bém chegaram a acordos que eram positivos para os camponeses ibidem pp 1729 Em Berna e Zurique na Suíça a escravidão foi abolida Negociaramse melhorias para o homem comum no Tirol e em Salzburgo ibidem pp 1769 Porém a verdadeira filha da revolução foi a assembleia territorial instituída na Alta Suábia depois de 1525 que assentou as bases para um sistema de autogoverno que perdurou até o século XIX Então surgiram novas assembleias territoriais que realizaram debilmente uma das demandas de 1525 que o homem comum fizesse parte das cortes territoriais junto com a nobreza o clero e os habitantes das cidades Blickle conclui que onde quer que essa causa tenha triunfado não podemos dizer que ali os senhores tenham coroado sua conquista militar com uma vitória política já que o príncipe estava ainda atado ao consentimento do homem comum Somente depois durante a formação do Estado absoluto o príncipe pôde liberarse do consentimento ibidem pp 1812 60 Referindose à crescente pauperização no mundo ocasionada pelo desen volvimento capitalista o antropólogo francês Claude Meillassoux 1981 p 140 em Mulheres celeiros capitais afirmou que essa contradição anuncia uma futura crise para o capitalismo Em última instância o imperialismo como meio para reproduzir força de trabalho barata está levando o capitalismo a uma grave crise já que embora existam milhões de pessoas no mundo que não participam diretamente do emprego capitalista quantos ainda podem devido ao rompimento dos laços sociais à fome e às guerras que causa produzir para sua própria subsistência e alimentar seus filhos 126 Conquista61 A contradição também estava no cerne do tráfco e da exploração do trabalho escravo Milhões de africanos morre ram devido às terríveis condições de vida a que estavam sujeitos durante a travessia62 e nas plantations Nunca na Europa a ex ploração da força de trabalho atingiu proporções tão genocidas exceto sob o regime nazista Ainda assim nos séculos XVI e XVII a privatização da terra e a mercantilização das relações sociais a resposta dos senhores e dos comerciantes à crise econômica também causaram ali uma pobreza e uma mortalidade genera lizadas além de uma intensa resistência que ameaçou afundar a nascente economia capitalista Sustento que esse é o contexto histórico em que se deve situar a história das mulheres e da re produção na transição do feudalismo para o capitalismo porque as mudanças que a chegada do capitalismo introduziu na posição social das mulheres especialmente entre as proletárias seja na Europa seja na América foram impostas basicamente com a fnalidade de buscar novas formas de arregimentar e dividir a força de trabalho Para apoiar essa argumentação neste texto serão traçados 61 A dimensão da catástrofe demográfica causada pelo intercâmbio colom biano continua sendo debatida até hoje As estimativas do declínio da população na América do Sul e na América Central no primeiro século póscolombiano variam muito mas a opinião acadêmica contemporânea é quase unânime em comparar seus efeitos a um holocausto americano André Gunder Frank escreve que em pouco mais de um século a população indígena caiu 90 chegando a 95 no México Peru e em algumas outras regiões 1978 p 43 De forma semelhante Noble David Cook diz que talvez nove milhões de pessoas viviam dentro dos limites delineados pelas fronteiras atuais do Peru Um século depois do contato o número de habitantes remanescentes era mais ou menos uma décima parte dos que estavam ali quando os europeus invadiram o mundo andino Cook 1981 p 116 62 Em inglês a travessia de barcos carregados de escravos da África até a América recebia o nome de Middle Passage Os barcos começavam a viagem na Europa carregados de mercadoria que trocavam por escravos na costa da África Logo empreen diam viagem à América carregados de escravos que vendiam para comprar mercadorias americanas que seriam por sua vez vendidas na Europa Isto é desse circuito triangular o tráfico de escravos ocupava o trajeto intermediário e por isso alguns textos traduzem a expressão por passagem intermediária NTE Camponês desfraldando a bandeira da Liberdade estimado em 1525 129 128 Albrecht Dürer Monumento aos camponeses vencidos 1526 Esta imagem que representa um camponês entronizado sobre uma coleção de objetos de sua vida cotidiana é altamente ambígua Pode sugerir que os camponeses foram traídos ou que eram eles mesmos que deveriam ser tratados como traidores Portanto a imagem foi interpretada tanto como uma sátira dos camponeses rebeldes quanto como uma homenagem à sua força moral O que sabemos com certeza é que Dürer ficou profundamente perturbado pelos eventos de 1525 e como luterano convicto deve ter seguido Lutero em sua condenação da revolta os principais desenvolvimentos que deram forma ao advento do capitalismo na Europa a privatização da terra e a Revolução dos Preços Defendo que nenhuma das duas foi sufciente para pro duzir um processo de proletarização autossustentável Depois examinarei em linhas gerais as políticas que a classe capita lista introduziu com o fm de disciplinar reproduzir e expandir o proletariado iniciando com o ataque contra as mulheres e resultando na construção de uma nova ordem patriarcal que defno como o patriarcado do salário Finalmente indagarei até que ponto a produção de hierarquias raciais e sexuais nas colônias foi capaz de formar um campo de confrontação ou de solidariedade entre mulheres indígenas africanas e europeias e entre mulheres e homens 131 130 Jacques Callot Os horrores da guerra 1633 Gravura em metal Os homens enforcados pelas autoridades militares eram soldados que viraram ladrões Exsoldados eram uma parte importante do contingente de vagabundos e mendigos que lotava as estradas da Europa do século XVII A PRIVATIZAÇÃO DA TERRA NA EUROPA A PRODUÇÃO DE ESCASSEZ E A SEPARAÇÃO ENTRE PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO Desde o começo do capitalismo a guerra e a privatização da terra empobreceram a classe trabalhadora Este fenômeno foi internacional Em meados do século XVI os comerciantes euro peus haviam expropriado boa parte da terra das Ilhas Canárias para transformála em plantations de canadeaçúcar O maior processo de privatização e cercamento de terras ocorreu no con tinente americano onde no início do século XVII os espanhóis tinham se apropriado de um terço das terras comunais indíge nas sob o sistema da encomienda A caça de escravos na África trouxe como consequência a perda de terras porque privou muitas comunidades de seus melhores jovens Na Europa a privatização da terra começou no fnal do século XV coincidindo com a expansão colonial Ela assumiu formas diferentes despejo de inquilinos aumento de aluguel e impostos elevados por parte do Estado o que levou ao endi vidamento e à venda de terras Defno todos esses processos como expropriação de terra porque mesmo quando a força não era usada a perda da terra se dava contra a vontade do indivíduo ou da comunidade solapando sua capacidade de subsistência Duas formas de expropriação de terra devem ser mencionadas a guerra cujo caráter mudou nesse período uma vez que passou a ser usada como meio para transformar arranjos territoriais e econômicos e a reforma religiosa Antes de 1494 o confito bélico na Europa havia consistido principalmente em guerras menores caracterizadas por cam panhas breves e irregulares Cunningham e Grell 2000 p 95 Elas frequentemente ocorriam no verão para dar tempo aos camponeses que formavam a maior parte dos exércitos de se mear seus cultivos os exércitos se enfrentavam durante longos períodos sem que houvesse muita ação No entanto no século XVI as guerras tornaramse mais frequentes e apareceu um novo tipo de confito em parte devido à inovação tecnológica mas principalmente porque os Estados europeus começaram a recorrer à conquista territorial para resolver suas crises econô micas fnanciados por ricos investidores As campanhas milita res tornaramse muito mais longas Os exércitos cresceram dez vezes em tamanho tornandose permanentes e profssionais63 Foram contratados mercenários que não tinham nenhum laço com a população O objetivo da guerra começou a ser a elimi nação do inimigo de tal maneira que deixava em sua esteira vilarejos abandonados campos cobertos de cadáveres fome e 63 Sobre as mudanças na natureza da guerra na Europa moderna ver Cunnin gham e Grell 2000 pp 95102 e Kaltner 1998 Cunningham e Grell 2000 p 95 es crevem Em 1490 um exército grande era formado por 20 mil homens em 1550 tinha duas vezes esse tamanho enquanto até o final da Guerra dos Trinta Anos os principais Estados europeus tinham exércitos terrestres de cerca de 150 mil homens 133 132 epidemias como em Os quatro cavaleiros do Apocalipse 1498 de Albrecht Dürer64 Esse fenômeno cujo impacto traumático sobre a população foi refetido em numerosas representações artísticas mudou a paisagem agrária da Europa Muitos contratos de arrendamento também foram anulados quando terras da Igreja foram confscadas durante a Reforma que começou com uma apropriação de terras massiva por parte da classe alta Na França um apetite comum pelas terras da Igreja inicialmente uniu classes baixas e altas no movimento protestante mas quando a terra foi leiloada a partir de 1563 os artesãos e os trabalhadores diaristas que haviam exigido a expropriação da Igreja com uma paixão nascida da amargura e da esperança e que haviam se mobilizado sob a promessa de que eles também receberiam a sua parte foram traídos em suas expectativas Le Roy Ladurie 1974 pp 1736 Os camponeses que haviam se tornado protestantes para se livrar dos dízimos também foram enganados Quando defenderam seus direitos declarando que o Evangelho promete terra liberdade e eman cipação foram selvagemente atacados como fomentadores da sedição ibidem p 19265 Na Inglaterra grande parte da terra também mudou de mãos em nome da reforma religiosa W G Hoskin descreveu essa mudança como a maior transferência de terras na história inglesa desde a conquista normanda ou mais sucintamente como O Grande Saque66 Na Inglaterra 64 A gravura de Albrecht Dürer não foi a única representação dos quatro cavalei ros do Apocalipse Há também uma de Lucas Cranach 1522 e uma de Mattheus Merian 1630 As representações de campos de batalha retratando matanças de soldados e civis vilarejos em chamas e filas de corpos enforcados são muitas para serem todas mencio nadas A guerra é provavelmente o tema principal na pintura dos séculos XVI e XVII infiltrandose em cada representação até mesmo nas mais ostensivamente dedicadas a temas sacros 65 Este desenlace põe em evidência os dois espíritos da Reforma um popular e outro elitista que logo se dividiram em linhas opostas Enquanto a ala conservadora da reforma insistia nas virtudes do trabalho e da acumulação de riquezas a ala popular exi gia uma sociedade governada pelo amor piedoso pela igualdade e pela solidariedade Sobre as dimensões de classe da Reforma ver Henry Heller 1986 e PoChia Hsia 1988 66 Hoskins 1976 pp 1213 Na Inglaterra a Igreja préReforma havia concen trado de 25 a 30 da propriedade Henrique VIII vendeu 60 das suas terras Hoskins 1976 pp 1213 Quem mais ganhou com o confisco e teve maior entusiasmo com o cer todavia a privatização da terra foi realizada basicamente por meio de cercamentos um fenômeno que foi associado de tal modo com a expropriação dos trabalhadores da sua riqueza coletiva que em nosso tempo é usado por militantes anticapi talistas como um signifcante para cada ataque sobre os direitos sociais67 No século XVI cercamento era um termo técnico que indicava o conjunto de estratégias usadas pelos lordes ingleses e pelos fazendeiros ricos para eliminar o uso comum da terra e expandir suas propriedades68 Referiase sobretudo à abolição camento das terras adquiridas não foi a antiga nobreza nem aqueles que dependiam dos espaços comuns para se manter mas a pequena nobreza proprietária de terras gentry e os homens novos especialmente advogados e comerciantes que personificavam a avareza na imaginação campesina Cornwall 1977 pp 228 Era contra esses homens novos que os camponeses se inclinavam a extravasar sua fúria A tabela Kridte 1983 p 60 registra um excelente retrato da situação ilustrando quem foram os vencedores e os perdedores na grande transferência de terras ocorrida durante a Reforma Inglesa Ela mostra que entre 20 e 25 da terra em mãos da Igreja se transformaram em proprieda de da gentry As colunas seguintes são as mais relevantes DISTRIBUIÇÃO DA TERRA POR GRUPO SOCIAL NA INGLATERRA E NO PAÍS DE GALES 1436 EM EXCLUINDO GALES 1690 EM GRANDES PROPRIETÁRIOS 1520 1520 GENTRY 25 4550 PEQUENOS PROPRIETÁRIOS 20 2533 IGREJA E COROA 2530 510 Sobre as consequências da Reforma na Inglaterra no que concerne à propriedade da terra ver também Christopher Hill 1958 p 41 que escreve Não é necessário idealizar as abadias como proprietárias indulgentes para admitir certa verdade nas acusações contemporâneas de que os novos compradores diminuíram os contratos de arrendamento arruinaram os aluguéis e desalojaram os inquilinos Não sabes disse John Palmer a um grupo de arrendatários que estava desalojando que a graça do rei degradou todas as casas dos monges dos frades e das freiras Portanto não terá che gado o momento em que nós gentlemen degradaremos as casas desses pobres patifes 67 Ver Midnight Notes 1990 Notas da meianoite também The Ecologist 1993 O Ecologista e o debate em curso sobre cercamentos e o comum em The Commoner disponível em wwwcommonerorguk especialmente o número 2 setem bro de 2001 e o número 3 janeiro de 2002 68 Antes de mais nada cercamento queria dizer envolver um pedaço de terra com cercas canais ou outras barreiras ao livre trânsito de homens e animais em que a cerca era marca de propriedade e ocupação exclusiva de um terreno Portanto por meio do cercamento o uso coletivo da terra geralmente acompanhando por algum grau de propriedade comunal seria abolido suplantado pela propriedade individual e pela ocupa ção isolada G Slater 1968 pp 12 Havia uma variedade de meios para se abolir o uso 135 134 do sistema de campos abertos openfeld system um acordo pelo qual os aldeões possuíam faixas de terra não contíguas num campo sem cercas Cercar incluía também o fechamento das terras comunais e a demolição dos barracos dos camponeses que não tinham terra mas podiam sobreviver graças a seus direitos consuetudinários69 Grandes extensões de terra também foram cercadas para criar reservas de veados ao passo que vilarejos inteiros foram derrubados para serem transformados em pasto Embora os cercamentos tenham continuado até o século XVIII Neeson 1993 antes mesmo da Reforma mais de duas mil comunidades rurais foram destruídas dessa maneira Fryde 1996 p 185 A extinção dos vilarejos rurais foi tão severa que a Coroa ordenou uma investigação em 1518 e outra em 1548 Porém apesar da nomeação de várias comissões reais pouco se fez para deter essa tendência Começou então uma luta intensa culminando em numerosos levantes acompanhados por um extenso debate sobre os méritos e deméritos da privatização da terra que continua até os dias atuais revitalizado pela investida do Banco Mundial sobre os últimos bens comuns do planeta Resumidamente o argumento oferecido pelos moderni zadores de todas as posições políticas é que os cercamentos coletivo da terra nos séculos XV e XVI As vias legais eram i a compra por uma pessoa de todos os lotes alugados e de seus direitos acessórios ii a emissão por parte do rei de uma licença especial para cercar ou a aprovação de uma lei de cercamento pelo Parlamento iii um acordo entre o proprietário e os inquilinos incorporado num decreto da Chancery corte especializada em assuntos civis NTE iv a realização de cercamentos parciais de terrenos baldios por parte dos lordes sob as disposições dos Estatutos de Merton 1235 e Westminster 1285 Roger Manning destaca no entanto que esses métodos legais escondiam muitas vezes o uso da força a fraude e a intimidação contra os inquilinos Manning 1998 p 25 E D Fryde também escreve que o assédio prolongado aos in quilinos combinado com ameaças de despejo à mínima oportunidade legal e a violência física foram usados para provocar despejos em massa particularmente durante os anos de desordem entre 1450 e 1485 isto é no período da Guerra das Duas Rosas Fryde 1996 p 186 Em Utopia 1516 Thomas More expressou a angústia e a desolação geradas por essas expulsões em massa quando falou de certas ovelhas que haviam se tornado tão gulo sas e selvagens que comiam e engoliam os próprios homens Ovelhas acrescentou que consomem e destroem e devoram campos inteiros casa e cidades 69 Em The Invention of Capitalism 2000 p 38 e segs A invenção do capita lismo Michael Perelman ressaltou a importância dos direitos consuetudinários por exemplo a caça que eram muitas vezes de vital importância marcando a diferença entre a sobrevivência e a indigência total estimularam a efciência agrícola e que os deslocamentos pro vocados foram compensados com um crescimento signifcativo da produtividade da terra Afrmase que a terra estava esgo tada e que se tivesse permanecido nas mãos dos pobres teria deixado de produzir antecipando a tragédia dos comuns de Garrett Hardin70 enquanto sua aquisição por parte dos ricos permitiu que a terra descansasse Junto com a inovação agrí cola continua o argumento os cercamentos tornaram a terra mais produtiva o que levou à expansão do abastecimento de alimentos Desse ponto de vista qualquer exaltação dos méri tos da posse coletiva da terra é descartada como uma nostalgia pelo passado presumindo que as formas comunais agrárias são retrógradas e inefcientes e que quem as defende sofre de um apego desmedido à tradição71 Entretanto esses argumentos não se sustentam A privatiza ção da terra e a comercialização da agricultura não aumentaram 70 O ensaio de Garrett Hardin sobre A Tragédia dos Comuns 1968 foi um dos pilares da campanha ideológica de apoio à privatização da terra na década de 1970 A tra gédia na versão de Hardin é a inevitabilidade do egoísmo hobbesiano como determinante do comportamento humano Em sua opinião num campo comum hipotético cada pastor quer maximizar seu lucro sem levar em conta as repercussões de sua ação sobre os outros pastores de tal maneira que a ruína é o destino a que todos os homens se apressam cada um perseguindo seu próprio interesse Baden e Nooan 1998 pp 89 71 A defesa dos cercamentos a partir da modernização tem uma longa história mas o neoliberalismo lhe deu novo impulso Seu principal fomentador foi o Banco Mundial que frequentemente exige aos governos da África da Ásia da América Latina e da Oceania que privatizem suas terras comuns como condição para recebimento de empréstimos Banco Mundial 1989 Uma defesa clássica dos ganhos em produtividade derivados dos cercamentos pode ser encontrada em Harriett Bradley 1968 1918 A literatura acadê mica adotou um enfoque a partir de custobenefício mais equânime exemplificado pelos trabalhos de G E Mingay 1997 e Robert s Duplessis 1997 pp 6570 A batalha sobre os cercamentos agora cruzou as fronteiras disciplinares e está sendo discutida também por especialistas em literatura Um exemplo do cruzamento de fronteiras disciplinares está em Richard Burt e John Michael Archer org Enclosure Acts Sexuality Property and Culture in Early Modern England 1994 Atos de cercamento sexualidade propriedade e cultura no início da Inglaterra Moderna especialmente os ensaios de James R Siemon Landlord Not King Agrarian Change and Interarticulation Senhor feudal não rei mu dança agrária e interarticulação e William C Carroll The Nursery of Beggary Enclosure Vagrancy and Sedition in the TudorStuart Period A creche da mendicância cercamento vagabundagem e sedição na era TudorStuart Carroll detectou que houve no período Tudor uma animada defesa dos cercamentos e uma crítica aos campos comuns levada a cabo por portavozes da própria classe que cercava De acordo com esse discurso os cerca mentos fomentavam a empresa privada que por sua vez aumentava a produção agrária enquanto os campos comuns eram os semeadores e receptáculos de ladrões delinquentes e mendigos Carroll 1994 pp 378 137 136 a quantidade de alimentos disponíveis para as pessoas comuns embora tenha aumentado a disponibilidade de comida para o mercado e para a exportação Para os trabalhadores isso representou a instauração de dois séculos de fome da mesma forma que atualmente mesmo nas áreas mais férteis da África da Ásia e da América Latina a desnutrição é endêmica devido à destruição da posse comum da terra e da política de expor tação ou morte imposta pelos programas de ajuste do Banco Mundial Tampouco a introdução de novas técnicas agrícolas na Inglaterra compensou essa perda Pelo contrário o desen volvimento do capitalismo operou em perfeita harmonia com o empobrecimento da população rural Lis e Soly 1979 p 102 Um testemunho da miséria produzida pela privatização da terra é o fato de que apenas um século depois do surgimento do capitalismo agrário sessenta cidades europeias instituíram alguma forma de assistência social ou estavam se movendo nesse sentido ao mesmo tempo que a indigência se tornava um problema internacional ibidem p 87 O crescimento populacio nal pode ter contribuído mas sua importância foi vista de modo exagerado e deve ser circunscrita no tempo Nos últimos anos do século XVI a população estava se estagnando ou diminuindo em quase toda a Europa mas naquela época os trabalhadores não extraíam nenhum benefício dessa mudança Há também erros em relação à efetividade do sistema de agricultura de campos abertos Historiadores neoliberais des creveramno como um desperdício mas até mesmo um partidá rio da privatização da terra como Jean De Vries reconhece que o uso comum dos campos agrícolas tinha muitas vantagens Ele protegia os camponeses do fracasso de uma colheita devido à variedade de faixas de terra a que uma família tinha acesso também permitia um planejamento manejável do trabalho dado que cada faixa requeria atenção em diferentes momen tos e promovia uma forma de vida democrática construída sobre a base do autogoverno e da autossufciência já que todas as decisões quando plantar quando colher quando drenar os pântanos quantos animais seriam permitidos nos campos comuns eram tomadas pelos camponeses em assembleia De Vries 1976 pp 423 Hoskins 1976 pp 112 As mesmas considerações são aplicáveis às terras comu nais Menosprezadas na literatura do século XVI como uma fonte de preguiça e de desordem as terras comunais eram fun damentais para a reprodução de muitos pequenos fazendeiros ou lavradores que sobreviviam apenas porque tinham acesso Festa Rural Todos os festivais os jogos e os encontros da comunidade camponesa tinham lugar nas terras comunais Detalhe de gravura de Daniel Hopfer século XVI 139 138 a pradarias nas quais podiam manter vacas ou bosques dos quais extraíam madeira frutos silvestres e ervas ou pedreiras lagoas onde podiam pescar e espaços abertos para reunirse Além de incentivar as tomadas de decisão coletivas e a coopera ção no trabalho as terras comunais eram a base material sobre a qual podia crescer a solidariedade e a sociabilidade campe sina Todos os festivais os jogos e as reuniões da comunidade camponesa eram realizados nas terras comunais72 A função social das terras comunais era especialmente importante para as mulheres que tendo menos direitos sobre a terra e menos poder social eram mais dependentes das terras comunais para a subsistência a autonomia e a sociabilidade Parafraseando a afrmação de Alice Clark sobre a importância dos mercados para as mulheres na Europa précapitalista é possível dizer que as terras comunais também foram o centro da vida social das mu lheres o lugar onde se reuniam trocavam notícias recebiam conselhos e podiam formar um ponto de vista próprio autô nomo da perspectiva masculina sobre os acontecimentos da comunidade Clark 1968 p 51 Essa rede de relações de cooperação a que R D Tawney se referiu como o comunismo primitivo do vilarejo feudal desmoronou quando o sistema de campos abertos foi abolido e as terras comunais foram cercadas Tawney 1967 Não só a cooperação no trabalho agrícola desapareceu quando a terra foi privatizada e os contratos individuais de trabalho substituíram os coletivos mas também as diferenças econômicas entre a população rural se aprofundaram à medida que aumentou o número de ocupantes ilegais que não tinham nada além de uma cama e uma vaca e a quem não restava outra opção a não 72 Os campos comuns eram os lugares onde se realizavam os festivais populares e outras atividades coletivas como esportes jogos e reuniões Quando foram cercados a sociabilidade que havia caracterizado a comunidade dos vilarejos foi gravemente debi litada Entre os rituais que deixaram de existir estava a rogationtide perambulation uma procissão anual entre os campos com o objetivo de benzer os futuros cultivos que não pôde continuar a acontecer devido aos cercamentos Underdown 1985 p 81 ser ajoelhar e baixar a cabeça para implorar por um emprego Seccombe 1992 A coesão social começou a se decompor73 as famílias se desintegraram os jovens deixaram os vilarejos para se unir à crescente quantidade de vagabundos ou trabalhadores itinerantes que logo se tornaram o principal problema social da época enquanto os idosos eram abandonados à sua pró pria sorte Isso prejudicou principalmente as mulheres mais ve lhas que não contando mais com o apoio de seus flhos caíam nas fleiras dos pobres ou sobreviviam à base de empréstimos pequenos furtos ou atrasando o pagamento de suas dívidas O resultado foi um campesinato polarizado não apenas por desi gualdades econômicas cada vez mais profundas mas também por um emaranhado de ódios e de ressentimentos que está bem documentado nos escritos sobre a caça às bruxas Eles mostram que as discussões relacionadas aos pedidos de ajuda à entrada de animais sem autorização em propriedades alheias e à ina dimplência de aluguéis estavam por trás de muitas acusações Kriedte 1983 p 55 Briggs 1998 pp 289316 Os cercamentos também debilitaram a situação econômica dos artesãos Da mesma forma que as corporações multina cionais se aproveitam dos camponeses cujas terras foram expropriadas pelo Banco Mundial para construir zonas de livre exportação onde as mercadorias são produzidas por menor custo nos séculos XVI e XVII os negociantes capitalistas se apro veitaram da mão de obra barata que se encontrava disponível nas áreas rurais para quebrar o poder das guildas urbanas e destruir a independência dos artesãos Isso aconteceu princi palmente com a indústria têxtil reorganizada como indústria artesanal rural na base do sistema doméstico antecedente 73 Sobre a decomposição da coesão social ver entre outros David Underdown 1985 Revel Riot and Rebellion Popular Politics and Culture in England 16031660 Festas revolta e rebelião política e cultura popular na Inglaterra 16031660 especial mente o capítulo 3 que também descreve os esforços empreendidos pela nobreza mais antiga para se distinguir dos novos ricos 141 140 da atual economia informal também construída sobre o trabalho das mulheres e das crianças74 Porém os trabalhadores têxteis não eram os únicos que tiveram seu trabalho barateado Logo que perderam o acesso à terra todos os trabalhadores lançaramse numa dependência econômica que não existia na época medieval considerandose que sua condição de semter ra deu aos empregadores o poder para reduzir seu pagamento e ampliar o dia de trabalho Em regiões protestantes isso ocorreu sob o disfarce da reforma religiosa que duplicou o ano de traba lho por meio da eliminação dos feriados religiosos Não é surpreendente que com a expropriação da terra vies se uma mudança de atitude dos trabalhadores com relação ao salário Enquanto na Idade Média os salários podiam ser vistos como um instrumento de liberdade em contraste com a obriga toriedade dos serviços laborais começaram a ser vistos como instrumentos de escravidão logo que o acesso à terra chegou ao fm Hill 1975 p 181 e segs75 Tamanho era o ódio que os trabalhadores sentiam pelo tra balho assalariado que Gerrard Winstanley o líder dos Digers76 declarou que se alguém trabalhava por um salário não faria 74 A indústria artesanal foi resultado da extensão da indústria rural no feudo reorganizada por negociantes capitalistas com a finalidade de aproveitar a grande reserva de trabalho liberada pelos cercamentos Com esta manobra os negociantes tentaram alterar os altos salários e o poder das guildas urbanas Foi assim que nasceu o sistema doméstico um sistema pelo qual os capitalistas distribuíam entre as famílias rurais lã ou algodão para fiar ou tecer e frequentemente também os instrumentos de trabalho e depois recolhiam o produto pronto A importância do sistema doméstico e da indústria artesanal para o desenvolvimento da indústria britânica pode ser deduzida do fato de que a totalidade da indústria têxtil o setor mais importante na primeira fase do desenvolvi mento capitalista foi organizada dessa maneira A indústria artesanal apresentava duas vantagens fundamentais para os empregadores evitava o perigo das associações e barateava o custo de trabalho já que sua organização no lar fornecia aos trabalhadores serviços domésticos gratuitos e a cooperação de seus filhos e esposas que eram tratadas como ajudantes e recebiam baixos salários como auxiliares 75 O trabalho assalariado foi tão identificado com a escravidão que os nivelado res levellers que defendiam a igualdade durante a Guerra Civil Inglesa no século XVII excluíam os trabalhadores assalariados do direito ao voto já que não os consideravam suficientemente independentes de seus empregadores para poder votar Por que uma pessoa livre haveria de escravizarse a si mesma perguntava o Zorro um personagem em Mother Hubbards Tale Conto da Mãe Hubbard de Edmund Spenser 1591 76 Diggers escavadores e Ranters faladores resmungões eram os nomes de grupos radicais que atuaram na Revolução Inglesa NTP diferença viver com o inimigo ou com seu próprio irmão Isso explica o crescimento na aurora do processo de cercamento usando o termo num sentido amplo para incluir todas as for mas de privatização da terra da quantidade de vagabundos e homens sem senhor que preferiam sair vagando pelos cami nhos arriscandose à escravidão ou à morte como prescrevia a legislação sangrenta aprovada contra eles a trabalhar por um salário Herzog 1989 pp 455277 Também explica a exte nuante luta que os camponeses realizaram para defender suas terras da expropriação não importa o quão escassas fossem Na Inglaterra as lutas contra o cercamento dos campos co meçaram no fnal do século XV e continuaram durante os séculos XVI e XVII quando a derrubada de cercas se tornou a forma mais importante de protesto social e o símbolo do confito de classes Manning 1988 p 311 Os motins contra os cercamentos se transformavam frequentemente em levantes de massa O mais notório foi a Rebelião de Kett assim chamada por causa de seu líder Robert Kett que se deu em Norfolk em 1549 Não se tratou de uma rusga menor Em seu auge os rebeldes somavam 16 mil contavam com uma artilharia derrotaram um exército do go verno de 12 mil homens e inclusive tomaram Norwich que era então a segunda maior cidade da Inglaterra78 Além disso os re beldes também haviam escrito um programa que se tivesse sido 77 A bibliografia sobre vagabundos é abundante Entre os autores mais impor tantes sobre este tema estão A Beier 1974 e B Geremek com a obra Poverty A History 1994 Pobreza uma história 78 Fletcher 1973 pp 6477 Cornwall 1977 pp 137241 Beer 1982 pp 82139 No início do século XVI a baixa gentry participou de muitos motins utilizando o ódio popular contra cercamentos aquisições e reservas para resolver disputas com seus superiores Porém depois de 1549 diminuiu a capacidade dirigente da pequena nobreza nas querelas sobre os cercamentos e os pequenos proprietários ou os artesãos e aqueles que trabalhavam na indústria artesanal doméstica tomaram a iniciativa nos protestos agrários Manning 1988 p 312 Manning descreve o forasteiro como típica vítima de um motim contra os cercamentos Os comerciantes que tentavam comprar seu ingresso na aristocracia proprietária eram particularmente vulneráveis aos motins contra os cercamentos assim como os fazendeiros que arrendavam terra Em 24 dos 75 casos da Corte da Star Chamber esses motins se dirigiram contra os novos proprietários e os fazen deiros Outros seis casos incluíam proprietários ausentes um perfil muito semelhante Manning 1988 p 50 143 142 colocado em prática teria controlado o avanço do capitalismo agrário e eliminado todos os vestígios do poder feudal no país Consistia em 29 demandas que Kett um fazendeiro e curtidor apresentou ao Lorde Protetor A primeira era que a partir de agora nenhum homem voltará a promover cercamentos Outros artigos exigiam que os aluguéis fossem reduzidos a valores que prevaleceram 65 anos antes que todos os possuidores de títulos pudessem desfrutar dos benefícios de todos os campos comuns e que todos os servos fossem libertados pois Deus fez a todos livres com seu precioso derramamento de sangue Fletcher 1973 pp 1424 Essas demandas foram colocadas em prática Em todo Norfolk cercas foram arrancadas Somente quando outro exército do governo atacou é que os rebeldes se detiveram 3500 foram assassinados no massacre que se seguiu e centenas foram feridos Kett e seu irmão William foram enforcados do lado de fora das muralhas de Norwich No entanto as lutas contra os cercamentos continuaram na época de James I com um evidente aumento da presença das mulheres Manning 1988 pp 967 1146 281 Mendelson e Crawford 1998 Durante seu reinado em torno de 10 dos motins contra os cercamentos incluíram mulheres entre os rebeldes Alguns protestos eram inteiramente femininos Em 1607 por exemplo 37 mulheres lideradas por uma tal Capitã Dorothy atacaram mineiros de carvão que trabalhavam naquilo que as mulheres reivindicavam como sendo os campos comuns do vilarejo de Thorpe Moor Yorkshire Quarenta mulheres foram derrubar as cercas e as barreiras de um cer camento em Waddingham Lincolnshire em 1608 e em 1609 num feudo de Dunchurch Warwickshire quinze mulheres incluindo esposas viúvas solteironas flhas solteiras e criadas se reuniram por sua conta para desenterrar as cercas e tapar os canais ibidem p 97 Novamente em York em maio de 1624 as mulheres destruíram um cercamento e por isso foram para a prisão diziase que haviam desfrutado do tabaco e da cer veja depois de sua façanha Fraser 1984 pp 2256 Mais tar de em 1641 a multidão que irrompeu num pântano cercado em Buckden era formada fundamentalmente por mulheres auxi liadas por meninos ibidem Esses são apenas alguns exemplos de um tipo de confronto em que mulheres portando forcados e foices resistiram ao cercamento de terras ou à drenagem de pântanos quando seu modo de vida estava ameaçado Essa forte presença feminina foi atribuída à crença de que as mulheres estavam acima da lei sendo protegidas legalmente por seus maridos Até mesmo os homens dizse se vestiam como mulheres para arrancar as cercas Porém essa Intitulada Mulheres e valetes a imagem de Hans Sebald Beham estimada em 1530 mostra o cortejo de mulheres que costumava seguir os exércitos inclusive nos campos de batalha As mulheres incluindo esposas e prostitutas cuidavam da reprodução dos soldados Notese a mulher usando uma mordaça 145 144 explicação não pode ser levada muito longe pois o governo não tardou em eliminar esse privilégio e começou a prender e encarcerar as mulheres que participavam nos motins contra os cercamentos79 Além disso não devemos pressupor que as mulheres não tinham seus próprios interesses na resistência à expropriação da terra Pelo contrário Assim como ocorreu com a comutação as mulheres foram as que mais sofreram quando a terra foi perdida e o vilarejo comunitário se desintegrou Isso se deve em parte ao fato de que para elas era muito mais difícil tornarse vagabundas ou trabalhadoras migrantes pois uma vida nômade as expunha à violência masculina especialmente num momento em que a misoginia estava crescendo As mulheres também tinham mo bilidade reduzida devido à gravidez e ao cuidado dos flhos um fato ignorado pelos pesquisadores que consideram que a fuga da servidão por meio da migração e de outras formas de no madismo seja uma forma paradigmática de luta As mulheres tampouco podiam se tornar soldados pagos apesar de algumas terem se unido aos exércitos como cozinheiras lavadeiras prostitutas e esposas80 porém essa opção também desapareceu no século XVII à medida que progressivamente os exércitos foram sendo regulamentados e as multidões de mulheres que costumavam seguilos foram expulsas dos campos de batalha Kriedte 1983 p 55 As mulheres também se viram prejudicadas pelos cerca mentos porque assim que a terra foi privatizada e as relações monetárias começaram a dominar a vida econômica elas 79 A crescente presença das mulheres nos levantes contra os cercamentos era in fluenciada pela crença popular de que a lei não regia as mulheres e de que estas podiam vencer os cercamentos com impunidade Mendelson e Crawford 1998 pp 3867 En tretanto a Corte da Star Chamber fez todo o possível para desacreditar a população sobre tal crença Em 1605 um ano depois da lei sobre bruxaria de Jaime I a Corte sancionou que se as mulheres cometerem as ofensas de entrar sem autorização amotinamento ou outra e se uma ação é trazida contra elas ou seus maridos eles pagarão multas e danos mesmo que a entrada ou a ofensa seja cometida sem o consentimento de seus maridos Manning 1988 p 98 80 Sobre esse tema ver entre outras Maria Mies 1986 passaram a encontrar difculdades maiores do que as dos homens para se sustentar tendo sido confnadas ao trabalho reprodutivo no exato momento em que este trabalho estava sendo absolutamente desvalorizado Conforme veremos esse fenômeno que acompanhou a mudança de uma economia de subsistência para uma monetária pode ser atribuído a diferen tes fatores em cada fase do desenvolvimento capitalista Fica claro todavia que a mercantilização da vida econômica forne ceu as condições materiais para que isso ocorresse Com o desaparecimento da economia de subsistência que havia predominado na Europa précapitalista a unidade entre produção e reprodução típica de todas as sociedades baseadas na produçãoparaouso chegou ao fm conforme essas ativi dades foram se tornando portadoras de outras relações sociais e eram sexualmente diferenciadas No novo regime monetário somente a produçãoparaomercado estava defnida como ati vidade criadora de valor enquanto a reprodução do trabalhador começou a ser considerada como algo sem valor do ponto de vista econômico e inclusive deixou de ser considerada um tra balho O trabalho reprodutivo continuou sendo pago embora em valores inferiores quando era realizado para os senhores ou fora do lar No entanto a importância econômica da repro dução da força de trabalho realizada no âmbito doméstico e sua função na acumulação do capital se tornaram invisíveis sendo mistifcadas como uma vocação natural e designadas como trabalho de mulheres Além disso as mulheres foram excluí das de muitas ocupações assalariadas e quando trabalhavam em troca de pagamento ganhavam uma miséria em compara ção com o salário masculino médio Essas mudanças históricas que tiveram um auge no sécu lo XIX com a criação da fgura da dona de casa em tempo inte gral redefniram a posição das mulheres na sociedade e com relação aos homens A divisão sexual do trabalho que emergiu 147 146 daí não apenas sujeitou as mulheres ao trabalho reprodutivo mas também aumentou sua dependência permitindo que o Estado e os empregadores usassem o salário masculino como instrumento para comandar o trabalho das mulheres Dessa forma a separação efetuada entre a produção de mercadorias e a reprodução da força de trabalho também tornou possível o desenvolvimento de um uso especifcamente capitalista do salário e dos mercados como meios para a acumulação de tra balho não remunerado O que é mais importante a separação entre produção e reprodução criou uma classe de mulheres proletárias que estavam tão despossuídas como os homens mas que diferen temente deles quase não tinham acesso aos salários Em uma sociedade que estava cada vez mais monetizada acabaram sendo forçadas à condição de pobreza crônica à dependência econômica e à invisibilidade como trabalhadoras Como veremos a desvalorização e a feminização do tra balho reprodutivo foi um desastre também para os homens trabalhadores pois a desvalorização do trabalho reprodutivo inevitavelmente desvalorizou o seu produto a força de traba lho Entretanto não há dúvida de que na transição do feuda lismo para o capitalismo as mulheres sofreram um processo excepcional de degradação social que foi fundamental para a acumulação de capital e que permaneceu assim desde então Diante desses fatos é impossível dizer que a separação en tre o trabalhador e a terra e o advento da economia monetária formaram o ponto culminante da luta travada pelos trabalha dores medievais para se libertarem da servidão Não foram os trabalhadores mulheres ou homens que foram libertados pela privatização da terra O que se libertou foi o capital na mesma medida em que a terra estava agora livre para funcionar como meio de acumulação e exploração e não mais como meio de subsistência Libertados foram os proprietários de terra que agora podiam despejar sobre os trabalhadores a maior parte do custo de sua reprodução dandolhes acesso a alguns meios de subsistência apenas quando estavam direta mente empregados Quando não havia trabalho disponível ou esse trabalho não era lucrativo o bastante como por exem plo em épocas de crises comerciais ou agrárias os trabalha dores podiam ao contrário ser despedidos e abandonados à própria sorte para morrer de fome A separação entre os trabalhadores e seus meios de sub sistência assim como sua nova dependência das relações monetárias signifcou também que o salário real agora podia ser reduzido ao mesmo tempo que o trabalho feminino podia ser mais desvalorizado com relação ao masculino por meio da manipulação monetária Não é coincidência então que assim que a terra começou a ser privatizada os preços dos alimentos que durante dois séculos haviam permanecido estacionados passaram a aumentar81 81 Por volta do ano de 1600 o salário real na Espanha havia perdido 30 de seu poder de compra com relação a 1511 Hamilton 1965 p 280 Sobre a Revolução dos Preços ver em particular o trabalho já clássico de Earl J Hamilton American Treasure and the Price Revolution in Spain 15011650 1965 O tesouro americano e a Revo lução dos Preços na Espanha 15011650 que estuda o impacto que tiveram os metais preciosos americanos David Hackett Fischer em The Great Wave Price Revolutions and the Rhythms of History 1996 A grande onda Revoluções dos Preços e os ritmos da his tória estuda os aumentos de preços desde a Idade Média até o presente particularmente no capítulo 2 pp 66113 e o livro compilado por Peter Ramsey The Price Revolution in Sixteenth Century England 1971 A Revolução dos Preços na Inglaterra do século XVI 149 148 A REVOLUÇÃO DOS PREÇOS E A PAUPERIZAÇÃO DA CLASSE TRABALHADORA EUROPEIA Devido às suas devastadoras consequências sociais esse fe nômeno infacionário foi chamado de Revolução dos Preços Ramsey 1971 Ele foi atribuído tanto pelos economistas daquele tempo quanto por posteriores Adam Smith por exemplo à chegada de ouro e prata da América fuindo para a Europa pela Espanha numa corrente colossal Hamilton 1965 p VII No entanto já foi notado que os preços haviam começado a aumentar antes de que esses metais passassem a circular nos mercados europeus Braudel 1966 vol I p 51724 Além disso o ouro e a prata por si mesmos não são capital e poderiam ter sido usados para outros fns como para produzir joias ou cúpulas douradas ou ainda para bordar roupas Se fun cionaram como instrumento para regular os preços capazes de transformar até mesmo o trigo em uma mercadoria preciosa foi porque se inseriram num universo capitalista em desenvolvi mento em que uma crescente porcentagem da população um terço na Inglaterra Laslett 1971 p 53 não tinha acesso à ter ra e precisava comprar os alimentos que antes havia produzido e porque a classe dominante aprendeu a usar o poder mágico do dinheiro para reduzir os custos laborais Em outras palavras os preços aumentaram por causa do desenvolvimento de um sistema de mercado nacional e internacional que estimulava a exportação e a importação de produtos agrícolas e porque os comerciantes acumulavam bens para depois vendêlos por um preço maior Em setembro de 1565 na Antuérpia enquanto os pobres literalmente morriam de fome nas ruas um depósito desmoronou de tão abarrotado que estava de cereais Hacket Fischer 1996 p 88 Foi nessas circunstâncias que a chegada do tesouro ameri cano provocou uma enorme redistribuição da riqueza e um novo processo de proletarização82 Os preços crescentes arruinaram os pequenos fazendeiros que tiveram de renunciar às suas terras para comprar cereais ou pão quando as colheitas não eram capazes de alimentar suas famílias e criaram uma classe de empresários capitalistas que acumularam fortunas pelo investimento na agri cultura e no empréstimo de dinheiro numa época em que possuir dinheiro era para muita gente uma questão de vida ou morte83 82 Assim resume Peter Kriedte 1983 pp 545 os desenvolvimentos econô micos desse período A crise aprofundou as diferenças de renda e de propriedade A pauperização e a proletarização cresceram de forma paralela à acumulação de riqueza Um trabalho sobre Chippenham em Cambridgeshire mostrou que as colheitas ruins de finais do século XVI e começo do XVII levaram a uma mudança decisiva Entre 1544 e 1712 as fazendas de porte médio quase desapareceram Ao mesmo tempo a proporção de propriedades de noventa acres ou mais cresceu de 3 para 14 as casas sem terras aumentaram de 32 para 63 83 Wallerstein 1974 p 83 Le Roy Ladurie 19281929 O crescente interesse dos empresários capitalistas pelo empréstimo foi talvez o motivo subjacente na expulsão dos judeus da maioria das cidades e países da Europa nos séculos XV e XVI Parma 1488 Milão 1489 Genebra 1490 Espanha 1492 e Áustria 1496 As expulsões e os pogroms continuaram durante um século ou mais Até a corrente mudar de rumo com Rodolfo II em 1577 era ilegal para os judeus viver em praticamente toda a Europa Ocidental Logo que o empréstimo se transformou em um negócio lucrativo esta atividade antes declarada indigna de um cristão foi reabilitada como demonstra esse diálogo entre um camponês e um bur guês rico escrito de forma anônima na Alemanha por volta de 1521 G Strauss pp 1101 CAMPONÊS O que me traz até você É que gostaria de ver como passa seu tempo BURGUÊS Como deveria passar meu tempo Estou aqui sentado contando meu dinhei ro não vê CAMPONÊS Digame burguês quem te deu tanto dinheiro que passa todo seu tempo a contálo BURGUÊS Quer saber quem me deu meu dinheiro Vou te contar Um camponês bate em minha porta e me pede que lhe empreste dez ou vinte florins Perguntolhe se possui um terreno de bons pastos ou um campo lindo para arar Ele diz Sim burguês tenho uma boa pradaria e um bom campo os dois juntos valem cem florins Eu lhe respondo Excelente Entregueme como garantia sua pradaria e seu campo e se você se comprometer a pagar um florim por ano como juros pode obter seu empréstimo de vinte florins Contente de ouvir a boa notícia o camponês responde Com prazer lhe darei essa garantia Mas devo dizer replico que se alguma vez deixar de pagar os juros a tempo tomarei posse de sua terra e a tornarei minha propriedade E isso não preocupa o camponês que prossegue empenhando a mim seus pastos e seu campo como garantia Eu emprestolhe o dinheiro e ele paga os juros pontualmente durante um ou dois anos logo vem uma colheita ruim e ele se atrasa em seus pagamentos Confisco sua terra desalojoo e a pradaria e o campo são meus E faço isso não só com os camponeses mas também com os artesãos Se um comerciante é dono de uma casa boa emprestolhe uma soma de dinheiro por ela e dentro de pouco tempo a casa me pertence Desta maneira adquiro uma grande quantidade de propriedades e riqueza e é por isso que passo todo meu tempo contando meu dinheiro CAMPONÊS E eu que pensava que só os judeus praticavam a usura Agora escuto que também os cristãos a praticam BURGUÊS Usura Quem está falando em usura O que o devedor paga são os juros 151 150 A Revolução dos Preços disparou também um colapso histórico nos salários reais comparável ao que vem ocorren do em nossa época na África na Ásia e na América Latina precisamente nos países que sofreram o ajuste estrutural do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional Em 1600 o salário real na Espanha havia perdido 30 de seu poder de compra com relação a 1511 Hamilton 1965 p 280 e seu colap so foi igualmente severo em outros países Enquanto o preço dos alimentos fcou oito vezes maior os salários apenas tripli caram Hackett Fischer 1996 p 74 Isso não foi obra da mão invisível do mercado mas produto de uma política estatal que impedia que os trabalhadores se organizassem enquanto dava aos comerciantes a máxima liberdade com relação ao estabele cimento de preços e ao movimento de mercadorias Como era de se esperar algumas décadas mais tarde o salário real havia perdido dois terços de seu poder de compra tal como mostram as mudanças que repercutiram nas remunerações diárias de um carpinteiro inglês expressas em quilos de cereais entre os séculos XIV e XVIII Slicher Van Bath 1963 p 327 ANOS QUILOS DE CEREAIS 13511400 1218 14011450 1551 14511500 1435 15001550 1224 15511600 830 16011650 483 16511700 741 17011750 946 17511800 796 Levou séculos para que os salários na Europa voltassem ao nível a que haviam chegado na Baixa Idade Média A situação piorou até o ponto em que na Inglaterra em 1550 os artesãos homens tinham que trabalhar quarenta semanas para ganhar o mesmo que ganhavam em quinze no começo do século Na França os salários caíram 60 entre 1470 e 1570 Hackett Fischer 1996 p 7884 O colapso do salário foi especialmente de sastroso para as mulheres No século XIV as mulheres recebiam metade da remuneração de um homem para realizar a mesma tarefa mas em meados do século XVI estavam recebendo ape nas um terço do salário masculino que já se encontrava redu zido e não podiam mais se manter com o trabalho assalariado nem na agricultura nem no setor manufatureiro um fato que sem dúvida é responsável pela gigantesca expansão da pros tituição nesse período85 O que se seguiu foi o empobrecimento absoluto da classe trabalhadora um fenômeno tão difundido e generalizado que em 1550 e muito tempo depois os trabalhado res na Europa eram chamados simplesmente de pobres Provas dessa dramática pauperização são as mudanças ocorridas na dieta dos trabalhadores A carne desapareceu de suas mesas com exceção de uns poucos restos de toucinho as sim como a cerveja e o vinho o sal e o azeite de oliva Braudel 1973 p 127 e segs Le Roy Ladurie 1974 Do século XVI ao XVIII a dieta dos trabalhadores consistiu basicamente em pão a principal despesa de seu orçamento Isso representou um 84 Com relação à Alemanha Peter Kriedte 1983 pp 512 escreve Uma investigação recente mostra que durante as três primeiras décadas do século XVI um trabalhador da construção em Augsburgo Baviera podia manter adequadamente sua mulher e dois filhos com seu salário anual A partir desse momento seu nível de vida começou a piorar Entre 1566 e 1575 e desde 1585 até a eclosão da Guerra dos Trinta Anos seu salário já não podia pagar o mínimo necessário para a subsistência de sua família Sobre o empobrecimento da classe trabalhadora europeia provocado pelos cercamentos e pela Revolução dos Preços ver também C Lis e H Soly 1979 pp 729 que afirmam que na Inglaterra entre 1500 e 1600 os preços dos cereais aumentaram seis vezes enquanto os salários aumentaram três vezes Não é de surpreender que para Francis Bacon os trabalhadores e os camponeses não fossem nada além de mendigos que vão de porta em porta Na França na mesma época a capacidade de compra dos camponeses e dos trabalhadores assalariados caiu 45 Em Newcastle trabalho assalariado e pobreza eram considerados sinônimos ibidem pp 724 85 Sobre o crescimento da prostituição no século XVI ver Nickie Roberts 1992 Whores in History Prostitution in Western Society As putas na história prostituição na sociedade ocidental 153 152 A Revolução dos Preços e a queda do salário real 14801640 A Revolução dos Preços desencadeou um colapso histórico no salário real Em poucas décadas o salário real perdeu dois terços de sua capacidade de compra Até o século XIX o salário real não voltaria ao nível que alcançara no século XV PhelpsBrown e Hopkins 1981 França Índice salarial 14511475 100 Alsácia Índice salarial 14511475 100 Sul da Inglaterra Índice salarial 14511475 100 As consequências sociais da Revolução dos Preços são reveladas por estes gráficos que indicam respectivamente o aumento do preço dos grãos na Inglaterra entre 1490 e 1650 o aumento concomitante dos preços e dos crimes contra a propriedade em Essex Inglaterra entre 1566 e 1622 e a queda da população medida em milhões de pessoas na Alemanha na Áustria na Itália e na Espanha entre 1500 e 1750 preços acusações preços acusações índice de preços Preço anual do grão 14501499 100 comparado com a média de 31 anos Alemanha e Áustria Itália Espanha população milhões 155 154 retrocesso histórico não importa o que pensemos sobre as nor mas alimentares comparado com a abundância de carne que caracterizou a Baixa Idade Média Peter Kriedte escreve que naquela época o consumo anual de carne havia atingido a ci fra de cem quilos por pessoa uma quantidade incrível até mes mo para os padrões atuais No século XIX esta cifra caiu para menos de vinte quilos Kriedte 1983 p 52 Braudel também fala do fm da Europa carnívora citando como testemunha o suábio Heinrich Müller que em 1550 comentou no passado comiase de uma forma diferente na casa de um camponês Naquela época havia abundância de carne e alimentos todos os dias as mesas das feiras e festas dos vilarejos afundavam de tanto peso Hoje tudo realmente mudou Por alguns anos de fato que época de calamidade que preços altos E a comida dos camponeses que estão em melhor situação é quase pior que a comida dos trabalhadores e ajudantes Braudel 1973 p 130 Não somente a carne desapareceu mas também se torna ram recorrentes os períodos de escassez agravados ainda mais nos tempos de colheitas ruins quando a falta de reservas de ce reais fazia com que seu preço subisse às nuvens condenando à fome os habitantes das cidades Braudel 1966 vol I p 328 Foi isso que ocorreu nas décadas de penúria de 1540 e de 1550 e no vamente nas de 1580 e de 1590 que foram umas das piores na história do proletariado europeu coincidindo com distúrbios generalizados e com uma quantidade recorde de julgamentos de bruxas A desnutrição porém também era desenfreada em tempos normais tanto que os alimentos adquiriram um alto va lor simbólico como indicador de privilégio O desejo por comida entre os pobres alcançou proporções épicas inspirando sonhos de orgias pantagruélicas como aquelas descritas por Rabelais em Gargântua e Pantagruel 1522 e causando obsessões apavorantes como a convicção difundida entre os agricultores do nordeste italiano de que as bruxas vagavam pelo campo à noite para se alimentar do gado Mazzali 1988 p 73 De fato a Europa que se preparava para se tornar o prome teico motor do mundo provavelmente levando a humanidade a novos patamares tecnológicos e culturais era um lugar onde as pessoas nunca tinham o sufciente para comer A comida passou a ser um objeto de desejo tão intenso que se acreditava que os pobres vendiam sua alma para o diabo para que ele lhes ajudasse a conseguir alimentos A Europa também era um lugar onde em tempos de más colheitas as pessoas do campo comiam caroços raízes selvagens e cortiça de árvores e multidões erravam pelos campos chorando e gemendo era tanta fome que poderiam devorar brotos nos campos Le Roy Ladurie 1974 ou invadiam as cidades para aproveitar a dis tribuição de cereais ou para atacar as casas e os armazéns dos ricos que por sua vez corriam para conseguir armas e fechar as portas das cidades de modo a manter os famintos do lado de fora Heller 1986 pp 5663 Que a transição para o capitalismo inaugurou um longo período de fome para os trabalhadores na Europa que muito possivelmente terminou devido à expansão econômica gera da pela colonização é algo que também fca demonstrado pelo fato de que enquanto nos séculos XIV e XV a luta dos trabalhadores havia se centrado em torno da demanda por mais liberdade e menos trabalho nos séculos XVI e XVII os trabalhadores foram espoliados pela fome e protagonizaram ataques a padarias e a armazéns e motins contra a exportação das colheitas locais Manning 1988 Fletcher 1973 Cornwall 1977 Beer 1982 Bercé 1990 Lombardini 1983 As autoridades descreviam quem participava desses ataques como inúteis pobres e gente humilde mas a maioria era composta de artesãos que viviam de forma muito precária nessa época 157 156 Eram as mulheres que em geral iniciavam e lideravam as revoltas por comida Na França do século XVII seis dos 31 motins por subsistência estudados por IvesMarie Bercé foram perpe trados exclusivamente por mulheres Nos demais a presença feminina era tão manifesta que Bercé os chama de motins de mulheres86 Ao comentar sobre esse fenômeno na Inglaterra do século XVIII Sheila Rowbotham concluiu que as mulheres se destacaram nesse tipo de protesto por seu papel de cuidadoras de suas famílias Porém as mulheres também foram as mais arrui nadas pelos altos preços já que por terem menos acesso que os homens ao dinheiro e ao emprego dependiam mais da comida barata para sobreviver Por esta razão apesar de sua condição subordinada rapidamente saíam às ruas quando os preços da comida aumentavam ou quando se espalhava o rumor de que se levariam os suprimentos de cereais da cidade Foi o que aconte ceu durante o levante de Córdoba em 1652 que começou cedo pela manhã quando uma mulher pobre foi chorando pelas ruas do bairro pobre levando o corpo de seu flho que havia morrido de fome Kamen 1971 p 364 O mesmo ocorreu em Montpellier no ano de 1645 quando as mulheres saíram às ruas para proteger seus flhos da fome ibidem p 356 Na França as mulheres cercavam as padarias se estivessem convencidas de que os cereais seriam racionados ou se descobrissem que os ricos 86 Kamen 1971 Bercé 1990 16979 Underdown 1985 Como comenta David Underdown 1985 p 117 O papel proeminente das mulheres amotinadas pela comida foi comentado com frequência Em Southampton em 1608 um grupo de mulheres se negou a esperar en quanto a corporação debatia sobre o que fazer com um barco que estava sendo carregado com destino a Londres o abordaram e se apossaram da carga Supõese que as mulheres foram as amotinadas no incidente de Weymouth em 1622 enquanto em Dorchester em 1631 um grupo alguns deles internos de uma casa de trabalho deteve uma carreta acreditando erroneamente que continha trigo um deles queixouse de um comerciante local que despachou para alémmar os melhores frutos da terra inclusive manteiga queijo trigo etc Sobre a presença das mulheres nos motins alimentares ver também Sara Mendelson e Patricia Crawford 1998 que escrevem As mulheres tiveram um papel preponderante nos motins por cereal na Inglaterra Por exemplo em Maldon em 1629 uma mul tidão de mais de cem mulheres e crianças abordaram os barcos para evitar que o cereal fosse despachado Eram liderados por uma tal Capitã Ann Carter que logo foi julgada e enforcada por liderar o protesto ibidem pp 3856 haviam comprado o melhor pão e que o restante era mais min guado ou mais caro Multidões de mulheres pobres se reuniam nas barracas dos padeiros exigindo pão e acusandoos de escon der suas provisões As revoltas estouravam também nas praças onde se realizavam as feiras de cereais ou nas rotas em que iam as carroças com milho para exportação e nas margens dos rios onde os barqueiros eram avistados carregando sacos Nessas ocasiões os amotinados armavam emboscadas para as carroças com forcados e varas os homens levavam os sacos as mulheres juntavam todo cereal que fosse possível em suas saias Bercé 1990 pp 1713 A luta por comida se deu também por outros meios tais como a caça ilegal o roubo dos campos ou casas vizinhas e os ataques às casas dos ricos Em Troyes em 1523 se espalhou Família de vagabundos Gravura de Lucas van Leyden 1520 159 158 o boato de que os pobres teriam tocado fogo nas casas dos ricos preparandose para invadilas Heller 1986 pp 556 Em Mechelen nos Países Baixos as casas dos especuladores foram marcadas com sangue por camponeses furiosos Hackett Fischer 1996 p 88 Não surpreende que os delitos famélicos tornaramse muito preocupantes nos procedimentos disciplina res dos séculos XVI e XVII Um exemplo é a recorrência do tema do banquete diabólico nos julgamentos por bruxaria suge rindo que banquetearse de cordeiro assado pão branco e vinho era agora considerado um ato diabólico se fosse feito por gente comum Mas as principais armas que os pobres tinham à sua disposição na luta pela sobrevivência eram seus próprios corpos famintos como nos tempos em que as hordas de vagabundos e mendigos cercavam os mais abastados meio mortos de fome e doentes empunhando suas armas mostrandolhes suas feridas e forçandoos a viver num constante estado de medo frente à possibilidade de contaminação e à revolta Não se pode cami nhar pela rua ou parar numa praça escreveu um homem de Veneza em meados do século XVII sem que as multidões nos rodeiem pedindo caridade vemos a fome estampada em seus rostos seus olhos como anéis sem joia o estado lamentável de seus corpos cujas peles têm apenas a forma de seus ossos ibi dem p 88 Um século mais tarde em Florença o cenário era o mesmo Era impossível ouvir a missa queixavase um tal G Balducci em abril de 1650 de tanto que se era importunado durante a cerimônia pelos desgraçados desnudos e cobertos por feridas Braudel 1966 vol II pp 734587 87 Os comentários de um médico na cidade italiana de Bérgamo durante a carestia de 1630 tinham um tom similar O ódio e o terror engendrados por uma multidão enlouquecida de gente meio morta que assedia as pessoas nas ruas nas praças nas igrejas nas portas das casas que torna a vida intolerável além do fedor imundo que emana deles e do espetáculo constante dos moribundos só pode acreditar nisso quem já tenha experimentado Citado por Carlo M Cipolla 1993 p 129 A INTERVENÇÃO ESTATAL NA REPRODUÇÃO DO TRABALHO A ASSISTÊNCIA AOS POBRES E A CRIMINALIZAÇÃO DA CLASSE TRABALHADORA A luta por comida não era a única frente na batalha contra a expansão das relações capitalistas Por toda parte as massas resistiam à destruição de suas formas anteriores de existência lutando contra a privatização da terra contra a abolição dos di reitos consuetudinários contra a imposição de novos impostos contra a dependência do salário e contra a contínua presença de exércitos em suas vizinhanças que eram tão odiados a ponto de as pessoas correrem para trancar as portas das cidades na tenta tiva de evitar que os soldados se assentassem junto a elas Na França ocorreram cerca de mil emoções levantes entre as décadas de 1530 e 1670 muitas delas envolvendo pro víncias inteiras e exigindo a intervenção de tropas Goubert 1986 p 205 Inglaterra Itália e Espanha apresentavam um cenário parecido88 o que indica que o mundo précapitalista dos vilarejos que Marx repudiou com a rubrica de idiotia rural pôde produzir um nível de lutas tão elevado quanto qualquer outro que o proletariado industrial tenha travado Na Idade Média a migração a vagabundagem e o aumento 88 Sobre os protestos no século XVI e XVII na Europa ver The Iron Century 1972 O século de ferro de Henry Kamen especialmente o capítulo 10 pp 33185 Popular Rebellion 15501660 Rebelião popular 15501660 Segundo Kamen 1972 p 336 A crise de 15951597 ocorreu em toda a Europa com repercussões na Inglaterra França Áustria Finlândia Hungria Lituânia e Ucrânia Provavelmente nunca antes na história da Europa coincidiram tantas rebeliões ao mesmo tempo Houve rebeliões em Nápoles em 1595 1620 1647 ibidem pp 3345 350 3613 Na Espanha as rebe liões estouraram em 1640 na Catalunha em Granada em 1648 em Córdoba e Sevilha em 1652 Sobre os motins e rebeliões na Inglaterra nos séculos XVI e XVII ver Cornwall 1977 Underdown 1985 e Manning 1988 Sobre as revoltas na Espanha e na Itália ver também Braudel 1976 vol II pp 7389 161 160 dos crimes contra a propriedade eram parte da resistência ao empobrecimento e à despossessão e estes fenômenos alcan çaram proporções massivas Em todas as partes se dermos crédito às queixas das autoridades daquela época os vaga bundos pululavam mudavam de cidade cruzavam fronteiras dormiam nos celeiros ou se apinhavam nas portas das cidades uma vasta humanidade envolvida em sua própria diáspora que durante décadas escapou ao controle das autoridades Só em Veneza foram registrados seis mil vagabundos em 1545 Na Espanha os semteto entulhavam completamente as vias parando em todas as cidades Braudel vol II p 74089 Começando pela Inglaterra sempre pioneira nesses assuntos o Estado promulgou novas leis contra a vagabundagem muito mais severas que prescreviam a escravidão e a pena de morte em casos de reincidência Mas a repressão não foi efetiva e nos séculos XVI e XVII as estradas europeias continuaram sendo lugares de encontros e de grande comoção Por elas passa ram hereges fugindo da perseguição soldados dispensados trabalhadores e outros tipos de gente humilde em busca de emprego e posteriormente artesãos estrangeiros camponeses expulsos de suas terras prostitutas vendedores ambulantes ladrões de galinha e mendigos profssionais Pelas rotas da Europa passaram sobretudo as lendas as histórias e as expe riências de um proletariado em desenvolvimento Enquanto isso os índices de criminalidade também aumentaram até o ponto de podermos supor que uma recuperação e reapropriação da riqueza comunal estava a caminho90 Hoje estes aspectos da transição para o capitalismo podem 89 Sobre a vagabundagem na Europa além de Beier e Geremek ver Braudel 1976 vol II pp 73943 e Kamen 1972 pp 3904 90 Sobre o aumento de delitos contra a propriedade depois da Revolução dos Preços ver gráficos Ver Richard J Evans 1996 p 35 Kamen 1972 pp 397403 e Lis e Soly 1984 Lis e Soly 1984 p 218 escrevem que os dados disponíveis sugerem que na Inglaterra a criminalidade total aumentou de forma acentuada no período elisa betano e na dinastia Stuart especialmente entre 1590 e 1620 parecer pelo menos para a Europa coisas do passado ou como Marx afrmou nos Grundrisse 1973 p 459 Manuscritos econômicos de 18571858 esboços da crítica da economia política précondições históricas do desenvolvimento capitalista que seriam superadas por formas mais maduras do capitalismo A semelhança fundamental entre esses fenômenos e as consequências sociais da nova fase de globalização que testemunhamos hoje no entanto nos diz algo diferente O em pobrecimento as rebeliões e a escalada do crime são elemen tos estruturais da acumulação capitalista na mesma medida em que o capitalismo deve despojar a força de trabalho de seus meios de reprodução para impor seu domínio O fato de que as formas mais extremas de miséria e de rebeldia tenham desaparecido nas regiões europeias que se industrializaram durante o século XIX não é uma prova con trária a tal afrmação A miséria e a rebeldia proletárias não pararam ali apenas diminuíram ao grau em que a superexplo ração dos trabalhadores teve que ser exportada por meio da institucionalização da escravidão num primeiro momento e Vagabundo sendo açoitado pelas ruas Gravura inglesa do século XVI 163 162 posteriormente por meio da expansão da dominação colonial Quanto ao período de transição este continuou sendo na Europa um período de intenso confito social preparando terreno para uma série de iniciativas estatais que a julgar por seus efeitos tiveram três objetivos principais i criar uma força de trabalho mais disciplinada ii dispersar os protestos sociais e iii fxar os trabalhadores nos trabalhos que lhes haviam sido impostos Vamos analisar cada um deles Ao se buscar a disciplina social um ataque foi lançado contra todas as formas de sociabilidade e sexualidade coletivas incluindo esportes jogos danças funerais festivais e outros ritos grupais que haviam servido para criar laços e solidarie dade entre os trabalhadores O ataque foi sancionado por um dilúvio de leis 25 na Inglaterra somente para a regulação de tabernas entre 1601 e 1606 Underdown 1985 pp 478 Peter Burke 1978 em sua obra sobre o assunto explicou esse proces so como uma campanha contra a cultura popular Contudo como podemos notar o que estava em jogo era a dessociali zação ou descoletivização da reprodução da força de trabalho bem como a tentativa de impor um uso mais produtivo do tempo livre Na Inglaterra este processo alcançou seu ápice com a chegada ao poder dos puritanos depois da Guerra Civil 16421649 quando o medo da indisciplina social deu lugar à proibição das reuniões e dos festejos proletários Entretanto a reforma moral foi igualmente intensa nas regiões não protestantes onde no mesmo período as procissões religiosas substituíram os bailes e as cantorias que vinham sendo reali zados dentro e fora das igrejas Até mesmo as relações entre os indivíduos e Deus foram privatizadas nas regiões protestantes por meio da instituição de uma relação direta entre o indivíduo e a divindade nas regiões católicas com a introdução da confs são individual A própria Igreja enquanto centro comunitário deixou de ser a sede de qualquer atividade que não estivesse relacionada com o culto Como resultado o cercamento físico operado pela privatização da terra e o cercamento das terras comunais foram ampliados por meio de um processo de cerca mento social a reprodução dos trabalhadores passou do campo aberto para o lar da comunidade para a família do espaço público a terra comunal a Igreja para o privado91 Em segundo lugar entre 1530 e 1560 foi introduzido um sistema de assistência pública em pelo menos sessenta cidades europeias tanto por iniciativa das prefeituras locais quanto por intervenção direta do Estado central Lis e Soly 1979 p 9292 Seus objetivos exatos ainda são debatidos Enquanto boa parte da literatura sobre a questão vê a introdução da assistência pública como uma resposta para a crise humanitária que colocou em perigo o controle social o acadêmico marxista francês Yann Moulier Boutang insiste em um vasto estudo sobre o trabalho forçado que seu principal objetivo era a grande fxação dos tra balhadores isto é a tentativa de evitar sua fuga do trabalho93 De qualquer modo a introdução da assistência pública foi um momento de infexão na mediação estatal entre os trabalha dores e o capital assim como na defnição da função do Estado 91 Na Inglaterra dentre os momentos de sociabilidade e reprodução coletiva que foram aniquilados com a perda dos campos abertos e das terras comunais encontra vamse as procissões primaveris organizadas com a finalidade de benzer os campos e que não puderam continuar a ser feitos uma vez que foram barrados e as danças que se realizavam em torno da Árvore de Maio no primeiro dia desse mês Underdown 1985 92 Sobre a instituição da assistência pública ver Geremek 1994 Poverty A History Pobreza uma história especialmente o capítulo 4 14277 The Reforme of Charity A reforma da caridade 93 Yann Moulier Boutang De lesclavage au salariat 1998 pp 2913 Da escravidão ao salário Concordo apenas parcialmente com o autor quando argumenta que a ajuda aos pobres não era tanto uma resposta à miséria produzida pela expropria ção da terra e pela inflação dos preços mas uma medida destinada a evitar a fuga dos trabalhadores e criar assim um mercado de trabalho local 1998 Como já mencionei Moulier Boutang superestima o grau de mobilidade que os trabalhadores tinham à sua disposição já que não considera a situação particular das mulheres Mais ainda diminui a importância do fato de que a assistência também fora o resultado de uma luta que não pode ser reduzida à fuga do trabalho mas incluía assaltos invasões de cidades por massas famintas de gente do campo uma constante na França do século XVI e outras formas de ataque Não é coincidência que nesse contexto Norwich centro da rebelião de Kett tenha se tornado pouco tempo depois de sua derrota o centro e o modelo das reformas de assistência aos pobres 165 164 Foi o primeiro reconhecimento da insustentabilidade de um sis tema capitalista regido exclusivamente por meio da fome e do terror Também foi o primeiro passo na construção do Estado como garantidor da relação entre as classes e como supervisor da reprodução e da disciplina da força de trabalho Antecedentes desta função podem ser encontrados no sé culo XIV quando frente à generalização das lutas antifeudais o Estado surgiu como a única organização capaz de enfrentar uma classe trabalhadora regionalmente unifcada armada e que já não limitava suas demandas à política econômica do feudo Em 1351 com a aprovação do Estatuto dos Trabalhadores na Inglaterra que fxou o salário máximo o Estado encarre gouse formalmente da regulação e da repressão do trabalho uma vez que os senhores locais não eram mais capazes de garantilas No entanto foi com a introdução da assistência pública que o Estado começou a reivindicar a propriedade da mão de obra ao mesmo tempo que instituía uma divisão do trabalho capitalista dentro da própria classe dominante Essa divisão permitia que os empregadores renunciassem a qualquer responsabilidade na reprodução dos trabalhadores com a segu rança de que o Estado interviria seja por meio de recompensas seja por meio de punições para encarar as inevitáveis crises Com essa inovação houve um salto também na administração da reprodução social resultando na introdução de registros demográfcos organização de censos registro das taxas de mortalidade e de natalidade e dos casamentos e na aplicação da contabilidade nas relações sociais É exemplar o trabalho dos administradores do Bureau des Pauvres Serviço aos Pobres em Lyon França que no fnal do século XVI aprenderam a cal cular a quantidade de pobres e a quantidade de alimentos que cada criança ou adulto necessitava e a rastrear os falecimentos para assegurar que ninguém pudesse reclamar assistência em nome de uma pessoa morta Zemon Davis 1968 pp 2446 Além dessa nova ciência social foi desenvolvido também um debate internacional sobre a administração da assistência pública que antecipava a atual discussão acerca do bemestar social Apenas os incapacitados para o trabalho descritos como pobres merecedores deviam ser assistidos Ou os trabalhadores saudáveis que não conseguissem arranjar um emprego também deveriam receber ajuda E quanto para mais ou para menos lhes deveria ser dado de modo que não fossem desestimulados a procurar trabalho Essas questões foram cruciais do ponto de vista da disciplina social na medida em que um objetivo fundamental da assistência pública era atar os trabalhadores aos seus empregos Porém nesses assuntos raramente era possível atingir um consenso Enquanto os reformadores humanistas como Juan Luis Vives94 e os portavozes dos burgueses ricos reconheciam os benefícios econômicos e disciplinares de uma distribuição da caridade mais liberal e centralizada embora não indo além da distribuição de pão uma parte do clero se opôs energica mente à proibição das doações individuais De todo modo a assistência apesar das diferenças de sistemas e opiniões foi administrada com tamanha tacanhez que o confito gerado era tão grande quanto o apaziguamento Aqueles que eram assistidos ressentiamse com os rituais humilhantes a eles im postos como carregar o sinal da infâmia antes reservado aos leprosos e aos judeus ou participar na França das procissões anuais dos pobres em que tinham que desflar cantando hinos e carregando velas E protestavam veementemente quando as esmolas não eram prontamente dadas ou eram inadequadas 94 O humanista espanhol Juan Luis Vives conhecedor dos sistemas de ajuda aos pobres de Flandres e da Espanha era um dos principais partidários da caridade pública Em sua obra De Subvention Pauperum 1526 Do socorro aos pobres sustentou que a autoridade secular não a Igreja deve ser responsável pela ajuda aos pobres Geremek 1994 p 187 Vives ressaltou que as autoridades deviam encontrar trabalho para os saudáveis insistindo que os indisciplinados os desonestos os que roubam e os ociosos devem receber o trabalho mais pesado e com pior pagamento a fim de que seu exemplo sirva para dissuadir os outros ibidem 167 166 às suas necessidades Como resposta em algumas cidades francesas foram erigidas forcas durante as distribuições de comida ou exigiase que os pobres trabalhassem em troca de alimentação Zemon Davis 1968 p 249 Na Inglaterra à me dida que avançava o século XVI o recebimento de assistência pública mesmo pelas crianças e idosos foi condicionado ao encarceramento de quem a recebia nas casas de trabalho onde passaram a ser submetidos à experimentação de diferen tes esquemas de trabalho95 Consequentemente o ataque aos trabalhadores que havia começado com os cercamentos e com a Revolução dos Preços levou ao cabo de um século à crimina lização da classe trabalhadora isto é à formação de um vasto proletariado que ou estava encarcerado nas recémconstruídas casas de trabalho e de correção ou se via forçado a buscar a sobrevivência fora da lei vivendo em aberto antagonismo com o Estado sempre a um passo do chicote e da forca Do ponto de vista da formação de uma força de trabalho laboriosa estas medidas foram defnitivamente um fracasso e a constante preocupação com a questão da disciplina social nos círculos políticos dos séculos XVI e XVII indica que os esta distas e os empresários do momento estavam profundamente conscientes disso Ademais a crise social que esse estado gene ralizado de rebelião provocava foi agravada na segunda metade do século XVI por uma nova retração econômica causada em grande medida pela drástica queda populacional na América es panhola após a Conquista e pela redução da economia colonial 95 A principal obra sobre o surgimento das casas de trabalho e de correção é The Prison and the Factory Origins of the Penitentiary System 1981 A prisão e a fábrica as origens do sistema penitenciário de Dario Melossi e Massimo Pavarini Estes autores afirmam que o principal objetivo do encarceramento era quebrar o senso de identidade e solidariedade entre os pobres Ver também Geremek 1994 pp 20629 Sobre os es quemas de trabalho projetados pelos proprietários ingleses para encarcerar os pobres em seus distritos ver Marx 1909 t I p 793 op cit Para o caso da França ver Foucault 1967 História da Loucura na Idade Clássica especialmente o capítulo 2 t I pp 75 125 A Grande Internação DIMINUIÇÃO DA POPULAÇÃO CRISE ECONÔMICA E DISCIPLINAMENTO DAS MULHERES Em menos de um século contando a partir da chegada de Colombo ao continente americano o sonho dos colonizadores de uma oferta infnita de trabalho ecoando a estimativa dos exploradores sobre a existência de uma quantidade infnita de árvores nas forestas americanas foi frustrado Os europeus haviam trazido a morte à América As esti mativas do colapso populacional que afetou a região depois da invasão colonial variam No entanto os especialistas de forma quase unânime comparam seus efeitos a uma espécie de ho locausto americano De acordo com David Stannard 1992 no século que se seguiu à Conquista a população caiu em torno de 75 milhões na América do Sul o que representava 95 de seus habitantes 1992 pp 268305 Esta é também a estimativa de André Gunder Frank que escreve que em menos de um século a população indígena caiu cerca de 90 chegando a 95 no México no Peru e em outras regiões 1978 pp 43 No México a população diminuiu de 11 milhões em 1519 para 65 milhões em 1565 e para mais ou menos 25 milhões em 1600 Wallerstein 1974 p 89 Em 1580 as doenças somadas à brutalidade espanhola haviam matado ou expulsado a maior parte da população das Antilhas e das planícies da Nova Espanha do Peru e do litoral caribenho Crosby 1972 p 38 e logo acabariam com muitos mais no Brasil O clero explicou esse holocausto como sendo um castigo de Deus pelo com portamento bestial dos índios Williams 1986 p 138 mas suas consequências econômicas não foram ignoradas Além disso na década de 1580 a população começou a diminuir também na Europa Ocidental e continuou assim até o início do 169 168 século XVII atingindo seu auge na Alemanha que perdeu um terço de seus habitantes96 Com exceção da Peste Negra 13451348 essa foi uma crise populacional sem precedentes As estatísticas realmente atrozes contam apenas uma parte da história A morte recaiu sobre os pobres Em geral não foram os ricos que morreram quando as pragas ou a varíola arrasaram as cidades mas os artesãos os trabalhadores e os vagabundos Kamen 1972 pp 323 Morreram em tal quantidade que seus corpos pavimenta vam as ruas e as autoridades denunciavam a existência de uma conspiração instigando a população a buscar os malfeitores No entanto também se considerou como fatores do declínio populacional a baixa taxa de natalidade e a relutância dos pobres em se reproduzir É difícil dizer até que ponto essa acusação era justifcada dado que os registros demográfcos antes do século XVII eram bastante desiguais Sabemos no en tanto que no fnal do século XVI a idade de casamento estava aumentando em todas as classes sociais e que no mesmo pe ríodo a quantidade de crianças abandonadas um fenômeno novo começou a crescer Temos também as reclamações dos pastores que do púlpito lançavam a acusação de que a juven tude não se casava e não procriava para não trazer mais bocas ao mundo do que eram capazes de alimentar O ápice da crise demográfca e econômica foram as décadas de 96 Enquanto Hackett Fischer 1996 pp 912 liga a diminuição da população na Europa no século XVII aos efeitos sociais da Revolução dos Preços Peter Kriedte 1983 p 63 apresenta um panorama mais complexo Kriedte defende que o declínio demográ fico se deu por uma combinação de fatores tanto malthusianos quanto socioeconômicos A diminuição foi para este autor uma resposta ao incremento populacional do início do século XVI e à apropriação da maior parte dos rendimentos agrícolas Uma observação interessante a favor de meus argumentos acerca da ligação entre declínio demográfico e políticas estatais prónatalidade foi feita por Robert S Duplessis 1997 p 143 que escreve que a recuperação que seguiu à crise populacional do século XVII foi muito mais rápida que nos anos posteriores à Peste Negra Foi necessário um século para que a popu lação começasse a crescer novamente depois da epidemia de 1348 enquanto no século XVII o processo de crescimento foi retomado em menos de cinquenta anos Essas estima tivas indicariam a presença na Europa do século XVII de uma taxa de natalidade muito mais alta que poderia ser atribuída ao feroz ataque a qualquer forma de contracepção 1620 e 1630 Na Europa assim como em suas colônias os mercados se contraíram o comércio se deteve o desemprego se expandiu e durante um tempo pairou a possibilidade de que a economia capi talista em desenvolvimento entrasse em colapso pois a integração entre as economias coloniais e europeias havia alcançado um pon to em que o impacto recíproco da crise acelerou rapidamente seu curso Essa foi a primeira crise econômica internacional Foi uma Crise Geral como designaram os historiadores Kamen 1972 p 307 e segs Hackett Fischer 1996 p 91 É nesse contexto que o problema da relação entre trabalho população e acumulação de riquezas passou ao primeiro plano do debate e das estratégias políticas com a fnalidade de pro duzir os primeiros elementos de uma política populacional e um regime de biopoder97 A crueza dos conceitos aplicados que às vezes confundem população relativa com população absoluta e a brutalidade dos meios pelos quais o Estado começou a castigar qualquer comportamento que obstruísse o crescimento populacional não deveriam nos enganar a esse respeito O que coloco em discussão é que tenha sido a crise populacional dos séculos XVI e XVII e não a fome na Europa durante o século XVIII tal como defendido por Foucault que transformou a reprodução e o crescimento populacional em assuntos de Estado e objetos principais do discurso intelec tual98 Sustento ademais que a intensifcação da perseguição 97 Biopoder é um conceito usado por Foucault em sua História da Sexualidade Volume I A vontade de saber 1978 para descrever a passagem de uma forma autoritária de governo para uma mais descentralizada baseada no fomento do poder da vida na Europa durante o século XIX O termo biopoder expressa a crescente preocupação em nível estatal pelo controle sanitário sexual e penal dos corpos dos indivíduos assim como a preocupação com o crescimento e os movimentos populacionais e sua inserção no âmbito econômico De acordo com esse paradigma a emergência do biopoder apareceu com a ascensão do liberalismo e marcou o fim do Estado jurídico e monárquico 98 Faço essa distinção a partir dos conceitos foucaultianos de população e biopoder discutidos pelo sociólogo canadense Bruce Curtis Curtis compara o conceito de população relativa populousness que se usava nos séculos XVI e XVII com a noção de população absoluta population que se tornou o fundamento da ciência moderna da demografia no século XIX Curtis destaca que populousness era um conceito orgânico e hierárquico Quando os mercantilistas o usavam estavam preocupados com a parte do corpo social que cria riqueza isto é com trabalhadores reais ou potenciais O conceito 171 170 às bruxas e os novos métodos disciplinares que o Estado adotou nesse período com a fnalidade de regular a procriação e quebrar o controle das mulheres sobre a reprodução têm também origem nessa crise As provas desse argumento são circunstanciais e devese reconhecer que outros fatores tam bém contribuíram para aumentar a determinação da estrutura de poder europeia dirigida a controlar de forma mais estrita a função reprodutiva das mulheres Entre eles devemos incluir a crescente privatização da propriedade e as relações econô micas que dentro da burguesia geraram uma nova ansiedade com relação à paternidade e à conduta das mulheres De forma parecida na acusação de que as bruxas sacrifcavam crianças para o demônio um tema central da grande caça às bruxas dos séculos XVI e XVII podemos interpretar não só uma preo cupação com o declínio da população mas também o medo que as classes abastadas tinham de seus subordinados parti cularmente das mulheres de classe baixa que como criadas mendigas ou curandeiras tinham muitas oportunidades para entrar nas casas dos empregadores e causarlhes dano No en tanto não pode ser apenas coincidência que no momento em que os índices populacionais caíam e em que se formava uma ideologia que enfatizava a centralidade do trabalho na vida econômica tenham se introduzido nos códigos legais europeus sanções severas destinadas a castigar as mulheres considera das culpadas de crimes reprodutivos O desdobramento concomitante de uma crise populacional de uma teoria expansionista da população e da introdução de políticas que promoviam o crescimento populacional está bem do cumentado Em meados do século XVI a ideia de que a quantidade posterior de população é atomístico A população consiste numa quantidade de átomos indiferenciados distribuídos por meio de um espaço e tempo abstratos escreve Curtis com suas próprias leis e estruturas O que procuro argumentar é que há entretanto uma continuidade entre essas duas noções já que tanto no período mercantilista quanto no capitalismo liberal a noção de população absoluta foi funcional à reprodução da força de trabalho de cidadãos determinava a riqueza de uma nação havia se tornado algo parecido a um axioma social Do meu ponto de vista escreveu o pensador político e demonólogo francês Jean Bodin nunca se deveria temer que haja demasiados súditos ou dema siados cidadãos já que a força da comunidade está nos homens Commonwealth Comunidade Livro VI O economista italiano Giovanni Botero 15331617 tinha uma posição mais sofsticada que reconhecia a necessidade de um equilíbrio entre o número de pessoas e os meios de subsistência Ainda assim declarou que a grandeza de uma cidade não dependia de seu tamanho físico nem do circuito de suas muralhas mas exclusivamente do número de residentes A citação de Henrique IV de que a força e a riqueza de um rei estão na quantidade e na opulência de seus cidadãos resume o pensamento demográfco da época99 A preocupação com o crescimento da população pode ser detectada também no programa da Reforma Protestante Rejeitando a tradicional exaltação cristã da castidade os refor madores valorizavam o casamento a sexualidade e até mesmo as mulheres por sua capacidade reprodutiva As mulheres são necessárias para produzir o crescimento da raça humana reconheceu Lutero refetindo que quaisquer que sejam suas debilidades as mulheres possuem uma virtude que anula todas elas possuem um útero e podem dar à luz King 1991 p 115 O apoio ao crescimento populacional chegou ao seu auge com o surgimento do mercantilismo que fez da existência de uma grande população a chave da prosperidade e do poder de uma nação Frequentemente o mercantilismo foi menospreza do pelo saber econômico dominante na medida em que se trata 99 O auge do mercantilismo se deu durante a segunda metade do século XVII Seu domínio na vida econômica esteve associado aos nomes de William Petty 16231687 e Jean Baptiste Colbert o ministro da Fazenda de Luís XIV No entanto os mercantilistas do final do século XVII apenas sistematizaram ou aplicaram teorias que vinham sendo desenvolvidas desde o século XVI Jean Bodin na França e Giovanni Botero na Itália são considerados economistas protomercantilistas Uma das primeiras formulações sistemá ticas da teoria econômica mercantilista encontrase em Englands Treasure by Forraign Trade 1622 Tesouro da Inglaterra pelo comércio exterior de Thomas Mun 173 172 a liberdade e não a coerção Foi uma classe mercantilista que inventou as casas de trabalho perseguiu os vagabundos transportou os criminosos às colônias americanas e investiu no tráfco de escravos sempre afrmando a utilidade da po breza e declarando que o ócio era uma praga social Assim embora não tenha sido reconhecido encontramos na teoria e na prática mercantilistas a expressão mais direta dos requisitos da acumulação primitiva e da primeira política capitalista que trata explicitamente do problema da reprodução da força de trabalho Essa política como vimos teve um aspecto intensi vo que consistia na imposição de um regime totalitário que usava todos os meios para extrair o máximo de trabalho de cada indivíduo independentemente de sua idade e condição Mas também teve um aspecto extensivo que consistia no esforço para aumentar o tamanho da população e desse modo a envergadura do exército e da força de trabalho Como destacou Eli Hecksher um desejo quase fanático por aumentar a população predominou em todos os países durante o período em que o mercantilismo esteve em seu apogeu no fnal do século XVII Hecksher 1966 p 158 Ao mesmo tempo foi estabelecida uma nova concepção dos seres humanos em que estes eram vistos como recursos naturais que trabalhavam e que criavam para o Estado Spengler 1965 p 8 Porém mesmo antes do auge da teoria mercantilista na França e na Inglaterra o Estado adotou um conjunto de medidas prónata listas que combinadas com a assistência pública formaram o embrião de uma política reprodutiva capitalista Aprovaramse leis que bonifcavam o casamento e penalizavam o celibato inspiradas nas que foram adotadas no fnal do Império Romano com o mesmo propósito Foi dada uma nova importância à família enquanto instituiçãochave que assegurava a trans missão da propriedade e a reprodução da força de trabalho Simultaneamente observase o início do registro demográfco Albrecht Dürer O nascimento da Virgem estimado em 1504 O parto era um dos principais eventos na vida de uma mulher e uma ocasião em que a cooperação feminina triunfava de um sistema de pensamento rudimentar e que supõe que a riqueza das nações seja proporcional à quantidade de trabalha dores e de metais preciosos que têm à sua disposição Os meios brutais que os mercantilistas aplicaram para forçar as pessoas a trabalhar em sua ânsia por volume de trabalho contribuiu para que tivessem uma má reputação afnal a maioria dos econo mistas desejava manter a ilusão de que o capitalismo promove 174 e da intervenção do Estado na supervisão da sexualidade da procriação e da vida familiar No entanto a principal iniciativa do Estado com o fm de restaurar a proporção populacional desejada foi lançar uma verdadeira guerra contra as mulheres claramente orientada a quebrar o controle que elas haviam exercido sobre seus corpos e sua reprodução Como veremos mais adiante essa guerra foi travada principalmente por meio da caça às bruxas que literal mente demonizou qualquer forma de controle de natalidade e de sexualidade não procriativa ao mesmo tempo que acusava as mulheres de sacrifcar crianças para o demônio Mas a guerra também recorreu a uma redefnição do que constituía um crime reprodutivo Desse modo a partir de meados do século XVI ao mesmo tempo que os barcos portugueses retornavam da África com seus primeiros carregamentos humanos todos os governos europeus começaram a impor penas mais severas à contracepção ao aborto e ao infanticídio Esta última prática havia sido tratada com certa indulgência na Idade Média pelo menos no caso das mulheres pobres mas agora se tornava um delito sancionado com a pena de morte e castigado com severidade maior do que a aplicada aos crimes masculinos Em Nuremberg no século XVI a pena por infanticídio materno era o afogamento em 1580 ano em que as cabeças cortadas de três mulheres condenadas por infanticídio materno eram pregadas para contemplação pública a sanção foi alterada para decapitação King 1991 p 10100 100 Para uma discussão sobre a nova legislação contra o infanticídio ver entre outros John Riddle 1997 pp 1636 Merry Wiesner 1993 pp 523 e Mendelson e Crawford 1998 p 149 Os últimos escrevem que o infanticídio era um crime que pro A masculinização da prática médica é retratada nesta gravura inglesa de 1651 que mostra um anjo afastando uma curandeira do leito de um homem doente A faixa denuncia sua incompetência Os erros do povo ou erros populares em questões de medicina NTE 177 176 Também foram adotadas novas formas de vigilância para assegurar que as mulheres não interrompessem a gravidez Na França um édito real de 1556 requeria que as mulheres regis trassem cada gravidez e sentenciava à morte aquelas cujos bebês morriam antes do batismo depois de um parto às escondidas não importando se fossem consideradas culpadas ou inocentes de sua morte Estatutos semelhantes foram aprovados na Inglaterra e na Escócia em 1624 e 1690 Também foi criado um sistema de espio nagem com a fnalidade de vigiar as mães solteiras e priválas de qualquer apoio Até mesmo hospedar uma mulher grávida solteira era ilegal por temor de que pudessem escapar da vigilância públi ca e quem fzesse amizade com ela era exposto à crítica pública Wiesner 1993 pp 512 Ozment 1983 p 43 Uma das consequências de tudo isso foi que a mulheres começaram a ser processadas em grande escala e nos séculos XVI e XVII mais mulheres foram executadas por infanticídio do que por qualquer outro crime exceto bruxaria uma acusação que também estava centrada no assassinato de crianças e em outras violações das normas reprodutivas Signifcativamente tanto no caso do infanticídio quanto no de bruxaria aboliram se os estatutos que anteriormente limitavam a atribuição de responsabilidade legal às mulheres Assim as mulheres ingres saram nas cortes da Europa pela primeira vez em nome próprio como legalmente adultas sob a acusação de serem bruxas e vavelmente fora mais cometido pelas mulheres solteiras do que por qualquer outro grupo na sociedade Um estudo do infanticídio no começo do século XVII mostrou que de sessen ta mães cinquenta e três eram solteiras e seis viúvas As estatísticas mostram também que o infanticídio era punido de forma mais frequente do que a bruxaria Margaret King 1991 p 10 escreve que em Nuremberg foram executadas quatorze mulheres por esse crime entre 1578 e 1615 mas apenas uma bruxa Entre 1580 e 1606 o parlamento de Rouen julgou quase tantos casos de infanticídio quanto de bruxaria mas castigou o infanticídio com maior severidade A Genebra calvinista mostra uma maior proporção de execuções por infanticídio do que por bruxaria entre 1590 e 1630 nove mulheres das onze condenadas foram executadas por infanticídio em comparação com apenas uma de trinta suspeitas por bruxaria Estas estimativas são confirmadas por Merry Wiesner 1993 p 52 que escreve que em Genebra por exemplo 25 de 31 mulheres acusadas de infanticídio durante o período de 1595 a 1712 foram executadas em comparação com 19 de 122 acusadas de bruxaria Na Europa mulheres foram executadas por infanticídio até o século XVIII assassinas de crianças Além disso a suspeita que recaiu sobre as parteiras nesse período e que levou à entrada de médicos homens na sala de partos provinha mais do medo que as autoridades tinham do infanticídio do que de qualquer outra preocupação pela suposta incompetência médica das parteiras Com a marginalização das parteiras começou um processo pelo qual as mulheres perderam o controle que haviam exer cido sobre a procriação sendo reduzidas a um papel passivo no parto enquanto os médicos homens passaram a ser consi derados como aqueles que realmente davam vida como nos sonhos alquimistas dos magos renascentistas Com essa mu dança também teve início o predomínio de uma nova prática médica que em caso de emergência priorizava a vida do feto em detrimento da vida da mãe Isso contrastava com o processo de nascimento habitual que as mulheres haviam controlado E para que efetivamente ocorresse a comunidade de mulheres que se reunia em torno da cama da futura mãe teve que ser ex pulsa da sala de partos ao mesmo tempo que as parteiras eram postas sob a vigilância do médico ou eram recrutadas para policiar outras mulheres Na França e na Alemanha as parteiras tinham que se tornar espiãs do Estado se quisessem continuar com a prática Esperavase delas que informassem sobre todos os novos nascimentos que descobrissem os pais de crianças nascidas fora do casamento e que examinassem as mulheres suspeitas de ter dado à luz em segredo Também tinham que examinar as mulheres locais buscando sinais de lactância quando eram encontradas crianças abandonadas nos degraus das igrejas Wiesner 1933 p 52 O mesmo tipo de colaboração era exigida de parentes e vizinhos Nos países e nas cidades protestantes esperavase que os vizinhos espiassem as mulheres e informas sem sobre todos os detalhes sexuais relevantes se uma mulher recebia um homem quando o marido estava ausente ou se 179 178 entrava numa casa com um homem e fechava a porta Ozment 1983 pp 424 Na Alemanha a cruzada prónatalista atingiu tal ponto que as mulheres eram castigadas se não faziam esforço sufciente durante o parto ou se demonstravam pouco entusiasmo por suas crias Rublack 1996 p 92 O resultado destas políticas que duraram duzentos anos as mulheres continuavam sendo executadas na Europa por infanticídio no fnal do século XVIII foi a escravização das mulheres à procriação Enquanto na Idade Média elas podiam usar métodos contraceptivos e haviam exercido um controle indiscutível sobre o parto a partir de agora seus úteros se transformaram em território político controlados pelos ho mens e pelo Estado a procriação foi colocada diretamente a serviço da acumulação capitalista Nesse sentido o destino das mulheres na Europa Ocidental no período de acumulação primitiva foi similar ao das negras nas plantations coloniais americanas que especialmente depois do fm do tráfco de escravos em 1807 foram forçadas por seus senhores a se tornar criadoras de novos trabalhadores A comparação obviamente tem sérios limites As mulheres europeias não estavam abertamente expostas às agressões se xuais embora as mulheres proletárias pudessem ser estupradas com impunidade e castigadas por isso Tampouco tiveram que sofrer a agonia de ver seus flhos levados embora e vendidos em leilão Os ganhos econômicos derivados dos nascimentos a que estavam obrigadas a gerar eram muito mais dissimulados Nesse aspecto a condição de mulher escrava revela de uma forma mais explícita a verdade e a lógica da acumulação capi talista Mas apesar das diferenças em ambos os casos o corpo feminino foi transformado em instrumento para a reprodução do trabalho e para a expansão da força de trabalho tratado como uma máquina natural de criação funcionando de acordo com ritmos que estavam fora do controle das mulheres Esse aspecto da acumulação primitiva está ausente na análise de Marx Com exceção de seus comentários no Manifesto comunista acerca do uso das mulheres na família burguesa como produtoras de herdeiros que garantiam a transmissão da propriedade familiar Marx nunca reconheceu que a procriação poderia se tornar um terreno de exploração e pela mesma razão um terreno de resistência Ele nunca imaginou que as mulheres pudessem se recusar a reproduzir ou que esta recusa pudesse se transformar em parte da luta de classes Nos Grundrisse 1973 p 100 ele argumentou que o desenvolvimento capitalista avança independentemente das taxas populacionais porque em virtude da crescente produtividade do trabalho o trabalho que o capital explora diminui constantemente em relação ao capital constante isto é o capital investido em maquinário e outros bens com a consequente determinação de uma população excedente Mas essa dinâmica que Marx defne como a lei de população típica do modo de produção capitalista O capital t I p 689 e segs só poderia ser imposta se a procriação fosse um processo puramente biológico ou uma atividade que respondesse automaticamente à mudança econômica e se o capital e o Estado não precisassem se preocupar com que as mulheres entrassem em greve contra a produção de crianças De fato este era o pressuposto de Marx Ele reconheceu que o desenvolvimento capitalista foi acompanhado por um crescimento na população cujas causas discutiu ocasionalmente No entanto como Adam Smith ele viu esse aumento como um efeito natural do de senvolvimento econômico No tomo I de O capital contrastou reiteradamente a determinação de um excedente de população com o crescimento natural da população Por que a procriação deveria ser um fato da natureza e não uma atividade histo ricamente determinada carregada de interesses e relações de poder diversas eis uma pergunta que Marx não formulou Tampouco imaginou que os homens e as mulheres poderiam ter 181 180 interesses distintos no que diz respeito a fazer flhos uma ativi dade que ele tratou como um processo indiferenciado neutro do ponto de vista de gênero Na realidade as mudanças na procriação e na população es tão tão longe de ser automáticas ou naturais que em todas as fases do desenvolvimento capitalista o Estado teve que recor rer à regulação e à coerção para expandir ou reduzir a força de trabalho Isso era especialmente verdade no momento em que o capitalismo estava apenas decolando quando os músculos e os ossos dos trabalhadores eram os principais meios de produção Mas mesmo depois e até o presente o Estado não poupou esforços na sua tentativa de arrancar das mãos femininas o controle da reprodução e da determinação sobre onde quando ou em que quantidade as crianças deveriam nascer Como resultado as mulheres foram forçadas frequentemente a pro criar contra sua vontade experimentando uma alienação de seus corpos de seu trabalho e até mesmo de seus flhos mais profunda que a experimentada por qualquer outro trabalhador Martin 1987 pp 1921 Ninguém pode descrever de fato a an gústia e o desespero sofridos por uma mulher ao ver seu corpo se voltando contra si mesma como acontece no caso de uma gravidez indesejada Isso é particularmente verdade naquelas situações em que a gravidez fora do casamento era penalizada com o ostracismo social ou até mesmo com a morte A DESVALORIZAÇÃO DO TRABALHO FEMININO A criminalização do controle das mulheres sobre a procriação é um fenômeno cuja importância não pode deixar de ser enfati zada tanto do ponto de vista de seus efeitos sobre as mulheres quanto por suas consequências na organização capitalista do trabalho Está bem documentado que durante a Idade Média as mulheres haviam contado com muitos métodos contracep tivos que consistiam basicamente em ervas transformadas em poções e pessários supositórios vaginais usados para estimular a menstruação para provocar um aborto ou para criar uma condição de esterilidade Em Eves Herbs A History of Contraception in the West 1997 Ervas de Eva uma história da contracepção no Ocidente o historiador estadunidense John Riddle nos oferece um extenso catálogo das substâncias mais utilizadas e os efeitos esperados ou mais prováveis101 A crimi nalização da contracepção expropriou as mulheres desse saber que havia sido transmitido de geração a geração proporcionan dolhes certa autonomia em relação ao nascimento dos flhos Aparentemente em alguns casos esse saber não foi perdido mas passou à clandestinidade no entanto quando o controle da natalidade apareceu novamente no cenário social os méto dos contraceptivos já não eram do tipo que as mulheres podiam usar mas foram especifcamente criados para o uso masculino Quais foram as consequências demográfcas que se seguiram a partir desta mudança eis uma pergunta que por enquanto não vou tentar responder embora recomende o trabalho de Riddle 1997 para uma discussão sobre o tema Aqui quero apenas ressaltar que ao negar às mulheres o controle sobre 101 Um artigo interessante sobre este tema é The Witches Pharmakopeia 1986 A farmacopeia das bruxas de Robert Fletcher 183 182 seus corpos o Estado privouas da condição fundamental de sua integridade física e psicológica degradando a maternidade à condição de trabalho forçado além de confnar as mulheres à atividade reprodutiva de um modo desconhecido por socieda des anteriores Entretanto forçar as mulheres a procriar contra a sua vontade ou como dizia uma canção feminista dos anos 1970 forçálas a produzir flhas e flhos para o Estado102 é uma defnição parcial das funções das mulheres na nova divisão sexual do trabalho Um aspecto complementar foi a redução das mulheres a não trabalhadoras um processo muito estudado pelas historiadoras feministas e que estava praticamente com pleto até o fnal do século XVII Nessa época as mulheres haviam perdido espaço inclusive em empregos que haviam tradicionalmente ocupado como a fabricação de cerveja e a realização de partos As proletárias em particular encontraram difculdades para obter qualquer emprego além daqueles com status mais baixos empregadas domésticas a ocupação de um terço da mão de obra femini na trabalhadoras rurais fandeiras tecelãs bordadeiras vendedoras ambulantes ou amas de leite Como nos conta Merry Wiesner entre outros ganhava espaço no direito nos registros de impostos nas ordenações das guildas a suposição de que as mulheres não deviam trabalhar fora de casa e de que tinham apenas que participar na produção para ajudar seus maridos Diziase até mesmo que qualquer trabalho feito por mulheres em sua casa era não trabalho e não possuía valor mesmo quando voltado para o mercado Wiesner 1993 p 83 e segs Assim se uma mulher costurava algumas roupas tratavase de trabalho doméstico ou de tarefas de dona de casa mesmo se as roupas não eram para a família enquanto 102 A referência é de uma canção feminista italiana de 1971 intitulada Aborto di Stato Aborto de Estado Esta canção faz parte do álbum Canti de donne in lotta Canções de mulheres em luta lançado em 1974 pelo Grupo Musical do Comitê por um salário para o trabalho doméstico da cidade de Pádua quando um homem fazia o mesmo trabalho se considerava como produtivo A desvalorização do trabalho feminino era tal que os governos das cidades ordenaram às guildas que ignorassem a produção que as mulheres especialmente as Uma prostituta convidando um cliente O número de prostitutas cresceu imensamente como saldo da privatização da terra e da comercialização da agricultura processos que expulsaram muitas camponesas das áreas rurais 185 184 viúvas realizavam em suas casas por não se tratar realmente de trabalho e porque as mulheres precisavam dessa produção para não depender da assistência pública Wiesner acrescenta que as mulheres aceitavam esta fcção e até mesmo se descul pavam por pedir trabalho suplicando por um serviço devido à necessidade de se manterem ibidem pp 845 Rapidamente todo o trabalho feminino quando realizado em casa seria de fnido como tarefa doméstica e até mesmo quando feito fora de casa era pago a um valor menor do que o trabalho masculino nunca o sufciente para que as mulheres pudessem sobreviver dele O casamento era visto como a verdadeira carreira para uma mulher e a incapacidade das mulheres de sobreviverem sozinhas era algo dado como tão certo que quando uma mulher solteira tentava se assentar em um vilarejo era expulsa mesmo se ganhasse um salário Somada à expropriação das terras essa perda de poder com relação ao trabalho assalariado levou à massifcação da pros tituição Como relata Le Roy Ladurie 1974 pp 1123 o cresci mento do número de prostitutas na França e na Catalunha era visível por todas as partes De Avignon a Barcelona passando por Narbona as mulheres libertinas femmes de débauche paravam nas portas das cidades nas ruas dos bairros de luz vermelha e nas pontes de tal modo que em 1594 o tráfco vergonhoso forescia como nunca antes A situação era similar na Inglaterra e na Espanha onde todos os dias chegavam às cidades mulheres pobres do campo Mesmo as esposas de artesãos complementavam a renda fami liar por meio desse trabalho Em Madri em 1631 um panfeto distribuído pelas autoridades políticas denunciava o problema queixandose de que muitas mulheres vagabundas estavam agora perambulando pelas ruas da cidade becos e tavernas atiçando os homens a pecar com elas Vigil 1986 pp 1145 Porém logo que a prostituição se tornou a principal forma de subsistência para uma grande parte da população feminina a atitude institucional a respeito dela mudou Enquanto na Baixa da Idade Média a prostituição havia sido aceita ofcialmente como um mal necessário e as prostitutas haviam se benefciado de um regime de altos salários no século XVI a situação se A prostituta e o soldado Viajando com frequência junto aos acampamentos militares as prostitutas atuavam como esposas para os soldados e para outros proletários lavando e cozinhando além de prover serviços sexuais aos homens 187 inverteu Num clima de intensa misoginia caracterizada pelo avanço da Reforma Protestante e pela caça às bruxas a pros tituição foi inicialmente sujeita a novas restrições e depois criminalizada Por todas as partes entre 1530 e 1560 os bordéis urbanos foram fechados e as prostitutas especialmente aquelas que trabalhavam na rua severamente penalizadas banimento fagelação e outras formas cruéis de reprimendas Entre elas a cadeira de imersão ducking stool ou acabussade peça de teatro macabro como a descreve Nickie Roberts em que as vítimas eram atadas às vezes presas numa jaula e então repetidamente imersas em rios ou lagoas até quase se afogarem Roberts 1992 pp 1156 Enquanto isso na França do século XVI o estupro de prostitutas deixou de ser um crime103 Em Madri também foi decidido que as vagabundas e as prostitutas não estavam autorizadas a permanecer e a dormir nas ruas ou sob os pórticos se fossem pegas em fagrante deveriam receber cem chibatadas e depois ser banidas da cidade por seis anos além de ter a cabeça e as sobrancelhas raspadas O que pode explicar esse ataque tão drástico contra as trabalhadoras E de que maneira a exclusão das mulheres da esfera do trabalho socialmente reconhecido e das relações mo netárias se relaciona com a imposição da maternidade forçada e com a simultânea massifcação da caça às bruxas Quando se consideram esses fenômenos da perspectiva privilegiada do presente depois de quatro séculos de disci plinamento capitalista das mulheres as respostas parecem se impor por si mesmas Embora o trabalho assalariado das mulheres e os trabalhos domésticos e sexuais remunerados ainda sejam estudados com muita frequência isolados uns dos outros agora nos encontramos numa melhor posição para ver 103 Margaret L King 1991 p 78 Women of the Renaissance Mulheres do Re nascimento Sobre o fechamento dos bordéis na Alemanha ver Merry Wiesner 1986 pp 17485 Working Women in Renaissance Germany Mulheres trabalhadoras na Alemanha Renascentista Uma prostituta submetida a um tipo de tortura conhecido como acabussade Ela será imersa no rio várias vezes e então encarcerada pelo resto da vida 189 188 que a discriminação sofrida pelas mulheres como mão de obra remunerada esteve diretamente relacionada à sua função como trabalhadoras não assalariadas no lar Dessa forma podemos relacionar a proibição da prostituição e a expulsão das mulheres do espaço de trabalho organizado com a aparição da fgura da dona de casa e da redefnição da família como lugar para a produção da força de trabalho De um ponto de vista teórico e político entretanto a questão fundamental está nas condições que tornaram possível tal degradação e as forças sociais que a promoveram ou que dela foram cúmplices A resposta aqui é que um importante fator na desvalori zação do trabalho feminino foi a campanha levada a cabo por artesãos a partir do fnal do século XV com o propósito de excluir as trabalhadoras de suas ofcinas supostamente para protegeremse dos ataques dos comerciantes capitalistas que empregavam mulheres a preços menores Os esforços dos artesãos deixaram um abundante rastro de provas104 Tanto na Itália quanto na França e na Alemanha os ofciais artesãos so licitaram às autoridades que não permitissem que as mulheres competissem com eles proibindoas entre seus quadros fze ram greve quando a proibição não foi levada em consideração e negaramse a trabalhar com homens que trabalhavam com mulheres Aparentemente os artesãos estavam interessados também em limitar as mulheres ao trabalho doméstico já que dadas as suas difculdades econômicas a prudente adminis tração da casa por parte de uma mulher estava se tornando para eles uma condição indispensável para evitar a bancarrota e para manter uma ofcina independente Sigfrid Brauner o autor da citação acima fala da importância que os artesãos alemães davam a esta norma social Brauner 1995 pp 967 As 104 Um vasto catálogo dos lugares e dos anos em que as mulheres foram expulsas do artesanato pode ser encontrado em David Herlihy 19781991 Ver também Merry Wiesner 1986 pp 17485 mulheres procuraram resistir a essa investida mas devido às táticas intimidatórias que os trabalhadores usaram contra elas fracassaram Aquelas que ousaram trabalhar fora do lar em um espaço público e para o mercado foram representadas como megeras sexualmente agressivas ou até mesmo como putas Assim como a luta pelas calças a imagem da esposa dominadora desafiando a hierarquia sexual e batendo no marido era um dos alvos favoritos da literatura social dos séculos XVI e XVII Gravura de Martin Treu a partir de Albrecht Dürer século XVII 191 190 ou bruxas Howell 1986 pp 1823105 Com efeito há provas de que a onda de misoginia que no fnal do século XV cresceu nas cidades europeias refetida na obsessão dos homens pela luta pelas calças e pela personagem da esposa desobediente retratada na literatura popular batendo em seu marido ou montando em suas costas como a um cavalo emanou também dessa tentativa contraproducente de tirar as mulheres dos postos de trabalho e do mercado Por outro lado é evidente que essa tentativa não haveria triunfado se as autoridades não tivessem cooperado Obviamente se deram conta de que aquilo era o mais favorável a seus interes ses pois além de pacifcar os ofciais artesãos rebeldes a exclu são das mulheres dos ofícios forneceu as bases necessárias para sua fxação no trabalho reprodutivo e para sua utilização como trabalho mal remunerado na indústria artesanal doméstica 105 Howell 1986 p 182 escreve As comédias e sátiras da época por exemplo retratavam com frequência as mulheres inseridas no mercado e nas oficinas como mege ras com caracterizações que não somente as ridicularizavam ou repreendiam por assumir papéis na produção mercadológica mas frequentemente também chegavam a acusálas de agressão sexual AS MULHERES COMO NOVOS BENS COMUNS E COMO SUBSTITUTO DAS TERRAS PERDIDAS Foi a partir desta aliança entre os artesãos e as autoridades das cidades junto com a contínua privatização da terra que se forjou uma nova divisão sexual do trabalho ou melhor dizen do um novo contrato sexual segundo as palavras de Carol Pateman 1988 que defnia as mulheres em termos mães esposas flhas viúvas que ocultavam sua condição de traba lhadoras e davam aos homens livre acesso a seus corpos a seu trabalho e aos corpos e ao trabalho de seus flhos De acordo com este novo contrato socialsexual as mulhe res proletárias se tornaram para os trabalhadores homens subs titutas das terras que eles haviam perdido com os cercamentos seu meio de reprodução mais básico e um bem comum de que qualquer um podia se apropriar e usar segundo sua vontade Os ecos desta apropriação primitiva podem ser ouvidos no conceito de mulher comum Karras 1989 que no século XVI qualifcava aquelas mulheres que se prostituíam Porém na nova organização do trabalho todas as mulheres exceto as que haviam sido privatizadas pelos homens burgueses tornaramse bens comuns pois uma vez que as atividades das mulheres foram defnidas como não trabalho o trabalho das mulheres começou a se parecer com um recurso natural disponível para todos assim como o ar que respiramos e a água que bebemos Esta foi uma derrota histórica para as mulheres Com sua ex pulsão dos ofícios e a desvalorização do trabalho reprodutivo a pobreza foi feminilizada Para colocar em prática a apropriação primitiva dos homens sobre o trabalho feminino foi construída uma nova ordem patriarcal reduzindo as mulheres a uma dupla dependência de seus empregadores e dos homens O fato de 193 192 que as relações de poder desiguais entre mulheres e homens existiam mesmo antes do advento do capitalismo assim como uma divisão sexual do trabalho discriminatória não foge a esta avaliação Isso porque na Europa précapitalista a subordinação das mulheres aos homens esteve atenuada pelo fato de que elas tinham acesso às terras e a outros bens comuns enquanto no novo regime capitalista as próprias mulheres se tornaram bens comuns dado que seu trabalho foi defnido como um recurso natural que estava fora da esfera das relações de mercado O PATRIARCADO DO SALÁRIO Nesse contexto são signifcativas as mudanças que se deram dentro da família que começou a se separar da esfera pública adquirindo suas conotações modernas enquanto principal cen tro para a reprodução da força de trabalho Complemento do mercado instrumento para a privatização das relações sociais e sobretudo para a propagação da disci plina capitalista e da dominação patriarcal a família surgiu no período de acumulação primitiva também como a instituição mais importante para a apropriação e para o ocultamento do trabalho das mulheres Isso pode ser observado especialmente nas famílias da classe trabalhadora Tratase todavia de um tema pouco estudado As discussões anteriores privilegiaram a família de homens proprietários plausivelmente porque na época a que estamos nos referindo esta era a forma e o modelo dominante de relação com os flhos e entre os cônjuges Também houve maior interesse na família como instituição política do que como lugar de trabalho O que foi enfatizado então foi o fato de que na nova família burguesa o marido tornouse o representante do Estado o encarregado de disciplinar e supervisionar as classes subordinadas uma categoria que para os teóricos políticos dos séculos XVI e XVII por exemplo Jean Bodin incluía a esposa e os flhos Schochet 1975 Daí a identifcação da família com um microestado ou uma mi croigreja assim como a exigência por parte das autoridades de que os trabalhadores e as trabalhadoras solteiros vivessem sob o teto e sob as ordens de um senhor Também é destacado que dentro da família burguesa a mulher perdeu muito de seu poder sendo geralmente excluída dos negócios familiares 195 194 e confnada a supervisionar os cuidados domésticos Mas o que falta nesse retrato é o reconhecimento de que enquanto na classe alta era a propriedade que dava ao marido poder sobre sua esposa e seus flhos a exclusão das mulheres do recebimento de salário dava aos trabalhadores um poder semelhante sobre suas mulheres Um exemplo dessa tendência foi o tipo de família que se formou em torno dos trabalhadores da indústria artesanal no sistema doméstico Longe de evitar o casamento e a formação de uma família os homens que trabalhavam na indústria artesanal doméstica dependiam disso afnal uma esposa podia ajudarlhes com o trabalho que eles realizavam para os comerciantes ao cuidarem de suas necessidades físicas e do provimento dos flhos que desde a tenra idade podiam ser empregados no tear ou em alguma ocupação auxiliar Desse modo até mesmo em tempos de declínio populacional os tra balhadores da indústria doméstica continuaram aparentemente se multiplicando Suas famílias eram tão numerosas que no século XVII um austríaco observando os trabalhadores que moravam em seu vilarejo os descreveu como pardais num poleiro apinhados em suas casas O que se destaca nesse tipo de organização é que embora a esposa trabalhasse junto ao marido produzindo também para o mercado era o marido que recebia o salário da mulher Isso também ocorria com outras trabalhadoras assim que se casavam Na Inglaterra um ho mem casado tinha direitos legais sobre os rendimentos de sua esposa inclusive quando o trabalho que ela realizava era a amamentação Dessa forma quando uma paróquia empre gava uma mulher para fazer esse tipo de trabalho os registros ocultavam frequentemente sua condição de trabalhadoras computando o pagamento em nome dos homens Se o paga mento seria feito ao homem ou à mulher dependia do capricho do administrador Mendelson e Crawford 1998 p 287 Tal política que impossibilitava que as mulheres tivessem seu próprio dinheiro criou as condições materiais para sua sujeição aos homens e para a apropriação de seu trabalho por parte dos trabalhadores homens É nesse sentido que eu falo do patriarcado do salário Também devemos repensar o conceito de escravidão do salário Se é certo que os trabalhadores homens sob o novo regime de trabalho assalariado passaram a ser livres apenas num sentido formal o grupo de trabalhadores que na transição para o capitalismo mais se aproximou da condição de escravos foram as mulheres trabalhadoras Ao mesmo tempo dadas as condições miseráveis em que viviam os trabalhadores assalariados o trabalho doméstico que as mulheres realizavam para a reprodução de suas famílias estava necessariamente limitado Casadas ou não as proletárias precisavam ganhar algum dinheiro o que conseguiam por meio de múltiplos serviços Por outro lado o trabalho doméstico exigia certo capital reprodutivo móveis utensílios vestimentas dinheiro para os alimentos No entanto os trabalhadores assa lariados viviam na pobreza escravizados dia e noite como denunciou um artesão de Nuremberg em 1524 passando fome e alimentando com grande difculdade suas esposas e flhos Brauner 1995 p 96 A maioria praticamente não tinha um teto sobre suas cabeças vivia em cabanas compartilhadas com outras famílias e animais em que a higiene pouco observada até mes mo entre aqueles que estavam em melhor situação faltava por completo suas roupas eram farrapos e no melhor dos casos sua dieta consistia em pão queijo e algumas verduras Dessa forma não encontramos entre a classe trabalhadora neste período a clássica fgura da dona de casa em período integral Foi somente no século XIX como resposta ao primeiro ciclo intenso de lutas contra o trabalho industrial que a família moderna centrada no trabalho reprodutivo em tempo integral e não remunerado da dona de casa se generalizou entre a classe trabalhadora 197 196 primeiro na Inglaterra e mais tarde nos Estados Unidos Seu desenvolvimento após a aprovação das Leis Fabris que limitavam o emprego de mulheres e de crianças nas fábri cas refetiu o primeiro investimento de longo prazo da classe capitalista sobre a reprodução da força de trabalho para além de sua expansão numérica Foi resultado de uma permuta forjada sob a ameaça de insurreição entre a garantia de maiores salários capazes de sustentar uma esposa não trabalhadora e uma taxa mais intensiva de exploração Marx tratou disso como uma mudança da maisvalia absoluta para a relativa isto é uma mudança de um tipo de exploração baseado na máxima extensão da jornada de trabalho e na redução do salário a um mínimo para um regime em que é possível compensar os salários mais altos e as horas de trabalho mais curtas por meio de um aumento da produtividade do trabalho e do ritmo da produção Da perspectiva capitalista foi uma revolução social que passou por cima do antigo comprometimento com baixos salários Foi resultado de um novo acordo entre os trabalha dores e os empregadores novamente baseado na exclusão das mulheres do recebimento de salários colocando um fm no recrutamento de mulheres observado nas primeiras fases da Revolução Industrial Também foi o marco de um novo período de afuência capitalista produto de dois séculos de exploração do trabalho escravo que logo seria potencializado por uma nova fase de expansão colonial Nos séculos XVI e XVII por outro lado apesar de uma obsessiva preocupação com o tamanho da população e com a quantidade de trabalhadores pobres o investimento real na reprodução da força de trabalho era extremamente baixo Consequentemente o grosso do trabalho reprodutivo realizado pelas proletárias não estava destinado às suas famílias mas às famílias de seus empregadores ou então ao mercado Em média um terço da população feminina de Inglaterra Espanha França e Itália trabalhava como criada Assim a tendência no proleta riado era de postergar o casamento e desintegrar a família os vilarejos ingleses do século XVI experimentaram uma diminui ção populacional anual de 50 Com frequência os pobres eram até mesmo proibidos de se casar quando se temia que seus flhos pudessem cair na assistência pública Nesses casos as crianças eram retiradas de sua guarda sendo colocadas para trabalhar na paróquia Estimase que um terço ou mais da população rural da Europa permaneceu solteira nas cidades as taxas eram ainda maiores especialmente entre as mulheres na Alemanha 40 eram solteironas ou viúvas Ozment 1983 pp 412 Contudo dentro da comunidade trabalhadora do período de transição já podemos ver o surgimento da divisão sexual do trabalho que seria típica da organização capitalista embora as tarefas domésticas tenham sido reduzidas ao mínimo e as mu lheres proletárias também tivessem que trabalhar para o mer cado Em seu cerne havia uma crescente diferenciação entre o trabalho feminino e o masculino à medida que as tarefas reali zadas por mulheres e homens se tornavam mais diversifcadas e sobretudo passavam a sustentar relações sociais diferentes Por mais empobrecidos e destituídos de poder os traba lhadores assalariados homens ainda podiam ser benefciados pelo trabalho e pelos rendimentos de suas esposas ou podiam comprar os serviços das prostitutas Ao longo dessa primeira fase de proletarização era a prostituta que realizava com maior frequência as funções de esposa para os trabalhadores homens cozinhando e limpando para eles além de servirlhes sexual mente Ademais a criminalização da prostituição que castigou a mulher mas quase não teve efeitos sobre seus clientes homens reforçou o poder masculino Qualquer homem podia agora destruir uma mulher simplesmente declarando que ela era uma prostituta ou dizendo publicamente que ela havia cedido a seus desejos sexuais As mulheres teriam que suplicar aos homens 199 198 que não lhes tirassem a honra a única propriedade que lhes restava Cavallo e Cerutti 1980 p 346 e segs já que suas vidas estavam agora nas mãos dos homens que como os senhores feudais podiam exercer sobre elas um poder de vida ou morte A DOMESTICAÇÃO DAS MULHERES E A REDEFINIÇÃO DA FEMINILIDADE E DA MASCULINIDADE MULHERES SELVAGENS DA EUROPA Não é surpreendente então diante da desvalorização do trabalho e da condição social femininas que a insubordinação das mulheres e os métodos pelos quais puderam ser domesti cadas estivessem entre os principais temas da literatura e da política social da transição Underdown 1985a pp 11636106 As mulheres não poderiam ter sido totalmente desvalorizadas enquanto trabalhadoras e privadas de toda sua autonomia com relação aos homens se não tivessem sido submetidas a um intenso processo de degradação social e de fato ao longo dos séculos XVI e XVII as mulheres perderam terreno em todas as áreas da vida social Uma destas áreaschave pela qual se produziram grandes mudanças foi a lei Aqui nesse período é possível observar uma constante erosão dos direitos das mulheres107 Um dos direitos mais importantes que as mulheres perderam foi o de realizar atividades econômicas por conta própria como femmes soles Na França perderam o direito de fazer contratos ou de representar a si mesmas nos tribunais tendo sido declaradas legalmente como imbecis Na Itália começaram a aparecer com menos frequência nos tribunais para denunciar abusos 106 Ver Underdown 1985a The Taming of the Scold The Enforcement of Patriarchal Authority in Early Modern England A domesticação das desbocadas A imposição da autoridade patriarcal no início da Inglaterra Moderna em Anthony Fletcher e John Stevenson 1985 pp 11636 Mendelson e Crawford 1998 pp 6971 107 Sobre a perda de direitos das mulheres nos séculos XVI e XVII na Europa ver entre outros Merry Wiesner 1993 p 33 que escreve A difusão do direito romano teve um efeito em grande parte negativo sobre o status legal civil das mulheres no início do período moderno tanto por causa das perspectivas que os próprios juristas adotaram sobre as mulheres a partir do direito romano quanto pela aplicação mais estrita das leis existentes que o direito romano possibilitou 201 200 reconstruídos É possível identifcar duas tendências dentro desse debate Por um lado construíamse novos cânones culturais que maximizavam as diferenças entre as mulheres e os homens criando protótipos mais femininos e mais masculinos Fortunati 1984 Por outro lado foi estabelecido que as mulheres eram ine rentemente inferiores aos homens excessivamente emocionais e Uma resmungona é obrigada a desfilar pela comunidade usando a rédea uma engenhoca de ferro empregada para punir mulheres de língua afiada Significativamente um aparato similar era usado por europeus traficantes de escravos na África para dominar os cativos e transportálos a seus barcos Gravura inglesa do século XVII perpetrados contra elas Na Alemanha quando uma mulher de classe média tornavase viúva passou a ser comum a designa ção de um tutor para administrar seus negócios Também foi proibido às mulheres alemãs que vivessem sozinhas ou com ou tras mulheres No caso das mais pobres não podiam morar nem com suas próprias famílias afnal pressupunhase que não seriam adequadamente controladas Em suma além da desva lorização econômica e social as mulheres experimentaram um processo de infantilização legal A perda de poder social das mulheres expressouse também por meio de uma nova diferenciação sexual do espaço Nos países mediterrâneos as mulheres foram expulsas não apenas de muitos trabalhos assalariados como também das ruas onde uma mulher desacompanhada corria o risco de ser ridicularizada ou atacada sexualmente Davis 1998 Na Inglaterra um paraíso para as mulheres na visão de alguns visitantes italianos a presença delas em público também começou a ser malvista As mulheres inglesas eram dissuadidas de sentarse em frente a suas casas ou de fcar perto das janelas também eram orientadas a não se reu nirem com suas amigas nesse período a palavra gossip fofoca que signifca amiga passou a ganhar conotações depreciativas Inclusive era recomendado às mulheres que não visitassem seus pais com muita frequência depois do casamento Como a nova divisão sexual do trabalho reconfgurou as relações entre homens e mulheres é algo que se pode ver a partir do amplo debate travado na literatura erudita e popular acerca da natureza das virtudes e dos vícios femininos um dos principais caminhos para a redefnição ideológica das relações de gênero na transição para o capitalismo Conhecido desde muito antes como la querelle des femmes o que resulta deste debate é uma curio sidade renovada pela questão indicando que as velhas normas estavam se desmembrando e que o público estava se dando conta de que os elementos básicos da política sexual estavam sendo 203 202 luxuriosas incapazes de se governar e tinham que ser colocadas sob o controle masculino Da mesma forma que ocorreu com a condenação da bruxaria o consenso sobre esta questão atraves sava as divisões religiosas e intelectuais Do púlpito ou por meio da escrita humanistas reformadores protestantes e contrarrefor madores católicos todos cooperaram constante e obsessivamente com o aviltamento das mulheres As mulheres eram acusadas de ser pouco razoáveis vaidosas selvagens esbanjadoras A língua feminina era especialmente culpável considerada um instrumento de insubordinação Porém a principal vilã era a esposa desobediente que ao lado da desbo cada da bruxa e da puta era o alvo favorito de dramaturgos escritores populares e moralistas Nesse sentido A megera doma da 1593 de Shakespeare era um manifesto da época O castigo da insubordinação feminina à autoridade patriarcal foi evocado e celebrado em inúmeras obras de teatro e panfetos A literatura inglesa dos períodos de Elizabeth I e de Jaime I fez a festa com esses temas Obra típica do gênero é Tis a Pity Shes a Whore 1633 Pena que ela é uma prostituta de John Ford que termina com o assassinato a execução e o homicídio didáticos de três das quatro personagens femininas Outras obras clássicas que trataram da disciplina das mulheres são Arraignment of Lewed Idle Forward Inconstant Women 1615 A denúncia de mulheres indecentes ociosas descaradas e inconstantes de John Swetnam e The Parliament of Women 1646 Parlamento de mulheres uma sátira dirigida basicamente contra as mulheres de classe média que as retrata muito ocupadas criando leis para conquistar a supremacia sobre seus maridos108 No mesmo período foram introduzidas 108 Se às obras de teatro e panfletos juntarmos também os registros da corte do período Underdown 1985a p 119 conclui que entre 1560 e 1640 estes registros revelam uma intensa preocupação com as mulheres que são uma ameaça visível para o sistema patriarcal Mulheres discutindo e brigando com seus vizinhos mulheres solteiras que recusam a se dedicar ao serviço doméstico esposas que dominam seus maridos ou batem neles todos aparecem com maior frequência que no período imediatamente ante rior ou posterior Não passa despercebido que esta também é a época em que as acusações de bruxaria atingiram um de seus picos novas leis e novas formas de tortura destinadas a controlar o com portamento das mulheres dentro e fora de casa o que confrma que o vilipêndio literário das mulheres expressava um projeto político preciso com o objetivo de deixálas sem autonomia nem poder social Na Europa da Era da Razão eram colocadas focinhei ras nas mulheres acusadas de serem desbocadas como se fossem cães e elas eram exibidas pelas ruas as prostitutas eram açoitadas ou enjauladas e submetidas a simulações de afogamentos ao pas so que se instaurava a pena de morte para mulheres condenadas por adultério Underdown 1985a p 117 e segs Não é exagero dizer que as mulheres eram tratadas com a mesma hostilidade e com o mesmo senso de distanciamento que se concedia aos índios selvagens na literatura produzida depois da Conquista O paralelismo não é casual Em ambos os casos a depreciação literária e cultural estava a serviço de um projeto de expropriação Como veremos a demonização dos povos indígenas americanos serviu para justifcar sua escravização e o saque de seus recursos Na Europa o ataque contra as mulheres justifcou a apropriação de seu trabalho pelos homens e a criminalização de seu controle sobre a reprodução O preço da resistência era sempre o extermínio Nenhuma das táticas empregadas contra as mulheres europeias e contra os sujeitos coloniais poderia ter obtido êxito se não tivesse sido sustentada por uma campanha de terror No caso das mulheres europeias foi a caça às bruxas que exerceu o papel principal na construção de sua nova função social e na degradação de sua identidade social A defnição das mulheres como seres demoníacos e as práti cas atrozes e humilhantes a que muitas delas foram submetidas deixaram marcas indeléveis em sua psique coletiva e em seu senso de possibilidades De todos os pontos de vista social econômico cultural político a caça às bruxas foi um momento decisivo na vida das mulheres foi o equivalente à derrota histó rica a que alude Engels em A origem da família da propriedade 205 privada e do Estado 1884 como causa do desmoronamento do mundo matriarcal visto que a caça às bruxas destruiu todo um universo de práticas femininas de relações coletivas e de sistemas de conhecimento que haviam sido a base do poder das mulheres na Europa précapitalista assim como a condição ne cessária para sua resistência na luta contra o feudalismo A partir desta derrota surgiu um novo modelo de feminilida de a mulher e esposa ideal passiva obediente parcimoniosa casta de poucas palavras e sempre ocupada com suas tarefas Esta mudança começou no fnal do século XVII depois de as mulheres terem sido submetidas a mais de dois séculos de terrorismo de Estado Uma vez que foram derrotadas a imagem da feminilidade construída na transição foi descartada como uma ferramenta desnecessária e uma nova domesticada ocupou seu lugar Embora na época da caça às bruxas as mulheres tenham sido re tratadas como seres selvagens mentalmente débeis de desejos in saciáveis rebeldes insubordinadas incapazes de autocontrole no século XVIII o cânone foi revertido Agora as mulheres eram retra tadas como seres passivos assexuados mais obedientes e morais que os homens capazes de exercer uma infuência positiva sobre eles Até mesmo sua irracionalidade podia ser valorizada como constatou o flósofo holandês Pierre Bayle em seu Dictionnaire historique et critique 1740 Dicionário histórico e crítico no qual elogiou o poder do instinto materno feminino defendendo que devia ser visto como um mecanismo providencial que assegurava que as mulheres continuassem se reproduzindo apesar das des vantagens do parto e da criação de flhos Frontispício de Parliament of Women 1646 Parlamento das mulheres obra típica da sátira antimulheres que dominou a literatura inglesa no período da Guerra Civil No frontispício se lê Parlamento das Mulheres Com as alegres leis recentemente aprovadas por elas Para viver com maior facilidade pompa orgulho e indecência mas especialmente para que elas possam ter superioridade e dominar seus maridos com um novo modo encontrado por elas de curar qualquer corno velho ou novo e como as duas partes podem recuperar sua honra e honestidade novamente NTE 207 206 COLONIZAÇÃO GLOBALIZAÇÃO E MULHERES Enquanto a resposta à crise populacional na Europa foi a sub jugação das mulheres à reprodução na América onde a coloni zação destruiu 95 da população nativa a resposta foi o tráfco de escravos capaz de prover à classe dominante europeia uma quantidade imensa de mão de obra Já no século XVI aproximadamente um milhão de escravos africanos e trabalhadores indígenas estavam produzindo mais valia para a Espanha na América colonial com uma taxa de exploração muito mais alta que a dos trabalhadores na Europa contribuindo em setores da economia europeia que estavam se desenvolvendo numa direção capitalista Blaut 1992a pp 456109 Em 1600 o Brasil sozinho exportava o dobro de valor em açúcar que toda a lã exportada pela Inglaterra no mesmo ano ibidem p 42 A taxa de acumulação das plantações de cana bra sileiras era tão alta que a cada dois anos as fazendas duplicavam sua capacidade A prata e o ouro também tiveram um papel fun damental na solução da crise capitalista O ouro importado do Brasil reativou o comércio e a indústria na Europa De Vries 1976 p 20 Eram importadas mais de 17000 toneladas em 1640 que davam à classe capitalista uma vantagem excepcional quanto ao acesso a trabalhadores mercadorias e terras Blaut 1992a pp 3840 Contudo a verdadeira riqueza era o trabalho acumulado 109 James Blaut 1992a destaca que apenas umas poucas décadas depois de 1492 a taxa de crescimento e mudança se acelerou dramaticamente e a Europa entrou num período de rápido desenvolvimento Ele diz 1992a p 38 A empresa colonial no século XVI produziu capital de diversas maneiras Uma foi a mineração de ouro e prata Uma segunda foi a agricultura de plantation principalmente no Brasil Uma terceira foi o comércio com a Ásia de especiarias tecidos e muitas outras coisas Um quarto elemento foi o lucro que retornou às casas europeias de uma variedade de empreendimentos produtivos e comerciais na América Um quinto foi a escravatura A acumulação destas receitas foi massiva por meio do tráfco de escravos que tornou possível um modo de produção que não poderia ser imposto na Europa É sabido que o sistema de plantation alimentou a Revolução Industrial como defendido por Eric Williams que destacou que difcilmente tenhase assentado um tijolo em Liverpool e em Bristol sem sangue africano 1944 pp 613 No entanto o capitalismo não poderia sequer ter decolado sem a anexação da América e sem o sangue e suor que durante dois séculos fuíram das plantations para a Europa Devemos enfatizar essa questão na medida em que ela nos ajuda a perceber o quão essencial foi a escravidão para a história do capitalismo e por que periódica mas sistematicamente sempre que o sistema capitalista se vê ameaçado por uma grande crise econômica a classe capitalista tem que pôr em marcha um processo de acumulação primitiva isto é um processo de colonização e escravidão em grande escala como o que testemunhamos atualmente Bales 1999 O sistema de plantations foi decisivo para o desenvolvi mento capitalista não somente pela imensa quantidade de maistrabalho que se acumulou a partir dele mas também por que estabeleceu um modelo de administração do trabalho de produção voltada para a exportação de integração econômica e de divisão internacional do trabalho que desde então tornouse o paradigma das relações de classe capitalistas Com sua imensa concentração de trabalhadores e uma mão de obra cativa arrancada de sua terra e que não podia confar no apoio local a plantation prefgurou não apenas a fábrica mas também o uso posterior da imigração além da globali zação voltada a reduzir os custos do trabalho Em particular a plantation foi um passo crucial na formação de uma divisão internacional do trabalho que por meio da produção de bens de consumo integrou o trabalho dos escravos à reprodução da força de trabalho europeia ao mesmo tempo que mantinha 209 208 os trabalhadores escravizados e os assalariados geográfca e socialmente separados A produção colonial de açúcar chá tabaco rum e algodão as mercadorias mais importantes junto com o pão para a reprodução da força de trabalho na Europa não se desenvol veu em grande escala até depois do decênio de 1650 após a escravidão ter sido institucionalizada e os salários terem come çado modestamente a aumentar Rowling 1987 pp 51 76 85 Devemos mencionar aqui no entanto que quando fnalmente a produção se desenvolveu foram introduzidos dois mecanis mos que reestruturaram de forma signifcativa a reprodução do trabalho em nível internacional De um lado foi criada uma linha de montagem global que reduziu o custo das mercadorias necessárias para produzir a força de trabalho na Europa e que conectou os trabalhadores escravizados e assalariados por meio de modalidades que anteciparam o uso que o capitalismo faz atualmente dos trabalhadores asiáticos africanos e latinoame ricanos como provedores de produtos de bens de consumo baratos ou seja barateados devido aos esquadrões da morte e à violência militar para os países capitalistas avançados Por outro lado nas metrópoles o salário se tornou um veículo pelo qual os bens produzidos pelos trabalhadores escravizados iam parar no mercado isto é um veículo por meio do qual os produtos do trabalho escravo realizavam seu valor Desta forma assim como ocorria com o trabalho doméstico feminino a integração do trabalho escravo à produção e à reprodução da força de trabalho metropolitana foi progressi vamente consolidada O salário se redefniu claramente como instrumento de acumulação como alavanca para mobilizar não somente o trabalho dos trabalhadores remunerados mas tam bém o trabalho de uma multidão de trabalhadores que fcava oculta devido às suas condições não salariais Sabiam os trabalhadores na Europa que estavam comprando produtos do trabalho escravo Se sim se opunham a isso Essa é uma pergunta que gostaríamos de fazer a eles mas que não posso responder O certo é que a história do chá do açúcar do rum do tabaco e do algodão é muito mais impor tante para o surgimento do sistema fabril do que podemos de duzir da contribuição que essas mercadorias tiveram enquanto matériasprimas ou meios de troca no tráfco de escravos Isso porque o que viajava com estas exportações não era apenas o sangue dos escravos mas também as sementes de uma nova ciência da exploração e de uma nova divisão da classe trabalha dora pela qual o trabalho assalariado mais que oferecer uma alternativa ao trabalho escravo foi transformado em depen dente da escravidão enquanto mecanismo para ampliar a parte não remunerada do dia de trabalho assalariado da mesma maneira que o trabalho feminino não remunerado A vida dos trabalhadores escravizados na América e as dos assalariados na Europa estava tão estreitamente conectada que nas ilhas do Caribe onde se davam aos escravos porções de terra provision grounds110 a serem cultivadas para seu próprio consumo a quantidade de terra alocada a eles e a quantidade de tempo que lhes era dado para cultiválas variavam proporcio nalmente ao preço do açúcar no mercado mundial Morrissey 1989 pp 519 o que provavelmente era determinado pela dinâ mica dos salários dos trabalhadores e sua luta pela reprodução No entanto seria um erro concluir que a integração do tra balho escravo à produção do proletariado assalariado europeu criou uma comunidade de interesses entre os trabalhadores europeus e os capitalistas das metrópoles supostamente con solidada pelo seu desejo comum de bens importados baratos Na realidade assim como a Conquista o tráfco de escravos foi uma desgraça histórica para os trabalhadores europeus Como vimos a escravidão bem como a caça às bruxas foi um imenso 110 Roça NTE 211 210 laboratório para a experimentação de métodos de controle do trabalho que logo foram importados à Europa A escravidão afetou também os salários e a situação legal dos trabalhadores europeus não pode ser coincidência que foi só quando terminou a escravi dão que os salários na Europa aumentaram consideravelmente e os trabalhadores europeus conquistaram o direito de se organizar Também é difícil imaginar que os trabalhadores na Europa tenham lucrado com a Conquista da América pelo menos em sua fase inicial Lembremos que a intensidade da luta anti feudal foi o que instigou a nobreza menor e os comerciantes a buscarem a expansão colonial e que os conquistadores saíram das fleiras dos inimigos mais odiados da classe trabalhadora europeia Também é importante lembrar que a Conquista for neceu às classes dominantes a prata e o ouro que elas usaram para pagar os exércitos mercenários que derrotaram as revoltas urbanas e rurais e que nos mesmos anos em que os Aruaque Asteca e Inca eram subjugados os trabalhadores e trabalha doras na Europa eram expulsos de suas casas marcados como animais e queimadas como bruxas Não devemos supor então que o proletariado europeu foi sempre cúmplice do saque na América embora indubitavelmen te tenha havido proletários que de forma individual o foram A nobreza esperava tão pouca cooperação das classes baixas que inicialmente os espanhóis apenas permitiam que uns poucos embarcassem Somente oito mil espanhóis imigraram legalmente à América durante todo o século XVI dos quais o clero represen tava 17 Hamilton 1965 p 299 Williams 1984 pp 3840 Até mesmo posteriormente as pessoas foram proibidas de formarem assentamentos no exterior de forma independente devido ao temor de que pudessem colaborar com a população local Para a maioria dos proletários durante os séculos XVII e XVIII o acesso ao Novo Mundo foi realizado por meio da servi dão por dívidas e pelo degredo a punição que as autoridades inglesas adotaram para livrar o país dos condenados dos dissidentes políticos e religiosos e de uma vasta população de vagabundos e mendigos gerada por causa dos cercamentos Como Peter Linebaugh e Marcus Rediker destacam em The ManyHeaded Hydra 2000 A hidra de muitas cabeças o medo que os colonizadores tinham da migração sem restrições estava bem fundamentado dadas as condições de vida miseráveis que prevaleciam na Europa e a atração que exerciam as notícias que circulavam sobre o Novo Mundo mostrandoo como uma terra milagrosa em que as pessoas viviam livres da labuta e da tirania dos senhores feudais e da ganância e onde não havia lugar para meu e seu já que todas as coisas eram possuídas coletivamente Linebaugh e Rediker 2000 Brandon 1986 pp 67 A atração que o Novo Mundo exercia era tão forte que a visão da nova sociedade que oferecia aparentemente infuen ciou o pensamento político do Iluminismo contribuindo para a emergência de um novo sentido da noção de liberdade como ausência de amo uma ideia que antes era desconhecida para a teoria política europeia Brandon 1986 pp 238 Não é de se surpreender que alguns europeus tentaram perderse neste mundo utópico onde como Linebaugh e Rediker afrmam de modo contundente poderiam reconstruir a experiência perdi da das terras comunais 2000 p 24 Alguns viveram durante anos com as tribos indígenas apesar das restrições que sofriam aqueles que se estabeleciam nas colônias americanas e do alto preço que pagavam aqueles que eram pegos os que escapavam eram tratados como traidores e executados Este foi o destino de alguns dos colonos ingleses na Virgínia que quando foram pegos depois de terem fugido para viver com os indígenas foram condenados pelos conselheiros da colônia a serem queimados quebrados na roda e enforcados ou fuzilados Koning 1993 p 61 O terror criava fronteiras comentam Linebaugh e Rediker 2000 p 34 No entanto em 1699 os 213 212 ingleses continuavam tendo difculdades para convencer aque les que os indígenas haviam tornado cativos a abandonarem seu modo de vida indígena Nenhum argumento nenhuma súplica nenhuma lágrima como comentava um contemporâneo eram capazes de persuadir muitos deles a abandonarem seus amigos indígenas Por outro lado crianças indígenas foram educadas cuidadosamente entre os ingleses vestidas e ensinadas e mesmo assim não há nenhum caso de algum que tenha fcado com eles mas sim que voltaram para suas próprias nações Koning 1993 p 60 Também para os proletários europeus que se vendiam devido à servidão por dívidas ou chegavam ao Novo Mundo para cumprir uma sentença penal a sorte não foi muito dife rente a princípio do destino dos escravos africanos com quem frequentemente trabalhavam lado a lado A hostilidade por seus senhores era igualmente intensa de modo que os donos das plantations os viam como um grupo perigoso tanto que na segunda metade do século XVII começaram a limitar seu uso introduzindo uma legislação destinada a separálos dos africa nos No entanto no fnal do século XVIII as fronteiras raciais foram irrevogavelmente traçadas Moulier Boutang 1998 Até então a possibilidade de alianças entre brancos negros e indí genas bem como o medo dessa união na imaginação da classe dominante europeia tanto na sua terra quanto nas plantations estava constantemente presente Shakespeare deu voz a isso em A tempestade 1611 em que imaginou a conspiração organizada por Calibã o rebelde nativo flho de uma bruxa e por Trínculo e Estéfano os proletários europeus que se lançam a viagens marítimas sugerindo a possibilidade de uma aliança fatal entre os oprimidos e dando um contraponto dramático à capacidade mágica de Próspero em curar a discórdia entre os governantes Em A tempestade a conspiração termina desgraçadamente com os proletários europeus demonstrando que não eram nada mais que ladrõezinhos insignifcantes e bêbados e com Calibã suplicando pelo perdão de seu senhor colonial Assim quando os rebeldes derrotados são levados diante de Próspero e de seus antigos inimigos Sebastião e Antônio agora reconciliados com ele eles se encontram com escárnio e pensamentos de proprie dade e divisão SEBASTIÃO Ah Ah Que coisas ora nos surgem meu senhor Antônio Poderemos comprálas com dinheiro ANTÔNIO Decerto poderemos uma delas é puro peixe e sem nenhuma dúvida vendável no mercado PRÓSPERO Vede apenas senhores as roupagens destes homens Dizeime agora se eles são honestos Esse tipo disforme que ali vedes teve por mãe uma terrível bruxa e de poder tão grande que até mesmo na lua tinha infuência e provocava marés e baixamarés realizando da lua o ofício sem o poder dela Esses três indivíduos me roubaram e aquele meiodiabo pois é flho bastardo já se vê tramou com eles assassinarme Dois desses marotos são vossos conhecidos este bloco de escuridão é minha propriedade Shakespeare A tempestade Ato V Cena I linhas 265276111 No entanto fora de cena essa ameaça continuava Tanto nas Bermudas quanto em Barbados os servos foram desco bertos conspirando junto aos escravos africanos ao passo que na década de 1650 milhares de condenados eram levados em embarcações das Ilhas Britânicas até lá Rowling 1987 p 57 Na Virgínia o auge da aliança entre os servos negros e brancos foi a Rebelião de Bacon entre 1675 e 1676 quando os escravos 111 Edição Ridendo Castigat Mores Tradução de Nélson Jahr Garcia Disponível em httpwwwebooksbrasilorgeLibristempestadehtml Acesso em 30 de agosto de 2016 NTP 215 214 africanos e os servos por dívidas se uniram para conspirar con tra seus senhores É por essa razão que a partir da década de 1640 a acumu lação de um proletariado escravizado nas colônias do sul dos Estados Unidos e do Caribe foi acompanhada pela construção de hierarquias raciais frustrando a possibilidade de tais com binações Foram aprovadas leis que privavam os africanos de direitos civis que anteriormente lhes haviam sido concedidos como a cidadania o direito de portar armas e o direito de fazer declarações ou de buscar ressarcimentos perante um tribunal pelos danos que pudessem sofrer O momento decisivo ocorreu quando a escravidão foi transformada em condição hereditária e foi dado aos senhores de escravos o direito de espancálos e matálos Além disso os casamentos entre negros e brancos foram proibidos Mais tarde depois da Guerra de Independência dos Estados Unidos a servidão dos brancos por dívidas considerada um vestígio do domínio inglês foi eliminada Como resultado no fnal do século XVIII as colônias da América do Norte haviam passado de uma sociedade com escravos para uma sociedade escravista Moulier Boutang 1998 p 189 e a possibilidade de solidariedade entre africanos e brancos havia sido seriamente enfraquecida Branco nas colônias tornouse não apenas uma distinção de privilégio social e econômico que servia para designar aqueles que até 1650 tinham sido chamados de cristãos e depois de ingleses ou homens livres ibidem p 194 mas também um atributo moral um meio pelo qual a hegemonia foi naturalizada Por outro lado negro e africano passaram a ser sinônimos de escravo até o ponto de as pessoas negras livres que ainda representavam considerável parcela da população norteameri cana durante o século XVII se virem forçadas mais adiante a provar que eram livres SEXO RAÇA E CLASSE NAS COLÔNIAS Poderia ter sido diferente o resultado da conspiração de Calibã se seus protagonistas tivessem sido mulheres E se o rebelde não tivesse sido Calibã mas Sycorax sua mãe a poderosa bruxa argelina que Shakespeare oculta no segundo plano da peça Ou se ao invés de Trínculo e Estéfano fossem as irmãs das bruxas que na mesma época da Conquista estavam sendo queimadas na fogueira na Europa Essa é uma pergunta retórica mas serve para questionar a natureza da divisão sexual do trabalho nas colônias e dos laços que podiam ser estabelecidos ali entre as mulheres europeias as indígenas e as africanas em virtude de uma experiência comum de discriminação sexual Em Eu Tituba Feiticeira Negra de Salem 1992 Maryse Condé nos permite compreender bem o tipo de situação que podia gerar esse laço quando descreve como Tituba e sua nova senhora a jovem esposa do puritano Samuel Parris a princí pio se apoiaram mutuamente contra o ódio assassino de seu marido pelas mulheres Um exemplo ainda mais extraordinário vem do Caribe onde as mulheres inglesas de classe baixa degredadas da GrãBretanha como condenadas ou servas por dívidas torna ramse uma parte signifcativa das turmas de trabalho sob comando unifcado nas fazendas açucareiras Consideradas inadequadas para o casamento pelos homens brancos proprie tários e desqualifcadas para o trabalho doméstico pela sua insolência e temperamento arruaceiro as mulheres brancas semterra eram relegadas ao trabalho manual nas plantations às obras públicas e ao setor de serviços urbanos Nesse univer so se sociabilizavam intimamente com a comunidade escrava 216 e com homens negros escravizados Formavam lares e tinham flhos com eles Beckles 1995 pp 1312 Também cooperavam e competiam com as escravas na venda de produtos cultivados ou de artigos roubados Entretanto com a institucionalização da escravatura que veio acompanhada por uma diminuição da carga laboral para os trabalhadores brancos e por uma queda no número de mulheres vindas da Europa como esposas para os fazendeiros a situação mudou drasticamente Fosse qual fosse sua origem social as mu lheres brancas ascenderam de categoria esposadas dentro das classes mais altas do poder branco E quando se tornou possível também se tornaram donas de escravos geralmente de mulhe res empregadas para realizar o trabalho doméstico ibidem112 No entanto este processo não foi automático Assim como o sexismo o racismo teve que ser legislado e imposto Dentre as proibições mais reveladoras devemos mais uma vez levar em conta que o casamento e as relações sexuais entre negros e brancos foram proibidos As mulheres brancas que se casaram com escravos negros foram condenadas e os flhos gerados desses casamentos foram escravizados pelo resto de suas vidas Estas leis aprovadas em Maryland e na Virginia na década de 1660 são provas da criação de cima para baixo de uma socieda de segregada e racista e de que as relações íntimas entre ne gros e brancos deveriam ser efetivamente muito comuns se para acabar com elas considerouse necessário recorrer à escravização perpétua Como se seguissem o roteiro estabelecido para a caça às bru xas as novas leis demonizavam a relação entre mulheres brancas e homens negros Quando foram aprovadas na década de 1660 a caça às bruxas na Europa estava chegando ao fm mas nas 112 Um caso emblemático é o das Bermudas citado por Elaine Forman Crane 1990 pp 23158 Crane afirma que umas tantas mulheres brancas nas Bermudas eram donas de escravos geralmente de outras mulheres e graças ao trabalho deles pude ram manter um certo grau de autonomia econômica Uma escrava sendo marcada a ferro quente Nos processos por bruxaria na Europa a marca do demônio nas mulheres havia figurado de modo proeminente como um símbolo de sujeição total Mas na realidade os verdadeiros demônios eram os traficantes de escravos e os donos de terra brancos que como os homens nesta imagem não hesitavam tratar como gado as mulheres que escravizavam 219 218 colônias inglesas que logo se tornariam os Estados Unidos todos os tabus que rodeavam as bruxas e os demônios negros estavam sendo revividos desta vez às custas dos homens negros Dividir e conquistar também se tornou a política ofcial nas colônias espanholas depois de um período em que a inferioridade numérica dos colonos sugeria uma atitude mais liberal perante as relações interétnicas e as alianças com os chefes locais por meio do matrimônio No entanto na década de 1540 na medida em que o aumento na quantidade de mes tizos debilitava o privilégio colonial a raça foi instaurada como um fatorchave na transmissão da propriedade e uma hierarquia racial foi estabelecida para separar indígenas mes tizos e mulattos uns dos outros e da população branca Nash 1980113 As proibições em relação ao casamento e à sexualidade feminina também aqui serviram para impor a exclusão social Entretanto na América hispânica a segregação por raças foi apenas parcialmente bemsucedida devido à migração à diminuição da população às rebeliões indígenas e à formação de um proletariado urbano branco sem perspectivas de melhora econômica e portanto propenso a se identifcar com os mestizos e mulattos mais do que com os brancos de classe alta Por isso enquanto nas sociedades caribenhas baseadas no regime de plantation as diferenças entre europeus e africanos aumentaram com o tempo nas colônias sulamericanas se tor nou possível uma certa recomposição especialmente entre as mulheres de classe baixa europeias mestizas e africanas que além de sua precária posição econômica compartilhavam as desvantagens derivadas da dupla moral incorporada na lei que as tornava vulneráveis ao abuso masculino 113 June Nash 1980 p 140 afirma Houve uma mudança significativa em 1549 quando a origem racial se tornou um fator junto com as uniões matrimoniais le galmente sancionadas para a definição de direitos de sucessão A nova lei estabelecia que nem os mulattos descendentes de homem branco e mulher índia nem os mestizos nem as pessoas nascidas fora do casamento eram permitidas a possuir índios em encomienda Mestizo e ilegítimo se tornaram quase sinônimos É possível encontrar sinais dessa recomposição nos arquivos da Inquisição sobre as investigações que realizou no México durante o século XVIII para erradicar as crenças mági cas e heréticas Behar 1987 pp 3451 A tarefa era impossível e logo a própria Inquisição perdeu o interesse no projeto conven cida a essa altura de que a magia popular não era uma ameaça para a ordem política Os testemunhos que recolheu revelam no entanto a existência de numerosos intercâmbios entre mulheres sobre temas relacionados a curas mágicas e remédios para o amor criando com o tempo uma nova realidade cultural extraída do encontro entre tradições mágicas africanas euro peias e indígenas Como afrma Ruth Behar ibidem As mulheres indígenas davam beijafores às curandeiras espanholas para que os usassem para atração sexual as mulattas ensinaram as mestizas a domesticar seus maridos uma feiticeira loba contou sobre o demônio a uma coyota Este sistema popular de crenças era paralelo ao sistema de crenças da Igreja e se propagou tão rápido quanto o cristianismo pelo Novo Mundo de tal forma que depois de um tempo tornouse impossível distinguir nele o que era indígena e o que era espanhol ou africano114 Entendidas pela visão da Inquisição como gente carente de razão este universo feminino multicolorido descrito por Ruth Behar é um exemplo contundente das alianças que para além das fronteiras coloniais e de cores as mulheres podiam construir em virtude de sua experiência comum e de seu inte resse em compartilhar conhecimentos e práticas tradicionais que estavam ao seu alcance para controlar sua reprodução e combater a discriminação sexual Assim como a discriminação estabelecida pela raça a discriminação sexual era mais que uma bagagem cultural que 114 Uma coyota era metade mestiza e metade indígena Ruth Behar 1987 p 45 221 220 os colonizadores trouxeram da Europa com suas lanças e cava los Tratavase nada mais nada menos do que da destruição da vida comunitária uma estratégia ditada por um interesse econômico específco e pela necessidade de se criarem as condições para uma economia capitalista como tal sempre ajustada à tarefa do momento No México e no Peru onde o declínio populacional sugeria o incentivo do trabalho doméstico feminino uma nova hierarquia sexual introduzida pelas autoridades espanholas privou as mulheres indígenas de sua autonomia e deu a seus familiares homens mais poder sobre elas Sob as novas leis as mulheres casadas tornaramse propriedade dos homens e foram forçadas contra o costume tradicional a seguir seus maridos às casas deles Foi criado também um sistema de compadrazgo que limi tava ainda mais seus direitos colocando nas mãos masculinas a autoridade sobre as crianças Além disso para assegurar que as mulheres indígenas reproduzissem os trabalhadores recrutados para realizar o trabalho de mita nas minas as autoridades espa nholas promulgaram leis que dispunham que ninguém poderia separar marido e mulher o que signifcava que as mulheres se riam forçadas a seguir seus maridos gostando ou não inclusive para zonas que eram sabidamente campos de extermínio devido à poluição criada pela mineração Cook Noble 1981 pp 2056115 A intervenção dos jesuítas franceses na disciplina e no 115 As mais mortíferas eram as minas de mercúrio como a de Huancavelica em que milhares de trabalhadores morreram lentamente envenenados passando por sofri mentos horríveis Como escreve David Noble Cook 1981 pp 2056 Os trabalhadores na mina de Huancavelica enfrentavam tanto perigos imediatos quanto de longo prazo A derrubadas as inundações e as quedas devido a túneis escorregadios eram ameaças cotidianas A alimentação pobre a ventilação inadequada nas câmaras subterrâneas e a notável diferença de temperatura entre o interior da mina e o ar rarefeito dos Andes apre sentavam perigos imediatos para a saúde Os trabalhadores que permaneciam durante longos períodos nas minas talvez padecessem do pior de todos os destinos Pó e finas partículas eram liberados no ar devido aos golpes das ferramentas usadas para desgastar o mineral Os índios inalavam o pó que continha quatro substâncias perigosas vapores de mercúrio arsênico pentóxido de arsênico e cinábrio Uma exposição prolongada resultava em morte Conhecido como mal da mina quando avançava era incurável Nos casos menos severos as gengivas se ulceravam e ficavam carcomidas treinamento dos Innu no Canadá durante meados do século XVII nos dá um exemplo revelador de como se acumulavam as diferenças de gênero Esta história foi relatada pela antropóloga Eleanor Leacock em seus Myths of Male Dominance 1981 Mitos da dominação masculina em que examina o diário de um de seus protagonistas o padre Paul Le Jeune um missionário jesuíta que fazendo algo tipicamente colonial havia se juntado a um posto comercial francês para cristianizar os índios trans formandoos em cidadãos da Nova França Os Innu eram uma nação indígena nômade que havia vivido em grande harmonia caçando e pescando na zona oriental da Península do Labrador Porém na época em que Le Jeune chegou a comunidade vinha sendo debilitada pela presença de europeus e pela difusão do comércio de peles de tal maneira que alguns homens ávidos por estabelecer uma aliança comercial com eles pareciam estar tranquilos em deixar que os franceses determinassem de que forma deveriam ser governados Leacock 1981 p 39 e segs Como ocorreu com frequência quando os europeus en traram em contato com as populações indígenas americanas os franceses estavam impressionados pela generosidade dos Innu por seu senso de cooperação e pela sua indiferença com relação ao status mas se escandalizavam com sua falta de moralidade Observaram que os Innu careciam de concepções como propriedade privada autoridade superioridade mascu lina e inclusive recusavamse a castigar seus flhos Leacock 1981 pp 348 Os jesuítas decidiram mudar tudo isso propondose a ensinar aos indígenas os elementos básicos da civilização convencidos de que isso era necessário para trans formálos em sócios comerciais de confança Nesse espírito eles primeiro ensinaramlhes que o homem é o senhor que na França as mulheres não mandam em seus maridos e que buscar romances à noite divorciarse quando qualquer dos parceiros desejasse e liberdade sexual para ambos antes ou 223 222 depois do casamento eram coisas que deviam ser proibidas Essa é uma conversa que Le Jeune teve sobre essas questões com um homem innu Eu disselhe que não era honrável para uma mulher amar a qualquer um que não fosse seu marido e que com este mal pairando ele não poderia ter certeza de que seu flho era realmente seu Ele respondeu Não tens juízo Vocês franceses amam apenas a seus flhos mas nós amamos a todos os flhos de nossa tribo Comecei a rir vendo que ele flosofava como os cavalos ou as mulas ibidem 50 Apoiados pelo governador da Nova França os jesuítas conseguiram convencer os Innu a providenciarem eles mesmos alguns chefes e a submeterem suas mulheres Como era cos tume uma das armas que os religiosos usaram foi insinuar que as mulheres independentes demais que não obedeciam a seus maridos eram criaturas do demônio Quando as mulheres innu fugiram revoltadas pelas tentativas dos homens em submetê las os jesuítas persuadiram os homens a correrem atrás delas e ameaçarem aprisionálas Atos de justiça como estes comentou orgulhoso Le Jeune numa ocasião particular não causam surpresa na França porque lá é comum que as pessoas ajam dessa forma mas entre essa gente onde todos se consideram livres desde o nascimento como os animais selvagens que os rodeiam nas grandes forestas é uma maravilha ou talvez um milagre ver um comando peremptório sendo obedecido ou um ato de severidade ou de justiça ibidem 54 A maior vitória dos jesuítas foi no entanto persuadir os Innu a baterem em seus flhos por acreditarem que o excesso de ca rinho que os selvagens tinham por seus descendentes fosse o principal obstáculo para sua cristianização O diário de Le Jeune registra a primeira ocasião em que uma menina foi espancada publicamente enquanto um de seus familiares passava um sermão assustador aos presentes sobre o signifcado histórico do acontecimento Este é o primeiro castigo a golpes diz ele que infigimos a alguém de nosso povo ibidem pp 545 Os homens innu receberam seu treinamento sobre supre macia masculina pelo fato de que os franceses queriam incul carlhes o instinto da propriedade privada para induzilos a se tornarem sócios confáveis no comércio de peles A situação nas plantations era muito diferente já que a divisão sexual do trabalho era imediatamente ditada pelas demandas da força de trabalho dos agricultores e pelo preço das mercadorias produzi das pelos escravos no mercado internacional Até a abolição do tráfco de escravos como foi documentado por Barbara Bush e Marietta Morrissey tanto as mulheres como os homens eram submetidos ao mesmo grau de exploração os agri cultores achavam mais lucrativo fazer os escravos trabalharem e consumilos até a morte do que estimular sua reprodução Nem a divisão sexual do trabalho nem as hierarquias sexuais eram então pronunciadas Os homens africanos não podiam decidir nada sobre o destino de suas companheiras e familiares enquanto para as mulheres longe de terem uma consideração especial es peravase que trabalhassem nos campos assim como os homens especialmente quando a demanda de açúcar e de tabaco era alta Elas também estavam sujeitas a castigos cruéis até quando esta vam grávidas Bush 1990 pp 424 Ironicamente então parecia que as mulheres conquista ram na escravidão uma dura igualdade com os homens de sua classe Moinsen 1993 Contudo nunca foram tratadas de forma igual Davase menos comida às mulheres diferentemente dos homens elas eram vulneráveis aos ataques sexuais de seus se nhores e eramlhes infigidos castigos mais cruéis já que além da agonia física tinham que suportar a humilhação sexual 224 que sempre lhes acompanhava além dos danos aos fetos que traziam dentro de si quando estavam grávidas Uma nova página se abriu porém depois de 1807 quando foi abolido o comércio de escravos e os fazendeiros do Caribe e dos Estados Unidos adotaram uma política de criação de escravos Como destaca Hilary Beckles com relação à ilha de Barbados os proprietários das plantations tentavam controlar os hábitos reprodutivos das escravas desde o século XVII en corajandoas a terem mais ou menos flhos num determinado lapso de tempo dependendo de quanto trabalho era neces sário no campo Porém a regulação das relações sexuais e dos hábitos reprodutivos das mulheres apenas se tornou mais siste mática e intensa quando o fornecimento de escravos africanos foi diminuído Beckles 1989 p 92 Na Europa a coação de mulheres à procriação havia levado à imposição da pena de morte pelo uso de contraceptivos Nas plantations onde os escravos estavam se transformando numa mercadoria valiosa a mudança para uma política de criação tornou as mulheres mais vulneráveis aos ataques sexuais em bora tenha levado a certas melhorias nas suas condições de trabalho foram reduzidas as horas de trabalho construíramse casas de parto ofereceramse parteiras para assistirem o parto expandiramse os direitos sociais por exemplo de viagem e de reunião Beckles 1989 pp 99100 Bush 1990 p 135 No entanto essas mudanças não eram capazes de reduzir os danos Mulheres escravizadas batalhavam para continuar as atividades que exerciam originalmente na África como por exemplo vender os produtos que cultivavam o que lhes permitia dar melhor amparo a suas famílias e obter alguma autonomia Família de escravos negros originários do Loango no Suriname do livro de John Gabriel Stedman Narrative of a Five Years Expedition against the revolted Negroes of Surinam from the year 1772 to 1777 Londres 1796 Narrativa de uma expedição de cinco anos contra os negros revoltos do Suriname do ano 1772 ao 1777 vol II A partir de Barbara Bush 1990 Uma reunião festiva em uma fazenda caribenha As mulheres eram o coração dessas reuniões assim como eram o coração da comunidade escrava e defensoras obstinadas da cultura trazida da África Gravura de Louis Charles Ruotte a partir de pintura de Agostino Brunias Dança de negros na Ilha de São Domingos entre 1773 e 1779 infligidos contra as mulheres pelo trabalho nos campos nem a amargura que experimentavam por sua falta de liberdade Com exceção de Barbados a tentativa dos fazendeiros de expandir a força de trabalho por meio da reprodução natural fracassou e as taxas de natalidade nas plantations continuaram sendo anormalmente baixas Bush pp 1367 Beckles 1989 ibidem Se este fenômeno foi consequência de uma categórica resistência à perpetuação da escravidão ou consequência da debilidade física produzida pelas duras condições a que estavam submetidas as mulheres escravizadas ainda é matéria de debate Bush 1990 p 143 e segs Entretanto como afirma Bush há boas razões para crer que o principal motivo do fracasso se deveu à recusa das mulheres a procriar pois logo que a escravidão foi erradicada mesmo quando suas condições econômicas se deterioraram de certa forma as comunidades de escravos libertos começaram a crescer Bush 1990 A recusa das mulheres quanto à vitimização também reconfigurou a divisão sexual do trabalho assim como ocorreu nas ilhas do Caribe onde as mulheres escravizadas tornaramse semilibertas vendedoras de produtos que elas cultivavam nas roças chamadas de polink na Jamaica entregues pelos fazendeiros aos escravos para que pudessem se sustentar Os fazendeiros adotaram esta medida para economizar no custo da reprodução de mão de obra Porém o acesso às roças também demonstrou ser vantajoso para os escravos deulhes maior mobilidade e a possibilidade de usar o tempo destinado para seu cultivo em outras atividades O fato de poder produzir pequenos cultivos que podiam ser consumidos ou vendidos deu impulso à sua independência As mais empenhadas no sucesso das roças foram as mulheres que comercializavam a colheita reapropriandose e reproduzindo dentro do sistema de plantations as principais ocupações que realizavam na África Uma consequência disso foi que em meados do século XVIII as mulheres escravas no Caribe haviam forjado para si um lugar na economia das plantations contribuindo para a expansão e até mesmo para a criação do mercado de alimentos da ilha Fizeram isso tanto como produtoras de grande parte dos alimentos que os escravos e a população branca consumiam quanto como feirantes e vendedoras ambulantes das colheitas que cultivavam complementadas com bens tomados da venda de seu senhor ou trocados com outros escravos ou ainda dados por seus senhores para que elas vendessem Também foi a partir dessa habilidade que as escravas entraram em contato com as proletárias brancas que muitas vezes haviam sido servas por dívidas mesmo depois de que estas últimas tivessem sido liberadas do trabalho forçado e se emancipado Seu relacionamento às vezes podia ser hostil as proletárias europeias que também sobreviviam fundamentalmente do cultivo e da venda de sua colheita de alimentos roubavam por vezes os produtos que as escravas levavam ao mercado ou tentavam impedir sua venda No entanto ambos os grupos de mulheres colaboraram também na construção de uma vasta rede de relações de compra e venda que escapava às leis criadas pelas autoridades coloniais que de tempos em tempos se preocupavam com o fato de que estas atividades pudessem fazer com que perdessem o controle sobre as escravas Apesar da legislação introduzida para evitar que vendessem ou para limitar os lugares em que podiam fazêlo as mulheres 116 Barbara Bush 1990 p 141 destaca que se as escravas queriam abortar elas sem dúvida sabiam como fazêlo já que tinham à sua disposição o conhecimento que traziam da África 228 229 231 230 escravizadas continuaram ampliando suas atividades no mercado e o cultivo de suas roças que chegaram a considerar como próprias de tal maneira que no fnal do século XVIII estavam for mando um protocampesinato que praticamente detinha o mono pólio nos mercados das ilhas Desse modo de acordo com alguns historiadores até mesmo antes da emancipação a escravidão no Caribe havia praticamente terminado As escravas por mais ina creditável que pareça foram uma força fundamental neste pro cesso já que apesar das tentativas das autoridades de limitar seu poder deram forma com sua determinação ao desenvolvimento da comunidade escrava e das economias das ilhas As mulheres escravizadas do Caribe também tiveram im pacto decisivo na cultura da população branca especialmente na das mulheres brancas por meio de suas atividades como curandeiras videntes especialistas em práticas mágicas e no domínio que exerciam sobre as cozinhas e quartos de seus senhores Bush 1990 Não é de se surpreender que elas fossem vistas como o co ração da comunidade escrava Os visitantes impressionavamse com seus cantos seus turbantes seus vestidos e sua maneira extravagante de falar que segundo se entende agora eram os meios com que contavam para satirizar seus senhores As mulheres africanas e creoles infuenciaram os costumes das mulheres brancas pobres que de acordo com a descrição de um contemporâneo se comportavam como africanas caminhando com os flhos amarrados aos quadris enquanto equilibravam bandejas de produtos em suas cabeças Beckles 1989 p 81 No entanto sua principal conquista foi o desenvolvimento de uma política de autossufciência que tinha como base as estratégias de sobrevivência e as redes de mulheres Estas práticas e os valores a elas ligados que Rosalyn Terborg Penn 1995 pp 37 identifcou como os princípios fundamentais do feminismo africano contemporâneo redefniram a comunidade africana da diáspora Elas criaram não apenas as bases de uma nova identidade feminina africana mas também as bases para uma nova sociedade comprometida contra a tentativa capitalista de impor a escassez e a dependência como condições estruturais de vida com a reapropriação e a concentração nas mãos das mulheres dos meios fundamentais de subsistência começando pela terra pela produção de alimentos e pela trans missão intergeracional de conhecimento e cooperação 233 232 O CAPITALISMO E A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO Como demonstra essa breve história das mulheres e da acumu lação primitiva a construção de uma nova ordem patriarcal que tornava as mulheres servas da força de trabalho masculina foi de fundamental importância para o desenvolvimento do capitalismo Sobre esta base foi possível impor uma nova divisão sexual do trabalho que diferenciou não somente as tarefas que as mulheres e os homens deveriam realizar como também suas ex periências suas vidas sua relação com o capital e com outros se tores da classe trabalhadora Deste modo assim como a divisão internacional do trabalho a divisão sexual foi sobretudo uma relação de poder uma divisão dentro da força de trabalho ao mesmo tempo que um imenso impulso à acumulação capitalista Devemos enfatizar esse ponto dada a tendência a atribuir exclusivamente à especialização das tarefas laborais o salto que o capitalismo introduziu na produtividade do trabalho Na verdade as vantagens que a classe capitalista extraiu da diferenciação entre trabalho agrícola e industrial e dentro do trabalho industrial celebrada na ode de Adam Smith à fabrica ção de alfnetes atenuamse em comparação às extraídas da degradação do trabalho e da posição social das mulheres Conforme defendi a diferença de poder entre mulheres e homens e o ocultamento do trabalho não remunerado das mu lheres por trás do disfarce da inferioridade natural permitiram ao capitalismo ampliar imensamente a parte não remunerada do dia de trabalho e usar o salário masculino para acumular trabalho feminino Em muitos casos serviram também para desviar o antagonismo de classe para um antagonismo entre homens e mulheres Dessa forma a acumulação primitiva foi sobretudo uma acumulação de diferenças desigualdades Frontispício de De Humani Corporis Fabrica Pádua 1543 de Andreas Vesalius O triunfo da ordem patriarcal dos homens da classe dominante mediante a constituição de um novo teatro anatômico não poderia ser mais completo Sobre a mulher dissecada e apresentada ao público o autor nos diz que por medo de ser enforcada ela declarou que estava grávida mas depois que se descobriu que ela não estava ela foi então enforcada A figura feminina ao fundo talvez uma prostituta ou uma parteira abaixa os olhos possivelmente envergonhada frente à obscenidade da cena e à violência implícita 234 hierarquias e divisões que separaram os trabalhadores entre si e inclusive alienaram a eles mesmos Como vimos os trabalhadores homens foram frequente mente cúmplices deste processo tendo em vista que tentaram manter seu poder com relação ao capital por meio da des valorização e da disciplina das mulheres das crianças e das populações colonizadas pela classe capitalista No entanto o poder que os homens impuseram sobre as mulheres em virtu de de seu acesso ao trabalho assalariado e de sua contribuição reconhecida na acumulação capitalista foi pago pelo preço da autoalienação e da desacumulação primitiva de seus poderes individuais e coletivos Nos próximos capítulos procuro avançar no exame deste processo de desacumulação a partir da discussão de três as pectoschave da transição do feudalismo para o capitalismo a constituição do corpo proletário em uma máquina de trabalho a perseguição das mulheres como bruxas e a criação dos selva gens e dos canibais tanto na Europa quanto no Novo Mundo CAPÍTULO 3 O GRANDE CALIBÃ A LUTA CONTRA O CORPO REBELDE Jan Luyken A execução de Anne Hendricks por bruxaria em Amsterdam 1571 A VIDA NÃO É MAIS DO QUE UM MOVIMENTO DOS MEMBROS POIS O QUE É O CORAÇÃO SENÃO UMA MOLA E OS NERVOS SENÃO OUTRAS TANTAS CORDAS E AS JUNTAS SENÃO OUTRAS TANTAS RODAS IMPRIMINDO MOVIMENTO AO CORPO INTEIRO HOBBES LEVIATÃ 1650 TENHA ALGUMA PIEDADE DE MIM POIS MEUS AMIGOS SÃO MUITO POBRES E MINHA MÃE ESTÁ MUITO DOENTE E EU MORREREI NA PRÓXIMA QUARTAFEIRA PELA MANHÃ ENTÃO ESPERO QUE O SENHOR SEJA BOM O SUFICIENTE PARA DAR A MEUS AMIGOS UMA QUANTIA SUFICIENTE DE DINHEIRO PARA QUE PAGUEM O CAIXÃO E A MORTALHA PARA QUE POSSAM RETIRAR MEU CORPO DA ÁRVORE EM QUE VOU MORRER E NÃO SEJA COVARDE ESPERO QUE TENHA CONSIDERAÇÃO PELO MEU POBRE CORPO CONSIDEREO COMO SE FOSSE O SEU O SENHOR GOSTARIA QUE SEU PRÓPRIO CORPO ESTIVESSE A SALVO DOS CIRURGIÕES NÃO OBSTANTE SEREI UMA CRIATURA MAIS NOBRE NO PRECISO MOMENTO EM QUE MINHAS NECESSIDADES NATURAIS ME REBAIXAREM À CONDIÇÃO DE ANIMAL MEU ESPIRITO SURGIRÁ SE ELEVARÁ E VOARÁ ATÉ O TRABALHO DOS ANJOS COTTON MATHER DIARY 16801708 CARTA DE RICHARD TOBIN CONDENADO À MORTE EM LONDRES EM 1739 241 240 UMA DAS CONDIÇÕES PARA o desenvolvimento capitalista foi o processo que Michel Foucault defniu como disciplinamento do corpo que a meu ver consistia em uma tentativa do Estado e da Igreja de transformar as potencialida des dos indivíduos em força de trabalho Este capítulo examina como este processo foi concebido e mediado no debate flosófco da época e as intervenções estratégicas geradas em torno dele No século XVI nas regiões da Europa Ocidental mais afeta das pela Reforma Protestante e pelo surgimento da burguesia mercantil observase a emergência em todos os campos no palco no púlpito na imaginação política e flosófca de um novo conceito de pessoa Sua encarnação ideal é o Próspero de Shakespeare em A tempestade 1611 que combina a espiri tualidade celestial de Ariel e a materialidade brutal de Calibã Não obstante sua fgura demonstra certa ansiedade sobre o equilíbrio que se havia alcançado o que impossibilita qualquer orgulho pela posição especial do Homem na ordem dos se res117 Ao derrotar Calibã Próspero deve admitir que este ser de trevas é meu recordando assim à sua audiência de que sendo humanos é verdadeiramente problemático que sejamos ao mesmo tempo o anjo e a besta No século XVII o que permanece em Próspero como apreensão subliminar se concretiza como confito entre a razão e as paixões do corpo o que dá um novo sentido aos clássicos temas judaicocristãos para produzir um paradigma antropoló gico inovador O resultado é a reminiscência das escaramuças medievais entre anjos e demônios pela possessão das almas que partem para o além No entanto o confito é agora encenado 117 Próspero é um homem novo Didaticamente suas desgraças são atribuídas por Shakespeare ao seu interesse excessivo por livros de magia aos quais finalmente renuncia em troca de uma vida mais ativa em seu reino onde seu poder virá não de sua magia mas do governo de seus súditos Contudo já na ilha de seu exílio suas atividades prefiguram uma nova ordem mundial na qual o poder não se ganha com uma varinha má gica e sim por meio da escravidão de muitos Calibãs em colônias distantes O tratamento explorador de Próspero para com Calibã antecipa o papel do futuro senhor de plantation que não poupará torturas e tormentas para forçar seus subordinados a trabalhar dentro da pessoa que é apresentada como um campo de bata lha no qual existem elementos opostos em luta pela dominação De um lado estão as forças da razão a parcimônia a pru dência o senso de responsabilidade o autocontrole De outro lado estão os baixos instintos do corpo a lascívia o ócio a dissipação sistemática das energias vitais que cada um possui Este combate se passa em diferentes frentes já que a razão deve manterse atenta ante os ataques do ser carnal e evitar que nas palavras de Lutero a sabedoria da carne corrompa os poderes da mente Nos casos extremos a pessoa se converte em um terreno de luta de todos contra todos Não me deixes ser nada se dentro da bússola do meu ser não encontro a Batalha de Lepanto as Paixões contra a Razão a Razão contra a Xilogravura do século xv O ataque do diabo ao homem moribundo é um tema que domina toda a tradição popular medieval de Alfonso M di Nola 1987 243 242 Fé a Fé contra o Demônio e a minha Consciência contra todos eles Thomas Browne 1928 p 76 Ao longo desse processo uma mudança ocorre no campo metafórico enquanto a representação flosófca da psicologia se apropria de imagens do Estado como entidade política para tra zer à luz uma paisagem habitada por governantes e sujeitos rebeldes multidões e revoltas cadeias e ordens im periosas e inclusive pelo carrasco como diz Thomas Browne ibidem p 72118 Como veremos este confito entre a razão e o corpo descrito pelos flósofos como um enfrentamento de senfreado entre o melhor e o mais baixo que não pode ser atribuído somente ao gosto pelo fgurativo durante o Barroco será purifcado mais tarde para favorecer uma linguagem mais masculina119 O discurso sobre a pessoa no século XVII imagina o desenvolvimento de uma batalha no microcosmos do indi víduo que sem dúvida se fundamenta na realidade da época Este é um aspecto do processo mais geral de reforma social a partir do qual já na Era da Razão a burguesia emergente tentou moldar as classes de acordo com as necessidades do desenvolvi mento da economia capitalista 118 Cada homem é seu pior inimigo e de certo modo seu próprio carrasco escreve Thomas Browne Também Pascal em Pensée Pensamento declara Guerra interna do homem entre a razão e as paixões Se ele tivesse apenas razão sem paixões Se ele tivesse apenas paixões sem razão Contudo posto que existem uma e outra não se pode estar sem conflito Deste modo se está sempre dividido e sempre se é con trário a si mesmo p 130 Sobre o conflito entre paixões e razão e sobre as correspon dências entre o microcosmos humano e o corpo político body politic na literatura elisabetana ver Tillyard 1961 pp 759 949 119 A reforma da linguagem temachave na filosofia dos séculos XVI e XVII de Bacon a Locke era uma das principais preocupações de Joseph Glanvil que em sua Vanity of Dogmatizing 1665 Vaidade de dogmatizar depois de proclamar sua adesão à cosmovisão cartesiana advoga por uma linguagem adequada para descrever os entes cla ros e distintos Glanvil 1970 p XXVIXXX Como resume S Medcalf em sua introdução ao trabalho de Glanvil uma linguagem adequada para descrever este mundo guarda uma ampla semelhança com as matemáticas tem palavras de grande generalidade e clareza apresenta uma imagem do universo de acordo com sua estrutura lógica distingue cla ramente entre mente e matéria entre o subjetivo e o objetivo e evita a metáfora como forma de conhecer e descrever já que a metáfora depende da suposição de que o universo não está composto de seres completamente diferentes e por isso não pode ser descrito completamente em termos positivos e distintos ibidem Na tentativa de formar um novo tipo de indivíduo a burguesia estabeleceu uma batalha contra o corpo que se converteu em sua marca histórica De acordo com Max Weber a reforma do corpo está no coração da ética burguesa porque o capitalismo faz da aquisição o objetivo fnal da vida em vez de tratála como meio para satisfazer nossas necessidades para tanto necessita que percamos o direito a qualquer forma espontânea de desfrutar a vida Weber 1958 p 53 O capita lismo tenta também superar nosso estado natural ao romper as barreiras da natureza e ao estender o dia de trabalho para além dos limites defnidos pela luz solar dos ciclos das es tações e mesmo do corpo tal como estavam constituídos na sociedade préindustrial Marx é outro que concebe a alienação do corpo como um traço distintivo da relação entre capitalista e trabalhador Ao transformar o trabalho em uma mercadoria o capitalismo faz com que os trabalhadores subordinem sua atividade a uma ordem externa sobre a qual não têm controle e com a qual não podem se identifcar Deste modo o processo de trabalho se converte em um espaço de estranhamento o trabalhador se sente fora do trabalho e no trabalho sentese fora de si Está em casa quando não trabalha e quando trabalha não o está Marx 1961 p 72 Por outro lado no desenvolvimento de uma economia capitalista o trabalhador se converte ainda que não seja formalmente em livre dono de sua força de trabalho diferentemente do escravo pode colocála à disposição do comprador por um período limitado de tempo Isso implica no fato de que possa dispor livremente de sua força de tra balho suas energias suas faculdades como de sua própria mercadoria Marx 1909 t I p 186120 e também conduz a um 120 Marx não faz distinção entre trabalhadores e trabalhadoras em sua discussão sobre a liberação da força de trabalho Há no entanto uma razão para manter o mascu lino na descrição deste processo Ainda quando foram liberadas das terras comuns as mulheres não foram conduzidas pela trilha do mercado de trabalho assalariado 245 244 sentido de dissociação com relação ao corpo que vem redef nido e reduzido a um objeto com o qual a pessoa deixa de estar imediatamente identifcada A imagem de um trabalhador que vende livremente seu trabalho ou que entende seu corpo como um capital que deva ser entregue a quem oferecer o melhor preço se refere a uma classe trabalhadora já moldada pela disciplina do trabalho capitalista Contudo é apenas na segunda metade do século XIX que se pode vislumbrar um trabalhador como este mode rado prudente responsável orgulhoso de possuir um relógio Mendigo e vendedora de retalhos Os camponeses e artesãos expropriados não concordaram pacificamente em trabalhar por um salário Mais frequentemente viraram mendigos errantes ou criminosos Desenho de LouisLéopold Boilly entre 1761 e 1845 Thompson 1964 e que considera as condições impostas pelo modo de produção capitalista como leis da natureza Marx 1909 t I p 809 um tipo que personifca a utopia capitalista e que é ponto de referência para Marx A situação era completamente diferente no período da acu mulação primitiva quando a burguesia emergente descobriu que a liberação de força de trabalho quer dizer a expro priação das terras comuns do campesinato não foi sufciente para forçar os proletários despossuídos a aceitar o trabalho assalariado À diferença do Adão de Milton que ao ser expulso do Jardim do Éden caminhou alegremente para uma vida dedicada ao trabalho121 não foi pacifcamente que os trabalha dores e artesãos expropriados aceitaram trabalhar por um sa lário Na maior parte das vezes se converteram em mendigos em vagabundos e em criminosos Seria necessário um longo processo para produzir mão de obra disciplinada Durante os séculos XVI e XVII o ódio contra o trabalho assalariado era tão intenso que muitos proletários preferiam arriscarse a terminar na forca a se subordinarem às novas condições de trabalho Hill 1975 pp 21939122 Esta foi a primeira crise capitalista muito mais séria que to das as crises comerciais que ameaçaram os alicerces do sistema capitalista durante a primeira fase de seu desenvolvimento123 121 Com trabalho devo ganhar meu pão com dano O ócio teria sido pior Meu trabalho me manterá é a resposta de Adão aos medos de Eva diante da perspectiva de irem embora do Jardim do Éden Paradise Lost Paraíso perdido versos 10546 p 579 122 Até o século XV como assinala Christopher Hill o trabalho assalariado pode ter aparecido como uma liberdade conquistada porque as pessoas tinham acesso às terras comuns e possuíam terras próprias não dependendo somente do salário No entanto no século XVI aqueles que trabalhavam por um salário haviam sido expropriados além do mais os empregadores alegavam que os salários eram apenas complementares manten doos em seu nível mais baixo Deste modo trabalhar pelo pagamento significava descer até a base da pirâmide social e as pessoas lutavam desesperadamente para evitar tal des tino Hill 1975 pp 2202 No século XVII o trabalho assalariado ainda era considerado uma forma de escravidão tanto que os Levellers excluíam os trabalhadores assalariados do direito ao voto já que não os consideravam suficientemente independentes para poder eleger livremente seus representantes Macpherson 1962 pp 10759 123 Em 1622 quando Jacob I pediu a Thomas Mun que investigasse as causas da crise econômica que havia golpeado a Inglaterra este finalizou seu informe imputando a culpa dos problemas da nação à ociosidade dos trabalhadores ingleses Referiuse em 247 246 Como é bem sabido a resposta da burguesia foi a multiplicação das execuções a instituição de um verdadeiro regime de terror implementado por meio da intensifcação das penas em parti cular daquelas que puniam os crimes contra a propriedade e a introdução das Leis Sangrentas contra os vagabundos com a intenção de atar os trabalhadores aos trabalhos que lhes haviam sido impostos da mesma maneira que em sua época os servos estiveram fxados à terra Só na Inglaterra 72 mil pessoas foram enforcadas por Henrique VIII durante os 38 anos de seu reinado e o massacre continuou até fnais do século XVI Na década de 1570 entre trezentos e quatrocentos delinquentes foram devorados pelas forcas em um lugar ou outro a cada ano Hoskins 1977 p 9 Apenas em Devon 74 pessoas foram enforcadas durante o ano de 1598 ibidem No entanto as classes dominantes não limitaram sua vio lência à repressão dos transgressores Também apontavam para uma transformação radical da pessoa pensada para erradicar no proletariado qualquer comportamento que não conduzisse à imposição de uma disciplina mais estrita de trabalho As di mensões deste ataque podem ser vistas nas legislações sociais introduzidas na Inglaterra e na França em meados do século XVI Proibiramse os jogos em particular aqueles que além de serem inúteis debilitavam o sentido de responsabilidade do in divíduo e a ética do trabalho Fecharamse tabernas e banhos públicos Estabeleceramse castigos para a nudez e também para outras formas improdutivas de sexualidade e sociabili dade Era proibido beber praguejar e insultar124 Em meio a este vasto processo de engenharia social uma nova concepção e uma nova política sobre o corpo começaram a tomar particular à lepra generalizada do nosso tocar gaita do nosso falar de qualquer jeito de nossos festins de nossas discussões e o tempo que perdemos no ócio e no prazer que em sua perspectiva colocavam a Inglaterra em desvantagem na competição comercial com os laboriosos holandeses Hill 1975 p 125 124 Wright 1960 pp 803 Thomas 1971 Van Ussel 1971 pp 2592 Riley 1973 p 19 e segs e Underdown 1985 pp 772 forma A novidade foi o ataque ao corpo como fonte de todos os males ataque tão bem estudado e com paixão igual a que na mesma época animava a investigação dos movimentos celestes Por que o corpo foi tão importante para a política estatal e para o discurso intelectual Alguém pode se sentir inclinada a responder que esta obsessão pelo corpo refetia o medo que o proletariado inspirava na classe dominante125 Era o mesmo medo que sentiam igualmente o burguês e o nobre que onde quer que fossem nas ruas ou em suas viagens eram assediados por uma multidão ameaçadora que implorava ajuda ou se pre parava para roubálos Era também o mesmo medo que sentiam aqueles que dirigiam a administração do Estado cuja consoli dação era continuamente minada mas também determinada pela ameaça de distúrbios e desordens sociais No entanto isso não era tudo Não se pode esquecer que o proletariado mendicante e revoltoso que forçava os ricos a viajar em charretes para escapar de seus ataques ou a ir para a cama com duas pistolas de baixo do travesseiro foi o mesmo sujeito social que aparecia cada vez mais como fonte de toda a riqueza Era o mesmo proletariado sobre o qual os mercantilis tas os primeiros economistas da sociedade capitalista nunca se cansaram de repetir embora sem tanta certeza que quanto mais melhor lamentando frequentemente a quantidade de corpos desperdiçados na forca126 125 O medo que as classes baixas os vis os miseráveis na gíria da época inspi ravam na classe dominante pode medirse na história relatada em Social England Illustrated 1903 Inglaterra social ilustrada Em 1580 Francis Hitchcock em um panfleto intitulado Presente de Ano Novo para Inglaterra elevou a proposta de recrutar os pobres do país na Marinha argumentando que as pessoas miseráveis são aptas a participar de uma rebe lião ou tomar partido por quem quiser invadir esta nobre ilha reúnem as condições para prover soldados ou guerreiros à fortuna dos homens ricos Pois eles podem indicar com seus dedos ali está é aquele e ele tem e desta maneira alcançar o martírio de muitas pessoas ricas por sua fortuna A proposta de Hitchcock foi no entanto derrotada objetouse que se os pobres da Inglaterra fossem recrutados na Marinha roubariam os barcos e se tornariam piratas Social England Illustrated 1903 pp 856 126 Eli F Heckscher escreve que em seu trabalho teórico mais importante A Treatise of Taxes and Contributions 1662 Um tratado sobre impostos e contribui ções Sir William Petty propôs substituir todas as penas por trabalhos forçados o que aumentaria o trabalho e o tesouro público Por que não perguntava Petty castigar os 249 248 Muitas décadas se passaram antes que o conceito de valor do trabalho entrasse no panteão do pensamento econômico No entanto o fato de o trabalho a indústria mais do que a terra ou qualquer outra riqueza natural ter se convertido na fonte principal de acumulação foi uma verdade bem compreendida em um tempo no qual o baixo nível de desenvolvimento tecnológico fez dos seres humanos o recurso produtivo mais importante Como disse Thomas Mun flho de um comerciante londrino e portavoz da doutrina mercantilista sabemos que nossas próprias mercadorias não nos rendem tanto lucro quanto nossa indústria Pois o ferro não é de grande valor se está nas minas quando comparado com o uso e com as vantagens que este aporta quando é extraído testado transportado comprado vendido fundido em armamento mosquetes forjado em âncoras parafusos palhetas pregos e coisas similares para ser usado em embarcações casas carroças carros arados e outros instrumentos de cultivo Abbott 1946 p 2 Até mesmo o Próspero de Shakespeare insiste neste feito econômico fundamental em um breve solilóquio sobre o valor do trabalho que ele direciona a Miranda após ela ter manifesta do o desgosto absoluto que lhe produzia Calibã Contudo Não podemos dispensálo Acendenos o fogo Traznos lenha e nos presta serviços variados De muita utilidade Shakespeare A tempestade Ato I Cena 2 ladrões insolventes com a escravidão em vez de morte Enquanto forem escravos podem ser tão forçados por tão pouco quanto a natureza o permita convertendose assim em homens agregados à Nação e não em um a menos Heckscher 1962 II p 297 Na Fran ça Colbert exortou a Corte de Justiça a condenar à galé tantos convictos quanto fossem possíveis a fim de manter este corpo necessário ao Estado ibidem pp 2989 O corpo então passou ao primeiro plano das políticas sociais porque aparecia não apenas como uma besta inerte diante dos estímulos do trabalho mas como um recipiente de força de trabalho um meio de produção a máquina de trabalho primária Esta é a razão pela qual encontramos muita violência e também muito interesse nas estratégias que o Estado adotou com relação ao corpo e o estudo dos movimentos e das proprie dades do corpo se converteu no ponto de partida para boa parte da especulação teórica da época já utilizada por Descartes para afrmar a imortalidade da alma ou por Hobbes para inves tigar as premissas da governabilidade social Efetivamente uma das principais preocupações da nova flosofa mecânica era a mecânica do corpo cujos elementos constitutivos desde a circulação do sangue até a dinâmica da fala desde os efeitos das sensações até os movimentos voluntá rios e involuntários foram separados e classifcados em todos os seus componentes e possibilidades O Tratado do Homem publicado em 1664127 é um verdadeiro manual anatômico ainda que a anatomia que realiza seja tanto psicológica quanto física Uma tarefa fundamental do projeto de Descartes foi instituir uma divisão ontológica entre um domínio considerado puramente mental e outro puramente físico Cada costume cada atitude e cada sensação são desta maneira defnidas seus limites são marcados e suas possibilidades equilibradas com tal meticulosidade que se pode ter a impressão de que o livro da natureza humana foi aberto pela primeira vez ou mais provável que uma nova terra foi descoberta e os conquistado res estão se apressando em trazer um mapa de suas veredas 127 O Tratado do Homem Traité de lHomme publicado doze anos depois da morte de Descartes como LHomme de René Descartes 1664 abre o período maduro do filósofo Aplicando a física de Galileu a uma investigação dos atributos do corpo Des cartes tentou explicar todas as funções fisiológicas como matéria em movimento Desejo que considerem escreveu Descartes no final do Tratado do Homem 1972 p 113 que todas as funções que atribuí a esta máquina se deduzam naturalmente da disposição de seus órgãos tal e como os movimentos de um relógio ou outro autômato se deduzem da organização dos contrapesos e rodas 251 250 em compilar a lista de seus recursos naturais e em avaliar suas vantagens e desvantagens Neste aspecto Hobbes e Descartes foram representantes de sua época O cuidado que exibem na exploração dos detalhes da realidade corporal e psicológica reaparece na análise puritana das inclinações e talentos individuais128 Este último selou o começo de uma psicologia burguesa que neste caso estudava explicitamente todas as faculdades humanas desde o ponto de vista de seu potencial para o trabalho e de sua contribuição para a disciplina Outro signo da nova curiosidade pelo corpo e de uma mudança com relação às formas de ser e os costumes de épocas anteriores que permitiram que o corpo pudesse se abrir segundo as palavras de um médico do século XVII foi 128 Um princípio puritano consistia em que Deus dotou o homem de dons espe ciais que o fazem apto para uma vocação particular daí a necessidade de um autoexame meticuloso para esclarecer a vocação para a qual fomos designados Morgan 1966 pp 723 Weber 1958 p 47 e segs Lição de anatomia na Universidade de Pádua O teatro de anatomia revelou ao público um corpo desencantado e profanado em De Fascículo de Medicina Veneza 1494 o desenvolvimento da anatomia como disciplina científca de pois de sua relegação à obscuridade intelectual durante a Idade Média Wightman 1972 pp 909 Galzigna 1978 Ao mesmo tempo que o corpo aparecia como o principal protagonista da cena flosófca e política um aspecto surpreen dente destas investigações foi a concepção degradada que se formara dele O teatro anatômico129 expõe à vista pública um corpo desencantado e profanado que apenas no princípio pode ser concebido como a morada da alma e que em troca é tratado como uma realidade separada Galzigna 1978 pp 1634130 Aos olhos do anatomista o corpo é uma fábrica tal qual mostra o título fundamental de Andrea Vesalius sobre seu trabalho da indústria de dissecação De humani corporis fabrica 1543 Da organização do corpo humano Na flosofa mecanicista se descreve o corpo por uma analogia com a máquina com fre quência colocando a ênfase em sua inércia O corpo é concebido como matéria bruta completamente divorciada de qualquer qualidade racional não sabe não deseja não sente O corpo é puramente uma coleção de membros disse Descartes em seu Discurso do Método de 1634 1973 vol I p 152 Nicolás Malebrance em Entretiens sur la métaphysique sur la religion et sur la mort 1688 Diálogos sobre a metafísica sobre a religião e sobre a morte faz eco disso e formula a pergunta decisiva 129 Como mostrou Giovanna Ferrai uma das principais inovações introduzidas pelo estudo da anatomia na Europa do século XVI foi o teatro anatômico onde se organizava a dissecação como uma cerimônia pública sujeita a normas similares às que regulavam as funções teatrais Tanto na Itália como no exterior as lições públicas de anatomia se haviam convertido na época moderna em cerimônias ritualizadas que se realizavam em lugares especialmente destinados a elas Sua semelhança com as funções teatrais é imediatamente visível se se tem em conta algumas de suas características a divisão das lições em fases distintas a implantação de uma entrada de pagamento e a interpretação de música para entreter a audiência as regras introduzidas para regular o comportamento dos assistentes e o cuidado colocado na produção W S Heckscher sustenta inclusive que muitas técnicas gerais de teatro foram desenhadas originalmente tendo em mente as funções das lições de anatomia públicas Ferrari 1987 pp 823 130 Segundo Mario Galzigna da revolução epistemológica realizada pela ana tomia no século XVI é que surge o paradigma mecanicista O corte anatômico rompe o laço entre microcosmos e macrocosmos e apresenta o corpo tanto como uma realidade separada quanto como um elemento de produção nas palavras de Vesalio uma fábrica 253 252 Pode o corpo pensar para responder imediatamente Não sem dúvida alguma pois todas as modifcações de tal extensão consistem apenas em percepções raciocínio prazeres desejos sentimentos em uma palavra pensamentos Popkin 1966 p 280 Também para Hobbes o corpo é um conglomerado de movimentos mecânicos que ao necessitar de poder autônomo opera a partir de uma causalidade externa em um jogo de atrações e aversões em que tudo está regulado como em um autômato Leviatã parte I capítulo VI No entanto é correto o que sustenta Michel Foucault sobre a flosofa mecanicista e igualmente o que afrma com relação às disciplinas sociais dos séculos XVII e XVIII Foucault 1977 p 137 Neste período encontramos uma perspectiva distinta do ascetismo medieval em que a degradação do corpo tinha uma função puramente negativa que buscava estabelecer a natureza temporal e ilusória dos prazeres terrenos e consequentemente a necessidade de renunciar ao próprio corpo Na flosofa mecanicista se percebe um novo espírito burguês que calcula classifca faz distinções e degrada o corpo só para racionalizar suas faculdades o que aponta não apenas para a intensifcação de sua sujeição mas também para maximização de sua utilidade social ibidem pp 1378 Longe de renunciar ao corpo os teóricos mecanicistas tratavam de conceituálo de tal forma que suas operações se fzessem inteli gíveis e controláveis Daí vem o orgulho mais do que a comise ração com que Descartes insiste que esta máquina como ele chama o corpo de maneira persistente no Tratado do Homem é apenas um autômato robô e que sua morte não deve ser mais lamentada do que a quebra de uma ferramenta131 131 Em As paixões da alma Artigo VI Descartes também minimiza a diferença que existe entre um corpo vivente e um morto Descartes 1973 t I ibidem pode mos julgar que o corpo de um homem vivo se diferencia do de um homem morto tanto quanto um relógio de outro autômato quer dizer uma máquina que se move a si mesma quando se dá corda e contém dentro de si o princípio corporal destes movimentos se diferencia do mesmo relógio ou de outra máquina quando está quebrada e quando o Certamente nem Hobbes nem Descartes dedicaram muita atenção aos assuntos econômicos e seria absurdo ler em suas flosofas as preocupações cotidianas dos comerciantes ingleses ou holandeses No entanto não podemos evitar observar as importantes contribuições que suas especulações em torno da natureza humana fzeram à aparição de uma ciência capitalista do trabalho A concepção de que o corpo era algo mecânico vazio de qualquer teleologia intrínseca as virtudes ocultas atribuídas ao corpo tanto pela magia natural quanto pelas superstições populares da época pretendia fazer inteligível a possibilidade de subordinálo a um processo de trabalho que dependia cada vez mais de formas de comportamento unifor mes e previsíveis Uma vez que seus mecanismos foram desconstruídos e ele próprio foi reduzido a uma ferramenta o corpo pôde ser aberto à manipulação infnita de seus poderes e de suas possibilida des Fezse possível investigar os vícios e os limites da imagi nação as virtudes do hábito e os usos do medo como certas paixões podem ser evitadas ou neutralizadas e como podem ser utilizadas de forma mais racional Neste sentido a flosofa mecanicista contribuiu para incrementar o controle da classe dominante sobre o mundo natural o que constitui o primeiro passo e também o mais importante no controle sobre a natureza humana Assim como a natureza reduzida à Grande Máquina pôde ser conquistada e segundo as palavras de Bacon penetrada em todos seus segredos da mesma maneira o corpo esvaziado de suas forças ocultas pôde ser capturado em um sistema de sujeição em que seu comportamento pôde ser calculado organizado pensado tecnicamente e investido de relações de poder Foucault 1977 p 30 Para Descartes existe uma identidade entre o corpo e a natureza já que ambos estão compostos das mesmas partículas princípio de seu movimento deixa de atuar 255 254 e ambos atuam obedecendo a leis físicas uniformes postas em marcha pela vontade de Deus Desta maneira o corpo cartesiano não apenas se empobrece e perde toda virtude mágica na grande divisória ontológica que institui Descartes entre a essência da humanidade e suas condições acidentais o corpo está divorciado da pessoa está literalmente desumanizado Não sou este cor po insiste Descartes ao longo de suas Meditações 1641 E efe tivamente em sua flosofa o corpo confui com um continuum mecânico de matéria que a vontade pode contemplar agora sem travas como objeto próprio de dominação Como veremos Descartes e Hobbes expressam dois pro jetos diferentes com relação à realidade corporal No caso de Descartes a redução do corpo à matéria mecânica faz possível o desenvolvimento de mecanismos de autocontrole que sujeitam o corpo à vontade Para Hobbes em contraste a mecanização do corpo serve de justifcação para a submissão total do indivíduo ao poder do Estado Em ambos no entanto o resultado é uma redefnição dos atributos corporais que ao menos idealmente fazem com que o corpo seja apropriado para a regularidade e para o automatismo exigido pela disciplina do trabalho capita lista132 Ponho ênfase no idealmente porque nos anos em que Descartes e Hobbes escreviam seus tratados a classe dominante tinha que se confrontar com uma corporalidade que era muito diferente da que aparecia nas prefgurações destes flósofos De fato é difícil reconciliar os corpos insubordinados que rondam a literatura social do Século de Ferro com as imagens dos relógios por meio dos quais Descartes e Hobbes 132 De particular importância neste contexto foi o ataque à imaginação vis imaginativa que na magia natural dos séculos XVI e XVII era considerada uma força poderosa por meio da qual o mago podia afetar o mundo circundante e trazer saúde ou enfermidade não apenas a seu próprio corpo mas também a outros corpos Easlea 1980 p 94 e segs Hobbes dedicou um capítulo do Leviatã a demonstrar que a ima ginação é apenas um sentido em decadência similar nisso à memória sendo que esta se torna gradualmente debilitada pelo traslado dos objetos de nossa percepção parte I capítulo 2 também pode encontrarse uma crítica da imaginação em Religio Medici 1642 A religião de um médico de Sir Thomas Browne representavam o corpo em seus trabalhos Não obstante embora aparentemente distanciadas dos assuntos cotidianos da luta de classes é nas especulações destes flósofos que se encontram as primeiras conceitualizações sobre a transforma ção do corpo em máquina de trabalho o que constitui uma das principais tarefas da acumulação primitiva Quando por exem plo Hobbes declara que o coração é apenas uma mola e as articulações apenas muitas rodas percebemos em suas palavras um espírito burguês em que não apenas o trabalho é a condição e o motivo de existência do corpo mas que também sente a necessidade de transformar todos os poderes corporais em força de trabalho Este projeto é chave para compreender por que tanta especulação flosófca e religiosa dos séculos XVI e XVII está composta de uma verdadeira vivissecção do corpo humano por meio da qual se decidia quais de suas propriedades poderiam viver e quais em troca deveriam morrer Tratavase de uma alquimia social que não convertia metais comuns em ouro mas sim poderes corporais em força de trabalho A mesma relação que o capitalismo introduziu entre a terra e o trabalho estava começando a tomar o controle sobre a relação entre o corpo e o trabalho Enquanto o trabalho começava a ser considerado como uma força dinâmica capaz de um desenvolvimento inf nito o corpo era visto como matéria inerte e estéril que apenas poderia se mover numa condição similar à relação que Newton estabelecera para a massa e o movimento em que a massa tendia à inércia a menos que se aplicasse sobre ela uma força Do mesmo modo que a terra o corpo tinha que ser cultivado e antes de mais nada decomposto em partes de tal maneira que pudesse liberar seus tesouros escondidos Pois enquanto o cor po é a condição de existência da força de trabalho é também seu limite já que constitui o principal elemento de resistência à sua utilização Não era sufciente então decidir que em si mesmo o 257 256 corpo não tinha valor O corpo tinha que viver para que a força de trabalho pudesse viver O que morreu foi o conceito do corpo como receptáculo de poderes mágicos que havia predominado no mundo medieval Na realidade este conceito foi destruído Por trás da nova flo sofa encontramos a vasta iniciativa do Estado a partir da qual o que os flósofos classifcaram como irracional foi considera do crime Esta intervenção estatal foi o subtexto necessário da flosofa mecanicista O saber apenas pode converterse em poder se conseguir fazer cumprir suas prescrições Isso signifca que o corpo mecânico o corpomáquina não poderia ter se convertido em modelo de comportamento social sem a destruição por parte do Estado de uma ampla gama de cren ças précapitalistas práticas e sujeitos sociais cuja existência contradizia a regulação do comportamento corporal prometido pela flosofa mecanicista É por isso que em plena Era da Razão a idade do ceticismo e da dúvida metódica encontra mos um ataque feroz ao corpo frmemente apoiado por muitos dos que subscreviam a nova doutrina Assim é como devemos ler o ataque contra a bruxaria e con tra a visão mágica do mundo que apesar dos esforços da Igreja seguia predominante em escala popular durante a Idade Média O substrato mágico formava parte de uma concepção animista da natureza que não admitia nenhuma separação entre a ma téria e o espírito e deste modo imaginava o cosmos como um organismo vivo povoado de forças ocultas onde cada elemento estava em relação favorável com o resto De acordo com esta perspectiva na qual a natureza era vista como um universo de signos e sinais marcados por afnidades invisíveis que tinham que ser decifradas Foucault 1970 pp 267 cada elemento as ervas as plantas os metais e a maior parte do corpo humano escondia virtudes e poderes que lhe eram peculiares É por isso que existia uma variedade de práticas desenhadas para A concepção do corpo como um receptáculo de poderes mágicos derivava em grande medida da crença em uma correspondência entre o microcosmo do indivíduo e o macrocosmo do mundo celestial como ilustra a imagem do homem do zodíaco do século XVI 259 258 se apropriar dos segredos da natureza e torcer seus poderes de acordo com a vontade humana Desde a quiromancia até a adi vinhação desde o uso de feitiços até a cura receptiva a magia abria uma grande quantidade de possibilidades Havia feitiços para ganhar jogos de cartas para interpretar instrumentos desconhecidos para se tornar invisível para conquistar o amor de alguém para ganhar imunidade na guerra para fazer as crianças dormirem Thomas 1971 Wilson 2000 A erradicação destas práticas era uma condição necessária para a racionalização capitalista do trabalho dado que a magia aparecia como uma forma ilícita de poder e como um instru mento para obter o desejado sem trabalhar quer dizer aparecia como a prática de uma forma de rechaço ao trabalho A magia Frontispício da primeira edição do Doctor Faustus 1604 de Christopher Marlowe que apresenta o mago conjurando o diabo no espaço protegido de seu círculo mágico mata a indústria lamentava Francis Bacon admitindo que nada lhe parecia mais repulsivo do que a suposição de que alguém po deria alcançar coisas com um punhado de recursos inúteis e não com o suor de sua própria testa Bacon 1870 p 381 Por outro lado a magia se apoiava em uma concepção qualitativa do espaço e do tempo que impedia a normalização do processo de trabalho Como podiam os novos empresários impor hábitos repetitivos a um proletariado ancorado na crença de que há dias de sorte e dias sem sorte ou seja dias nos quais se pode viajar e outros nos quais não se deve sair de casa dias bons para se casar e outros nos quais qualquer iniciativa deve ser prudentemente evitada Uma concepção do cosmos que atribuía poderes especiais ao indivíduo o olhar magnético o poder de tornarse invisível de abandonar o corpo de submeter a vontade dos outros por meio de encantos mágicos era igual mente incompatível com a disciplina do trabalho capitalista Não seria frutífero investigar se estes poderes eram reais ou imaginários Podese dizer que todas as sociedades préca pitalistas acreditaram neles e que em tempos recentes fomos testemunhas de uma revalorização de práticas que na época a que nos referimos foram condenadas por bruxaria Este é por exemplo o caso do crescente interesse pela parapsicologia e o biofeedback que se aplicam cada vez mais inclusive na medicina convencional O renovado interesse pelas crenças mágicas é possível hoje porque elas já não representam uma ameaça social A mecanização do corpo é a tal ponto constitu tiva do indivíduo que ao menos nos países industrializados a crença em forças ocultas não coloca em perigo a uniformidade do comportamento social Também se admite que a astrologia reapareça com a certeza de que até mesmo o consumidor mais assíduo de cartas astrais consultará automaticamente o relógio antes de ir para o trabalho Sem dúvida essa não era a única opção para a classe 261 260 dominante do século XVII que nesta fase inicial e experimental do desenvolvimento capitalista não havia alcançado o controle social necessário para neutralizar a prática da magia e que tampouco podia integrar funcionalmente a magia à organiza ção da vida social Desde o seu ponto de vista pouco importava se os poderes que as pessoas diziam ter ou aspiravam ter eram reais ou não pois a mera existência de crenças mágicas era uma fonte de insubordinação social Tomemos por exemplo a difundida crença na possibili dade de encontrar tesouros escondidos com a ajuda de feitiços mágicos Thomas 1971 pp 2347 Esta crença era certamente um obstáculo à instauração de uma disciplina do trabalho rigorosa e cuja aceitação fora inerente Igualmente ameaçador foi o uso que as classes baixas fzeram das profecias que parti cularmente durante a Revolução Inglesa como já o haviam feito na Idade Média serviram para formular um programa de luta Elton 1972 p 142 e segs As profecias não são simplesmente a expressão de uma resignação fatalista Historicamente têm sido um meio pelo qual os pobres expressam seus desejos com o fm de dotar seus planos de legitimidade e de motivarse para atuar Hobbes reconheceu isso quando advertiu Não há nada que dirija tão bem os homens em suas deliberações como a previsão das consequências de suas ações a profecia é muitas vezes a causa principal dos acontecimentos prognostica dos Hobbes Behemot Works VI p 399 Contudo além dos perigos que apresentava a magia a burguesia tinha que combater seu poder porque ele debilitava o princípio de responsabilidade individual já que a magia rela cionava as causas da ação social com as estrelas o que estava fora de seu alcance e seu controle Deste modo mediante a racionalização do espaço e do tempo que caracterizou a especu lação flosófca dos séculos XVI e XVII a profecia foi substituída pelo cálculo de probabilidades cuja vantagem do ponto de vista capitalista é que o futuro pode ser antecipado apenas enquanto se suponha que o futuro será como o passado e que nenhuma grande mudança nenhuma revolução alterará as condições nas quais os indivíduos tomam decisões De maneira similar a burguesia teve que combater a suposição de que é possível estar em dois lugares ao mesmo tempo pois a fxação do corpo no espaço e no tempo quer dizer a identifcação espaçotemporal do indivíduo é uma condição essencial para a regularidade do processo de trabalho133 A incompatibilidade da magia com a disciplina do trabalho capitalista e com a exigência de controle social é uma das ra zões pelas quais o Estado lançou uma campanha de terror con tra a magia um terror aplaudido sem reservas por muitos dos que hoje em dia são considerados fundadores do racionalismo científco Jean Bodin Mersenne o flósofo mecanicista e mem bro da Royal Society Richard Boyle e o mestre de Newton Isaac Barrow134 Até mesmo o materialista Hobbes mantendo distân cia deu sua aprovação Quanto às bruxas escreveu 1963 p 67 não creio que sua bruxaria contenha em si nenhum poder efetivo mas é justo que as castiguem pela falsa crença que têm de ser a causa do malefício e ademais por seu propósito de fazêlo se puderem Defendeu que se se eliminassem estas superstições os homens estariam mais dispostos do que estão à obediência cívica ibidem Hobbes estava bem assessorado As fogueiras nas quais as 133 Escreve Hobbes 1963 p72 Consequentemente ninguém pode conceber uma coisa sem situála em algum lugar provida de uma determinada magnitude e susce tível de dividirse em partes não é possível que uma coisa esteja neste lugar e em outro ao mesmo tempo nem que duas ou mais coisas estejam ao mesmo tempo em um mesmo e idêntico lugar 134 Entre os partidários da caça às bruxas se encontrava Sir Thomas Browne um médico e segundo dizem um dos primeiros defensores da liberdade científica cujo trabalho aos olhos de seus contemporâneos apresentava um perigoso aroma de ceti cismo Gosse 1905 p 25 Thomas Browne contribuiu pessoalmente à morte de duas mulheres acusadas de serem bruxas que não fosse sua intervenção teriam sido salvas da forca já que as acusações contra elas eram absurdas Gosse 1905 pp 1479 Para uma análise detalhada deste julgamento ver Gilbert Geis e Ivan Bunn 1997 263 262 bruxas e outros praticantes da magia morreram e as câmaras em que se executaram suas torturas foram um laboratório onde tomou forma e sentido a disciplina social e onde muitos conhecimentos sobre o corpo foram adquiridos Com as foguei ras se eliminaram aquelas superstições que faziam obstáculo à transformação do corpo individual e social em um conjunto de mecanismos previsíveis e controláveis E foi aí novamente onde nasceu o uso científco da tortura pois foram necessários o sangue e a tortura para criar um animal capaz de um com portamento regular homogêneo e uniforme marcado a fogo com o sinal das novas regras Nietzsche 1965 pp 18990 Um elemento signifcativo neste contexto foi a condenação do aborto e da contracepção como um malefcium o que deixou o corpo feminino o útero foi reduzido a uma máquina para a re produção do trabalho nas mãos do Estado e da profssão médica Voltarei a este ponto no capítulo sobre a caça às bruxas no qual sustento que a perseguição das bruxas foi o ponto culminante da intervenção estatal contra o corpo proletário na Era Moderna É necessário insistir que apesar da violência empregada pelo Estado o disciplinamento do proletariado continuou lentamente ao longo do século XVII assim como durante o século XVIII frente a uma forte resistência que nem sequer o medo da execução pôde superar Um exemplo emblemático dessa resistência é analisado por Peter Linebaugh em The Tyburn Riots Against the Surgeons As revoltas de Tyburn contra os cirurgiões Segundo Linebaugh no início do século XVIII durante uma execução em Londres os familiares e amigos do condenado lutaram pra evitar que os assistentes dos cirurgiões se apropriassem do cadáver com o fm de usálo em estudos anatômicos Linebaugh 1975 A batalha foi feroz porque o medo de ser dissecado não era menor que o medo da morte A dissecação eliminava a possibilidade de que o condenado pudesse recuperar os sentidos após um enforcamento mal A câmara de tortura Gravura de 1809 por Manet em Joseph Lavalee Histoires des Inquisitions Religieuses dItalie dEspagne et de Portugal História das inquisições religiosas da Itália de Espanha e de Portugal feito tal e como ocorria frequentemente na Inglaterra do século XVIII ibidem pp 1024 Entre a população se difundiu uma concepção mágica do corpo segundo a qual este continuava vivo depois da morte e esta o enriquecia com novos poderes Acreditavase que os mortos tinham o poder de regressar e levar a cabo sua última vingança contra os vivos Acreditavase também que um cadáver tinha virtudes curativas Deste modo multidões de enfermos se reuniam ao redor das forcas espe rando dos membros dos mortos efeitos tão milagrosos quanto aqueles atribuídos pelo toque do rei ibidem pp 10910 A dissecação aparecia assim como uma infâmia maior uma segunda morte ainda mais defnitiva e os condenados passavam seus últimos dias assegurandose de que seu corpo 265 não seria abandonado nas mãos dos cirurgiões A batalha que se dava aos pés da forca colocava à mostra tanto a violência predominante na racionalização científca do mundo como o choque de dois conceitos opostos de corpo Por um lado temos um conceito de corpo que lhe confere poderes depois da morte o corpo não inspira repulsa e não é tratado como algo apodrecido ou alheio Por outro lado o corpo é considerado morto embora ainda esteja vivo já que é concebido como um instrumento mecânico que pode ser desmantelado como se se tratasse de uma máquina Nas forcas junto à cruz das ruas Tyburn e Edware escreve Peter Linebaugh encontramos a conexão entre a his tória dos pobres de Londres e a história da ciência inglesa Esta não foi uma coincidência tampouco foi uma coincidência que o progresso da anatomia dependesse da capacidade dos cirurgiões para arrebatar os corpos pendurados em Tyburn135 O curso da racionalização científca estava intimamente ligado à tentativa por parte do Estado de impor seu controle sobre uma força de trabalho que não estava disposta a colaborar Esta tentativa foi ainda mais importante como determi nante das novas práticas com relação ao corpo que o desen volvimento da tecnologia Tal como sustenta David Dickson a conexão entre a nova visão científca do mundo e a crescente mecanização da produção apenas pode se sustentar como uma metáfora Dickson 1979 p 24 Certamente o relógio e os mecanismos automáticos que tanto intrigavam Descartes e seus contemporâneos por exemplo as estátuas movidas hi draulicamente eram modelos para uma nova ciência e para as 135 Em todos os países da Europa do século XVI onde floresceu a anatomia as autoridades aprovaram estatutos que permitiam que os corpos dos executados fossem usados em estudos anatômicos Na Inglaterra o Colégio Médico ingressou no campo da anatomia em 1565 quando Elizabeth I concedeu o direito de apropriarse dos corpos de delinquentes dissecados OMalley 1964 Sobre a colaboração entre as autoridades e os anatomistas em Bolonha durante os séculos XVI e XVII ver Giovanna Ferrari 1984 pp 59 60 64 878 que assinala que não apenas os executados mas também todos os piores entre os que morriam no hospital eram separados para os anatomistas Em um caso uma condenada à prisão perpétua foi trocada por uma condenada à morte para satisfazer a demanda dos acadêmicos Um exemplo revelador na nova concepção mecânica do corpo nesta xilogravura alemã do século XVI na qual um camponês é representado como nada mais do que um meio de produção seu corpo composto inteiramente de utensílios agrícolas 267 266 especulações da flosofa mecanicista sobre os movimentos do corpo Certo é também que a partir do século XVII as analogias anatômicas provinham das ofcinas de produção os braços eram considerados como alavancas o coração como uma bom ba os pulmões como fole os olhos como lentes o punho como um martelo Munford 1962 p 32 No entanto estas metáforas mecânicas não refetiam a infuência da tecnologia como tal senão o feito de que a máquina estava se convertendo no modelo de comportamento social A força inspiradora da necessidade de controle social é evidente até mesmo no campo da astronomia Um exemplo clássico é o de Edmond Halley secretário da Royal Society que concomitantemente à aparição em 1695 do cometa que logo receberia seu nome organizou clubes em toda Inglaterra para demonstrar a previsibilidade dos fenômenos naturais e dissipar a crença popular de que os cometas anunciavam as desordens sociais O caminho da racionalização científca confuiu com o disciplinamento do corpo social de maneira ainda mais evidente nas ciências sociais Podemos ver efe tivamente que seu desenvolvimento teve como premissas a homogeneização do comportamento social e a construção de um indivíduo prototípico ao que se esperava que todos se ajustassem Nos termos de Marx este é um indivíduo abstra to construído de maneira uniforme como uma média social social average e sujeito a uma descaracterização radical de tal modo que todas as suas faculdades apenas podem ser apreendidas a partir de seus aspectos mais normalizados A construção deste novo indivíduo foi a base para o desenvol vimento do que William Petty chamaria mais tarde usando a terminologia hobbesiana de aritmética política uma nova ciência que estudaria cada forma de comportamento social em termos de números pesos e medidas O projeto de Petty se realizou com o desenvolvimento da estatística e da demografa Wilson 1966 Cullen 1975 que efetuam sobre o corpo social as mesmas operações que a anatomia efetua sobre o corpo individual dissecando a população e estudando seus movi mentos das taxas de natalidade às taxas de mortalidade das estruturas geracionais até as ocupacionais em seus aspectos mais massifcados e regulares Também é possível observar que desde o ponto de vista do processo de abstração pelo qual passa o indivíduo na transição ao capitalismo o desenvolvi mento da máquina humana foi o principal salto tecnológico o passo mais importante no desenvolvimento das forças pro dutivas que teve lugar no período de acumulação primitiva J Case Compendium Anatomicum 1696 Compêndio anatômico Em contraste com o homem mecânico há esta imagem do homem vegetal na qual os vasos sanguíneos são vistos como ramos crescendo a partir do corpo humano 269 268 Podemos observar em outras palavras que a primeira máquina desenvolvida pelo capitalismo foi o corpo humano e não a má quina a vapor nem tampouco o relógio Contudo se o corpo é uma máquina surge imediatamente um problema como fazêlo trabalhar Das teorias da flosofa mecânica derivam dois modelos diferentes de governo do corpo De um lado temos o modelo cartesiano que a partir da suposição de um corpo puramente mecânico postula a possibilidade de que no indivíduo se desenvolvam mecanismos de autodisciplina de autocontrole selfmanagement e de autorregulação que tornem possíveis as relações de trabalho voluntárias e o governo baseado no consentimento De outro lado está o modelo hobbesiano que ao negar a possibilidade de uma razão livre do corpo externaliza as funções de mando consignandoas à autoridade absoluta do Estado O desenvolvimento de uma teoria do autocontrole a partir da mecanização do corpo é o centro das atenções da flosofa de Descartes quem recordemos não completou sua formação intelectual na França do absolutismo monárquico mas sim na Holanda burguesa que elegeu como morada na medida em que combinava mais com seu espírito As doutrinas de Descartes possuem um duplo objetivo negar que o comportamento hu mano possa verse infuenciado por fatores externos tais como as estrelas ou as inteligências celestiais e liberar a alma de qualquer condicionamento corporal fazendoa assim capaz de exercer uma soberania ilimitada sobre o corpo Descartes acreditava que podia levar a cabo ambas as tarefas a partir da demonstração da natureza mecânica do com portamento animal Nada dizia em Le Monde 1633 O mundo causa mais erros do que a crença de que os animais têm alma como nós Por isso quando preparava seu Tratado do Homem dedicou muitos meses a estudar a anatomia de órgãos dos animais toda manhã ia ao matadouro para observar o corte das bestas136 Fez inclusive muitas vivissecções consolado possi velmente por sua crença de que tratandose apenas de seres inferiores despojados de razão os animais que ele dissecava não podiam sentir nenhuma dor Rosenfeld 1968 p 8137 136 De acordo com o primeiro biógrafo de Descartes Monsieur Adrien Baillet durante sua estadia em Amsterdam em 1629 enquanto preparava seu Tratado do Homem Descartes visitou os matadouros da cidade e fez dissecções de diferentes partes dos animais começou a execução do seu plano estudando anatomia à qual se dedicou durante todo o inverno em que esteve em Amsterdã Declarou ao padre Marsenne que em seu entusiasmo para conhecer sobre este tema havia visitado um açougueiro quase diariamente com a finalidade de presenciar a matança e que ele o havia permitido que levasse a sua casa os órgãos animais que quisesse para dissecálos com maior tranquili dade Com frequência fez o mesmo em outros lugares onde esteve posteriormente sem encontrar nada pessoalmente vergonhoso ou que não estivesse à altura de sua posição em uma prática que em si mesma era inocente e que podia produzir resultados muito úteis Por isso se riu de certa pessoa maliciosa e invejosa que havia tratado de fazêlo passar por um criminoso e o havia acusado de ir pelos povoados para ver como matavam os cervos Não deixou de observar o que Versalius e os mais experientes entre os outros autores haviam escrito sobre anatomia Contudo aprendeu de uma maneira mais segura dissecan do pessoalmente animais de diferentes espécies Descartes 1972 XIIIXIV Em uma carta a Mersenne de 1633 escreveu Eu anatomizo agora as cabeças de di versos animais para explicar em que consiste a imaginação a memória Cousin 1824 26 vol IV p 255 Também em uma carta de 20 de janeiro relata em detalhe experimentos de dissecção Após ter aberto o peito de um coelho vivo de maneira que o tronco e o coração da aorta se vejam facilmente Seguindo a dissecção desse animal vivo eu corto essa parte do coração que chamamos de sua ponta ibidem vol VII p 350 Finalmente em junho de 1640 em resposta a Marsenne que lhe havia perguntado por que os animais sentem dor se não possuem alma Descartes assegurou que eles não sentem pois dor existe apenas quando há entendimento que é ausente nas bestas Rosenfield 1968 p 8 Este argumento insensibilizou muitos contemporâneos cientificistas de Descartes sobre a dor que a vivissecção causava nos animais Assim é como Nicolas de la Fontaine descrevia a atmosfera criada em Port Royal pela crença no automatismo dos animais Apenas havia um solitário que não falasse em autômato Ninguém dava im portância ao fato de golpear um cachorro com a maior indiferença lhe davam pauladas rindo daqueles que se compadeciam de tais bestas como se estas tivessem sentido dor de verdade Se dizia que eram relógios que aqueles gritos que lançavam ao ser golpeados não eram mais que o ruído de um pequeno impulso que haviam colocado em marcha mas que de modo algum havia nele sentimento Cravavam os pobres bichos sobre tábuas pelas quatro patas para cortálos em vida e ver a circulação do sangue que era grande matéria de discussão Rosenfield 1968 p 54 137 A doutrina de Descartes sobre a natureza mecânica dos animais representava uma inversão total com respeito à concepção dos animais que havia prevalecido durante a Idade Média e até o século XVI quando eram considerados seres inteligentes responsáveis com uma imaginação particularmente desenvolvida e inclusive com capacidade de falar Como Eward Westermark e mais recentemente Esther Cohen mostraram em alguns países da Europa se julgavam os animais e às vezes eram executados publicamente por crimes que haviam cometido Um advogado era designado para eles e o processo julgamento conde nação e execução era realizado com todas as formalidades legais Em 1565 os cidadãos de Arles por exemplo pediram a expulsão das lagostas de seu povoado e em outro caso foram excomungados os vermes que infestavam uma paróquia O último julgamento de um animal teve lugar na França em 1845 Os animais também eram aceitos na corte como testemunhas para o compurgatio compurgação Um homem que havia sido condenado por assassinato compareceu ante a corte com seu gato e seu galo em presença deles jurou que era inocente e foi liberado Westermarck 1924 p 254 e segs Cohen 1986 271 270 Demonstrar a brutalidade dos animais era fundamental para Descartes ele estava convencido de que poderia encontrar aí a resposta para suas perguntas sobre a localização a natureza e o alcance do poder que controlava a conduta humana Acreditava que em um animal dissecado poderia encontrar a prova de que o corpo só é capaz de realizar ações mecânicas e involuntárias e que portanto o corpo não é constitutivo da pessoa a essência humana reside então em faculdades puramente imateriais Para Descartes o corpo humano é também um autômato mas o que diferencia o homem da besta e confere a ele domínio sobre o mundo circundante é a presença do pensamento Deste modo a alma que Descartes desloca do cosmos e da esfera da corpo ralidade retorna ao centro de sua flosofa dotada de um poder infnito na forma de razão e de vontade individuais Situado em um mundo sem alma e em um corpomáquina o homem cartesiano podia então como Próspero romper sua varinha mágica para se converter não apenas no responsável por seus atos mas também aparentemente no centro de todos os poderes Ao se dissociar de seu corpo o eu racional se desvinculava certamente de sua realidade corpórea e da natureza Sua solidão sem dúvida seria a de um rei no modelo cartesiano de pessoa não há um dualismo igualitário entre a cabeça pensante e o corpomáquina há apenas uma relação de senhorescravo já que a tarefa principal da vontade é dominar o corpo e o mundo natural No modelo cartesiano de pessoa se vê então a mesma centralização das funções de mando que neste mesmo período ocorria com o Estado assim como a tarefa do Estado era governar o corpo social na nova subjetividade a mente se converteu em soberana Descartes reconhece que a supremacia da mente sobre o corpo não se alcança facilmente já que a razão deve afron tar suas contradições internas Assim em As paixões da alma 1650 ele nos apresenta a perspectiva de uma batalha constante entre as faculdades baixas e as faculdades altas da alma que ele descreve quase em termos militares ape lando para a nossa necessidade de ser valentes e de obter as armas adequadas para resistir aos ataques de nossas paixões Devemos estar preparados para derrotas temporárias pois talvez nossa vontade não seja sempre capaz de mudar ou deter nossas paixões Mas ela pode neutralizálas desviando sua atenção para outra coisa ou pode restringir os movimentos que provocam no corpo Pode em outras palavras evitar que as paixões se convertam em ações Descartes 1973 vol I p 3545 Com a instituição de uma relação hierárquica entre a mente e o corpo Descartes desenvolveu as premissas teóricas da disciplina do trabalho requerida para o desenvolvimento da economia capitalista A supremacia da mente sobre o corpo implica que a vontade pode em princípio controlar as necessidades as reações e os refexos do corpo que pode impor uma ordem regular sobre suas funções vitais e forçar o corpo a trabalhar de acordo com especifcações externas independentemente de seus desejos Ainda mais importante é que a supremacia da vontade permite a interiorização dos mecanismos de poder Por isso a contrapartida da mecanização do corpo é o desenvolvimento da razão como juiz inquisidor gerente manager e adminis trador Aqui encontramos as origens da subjetividade burgue sa baseada no autocontrole selfmanagement na propriedade de si na lei e na responsabilidade com os corolários da me mória e da identidade Aqui encontramos também as origens dessa proliferação de micropoderes que Michel Foucault descreveu em sua crítica do modelo jurídicodiscursivo do Poder Foucault 1977 Sem dúvida o modelo cartesiano mos tra que o Poder pode ser descentralizado difundido através do corpo social apenas na medida em que volta a centrarse na pessoa que é então reorganizada como um microEstado Em outras palavras ao difundirse o Poder não perde sua força 273 272 quer dizer seu conteúdo e seus propósitos simplesmente adquire a colaboração do Eu em sua ascensão Dentro deste contexto deve considerarse a tese proposta por Brian Easlea o principal benefício que o dualismo cartesia no ofereceu à classe capitalista foi a defesa cristã da imortalida de da alma e a possibilidade de derrotar o ateísmo implícito na magia natural que estava carregada de implicações subversivas Easlea 1980 p 132 e segs Para apoiar esta perspectiva Easlea sustenta que a defesa da religião foi uma questão central no cartesianismo que particularmente em sua versão inglesa nunca esqueceu que sem espírito não há Deus nem bispo nem rei ibidem p 202 O argumento de Easlea é atrativo sua insistência nos elementos reacionários do pensamento de Descartes faz com que possa responder às perguntas que ele mesmo formula por que o controle do cartesianismo na Europa foi tão forte a ponto de inclusive depois que a física newtonia na dissipara a crença em um mundo natural carente de poderes ocultos e mesmo depois do advento da tolerância religiosa continuar dando forma à visão dominante do mundo Em mi nha opinião a popularidade do cartesianismo entre as classes médias e altas estava diretamente relacionada com o programa de domínio de si promovido pela flosofa de Descartes Em suas implicações sociais este programa foi tão importante para a elite contemporânea a Descartes que a relação hegemônica entre os seres humanos e a natureza se legitimou a partir do dualismo cartesiano O desenvolvimento do autocontrole isto é do domínio de si do desenvolvimento próprio se tornou um requisito funda mental em um sistema socioeconômico capitalista no qual se pressupunha que cada um fosse proprietário de si mesmo o que se converteu em fundamento das relações sociais e em que a disciplina já não dependia exclusivamente da coerção externa O signifcado social da flosofa cartesiana recaía em parte no fato de que lhe provia uma justifcativa intelectual Deste modo a teoria de Descartes sobre o autocontrole derrota mas também recupera o lado ativo da magia natural Deste modo substitui o poder imprevisível do mago construído a partir da manipulação sutil das infuências e das correspondências astrais por um po der muito mais rentável um poder para o qual nenhuma alma tem que ser confscada gerado apenas a partir da administra ção e da dominação dos corpos de outros seres Não podemos di zer então como fez Easlea repetindo uma crítica formulada por Leibniz que o cartesianismo não pôde traduzir seus princípios em um conjunto de regulações práticas quer dizer que não pôde demonstrar aos flósofos sobretudo aos comerciantes e fabri cantes como poderiam benefciarse com ele em sua tentativa de controlar a matéria do mundo ibidem p 151 Se o cartesianismo falhou ao dar uma tradução tecnológica a seus preceitos proveu no entanto informações valiosas em relação ao desenvolvimento da tecnologia humana Sua com preensão da dinâmica do autocontrole levaria à construção de um novo modelo de pessoa no qual o indivíduo funcionava ao mesmo tempo como senhor e como escravo Como interpretava tão bem os requerimentos da disciplina do trabalho capitalista no fnal do século XVII a doutrina de Descartes já havia se difun dido pela Europa e sobrevivido inclusive à chegada da biologia vitalista e à crescente obsolescência do paradigma mecanicista As razões do triunfo de Descartes se veem com maior clareza quando comparamos sua explicação de pessoa com a de Hobbes seu rival inglês O monismo biológico hobbesiano rechaçava o postulado de uma mente imaterial ou alma que ha via constituído a base do conceito cartesiano de pessoa e com isso a suposição cartesiana de que a vontade humana pode se libertar do determinismo corpóreo e instintivo138 Para Hobbes 138 Foi dito que a perspectiva antimecanicista de Hobbes na realidade concedia mais poderes e dinamismo ao corpo que a versão cartesiana Hobbes rechaça a ontologia 275 274 o comportamento humano era um conglomerado de ações refe xas que seguiam leis naturais precisas e obrigavam o indivíduo a lutar incessantemente pelo poder e pela dominação sobre outros 1963 p 141 e segs Daí a guerra de todos contra todos em um hipotético estado de natureza e a necessidade de um poder absoluto que garantisse por meio do medo e do castigo a sobrevivência do indivíduo na sociedade As leis de natureza tais como as da justiça equidade modéstia piedade e em defnitivo faça aos outros o que quer que façam por você são por si mesmas quando não existe o temor a um determinado poder que motive sua vigilância contrárias às nossas paixões naturais às quais nos induzem à parcialidade ao orgulho à vingança e a coisas semelhantes ibidem p 173 Como é bem sabido a doutrina política de Hobbes causou escândalo entre seus contemporâneos que a consideraram peri gosa e subversiva ao ponto de que embora desejasse fortemente Hobbes nunca foi admitido na Royal Society Bowle 1952 p 163 Apesar de Hobbes impôsse o modelo de Descartes que expressava a tendência já existente a democratizar os meca nismos de disciplina social atribuindo à vontade individual a função de mando que no modelo hobbesiano havia sido deixada unicamente nas mãos do Estado Tal como sustenta ram muitos críticos de Hobbes as bases da disciplina pública devem estar arraigadas nos corações dos homens pois na dualista de Descartes e em particular a noção da mente como substância imaterial e incorpórea A visão do corpo e da mente como um continuum monista dá conta das operações mentais recorrendo a princípios físicos e fisiológicos No entanto não menos que Descartes ele retira o poder do organismo humano assim como lhe nega movimento próprio e reduz as mudanças corporais a mecanismos de ação e reação Por exemplo para Hobbes a percepção dos sentidos é o resultado de uma açãoreação já que os órgãos e os sentidos opõem resistência aos impulsos atômicos que vêm do objeto externo a imaginação é um sentido em decadência Igualmente a razão não é outra coisa além de uma máquina de fazer cálculos Hobbes não menos que Descartes concebe as operações do corpo como termos de uma causalidade mecânica sujeitas às mesmas leis que regulam o mundo da matéria inanimada ausência de uma legislação interna os homens se dirigem inevitavelmente à revolução citado em Bowle 1951 pp 978 Para Hobbes queixavase Henry Moore não existe a liberdade da vontade e portanto não existe remorso da consciência ou da razão apenas existe a vontade de quem tem a maior espada citado em Easlea 1980 p 159 Mais explícito foi Alexander Ross que observou que o freio da consciência é o que retém os homens frente à rebelião não existe força exterior mais poderosa não existe um juiz tão severo nem um torturador tão cruel quanto uma consciência acusadora citado em Bowle 1952 p 167 É evidente que a crítica contemporânea ao ateísmo e ao materialismo de Hobbes não estava motivada por preocupações religiosas A visão de Hobbes sobre o indivíduo enquanto máqui na movida apenas por seus apetites e por suas aversões não foi rechaçada porque eliminou o conceito de criatura humana feita à imagem de Deus mas sim porque descartava a possibilidade de uma forma de controle social que não dependia exclusivamente do domínio férreo do Estado Aqui está em minha opinião a diferença principal entre a flosofa de Hobbes e o cartesianismo Esta distinção no entanto não pode ser vista se insistimos nos elementos feudais da flosofa de Descartes e particularmente em sua defesa da existência de Deus com tudo o que isso supõe como aval do poder estatal Se efetivamente privilegiamos o Descartes feudal perdemos de vista o feito de que a eliminação do elemento religioso em Hobbes isto é a crença na existência das substâncias incorpóreas era na realidade uma resposta à democratização implícita no modelo cartesiano do autocontrole de que Hobbes sem dúvida desconfava Tal como havia de monstrado o ativismo das seitas puritanas durante a Guerra Civil Inglesa o autocontrole podia transformarse facilmente em uma proposta subversiva O chamado dos puritanos a converter a gestão do comportamento próprio em consciência individual e a 277 276 fazer da consciência própria o juiz fnal da verdade havia se radi calizado nas mãos dos sectários para se converter em uma recusa anárquica da autoridade estabelecida139 O exemplo dos Digers e dos Ranters e de dezenas de pregadores mecanicistas que em nome da luz da consciência haviam se oposto à legislação do Estado e da propriedade privada devia ter convencido Hobbes de que o chamado da razão era uma perigosa arma de dois gumes140 O confito entre o teísmo cartesiano e o materialismo hobbesiano se resolveu com o tempo em uma assimilação recíproca no sentido de que como sempre na história do capitalismo a descentralização dos mecanismos de comando através de sua localização no indivíduo foi fnalmente alcan çada apenas na medida em que houve uma centralização do poder no Estado Para colocar essa resolução nos termos em que estava pautado o debate durante a Guerra Civil Inglesa nem os Digers nem o absolutismo e sim uma bem calcula da mistura de ambos em que a democratização do comando recairia sobre as costas de um Estado sempre pronto como o deus newtoniano para impor novamente a ordem sobre as almas que avançavam demasiadamente longe nas formas da autodeterminação O xis da questão foi expresso lucidamente por Joseph Glanvil membro cartesiano da Royal Society que em uma polêmica com Hobbes sustentou que o problema 139 Tal como Hobbes lamentava em Behemoth 1962 p 190 Depois que a Bíblia foi traduzia ao inglês cada homem melhor dizendo cada criança e cada moça que podia ler inglês pensava que podia falar com Deus Todo Poderoso e que compreendia o que ele dizia quando havia lido as Escrituras uma ou duas vezes vários capítulos por dia A reverência e a obediência devidas à Igreja Reformada e aos bispos e pastores foi abandonada e cada homem se converteu em juiz da religião e intérprete das Escrituras Também assinala 1962 p 194 que uma quantidade de homens costumava ir às suas paróquias e cidades em dia de trabalho abandonando suas profissões para escutar aos pregadores mecanicistas 140 É exemplar a Law of Righteousness 1649 de Gerrard Winstanley onde o mais célebre dos Diggers pergunta Winstanley 1941 p 197 Por acaso a luz da Razão fez a terra para que alguns homens acumulem em bolsas e estábulos enquanto outros são oprimidos pela pobreza Acaso a luz da Razão fez esta lei que se um homem não tem abundância de terra para dar àqueles a quem tomou emprestado aquele que empresta deve levar o outro como prisioneiro e fazer que seu corpo passe fome em um quarto fechado Por acaso a luz da Razão fez esta lei que uma parte da humanidade mate e enforque a outra parte em vez de colocarse no seu lugar fundamental era o controle da mente sobre o corpo Isso no entanto não implicava simplesmente o controle da classe do minante a mente por excelência sobre o corpoproletariado e sim o que é igualmente importante o desenvolvimento da capacidade de autocontrole dentro da pessoa Como demonstrou Foucault a mecanização do corpo não apenas supôs a repressão dos desejos das emoções e de outras formas de comportamento que tinham que ser erradicadas Também supôs o desenvolvimento de novas faculdades no indi víduo que apareceriam como outras em relação ao corpo e que se converteriam em agentes de sua transformação O produto desta alienação do corpo foi em outras palavras o desenvolvimento da identidade individual concebida precisamente como alteri dade em relação ao corpo e em perpétuo antagonismo com ele A aparição deste alter ego e a determinação de um confito histórico entre a mente e o corpo representam o nascimento do indivíduo na sociedade capitalista Fazer do próprio corpo uma realidade alheia que se deve avaliar desenvolver e manter na linha com o fm de obter dele os resultados desejados se con vertia em uma característica típica do indivíduo moldado pela disciplina do trabalho capitalista Como assinalamos entre as classes baixas o desenvol vimento do autocontrole selfmanagement como autodiscipli na foi durante muito tempo objeto de especulação A escassa autodisciplina que se esperava das pessoas comuns pode julgarse pelo fato de que já na Inglaterra no século XVIII ha via 160 crimes punidos com a pena de morte Linebaugh 1992 e todo ano milhares de pessoas comuns eram transporta das às colônias ou condenadas às galés Além disso quando a população apelava à razão era para apresentar demandas an tiautoritárias já que o domínio de si selfmastery em escala popular signifcava a rejeição da autoridade estabelecida mais do que a interiorização das normas sociais 279 278 Efetivamente durante o século XVII o domínio de si foi uma prerrogativa burguesa Como assinala Easlea quando os flósofos falavam do homem como um ser racional faziam referência exclusiva a uma pequena elite composta por homens adultos brancos e de classe alta A grande multidão dos ho mens escreveu Henry Power um seguidor inglês de Descartes se parece mais com o autômato de Descartes já que carece de qualquer poder de raciocinar e seus membros apenas podem ser chamados homens enquanto metáfora Easlea 1980 p 140141 Os da melhor classe concordavam que o proletariado era de uma raça diferente A seus olhos desconfados pelo medo o proletariado parecia uma grande besta um monstro de muitas cabeças selvagem vociferante dado a qualquer excesso Hill 1975 p 181 e segs Linebaugh e Rediker 2000 Também no plano individual o vocabulário ritual identifcava as massas como seres puramente instintivos Assim na literatura elisabe tana o mendigo é sempre vigoroso e robusto grosseiro irascível e desordenado tais são as palavras que aparecem vez ou outra nas discussões sobre a classe baixa Nesse processo o corpo não apenas perdeu todas as suas conotações naturalistas como também começou a emergir uma funçãocorpo no sentido de que o corpo se converteu em um ter mo puramente relacional que já não signifcava nenhuma reali dade específca pelo contrário o corpo passou a ser identifcado com qualquer impedimento ao domínio da razão Isso signifca que enquanto o proletariado se converteu em corpo o corpo se converteu em proletariado e em particular em sinônimo de fraqueza e irracionalidade a mulher em nós como dizia Hamlet ou ainda em selvagem africano defnido puramente 141 É tentador sugerir que essa suspeita a respeito da humanidade das classes baixas pode ser a razão pela qual poucos entre os primeiros críticos do mecanicismo cartesiano objetaram à visão mecânica do corpo humano Como assinala L C Rosenfield Esta é uma das coisas estranhas de toda a discussão nenhum dos ardentes defensores da alma animal neste primeiro período levantou seu garrote para evitar que o corpo humano fosse contaminado pelo mecanicismo Rosenfield 1968 p 25 por sua função limitadora isto é por sua alteridade com res peito à razão e tratado como um agente de subversão interna No entanto a luta contra esta grande besta não esteve dirigida apenas contra as pessoas de classe baixa Também foi interiorizada pelas classes dominantes em sua batalha contra seu próprio estado natural Como vimos assim como Próspero a burguesia também teve que reconhecer que este ser de trevas é meu isto é que Calibã era parte de si mesma Brown 1988 Tyllard 1961 pp 345 Esta consciência impreg na a produção literária dos séculos XVI e XVII A terminologia é reveladora Inclusive aqueles que não seguiam Descartes viram o corpo como uma besta que de forma constante tinha que ser mantida sob controle Seus instintos foram comparados com súditos destinados a serem governados e os sentidos foram considerados uma prisão para a alma racional Oh quem surgirá desta masmorra Uma alma escravizada de tantas formas perguntou Andrew Marvell em seu Diálogo entre a alma e o corpo Com parafusos de ossos que se levantam agrilhoados nos pés e nas mãos algemadas Aqui cegos de um olho e ali surdos com o tamborilar de uma orelha Uma alma pendurada como por uma corrente de nervos e artérias e veias Citado por Hill 1964b p 345 O confito entre os apetites e a razão foi um tema central na lite ratura elisabetana Tillayrd 1961 p 75 enquanto entre os puri tanos começou a ganhar força a ideia de que o Anticristo estava presente em todos os homens Ao mesmo tempo os debates so bre a educação e sobre a natureza do homem correntes entre a gente de classe média se centravam ao redor do confito entre 281 280 o corpo e a alma colocando a pergunta crucial sobre se os seres humanos são agentes voluntários ou involuntários Contudo a defnição de uma nova relação com o corpo não permaneceu em uma esfera puramente ideológica Muitas práti cas que começaram a aparecer na vida cotidiana assinalavam as profundas transformações que estavam ocorrendo neste âmbito o uso de talheres o desenvolvimento da vergonha com respeito à nudez o advento dos modos das boas maneiras que ten tavam regular como se deveria rir caminhar bocejar como se comportar à mesa e quando se podia cantar brincar jogar Elias 1978 p 129 e segs Na medida em que o indivíduo se dissociava cada vez mais do corpo este último se convertia em um objeto de observação constante como se se tratasse de um inimigo O corpo começou a inspirar medo e repugnância O corpo do homem está cheio de sujeira declarou Jonathan Edwards cuja atitude é típica da experiência puritana na qual a subjugação do corpo é uma prática cotidiana Greven 1977 p 67 Eram particularmente repugnantes aquelas funções corporais que diretamente enfrentavam os homens com sua animalidade Tal foi o caso de Cotton Mather que em seu diário confessou quão humilhado se sentiu um dia quando urinando contra uma parede viu um cachorro fazer o mesmo Pensei em que coisas vis e baixas são os flhos de homens neste estado mortal Até que ponto nossas necessidades naturais nos degradam e nos colocam em certo sentido no mesmo patamar que os cães Por conseguinte resolvi como deveria ser minha prática ordinária quando decido responder a uma ou a outra necessidade da natureza o fazer dela uma oportunidade para dar forma em minha mente a algum pensamento sagrado nobre divino Ibidem Como parte da grande paixão médica da época a análise dos excrementos a partir da qual se extraíram múltiplas deduções sobre as tendências psicológicas do indivíduo seus vícios e suas virtudes Hunt 1970 pp 1436 deve ser rastreada a partir da concepção do corpo como um receptáculo de sujeira e de perigos ocultos Claramente essa obsessão pelos excrementos humanos refetia em parte o desgosto que a classe média começava a sentir pelos aspectos não produtivos do corpo um desgosto inevitavel mente acentuado em um ambiente urbano onde os excrementos apresentavam um problema logístico além de aparecerem como puro resíduo Contudo nessa obsessão podemos ler também a necessidade burguesa de regular e purifcar a máquina corporal de qualquer elemento que pudesse interromper sua atividade e oca sionar tempos mortos para o trabalho Os excrementos eram ao mesmo tempo tão analisados e degradados porque eram o símbolo dos humores enfermos que se acreditava viverem nos corpos e aos quais se atribuíam todas as tendências perversas dos seres humanos Para os puritanos os excrementos se converteram no signo visível da corrupção da natureza humana uma forma de pe cado original que tinha que ser combatido subjugado exorcizado Pieter Bruegel O país da Cocanha 1567 Ver nota de rodapé 142 283 282 Daí o uso de purgantes eméticos e enemas lavagens intestinais que se administravam às crianças e aos possuídos para expulsar deles os feitiços Thorndike 1958 p 553 e segs Nesse intento obsessivo por conquistar o corpo em seus mais íntimos segredos se vê refetida a mesma paixão com que nesses mesmos anos a burguesia tratou de conquistar pode ríamos dizer colonizar esse ser alheio perigoso e improdu tivo que a seus olhos era o proletariado Pois o proletariado era o Grande Calibã da época O proletariado era esse ser material bruto e por si mesmo desordenado que Petty recomendava que fosse entregue às mãos do Estado que em sua prudência deveria melhorar administrar e confgurar para seu proveito Furniss 1957 p 17 e segs Como Calibã o proletariado personifcava os humores enfermos que se escondiam no corpo social começando pelos monstros repugnantes da vagabundagem e do alcoolismo Aos olhos de seus senhores sua vida era pura inércia mas ao mesmo tempo era paixão descontrolada e fantasia desenfreada sempre pronta para explodir em violentos tumultos Acima de tudo era indisciplina falta de produtividade incontinência desejo de satisfação física imediata sua utopia não era uma vida de trabalho e sim o país de Cocanha Burke 1978 Graus 1987142 onde as casas eram feitas de açúcar os rios de leite e onde não apenas se podia obter o que se desejava sem esforço como se recebia dinheiro por comer e beber Por dormir uma hora de sono profundo sem caminhar ganhase seis francos e por beber bem ganhase uma pistola este país é alegre ganhase dez francos por dia por fazer amor Burke 1978 p 190 142 F Graus 1967 afirma que o nome Cocanha apareceu pela primeira vez no século XIII se supõe que Cucaniensis vem de Kuchen e parece ter sido usado como paródia já que o primeiro contexto no qual foi encontrado é uma sátira de um monastério inglês da época de Eduardo II Graus 1967 p 9 Graus discute a diferença entre o conceito medieval de País das Maravilhas e o conceito moderno de Utopia argumentando que Na época moderna a ideia básica de construção do mundo ideal significa que a Utopia deve estar povoada por seres ideais que se desfizeram de seus defeitos Os habi tantes de Utopia estão caracterizados por sua justiça e inteligência Por outro lado as visões utópicas da Idade Média começam a partir do homem tal e como é e buscam realizar seus desejos atuais Ibidem p6 Em Cocanha Schlaraffenland por exemplo há comida e bebida em abundância não há desejo de alimentarse prudentemente e sim de comer com gulodice tal qual se havia desejado fazer na vida cotidiana Nesta Cocanha também há uma fonte da juventude na qual homens e mulheres entram por um lado para saírem pelo outro como belos jovens e meninas Logo o relato continua com sua atitude de Mesa dos Desejos que tão bem reflete a simples visão de uma vida ideal Graus 1967 pp 78 Em outras palavras o ideal de Cocanha não encarna nenhum projeto racional nem uma noção de progresso é no entanto muito mais concreto se apoia decidida mente no entorno da aldeia e retrata um estado de perfeição não alcançado na época moderna Graus ibidem Lucas Cranach A fonte da juventude 1546 Ver nota de rodapé 142 284 A ideia de transformar este ser ocioso que sonhava a vida como um grande carnaval em um trabalhador incansável deve ter parecido uma empreitada desesperadora Signifcou literalmente colocar o mundo de pernas pra cima mas de uma maneira totalmente capitalista um mundo onde a inércia do poder se converteria na falta de desejo e de vontade própria onde a vis erótica se tornaria vis lavorativa e onde a necessidade seria experimentada apenas como carência absti nência e penúria eterna Daí esta batalha contra o corpo que caracterizou os primórdios do desenvolvimento capitalista e que continua de diversas formas até nossos dias Vem deste contexto também a mecanização do corpo que foi o projeto da nova flosofa natural e o ponto focal dos primeiros experimentos na organização do Estado Se fzermos um apanhado desde a caça às bruxas até as especulações da flosofa mecanicista in cluindo as investigações meticulosas dos talentos individuais pelos puritanos veremos que um único fo condutor une os caminhos aparentemente divergentes da legislação social da reforma religiosa e da racionalização científca do universo Esta foi uma tentativa de racionalizar a natureza humana cujos poderes tinham que ser reconduzidos e subordinados ao desenvolvimento e à formação da mão de obra Como vimos neste processo o corpo foi progressivamen te politizado desnaturalizado e redefinido como o outro o objeto limite da disciplina social Deste modo o nascimento do corpo no século XVII também marcou seu fim uma vez que o conceito de corpo deixaria de definir uma realidade or gânica específica e se tornaria em vez disso um significante das relações de classe e das fronteiras movediças continua mente redesenhadas que essas relações produzem no mapa da exploração humana Mulheres voam em suas vassouras para o sabá depois de aplicar unguentos em seus corpos Estampa francesa do século XVI em Dialogues touchant le pouvoir des sorcières 1570 Diálogos tocantes ao poder das bruxas INTRODUÇÃO 290 A ÉPOCA DE QUEIMA DE BRUXAS E A INICIATIVA ESTATAL 294 CRENÇAS DIABÓLICAS E MUDANÇAS NO MODO DE PRODUÇÃO 304 CAÇA ÀS BRUXAS E REVOLTA DE CLASSES 312 A CAÇA ÀS BRUXAS A CAÇA ÀS MULHERES E A ACUMULAÇÃO DO TRABALHO 323 A CAÇA ÀS BRUXAS E A SUPREMACIA MASCULINA A DOMESTICAÇÃO DAS MULHERES 336 A CAÇA ÀS BRUXAS E A RACIONALIZAÇÃO CAPITALISTA DA SEXUALIDADE 346 A CAÇA ÀS BRUXAS E O NOVO MUNDO 357 A BRUXA A CURANDEIRA E O NASCIMENTO DA CIÊNCIA MODERNA 361 CAPÍTULO 4 A GRANDE CAÇA ÀS BRUXAS NA EUROPA UM ANIMAL IMPERFEITO SEM FÉ SEM LEI SEM MEDO SEM CONSISTÊNCIA DITADO FRANCÊS DO SÉCULO XVII SOBRE AS MULHERES ABAIXO DA CINTURA SÃO CENTAUROS MUITO EMBORA MULHERES PARA CIMA ATÉ A CINTURA OS DEUSES É QUE MANDAM PARA BAIXO OS DEMÔNIOS ALI É O INFERNO ESCURIDÃO ABISMO SULFUROSO CALOR FERVURA CHEIRO DE PODRIDÃO SHAKESPEARE REI LEAR 1606 VOCÊS SÃO AS VERDADEIRAS HIENAS QUE NOS ENCANTAM COM A BRANCURA DE SUAS PELES E QUANDO A LOUCURA NOS COLOCOU A SEU ALCANCE VOCÊS SE LANÇARAM SOBRE NÓS VOCÊS SÃO AS TRAIDORAS DA SABEDORIA O IMPEDIMENTO DA INDÚSTRIA OS IMPEDIMENTOS DA VIRTUDE E OS AGUILHÕES QUE NOS INSTIGAM A TODOS OS VÍCIOS À IMPIEDADE E À RUÍNA VOCÊS SÃO O PARAÍSO DOS NÉSCIOS A PRAGA DO SÁBIO E O GRANDE ERRO DA NATUREZA WALTER CHARLETON EPHESIAN MATRON 1659 291 290 INTRODUÇÃO A caça às bruxas aparece raramente na história do proletariado Até hoje continua sendo um dos fenômenos menos estudados na história da Europa143 ou talvez da história mundial se con sideramos que a acusação de adoração ao demônio foi levada ao Novo Mundo pelos missionários e conquistadores como uma ferramenta para a subjugação das populações locais O fato de que a maior parte das vítimas na Europa tenham sido mulheres camponesas talvez possa explicar o motivo da indiferença dos historiadores com relação a tal genocídio uma indiferença que beira a cumplicidade já que a eliminação das bruxas das páginas da história contribuiu para banalizar sua eli minação física na fogueira sugerindo que foi um fenômeno com um signifcado menor quando não uma questão de folclore Inclusive os estudiosos da caça às bruxas no passado eram quase exclusivamente homens foram frequentemente dignos herdeiros dos demonólogos do século XVI Ainda que deploras sem o extermínio das bruxas muitos insistiram em retratálas como tolas miseráveis que sofriam com alucinações Desta ma neira sua perseguição poderia ser explicada como um processo de terapia social que serviu para reforçar a coesão amistosa Midelfort 1972 p 3 ou poderia ser descrita em termos médi cos como um pânico uma loucura uma epidemia todas caracterizações que tiram a culpa dos caçadores das bruxas e despolitizam seus crimes Os exemplos da misoginia que inspirou a abordagem acadêmica da caça às bruxas são abundantes Como apontou 143 Como sinalizou Erik Midelfort Com poucas exceções notáveis o estudo da caça às bruxas se manteve impressionista É verdadeiramente chamativo quão poucas pesquisas existem sobre a bruxaria no caso da Europa pesquisas que tentem enumerar todos os julgamentos a bruxas em certa cidade ou região Midelfort 1972 p 7 Mary Daly já em 1978 boa parte da literatura sobre este tema foi escrita de um ponto de vista favorável à execução das mulheres o que desacredita as vítimas da sua perseguição retratandoas como fracassos sociais mulheres desonradas ou frustradas no amor ou até mesmo como pervertidas que se divertiam zombando dos seus perseguidores masculinos com suas fantasias sexuais Daly 1978 p 213 cita o exemplo da obra The History of Psychiatry A história da psiquiatria de F G Alexander e S T Selesnick em que lemos que as bruxas acusadas frequentemente davam razão a seus perseguidores Uma bruxa mitigava sua culpa confessando suas fantasias sexuais em audiência pública ao mesmo tempo alcançava certa gratifcação erótica ao se ater a todos os detalhes diante de seus acusadores masculinos Estas mulheres gravemente perturbadas do ponto de vista emocional eram particularmente suscetíveis à sugestão de que abrigavam demônios e diabos e estavam dispostas a confessar sua convivência com espíritos malignos da mesma maneira que hoje em dia os indivíduos perturbados infuenciados pelas manchetes dos jornais fantasiam serem assassinos procurados Tanto na primeira como na segunda geração de especialistas acadêmicos na caça às bruxas podemos encontrar exceções a essa tendência de acusar as vítimas Entre elas devemos lembrar de Alan Macfarlane 1970 E W Monter 1969 1976 1977 e Alfred Soman 1992 Mas foi somente com o advento do movimento fe minista que o fenômeno da caça às bruxas emergiu da clandesti nidade a que foi confnado graças à identifcação das feministas com as bruxas que logo foram adotadas como símbolo da revolta feminina Bovenschen 1978 p 83 e segs144 As feministas reco 144 Uma expressão desta identificação foi a criação da WITCH bruxa uma rede de grupos feministas autônomos que teve um papel importante na fase inicial do movimento de liberação das mulheres nos Estados Unidos Como relata Robin Morgan em Sisterhood is Powerful 1970 Irmandade é poderosa a WITCH nasceu durante o 293 292 de a caça às bruxas ter sido contemporânea ao processo de colonização e extermínio das populações do Novo Mundo aos cercamentos ingleses ao começo do tráfco de escravos à pro mulgação das Leis Sangrentas contra vagabundos e mendigos e de ter chegado a seu ponto culminante no interregno entre o fm do feudalismo e a guinada capitalista quando os campo neses na Europa alcançaram o ponto máximo do seu poder ao mesmo tempo que sofreram a maior derrota da sua história Até agora no entanto este aspecto da acumulação primitiva tem permanecido como um verdadeiro mistério146 mencionados nos arquivos fiscais e tais arquivos ainda não foram analisados 1976 p 21 Trinta anos depois as cifras ainda são amplamente discrepantes Enquanto algumas acadêmicas feministas defendem que a quantidade de bruxas executadas equivale ao número de judeus assassinados na Alemanha nazista de acordo com Anne L Barstow com base no atual trabalho arquivístico aproximadamente 200 mil mulheres foram acusadas de bruxaria em um lapso de três séculos sendo que a menor parte delas foi assassinada Barstow admite entretanto que é muito difícil estabelecer quantas mulheres foram executadas ou morreram pelas torturas que sofreram Muitos arquivos ela escreve não enumeravam os vereditos dos julgamentos ou não incluem as mortas na prisão Outras levadas ao desespero pela tortura se suicidaram nas celas Muitas bruxas acusadas foram assassinadas na prisão Outras morreram nos calabouços pelas torturas sofridas Barstow pp 223 Levando em conta também as que foram linchadas Barstow conclui que ao menos 100 mil mulheres foram assassinadas mas acrescenta que as que escaparam foram arruinadas para toda a vida já que uma vez acusadas a suspeita e a hostilidade as perseguiriam até a cova ibidem Enquanto a polêmica sobre a magnitude da caça às bruxas continua Midelfort e Larner forneceram estimativas regionais Midelfort 1972 descobriu que no sudeste da Alemanha ao menos 3200 bruxas foram queimadas somente entre 1560 e 1670 um período no qual já não queimavam uma ou duas bruxas mas vintenas e centenas Lea 1922 p 549 Christina Larner 1981 estima em 4500 a quantidade de mulheres executadas na Escócia entre 1590 e 1650 mas também concorda que a quantidade pode ser muito maior já que a prerrogativa de levar a cabo a caça às bruxas era conferida também a notáveis conterrâneos que tinham liberdade para prender bruxas e estavam encarregados de manter os arquivos 146 Duas escritoras feministas Starhawk e Maria Mies explicaram a caça às bruxas no contexto da acumulação primitiva deduzindo conclusões muito similares às apresentadas neste livro Em Dreaming the Dark 1982 Sonhando com as trevas Starhawk conectou a caça às bruxas com a desapropriação do campesinato europeu das terras comunais com os efeitos sociais da inflação de preços causada pela chegada do ouro e prata americanos à Europa e com o surgimento da medicina profissional Também sinalizou que A bruxa já se foi mas seus medos e as forças contra as quais lutou durante sua vida ainda vivem Podemos abrir nossos diários e ler as mesmas acusações contra o ócio dos pobres Os expropriadores vão ao Terceiro Mundo destruindo culturas roubando os recursos da terra e das pessoas Se ligamos a rádio podemos escutar o ruído das chamas Mas a luta também continua Starhawk 1997 p 2189 Enquanto Starhawk examina principalmente a caça às bruxas no contexto da ascensão da economia de mercado na Europa Patriarchy and Accumulation on a World Scale 1986 Patriarcado e acumulação em escala global de Maria Mies o conecta com nheceram rapidamente que centenas de milhares de mulheres não poderiam ter sido massacradas e submetidas às torturas mais cruéis se não tivessem proposto um desafo à estrutura de poder Também se deram conta de que essa guerra contra as mu lheres que se manteve durante um período de pelo menos dois séculos constituiu um ponto decisivo na história das mulheres na Europa o pecado original no processo de degradação social que as mulheres sofreram com a chegada do capitalismo o que o conforma portanto como um fenômeno ao qual devemos re tornar de forma reiterada se quisermos compreender a misoginia que ainda caracteriza a prática institucional e as relações entre homens e mulheres Ao contrário das feministas os historiadores marxistas sal vo raras exceções inclusive quando se dedicaram ao estudo da transição ao capitalismo relegaram a caça às bruxas ao esquecimento como se carecesse de relevância para a história da luta de classes As dimensões do massacre deveriam en tretanto ter levantado algumas suspeitas em menos de dois séculos centenas de milhares de mulheres foram queimadas enforcadas e torturadas145 Deveria parecer signifcativo o fato Halloween de 1968 em Nova York mas conciliábulos rapidamente se formaram em outras cidades O que a figura da bruxa significou para estas ativistas pode ser entendido por meio de um panfleto escrito pelo conciliábulo de Nova York que depois de recordar que as bruxas foram as primeiras praticantes do controle de natalidade e do aborto afirma As bruxas sempre foram mulheres que se atreveram a ser corajosas agressivas inteligentes não conformistas curiosas independentes sexualmente liberadas revo lucionárias WITCH vive e ri em cada mulher Ela é a parte livre de cada uma de nós Você é uma Bruxa pelo fato de ser mulher indomável desvairada alegre e imortal Morgan 1970 pp 6056 Entre as escritoras feministas estadunidenses que de uma forma mais consciente identificaram a história das bruxas com a luta pela liberação das mulheres estão Mary Daly 1978 Starhawk 1982 e Barbara Ehrenreich e Deidre English cujo Witches Mi dwives and Nurses A History of Women Healers 1973 Bruxas parteiras e enfermeiras uma história de mulheres curandeiras foi para muitas feministas incluindo eu mesma a primeira aproximação à história da caça às bruxas 145 Quantas bruxas foram queimadas Tratase de uma questão controversa dentro da pesquisa acadêmica sobre a caça às bruxas muito difícil de responder já que muitos julgamentos não foram registrados ou se foram o número de mulheres executadas não está especificado Além disso muitos documentos nos quais podemos encontrar referências aos julgamentos por bruxaria ainda não foram estudados ou foram destruídos Na década de 1970 E W Monter advertiu por exemplo que era impossível calcular a quantidade de jul gamentos seculares a bruxas que aconteceram na Suíça já que frequentemente só estavam 295 294 A ÉPOCA DE QUEIMA DE BRUXAS E A INICIATIVA ESTATAL O que ainda não foi reconhecido é que a caça às bruxas consti tuiu um dos acontecimentos mais importantes do desenvolvi mento da sociedade capitalista e da formação do proletariado moderno Isso porque o desencadeamento de uma campanha de terror contra as mulheres não igualada por nenhuma outra perseguição debilitou a capacidade de resistência do cam pesinato europeu frente ao ataque lançado pela aristocracia latifundiária e pelo Estado em uma época na qual a comuni dade camponesa já começava a se desintegrar sob o impacto combinado da privatização da terra do aumento dos impostos e da extensão do controle estatal sobre todos os aspectos da vida social A caça às bruxas aprofundou a divisão entre mulheres e homens inculcou nos homens o medo do poder das mulheres e destruiu um universo de práticas crenças e sujeitos sociais cuja existência era incompatível com a disciplina do trabalho capitalista redefnindo assim os principais elementos da repro dução social Neste sentido de um modo similar ao ataque con temporâneo à cultura popular e ao Grande Internamento de pobres e vagabundos em hospícios e workhouses casas de trabalho a caça às bruxas foi um elemento essencial da acu mulação primitiva e da transição ao capitalismo Mais adiante veremos que tipos de medo a caça às bruxas conseguiu espalhar em favor da classe dominante europeia e que efeitos tiveram na posição das mulheres na Europa Nesse ponto quero reforçar que contrariamente à visão propagada pelo o processo de colonização e com a crescente conquista da natureza que caracterizaram a dominação capitalista Mies sustenta que a caça às bruxas foi parte da tentativa da classe capitalista emergente de estabelecer seu controle sobre a capacidade produtiva das mulheres e fundamentalmente sobre sua potência procriativa no contexto de uma nova divisão sexual e internacional do trabalho construída sobre a exploração das mulheres das colônias e da natureza Mies 1986 pp 6970 7888 Iluminismo a caça às bruxas não foi o último suspiro de um mun do feudal agonizante É bem consagrado que a supersticiosa Idade Média não perseguiu nenhuma bruxa o próprio conceito de bruxaria não tomou forma até a Baixa Idade Média e nunca houve julgamentos e execuções massivas durante a Idade das Trevas apesar de a magia ter impregnado a vida cotidiana e desde o Império Romano tardio ter sido temida pela classe domi nante como ferramenta de insubordinação entre os escravos147 Nos séculos VII e VIII o crime de malefcium foi introduzido nos códigos dos novos reinos teutônicos tal como aconteceu com o código romano Esta era a época da conquista árabe que aparentemente agitou os corações dos escravos na Europa ante a expectativa de liberdade animandoos a tomar as armas contra seus donos148 Dessa forma essa inovação legal pode ter sido uma reação ao medo gerado entre as elites pelo avanço dos sarracenos que de acordo com o que se acreditava eram grandes especialistas nas artes mágicas Chejne 1983 pp 115 32 Porém naquela época só eram castigadas por malefcium 147 Desde o Império Romano tardio as classes dominantes consideraram a magia suspeita de ser parte da ideologia dos escravos e de constituir um instrumento de insubordinação Pierre Dockes cita a De re rustica de Columella um agrônomo romano da República tardia que por sua vez cita a Cato no sentido de que a familiaridade com astrólogos adivinhos e feiticeiros deveria ser mantida sob controle pois tinha uma influência perigosa sobre os escravos Columella recomendou que o villicus escravo ou liberto de confiança não deve fazer sacrifícios sem ordens do seu senhor Não deve receber adivinhos nem magos que se aproveitavam das superstições dos homens para os conduzir ao crime Deve evitar a confiança de arúspices e feiticeiros duas classes de pessoas que infectam as almas ignorantes com o veneno das superstições sem fundamen to Citado por Dockes 1982 p 213 148 Dockes cita o seguinte extrato de Les Six Livres de la Republique 1576 Os seis livros da república de Jean Bodin O poder dos árabes cresceu somente deste modo dando ou prometendo a liberda de aos escravos Pois assim que o capitão Omar um dos tenentes de Maomé prometeu a liberdade aos escravos que o seguiam atraiu a tantos outros que em poucos anos eles se converteram em senhores de todo o Oriente Os rumores de liberdade e as conquistas dos escravos enalteceram os corações dos escravos na Europa ao que eles passaram a pegar em armas primeiro na Espanha em 781 e logo no Sacro Império nos tempos de Carlos Magno e Ludovico Pio como se pode ver nos éditos expedidos na época contra as conspi rações declaradas entre os escravos Ao mesmo tempo este arranque de ira estalou na Alemanha onde os escravos em pé de guerra sacudiram as propriedades dos príncipes e as cidades e inclusive Ludovico rei dos alemães foi forçado a reunir todas as suas forças para os aniquilar Pouco a pouco isso forçou os cristãos a diminuir a servidão e a liberar aos escravos com exceção de algumas corvées Citado en Dockes 1982 p 237 297 296 aquelas práticas mágicas que infigiam dano às pessoas e às coisas e a Igreja só usou esta expressão para criticar os que acreditavam nos atos de magia149 A situação mudou por volta da metade do século XV Nesta época de revoltas populares epidemias e crise feudal incipiente tiveram lugar os primeiros julgamentos de bruxas no sul da França na Alemanha na Suíça e na Itália as primeiras des crições do sabá Monter 1976 p 18150 e o desenvolvimento da doutrina sobre a bruxaria na qual a feitiçaria foi declarada como uma forma de heresia e como o crime máximo contra Deus contra a Natureza e contra o Estado Monter 1976 pp 117 Entre 1435 e 1487 foram escritos vinte e oito tratados sobre bruxaria Monter 1976 p 19 culminando às vésperas da viagem de Colombo na publicação em 1486 do tristemente célebre Malleus Malefcarum O martírio das bruxas que de acordo com uma nova bula papal sobre a questão a Summis Desiderantes 1484 Desejando com supremo ardor de Inocêncio VIII afrmava 149 O Canon Episcopi século X considerado o texto mais importante na docu mentação da tolerância da Igreja em relação às crenças mágicas qualificou como infiéis aqueles que acreditavam em demônios e voos noturnos argumentando que tais ilusões eram produtos do diabo Russell 1972 pp 767 Entretanto em seu estudo sobre a caça às bruxas no sudoeste da Alemanha Eric Midelfort questionou a ideia de que a Igreja na Idade Média fosse cética e tolerante no que diz respeito à bruxaria Este autor foi par ticularmente crítico com o uso que se fez do Canon Episcopi defendendo que este afirma o oposto do que foi feito a dizer Em outras palavras não devemos concluir que a Igreja tolerava práticas mágicas porque o autor do Canon atacava a crença na magia De acordo com Midelfort a posição do Canon era a mesma que a Igreja sustentou até o século XVIII A Igreja condenava a crença de que os atos de magia eram possíveis porque considerava que era uma heresia maniqueísta atribuir poderes divinos às bruxas e aos demônios Entretanto sustentava que era correto castigar aqueles que praticavam a magia porque acobertavam maldade e se aliavam ao demônio Midelfort 1975 pp 169 Midelfort reforça que até mesmo na Alemanha do século XVI o clero insistiu na necessidade de não acreditar nos poderes do demônio Mas sinaliza que i a maioria dos julgamentos foram instigados e administrados por autoridades seculares a quem não interessavam as disquisições teológicas ii tampouco entre o clero a distinção entre maldade e feito maligno teve muitas consequências práticas já que depois de tudo muitos clérigos recomendaram que as bruxas fossem castigadas com a morte 150 Monter 1976 p 18 O sabá apareceu pela primeira vez na literatura medieval por volta da metade do século xv Rossell Hope Robbins 1959 p 415 escreveu que Johannes Nieder 1435 um dos primeiros demonólogos desconhecia o sabá mas o panfleto francês anônimo Errores Gazariarum 1459 contém uma descrição detalhada da sinagoga Por volta de 1458 Nicholas Jacquier usou a palavra sabbat apesar do seu relato ser pouco preciso sabbat apareceu também em um informe sobre a perseguição às bruxas em Lyon em 1460 já no século XVI o sabbat era um componente conhecido da bruxaria que a Igreja considerava a bruxaria como uma nova ameaça Entretanto o clima intelectual que predominou durante o Renascimento especialmente na Itália seguiu caracterizado pelo ceticismo perante tudo que fosse ligado ao sobrenatural Os intelectuais italianos de Ludovico Ariosto até Giordano Bruno e Nicolau Maquiavel olharam com ironia para as histórias clericais sobre os atos do diabo enfatizando por outro lado especialmen te no caso de Bruno o poder nefasto do ouro e do dinheiro Non incanti ma contanti não encantos mas sim moedas é o lema de um personagem de uma das comédias de Bruno que resume a perspectiva da elite intelectual e dos círculos aristocráticos da época Parinetto 1998 pp 2999 Foi depois de meados do século XVI nas mesmas décadas em que os conquistadores espanhóis subjugaram as popula ções americanas que começou a aumentar a quantidade de mulheres julgadas como bruxas Além disso a iniciativa da perseguição passou da Inquisição às cortes seculares Monter 1976 p 26 A caça às bruxas alcançou seu ápice entre 1580 e 1630 ou seja numa época em que as relações feudais já esta vam dando lugar às instituições econômicas e políticas típicas do capitalismo mercantil Foi neste longo Século de Ferro que praticamente por meio de um acordo tácito entre países que a princípio estavam em guerra se multiplicaram as fogueiras ao passo que o Estado começou a denunciar a existência de bruxas e a tomar a iniciativa de perseguilas Foi a Constitutio Criminalis Carolina o Código Legal Imperial promulgado pelo rei católico Carlos V em 1532 que estabeleceu que a bruxaria seria penalizada com a morte Na Inglaterra protestante a perseguição foi legalizada por meio de três Atos do Parlamento aprovados respectivamente em 1542 em 1563 e em 1604 sendo que o último introduziu a pena de morte inclusive na ausência de dano a pessoas ou a coisas Depois de 1550 na Escócia na Suíça na França e nos Países Baixos Espanhóis também foram 299 298 aprovadas leis e ordenanças que fzeram da bruxaria um crime ca pital e incitaram a população a denunciar as suspeitas de bruxaria Estas foram republicadas nos anos seguintes para aumentar a quantidade de pessoas que podiam ser executadas e novamente para fazer da bruxaria por si só e não dos danos que supostamen te provocava um crime grave Os mecanismos da perseguição confrmam que a caça às bruxas não foi um processo espontâneo um movimento vindo de baixo ao qual as classes governantes e administrativas esta vam obrigadas a responder Larner 1983 p 1 Como Christina Larner demonstrou no caso da Escócia a caça às bruxas requeria uma vasta organização e administração ofcial151 Antes que os vizinhos se acusassem entre si ou que comunidades inteiras fos sem presas do pânico teve lugar um frme doutrinamento no qual as autoridades expressaram publicamente sua preocupação com a propagação das bruxas e viajaram de aldeia em aldeia para ensinar as pessoas a reconhecêlas em alguns casos levando consigo listas de mulheres suspeitas de serem bruxas e amea çando castigar aqueles que as dessem asilo ou lhes oferecessem ajuda Larner 1983 p 2 Na Escócia a partir do Sínodo de Aberdeen 1603 os minis tros da Igreja Presbiteriana receberam ordens para perguntar a seus paroquianos sob juramento se suspeitavam que alguma mulher fosse bruxa Nas igrejas foram colocadas urnas para 151 Os julgamentos por bruxaria eram custosos já que podiam durar meses e se tor nar uma fonte de trabalho para muita gente Robbins 1959 p 111 Os pagamentos pelos serviços e as pessoas envolvidas o juiz o cirurgião o torturador o escriba os guardas inclusive suas refeições e o vinho estavam descaradamente incluídos nos arquivos dos processos ao que é preciso agregar o custo das execuções e o de manter as bruxas na prisão O que segue é a fatura de um julgamento na cidade escocesa de Kirkaldy em 1636 Por dez cargas de carvão para as queimar 5 marcos ou 3 libras ou 6 xelins e 8 pences Por um barril de alcatrão 14 xelins Pela tela de cânhamo para coletes para elas 3 libras ou 10 xelins Por os fazer 3 libras Para a viagem à Finmouth para que o laird senhor de terras ocupe sua sessão como juiz 6 libras Para o carrasco por seus esforços 8 libras ou 14 xelins Por seus gastos neste lugar 16 xelins ou 4 pences Robbins 1959 p 114 Os custos do julgamento de uma bruxa eram pagos pelos parentes da vítima mas quando a vítima não tinha um centavo eram custeados pelos cidadãos do povoado ou pelo proprietário de terras Robbins ibidem Sobre este tema ver Robert Mandrou 1968 p 112 e Christina Larner 1983 p 115 entre outros permitir aos informantes o anonimato então depois que uma mulher caísse sob suspeita o ministro exortava os féis do púlpito a testemunharem contra ela estando proibido ofere cer qualquer assistência Black 1971 p 13 Em outros países também se provocavam denúncias Na Alemanha esta era a tarefa dos visitantes designados pela Igreja Luterana com o consentimento dos príncipes alemães Strauss 1975 p 54 Na Itália setentrional eram os ministros e as autoridades que ali mentavam suspeitas e que se asseguravam de que resultassem em denúncias também certifcavamse de que as acusadas fcassem completamente isoladas forçandoas entre outras coisas a levar cartazes nas suas vestimentas para que as pes soas se mantivessem longe delas Mazzali 1998 p 112 A caça às bruxas foi também a primeira perseguição na Europa que usou propaganda multimídia com o objetivo de ge rar uma psicose em massa entre a população Uma das primeiras tarefas da imprensa foi alertar o público sobre os perigos que as bruxas representavam por meio de panfetos que publicizavam os julgamentos mais famosos e os detalhes de seus feitos mais atrozes Para este trabalho foram recrutados artistas entre eles o alemão Hans Bandung a quem devemos alguns dos mais mor dazes retratos de bruxas Mas foram os juristas os magistrados e os demonólogos frequentemente encarnados na mesma pessoa os que mais contribuíram na perseguição eles sistematizaram os argumentos responderam aos críticos e aperfeiçoaram a maqui naria legal que por volta do fnal do século XVI deu um formato padronizado quase burocrático aos julgamentos o que explica as semelhanças entre as confssões para além das fronteiras na cionais No seu trabalho os homens da lei contaram com a coo peração dos intelectuais de maior prestígio da época incluindo flósofos e cientistas que ainda hoje são elogiados como os pais do racionalismo moderno Entre eles estava o teórico político inglês Thomas Hobbes que apesar de seu ceticismo sobre a 301 O sabá das bruxas A primeira e mais famosa de uma série de gravuras produzida pelo artista alemão Hans Baldung Grien a partir de 1510 explorando pornograficamente o corpo feminino sob a aparência de uma denúncia existência da bruxaria aprovou a perseguição como forma de controle social Outro inimigo feroz das bruxas obsessivo em seu ódio a elas e em seus apelos para um derramamento de san gue foi Jean Bodin o famoso advogado e teórico político fran cês a quem o historiador Trevor Roper chama de o Aristóteles e o Montesquieu do século XVI Bodin a quem se atribui o pri meiro tratado sobre a infação participou de muitos julgamentos e escreveu um livro sobre provas Demomania 1580 no qual insistia que as bruxas deveriam ser queimadas vivas em vez de misericordiosamente estranguladas antes de serem atiradas às chamas que deveriam ser cauterizadas de forma que sua carne apodrecesse antes de morrer e que seus flhos também deveriam ser queimados Bodin não foi um caso isolado Neste século de gênios Bacon Kepler Galileu Shakespeare Pascal Descartes que foi testemunho do triunfo da revolução copernicana do nascimen to da ciência moderna e do desenvolvimento do racionalismo científco a bruxaria tornouse um dos temas de debate favo ritos das elites intelectuais europeias Juízes advogados es tadistas flósofos cientistas e teólogos se preocuparam com o problema escreveram panfetos e demonologias concluíram que este era o mais vil dos crimes e exigiram sua punição152 Não pode haver dúvida então de que a caça às bruxas foi uma iniciativa política de grande importância Reforçar este ponto não signifca minimizar o papel que a Igreja Católica teve 152 H R TrevorRoper escreve A caça às bruxas foi promovida pelos papas refinados do Renascimento pelos grandes reformadores protestantes pelos santos da Contrarreforma pelos acadêmicos advogados e eclesiásticos Se estes dois séculos foram a era das luzes temos que admitir que ao menos em algum aspecto a era da escuri dão foi mais civilizada TrevorRoper 1967 p 122 e segs 303 302 na perseguição A Igreja Católica forneceu o arcabouço metafí sico e ideológico para a caça às bruxas e estimulou sua perse guição da mesma forma que anteriormente havia estimulado a perseguição aos hereges Sem a Inquisição sem as numerosas bulas papais que exortavam as autoridades seculares a pro curar e castigar as bruxas e sobretudo sem os séculos de campanhas misóginas da Igreja contra as mulheres a caça às bruxas não teria sido possível Mas ao contrário do que sugere o estereótipo a caça às bruxas não foi somente um produto do fanatismo papal ou das maquinações da Inquisição Romana No seu apogeu as cortes seculares conduziram a maior parte dos juízos enquanto nas regiões onde a Inquisição operava Itália e Espanha a quantidade de execuções permaneceu comparativamente mais baixa Depois da Reforma Protestante que debilitou o poder da Igreja Católica a Inquisição começou inclusive a conter o fervor das autoridades contra as bruxas ao mesmo tempo que intensifcava a perseguição aos judeus Milano 1963 pp 2879153 Além disso a Inquisição sempre dependeu da cooperação do Estado para levar adiante as exe cuções já que o clero queria evitar a vergonha do derramamen to de sangue A colaboração entre a Igreja e o Estado foi ainda maior nas regiões em que a Reforma levou o Estado a se tornar a Igreja como na Inglaterra ou a Igreja a se tornar Estado como em Genebra e em menor grau na Escócia Nesses 153 Cardini 1989 pp 136 Prosperi 1989 p 217 e segs e Martin 1989 p 32 Conforme escreve Ruth Martin acerca do trabalho da Inquisição em Veneza Uma comparação feita por P F Grendler sobre a quantidade de sentenças de morte concedi das pela Inquisição e pelos tribunais civis o levou a concluir que as inquisições italianas atuaram com grande moderação se comparadas aos tribunais civis e que a Inquisição italiana esteve marcada mais pelos castigos levianos e pelas comutações do que pela severidade uma conclusão confirmada recentemente por E W Monter em seu estudo da Inquisição no Mediterrâneo No que diz respeito aos julgamentos venezianos não houve sentenças de execução nem de mutilação e a condenação às galés era rara As penas a longos tempos em prisão também eram raras e quando se ditavam condenações deste tipo ou banimentos estes eram frequentemente comutados depois de um lapso de tempo relativamente curto As solicitações daqueles que estavam na prisão para que se lhes permitisse passar à prisão domiciliar em decorrência de problemas de saúde também foram tratadas com compaixão Martin 1989 pp 323 casos um ramo do poder legislava e executava e a ideologia religiosa revelava abertamente suas conotações políticas A natureza política da caça às bruxas também fca demons trada pelo fato de que tanto as nações católicas quanto as pro testantes em guerra entre si quanto a todas as outras temáticas se uniram e compartilharam argumentos para perseguir as bruxas Assim não é um exagero dizer que a caça às bruxas foi o primeiro terreno de unidade na política dos novos Estadosnação europeus o primeiro exemplo de unifcação europeia depois do cisma provocado pela Reforma Isso porque atravessando todas as fronteiras a caça às bruxas se disseminou da França e da Itália para Alemanha Suíça Inglaterra Escócia e Suécia Que medos instigaram semelhante política combinada de genocídio Por que se desencadeou semelhante violência E por que foram as mulheres seus alvos principais 305 304 CRENÇAS DIABÓLICAS E MUDANÇAS NO MODO DE PRODUÇÃO Devemos destacar de imediato que até o dia de hoje não exis tem respostas seguras a essas perguntas Um obstáculo funda mental no caminho para encontrar uma explicação reside no fato de que as acusações contra as bruxas foram tão grotescas e inacreditáveis que não podem ser comparadas com nenhuma outra motivação ou crime154 Como dar conta do fato de que du rante mais de dois séculos em distintos países europeus cente nas de milhares de mulheres tenham sido julgadas torturadas queimadas vivas ou enforcadas acusadas de terem vendido seu corpo e sua alma ao demônio e por meios mágicos assassinado inúmeras crianças sugado seu sangue fabricado poções com sua carne causado a morte de seus vizinhos destruído gado e cultivos provocado tempestades e realizado muitas outras abo minações De todo modo ainda hoje alguns historiadores nos pedem que acreditemos que a caça às bruxas foi completamente razoável no contexto da estrutura de crenças da época Um problema que se acrescenta a isso é que não contamos com o ponto de vista das vítimas já que tudo o que restou das suas vozes são as confssões redigidas pelos inquisidores geral mente obtidas sob tortura e por melhor que escutemos como foi feito por Carlo Ginzburg 1991 o que vem à tona para além do folclore tradicional por entre as fssuras das confssões que 154 Também há provas de mudanças significativas no peso atribuído às acusações específicas à natureza dos crimes comumente associados à bruxaria e à composição social dos acusadores e das acusadas A mudança mais significativa é talvez que em uma fase prematura da perseguição durante os julgamentos do século XV a bruxaria foi vista principalmente como um crime coletivo que dependia da organização de reuniões massi vas enquanto no século XVII foi vista como um crime de natureza individual uma carreira maléfica na qual se especializavam bruxas isoladas sendo isso um signo da ruptura dos laços comunais que resultaram da crescente privatização da terra e da expansão das relações comerciais durante este período se encontram nos arquivos não contamos com nenhuma forma de determinar sua autenticidade Além disso o extermínio das bruxas não pode ser explicado como sendo um simples produto da cobiça já que nenhuma recompensa comparável às riquezas das Américas poderia ter sido obtida com a execução e o confsco dos bens de mulheres que eram pobres em sua maioria155 É por esta razão que alguns historiadores como Brian Levack se abstiveram de apresentar uma teoria explicativa contentandose em identifcar os prérequisitos para a caça às bruxas por exemplo a mudança no procedimento legal de um sistema acusatório privado para um público durante a Baixa Idade Média a centralização do poder estatal e o impacto da Reforma e da Contrarreforma na vida social Levack 1987 Não existe entretanto a necessidade de tal agnosticismo nem temos que decidir se os caçadores de bruxas acreditavam realmente nas acusações que dirigiram contra suas vítimas ou se as empregavam cinicamente como instrumentos de repres são social Se consideramos o contexto histórico no qual se pro duziu a caça às bruxas o gênero e a classe das acusadas bem como os efeitos da perseguição podemos concluir que a caça às bruxas na Europa foi um ataque à resistência que as mulheres apresentaram contra a difusão das relações capitalistas e contra o poder que obtiveram em virtude de sua sexualidade de seu controle sobre a reprodução e de sua capacidade de cura A caça às bruxas foi também instrumento da construção de uma nova ordem patriarcal em que os corpos das mulheres seu trabalho e seus poderes sexuais e reprodutivos foram co locados sob o controle do Estado e transformados em recursos 155 A Alemanha é uma exceção dentro deste padrão já que ali a caça às bruxas afetou muitos membros da burguesia inclusive muitos vereadores Sem dúvida na Alemanha o confisco da propriedade foi o principal motivo por trás da perseguição o que explica o fato de esta ter alcançado ali proporções incomparáveis com qualquer outro país com exceção da Escócia Entretanto de acordo com Midelfort a legalidade do con fisco foi controversa e até mesmo no caso das famílias ricas não lhes subtraíram mais de um terço da propriedade Midelfort agrega também que na Alemanha é inquestionável que a maior parte das pessoas executadas era pobre Midelfort 1972 pp 1649 307 306 econômicos O que quer dizer que os caçadores de bruxas esta vam menos interessados no castigo de qualquer transgressão específca do que na eliminação de formas generalizadas de comportamento feminino que já não toleravam e que tinham que se tornar abomináveis aos olhos da população O fato de que as acusações nos julgamentos referiamse frequentemente a acontecimentos ocorridos havia várias décadas de que a bruxaria tivesse sido transformada em um crimen exceptum ou seja um crime que deveria ser investigado por meios especiais incluindo a tortura e de que eram puníveis inclusive na ausência de qualquer dano comprovado a pessoas e coisas são fatores que indicam que o alvo da caça às bruxas como ocorre frequente mente com a repressão política em épocas de intensa mudança e confito social não eram crimes socialmente reconhecidos mas práticas anteriormente aceitas de grupos de indivíduos que ti nham que ser erradicados da comunidade por meio do terror e da criminalização Neste sentido a acusação de bruxaria cumpriu uma função similar à que cumpre o crime de lesamajestade que de forma signifcativa foi introduzido no código legal inglês no mesmo período e a acusação de terrorismo atualmente A própria obscuridade da acusação o fato de que era impossível comprovála ao mesmo tempo que evocava o máximo horror implicava que pudesse ser utilizada para castigar qualquer forma de protesto com a fnalidade de gerar suspeita inclusive sobre os aspectos mais corriqueiros da vida cotidiana Uma primeira ideia sobre o signifcado da caça às bruxas na Europa pode ser encontrada na tese proposta por Michael Taussig em seu clássico trabalho The Devil and Commodity Fetishism in South America 1980 O demônio e o fetichismo da mercadoria na América do Sul Neste livro o autor sustenta que as crenças diabólicas surgem em períodos históricos em que um modo de produção é substituído por outro Em tais períodos não somente as condições materiais de vida são transformadas radicalmente mas também o são os fundamentos metafísicos da ordem social por exemplo a concepção de como se cria o valor do que gera vida e crescimento do que é natural e do que é antagônico aos costumes estabelecidos e às relações sociais Taussig 1980 p 17 e segs Taussig desenvolveu sua teoria a partir do estudo das crenças de trabalhadores rurais colombianos e mineiros de estanho bolivianos numa época em que em ambos os países estavam surgindo certas relações monetárias que aos olhos do povo se associavam com a morte e inclusive com o diabólico ainda mais se comparadas com as formas de produção mais antigas que ainda persistiam orientadas à subsistência Desse modo nos casos analisados por Taussig eram os pobres que suspeitavam da adoração ao demônio por parte dos mais ri cos Ainda assim sua associação entre o diabo e a forma merca doria nos faz lembrar também que por detrás da caça às bruxas esteve a expansão do capitalismo rural que incluiu a abolição de direitos consuetudinários e a primeira onda de infação na Europa moderna Estes fenômenos não somente levaram ao cres cimento da pobreza da fome e do deslocamento social Le Roy Ladurie 1974 p 208 mas também transferiram o poder para as mãos de uma nova classe de modernizadores que viram com medo e repulsa as formas de vida comunais que haviam sido típi cas da Europa précapitalista Foi graças à iniciativa desta classe protocapitalista que a caça às bruxas alçou voo tanto como uma plataforma na qual uma ampla gama de crenças e práticas po pulares podiam ser perseguidas Normand e Roberts 2000 p 65 quanto como uma arma com a qual se podia derrotar a resistência à reestruturação social e econômica É signifcativo que a maioria dos julgamentos por bruxaria na Inglaterra tenham ocorrido em Essex região em que a maior parte da terra foi cercada durante o século XVI156 enquanto 156 Ainda não foi feita nenhuma análise séria da relação entre as mudanças na posse da terra sobretudo a privatização da terra e a caça às bruxas Alan Macfarlane 309 308 nas Ilhas Britânicas onde a privatização da terra não ocorreu e tampouco foi parte da agenda não existem registros de caça às bruxas Os exemplos mais marcantes neste contexto são a Irlanda e as Terras Altas Ocidentais da Escócia onde não é possível encontrar nenhum rastro da perseguição provavel mente porque em ambas as regiões ainda predominavam os laços de parentesco e um sistema coletivo de posse da terra que impediram as divisões comunais e o tipo de cumplicidade com o Estado que tornou possível a caça às bruxas Desta maneira enquanto nas Terras Altas da Escócia e na Irlanda as mulheres estiveram a salvo na época da perseguição às bruxas nas Terras Baixas da Escócia que passaram por um processo de privatiza ção e de conversão à religião anglicana e onde a economia de subsistência foi desaparecendo sob o impacto da Reforma pres biteriana a caça às bruxas custou a vida de quatro mil vítimas o equivalente a 1 da população feminina Que a difusão do capitalismo rural com todas as suas consequências expropriação da terra aprofundamento das diferenças sociais deterioração das relações coletivas tenha sido um fator decisivo no contexto de caça às bruxas é algo que também se pode provar pelo fato de que a maioria dos acusa dos eram mulheres camponesas pobres cottars157 trabalhado ras assalariadas enquanto os que as acusavam eram abasta dos e prestigiosos membros da comunidade muitas vezes seus próprios empregadores ou senhores de terra ou seja indiví duos que formavam parte das estruturas locais de poder e que que foi o primeiro em sugerir que existiu uma importante conexão entre os cercamentos em Essex e a caça às bruxas na mesma área se retratou depois Macfarlane 1978 Ape sar disso a relação entre ambos os fenômenos é inquestionável Como vimos no Capítulo 2 a privatização da terra foi um fator significativo direta e indiretamente para o empobrecimento que sofreram as mulheres no período no qual a caça às bruxas alcançou proporções massivas Ao mesmo tempo em que a terra foi privatizada e o comércio de terras se desenvolveu as mulheres se tornaram vulneráveis a um duplo processo de expropriação por parte dos ricos compradores de terras e por parte dos homens com os quais se relacionavam 157 Cottar é o termo escocês usado para designar uma espécie de camponês lavra dor Os cottars ocupavam casas de campo e cultivavam pequenos pedaços de terra NTP com frequência tinham laços estreitos com o Estado central Somente na medida em que a perseguição avançou e o medo de bruxas assim como o medo de ser acusada de bruxaria ou de associação subversiva foi disseminado entre a população é que as acusações começaram a vir também dos vizinhos Na Inglaterra as bruxas eram normalmente mulheres velhas que viviam da assistência pública ou mulheres que sobreviviam indo de casa em casa mendigando pedaços de comida um jarro de vinho ou de leite se estavam casadas seus maridos eram trabalhadores diaristas mas na maioria das vezes eram viúvas e viviam sozinhas Sua pobreza se destaca nas confssões Era em tempos de necessidade que o diabo aparecia para elas para assegurarlhes que a partir daquele momento nunca mais deveriam pedir mesmo que o dinheiro que lhes Uma imagem clássica da bruxa inglesa velha decrépita rodeada de animais e de suas cupinchas e ainda mantendo uma postura provocadora em The Wonderful Discoveries of the Witchcrafts of Margaret and Phillip Flowers 1619 As maravilhosas descobertas da feitiçaria de Margaret e Phillip Flowers de Thomas Erastus 311 310 seria entregue em tais ocasiões rapidamente se transformasse em cinzas um detalhe talvez relacionado com a experiência da hiperinfação que era comum na época Larner 1983 p 95 Mandrou 1968 p 77 Quanto aos crimes diabólicos das bru xas eles não nos parecem mais que a luta de classes desenvol vida na escala do vilarejo o mauolhado a maldição do men digo a quem se negou a esmola a inadimplência no pagamento do aluguel a demanda por assistência pública Macfarlane 1970 p 97 Thomas 1971 p 565 Kittredge 1929 p 163 As dis tintas formas pelas quais a luta de classes contribuiu na criação da fgura da bruxa inglesa podem ser observadas nas acusações contra Margaret Harkett uma velha viúva de sessenta e cinco anos enforcada em Tyburn em 1585 Ela colheu uma cesta de peras no campo do vizinho sem pedir autorização Quando pediram que as devolvesse atirouas no chão com raiva desde então nenhuma pera cresceu no campo Mais tarde o criado de William Goodwin negouse a lhe dar levedura ao que seu tonel para fermentar cerveja secou Ela foi golpeada por um ofcial de justiça que a havia visto roubando madeira do campo do senhor o ofcial enlouqueceu Um vizinho não lhe emprestou um cavalo todos os seus cavalos morreram Outro pagoulhe menos do que ela havia pedido por um par de sapatos logo morreu Um cavalheiro disse ao seu criado que não lhe desse leitelho ao que não puderam fazer nem manteiga nem queijo Thomas 1971 p 556 Encontramos o mesmo padrão de relatos no caso das mulheres que foram apresentadas perante a corte em Chelmsford Windsor e Osyth A Mãe Waterhouse enforcada em Chelmsford em 1566 era uma mulher muito pobre descri ta como alguém que mendigava um pouco de bolo ou manteiga e que era brigada com muitos dos seus vizinhos Rosen 1969 pp 7682 Elizabeth Stile Mãe Devell Mãe Margaret e Mãe Dutton executadas em Windsor no ano de 1579 também eram viúvas pobres Mãe Margaret vivia num abrigo como a sua suposta líder Mãe Seder e todas saíam para mendigar su postamente vingandose no caso de recusa ibidem pp 8391 Quando lhe negaram um pouco de levedura Elizabeth Francis uma das bruxas de Chelmsford amaldiçoou uma vizinha que mais tarde teve com uma forte dor de cabeça Mãe Staunton co chichou de forma suspeita enquanto se afastava de um vizinho que lhe negou levedura ao que o flho do vizinho adoeceu gra vemente ibidem p 96 Ursula Kemp enforcada em Osyth no ano de 1582 tornou coxa uma tal de Grace depois que esta não lhe deu um pouco de queijo também fez com que se inchasse o traseiro do flho de Agnes Letherdale depois que esta lhe negou um punhado de areia para polir Alice Newman amaldiçoou de morte Johnson o cobrador de impostos dos pobres depois que este se negou a lhe dar doze centavos também castigou um tal Butler que não lhe deu um pedaço de carne ibidem p 119 Encontramos um padrão similar na Escócia onde as acusadas também eram cottars pobres que ainda possuíam um pedaço de terra próprio mas que mal sobreviviam frequentemente despertando a hostilidade de seus vizinhos por terem empurra do seu gado para pastar na terra deles ou por não terem pago o aluguel Larner 1983 313 312 CAÇA ÀS BRUXAS E REVOLTA DE CLASSES Como podemos ver a partir desses casos a caça às bruxas se desenvolveu em um ambiente no qual os de melhor estirpe viviam num estado de constante temor frente às classes baixas das quais certamente se podia esperar que abrigassem pensamentos malignos já que nesse período estavam perdendo tudo o que tinham Não surpreende que este medo se expressasse como um ataque em forma de magia popular A batalha contra a magia sempre acompanhou o desenvolvimento do capitalismo até os dias de hoje A premissa da magia é que o mundo está vivo que é imprevisível e que existe uma força em todas as coisas água árvores substâncias palavras Wilson 2000 p XVII Desta maneira cada acontecimento é interpretado como a ex pressão de um poder oculto que deve ser decifrado e desviado de acordo com a vontade de cada um As implicações que isso tem na vida cotidiana vêm descritas provavelmente com certo exagero na carta que um sacerdote alemão enviou depois de uma visita pastoral a um vilarejo em 1594 O uso de encantamentos está tão difundido que não há homem ou mulher que comece ou faça algo sem primeiro recorrer a algum sinal encantamento ato de magia ou método pagão Por exemplo durante as dores de parto quando se pega ou se solta a criança quando se levam os animais ao campo quando um objeto foi perdido ou não conseguiram encontrálo ao fechar as janelas à noite quando alguém adoece ou uma vaca comportase de forma estranha recorrem imediatamente ao adivinho para perguntarlhe quem os roubou quem os enfeitiçou ou para obter um amuleto A experiência cotidiana dessa gente nos mostra que não há limite para o uso das superstições Aqui todos participam das práticas supersticiosas com palavras nomes rimas usando os nomes de Deus da Santíssima Trindade da Virgem Maria dos doze Apóstolos Estas palavras são pronunciadas tanto abertamente como em segredo estão escritas em pedaços de papel engolidos levados como amuletos Também fazem sinais ruídos e gestos estranhos E depois fazem magia com ervas raízes e ramos de certas árvores têm seu dia e lugar especial para todas essas coisas Strauss 1975 p 21 Como aponta Stephen Wilson em The Magical Universe 2000 p XVIII O universo mágico as pessoas que praticavam esses rituais eram majoritariamente pobres que lutavam para sobreviver sempre tentando evitar o desastre e com o desejo portanto de aplacar persuadir e inclusive manipular estas forças que controlam tudo para se manter longe de danos e do mal e para obter o bem que consistia na fertilidade no bemestar na saúde e na vida Mas aos olhos da nova classe capitalista esta concepção anárquica e molecular da difusão do poder no mundo era insuportável Ao tentar controlar a natureza a organização capitalista do trabalho devia rejeitar o imprevisível que está implícito na prática da magia assim como a possibilidade de se estabelecer uma relação privilegiada com os elementos naturais e a crença na existência de poderes a que somente alguns indivíduos tinham acesso não sendo portan to facilmente generalizáveis e exploráveis A magia constituía também um obstáculo para a racionalização do processo de trabalho e uma ameaça para o estabelecimento do princípio da responsabilidade individual Sobretudo a magia parecia uma forma de rejeição do trabalho de insubordinação e um instrumento de resistência de base ao poder O mundo devia ser desencantado para poder ser dominado Por volta do século XVI o ataque contra a magia já estava no seu auge e as mulheres eram os alvos mais prováveis Mesmo 315 314 quando não eram feiticeirasmagas experientes chamavamnas para marcar os animais quando adoeciam para curar seus vizinhos para ajudarlhes a encontrar objetos perdidos ou roubados para lhes dar amuletos ou poções para o amor ou para ajudarlhes a prever o futuro Embora a caça às bruxas estivesse dirigida a uma ampla variedade de práticas femininas foi princi palmente devido a essas capacidades como feiticeiras curan deiras encantadoras ou adivinhas que as mulheres foram per seguidas158 pois ao recorrerem ao poder da magia debilitavam o poder das autoridades e do Estado dando confança aos pobres em sua capacidade para manipular o ambiente natural e social e possivelmente para subverter a ordem constituída Por outro lado é de se duvidar que as artes mágicas que as mulheres praticaram durante gerações tivessem sido ampliadas até o ponto de se converterem em uma conspiração demoníaca se não tivessem ocorrido num contexto de intensa crise e luta social A coincidência entre crise socioeconômica e caça às bruxas foi apontada por Henry Kamen que observou que foi exatamente no período de aumento de preços mais importante entre o fnal do século XVI e a primeira metade do século XVII que houve o maior número de acusações e perseguições Kamen 1972 p 249159 Ainda mais signifcativa é a coincidência entre a intensif cação da perseguição e a eclosão das revoltas urbanas e rurais Tais revoltas foram as Guerras Camponesas contra a privatização da terra que incluíram as insurreições contra os cercamentos 158 Entretanto à medida que a caça às bruxas se estendeu se ofuscaram as dis tinções entre a bruxa profissional e aquelas mulheres que lhe pediam ajuda ou realizavam práticas de magia sem pretender ser especialistas 159 Midelfort 1972 pp 1234 também vê uma conexão entre a Revolução dos Preços e a perseguição às bruxas Sobre a intensificação de julgamentos de bruxas no sudoeste da Alemanha depois de 1620 escreveu Os anos 16221623 foram testemu nhas da total ruptura do sistema monetário O dinheiro se depreciou a tal ponto que os preços dispararam até se perder de vista A primavera do ano 1625 foi fria e as colheitas foram más de Würzburg passando por Württemberg até o Vale do Reno No ano seguinte houve fome no Vale do Reno Estas condições elevaram os preços para além do que muitos trabalhadores podiam suportar na Inglaterra em 1549 1607 1628 e 1631 quando centenas de homens mulheres e crianças armados com forquilhas e pás começaram a destruir as cercas erguidas ao redor das terras co munais proclamando que a partir de agora nunca mais precisa remos trabalhar Na França entre 1593 e 1595 ocorreu a revolta dos croquants contra os dízimos contra os impostos excessivos e contra o aumento do preço do pão um fenômeno que causou fome extrema e maciça em amplas áreas da Europa Durante estas revoltas muitas vezes eram as mulheres que iniciavam e dirigiam a ação Um exemplo disso foi a revolta ocorrida em Montpellier no ano de 1645 que foi iniciada por mulheres que tentavam proteger seus flhos da fome assim como a revolta de Córdoba em 1652 que também foi promovida por mulheres Além disso as mulheres depois que as revoltas Este gráfico indicando a dinâmica dos processos a bruxas entre 1505 e 1650 se refere especificamente à área de Namur e da Lorena na França mas é representativo da perseguição em outros países europeus Por toda parte as décadaschave foram as de 1550 a 1630 quando o preço da comida foi às alturas Em Henry Kamen 1972 317 316 foram esmagadas e muitos dos homens foram encarcerados ou massacrados persistiram no propósito de levar adiante a resistência ainda que fosse de forma subterrânea Isso é o que pode ter acontecido no sudoeste da Alemanha onde duas décadas após o fm das Guerras Camponesas começou a se desenvolver a caça às bruxas Ao escrever sobre a questão Eric Midelfort rejeitou a tese da existência de uma conexão entre esses dois fenômenos Midelfort 1972 p 68 Todavia tal autor não questionou se havia relações familiares ou comunitárias como as que Le Roy Ladurie encontrou em Cevennes160 entre por um lado os milhares de camponeses que de 1476 até 1525 se levantaram continuamente empunhando armas contra o poder feudal mas acabaram brutalmente derrotados e por outro as inúmeras mulheres que menos de duas décadas mais tarde foram levadas à fogueira na mesma região e nos mesmos vilarejos Contudo podemos imaginar que o feroz trabalho de repressão conduzido pelos príncipes alemães e as centenas e centenas de camponeses crucifcados decapitados e queimados vivos sedimentaram ódios insaciáveis e planos secretos de vin gança sobretudo entre as mulheres mais velhas que haviam testemunhado e recordavam esses acontecimentos e que por isso eram mais inclinadas a tornar pública de diversas manei ras sua hostilidade contra as elites locais A perseguição às bruxas se desenvolveu nesse terreno Foi uma guerra de classes levada a cabo por outros meios Não podemos deixar de ver nesse contexto uma conexão entre o medo da revolta e a insistência dos acusadores no sabá ou na sinagoga das bruxas161 a famosa reunião noturna em que 160 Le Roy Ladurie 1987 p 208 escreve Entre estes levantes frenéticos as caças às bruxas e as autênticas revoltas populares que também alcançaram seu clímax nas mesmas montanhas entre 1580 e 1600 existiu uma série de coincidências geográfi cas cronológicas e às vezes familiares 161 Na obsessão com o sabá ou sinagoga como era chamada a mítica reunião de bruxas encontramos uma prova da continuidade entre a perseguição das bruxas e a perse guição dos judeus Como hereges e propagadores da sabedoria árabe os judeus eram vistos como feiticeiros envenenadores e adoradores do demônio As histórias sobre a prática da supostamente se reuniam milhares de pessoas vindo muitas vezes de lugares muito distantes Não há como determinar se ao evocar os horrores do sabá as autoridades miravam para formas de organização reais Mas não há dúvida de que na ob sessão dos juízes por estas reuniões diabólicas além do eco da perseguição aos judeus escutamos o eco das reuniões secretas que os camponeses realizavam à noite nas colinas desertas e nos bosques para planejar suas revoltas162 A historiadora italiana Luisa Muraro escreveu sobre estas reuniões na obra La Signora del Gioco A Senhora do Jogo um estudo sobre os julgamentos das bruxas que ocorreram nos Alpes italianos no começo do século XVI Durante os julgamentos em Val di Fiemme uma das acusadas disse espontaneamente aos juízes que uma noite enquanto estava nas montanhas com sua sogra viu um grande fogo ao longe Fuja fuja gritou sua avó esse é o fogo da Senhora do Jogo Jogo gioco em muitos dialetos do norte da Itália é o nome mais antigo para o sabá nos julgamentos de Val di Fiemme ainda se menciona uma fgura feminina que dirigia o jogo Em 1525 na mesma região houve um levante campesino Eles exigiam a eliminação de dízimos e tributos liberdade para caçar menos conventos hospitais para os pobres o direito de cada vilarejo eleger seu sacerdote Incendiaram castelos conventos e casas do clero Porém foram derrotados massacrados e os que sobreviveram foram perseguidos durante anos por vingança das autoridades circuncisão que diziam que os judeus matavam crianças em rituais contribuíram para re tratálos como seres diabólicos Uma e outra vez os judeus foram descritos nos mistérios teatro medieval e também nas sketches como demônios do Inferno inimigos da raça humana Trachtenberg 1944 p 23 Sobre a conexão entre a perseguição aos judeus e a caça às bruxas ver também Ecstasies 1991 de Carlo Ginzburg capítulos 1 e 2 162 A referência provém aqui dos conspiradores do Bundschuh o sindicato de camponeses alemães cujo símbolo era o tamanco que na Alsácia na década de 1490 conspirou para um levante contra a Igreja e o castelo Friedrich Engels comenta que estavam habituados a fazer suas reuniões durante a noite no solitário Hunger Hill Engels 1977 p 66 319 318 Muraro conclui O fogo da Senhora do Jogo desaparece ao longe enquanto no primeiro plano estão os fogos da revolta e as fogueiras da repressão Só podemos supor que os camponeses se reuniam secretamente à noite ao redor de uma fogueira para se esquentar e conversar e que aqueles que sabiam guardavam sigilo sobre estas reuniões proibidas apelando à velha lenda Se as bruxas tinham segredos esse deve ter sido um deles Muraro 1977 pp 467 A revolta de classe somada à transgressão sexual era um elemento central nas descrições do sabá retratado como uma monstruosa orgia sexual e como uma reunião política subversiva que culminava com a descrição dos crimes que os participantes haviam cometido e com o diabo dando instruções às bruxas para se rebelarem contra seus senhores Também é signifcativo que o pacto entre a bruxa e o diabo era chamado de conjuratio como os pactos que os escravos e trabalhadores em luta faziam frequentemente Dockes 1982 p 222 Tigar e Levy 1977 p 136 e o fato de que na visão dos acusadores o diabo representava uma promessa de amor poder e riquezas pelas quais uma pessoa estava disposta a vender sua alma ou seja infringir todas as leis naturais e sociais A ameaça de canibalismo que era um tema central na morfologia do sabá recorda também segundo Henry Kamen a morfologia das revoltas já que os trabalhadores rebeldes às vezes demonstravam seu desprezo por aqueles que vendiam seu sangue ameaçando comêlos163 Kamen menciona o que ocorreu 163 O historiador italiano Luciano Parinetto sugeriu que a questão do canibalismo pode ter sido importada do Novo Mundo já que o canibalismo e a adoração do demônio se fundiam nos informes sobre os índios realizados pelos conquistadores e seus cúmplices no clero Para fundamentar a tese Parinetto cita o Compendium Maleficarum 1608 de Francesco Maria Guazzo que do seu ponto de vista demostra que os demonólogos na Europa foram influenciados no seu retrato das bruxas como canibais por informes provenientes do Novo Mundo De qualquer forma as bruxas na Europa foram acusadas de sacrificar crianças ao demônio muito antes da Conquista e da colonização da América no povoado de Romans em Dauphiné na França no inverno de 1580 quando os camponeses rebelados contra os dízimos procla maram que em menos de três dias se venderá carne cristã e então durante o carnaval o líder dos rebeldes vestido com pele de urso comeu iguarias que se fzeram passar por carne cristã Kamen 1972 p 334 Le Roy Ladurie 1981 pp 189216 Noutra ocasião em Nápoles no ano de 1585 durante um protesto contra os altos preços do pão os rebeldes mutilaram o corpo do magis trado responsável pelo aumento e colocaram à venda pedaços da sua carne Kamen 1972 p 335 Kamen aponta que comer carne humana simbolizava uma inversão total dos valores sociais indo ao encontro da imagem da bruxa como personifcação da perver são moral que sugerem muitos dos rituais atribuídos à prática da bruxaria a missa celebrada ao contrário e as danças em sentido antihorário Clark 1980 Kamen 1972 De fato a bruxa era um símbolo vivo do mundo ao contrário uma imagem recorrente na literatura da Idade Média vinculada a aspirações milenares de subversão da ordem social A dimensão subversiva e utópica do sabá das bruxas é destacada também de um ângulo diferente por Luciano Parinetto que em Streghe e Potere 1998 Bruxas e poder insistiu na necessidade de realizar uma interpretação moderna desta reunião fazendo uma leitura de seus aspectos transgres sores do ponto de vista do desenvolvimento de uma disciplina capitalista do trabalho Parinetto aponta que a dimensão noturna do sabá era uma violação à regularização capitalista contemporânea do tempo de trabalho bem como um desafo à propriedade privada e à ortodoxia sexual já que as sombras noturnas confundiam as distinções entre os sexos e entre o meu e o seu Parinetto sustenta também que o voo a viagem um elemento importante nas acusações contra as bruxas deve ser interpretado como um ataque à mobilidade dos imigrantes e dos trabalhadores itinerantes um fenômeno novo refetido 321 no medo que pairava contra os vagabundos que tanto preo cupavam as autoridades nesse período Parinetto conclui que considerado em sua especifcidade histórica o sabá noturno aparece como uma demonização da utopia encarnada na rebe lião contra os senhores e como uma ruptura dos papéis sexuais representando também um uso do espaço e do tempo contrário à nova disciplina capitalista do trabalho Nesse sentido há uma continuidade entre a caça às bruxas e a perseguição precedente dos hereges que castigou formas específcas de subversão social com o pretexto de impor uma ortodoxia religiosa De forma signifcativa a caça às bruxas se desenvolveu primeiro nas zonas onde a perseguição aos hereges foi mais intensa no sul da França na Cordilheira do Jura no nor te da Itália Em algumas regiões da Suíça numa fase inicial as bruxas eram chamadas pela expressão herege ou vaudois val denses Monter 1976 p 22 Russell 1972 p 34 e segs164 Além disso os hereges também foram queimados na fogueira como traidores da verdadeira religião e foram acusados de crimes que logo entraram no decálogo da bruxaria sodomia infanticídio adoração aos animais Em certa medida se trata de acusações habituais que a Igreja sempre lançou contra as religiões rivais Mas como vimos a revolução sexual foi um ingrediente essen cial do movimento herético desde os cátaros até os adamitas Os cátaros em particular desafavam a degradada visão que a Igreja tinha das mulheres e defendiam a rejeição ao matrimônio e in clusive à procriação que consideravam uma forma de enganar a alma Também adotaram a religião maniqueísta que de acordo com alguns historiadores foi responsável pela crescente preo cupação da Igreja com a presença do diabo no mundo durante a Baixa Idade Média e pela visão da bruxaria como uma espécie 164 Nos séculos XIV e XV a Inquisição acusou as mulheres os hereges e os judeus de bruxaria A palavra Hexerei bruxaria foi usada pela primeira vez durante os julgamen tos realizados entre 1419 e 1420 em Lucerna e Interlaken Russell 1972 p 203 Hereges valdenses tal como representados no Tractatus contra sectum Valdensium de Johannes Tinctoris estimado em 1460 A caça às bruxas se desenvolveu primeiro nas regiões em que a perseguição aos hereges havia sido mais intensa No primeiro período em algumas áreas da Suíça as bruxas eram conhecidas como waudois 323 322 de contraIgreja por parte da Inquisição Desta maneira não há como duvidar da continuidade entre a heresia e a bruxaria ao menos nesta primeira etapa da caça às bruxas No entanto a caça às bruxas se deu em um contexto histórico distinto que havia sido transformado de forma dramática primeiro pelos traumas e pelos deslocamentos produzidos pela Peste Negra um divisor de águas na história europeia e mais tarde no século XV pela profunda mudança nas relações de classe que trouxe consigo a reorganização capitalista da vida econômica e social Inevitavelmente então até mesmo os elementos de continuida de visíveis por exemplo o banquete noturno promíscuo tinham um signifcado diferente do que tiveram seus antecessores na luta da Igreja contra os hereges A CAÇA ÀS BRUXAS A CAÇA ÀS MULHERES E A ACUMULAÇÃO DO TRABALHO A diferença mais importante entre a heresia e a bruxaria é que esta última era considerada um crime feminino Isso pode ser notado especialmente no momento em que a perseguição alcançou seu ponto máximo no período compreendido entre 1550 e 1650 Em um momento anterior os homens chegaram a representar cerca de 40 dos acusados e um número menor deles continuou sendo processado posteriormente sobretudo vagabundos mendigos trabalhadores itinerantes assim como ciganos e padres de classe baixa Já no século XVI a acusação de adoração ao demônio se tornou um tema comum nas lutas políticas e religiosas quase não houve bispo ou político que no momento de maior exaltação não fosse acusado de praticar bruxaria Protestantes acusavam católicos especialmente o papa de servir ao demônio o próprio Lutero foi acusado da prática de magia como também o foram John Knox na Escócia Jean Bodin na França e muitos outros Os judeus também foram seguidamente acusados de adorar ao demônio e muitas vezes foram retratados com chifres e garras Mas o fato mais notável é que mais de 80 das pessoas julgadas e executadas na Europa nos séculos XVI e XVII pelo crime de bruxaria eram mulheres De fato mais mulheres foram perseguidas por bruxaria neste período do que por qualquer outro crime exceto de forma signifcativa o de infanticídio O fato de que a fgura da bruxa fosse uma mulher também era enfatizado pelos demonólogos que se regozijavam por Deus ter livrado os homens de tamanho fagelo Como fez notar Sigrid Brauner 1995 os argumentos que se usaram para justifcar esse fenômeno foram mudando Enquanto os autores 325 324 do Malleus Malefcarum explicavam que as mulheres tinham mais tendência à bruxaria devido à sua luxúria insaciável Martinho Lutero e os escritores humanistas ressaltaram as debilidades morais e mentais das mulheres como origem dessa perversão De todo modo todos apontavam as mulheres como seres diabólicos Outra diferença entre as perseguições aos hereges e às bru xas é que as acusações de perversão sexual e infanticídio contra as bruxas tinham um papel central e estavam acompanhadas pela virtual demonização das práticas contraceptivas A associação entre contracepção aborto e bruxaria apare ceu pela primeira vez na Bula de Inocêncio VIII 1484 que se queixava de que através de seus encantamentos feitiços conjurações além de outras superstições execráveis e sortilégios atrocidades e ofensas horrendas as bruxas destroem as crias das mulheres Elas impedem a procriação dos homens e a concepção das mulheres daí que nem os maridos podem realizar o ato sexual com suas mulheres nem as mulheres podem realizá lo com seus maridos Kors e Peters 1972 pp 1078 A partir desse momento os crimes reprodutivos ocuparam um lugar de destaque nos julgamentos No século XVII as bruxas foram acusadas de conspirar para destruir a potência geradora de humanos e animais de praticar abortos e de pertencer a uma seita infanticida dedicada a assassinar crianças ou ofertálas ao demônio Também na imaginação popular a bruxa começou a ser associada à imagem de uma velha luxuriosa hostil à vida nova que se alimentava de carne infantil ou usava os corpos das crianças para fazer suas poções mágicas um estereótipo que mais tarde seria popularizado pelos livros infantis Qual foi a razão de tal mudança na trajetória que vai da heresia à bruxaria Em outras palavras por que no transcurso de um século os hereges tornaramse mulheres e por que a transgressão religiosa e social foi redefnida como predomi nantemente um crime reprodutivo Na década de 1920 a antropóloga inglesa Margaret Murray propôs em The WitchCult in Western Europe 1921 O culto à bruxaria na Europa Ocidental uma explicação que foi re centemente utilizada pelas ecofeministas e pelas praticantes da Wicca Murray defendeu que a bruxaria foi uma religião matrifocal na qual a Inquisição centrou sua atenção depois da derrota das heresias estimulada por um novo medo à desviação doutrinal Em outras palavras as mulheres processadas como bruxas pelos demonólogos eram de acordo com esta teoria praticantes de antigos cultos de fertilidade destinados a propi ciar partos e reprodução cultos que existiram nas regiões do Mediterrâneo durante milhares de anos mas aos quais a Igreja se opôs por representarem ritos pagãos além de constituírem uma ameaça ao seu poder165 Entre os fatores mencionados na defesa dessa perspectiva estão a presença de parteiras entre as acusadas o papel que as mulheres tiveram na Idade Média como curandeiras comunitárias e o fato de que até o século XVI o parto fosse considerado um mistério feminino Entretanto essa hipótese não é capaz de explicar a sequência cronológica da caça às bruxas nem de nos dizer por que estes cultos da fertilidade se tornaram tão abomináveis aos olhos das 165 A tese de Murray foi revisitada nos últimos anos graças ao renovado interesse das ecofeministas pela relação entre as mulheres e a natureza nas primeiras sociedades matrifocais Entre as que interpretaram as bruxas como defensoras de uma antiga religião ginocêntrica que idolatrava as potências reprodutivas se encontra Mary Condren Em The Serpent and the Goddess 1989 A serpente e a deusa Condren sustenta que a caça às bruxas foi parte de um longo processo em que o cristianismo deslocou as sacerdotisas da antiga religião afirmando a princípio que estas usavam seus poderes para propósitos malignos e negando depois que tivessem semelhantes poderes Condren 1989 pp 806 Um dos argumentos mais interessantes aos que recorre Condren está relacionado com a conexão entre a perseguição às bruxas e a intenção dos sacerdotes cristãos de se apropriarem dos poderes reprodutivos das mulheres Condren mostra como os sacerdo tes participaram em uma verdadeira concorrência com as mulheres sábias realizando milagres reprodutivos fazendo com que mulheres estéreis ficassem grávidas mudando o sexo de bebês realizando abortos sobrenaturais e por último mas não menos importan te dando abrigo a crianças abandonadas Condren 1989 pp 845 327 326 autoridades a ponto de levar ao extermínio das mulheres que praticavam a antiga religião Uma explicação distinta é a que aponta a proeminência dos crimes reprodutivos nos julgamentos por bruxaria como uma consequência das altas taxas de mortalidade infantil que eram típicas dos séculos XVI e XVII devido ao crescimento da pobreza e da desnutrição As bruxas segundo se sustenta eram acusa das pelo fato de que morriam muitas crianças porque elas mor riam subitamente morriam pouco depois de nascer ou porque eram vulneráveis a uma grande gama de enfermidades Esta explicação entretanto não vai muito longe Ela não dá conta do fato de que as mulheres que eram chamadas de bruxas também eram acusadas de impedir a concepção e não é capaz de situar a caça às bruxas no contexto da política econômica e institucio nal do século XVI Desta maneira perde de vista a signifcativa conexão entre o ataque às bruxas e o desenvolvimento de uma nova preocupação entre os estadistas e economistas europeus com a questão da reprodução e do tamanho da população a rubrica sob a qual se discutia a questão da extensão da força de trabalho naquela época Como vimos anteriormente a questão do trabalho se tornou especialmente urgente no século XVII quando a população na Europa começou a entrar em declínio novamente fazendo surgir o espectro de um colapso demográ fco similar ao que se deu nas colônias americanas nas décadas que se seguiram à Conquista Com este pano de fundo parece plausível que a caça às bruxas tenha sido pelo menos em parte uma tentativa de criminalizar o controle da natalidade e de colocar o corpo feminino o útero a serviço do aumento da população e da acumulação da força de trabalho Essa é uma hipótese o que podemos afrmar com certeza é que a caça às bruxas foi promovida por uma classe política que estava preocupada com a diminuição da população e motivada pela convicção de que uma população numerosa constitui a riqueza de uma nação O fato de que os séculos XVI e XVII marca ram o momento de apogeu do mercantilismo e testemunharam o começo dos registros demográfcos nascimentos mortes e matrimônios do recenseamento e da formalização da própria demografa como a primeira ciência de Estado é uma prova clara da importância estratégica que começava a adquirir o con trole dos movimentos da população para os círculos políticos que instigavam a caça às bruxas Cullen 1975 p 6 e segs166 Também sabemos que muitas bruxas eram parteiras ou mulheres sábias tradicionalmente depositárias do 166 Em meados do século XVI a maioria dos países europeus começou a realizar estatísticas com regularidade Em 1560 o historiador italiano Francesco Guicciardini expressou sua surpresa ao tomar conhecimento de que na Antuérpia e nos Países Baixos as autoridades normalmente não recolhiam dados demográficos exceto nos casos de urgente necessidade Helleneir 1958 pp 12 Durante o século XVII todos os Estados em que houve caça às bruxas promoveram também o crescimento demográfico ibidem p 46 Bruxas assando crianças em Compendium Maleficarum 1608 de Francesco Maria Guazzo 329 328 conhecimento e do controle reprodutivo femininos Midelfort 1972 p 172 O Malleus dedicoulhes um capítulo inteiro no qual afrmava que elas eram piores que quaisquer outras O drama da mortalidade infantil é bem expresso nesta imagem de Hans Holbein o Jovem A dança da morte uma série de 41 desenhos impressa na França em 1538 mulheres já que ajudavam as mães a destruir o fruto do seu ventre uma conspiração facilitada acusavam pela restrição à entrada de homens nas habitações onde as mulheres pariam167 Ao notarem que não havia uma só cabana que não desse guari da a alguma parteira os autores recomendaram que essa arte não deveria ser permitida a nenhuma mulher a menos que demonstrasse de antemão ser uma boa católica Esta reco mendação não passou despercebida Como vimos as parteiras ou eram contratadas para vigiar as mulheres para verifcar por exemplo se não ocultavam uma gravidez ou se tinham flhos fora do casamento ou eram marginalizadas Tanto na França quanto na Inglaterra a partir do fnal do século XVI poucas mu lheres foram autorizadas a praticar a obstetrícia uma atividade que até então havia sido seu mistério inviolável Por volta do início do século XVII começaram a aparecer os primeiros ho mens parteiros e em questão de um século a obstetrícia havia caído quase completamente sob controle estatal Segundo Alice Clark O contínuo processo de substituição das mulheres por homens na profssão é um exemplo do modo como elas foram excluídas de todos os ramos de trabalho especializado conforme as oportunidades de obtenção de um treinamento profssional adequado lhes eram negadas Clark 1968 p 265 167 Monica Green desafiou entretanto a ideia de que na Idade Média existisse uma divisão sexual do trabalho médico tão rígida que os homens estivessem excluídos do cuidado das mulheres e em particular da ginecologia e da obstetrícia Também sustenta que as mulheres estiveram presentes embora em menor quantidade em todos os ramos da medicina não somente como parteiras mas também como médicas boticárias barbei rascirurgiãs Green questiona o argumento comum de que as parteiras foram especial mente perseguidas pelas autoridades e de que é possível estabelecer uma conexão entre a caça às bruxas e a expulsão das mulheres da profissão médica a partir dos séculos XIV e XV Argumenta que as restrições à prática foram resultado de inúmeras tensões sociais na Espanha por exemplo do conflito entre cristãos e muçulmanos e que enquanto as crescentes limitações à prática das mulheres puderam ser documentadas não ocorreu o mesmo com as razões que se deram por trás delas Green admite que as questões impe rantes por trás destas limitações eram de origem moral ou seja estavam relacionadas com considerações sobre o caráter das mulheres Green 1989 p 453 e segs 331 330 nos possibilita evitar as especulações sobre as intenções dos perseguidores e concentrar nossas atenções por outro lado nos efeitos que a caça às bruxas provocou sobre a posição social das mulheres Desse ponto de vista não pode haver dúvida de que a caça às bruxas destruiu os métodos que as mulheres utilizavam para controlar a procriação posto que eles eram denunciados como instrumentos diabólicos e institucionalizou o controle do Estado sobre o corpo feminino o principal prérequisito para sua subordinação à reprodução da força de trabalho Todavia a bruxa não era só a parteira a mulher que evitava a maternidade ou a mendiga que a duras penas ganhava a vida roubando um pouco de lenha ou de manteiga de seus vizinhos Contudo interpretar o declínio social da parteira como um caso de desprofssionalização feminina deixa escapar sua importância fundamental Há provas convincentes de que na verdade as parteiras foram marginalizadas porque não eram vistas como confáveis e porque sua exclusão da profssão aca bou com o controle das mulheres sobre a reprodução168 Do mesmo modo que os cercamentos expropriaram as terras comunais do campesinato a caça às bruxas expropriou os corpos das mulheres os quais foram assim liberados de qualquer obstáculo que lhes impedisse de funcionar como máquinas para produzir mão de obra A ameaça da fogueira ergueu barreiras mais formidáveis ao redor dos corpos das mulheres do que as cercas levantadas nas terras comunais Podemos imaginar o efeito que teve nas mulheres o fato de ver suas vizinhas suas amigas e suas parentes ardendo na fogueira enquanto percebiam que qualquer iniciativa contra ceptiva de sua parte poderia ser interpretada como produto de uma perversão demoníaca169 Procurar entender o que as mulheres caçadas como bruxas e as demais mulheres de suas comunidades deviam pensar sentir e decidir a partir desse horrendo ataque contras elas em outras palavras lançar um olhar à perseguição vindo de dentro como Anne L Barstow fez no seu Witchcraze 1994 Loucura das bruxas também 168 J Gelis escreve que o Estado e a Igreja desconfiaram tradicionalmente desta mulher cuja prática era frequentemente secreta e impregnada de magia quando não de bruxaria e que podia sem dúvida contar com o apoio da comunidade rural Agrega que foi necessário sobretudo quebrar a cumplicidade verdadeira ou imaginada das sagefemmes em crimes como o aborto o infanticídio e o abandono de crianças Gelis 1977 p 927 e segs Na França o primeiro edito que regulava a atividade das sage femmes foi promulgado em Estrasburgo no final do século XVI No final do século XVII as sagefemmes estavam completamente sob o controle do Estado e eram usadas como força reacionária em campanhas de reforma moral Gelis 1977 169 Isso pode explicar por que os contraceptivos que foram amplamente usados na Idade Média desapareceram no século XVII sobrevivendo somente nos ambientes da prostituição Quando reapareceram já estavam em mãos masculinas de tal maneira que não se permitiu às mulheres o seu uso exceto com permissão dos homens De fato durante muito tempo o único contraceptivo oferecido pela medicina burguesa foi o preservativo A camisinha começou a aparecer na Inglaterra no século XVIII Uma de suas primeiras menções aparece no diário de James Boswell citado por Helleiner 1958 p 94 Bruxas oferecem crianças ao diabo Xilogravura de um folheto sobre o processo de Agnes Sampson 1591 333 332 Também era a mulher libertina e promíscua a prostituta ou a adúltera e em geral a mulher que praticava sua sexualidade fora dos vínculos do casamento e da procriação Por isso nos julgamentos por bruxaria a má reputação era prova de culpa A bruxa era também a mulher rebelde que respondia discutia insultava e não chorava sob tortura Aqui a expressão rebel de não se refere necessariamente a nenhuma atividade subver siva específca em que possa estar envolvida uma mulher Pelo contrário descreve a personalidade feminina que se havia desenvolvido especialmente entre o campesinato no contexto da luta contra o poder feudal quando as mulheres atuaram à Três mulheres são queimadas vivas no mercado de Guernsey Inglaterra Gravura anônima do século XVI frente dos movimentos heréticos muitas vezes organizadas em associações femininas apresentando um desafo crescente à autoridade masculina e à Igreja As descrições das bruxas nos lembram as mulheres tal como eram representadas nos autos de moralidade medievais e nos fabliaux prontas para tomar a ini ciativa tão agressivas e vigorosas quanto os homens vestindo roupas masculinas ou montando com orgulho nas costas dos seus maridos segurando um chicote Sem dúvida entre as acusadas havia mulheres suspeitas de crimes específcos Uma foi acusada de envenenar o marido ou tra de causar a morte do seu empregador outra de ter prostituído a flha Le Roy Ladurie 1974 pp 2034 Porém não só as mulhe res delinquentes eram levadas a juízo mas as mulheres enquanto mulheres em particular aquelas das classes inferiores as quais geravam tanto medo que nesse caso a relação entre educação e punição foi virada de pontacabeça Devemos disseminar o terror entre algumas castigando muitas declarou Jean Bodin E de fato em alguns vilarejos poucas foram poupadas Além disso o sadismo sexual demonstrado durante as tor turas às quais eram submetidas as acusadas revela uma miso ginia sem paralelo na história e não pode ser justifcado a partir de nenhum crime específco De acordo com o procedimento padrão as acusadas eram despidas e depiladas completamente se dizia que o demônio se escondia entre seus cabelos depois eram furadas com longas agulhas por todo o corpo inclusive na vagina em busca do sinal com o qual o diabo supostamente marcava suas criaturas tal como os patrões na Inglaterra faziam com os escravos fugitivos Muitas vezes elas eram estu pradas investigavase se eram ou não virgens um sinal da sua inocência e se não confessavam eram submetidas a ordálias ainda mais atrozes seus membros eram arrancados sentavam nas em cadeiras de ferro embaixo das quais se acendia fogo seus ossos eram esmagados E quando eram enforcadas ou 335 334 queimadas tomavase cuidado para que a lição a ser extraída de sua pena não fosse ignorada A execução era um importante evento público que todos os membros da comunidade deviam presenciar inclusive os flhos das bruxas e especialmente suas flhas que em alguns casos eram açoitadas em frente à foguei ra na qual podiam ver a mãe ardendo viva A caça às bruxas foi portanto uma guerra contra as mu lheres foi uma tentativa coordenada de degradálas de demo nizálas e de destruir seu poder social Ao mesmo tempo foi precisamente nas câmaras de tortura e nas fogueiras onde se forjaram os ideais burgueses de feminilidade e domesticidade Também nesse caso a caça às bruxas amplifcou as ten dências sociais de então De fato existe uma continuidade inconfundível entre as práticas que foram alvo da caça às bruxas e aquelas que estavam proibidas pela nova legislação introduzida na mesma época com a fnalidade de regular a vida familiar e as relações de gênero e de propriedade De um extremo ao outro da Europa Ocidental à medida que a caça às bruxas avançava aprovavamse leis que castigavam as adúl teras com a morte na Inglaterra e na Escócia com a fogueira como no caso de crime de lesamajestade e a prostituição era colocada na ilegalidade assim como os nascimentos fora do casamento ao passo que o infanticídio foi transformado em crime capital170 Ao mesmo tempo as amizades femininas 170 Em 1556 Enrique II sancionou na França uma lei punindo como assassina qualquer mulher que ocultasse sua gravidez e cujo filho nascesse morto Uma lei similar foi sancionada na Escócia em 1563 Até o século XVIII o infanticídio foi castigado na Eu ropa com a pena de morte Na Inglaterra durante o Protetorado foi introduzida a pena de morte por adultério Ao ataque aos direitos reprodutivos da mulher e à introdução de no vas leis que sancionavam a subordinação da esposa ao marido no âmbito familiar devese agregar a criminalização da prostituição a partir de meados do século XVI Como vimos no Capítulo 2 as prostitutas eram submetidas a castigos atrozes tais como a acabussade Na Inglaterra eram marcadas na testa com ferros quentes de maneira semelhante à marca do diabo e depois eram chicoteadas e tinham seus cabelos raspados como bruxas o ca belo era visto como o lugar favorito do diabo Na Alemanha a prostituta podia ser afoga da queimada ou enterrada viva Em algumas ocasiões lhe cortavam o nariz uma prática de origem árabe usada para castigar crimes de honra e infligida também às mulheres acusadas de adultério Assim como a bruxa a prostituta era supostamente reconhecida pelo seu mau olhado Supunhase que a transgressão sexual era diabólica e dava às tornaramse objeto de suspeita denunciadas no púlpito como uma subversão da aliança entre marido e mulher da mesma maneira que as relações entre mulheres foram demonizadas pelos acusadores das bruxas que as forçavam a delatar umas às outras como cúmplices do crime Foi também neste período que como vimos a palavra gossip fofoca que na Idade Média signifcava amiga mudou de signifcado adquirindo uma conotação depreciativa mais um sinal do grau a que foram solapados o poder das mulheres e os laços comunais Há também no plano ideológico uma estreita correspon dência entre a imagem degradada da mulher forjada pelos demonólogos e a imagem da feminilidade construída pelos debates da época sobre a natureza dos sexos171 que canoni zava uma mulher estereotipada fraca do corpo e da mente e biologicamente inclinada ao mal o que efetivamente servia para justifcar o controle masculino sobre as mulheres e a nova ordem patriarcal mulheres poderes mágicos Sobre a relação entre o erotismo e a magia no Renascimento ver P Couliano 1987 171 O debate sobre a natureza dos sexos começou na Baixa Idade Média e foi retomado no século XVII 337 336 A CAÇA ÀS BRUXAS E A SUPREMACIA MASCULINA A DOMESTICAÇÃO DAS MULHERES A política sexual da caça às bruxas é revelada pela relação entre a bruxa e o diabo que constitui uma das novidades in troduzidas pelos julgamentos dos séculos XVI e XVII A Grande Caça às Bruxas marcou uma mudança na imagem do diabo em comparação àquela que podia ser encontrada nas hagiografas medievais ou nos livros dos magos do Renascimento No ima ginário anterior o diabo era retratado como um ser maligno mas com pouco poder em geral bastava borrifar água benta e dizer algumas palavras santas para derrotar suas tramas Sua imagem era a de um malfeitor fracassado que longe de inspirar terror possuía algumas virtudes O diabo medieval era um especialista em lógica competente em assuntos legais às vezes representado atuando na defesa de seu caso perante um tribu nal Seligman 1948 pp 1518172 Também era um trabalhador qualifcado que podia ser usado para cavar minas ou construir muralhas de cidades ainda que fosse rotineiramente enganado ao chegar o momento de receber sua recompensa A visão re nascentista da relação entre o diabo e o mago também retratava sempre o diabo como um ser subordinado chamado ao dever querendo ou não como um criado e feito para agir de acordo com a vontade do seu senhor A caça às bruxas inverteu a relação de poder entre o diabo e a bruxa Agora a mulher era a criada a escrava o súcubo 172 Tu non pensavi chio fossi Você não imaginava que minha especialidade fosse a lógica ri o Diabo no Inferno de Dante enquanto arrebatava a alma de Bonifácio VIII que sutilmente pensou escapar do fogo eterno arrependendose no exato momento de cometer seus crimes A Divina Comédia Inferno canto XXVII verso 123 de corpo e alma enquanto o diabo era ao mesmo tempo seu dono e senhor cafetão e marido Por exemplo era o diabo que se dirigia à suposta bruxa Ela raramente o fazia aparecer Larner 1983 p 148 Depois de aparecer para ela o diabo pedialhe que se tornasse sua criada e o que vinha a seguir era um exemplo clássico da relação senhorescravo maridomu lher Ele imprimialhe sua marca tinha relações sexuais com ela e em alguns casos inclusive modifcava seu nome Larner 1983 p 148 Além disso em uma clara previsão do destino matrimonial das mulheres a caça às bruxas introduzia um só diabo em vez da multidão de diabos que pode ser encontrada no mundo medieval e renascentista e um diabo masculino por sinal em contraste com as fguras femininas Diana Here a Senhora do Jogo cujos cultos estavam presentes entre as mulheres da Idade Média tanto nas regiões mediterrâneas quanto nas teutônicas O diabo leva a alma de uma mulher que o servia Xilogravura de Olaus Magnus Historia de Gentibus Septentrionalibus Roma 1555 339 338 O quão preocupados estavam os caçadores de bruxas com a afrmação da supremacia masculina pode ser constatado pelo fato de que até mesmo quando se rebelavam contra as leis humanas e divinas as mulheres tinham que ser retratadas como subservientes a um homem e o ponto culminante de sua rebelião o famoso pacto com o diabo devia ser represen tado como um contrato de casamento pervertido A analogia matrimonial era levada a tal ponto que as bruxas chegavam a confessar que elas não se atreviam a desobedecer o diabo ou ainda mais curioso que elas não tinham nenhum prazer em co pular com ele uma contradição no que diz respeito à ideologia da caça às bruxas para a qual a bruxaria era consequência da luxúria insaciável das mulheres A caça às bruxas não só santifcava a supremacia mascu lina como também induzia os homens a temer as mulheres e até mesmo a vêlas como destruidoras do sexo masculino Segundo pregavam os autores do Malleus Malefcarum as mu lheres eram lindas de se ver mas contaminavam ao serem to cadas elas atraem os homens mas só para fragilizálos fazem de tudo para lhes satisfazer mas o prazer que dão é mais amar go que a morte pois seus vícios custam aos homens a perda de suas almas e talvez seus órgãos sexuais Kors e Peters 1972 p 1145 Supostamente uma bruxa podia castrar os homens ou deixálos impotentes seja por meio do congelamento de suas forças geradoras ou fazendo com que um pênis se levan tasse e caísse segundo sua vontade173 Algumas roubavam os pênis dos homens escondendoos em grandes quantidades em ninhos de aves ou em caixas até que sob pressão eram 173 A sabotagem do ato conjugal era um dos principais temas nos processos judi ciais relacionados ao matrimônio e à separação especialmente na França Como observa Robert Mandrou os homens temiam tanto se tornarem impotentes pelas mulheres que os padres dos povoados proibiam com frequência mulheres suspeitas de serem especialistas em atar nós um suposto ardil para causar a impotência masculina de assistirem aos casamentos Mandrou 1968 pp 812 391 e segs Le Roy Ladurie 1974 pp 2045 Lecky 1886 p 100 forçadas a devolvêlos aos seus donos174 Mas quem eram essas bruxas que castravam os homens e os deixavam impotentes Virtualmente todas as mulheres Num vi larejo ou cidade pequena de uns poucos milhares de habitantes onde durante o momento de apogeu da caça às bruxas dezenas de mulheres foram queimadas em poucos anos ou até mesmo em poucas semanas nenhum homem podia sentirse a salvo ou estar seguro de que não vivia com uma bruxa Muitos deviam fcar aterrorizados ao ouvir que à noite algumas mulheres dei xavam seu leito matrimonial para viajar ao sabá enganando seus maridos que dormiam colocando uma estaca perto deles ou ao escutar que as mulheres tinham o poder de fazer com que seus pênis desaparecessem como a bruxa mencionada no Malleus que armazenou dezenas deles em uma árvore Apesar das tentativas individuais de flhos maridos ou pais de salvarem suas parentes mulheres da fogueira não há registro salvo uma exceção de qualquer organização masculina que se opusesse à perseguição o que sugere que a propaganda teve êxito em separar as mulheres dos homens A exceção é o caso dos pescadores de uma região basca onde o inquisidor francês Pierre Lancre estava conduzindo julgamentos em massa que le varam à queima de aproximadamente seiscentas mulheres Mark Kurlansky relata que os pescadores estiveram ausentes pois estavam ocupados com a temporada anual do bacalhau Porém quando os homens da frota de bacalhau de StJeandeLuz uma das maiores do País Basco ouviram rumores de que suas esposas mães e flhas estavam sendo despidas apunhaladas e que muitas delas já haviam sido executadas a campanha do bacalhau de 1609 terminou dois meses antes do normal Os pescadores regressaram com porretes 174 Este relato aparece em várias demonologias Geralmente termina quando o homem descobre o dano que lhe foi causado e obriga a bruxa a lhe devolver seu pênis Ela o acompanha até o alto de uma árvore onde tem muitos pênis escondidos em um ninho o homem escolhe um deles mas a bruxa se opõe Não esse é o do bispo 341 340 nas mãos e libertaram um comboio de bruxas que estava sendo levado ao lugar da queima Esta resistência popular foi sufciente para deter os julgamentos Kurlansky 2001 p 102 A intervenção dos pescadores bascos contra a perseguição de suas parentes foi um acontecimento único Nenhum outro grupo ou organização se levantou em defesa das bruxas Sabemos por outro lado que alguns homens fzeram negócios voltados à denúncia de mulheres designandose a si mesmos como caça dores de bruxas viajando de vilarejo em vilarejo ameaçando delatar as mulheres a menos que elas pagassem Outros homens aproveitaram o clima de suspeita que rondava as mulheres para se livrar de suas esposas e amantes indesejadas ou para debilitar a vingança das mulheres a que tinham estuprado ou seduzido Sem dúvida a inércia dos homens diante das atrocidades a que foram submetidas as mulheres foi frequentemente motivada pelo medo de serem implicados nas acusações já que a maioria dos homens que foram julgados por tais crimes eram parentes de mulheres suspeitas ou condenadas por bruxaria Contudo os anos de propaganda e terror certamente plantaram entre os homens as sementes de uma profunda alienação psicológica com relação às mulheres o que quebrou a solidariedade de classe e minou seu próprio poder coletivo Podemos concordar com Marvin Harris quanto ao seguinte A caça às bruxas dispersou e fragmentou todas as energias de protesto latentes Fez com que todos se sentissem impotentes e dependentes dos grupos sociais dominantes e além disso deu uma válvula de escape local às frustrações Por esta razão impediu que os pobres mais que qualquer outro grupo social enfrentassem as autoridades eclesiásticas e a ordem secular ou reivindicassem a redistribuição da riqueza e a igualdade social Harris 1974 pp 23940 Assim como atualmente ao reprimir as mulheres as classes dominantes reprimiam de forma ainda mais efcaz o proletariado como um todo Instigavam os homens que foram expropriados empobrecidos e criminalizados a culpar a bruxa castradora pela sua desgraça e a enxergar o poder que as mulheres tinham ganhado contra as autoridades como um poder que as mulheres utilizariam contra eles Todos os medos profundamente arraigados que os homens nutriam em relação às mulheres principalmente devido à propaganda misógina da Igreja foram mobilizados nesse contexto As mulheres não só foram acusadas de tornar os homens impotentes mas também sua sexualidade foi transformada num objeto de temor uma força perigosa demoníaca pois se ensinava aos homens que uma bruxa podia escravizálos e acorrentálos segundo sua vontade Kors e Peters 1972 pp 1302 Uma acusação recorrente nos julgamentos por bruxaria era de que as bruxas estavam envolvidas em práticas sexuais dege neradas essencialmente na cópula com o diabo e na participação em orgias que supostamente aconteciam no sabá Mas as bruxas também eram acusadas de gerar uma excessiva paixão erótica nos homens de modo que era fácil para aqueles que fossem pegos fazendo algo ilícito dizer que haviam sido enfeitiçados ou para uma família que quisesse acabar com a relação do flho com uma mulher que desaprovavam acusála de ser bruxa De acordo com o Malleus Existem sete métodos por meio dos quais as bruxas infectam o ato venéreo e a concepção do útero primeiro levando as mentes dos homens a uma paixão desenfreada segundo obstruindo sua força geradora terceiro removendo os membros destinados a esse ato quarto transformando os homens em animais por meio de suas artes mágicas quinto destruindo a força geradora das mulheres sexto provocando o aborto sétimo oferecendo as crianças ao diabo 1971 p 47 343 O fato de as bruxas terem sido acusadas simultaneamente de deixar os homens impotentes e de despertar neles paixões sexuais excessivas é uma contradição apenas aparente No novo código patriarcal que se desenvolvia de modo concomitante à caça às bruxas a impotência física era a contrapartida da impotência moral era a manifestação física da erosão da auto ridade masculina sobre as mulheres já que do ponto de vista funcional não havia nenhuma diferença entre um homem castrado e um inutilmente apaixonado Os demonólogos olha vam ambos os estados com suspeita claramente convencidos de que seria impossível colocar em prática o tipo de família exigida pelo senso comum da burguesia da época inspirada no Estado com o marido como rei e a mulher subordinada à sua vontade devotada à administração do lar de maneira abnegada Schochet 1975 se as mulheres com seu glamour e seus feiti ços de amor pudessem exercer tanto poder a ponto de tornar os homens os súcubos de seus desejos A paixão sexual destruía não somente a autoridade dos ho mens sobre as mulheres como lamentava Montaigne o homem pode conservar seu decoro em tudo exceto no ato sexual Easlea 1980 p 243 mas também a capacidade de um homem de go vernar a si mesmo fazendoo perder esta preciosa cabeça onde a flosofa cartesiana situaria a fonte da razão Por isso uma mulher sexualmente ativa constituía um perigo público uma ameaça à ordem social já que subvertia o sentido de responsabilidade dos homens e sua capacidade de trabalho e de autocontrole Para que as mulheres não arruinassem moralmente ou o que era mais importante fnanceiramente os homens a sexualidade feminina tinha que ser exorcizada Isso se alcançava por meio da tortura da morte na fogueira assim como pelos interrogatórios meticulosos a que as bruxas foram submetidas e que eram uma mistura de exorcismo sexual e estupro psicológico175 175 Carolyn Merchant 1980 p 168 afirma que os interrogatórios e as torturas O diabo seduz uma mulher a fim de fazer um pacto em Ulrich Molitor De Lamiies et Pythonicis Mulieribus 1489 Sobre mulheres feiticeiras e adivinhas 345 344 Para as mulheres então os séculos XVI e XVII inaugu raram de fato uma era de repressão sexual A censura e a proibição chegaram a defnir efetivamente sua relação com a sexualidade Pensando em Michel Foucault devemos insistir também em que não foi a pastoral católica nem a confssão o que melhor demonstrou como o Poder no começo da Era Moderna tornou obrigatório que as pessoas falassem de sexo Foucault 1978 p 142 Em nenhum outro lugar a explosão discursiva sobre o sexo que Foucault detectou nessa época foi exibida com maior contundência do que nas câmaras de tortura da caça às bruxas Mas isso não teve nada a ver com a excitação mútua que Foucault imaginava fuindo entre a mulher e seu confessor Ultrapassando de longe qualquer padre de vilarejo os inquisidores forçaram as bruxas a revelar suas aventuras sexuais em cada detalhe sem se dissuadir pelo fato de que muitas vezes se tratava de mulheres idosas e de que suas façanhas sexuais datavam de muitas décadas atrás De uma maneira quase ritual forçavam as supostas bruxas a explicar de que maneira haviam sido possuídas pelo demônio na sua juventude o que sentiram durante a penetra ção que pensamentos impuros alimentaram Mas o cenário em que se desdobrou esse discurso peculiar sobre sexo foi a câmara de torturas onde as perguntas eram feitas entre aplicações de strappado176 a mulheres enlouquecidas pela dor De nenhum modo podemos presumir que a orgia de palavras às bruxas proporcionaram o modelo para o método da Nova Ciência tal como definida por Francis Bacon Boa parte do imaginário usado por Bacon para delinear seus objetivos e métodos científicos deriva dos julgamentos Na medida em que trata a natureza como uma mulher a ser torturada por meio de invenções mecânicas seu imaginário está fortemente sugestionado pelos interrogatórios durante os julgamentos por bruxaria e pelos aparatos mecânicos usados para torturar bruxas Em uma passagem pertinente Bacon afirmou que o método pelo qual os segredos da natureza poderiam ser descobertos consistia em investigar os segredos da bruxaria pela Inquisição 176 O strappado era uma forma de tortura pela qual as mãos da vítima eram amar radas em suas costas e então suspensas no ar por meio de uma corda ligada aos pulsos que quase sempre causava deslocamento dos braços Pesos podiam ser colocados junto ao corpo para intensificar o efeito e aumentar a dor NTP que as mulheres torturadas dessa maneira estavam forçadas a dizer incitava seu prazer ou reorientava por sublimação linguística seu desejo No caso da caça às bruxas que Foucault ignora de forma surpreendente em sua História da sexualidade Foucault 1978 vol I o discurso interminá vel sobre sexo não foi desencadeado como uma alternativa à repressão mas a serviço da repressão da censura da rejeição Certamente podemos dizer que a linguagem da caça às bru xas produziu a mulher como uma espécie diferente um ser sui generis mais carnal e pervertido por natureza Também podemos dizer que a produção da mulher pervertida foi o primeiro passo para a transformação da vis erotica feminina em vis lavorativa isto é um primeiro passo na transfor mação da sexualidade feminina em trabalho Mas devemos reconhecer o caráter destrutivo deste processo que também demonstra os limites de uma história da sexualidade gené rica como a proposta por Foucault que trata a sexualidade a partir da perspectiva de um sujeito indiferenciado de gênero neutro e como uma atividade que supostamente tem as mes mas consequências para homens e mulheres 347 346 A CAÇA ÀS BRUXAS E A RACIONALIZAÇÃO CAPITALISTA DA SEXUALIDADE A caça às bruxas não resultou em novas capacidades sexuais nem em prazeres sublimados para as mulheres Foi pelo con trário o primeiro passo de um longo caminho ao sexo limpo entre lençóis limpos e à transformação da atividade sexual feminina em um trabalho a serviço dos homens e da procriação Neste processo foi fundamental a proibição por serem antis sociais e demoníacas de todas as formas não produtivas não procriativas da sexualidade feminina A repulsa que a sexualidade não procriativa estava come çando a inspirar é bem evidenciada pelo mito da velha bruxa voando na sua vassoura que assim como os animais em que ela também montava cabras éguas cachorros era a projeção de um pênis estendido símbolo da luxúria desenfreada Este imaginário retrata uma nova disciplina sexual que negava à velha feia que já não era fértil o direito a uma vida sexual Na criação desse estereótipo os demonólogos se ajustavam à sensibilidade moral de sua época tal como revelam as palavras de dois contemporâneos ilustres da caça às bruxas Acaso há algo mais odioso que ver uma velha lasciva O que pode ser mais absurdo E entretanto é tão comum É pior nas mulheres que nos homens Ela enquanto velha megera e bruxa não pode ver nem ouvir não é mais que uma carcaça ela uiva e deve ter um garanhão Burton 1977 p 56 É ainda mais divertido ver mulheres velhas que quase já não se sustentam em pé pelo peso dos anos e que parecem cadáveres que ressuscitaram saírem por aí dizendo que a vida é boa ainda excitadas procurando por um parceiro sempre espalhando maquiagem no rosto e depilando os pelos pubianos ainda exibem seus peitos moles e murchos e tentam provocar com trêmulos cochichos apetites lânguidos enquanto bebem dançam em meio a garotas e escrevem cartas de amor Erasmo de Rotterdam 1941 p 42 Essa era uma imagem muito distante daquela do mundo de Chaucer em que a Mulher de Bath depois de queimar cinco maridos ainda podia declarar abertamente Bemvindo o sexto Não pretendo ser casta de forma alguma Quando um de meus maridos se vai outro cristão deve ser responsável por mim Chaucer 1977 p 277 No mundo de Chaucer a vitalida de sexual da mulher velha era uma afrmação da vida contra a morte na iconografa da caça às bruxas a velhice impede a pos sibilidade de uma vida sexual para as mulheres a contamina transforma a atividade sexual em uma ferramenta da morte em vez de um meio de regeneração Independentemente da idade das mulheres julgadas por bruxaria mas levando em consideração sua classe social há uma constante identifcação da sexualidade feminina com a bestialidade Esse fato era sugerido pela cópula com o deusca bra uma das representações do demônio pelo infame beijo sub cauda e pela acusação de que as bruxas guardavam uma série de animais diabinhos ou familiares que as ajudavam nos seus crimes e com os quais mantinham uma relação parti cularmente íntima Eram gatos cachorros lebres sapos dos quais a bruxa cuidava supostamente mamando neles por meio de tetas especiais Havia também outros animais que cumpriam um papel na vida das bruxas como instrumentos do demônio cabras e éguas noturnas177 levavamnas voando ao sabá sapos forneciam ve 177 No texto original em inglês se lê goats and nightmares Night significa noite e mare se traduz como égua Nightmare porém significa pesadelo 349 neno para suas poções A presença dos animais no mundo das bruxas era tamanha que devemos presumir que eles também estavam sendo julgados178 O casamento entre a bruxa e seus familiares era talvez uma referência às práticas bestiais que caracterizavam a vida sexual dos camponeses na Europa e que continuaram sendo um delito capital muito tempo depois do fnal da caça às bruxas Numa época em que se começava a adorar a razão e a dissociar o humano do corpóreo os animais também foram submetidos a uma drástica desvalorização reduzidos a sim ples bestas ao Outro defnitivo símbolos perenes do pior dos instintos humanos Nenhum crime portanto seria capaz de inspirar mais aversão do que a cópula com uma besta um verdadeiro ataque aos fundamentos ontológicos de uma natu reza humana cada vez mais identifcada com seus aspectos ima teriais No entanto o excesso de presenças animais na vida das bruxas sugere também que as mulheres se encontravam numa encruzilhada escorregadia entre os homens e os animais e que não somente a sexualidade feminina mas também a se xualidade como tal se assemelhava à animalidade Para fechar esta equação as bruxas foram frequentemente acusadas de mudar de forma e tomar a aparência animal sendo que o fami liar normalmente mais citado era o sapo que simbolizando a vagina sintetizava a sexualidade a bestialidade e o mal A caça às bruxas não só condenou a sexualidade feminina como fonte de todo mal mas também representou o principal veículo para levar a cabo uma ampla reestruturação da vida sexual que ajustada à nova disciplina capitalista do trabalho criminalizava qualquer atividade sexual que ameaçasse a pro criação e a transmissão da propriedade dentro da família ou que Não se trata só de um jogo de palavras Em inglês a fêmea do cavalo forma parte da etimologia da palavra pesadelo NTE 178 Sobre o ataque contra animais ver o Capítulo 2 Hans Burkmair Contenda entre uma bruxa e um inquisidor anterior a 1514 Muitas mulheres acusadas e processadas por bruxaria eram velhas e pobres e dependiam com frequência da caridade pública para sobreviver A bruxaria segundo dizem é a arma daqueles que não têm poder Mas as mulheres mais velhas eram também mais propensas que qualquer outra pessoa a resistir à destruição das relações comunais causada pela difusão das relações capitalistas Elas encarnavam o saber e a memória da comunidade A caça às bruxas inverteu a imagem da mulher velha tradicionalmente considerada sábia ela se tornou um símbolo de esterilidade e de hostilidade à vida 351 350 diminuísse o tempo e a energia disponíveis para o trabalho Os julgamentos por bruxaria fornecem uma lista informati va das formas de sexualidade que estavam proibidas uma vez que eram não produtivas a homossexualidade o sexo entre jovens e velhos179 o sexo entre pessoas de classes diferentes o 179 Nesse contexto é significativo que as bruxas tenham sido acusadas com fre quência por crianças Norman Cohn interpretou o fenômeno como uma revolta dos jovens contra os velhos e em particular contra a autoridade dos pais N Cohn 1975 Trevor Roper 2000 Mas é necessário considerar outros fatores Em primeiro lugar é verossímil que o clima de medo criado pela caça às bruxas ao longo dos anos fosse o motivo para que houvesse uma grande presença de crianças entre os acusadores o que começou a se materializar no século XVII Também é importante destacar que as acusadas de ser bruxas eram fundamentalmente mulheres proletárias enquanto as crianças que as acusavam eram frequentemente os filhos de seus patrões Assim é possível supor que as crianças foram manipuladas por seus pais para que formulassem acusações que eles mesmos eram reticentes em fazer como foi sem dúvida o que aconteceu no caso do julgamento das bruxas de Salem Também se deve considerar que nos séculos XVI e XVII havia uma crescente preocupação entre os endinheirados pela intimidade física entre seus filhos e seus serventes sobretudo suas babás que começava a aparecer como uma fonte de coito anal o coito por trás acreditavase que levava a relações estéreis a nudez e as danças Também estava proscrita a sexualidade pública e coletiva que prevaleceu durante a Idade Média como ocorria nos festivais de primavera de origem pagã que no século XVI ainda se celebravam em toda Europa Compare neste contexto a descrição que faz P Stubbes em Anatomy of Abuse 1583 Anatomia do abuso sobre a celebração do Dia do Trabalhador na Inglaterra com os típicos relatos do sabá que acusavam as bruxas de dançar nessas reuniões pulan do sem parar ao som dos pífaros e das fautas completamente entregues ao sexo e à folia coletiva Quando chega maio em cada paróquia cidade e vilarejo se reúnem tanto homens quanto mulheres e crianças velhos e jovens Eles correm para o mato e para os bosques colinas e montanhas onde passam toda a noite em passatempos prazerosos e pela manhã voltam trazendo arcos de bétulas e ramos de árvores A principal joia que levam para casa é o mastro enfeitado que carregam com grande veneração Logo começam a comer e celebrar a pular e dançar ao seu redor como faziam os pagãos ao adorar seus ídolos Partridge III É possível fazer uma comparação análoga entre as des crições do sabá e as descrições que fzeram as autoridades presbiterianas escocesas das peregrinações para poços e outros locais sagrados encorajadas pela Igreja Católica mas contra as quais os presbiterianos se opuseram por considerá las congregações do diabo e ocasiões para práticas lascivas Como tendência geral deste período qualquer reunião potencialmente transgressora encontros de camponeses indisciplina A familiaridade que havia existido entre os patrões e seus serventes durante a Idade Média desapareceu com a ascensão da burguesia que formalmente instituiu relações mais igualitárias entre os patrões e seus subordinados por exemplo ao nivelar os estilos de vestir mas que na realidade aumentou a distância física e psicológica entre eles No lar burguês o patrão já não se despia na frente dos seus serventes nem dormia na mesma habitação que eles Uma bruxa cavalga um bode pelo céu causando uma chuva de fogo Xilogravura de Francesco Maria Guazzo em Compendium Maleficarum 1610 Ver nota de rodapé 187 353 352 que gastou resmas de papel discutindo tais alucinações deba tendo por exemplo sobre o papel dos súcubos e dos íncubos ou sobre a questão de a bruxa poder ou não ser fecundada pelo dia bo uma pergunta que aparentemente ainda era de interesse para os intelectuais no século XVIII Couliano 1987 pp 14851 Hoje estas grotescas investigações são ocultadas das histórias da civilização ocidental ou simplesmente esquecidas embora tenham tramado uma rede que condenou centenas de milhares de mulheres à morte Dessa forma o papel da caça às bruxas no desenvolvimento acampamentos rebeldes festivais e bailes foi descrita pelas autoridades como um possível sabá180 Também é signifcativo que em algumas zonas do norte de Itália a expressão ir ao baile ou ir ao jogo al zogo era usada para se referir à ida ao sabá sobretudo quando se considera a campanha que a Igreja e o Estado estavam conduzindo contra tais passatempos Muraro 1977 p 109 e segs Hill 1964 p 183 segs Tal como aponta Ginzburg uma vez eliminados do sabá os mitos e adornos fantásticos descobrimos uma reunião de gente acompanhada por danças e promiscuidade sexual Ginzburg 1966 p 189 e devemos acrescentar de muita co mida e bebida certamente uma fantasia numa época em que a fome era uma experiência comum na Europa Quão revelador da natureza das relações de classe na época da caça às bruxas é o fato de que os sonhos com cordeiro assado e cerveja pu dessem ser reprovados como se fossem sinais de convivência diabólica por uma burguesia bem alimentada e acostumada a comer carne Entretanto seguindo um caminho muito trilha do Ginzburg qualifca as orgias associadas ao sabá como alu cinações de mulheres pobres que lhes serviam de recompensa por uma existência esquálida ibidem p 190 Desta maneira ele culpa as vítimas por seu fracasso e ignora também que não foram as mulheres acusadas de bruxaria mas a elite europeia 180 Para um exemplo de sabá verossímil em que elementos sexuais se combinam com temas que evocam a rebelião de classe ver a descrição de Julian Cornwall sobre o acampamento rebelde que os camponeses estabeleceram durante a revolta de Norfolk de 1549 O acampamento causou bastante escândalo entre a alta burguesia que aparente mente o considerou um verdadeiro sabá A conduta dos rebeldes foi deturpada em todos seus aspectos Se dizia que o acampamento havia se convertido na Meca de todos os libertinos do país Bandas de rebeldes buscavam suprimentos e dinheiro Foi dito que três mil bois e vinte mil ovelhas sem contar porcos aves de curral cervos cisnes e milhares de celamins de milho foram trazidos e consumidos em poucos dias Homens cuja dieta cotidiana era com frequência escassa e monótona se rebelaram diante da abundância de carne e se esbanjou com imprudência O sabor foi muito mais doce por provir de bestas que eram a raiz de tanto ressentimento Cornwall 1977 p 147 As bestas eram as muito valorizadas ovelhas produtoras de lã que estavam efetiva mente como disse Thomas Morus em sua Utopia comendo os humanos já que as terras aráveis e os campos comuns eram cercados e convertidos em pasto para sua criação Execução das bruxas de Chelmsford em 1589 Joan Prentice uma das vítimas é apresentada com seus familiares 355 354 do mundo burguês e especifcamente no desenvolvimento da disciplina capitalista da sexualidade foi apagado da memória Contudo é possível estabelecer uma relação entre esse pro cesso e alguns dos principais tabus da nossa época É o caso da homossexualidade que em muitas partes da Europa era plenamente aceita inclusive durante o Renascimento mas logo foi erradicada na época da caça às bruxas A perseguição aos homossexuais foi tão feroz que sua memória ainda está sedi mentada em nossa linguagem Fagot181 é um termo que remete ao fato de que os homossexuais eram às vezes usados para acender a fogueira onde as bruxas seriam queimadas enquanto 181 Na América do Norte a palavra faggot é uma das mais ofensivas para desqua lificar os homossexuais Na Inglaterra o termo ainda conserva seu significado original feixe de lenha para fogo NTE a palavra italiana fnocchio182 que signifca ervadoce se referia à prática de esparramar essas plantas aromáticas nas fogueiras para mascarar o fedor da carne ardente É especialmente signifcativa a relação que a caça às bruxas estabeleceu entre a prostituta e a bruxa refetindo o processo de desvalorização sofrido pela prostituição durante a reorganização capitalista do trabalho sexual Como diz o ditado prostituta quando jovem bruxa quando velha já que ambas usavam o sexo somente para enganar e corromper os homens fngindo um amor que era somente mercenário Stiefelmeir 1977 p 48 e segs E ambas se vendiam para obter dinheiro e um poder ilícito a bruxa que vendia sua alma para o diabo era a imagem ampliada da prostituta que vendia seu corpo aos homens Além do mais tanto a velha bruxa quanto a prostituta eram símbolos da esterilidade e a personifcação da sexualidade não procriativa Assim enquanto na Idade Média a prostituta e a bruxa foram consideradas fguras positivas que realizavam um serviço social à comunidade com a caça às bruxas adquiriram as conotações mais negativas sendo rejeitadas como identidades femininas possíveis e relacionadas fsicamente com a morte e socialmente com a criminalização A prostituta morreu como sujeito legal so mente depois de ter morrido mil vezes na fogueira como bruxa Ou melhor dizendo à prostituta podia ser permitido sobreviver ela inclusive se tornaria útil embora de maneira clandestina desde que a bruxa pudesse ser assassinada a bruxa era o sujeito social mais perigoso uma vez que na visão dos inquisidores era menos controlável era ela que podia dar dor ou prazer curar ou machucar misturar os elementos e acorrentar a vontade dos homens podia até mesmo causar dano com seu olhar um maloc chio mauolhado que supostamente podia matar Era a natureza sexual dos seus crimes e o status de classe 182 Finocchio é uma gíria italiana de significado semelhante à expressão em inglês faggot NTP O banquete é um tema importante em muitas representações do sabá fantasia de uma época em que a fome generalizada era uma experiência comum na Europa Detalhe da estampa de Jan Ziarnko para Tableau de linconstance 1612 Quadro da inconstância de Pierre De Lancre 357 356 baixa que distinguiam a bruxa do mago do Renascimento que fcou na maior parte dos casos imune à perseguição A magia cerimonial e a bruxaria compartilhavam muitos elementos Os temas derivados da tradição mágica ilustrada foram introduzi dos pelos demonólogos na defnição de bruxaria Entre eles se encontrava a crença de origem neoplatônica de que Eros seria uma força cósmica unindo o universo por meio de relações de simpatia e atração permitindo ao mago manipular e imitar a natureza nos seus experimentos Um poder similar foi atribuído à bruxa que segundo se dizia podia levantar tormentas ao mimeticamente agitar uma poça ou exercer uma atração similar à ligação dos metais na tradição alquimista Yates 1964 p 145 e segs Couliano 1987 A ideologia da bruxaria também refetiu o dogma bíblico comum à magia e à alquimia que estipula uma conexão entre sexualidade e conhecimento A tese de que as bruxas adquiriram seus poderes copulando com o diabo ecoava a crença alquimista de que as mulheres se apropriaram dos segredos da química copulando com demônios rebeldes Seligman 1948 p 76 A magia cerimonial entretan to não foi perseguida embora a alquimia fosse cada vez mais malvista pois parecia uma busca inútil e como tal uma perda de tempo e de recursos Os magos formavam uma elite que com frequência prestava serviços a príncipes e a outras pessoas que ocupavam altos postos Couliano 1987 p 156 e segs e os demonólogos os distinguiam cuidadosamente das bruxas ao incluir a magia cerimonial em particular a astrologia e a astro nomia no âmbito das ciências183 183 Thorndike 19231958 p 69 Holmes 1974 pp 856 e Monter 1969 pp 578 Kurt Seligman escreve que a alquimia foi universalmente aceita desde meados do século XIV até o século XVI Mas com o surgimento do capitalismo a atitude dos monarcas mudou Nos países protestantes a alquimia se converteu em objeto de ridicularização O alquimista era retratado como um vendedor de tabaco que prometia converter os metais em ouro e fracassava na sua tentativa Seligman 1948 p 126 e segs Com frequência era representado trabalhando em seu estúdio rodeado de estranhos vasos e instrumen tos alheio a tudo que o rodeava enquanto do outro lado da rua estavam sua esposa e filhos batendo na porta da casa pobre O retrato satírico do alquimista feito por Ben Jonson reflete esta nova atitude A CAÇA ÀS BRUXAS E O NOVO MUNDO As fguras correspondentes à típica bruxa europeia não fo ram portanto os magos do Renascimento mas os nativos americanos colonizados e os africanos escravizados que nas plantations do Novo Mundo tiveram um destino similar ao das mulheres na Europa fornecendo ao capital a aparentemente inesgotável provisão de trabalho necessário para a acumulação Os destinos das mulheres na Europa e dos ameríndios e africanos nas colônias estavam tão conectados que suas in fuências foram recíprocas A caça às bruxas e as acusações de adoração ao demônio foram levadas à América para romper a resistência das populações locais justifcando assim a coloni zação e o tráfco de escravos ante os olhos do mundo Por sua vez de acordo com Luciano Parinetto a experiência americana persuadiu as autoridades europeias a acreditarem na existência de populações inteiras de bruxas o que as instigou a aplicar na Europa as mesmas técnicas de extermínio em massa desenvol vidas na América Parinetto 1998 No México entre 1536 e 1543 o bispo Zumárraga conduziu dezenove julgamentos que envolviam 75 hereges indígenas em sua maioria selecionados entre os líderes políticos e religiosos das comunidades do México central muitos dos quais tiveram suas vidas acabadas na fogueira O frade Diego de Landa conduziu julgamentos por idolatria em A astrologia também era praticada no século XVII Em sua Demonología 1597 James I afirmava que era legítima sobretudo quando se limitava ao estudo das estações e à previsão do tempo Uma descrição detalhada da vida de um astrólogo inglês no final do século XVI se encontra em Sex and Society in Shakespeares Age 1974 Sexo e socidade na era de Shakespeare de A L Rowse Aqui tomamos conhecimento de que na mesma época em que a caça às bruxas chegava ao seu apogeu um mago podia continuar reali zando seu trabalho embora com alguma dificuldade e correndo às vezes certos riscos 358 Yucatán durante a década de 1560 nos quais a tortura os açoites e os autos de fé fguravam de forma destacada Behar 1987 p 51 Caças às bruxas também eram conduzidas no Peru com a fnalidade de destruir o culto aos deuses locais considerados demônios pelos europeus Os espanhóis viam a cara do diabo por todas as partes nas comidas nos vícios primitivos dos índios nas suas línguas bárbaras De León 1985 vol I pp 334 Nas colônias as mulheres também eram as mais passíveis de acusações por bruxaria porque ao serem especialmente desprezadas pelos europeus como mulheres de mente fraca logo se tornaram as defensoras mais leais de suas comunidades Silverblatt 1980 pp 173 1769 O destino comum das bruxas europeias e dos sujeitos coloniais pode ser ainda melhor demonstrado pelo crescente intercâmbio ao longo do século XVII entre a ideologia da bruxaria e a ideologia racista que se desenvolveu sobre o solo da Conquista e do tráfco de escravos O diabo era representado como um homem negro e os negros eram tratados cada vez mais como diabos de tal modo que a adoração ao diabo e as in tervenções diabólicas tornaramse o aspecto mais comumente descrito sobre as sociedades não europeias que os trafcantes de escravos encontravam Barker 1978 p 91 Dos lapões aos samoiedos dos hotentotes aos indonésios não havia socie dade escreve Anthony Barker que não fora etiquetada por algum inglês como ativamente infuenciada pelo diabo 1978 p 91 Assim como na Europa a marca característica do Imagem do século XVI em que os indígenas do Caribe são representados como demônios em A Compendium Of Authentic And Entertaining Voyages Digested In A Chronological Series 1766 Um compêndio de viagens autênticas e divertidas digerido em uma série cronológica compilado por Tobias George Smollett 361 360 diabólico era um desejo e uma potência sexual anormais184 O diabo com frequência era retratado com dois pênis enquanto as histórias sobre práticas sexuais brutais e a afeição desmedida pela música e pela dança tornaramse os ingredientes básicos dos informes dos missionários e dos viajantes ao Novo Mundo Segundo o historiador Brian Easlea esse exagero sistemáti co da potência sexual dos negros denuncia a ansiedade que os homens brancos ricos sentiam sobre sua própria sexualidade provavelmente os homens brancos de classe alta temiam a con corrência das pessoas que eles escravizavam que viam como seres mais próximos à natureza pois se sentiam incompetentes sexualmente devido às doses excessivas de autocontrole e raciocínio prudente Easlea 1980 pp 24950 No entanto a sexualização exagerada das mulheres e dos homens negros as bruxas e os demônios também deve ter como origem a posi ção que ocupavam na divisão internacional do trabalho surgida com a colonização da América com o tráfco de escravos e com a caça às bruxas A defnição da negritude e da feminilidade como marcas da bestialidade e da irracionalidade correspondia à exclusão das mulheres na Europa assim como das mulheres e dos homens nas colônias do contrato social implícito no salário com a consequente naturalização de sua exploração 184 Em referência às Antilhas Anthony Barker 1978 pp 1213 escreveu Nenhum aspecto desfavorável da imagem do negro construída pelos proprietários de escravos tinha raízes mais amplas ou profundas que a acusação de apetite sexual insa ciável Os missionários informavam que os negros se negavam a ser monogâmicos eram excessivamente libidinosos e contavam histórias de negros que tinham relações sexuais com macacos A BRUXA A CURANDEIRA E O NASCIMENTO DA CIÊNCIA MODERNA Havia outros motivos por trás da perseguição às bruxas Com frequência as acusações de bruxaria foram usadas para punir o ataque à propriedade principalmente os roubos que seguindo a crescente privatização da terra e da agricultura aumentaram de forma dramática nos séculos XVI e XVII Como vimos as mulhe res pobres da Inglaterra que mendigavam ou roubavam leite ou vinho das casas de seus vizinhos ou que viviam da assistência pública tendiam a se tornar suspeitas de praticar artes malignas Alan Macfarlane e Keith Thomas mostraram que nesse período houve uma marcante deterioração da condição de vida das mulheres idosas que se seguiu à perda das terras comunais e à reorganização da vida familiar que passou a priorizar a criação dos flhos às custas do cuidado que antes se dedicava aos idosos Macfarlane 1970 p 205185 Agora estes idosos eram forçados a depender de seus amigos e vizinhos para sobreviver ou então se somavam às Listas de Necessitados no mesmo momento em que a nova ética protestante começava a apontar a entrega de esmolas como um desperdício e como meio de fomentar a pre guiça Ao mesmo tempo as instituições que no passado haviam atendido os pobres estavam entrando em colapso Algumas mulheres pobres usaram provavelmente o medo que inspirava sua reputação como bruxas para obter aquilo que necessitavam Contudo não se condenou somente a bruxa má que supos tamente maldizia e deixava o gado coxo arruinava cultivos ou 185 Na Idade Média quando um filho ou uma filha se responsabilizava pela propriedade familiar ele ou ela assumia automaticamente o cuidado de seus envelhe cidos pais enquanto no século XVI os pais começaram a ser abandonados e se deu maior prioridade aos filhos Macfarlane 1970 p 205 363 362 causava a morte dos flhos de seus empregadores A bruxa boa que havia feito da feitiçaria sua carreira também foi castigada muitas vezes com maior severidade Historicamente a bruxa era a parteira a médica a adivinha ou a feiticeira do vilarejo cuja área privilegiada de competência como escreveu Burckhardt sobre as bruxas italianas era a intriga amorosa Burckhardt 1927 pp 31920 Uma encarnação urbana deste tipo de bruxa foi a Celestina da peça teatral de Fernando de Rojas La Celestina 1499 Dela se dizia que Tinha seis ofícios a saber lavadeira perfumista mestra na fabricação de cosméticos e na reparação de hímens danifcados alcoviteira e um pouco bruxa Seu primeiro ofício era uma fachada para encobrir os demais e com esta desculpa muitas garotas que trabalhavam como criadas iam à casa dela para fazer o serviço de lavagem de roupa Não é possível imaginar o movimento que geravam Era médica de bebês pegava linho de uma casa e o levava a outra tudo isso como desculpa para entrar em Gravura de Hans Weiditz O herbário da bruxa 1532 Como o globo estrelado sugere a virtude das ervas era reforçada pelo alinhamento astral correto todos os lugares Alguém lhe dizia Mãe venha ou Lá vem a senhora Todos a conheciam E apesar de suas muitas tarefas ela ainda encontrava tempo para ir à missa ou às vésperas Rojas 1959 pp 178 Entretanto uma curandeira mais típica foi Gostanza uma mulher julgada por bruxaria em San Miniato uma pequena ci dade da Toscana em 1594 Depois de fcar viúva Gostanza havia se estabelecido como curandeira profssional logo tornandose bem conhecida na região pelos seus remédios terapêuticos e exorcismos Morava com sua sobrinha e duas mulheres mais velhas também viúvas Uma vizinha que também era viúva fornecialhe especiarias para os medicamentos Recebia os clien tes em casa mas também viajava quando fosse necessário a fm de marcar um animal visitar um enfermo ajudar as pessoas a se vingar ou se liberar dos efeitos de encantamentos médicos Cardini 1989 pp 518 Suas ferramentas eram óleos naturais e pós bem como artefatos aptos a curar e proteger por simpatia ou contato Não lhe interessava inspirar medo à comunidade já que a prática dessas artes era sua forma de ganhar a vida Ela era de fato muito popular todos a procuravam para serem curados para que lhes lesse o futuro para encontrar objetos perdidos ou para comprar poções de amor Mesmo assim ela não escapou da perseguição Depois do Concílio de Trento 15451563 a Contrarreforma adotou uma postura dura contra as curandeiras populares temendo seus poderes e suas profundas raízes na cultura de suas comunidades Na Inglaterra o destino das bruxas boas também foi selado quando em 1604 um estatuto aprovado por Jaime I estabeleceu a pena de morte para qualquer pessoa que usasse os espíritos e a magia ainda que não fossem causadores de danos visíveis186 186 O estatuto aprovado por Jaime I em 1604 impôs a pena de morte para quem usasse os espíritos ou a magia sem importar se provocaram algum dano Este estatuto se converteu depois na base sobre a qual se realizou a perseguição às bruxas nas colônias americanas 365 364 Com a perseguição à curandeira popular as mulheres foram expropriadas de um patrimônio de saber empírico relativo a ervas e remédios curativos que haviam acumulado e transmitido de geração a geração uma perda que abriu o caminho para uma nova forma de cercamento o surgimento da medicina profssional que apesar de suas pretensões curativas erigiu uma muralha de conhecimento científco indisputável inacessível e estranho para as classes baixas Ehrenreich e English 1973 Starhawk 1997 A substituição da bruxa e da curandeira popular pelo doutor levanta a questão sobre o papel que o surgimento da ciência moderna e da visão científca do mundo tiveram na as censão e queda da caça às bruxas Em relação a esta pergunta há dois pontos de vista opostos Por um lado há a teoria originada no Iluminismo que reconhece o advento da racionalidade científca como fator determinante para o fm da perseguição Tal como formulada por Joseph Klaits 1895 p 62 esta teoria sustenta que a nova ciência transformou a vida intelectual gerando um novo ceti cismo ao revelar o universo como um mecanismo autorregu lado no qual a intervenção divina direta e constante era des necessária Contudo Klaits admite que os mesmos juízes que na década de 1650 estavam limitando os julgamentos contra as bruxas nunca questionaram a veracidade da bruxaria Nem na França nem em nenhuma outra parte os juízes do século XVII que acabaram com a caça às bruxas declararam que elas não existiam Como Newton e outros cientistas da época os juízes continuaram aceitando a magia sobrenatural como teoricamente plausível ibidem p 163 Na verdade não há provas de que a nova ciência teve um efeito libertador A visão mecanicista da natureza que surgiu com o início da ciência moderna desencantou o mundo Mas não há provas de que aqueles que a promoveram tenham em algum momento falado em defesa das mulheres acusadas como bruxas Descartes se declarou agnóstico acerca desse assunto outros flósofos mecanicistas como Joseph Glanvill e Thomas Hobbes apoiaram fortemente a caça às bruxas O que acabou com a caça às bruxas conforme demonstrou Brian Easlea de forma convincente foi a aniquilação do mundo das bruxas e a imposição da disciplina social requerida pelo sistema capitalista triunfante Em outras palavras a caça às bruxas chegou ao fm no fnal do século XVII porque a classe dominante nesse período desfrutava de uma crescente sen sação de segurança com relação ao seu poder e não porque uma visão mais ilustrada do mundo tivesse surgido O desejo de se apropriar da função materna do alquimista é bem refletido neste desenho de Hermes Trimegistus o fundador mítico da alquimia portando um feto em seu ventre sugerindo o papel inseminador do macho 367 366 A pergunta que permanece é se o surgimento do método científco moderno pode ser considerado como fator para o desenvolvimento da caça às bruxas Esta visão foi sustentada vigorosamente por Carolyn Merchant em The Death of Nature 1980 A morte da natureza Merchant considera que a raiz da perseguição às bruxas encontrase na mudança de para digma provocada pela revolução científca e em particular no surgimento da flosofa mecanicista cartesiana Segundo a autora esta mudança substituiu uma visão orgânica do mundo que via na natureza nas mulheres e na terra as mães protetoras por outra que as degradava à categoria de recursos permanentes retirando qualquer restrição ética à sua exploração Merchant 1980 p 127 e segs A mulheren quantobruxa sustenta Merchant foi perseguida como a en carnação do lado selvagem da natureza de tudo aquilo que na natureza parecia desordenado incontrolável e portanto antagônico ao projeto assumido pela nova ciência Merchant defende que uma das provas da conexão entre a perseguição às bruxas e o surgimento da ciência moderna encontrase no trabalho de Francis Bacon considerado um dos pais do novo método científco Seu conceito de investigação científca da natureza foi moldado a partir do interrogatório das bruxas sob tortura do qual surgiu uma representação da natureza como uma mulher a ser conquistada revelada e estuprada Merchant 1980 pp 16872 As considerações de Merchant têm o grande mérito de desafar a suposição de que o racionalismo científco foi um veículo de progresso centrando nossa atenção sobre a profun da alienação que a ciência moderna instituiu entre os seres humanos e a natureza Também associa a caça às bruxas à destruição do meio ambiente e relaciona a exploração capita lista do mundo natural à exploração das mulheres Merchant ignora porém o fato de que a visão orgânica do mundo adotada pelas elites da Europa précientífca dei xou espaço para a escravidão e para o extermínio dos hereges Também sabemos que a aspiração ao domínio tecnológico da natureza e a apropriação do poder criativo das mulheres acomodaram diferentes estruturas cosmológicas Os magos do Renascimento estavam igualmente interessados nesses obje tivos187 e o descobrimento da gravitação universal pela física newtoniana não se deveu a uma visão mecânica da natureza mas sim a uma visão mágica Além disso quando a moda do mecanicismo flosófco chegou ao fm no começo do século XVIII novas tendências flosófcas surgiram reforçando o valor da simpatia da sensibilidade e da paixão que to davia foram facilmente integradas ao projeto da nova ciência Barnes e Shapin 1979 Também devemos considerar que o arcabouço intelectual que serviu de base à perseguição às bruxas não foi tirado dire tamente das páginas do racionalismo flosófco Pelo contrário foi um fenômeno transitório uma espécie de bricolage ideoló gico que se desenvolveu sob a pressão da tarefa que precisava cumprir Dentro dessa tendência combinaramse elementos tomados do mundo fantástico do cristianismo medieval argu mentos racionalistas e os modernos procedimentos burocráti cos das cortes europeias da mesma maneira que na constru ção do nazismo o culto à ciência e à tecnologia foi combinado com um cenário que pretendia restaurar um mundo mítico e arcaico de laços de sangue e lealdades prémonetárias Esse ponto é sugerido por Parinetto que considera a caça 187 Em Outrunning Atlanta Feminine Destiny in Alchemic Transmutations Ultrapassando Atlanta destino feminino em transmutações alquímicas Allen e Hubbs escrevem que o simbolismo recorrente nos trabalhos de alquimia sugere uma obsessão por reverter ou talvez inclusive deter a hegemonia feminina sobre o processo de criação biológica Este domínio desejado é também representado em imagens como a de Zeus parindo a Atenas pela sua cabeça ou Adão parindo a Eva em seu peito O alquimista que exemplifica a luta pelo controle do mundo natural busca nada menos que a magia da maternidade Desta maneira o grande alquimista Paracelso responde afirmativamen te à pergunta sobre se é possível para a arte e a natureza que um homem nasça fora do corpo de uma mulher e fora de uma mãe natural Allen e Hubbs 1980 p 213 368 às bruxas um exemplo clássico infelizmente não o último na história do capitalismo de como retroceder pode ser considerado uma forma de avançar do ponto de vista do estabelecimento das condições para a acumulação de capital Ao conjurar o demônio os inquisidores descartaram o ani mismo e o panteísmo popular redefnindo de uma maneira mais centralizada a localização e a distribuição do poder no cosmos e na sociedade Assim paradoxalmente segundo Parinetto na caça às bruxas o diabo funcionava como o verdadeiro servo de Deus sendo o fator que mais contribuiu na abertura do caminho à nova ciência Como um ofcial de justiça ou como o agente secreto de Deus o diabo trouxe a ordem ao mundo esvaziandoo de infuências confitivas e reafrmando Deus como o soberano exclusivo Consolidou tão bem o comando de Deus sobre os assuntos humanos que em questão de um século com a chegada da física newtoniana Deus pôde se retirar do mundo feliz em resguardar de longe a precisão dos seus mecanismos Nem o racionalismo nem o mecanicismo foram portanto a causa imediata das perseguições embora tenham contri buído para criar um mundo comprometido com a exploração da natureza Mais importante o principal fator de incentivo à caça às bruxas foi o fato de que as elites europeias precisavam erradicar todo um modo de existência que no fnal da Baixa Idade Média ameaçava seu poder político e econômico Quando esta tarefa foi cumprida por completo no momento em que a disciplina social foi restaurada e a classe dominante consolidou sua hegemonia os julgamentos de bruxas cessaram A crença na bruxaria pôde inclusive se tornar algo ridículo desprezada como superstição e apagada rapidamente da memória As mulheres de Paris Xilografia reproduzida em The Graphic 29 de abril de 1871 371 Esse processo começou por toda Europa no fnal do século XVII embora os julgamentos de bruxas na Escócia continuassem durante mais três décadas Um fator que con tribuiu para o fm da perseguição foi a perda de controle da classe dominante sobre a caça às bruxas uma vez que alguns de seus membros acabaram sendo alvo de denúncias e se transformando em vítimas de seu próprio aparato repressivo Midelfort escreve que na Alemanha Quando as chamas começaram a arder cada vez mais próximas dos nomes de gente que fazia parte do alto escalão e tinha muito poder os juízes perderam a confança nas confssões e o pânico cessou Midelfort 1972 p 206 Também na França a última onda de julgamentos trouxe uma desordem social generalizada os criados acusavam seus senhores os filhos acusavam seus pais os maridos acusavam suas mulheres Nestas circunstâncias o rei decidiu intervir e Colbert estendeu a jurisdição de Paris a toda a França para colocar fim à perseguição Foi promulgado um novo código legal no qual a bruxaria não foi sequer mencionada Mandrou 1968 p 443 Logo que o Estado assumiu o controle da caça às bruxas um por um os vários governos foram tomando a iniciativa de acabar com ela A partir da metade do século XVII se fzeram esforços para frear o fervor judicial e inquisitorial Uma conse quência imediata foi que no século XVIII os crimes comuns multiplicaramse repentinamente ibidem p 437 Entre 1686 e 1712 na Inglaterra à medida que se atenuava a caça às bruxas as prisões por danos à propriedade em particular os incêndios Pétroleuses litografia colorida de Bertall reproduzida em Les Communeux n 20 372 de celeiros casas e palheiros e por assaltos cresceram enor memente Kittredge 1929 p 333 assim como novos crimes entraram nos códigos legais A blasfêmia começou a ser tratada como um delito punível na França decretouse que depois da sexta condenação os blasfemadores teriam sua língua cor tada da mesma maneira que o sacrilégio profanação de relí quias e roubo de hóstias Também foram estabelecidos novos limites para a venda de venenos seu uso privado foi proibido sua venda foi condicionada à aquisição de uma licença e esten deuse a pena de morte aos envenenadores Tudo isso sugere que a nova ordem social já estava sufcientemente consolidada para que os crimes fossem identifcados e castigados como tais sem a possibilidade de recorrer ao sobrenatural Nas palavras de um parlamentar francês Já não se condenam as bruxas e as feiticeiras em primeiro lugar porque é difícil determinar a prova de bruxaria e em segundo lugar porque tais condenações foram usadas para provocar dano Parouse então de culpálas pelo incerto para acusálas do que se tem certeza Mandrou 1968 p 361 Uma vez destruído o potencial subversivo da bruxaria foi possível até mesmo permitir que tal prática seguisse adiante Depois de que a caça às bruxas chegou ao fm muitas mulheres continuaram sustentandose por meio da adivinhação da ven da de encantamentos e da prática de outras formas de magia Como escreveu Pierre Bayle em 1704 em muitas províncias da França em Saboia no cantão de Berna e em muitas outras partes da Europa não existe vilarejo ou povoado não importa quão pequeno seja onde não haja uma pessoa consi derada bruxa Erhard 1963 p 30 Na França do século XVIII também se desenvolveu um interesse pela bruxaria entre a nobreza urbana que sendo excluída da produção econômica e percebendo que seus privilégios eram atacados tratou de satisfazer seu desejo de poder recorrendo às artes da magia ibidem pp 312 Mas agora as autoridades já não estavam interessadas em processar essas práticas sendo inclinadas ao contrário a ver a bruxaria como um produto da ignorância ou como uma desordem da imaginação Mandrou 1968 p 519 No século XVIII a intelligentsia europeia começou inclusive a se sentir orgulhosa da ilustração que havia adquirido e segura de si mesma continuou reescrevendo a história da caça às bruxas rejeitandoa como um produto da superstição medieval O espectro das bruxas seguiu de qualquer forma as sombrando a imaginação da classe dominante Em 1871 a burguesia parisiense o retomou instintivamente para demonizar as mulheres communards acusandoas de querer incendiar Paris Não pode haver muita dúvida de fato de que os modelos das histórias e imagens mórbidas de que se valeu a imprensa burguesa para criar o mito das pétroleuses188 foram retirados do repertório da caça às bruxas Como descreve Edith Thomas os inimigos da Comuna alegavam que milhares de proletárias vagavam como bruxas pela cidade dia e noite com panelas cheias de querosene e etiquetas com a inscrição BPB bon pour brûler bom para queimar supostamente seguindo as instruções recebidas em uma grande conspiração para reduzir a cidade de Paris a cinzas frente às tropas que avançavam de Versalhes Thomas escreve que não se encon traram pétroleuses em lugar nenhum Nas áreas ocupadas pelo exército de Versalhes bastava que uma mulher fosse pobre e malvestida e que levasse um cesto uma caixa ou uma garrafa de leite para que se tornasse suspeita Thomas 1966 pp 1667 Desse modo centenas de mulheres foram executadas 188 Communards era a denominação dos membros e apoiadores da Comuna de Paris em 1871 Pétroleuses era o termo utilizado para qualificar as mulheres acusadas de terem causado incêndios durante a queda da Comuna tendo como alvo principal destas acusações as mulheres que haviam participado dos combates armados NTP 374 sumariamente ao mesmo tempo que eram difamadas nos periódicos Como a bruxa a pétroleuse era representada como uma mulher mais velha descabelada de aspecto bárbaro e selvagem Em suas mãos levava o recipiente com o líquido que usava para praticar seus crimes189 189 Sobre a imagem da pétroleuse ver Albert Boime 1995 pp 10911 196 99 Art and the French Commune Arte e a Comuna Francesa e Rupert Christiansen 1994 pp 3523 Paris Babylon The Story of the Paris Commune Paris Babilônia a história da Comuna de Paris O desembarque de Américo Vespúcio na costa da América do Sul em 1497 À sua frente deitada numa rede sedutora está América Atrás dela alguns canibais assam restos humanos Desenho de Jan van der Straet gravado por Théodore Galle 1589 INTRODUÇÃO 380 O NASCIMENTO DOS CANIBAIS 383 EXPLORAÇÃO RESISTÊNCIA E DEMONIZAÇÃO 390 MULHERES E BRUXAS NA AMÉRICA 400 AS BRUXAS EUROPEIAS E OS ÍNDIOS 407 A CAÇA ÀS BRUXAS E A GLOBALIZAÇÃO 413 CAPÍTULO 5 COLONIZAÇÃO E CRISTIANIZAÇÃO CALIBÃ E AS BRUXAS NO NOVO MUNDO E ENTÃO ELES DIZEM QUE VIEMOS A ESSA TERRA PARA DESTRUIR O MUNDO DIZEM QUE OS VENTOS DEVASTAM AS CASAS E CORTAM AS ÁRVORES E O FOGO AS QUEIMA MAS QUE NÓS DEVORAMOS TUDO CONSUMIMOS A TERRA MUDAMOS O CURSO DOS RIOS NUNCA ESTAMOS TRANQUILOS NUNCA DESCANSAMOS SEMPRE CORREMOS DE LÁ PRA CÁ BUSCANDO OURO OU PRATA NUNCA SATISFEITOS E ENTÃO ESPECULAMOS COM ELES FAZEMOS GUERRA MATAMOS UNS AOS OUTROS ROUBAMOS INSULTAMOS NUNCA FALAMOS A VERDADE E OS PRIVAMOS DE SEUS MEIOS DE VIDA E FINALMENTE MALDIZEM O MAR QUE PÔS SOBRE A TERRA CRIANÇAS TÃO MALVADAS E CRUÉIS GIROLAMO BENZONI HISTÓRIA DO MUNDO NOVO 1565 VENCIDAS PELA TORTURA E PELA DOR AS MULHERES FORAM OBRIGADAS A CONFESSAR QUE ADORAVAM OS HUACAS ELAS SE LAMENTAVAM AGORA NESTA VIDA NÓS MULHERES SOMOS CRISTÃS TALVEZ DEPOIS O SACERDOTE SEJA CULPADO SE NÓS MULHERES ADORARMOS AS MONTANHAS SE FUGIRMOS PARA AS COLINAS E PARA AS MONTANHAS E A PUNA JÁ QUE AQUI NÃO HÁ JUSTIÇA PARA NÓS FELIPE GUAMÁN POMA DE AYALA NOVA CRÔNICA E BOM GOVERNO 1615 Huacas são divindades andinas que fazem parte da cultura inca e de culturas anteriores Puna é um bioma de pastagens e matagais de montanha encontrado na parte central da Cordilheira dos Andes NTP 381 380 INTRODUÇÃO A história do corpo e da caça às bruxas que apresentei é ba seada em uma hipótese que pode ser resumida na referência a Calibã e a bruxa personagens de A tempestade símbolos da resistência dos índios americanos à colonização190 A hipó tese é precisamente a continuidade entre a dominação das populações do Novo Mundo e a das populações da Europa em especial as mulheres durante a transição ao capitalismo Em ambos os casos populações inteiras foram expulsas de suas terras pela força houve um empobrecimento em grande escala e campanhas de cristianização que destruíram a autonomia das pessoas e suas relações comunais Também houve uma infuência recíproca entre os dois processos por meio da qual certas formas repressivas que haviam sido desenvolvidas no Velho Mundo foram transportadas para o Novo e depois reim portadas para a Europa As diferenças não devem ser subestimadas No século XVIII a afuência de ouro prata e outros recursos da América para a Europa deu lugar a uma nova divisão internacional do trabalho 190 Na verdade Sycorax a bruxa não entrou no imaginário revolucionário latino americano do mesmo modo que Calibã Ela ainda permanece invisível O mesmo ocorreu durante muito tempo com a luta das mulheres contra a colonização Em relação a Calibã o que ele defendeu ficou expresso em um ensaio de grande influência do escritor cubano Roberto Fernández Retamar 1989 p 521 Nosso símbolo não é então Ariel mas Calibã Isso é algo que nós os mestiços que vivem nas mesmas ilhas em que viveu Calibã vemos com particular nitidez Próspero invadiu as ilhas matou nossos ancestrais escravizou Calibã e ensinoulhe seu idioma para se comunicar com ele O que mais pode fazer Calibã senão utilizar este mesmo idioma atualmente ele não possui outro para maldizêlo Desde Tupac Amaru ToussaintLouverture Simón Bolívar José Martí Fidel Castro Che Guevara Frantz Fanon qual é a nossa história qual é a nossa cultura senão a história a cultura de Calibã 1989 pp 14 334 Em relação a essa questão ver também Margaret Paul Joseph quem em Caliban in Exile 1992 p 2 Calibã no exílio escreve Dessa forma Próspero e Calibã nos proporcionam uma poderosa metáfora do co lonialismo Um ramo dessa interpretação aborda a condição abstrata de Calibã vítima da história frustrado ao entenderse completamente carente de poder Na América Latina o nome de Calibã tem sido adotado de um modo mais positivo tendo em vista que Calibã parece representar as massas que lutam para se levantar contra a opressão da elite que fragmentou o proletariado global por meio de segmenta ções classistas e de sistemas disciplinares que marcaram o co meço de trajetórias frequentemente confitivas dentro da classe trabalhadora As semelhanças no tratamento que receberam tanto as populações europeias como as da América são sufcien tes para demonstrar a existência de uma mesma lógica que rege o desenvolvimento do capitalismo e conforma o caráter estru tural das atrocidades perpetradas neste processo A extensão da caça às bruxas às colônias americanas é um exemplo notável No passado a perseguição de mulheres e homens sob a alegação de bruxaria era um fenômeno que os historiadores normalmente consideravam limitado à Europa A única exce ção a essa regra eram os julgamentos das bruxas de Salem que ainda constituem o principal tema de estudo dos acadêmicos que pesquisam a caça às bruxas no Novo Mundo Hoje em dia no entanto admitese que a acusação de adoração ao diabo também teve um papelchave na colonização dos indígenas americanos Sobre o tema devese mencionar particularmen te dois textos que constituem a base da minha argumentação neste capítulo O primeiro é Moon Sun and Witches 1987 A lua o sol e as bruxas de Irene Silverblatt um estudo sobre a caça às bruxas e a redefnição das relações de gênero na socie dade inca e no Peru colonial Segundo meus conhecimentos esse é o primeiro estudo em inglês que reconstrói a história das mulheres andinas perseguidas por bruxaria O outro texto é Streghe e Potere 1998 Bruxas e poder de Luciano Parinetto uma série de ensaios que documenta o impacto que a caça às bruxas na América exerceu sobre os julgamentos de bruxas na Europa Tratase todavia de um estudo prejudica do pela insistênica do autor em assinalar que havia neutralida de de gênero na perseguição às bruxas Ambos trabalhos demonstram que também no Novo Mundo a caça às bruxas constituiuse em uma estratégia 383 382 deliberada utilizada pelas autoridades com o objetivo de propa gar terror destruir resistências coletivas silenciar comunida des inteiras e instigar o confito entre seus membros Também foi uma estratégia de cercamento que segundo o contexto podia consistir em cercamentos de terra de corpos ou de relações sociais Assim como na Europa a caça às bruxas na América foi sobretudo um meio de desumanização e como tal uma forma paradigmática de repressão que servia para justifcar a escravidão e o genocídio A caça às bruxas porém não destruiu a resistência dos povos colonizados O vínculo dos índios americanos com a terra com as religiões locais e com a natureza sobreviveu à perseguição devido principalmente à luta das mulheres pro porcionando uma fonte de resistência anticolonial e anticapi talista durante mais de quinhentos anos Isso é extremamente importante para nós no momento em que assistimos a um novo assalto aos recursos e às formas de existência das populações indígenas Devemos repensar a maneira como os conquistado res se esforçaram para dominar aqueles a quem colonizavam e repensar também o que permitiu aos povos originários sub verter este plano e contra a destruição de seu universo social e físico criar uma nova realidade histórica O NASCIMENTO DOS CANIBAIS Quando Cristóvão Colombo navegou em direção às Índias a caça às bruxas ainda não constituía um fenômeno de massa na Europa No entanto usar as acusações de adoração ao demônio como arma para atacar inimigos políticos e vilipendiar popu lações inteiras muçulmanos e judeus por exemplo já era uma prática comum entre as elites europeias Mais do que isso como escreve Seymour Philips uma sociedade persecutória foi se desenvolvendo na Europa medieval alimentada pelo mi litarismo e pela intolerância cristã que olhava o Outro princi palmente como objeto de agressão Philips 1994 Dessa forma não surpreende que canibal infel bárbaro raças mons truosas e adorador do diabo fossem modelos etnográfcos com os quais os europeus adentraram a nova era de expansão ibidem p 62 proporcionando o fltro com que missionários e conquistadores interpretaram as culturas as religiões e os cos tumes sexuais da população que encontraram191 Outras marcas culturais também contribuíram para a invenção dos índios O nudismo e a sodomia eram muito mais estigmatizantes e provavelmente mais úteis para projetar as necessidades de mão de obra dos espanhóis que qualifcavam os ameríndios como seres que viviam em estado animal prontos para serem transformados em burros de carga apesar de alguns informes enfatizarem como um sinal de bestialidade suas propensões a compartilhar e a entregar tudo o que possuem em troca de objetos de pouco valor Hulme 1994 p 198 191 Em seu relato sobre a Ilha de São Domingos em Historia General de las Indias 1551 História geral das Índias Francisco López de Gómara pôde declarar com total certeza que o deus mais importante que existe nessa ilha é o diabo e que o diabo vivia entre as mulheres De Gomara p 49 De forma parecida o livro V da Historia 1590 de Acosta no qual se discute a religião e os costumes dos habitantes do México e do Peru é dedicado às diversas formas de adoração ao diabo praticadas por essas populações que incluíam sacrifícios humanos 385 384 Ao defnir as populações indígenas como canibais adorado res do diabo e sodomitas os espanhóis respaldaram a fcção de que a Conquista não foi uma busca desenfreada por ouro e pra ta mas uma missão de conversão uma alegação que em 1508 ajudou a Coroa espanhola a obter a benção papal e a autoridade absoluta da Igreja na América Tal alegação também eliminou aos olhos do mundo e possivelmente dos próprios coloniza dores qualquer sanção contra as atrocidades que pudessem cometer contra os índios funcionando assim como uma licença para matar independentemente do que as possíveis vítimas pudessem fazer E efetivamente o chicote a forca o tronco a prisão a tortura o estupro e ocasionalmente o assassinato se converteram em armas comuns para reforçar a disciplina do trabalho no Novo Mundo Cockroft 1990 p 19 Em uma primeira fase no entanto a imagem dos coloniza dos como adoradores do diabo pôde coexistir com uma imagem mais positiva inclusive idílica que descrevia os índios como seres inocentes e generosos que levavam uma vida livre da la buta e da tirania remetendo à mítica época dourada ou a um paraíso terreno Brandon 1986 pp 68 Sale 1991 pp 1001 Essa caracterização pode ter sido um estereótipo literário ou como sugeriu Roberto Fernández Retamar entre outros a contrapartida retórica da imagem do selvagem expres sando assim a incapacidade dos europeus em considerar as pessoas com as quais se encontravam como verdadeiros seres humanos192 Mas esse olhar otimista também corresponde a um 192 Esta imagem de Galibicanibal escreve Retamar contrasta com uma outra imagem do homem americano presente nos escritos de Colombo a do Aruaque das Gran des Antilhas principalmente nosso Taíno que é representado como pacífico dócil até mesmo temeroso e covarde Ambas visões dos indígenas americanos se difundiriam rapidamente pela Europa O Taíno se transformará no habitante paradisíaco de um mundo utópico O Galibi por sua vez dará lugar ao canibal um antropófago um homem bestial situado à margem da civilização a quem é preciso combater até a morte No entanto ambas as visões estão mais próximas do que pode parecer à primeira vista Cada imagem corresponde a uma intervenção colonial assegurando seu direito de controlar a vida da população indígena do Caribe que segundo Retamar continua até o presente Retamar assinala que o extermínio tanto dos amáveis Taíno quanto dos ferozes período da Conquista de 1520 a 1540 em que os espanhóis ain da acreditavam que as populações indígenas seriam facilmente convertidas e subjugadas Cervantes 1994 Essa foi a época dos batismos massivos quando se manifestou maior fervor para convencer os índios a mudar seus nomes e a abandonar seus deuses e costumes sexuais especialmente a poligamia e a homossexualidade As mulheres com seus peitos nus foram obrigadas a se cobrir os homens tiveram que trocar a tanga pelas calças Cockroft 1983 p 21 Nessa época a luta contra o demônio consistia principalmente em fogueiras de ídolos locais ainda que entre 1536 quando se introduziu a Inquisição na América e 1543 muitos líderes políticos e religiosos do Galibi constitui uma prova da afinidade entre estas duas imagens ibidem pp 234 Canibais na Bahia se regalando com restos humanos Ilustrações que mostravam a comunidade ameríndia assando e se alimentando de restos humanos completaram o aviltamento das populações nativas americanas iniciado previamente pelo trabalho dos missionários 387 386 centro do México tivessem sido julgados e queimados na fo gueira pelo padre franciscano Juan de Zumárraga À medida que a Conquista avançava porém deixou de ha ver espaço para qualquer tipo de acordo Não é possível imporse sobre outras pessoas sem rebaixálas a um ponto em que até mesmo a possibilidade de identifcação tornase inviável Assim apesar das primeiras homilias sobre os amáveis Taíno colocou se em marcha uma máquina ideológica que complementando a máquina militar retratava os colonizados como seres imun dos e demoníacos praticantes de todo tipo de abominações enquanto os mesmos crimes que antes haviam sido atribuídos à falta de educação religiosa sodomia canibalismo incesto travestismo eram agora considerados provas de que os ín dios se encontravam sob o domínio do diabo e que portanto poderiam ser justifcadamente privados de suas terras e de suas vidas Williams 1986 pp 1367 Em relação a essa mudança de imagem Fernando Cervantes escreve o seguinte em The Devil in the New World 1994 p 8 O demônio no Novo Mundo antes de 1530 seria difícil prever qual desses enfoques se converteria no ponto de vista dominante No entanto na metade do século XVI já havia triunfado uma visão demoníaca muito negativa das culturas ameríndias e sua infuência pairava como um imenso nevoeiro sobre cada afrmação ofcial ou não feita sobre o tema Com base em relatos escritos contemporaneamente à conquista das Índias como as de De Gómara 1556 e Acosta 1590 seria possível conjeturar que essa mudança de pers pectiva foi provocada pelo encontro dos europeus com Estados imperialistas como o asteca e o inca cujas maquinarias repres sivas incluíam a prática de sacrifícios humanos Martínez et al 1976 Em Historia Natural y Moral de las Indias História natural e moral das Índias publicado em Sevilha pelo jesuíta José de Acosta em 1590 há descrições que nos trazem uma vívida sensa ção da repulsa dos espanhóis em relação aos sacrifícios de cente nas de jovens prisioneiros de guerra crianças compradas e escravos praticados principalmente pelos Asteca193 No entanto ao ler o relato de Bartolomé de las Casas sobre a destruição das Índias ou sobre qualquer outro informe relativo à Conquista nos perguntamos por que os espanhóis se sentiriam 193 Os sacrifícios humanos ocupam um lugar muito importante no relato de Acosta sobre os costumes religiosos dos Inca e dos Asteca Acosta descreve como durante certas festividades no Peru trezentas crianças de dois a quatro anos em um total de quatrocentas eram sacrificadas espetáculo forte e desumano segundo suas palavras Entre outros sacrifícios descreve também o de setenta soldados espanhóis capturados durante uma batalha no México e da mesma forma que Gómara afirma com total certe za que tais matanças eram obras do diabo Acosta 1962 p 250 e segs Como resultado da Conquista proliferou na Europa a edição dos diários de viagem ilustrados com terríveis imagens de canibais se empanturrando de restos humanos Um banquete canibal na Bahia Brasil de acordo com a descrição do alemão J G Aldenburg 389 388 impressionados por essas práticas quando eles mesmos não tiveram escrúpulos ao cometer impronunciáveis atrocidades em nome de Deus e do ouro como quando em 1521 segundo Cortés massacraram cem mil pessoas apenas para conquistar Tenochtitlán Cockroft 1983 p 19 Do mesmo modo os rituais canibalistas que os espanhóis descobriram na América e que ocupam um lugar destacado nos registros da Conquista não devem ter sido muito diferentes das práticas médicas populares na Europa durante aquela época Nos séculos XVI XVII e até mesmo XVIII o consumo de sangue humano especialmente daqueles que haviam morrido de forma violenta e de água de múmias que se obtinha banhando a car ne humana em beberagens era uma cura comum para epilepsia e outras doenças em muitos países europeus Este tipo de cani balismo envolvendo carne humana sangue coração crânio medula óssea e outras partes do corpo não estava limitado a grupos marginais era também praticado nos círculos mais res peitáveis GordonGrube 1988 pp 4067194 Portanto o novo horror que os espanhóis sentiram pelas populações indígenas a partir da década de 1550 não pode ser facilmente atribuído a um choque cultural mas sim deve ser visto como uma resposta inerente à lógica da colonização que inevitavelmente precisa desumanizar e temer aqueles que quer escravizar O êxito dessa estratégia pode ser observado na facilidade com que os espanhóis explicaram de forma racional as altas taxas de mortalidade causadas pelas epidemias que dizimaram a região no começo da Conquista e que eles conceberam como um castigo divino pela conduta bestial dos índios195 Também o 194 Na Nova Inglaterra os médicos administravam remédios feitos com cadáveres humanos Entre os mais populares universalmente recomendado como uma panaceia para qualquer problema estava a Múmia um remédio preparado com os restos de um cadáver seco ou embalsamado Em relação ao consumo de sangue humano GordonGruber 1988 p 407 escreve que vender o sangue de criminosos decapitados era uma prerrogativa dos executores Era dado ainda quente a epiléticos ou a outros clientes que esperavam em meio à multidão com o copo na mão no lugar da execução 195 Walter L Williams 1986 p 138 escreve Os espanhóis nunca se deram debate ocorrido em Valladolid em 1550 entre Bartolomé de las Casas e o jurista espanhol Juan Ginés de Sepúlveda sobre se os índios deveriam ou não ser considerados seres humanos teria sido impensável sem uma campanha ideológica que os repre sentasse como animais e demônios196 A divulgação de ilustrações banquetes canibalísticos com multidões de corpos nus oferecendo cabeças e membros humanos como prato principal que retratavam a vida no Novo Mundo com reminiscências dos sabás das bruxas e que começa ram a circular por toda a Europa depois da década de 1550 com pletaram o trabalho de degradação Le Livre des Antipodes 1630 O livro das antípodas compilado por Johann Ludwig Gottfried constitui um exemplo tardio do gênero literário que exibe uma grande quantidade de imagens terrífcas mulheres e crianças empanturrandose com vísceras humanas ou uma comunidade canibal reunida ao redor de uma grelha deleitandose com per nas e braços enquanto observam restos humanos sendo assados Já as ilustrações que aparecem em Les singularités de la France Antarctique Paris 1557 As singularidades da França Antártica realizadas pelo franciscano francês André Thevet centradas no esquartejamento na preparação e na degustação de carne humana e a obra de Hans Staden Wahrhaftige Historia Marburg 1557 Verdadeira história na qual o autor descreve seu cativeiro entre os índios canibais do Brasil Parinetto 1998 p 428 constituem contribuições anteriores à produção cultural dos ameríndios como seres bestiais conta do motivo pelo qual os índios estavam sendo consumidos pelas doenças mas tomaram o fenômeno como um indício de que essa realidade era parte dos planos de Deus para eliminar os infiéis Oviedo concluiu Não é sem motivo que Deus permite que eles sejam destruídos E não tenho dúvidas de que devido a seus pecados Deus logo se livrará deles Mais tarde em uma carta destinada ao rei condenando os Maia por aceitarem o comportamento homossexual afirmou o seguinte Desejo mencionálo a fim de declarar ainda mais fortemente o motivo pelo qual Deus castiga os índios e a razão pela qual não têm sido merecedores de sua misericórdia 196 O fundamento teórico do argumento de Sepúlveda a favor da escravização dos índios era a doutrina de Aristóteles sobre a escravidão natural Hanke 1970 p 16 e segs 391 390 EXPLORAÇÃO RESISTÊNCIA E DEMONIZAÇÃO A decisão da Coroa espanhola de introduzir um sistema muito mais severo de exploração nas colônias americanas na década de 1550 constituiu um dos momentos de virada na propaganda antiíndígena e na campanha antiidolatria que acompanharam o processo de colonização A decisão foi motivada pela crise da economia de rapina introduzida depois da Conquista pela qual a acumulação de riqueza dependia muito mais da expropriação dos excedentes dos bens dos índios do que da exploração direta de seu trabalho Spalding 1984 Steve J Stern 1982 Até a década de 1550 apesar dos massacres e da exploração associados ao sistema de encomienda os espanhóis não haviam desorganizado completamente as economias de subsistência que encontraram nas áreas colonizadas Pelo contrário devido à riqueza que acumularam eles confavam nos sistemas de impostos colocados em prática pelos Asteca e pelos Inca por meio do qual os chefes caciques no México curacas no Peru entregavam aos conquistadores parcelas de bens e trabalho supostamente compatíveis com a sobrevivên cia das economias locais O tributo fxado pelos espanhóis era muito maior do que os Inca e os Asteca impunham àqueles a quem conquistavam mas ainda assim não era sufciente para satisfazer suas necessidades Por volta da década de 1550 passou a ser mais difícil obter mão de obra sufciente tanto para os obrajes ofcinas de manufatura nas quais se produziam bens para o mercado internacional como para a exploração das minas de prata e mercúrio recentemente descobertas como a lendária mina de Potosí197 197 A mina de Potosí foi descoberta em 1545 cinco anos antes do debate entre Las Casas e Sepúlveda A necessidade de extrair mais trabalho das populações indígenas provinha principalmente da situação interna da metrópole A Coroa espanhola estava literalmente navegando em um mar de lingotes de ouro e prata americanos com os quais comprava bens e alimentos que já não se produziam na Espanha Além disso a riqueza produzida pelo saque fnanciou a expansão da Coroa em território europeu Esta situação dependia em tal medida da contínua chegada de grandes quantidades de prata e outro do Novo Mundo que na década de 1550 a Coroa estava preparada para destruir o poder dos encomenderos com a fnalidade de se apropriar de grande parte do trabalho dos índios para a extração de prata que posterior mente seria enviada em navios para a Espanha198 Por outro lado a resistência à colonização estava aumentando Spalding 1984 pp 1345 Stern 1982199 Foi em resposta a este desafo que tanto no México como no Peru se declarou uma guerra contra as culturas indígenas abrindo caminho para uma inten sifcação draconiana do domínio colonial No México essa mudança ocorreu em 1562 quando por iniciativa do provincial Diego de Landa foi lançada uma campanha antiidolatria na Península de Yucatán durante a qual mais de 4500 pessoas foram capturadas e brutalmente torturadas sob a acusação de praticar sacrifícios humanos Em seguida foram objetos de um castigo público bem orquestrado 198 Na década de 1550 a Coroa espanhola dependia de tal forma dos metais preciosos da América para sobreviver e para pagar os mercenários que lutavam em suas guerras que confiscava as cargas de lingotes de ouro e prata que chegavam em navios privados Normalmente estes navios transportavam de volta o dinheiro que havia sido guardado por aqueles que tinham participado da Conquista e que agora estavam se preparando para uma aposentadoria na Espanha Dessa forma durante alguns anos eclodiu um conflito entre os expatriados e a Coroa que culminou na aprovação de uma nova legislação que limitava o poder de acumulação dos primeiros 199 Na obra Tribute to the Household 1982 Tributo para o lar de Enrique Mayer encontrase uma poderosa descrição dessa resistência Nela são descritas as famosas visitas que os encomenderos costumavam fazer às aldeias com a finalidade de fixar o tributo que cada comunidade devia a eles e à Coroa Nos vilarejos andinos a procissão de homens a cavalo podia ser vista horas antes de sua chegada diante da qual muitos jovens fugiam as crianças eram realocadas em casas diferentes e os recursos eram escondidos 393 392 que por fm completou a destruição de seus corpos e de sua moral Clendinnen 1987 pp 7192 As penas foram tão cruéis anos de escravidão nas minas açoites tão severos que fze ram o sangue correr que muita gente morreu ou fcou inváli da outros fugiram de suas casas ou se suicidaram de tal forma que o trabalho terminou e a economia regional foi destruída A perseguição montada por Landa porém se transformou no fundamento de uma nova economia colonial que fez com que a população local entendesse que os espanhóis haviam chegado para fcar e que o domínio dos antigos deuses havia terminado ibidem p 190 No Peru o primeiro ataque em grande escala contra o culto diabólico também ocorreu em 1560 coincidindo com o surgi mento do Taki Onqoy200 um movimento nativo milenarista que argumentava contra a colaboração dos indígenas com os eu ropeus e a favor de uma aliança panandina dos deuses locais huacas para pôr fm à colonização Os takionqos atribuíam a derrota e a crescente mortalidade sofridas pelo seu povo ao abandono dos deuses locais e encorajavam as pessoas a rejei tar a religião cristã os nomes a comida e a roupa recebidas dos espanhóis Também incitavam as pessoas a não pagarem os tributos impostos pelos espanhóis a recusarem submeterse ao trabalho forçado e a abandonarem o uso de camisas chapéus sandálias ou qualquer outro tipo de vestimenta proveniente da Espanha Stern 1982 p 53 Prometiam que se isso aconte cesse os huacas revividos dariam a volta ao mundo e destrui riam os espanhóis enviandolhes doenças e inundações a suas cidades e o oceano se elevaria para apagar todo rastro de sua existência Stern 1982 pp 5264 A ameaça formulada pelos takionqos era séria uma vez que ao convocar uma unifcação panandina dos huacas o 200 O nome Taki Onqoy descreve o transe em que entravam durante a dança os participantes do movimento movimento marcava o começo de um novo senso de identidade capaz de superar as divisões vinculadas à organização tradi cional dos ayullus unidades familiares Nas palavras de Stern essa foi a primeira vez que os povos dos Andes começaram a se enxergar como um só como índios Stern 1982 p 59 De fato o movimento se expandiu amplamente alcançando como extremo norte a cidade de Lima como extremo leste Cuzco e do topo da elevada puna do sul até La Paz na atual Bolívia Spalding 1984 p 246 A resposta veio do conselho eclesiástico realizado em Lima em 1567 que estabeleceu que os sacerdotes deviam extirpar as inumeráveis superstições ceri mônias e ritos diabólicos dos índios Também deviam erradicar a embriaguez prender médicosbruxos e sobretudo descobrir e destruir os lugares sagrados e os talismãs relacionados com o culto dos huacas Essas recomendações foram repetidas em um sínodo celebrado em Quito no ano de 1570 durante o qual novamente foi denunciada a existência de médicosbru xos que protegem os huacas e conversam com o diabo Hemming 1970 p 397 Os huacas eram as montanhas as fontes de água as pedras e os animais que encarnavam os espíritos dos ancestrais Como tais eram cuidados alimentados e adorados de forma coletiva já que todos os consideravam como os principais vín culos com a terra e com as práticas agrícolas primordiais para a reprodução econômica As mulheres falavam com eles como parece ainda acontecer em algumas regiões da América do Sul para se assegurarem de uma boa colheita Descola 1994 pp 191214201 Destruílos ou proibir seu culto era uma forma 201 Philippe Descola escreve que entre os Achuar uma população indígena da alta Amazônia a condição necessária para um cultivo eficaz depende do comércio direto harmonioso e constante com Nunkui o espírito protetor das hortas Descola 1994 p 192 Isso é o que faz toda mulher quando canta canções secretas do coração e ensalmos cura de doenças por meio de feitiços e rezas medicina alternativa mágicos às plantas e ervas de seu jardim encorajandoas a crescer ibidem 198 A relação entre a mulher e o espírito que protege seu jardim é tão íntima que quando ela morre seu jar dim segue seu exemplo dado que à exceção de sua filha solteira nenhuma outra mulher 394 de atacar a comunidade suas raízes históricas a relação do povo com a terra e sua relação intensamente espiritual com a natureza Os espanhóis compreenderam isso na década de 1550 e embarcaram em uma sistemática destruição de tudo aquilo que se assemelhava a um objeto de culto O que Claude Baudez e Sydney Picasso escreveram sobre a campanha antiidolatria dirigida pelos franciscanos contra os Maia em Yucatán também se aplica ao ocorrido no resto do México e no Peru Os ídolos foram destruídos os templos incendiados e aqueles que celebravam ritos nativos e praticavam sacrifícios foram punidos com a morte as festividades tais como os banquetes as canções e as danças assim como as atividades artísticas e intelectuais pintura escultura observação das estrelas escrita hieroglífca suspeitas de serem inspiradas pelo diabo foram proibidas e aqueles que participavam delas foram perseguidos sem misericórdia Baudez e Picasso 1992 p 21 Esse processo veio de mãos dadas com a reforma exigida pela Coroa espanhola que aumentou a exploração do trabalho indígena com a fnalidade de assegurar um maior fuxo de lin gotes de ouro e prata para os seus cofres Para tanto introduziu duas medidas ambas facilitadas pela campanha antiidolatria Em primeiro lugar a cota de trabalho que os chefes locais deviam prover para o trabalho nas minas e obrajes foi aumen tada notavelmente e a execução da nova norma foi posta em mãos de um representante local da Coroa corregidor com o poder de prender e administrar outras formas de punição no caso de desobediência Além disso houve um programa de se animaria a sustentar uma relação desse tipo se ela mesma não houvesse iniciado Quanto aos homens são completamente incapazes de substituir suas esposas se esta necessidade aparecer Quando um homem já não tem uma mulher mãe esposa irmã ou filha que cultive sua horta e prepare sua comida não há alternativa além do suicídio Descola 1994 p 175 Uma mulher andina é obrigada a trabalhar nos obrajes oficinas de manufatura que produziam para o mercado internacional Cena de Felipe Guaman Poma de Ayala em seu manuscrito Nueva crónica y buen gobierno 1615 397 396 reassentamento reducciones que levou a maior parte da popu lação rural a aldeias designadas a fm de controlála mais di retamente A destruição dos huacas e a perseguição da religião ancestral a eles associada tiveram um papel decisivo em ambas as medidas dado que as reducciones adquiriram maior força a partir da demonização dos lugares de culto Rapidamente evidenciouse que sob o manto da cristia nização os povos continuaram adorando a seus deuses da mesma forma que continuaram retornando a suas milpas cam pos depois de terem sido tirados de casa Por isso o ataque aos deuses locais ao invés de diminuir se intensifcou com o pas sar do tempo alcançando seu ápice entre 1619 e 1660 quando a destruição dos ídolos foi acompanhada por verdadeiras caças às bruxas desta vez convertendo em alvo particularmente as mulheres Karen Spalding descreveu uma das caças às bruxas conduzidas no repartimiento repartição de Huarochirí em 1660 pelo sacerdote inquisidor Don Juan Sarmiento Tal como ela assinala a investigação foi dirigida segundo o mesmo pa drão das caças às bruxas realizadas na Europa Começou com a leitura do édito contra a idolatria e com a pregação de um sermão contra este pecado procedimentos seguidos por de núncias secretas fornecidas por informantes anônimos Então se iniciava o interrogatório dos suspeitos o uso de tortura para extrair confssões e fnalmente ditavase a sentença e a puni ção que nesse caso consistia em açoitamento público exílio e outras formas de humilhação As pessoas sentenciadas eram levadas à praça pública colocadas entre mulas e burros com cruzes de madeira de aproximadamente seis polegadas de largura penduradas ao redor de seus pescoços A partir desse dia deveriam levar essas marcas de humilhação As autoridades religiosas colocavam uma coroa medieval sobre suas cabeças um capuz em forma de cone feito de papelão que era a marca europeia e católica da infâmia e da desgraça O cabelo por debaixo dos capuzes era cortado como uma marca de humilhação andina Aqueles que eram condenados a receber chicotadas tinham suas costas despidas Colocavam cordas ao redor de seus pescoços Eram levados lentamente pelas ruas do povoado precedidos por um pregonero202 que lia seus crimes Depois desse espetáculo as pessoas eram trazidas de volta algumas com as costas sangrando devido às vinte quarenta ou cem chibatadas desferidas pelo carrasco com um açoite com tiras de nove nós Spalding 1984 p 256 Spalding conclui As campanhas de idolatria eram rituais exemplares didáticas peças teatrais dirigidas tanto para a audiência como para os participantes parecidas com os enforcamentos públicos da Europa medieval Ibidem p 265 Seu objetivo era intimidar a população criar um espaço de morte203 em que os potenciais rebeldes se sentissem tão paralisados pelo medo que passassem a aceitar qualquer coisa para não ter de enfrentar o tormento daqueles que eram espancados e humilhados publicamente Nisso os espanhóis foram em parte bemsucedidos Graças à tortura às denúncias 202 Na Espanha e em suas colônias pregonero era um oficial público que dava em voz alta notícias de interesse público NTP 203 Esta é a expressão utilizada por Michael Taussig em Shamanism Colonialism and the Wild Man 1987 p 5 Xamanismo colonialismo e o homem selvagem com a finalidade de destacar a função do terror no estabelecimento da hegemonia colonial na América Quaisquer que sejam as conclusões a que cheguemos sobre a rapidez com que se efetivou a hegemonia seria pouco sensato subestimar o papel do terror E com isso quero dizer que devemos analisar a fundo o terror que não constitui apenas um estado fisioló gico mas também social cujas características particulares permitem que ele sirva como um mediador por excelência da hegemonia colonial o espaço da morte onde os índios os africanos e os brancos pariram um Novo Mundo Grifo nosso Taussig acrescenta todavia que o espaço da morte constitui também um espaço de transformação dado que por meio da experiência de encontrarse próximo da morte também é possível experimentar um sentido mais intenso da vida por meio do medo é possível chegar não só a um crescimento da consciência de si mesmo mas também a uma separação e depois a uma perda da adaptação à autoridade ibidem p 7 399 Cena 2 As mulheres como botins da Conquista Cena 1 Humilhação pública durante uma campanha antiidolatria Cena 3 As divindades huacas representadas como demônios falam através de um sonho Cena 4 Um membro do movimento Taki Onqoy com um índio bêbado possuído por uma divindade huaca representada como o diabo Cenas de Felipe Guaman Poma de Ayala representando a terrível experiência das mulheres andinas e dos seguidores da religião dos antepassados Steve J Stern 1982 anônimas e às humilhações públicas muitas alianças e amizades se romperam a fé dos povos na efetividade de seus deuses se debilitou e o culto se transformou em uma prática individual e secreta mais que coletiva tal como havia sido na América antes da Conquista Segundo Spalding a profundidade com que o tecido social se viu afetado por essas campanhas de terror pode ser obser vada nas mudanças que com o passar do tempo começaram a ocorrer na natureza das acusações Enquanto na década de 1550 as pessoas podiam reconhecer abertamente seu apego e o de sua comunidade à religião tradicional na década de 1650 os crimes de que eram acusadas giravam em torno da bruxaria uma prática que agora pressupunha uma conduta secreta e que se parecia cada vez mais com as acusações feitas contra as bruxas na Europa Na campanha lançada em 1660 na zona de Huarochirí por exemplo os crimes descobertos pelas auto ridades estavam vinculados à cura ao achado de objetos perdidos e a outras modalidades do que em termos gerais poderia denominarse bruxaria aldeã No entanto a própria campanha revelava que apesar da perseguição aos olhos das comunidades os antepassados e os huacas continuavam sen do essenciais para sua sobrevivência Spalding 1984 p 261 401 400 MULHERES E BRUXAS NA AMÉRICA Não é coincidência que a maioria dos condenados na inves tigação de 1660 em Huarochirí 28 em um total de 32 fossem mulheres Spalding 1984 p 258 Também não é por acaso que as mulheres tivessem maior presença no movimento Taki Onqoy Foram as mulheres que defenderam de forma mais ferrenha o antigo modo de existência e que se opuseram com mais veemência à nova estrutura de poder provavelmente devido ao fato de serem também as mais afetadas Como mostra a existência de importantes divindades femininas nas religiões précolombianas as mulheres tinham uma posição de poder nessas sociedades Em 1517 Hernández de Córdoba chegou a uma ilha situada a pouca distância da costa da Península de Yucatán e a chamou de Isla Mujeres pois os templos que visitaram ali continham uma grande quantidade de ídolos femininos Baudez e Picasso 1992 p 17 Antes da Conquista as mulheres americanas tinham suas próprias organizações suas esferas de atividade eram reconhecidas socialmente e embora não fossem iguais aos homens204 eram consideradas complementares a eles quanto à 204 Em relação à posição das mulheres no México e no Peru antes da Conquis ta ver respectivamente June Nash 1978 1980 Irene Silverblatt 1987 e María Rostworowski 2001 Nash discute acerca da decadência do poder das mulheres astecas conforme ocorreu a transformação de uma sociedade baseada no parentesco para um império estruturado em classes Assinala que durante o século XV os astecas desen volveramse no sentido da formação de um império guerreiro tendo surgido então uma rígida divisão sexual do trabalho ao mesmo tempo as mulheres dos inimigos vencidos tornaramse o o espólio a ser repartido pelos vitoriosos Nash 1978 pp 3568 Simultaneamente as divindades femininas deram lugar a deuses masculinos especial mente o sanguinário Huitzilopochtli embora continuassem sendo adoradas pela gente comum De todo modo as mulheres da sociedade asteca possuíam muitas habilidades como produtoras independentes de artesanatos de cerâmica e tecidos como sacerdotisas médicas e comerciantes A política de desenvolvimento espanhola em contraposição tal como foi levada a cabo pelos sacerdotes e administradores da Coroa desviou a produção doméstica em direção aos estabelecimentos comerciais de artesanato ou aos moinhos dirigidos por homens Ibidem sua contribuição na família e na sociedade Além de serem agricultoras donas de casa tecelãs e pro dutoras dos panos coloridos utilizados tanto na vida cotidiana quanto durante as cerimônias também eram oleiras herbo ristas curandeiras e sacerdotisas a serviço dos deuses locais No sul do México na região de Oaxaca estavam vinculadas à produção de pulquemaguey uma substância sagrada que segundo acreditavam havia sido inventada pelos deuses e es tava relacionada com Mayahuel uma deusa mãe terra que era o centro da religião campesina Taylor 1970 pp 312 Tudo mudou com a chegada dos espanhóis que trouxeram sua bagagem de crenças misóginas e reestruturaram a eco nomia e o poder político em favor dos homens As mulheres sofreram também nas mãos dos chefes tradicionais que a fm de manter seu poder começaram a assumir a propriedade das terras comunais e a expropriar das integrantes femininas da comunidade o uso da terra e seus direitos sobre a água Na economia colonial as mulheres foram assim reduzidas à condição de servas que trabalhavam como criadas para encomenderos sacerdotes e corregidores ou como tecelãs nos obrajes As mulheres também foram forçadas a acompanhar seus maridos no trabalho de mita nas minas um destino que era considerado pior que a morte uma vez que em 1528 as autoridades estabeleceram que os cônjuges não podiam ser separados um do outro mulheres e crianças seriam assim compelidas a trabalhar nas minas além de prepararem a co mida para os trabalhadores homens A nova legislação espanhola que declarou a ilegalidade da poligamia constituiu outra fonte de degradação para as mulheres Do dia para a noite os homens se viram obrigados a se separar de suas mulheres ou então convertêlas em criadas Mayer 1981 ao passo que as crianças que haviam nascido dessas uniões eram classifcadas de acordo com cinco 403 402 categorias diferentes de ilegitimidade Nash 1980 p 143 Ironicamente com a chegada dos espanhóis ao mesmo tempo que as uniões poligâmicas eram dissolvidas nenhuma mulher indígena se encontrava a salvo do estupro ou do rapto Dessa forma muitos homens em vez de se casarem começaram a recorrer à prostituição Hemming 1970 Na fantasia eu ropeia a América em si era uma mulher nua sensualmente reclinada em sua rede que convidava o estrangeiro branco a se aproximar Em certos momentos eram os próprios homens índios que entregavam suas parentes aos sacerdotes ou aos encomenderos em troca de alguma recompensa econômica ou de um cargo público Por todos esses motivos as mulheres se converteram nas principais inimigas do domínio colonial negandose a ir à missa a batizar seus flhos ou a qualquer tipo de cooperação com as autoridades coloniais e com os sacerdotes Nos Andes algumas se suicidaram e mataram seus flhos homens muito provavelmente para evitar que fossem às minas e também de vido à repugnância possivelmente provocada pelo maustratos que lhe infigiam seus parentes masculinos Silverblatt 1987 Outras organizaram suas comunidades e diante da traição de muitos chefes locais cooptados pela estrutura colonial se converteram em sacerdotisas líderes e guardiãs dos huacas assumindo tarefas que nunca antes haviam exercido Isso explica por que as mulheres constituíram a coluna vertebral do movimento Taki Onqoy No Peru elas também realizaram reuniões confessionais com o fm de preparar as pessoas para o momento em que se encontrassem com os sacerdotes cató licos aconselhando sobre que coisas deveriam contar e quais não deveriam revelar Se antes da Conquista as mulheres esta vam encarregadas exclusivamente das cerimônias dedicadas às divindades femininas posteriormente se converteram em assistentes ou principais ofciantes em cultos dedicados aos huacas dos antepassados masculinos algo que era proibido antes da chegada dos espanhóis Stern 1982 Também luta ram contra o poder colonial escondendose nas zonas mais elevadas punas onde podiam praticar a religião antiga Como assinala Irene Silverblatt 1987 p 197 Enquanto os homens indígenas fugiam da opressão da mita e do tributo abandonando suas comunidades e indo trabalhar como yaconas quaseservos nas novas haciendas as mulheres fugiam para as punas inacessíveis e muito distantes das reducciones de suas comunidades nativas Uma vez nas punas as mulheres rejeitavam as forças e os símbolos de sua opressão desobedecendo os administradores espanhóis e o clero assim como os dirigentes de sua própria comunidade Também rejeitavam energicamente a ideologia colonial que reforçava sua opressão negandose a ir à missa a participar em confssões católicas ou a aprender o dogma católico E o que é ainda mais importante as mulheres não rejeitavam só o catolicismo mas retornavam à sua religião nativa e até onde era possível à qualidade das relações sociais que sua religião expressava Ao perseguir as mulheres como bruxas os espanhóis atingiam tanto os praticantes da antiga religião como os instigadores da revolta anticolonial ao mesmo tempo que tentavam redefnir as esferas de atividade nas quais as mu lheres indígenas podiam participar Silverblatt 1987 p 160 Como assinala Silverblatt o conceito de bruxaria era alheio à sociedade andina No Peru assim como em todas as socie dades préindustriais muitas mulheres eram especialistas no conhecimento médico estavam familiarizadas com as propriedades de ervas e plantas e também eram adivinhas A noção cristã de demônio era desconhecida Não obstante por volta do século XVII devido ao impacto da tortura da intensa perseguição e da aculturação forçada as mulheres andinas 405 404 que acabavam presas em sua maioria idosas e pobres ad mitiam os mesmos crimes que eram imputados às mulheres nos julgamentos de bruxaria na Europa pactos e fornicação com o diabo prescrição de remédios a base de ervas uso de unguento voar pelos ares e fazer amuletos de cera Silverblatt 1987 p 174 Também confessaram adorar as pedras as mon tanhas e os mananciais e alimentar os huacas O pior de tudo foi que reconheceram ter enfeitiçado as autoridades ou outros homens poderosos causando a sua morte ibidem p 1878 Como na Europa a tortura e o terror foram utilizados para forçar os acusados a revelar outros nomes Assim os círculos de perseguição se ampliaram cada vez mais Contudo um dos objetivos da caça às bruxas o isolamento das bruxas do resto da comunidade não foi alcançado As bruxas andinas não foram transformadas em párias Pelo contrário foram muito solicitadas como comadres parteiras e sua presença era requerida em reuniões aldeãs pois na consciência dos coloni zados a bruxaria a continuidade das tradições ancestrais e a resistência política consciente passaram a estar cada vez mais entrelaçadas ibidem De fato graças em grande medida à resistência das mulheres as antigas crenças puderam ser preservadas Houve certas mudanças no sentido das práticas associadas à religião O culto foi levado à clandestinidade às custas do caráter coletivo que tinha na época anterior à Conquista Mas os laços com as montanhas e os outros lugares dos huacas não foram destruídos Encontramos uma situação parecida no centro e no sul do México onde as mulheres sobretudo as sacerdotisas cumpriam um papel importante na defesa de suas comuni dades e culturas Segundo a obra de Antonio García de León Resistencia y Utopía Resistência e utopia as mulheres di rigiram ou guiaram todas as grandes revoltas anticoloniais De León 1985 vol I p 31 ocorridas na região a partir da Conquista Em Oaxaca a presença das mulheres nas rebeliões populares continuou durante o século XVIII Nessa época visivelmente mais agressivas ofensivas e rebeldes Taylor 1979 p 116 elas lideraram um em cada quatro ataques às autoridades Também em Chiapas as mulheres foram os ato reschave da preservação da religião antiga e da luta anticolo nial Quando os espanhóis lançaram uma campanha de guerra para subjugar os rebeldes chiapanecos em 1524 foi uma sacerdotisa quem liderou as tropas nativas contra o invasor As mulheres também participaram das redes clandestinas de adoradores de ídolos e de resistência que eram periodicamen te descobertas pelo clero Em 1584 por exemplo durante uma visita a Chiapas o bispo Pedro de Feria foi informado de que muitos chefes indígenas locais ainda praticavam os antigos cultos e que estes estavam sendo aconselhados por mulheres com as quais mantinham práticas obscenas tais como cerimô nias ao estilo do sabá durante as quais dormiam juntos e se convertiam em deuses e deusas fcando a cargo das mulhe res enviar a chuva e prover riqueza a quem as solicitava De León 1985 vol I p 76 A partir desse registro é irônico que seja Calibã e não sua mãe a bruxa Sycorax quem os revolucionários latinoa mericanos tomaram depois como símbolo da resistência à co lonização Calibã só pôde lutar contra seu senhor insultandoo na linguagem que havia aprendido com ele próprio fazendo que sua rebelião dependesse das ferramentas do senhor Ele também pôde ser enganado quando o fzeram crer que sua libertação chegaria por meio de um estupro e da iniciativa de alguns proletários oportunistas brancos transladados ao Novo Mundo a quem ele adorava como se fossem deuses Em con traposição Sycorax uma bruxa tão poderosa que dominava a lua e provocava os fuxos e refuxos A tempestade ato V cena 1 pode ter ensinado seu flho a apreciar os poderes locais a 407 406 terra as águas as árvores os tesouros da natureza e os la ços comunais que durante séculos de sofrimento continuam nutrindo a luta pela libertação até o dia de hoje e que habita vam como uma promessa a imaginação de Calibã Não tenhas medo esta ilha é sempre cheia de sons ruídos e agradáveis árias que só deleitam sem causarnos dano Muitas vezes estrondamme aos ouvidos mil instrumentos de possante bulha outras vezes são vozes que me fazem dormir de novo embora despertado tenha de um longo sono Então em sonhos presumo ver as nuvens que se afastam mostrando seus tesouros como prestes a sobre mim choverem de tal modo que ao acordar choro porque desejo prosseguir a sonhar Shakespeare A tempestade ato III AS BRUXAS EUROPEIAS E OS ÍNDIOS A caça às bruxas no Novo Mundo teve algum impacto sobre os acontecimentos na Europa Ou ambas as campanhas simples mente faziam uso das mesmas estratégias e táticas repressivas que a classe dirigente europeia havia forjado ainda na Idade Média durante a perseguição dos hereges Faço essas perguntas a partir da tese do historiador italiano Luciano Parinetto para quem a caça às bruxas no Novo Mundo teve um enorme impacto na elaboração da ideologia sobre a bruxaria e na cronologia da caça às bruxas na Europa Em poucas palavras Parinetto sustenta que foi sob o impac to da experiência americana que a caça às bruxas na Europa se transformou em um fenômeno de massas ao longo da segunda metade do século XVI Isso se deve ao fato de que as autorida des e o clero encontraram na América a confrmação de suas teses sobre a adoração ao diabo chegando a crer na existência de populações inteiras de bruxas uma convicção que depois aplicaram a suas campanhas de cristianização na Europa Dessa forma a adoção do extermínio como estratégia política por parte dos Estados europeus foi importada do Novo Mundo que era descrito pelos missionários como a terra do demônio Muito possivelmente foi daí que veio a inspiração para o massacre dos huguenotes e para a massifcação da caça às bruxas a partir das últimas décadas do século XVI Parinetto 1998 pp 41735205 205 Parinetto assinala que a conexão entre o extermínio dos selvagens amerín dios e o dos huguenotes ficou gravada de forma clara na consciência e na literatura dos franceses protestantes depois da Noite de São Bartolomeu influenciando de maneira indi reta os ensaios de Montaigne sobre os canibais e de uma forma completamente distinta a associação que estabeleceu Jean Bodin entre as bruxas europeias e os índios canibais e sodomitas Citando fontes francesas Parinetto sustenta que esta associação entre os selvagens e os huguenotes alcançou seu auge nas últimas décadas do século XVI quando os massacres perpetrados pelos espanhóis na América como a matança ocorrida na Flórida em 1565 de milhares de colonos franceses acusados de serem luteranos tor 409 408 Como utilizar essa teoria e onde traçar a linha entre o expli cável e o especulativo Tratase de uma pergunta que os futuros estudiosos deverão responder Limitome nesse sentido a realizar algumas observações A tese de Parinetto é importante na medida em que nos aju da a dissipar o eurocentrismo que tem caracterizado o estudo da caça às bruxas e potencialmente pode responder a algumas perguntas que têm surgido em torno da perseguição das bruxas europeias Sua principal contribuição está no entanto no fato de que amplia nossa consciência sobre o caráter global do de senvolvimento capitalista e nos ajuda a entender que no século XVI já existia na Europa uma classe dominante implicada em termos práticos políticos e ideológicos na formação de um Segundo Parinetto o uso que os demonólogos fzeram dos relatórios das Índias é uma evidência da decisiva conexão entre ambas as perseguições Parinetto se concentra em Jean Bodin mas também menciona Francesco Maria Guazzo e cita como um exemplo do efeito bumerangue produzido pela im plementação da caça às bruxas na América o caso do inquisidor Pierre Lancre que durante uma perseguição de vários meses na região de Labourd País Basco denunciou toda a população local por bruxaria Além disso Parinetto reforça as evidências de sua tese com uma série de temas que ganhou proeminência no repertório da bruxaria na Europa durante a segunda metade do século XVI canibalismo oferenda de crianças ao diabo uso de unguentos e drogas e identifcação da homossexualidade sodomia com o diabolismo Todos esses temas argumenta Parinetto tiveram matriz no Novo Mundo naramse uma arma política amplamente utilizada na luta contra o domínio espanhol Parinetto 1998 pp 42930 Francesco Maria Guazzo Compendium Maleficarum Milão 1608 Guazzo foi um dos demonólogos mais influenciados pelos relatos vindos das Américas Este retrato de bruxas rodeando os restos de corpos desenterrados ou tirados da forca apresenta reminiscências de um banquete canibal Canibais preparando sua refeição Wahrhaftige Historia de Hans Staden Marburg 1557 411 410 proletariado mundial e que portanto elaborava seus mode los de dominação de acordo com o conhecimento que continua mente adquiria em outras partes do mundo Quanto a suas alegações a história da Europa anterior à Conquista basta para provar que os europeus não precisavam atravessar o oceano para descobrir a vontade de exterminar aqueles que cruzavam seu caminho Também é possível ex plicar a cronologia da caça às bruxas na Europa sem recorrer à hipótese do impacto do Novo Mundo uma vez que o período entre as décadas de 1560 e 1620 testemunhou um empobreci mento generalizado e deslocamentos sociais na maior parte da Europa Ocidental As semelhanças temáticas e iconográfcas entre a caça às bruxas na Europa e na América são muito sugestivas para repen sar a perseguição no Velho Mundo a partir da perseguição que teve lugar no Novo Mundo O uso de unguentos é um dos pontos mais reveladores enquanto as descrições do comportamento dos sacerdotes asteca ou inca durante os sacrifícios humanos evocam características encontradas em algumas demonologias sobre os preparativos das bruxas para o sabá Vejamos a seguinte passagem narrada por Acosta 1590 pp 2623 em que considera a prática americana como uma perversão do hábito cristão de consagrar os sacerdotes com unções Os sacerdotesídolos no México se besuntavam da seguinte maneira Se engorduravam dos pés à cabeça inclusive no cabelo a substância com a qual se manchavam era chá comum porque este desde a Antiguidade sempre constituiu uma oferenda a seus deuses e por isso foi muito adorado esta era a forma comum de se engordurar exceto Preparação para o sabá Gravura alemã do século XVI Preparando uma refeição canibal Wahrhaftige Historia de Hans Staden Marburg 1557 413 412 quando compareciam a um sacrifício ou quando iam às cavernas onde guardavam seus ídolos situação em que utilizavam um unguento diferente para dar coragem Este unguento era feito de substâncias venenosas rãs salamandras cobras com este unguento eles podiam se converter em magos brujos e falar com o diabo Supostamente segundo seus acusadores as bruxas euro peias espalhavam a mesma infusão venenosa sobre seus corpos com a fnalidade de obter o poder de voar até o sabá Mas não é possível garantir que esse assunto tenha se iniciado no Novo Mundo uma vez que nos julgamentos e nas demonologias do século XV já se encontravam referências a mulheres que preparavam unguentos com sangue de sapos ou com ossos de crianças206 Por outro lado é possível que os relatos da América revitalizassem essas acusações acrescentando novos detalhes e outorgando a eles maior autoridade A mesma consideração serve para explicar a semelhança iconográfca entre as imagens do sabá e as diversas representa ções da família e do clã canibal que começaram a aparecer na Europa nos fnais do século XVI e que permitem a compreensão de muitas outras coincidências tais como o fato de que as bruxas tanto na Europa como na América foram acusadas de sacrifcar crianças ao diabo 206 Faço especial referência aos julgamentos que ocorreram na Inquisição em Dauphiné na França na década de 1440 durante os quais inúmeras pessoas pobres camponeses ou pastores foram acusadas de cozinhar crianças para fazer pós mágicos com seus corpos Russell 1972 pp 2178 e à obra Formicarius 1435 do suábio Johannes Nider pertencente à ordem dominicana na qual lemos que as bruxas cozinham seus filhos fervemnos comem sua carne e bebem a sopa que sobra na panela Da matéria sólida elas fazem um unguento ou pomada mágica sendo a obtenção desta a terceira principal causa de assassinato de crianças ibidem p 240 Russell aponta que esse unguento ou pomada foi um dos elementos mais importantes da bruxaria no século XV e seguintes ibidem A CAÇA ÀS BRUXAS E A GLOBALIZAÇÃO A caça às bruxas na América continuou se desenvolvendo em ondas durante a última metade do século XVII até que a persis tência da diminuição demográfca e a crescente segurança polí tica e econômica da estrutura de poder colonial se combinaram colocando fm à perseguição Dessa forma na mesma região em que se desenvolveram as grandes campanhas antiidolatria nos séculos XVI e XVII a Inquisição renunciou a qualquer tentativa de infuenciar as crenças religiosas e morais da população apa rentemente a partir do século XVIII os inquisidores considera vam que elas já não representavam um perigo para o domínio colonial A perseguição deu lugar a uma perspectiva paterna lista que considerava a idolatria e as práticas mágicas como de bilidades de pessoas ignorantes que não deviam ser levadas a sério pela gente de razón Behar 1987 A partir daí a preocupa ção com a adoração ao diabo se deslocou para as plantations que se desenvolviam com o emprego de trabalho escravo no Brasil no Caribe e na América do Norte onde a partir das guerras conduzidas pelo rei Felipe os colonos ingleses justifcaram os massacres dos nativos americanos qualifcandoos de servos do diabo Williams e Williams Adelman 1978 p 143 Os julgamentos de Salem também foram explicados pelas autoridades locais com o argumento de que aqueles que viviam na Nova Inglaterra haviam se estabelecido na terra do diabo Como assinalou Cotton Mather anos mais tarde ao recordarse dos fatos ocorridos em Salem Encontrei algumas coisas estranhas que me fzeram pensar que esta guerra inexplicável a guerra iniciada pelos espíritos do mundo invisível contra as pessoas de Salem poderia ter suas origens entre os 414 índios cujos principais chefes sagamore são famosos inclusive entre alguns de nossos cativos por terem sido horríveis feiticeiros e magos diabólicos que como tais conversavam com os demônios ibidem 145 Nesse contexto é signifcativo que os julgamentos de Salem tenham sido provocados por adivinhações de uma escrava índia do Oeste Tituba uma das primeiras a serem presas e que a última execução de uma bruxa em território de língua inglesa tenha sido a de uma escrava negra Sarah Bassett morta nas Bermudas em 1730 Daly 1978 p 179 De fato no século XVIII a bruxa estava se convertendo em uma praticante africana do obeah um ritual que os colonos temiam e demonizavam por considerálo uma incitação à rebelião No entanto a abolição da escravidão não pressupôs a desaparição da caça às bruxas do repertório da burguesia Pelo contrário a expansão global do capitalismo por meio da colonização e da cristianização assegurou que esta perseguição fosse implantada no corpo das sociedades colonizadas e com o tempo posta em prática pelas comunidades subjugadas em seu próprio nome e contra seus próprios membros Na década de 1840 por exemplo houve uma onda de quei ma de bruxas no oeste da Índia Nesse período foram queima das mais mulheres por serem consideradas bruxas do que por incorrerem na prática do sati Skaria 1997 p 110207 Esses assas 207 Sati era um antigo costume entre algumas comunidades hindus no qual as viúvas se sacrificavam na pira funerária de seu marido morto Tornouse uma prática proibida na Índia a partir do colonialismo britânico NTP Podese ver refletida a africanização da bruxa nesta caricatura de uma pétroleuse em um panfleto contrarrevolucionário de 1871 Notese seu chapéu e brincos incomuns e suas características africanas sugerindo o parentesco entre as comunardas e as mulheres africanas selvagens que incutiam nos escravos a coragem da revolta assombrando a imaginação da burguesia francesa como um exemplo de selvageria política 417 416 sinatos se deram no contexto da crise social causada tanto pelo ataque das autoridades coloniais contra as comunidades que viviam nos bosques indianos nas quais as mulheres tinham um grau de poder muito maior do que nas sociedades de casta instaladas nas regiões de planície como pela desvalorização colonial do poder feminino que teve como resultado o declínio do culto às deusas ibidem p 13940 A caça às bruxas também ocorreu na África onde sobrevive até hoje como um instrumentochave de divisão em muitos países especialmente naqueles que em determinado mo mento estiveram implicados no comércio de escravos como a Nigéria e a África do Sul Nessas regiões a caça às bruxas tem sido acompanhada pela perda de posição social das mulheres provocada pela expansão do capitalismo e pela intensifcação da luta pelos recursos naturais que nos últimos anos vem se agravando pela imposição da agenda neoliberal Como conse quência dessa disputa de vida ou morte por recursos cada vez mais escassos uma grande quantidade de mulheres em sua maioria idosas e pobres foi perseguida durante a década de 1990 no norte da região sulafricana do Transvaal onde setenta delas acabaram queimadas nos primeiros quatro meses de 1994 Diario de México 1994 Também foram denunciados casos de caça às bruxas no Quênia na Nigéria e no Camarões nas déca das de 1980 e 1990 coincidindo com a imposição da política de ajuste estrutural do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial algo que levou a uma nova série de cercamentos cau sando um empobrecimento sem precedentes da população208 208 Com relação à renovada atenção que recebeu a bruxaria na África concei tuada explicitamente em relação às mudanças da modernidade ver a edição de dezem bro de 1998 de African Studies Review Revista Estudos Africanos que é dedicada a esta questão Em particular ver Diane Ciekawy e Peter Geschiere em Containing Witchcraft Conflicting Scenarios in Postcolonial Africa Conter a feitiçaria cenários conflitantes na África póscolonial ibidem pp 114 Ver também Adam Ashforth Witchcraft Violence and Democracy in South Africa Bruxaria violência e democracia na África do Sul Chi cago University of Chicago Press 2005 e o documentário Witches in Exile Bruxas no exílio produzido e dirigido por Allison Berg California Newsreel 2005 Na década de 1980 na Nigéria meninas inocentes confes savam ter matado dezenas de pessoas enquanto em outros países africanos foram encaminhadas aos governantes petições a fm de que as bruxas fossem perseguidas com maior rigor Enquanto isso na África do Sul e no Brasil mulheres idosas foram assassinadas por vizinhos e parentes sob a acusação de bruxaria Ao mesmo tempo um novo tipo de crenças de bru xaria começou a se desenvolver Ditas crenças apresentavam semelhanças com as que foram documentadas por Michael Taussing na Bolívia nas quais os pobres suspeitavam que os nouveau riches novos ricos haviam adquirido sua riqueza por meios ilícitos e sobrenaturais acusandoos de querer trans formar suas vítimas em zumbis e colocálas para trabalhar Gerschiere e Nyamnjoh 1998 pp 734 Poucas vezes chegam à Europa e aos Estados Unidos casos sobre as caçadas de bruxas que ocorrem na África ou na América Latina da mesma forma que as caças às bruxas dos sé culos XVI e XVII tiveram durante muito tempo pouco interesse para os historiadores Inclusive nos casos conhecidos sua im portância é normalmente ignorada de tão disseminada que é a crença de que estes fenômenos pertencem a uma era longínqua sem qualquer vínculo com os dias atuais Se aplicarmos no entanto as lições do passado ao presente nos damos conta de que a reaparição da caça às bruxas em tantas partes do mundo durante a década de 1980 e 1990 cons titui um sintoma claro de um novo processo de acumulação primitiva o que signifca que a privatização da terra e de outros recursos comunais o empobrecimento massivo o saque e o fomento de divisões de comunidades que antes estavam em coesão têm voltado a fazer parte da agenda mundial Se as coi sas continuarem dessa forma comentavam as idosas de uma aldeia senegalesa a um antropólogo norteamericano expres sando seus temores em relação ao futuro nossas crianças 418 se comerão umas às outras E com efeito isto é o que se consegue por meio da caça às bruxas seja orquestrada de cima para baixo como uma forma de criminalização da resistência à expropriação ou de baixo para cima como um meio para se apropriar dos recursos cada vez mais escassos como parece ser o caso de alguns lugares na África atualmente Em alguns países este processo requer ainda uma mobi lização de bruxas espíritos e diabos Mas não deveríamos nos enganar pensando que isso não nos concerne Como Arthur Miller observou em sua interpretação dos julgamentos de Salem assim que despojamos de parafernália metafísica a per seguição às bruxas começamos a reconhecer nela fenômenos que estão muito próximos a nós 421 420 AGRADECIMENTOS Para as muitas bruxas que conheci no movimento de mulheres e para outras bruxas cujas histórias me acompanharam por mais de 25 anos deixando um desejo inesgotável de contálas para que as pessoas as conheçam para ter certeza de que não serão esquecidas Para nosso irmão Jonathan Cohen cujo amor coragem e resistência implacável à injustiça me ajudaram a não perder a confança na possibilidade de mudar o mundo e na capacidade dos homens de tornar sua a luta pela liberação das mulheres Para as pessoas que me ajudaram a produzir este volume Agradeço a George Cafentzis com quem discuti todos os aspectos deste livro a Mitchell Cohen pelos excelentes comentários pela edição de parte do manuscrito e pelo apoio entusiasmado a este projeto a Ousseina Alidou e Maria Sari por me apresentarem o trabalho de Maryse Condé a Ferruccio Gambino por chamar minha atenção para a existência de escravidão na Itália nos séculos xvi e xvii a David Goldstein pelos materiais da pharmakopeia das bruxas a Conrad Herold por contribuir com minha pesquisa sobre a caça às bruxas no Peru a Massimo de Angelis por me dar seus escritos sobre acumulação primitiva e organizar um importante debate sobre esse tópico no The Commoner a Willy Murunga pelos materiais sobre os aspectos legais da feitiçaria na África Oriental Agradeço ainda a Michaela Brennan e Veena Viswanatha por ler o manuscrito e me dar con selhos e apoio a Mariarosa Dalla Costa Nicholas Faraclas Leopoldina Fortunati Everet Green Peter Linebaugh Bene Madunagu Maria Mies Ariel Salleh e Hakim Bey Seus trabalhos foram um ponto de partida para a perspectiva que dá forma a Calibã e a bruxa embora eles possam não estar de acordo com tudo o que escrevi aqui Agradeço especialmente a Jim Fleming Sue Ann Harkey Ben Meyers e Erika Biddle que dedicaram muitas horas a este livro e com paciência e assis tência me deram a possibilidade de terminálo a despeito da minha infnita procrastinação SILVIA FEDERICI NOVA YORK PRIMAVERA DE 2004 423 422 SOBRE A AUTORA Silvia Federici é uma intelectual militante de tradição feminista marxista autônoma Nascida na cidade italiana de Parma em 1942 mudouse para os Estados Unidos em 1967 onde foi cofundadora do International Feminist Collective Coletivo internacional feminista participou da Wages for Housework Campaign Campanha por um salário para o trabalho doméstico e contribuiu com o Midnight Notes Collective Coletivo notas da meianoite Durante os anos 1980 foi professora na Universidade de Port Harcourt na Nigéria onde acompanhou a organização feminista Women in Nigeria Mulheres na Nigéria e contribuiu para a criação do Committee for Academic Freedom in Africa Comitê para a liberdade acadêmica na África Na Nigéria pôde ainda presenciar a implementação de uma série de ajustes estruturais patrocinada pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial Atualmente Silvia Federici é professora emérita da Universidade de Hofstra em Nova York Além de Calibã e a bruxa escreveu o livro Revolution at Point Zero Housework Reproduction and Feminist Strugle Revolução em ponto zero trabalho doméstico reprodução e luta feminista inédito no Brasil e possui inúmeros artigos sobre feminismo colonialismo globalização trabalho precário commons e outros temas correlatos FOTO JULIANA BITTENCOURT 424 425 IMAGENS O Coletivo Sycorax e a Editora Elefante agradecem a editora Autonomedia pela cessão de toda a base gráfca que acom panha a presente edição A editora Autonomedia publicou a primeira edição deste livro em inglês em 2004 É um projeto sem ânimo de lucro de trabalho voluntário e para o inte resse geral Agradecemos às seguintes pessoas e entidades por facilitar o exercício do uso legítimo das imagens como estabelece o domínio público p 6 Tacuinum Sanitatis MS Viena Osterreichische Nationalbibliothek Viena Sally Fox 1985 p 24 JeanMichael Sallaman 1995 p 39 e 40 British Library Londres p 46 British Museum Londres p 65 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Luxemburgo com fundos do Ministério Federal para a Cooperação Econômica e de Desenvolvimento da Alemanha bmz Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Angélica Ilacqua CRB87057 Federici Silvia Calibã e a bruxa mulheres corpo e acumulação primitiva Sivia Federici Título original Caliban and the Witch Women the Body and Primitive Accumulation Tradução coletivo Sycorax São Paulo Elefante 2017 464 p 145 x 23 cm ISBN 9788593115035 1 Mulheres Europa Condições sociais 2 Mulheres Europa Condições econômicas 3 Capitalismo Europa História 4 Feminismo I Título II Coletivo Sycorax 170934 CDD 30542094 Índices para catálogo sistemático 1 Mulheres Europa História CALIBAJAQUETAƒ6indd 46 290617 1342 FONTES Guardian Akhand PAPEL Supremo alta alvura 300 gm2 e Pólen soft 70 gm2 IMPRESSÃO RR Donnelley TIRAGEM 3000 exemplares EDITORAELEFANTECOMBR ISBN 9788593115035 SILVIA FEDERICI SILVIA FEDERICI As acadêmicas feministas desenvolveram um esquema interpretativo que lança bastante luz sobre duas questões históricas muito importantes como explicar a execução de centenas de milhares de bruxas no começo da Era Moderna e por que o surgimento do capitalismo coincide com essa guerra contra as mulheres Segundo esse esquema a caça às bruxas buscou destruir o controle que as mulheres haviam exercido sobre sua própria função reprodutiva e preparou o terreno para o desenvolvimento de um regime patriarcal mais opressor Essa interpretação também defende que a caça às bruxas tinha raízes nas transformações sociais que acompanharam o surgimento do capitalismo No entanto as circunstâncias históricas específicas em que a perseguição às bruxas se desenvolveu e as razões pelas quais o surgimento do capitalismo exigiu um ataque genocida contra as mulheres ainda não tinham sido investigadas Essa é a tarefa que empreendo em Calibã e a bruxa começando pela análise da caça às bruxas no contexto das crises demográfica e econômica europeias dos séculos XVI e XVII e das políticas de terra e trabalho da época mercantilista Meu esforço aqui é apenas um esboço da pesquisa que seria necessária para esclarecer as conexões mencionadas e especialmente a relação entre a caça às bruxas e o desenvolvimento contemporâneo de uma nova divisão sexual do trabalho que confinou as mulheres ao trabalho reprodutivo No entanto convém demonstrar que a perseguição às bruxas assim como o tráfico de escravos e os cercamentos constituiu um aspecto central da acumulação e da formação do proletariado moderno tanto na Europa como no Novo Mundo SILVIA FEDERICI TRADUÇÃO COLETIVO SYCORAX MULHERES CORPO E ACUMULAÇÃO PRIMITIVA MULHERES CORPO E ACUMULAÇÃO PRIMITIVA CALIBÃ E A BRUXA CALIBAJAQUETAƒ6indd 13 290617 1342 RESENHA CRITICA Calibã e a bruxa mulheres corpo e acumulação primitiva de Silvia Federici FEDERICI Silvia Calibã e a bruxa mulheres corpo e acumulação primitiva Rio de Janeiro Editora Elefante 2017 Federici é uma escritora militante feminista O livro intitulado Calibã e a bruxa é uma forma de demonstrar a libertação das mulheres em relação as imposições sociais masculinas O principal objetivo encontrado no livro é a análise histórica que envolve a discriminação de gênero o capitalismo e como a sociedade é firmada em ideais construídos em torno de distinções sexuais O capitulo quatro a grande caçada às bruxas na Europa demonstrando ao longo da leitura como essa parte da história é deixada de lado nos estudos sobre a Europa a autora destaca que as principais vítimas foram mulheres camponesas pobres o que ressalta que essa caça não foi motivada por dinheiro mas sim por preconceito o que muitas vezes explica o fato de serem abandonadas por historiadores representando como a desigualdade social esteve presente não somente nos dias atuais como também em boa parte dos fatos históricos globais Para a autora o livro foi criado para o leitor identificar como os processos históricos entorno das relações sociais e como elas eram estruturadas Federici usa o trabalho de Marx para se basear em muitos trechos do capitulo o trabalho dessas mulheres é visto como uma mão de obra inútil ou menos vantajoso do que os dos homens nesse sentido a autora desperta a curiosidade do leitor ao destacar as relações de consumo e o trabalho escravo na colheita de café e cana de açúcar Um fato interessante sobre a caçada as bruxas trazida pela autora é que os caçadores eram em sua totalidade homens considerados dignos e com heranças grandiosas no período do século XVI essas mulheres denominadas de bruxas eram consideradas pessoas que sofriam de alucinações essas alucinações se tratavam de questões relacionadas a desigualdade de gênero essa perseguição é tratada no capitulo por Federici como uma forma de terapia social todas aquelas que não seguiam padrões ou pensassem diferente das ordens masculinas eram taxadas por bruxas esse retrato da sociedade durante esse século foi tratado com grande maestria e objetividade por parte da autora destacando os pontos necessários históricos para ilustrar ao leitor como esse período era cruel e preconceituoso com as mulheres Essa caçada as bruxas ainda são definidas pela obra The History of Psychiatry A história da psiquiatria de F G as bruxas acusadas frequentemente davam razão a seus perseguidores Uma bruxa mitigava sua culpa confessando suas fantasias sexuais em audiência pública ao mesmo tempo alcançava certa gratificação erótica ao se ater a todos os detalhes diante de seus acusadores masculinos Estas mulheres gravemente perturbadas do ponto de vista emocional eram particularmente suscetíveis à sugestão de que abrigavam demônios e diabos e estavam dispostas a confessar sua convivência com espíritos malignos da mesma maneira que hoje em dia os indivíduos perturbados influenciados pelas manchetes dos jornais fantasiam serem assassinos procurados Nesse sentido observase que a caça às bruxas era uma forma de punir as vítimas e colocar nas mesmas a culpa por tal punição a autora ressalta a importância do movimento feminista para proporcionar o fim da caça às bruxas uma vez que milhares de mulheres foram torturadas e assassinadas por métodos como enforcamento queimadas pelo simples fato de pensarem diferentes dos homens ou não estarem dispostas a seguirem o conservadorismo patriarcal presente no período a caça às bruxas é conhecida como um processo de extermínio e colonização Tal período foi marcado como um dos acontecimentos importantes no desenvolvimento do proletariado o capitulo e o livro de Federici o capitalismo é ressaltado como uma espécie de transição a autora demonstra como essas relações são importantes a autora foi motivada a escrever esse livro principalmente por ser importante apresentar o capitalismo com base nas visões feministas e também pelo fato das mulheres serem sempre colocadas como figuras de loucas e com tratamentos inferiores aos homens por meio deste livro é visto que os preceitos em volta da desigualdade de gênero sempre estiveram presentes ao longo da história associados principalmente a questões capitalistas A autora ainda analisa a transição do feudalismo para o capitalismo como as mulheres enxergaram essa transição e como a cumulação primitiva estava associada aos corpos femininos e o marco conceitual feminista e marxista presente na leitura A caça as bruxas é um retrato da divisão social entre mulheres e homens onde coloca esses homens como figuras que impuseram poder e as mulheres como representantes da subordinação esses elementos são destacados pela autora como uma forma de ilustrar ao leitor como a reprodução social e como essa caçada contribuiu para o proletariado moderno dos dias atuais Federici usou de muitas ligações entre passado e presente ao longo de seu livro esse traço é de suma importância para chegar ao ponto principal do livro como a religião contribuiu fortemente para esse genocídio A igreja católica contribuiu com ideais sobre essas bruxas estimulando diretamente tal perseguição nesse ponto qualquer mulher vista como imoral não digna revoltada ou até mesmo aquelas que nasciam de forma diferente do habitual eram queimadas em praça pública muito se conhece desse período como a parte de castigar as bruxas isso ressalta como a igreja durante um longo período parecia odiar as mulheres a autora ainda argumenta que não somente a igreja católica mantinha acaçá as bruxas como uma forma de castigo como também os protestantes esses dois grupos se uniram para compartilhar essa ideologia baseada em discriminação e preconceito esse acontecimento como ressalta a autora foi o primeiro laço político entre essas nações europeias Observase que o preconceito é o principal motivador dessa caçada A autora ainda indigna os questionamentos Que medos instigaram semelhante política combinada de genocídio Por que se desencadeou semelhante violência E por que foram as mulheres seus alvos principais Questionamentos que levam ao leitor a refletir sobre o papel da mulher na história pensando nisso observouse que a sociedade capitalista viu as mulheres muitas vezes como produtos pertencentes a função de trabalho com uma visão acerca do destino Os corpos femininos eram vistos tantas vezes como um domínio masculino pedaços de carne manipulados por homens e quando esses corpos tomaram consciência de seu poder não aceitaram mais serem dominadas e mantadas por isso a caçada as bruxas representam a primeira luta feministas no mundo a autora usou de exemplos práticos para fundamentar seu entendimento o que passa uma maior segurança ao leitor sobre a veracidade dos fatos apresentados no decorrer da leitura A partir daí a autora passou a analisar como a política dos corpos em relação ao contexto feminista revolucionou uma ideia filosófica e política presente na época o que ressaltou hoje a importância de valorizar o corpo feminino e como a autora desempenhou um papel primordial na possibilidade de debater sobre as ideias negativas acarretadas dentro da sombra de feminilidade que obrigatoriamente as mulheres deveriam possuir As mulheres na visão de Federici significam uma parte de suma importância dentro da história global como também uma exploração de considerar os reflexos dessas lutas durante a caçada das bruxas até os dias atuais com o feminismo moderno muitas vezes as mulheres eram associadas a figuras diabólicas o corpo feminino era visto como uma demonstração de tentação e as mulheres que não seguiam as imposições do que era tratado como imoralidade eram jogadas na fogueira uma vez que essas eram a personificação de tudo que a igreja abominava e considerava riscos ao crescimento da religião e dominação masculina Essa perseguição as bruxas relevada pela autora ainda demonstra como a história é preenchida por momentos sombrios o livro enfatiza principalmente a busca por igualdade de gênero e como essa perseguição deve ser vista como um processo de missiologia de gênero o entendimento dos povos antigos é que as mulheres estariam mais suscetíveis a se envolver com bruxaria e magias porque estavam sempre correndo riscos de entrar em colapsos Em resumo as páginas trazem um estudo quanto ao capitalismo preconceito e transição de tempos históricos importantes que muitas vezes são esquecidos por quem conta a história Federici trouxe ideias sobre essas caçadas as mulheres demonstrando ao leitor o lado escuro que existe em todo contexto de lutas por direitos iguais REFERENCIAS CHRISTIANSEN Rupert 1994 Paris Babylon The Story of the Paris Commune Nova York Viking ed bras Paris Babilônia a capital FEDERICI Silvia Calibã e a bruxa mulheres corpo e acumulação primitiva Rio de Janeiro Editora Elefante 2017 Oct 11 2023 Plagiarism Scan Report Excluded URL None Content Checked for Plagiarism Os corpos femininos eram vistos tantas vezes como um domínio masculino pedaços de carne manipulados por homens e quando esses corpos tomaram consciência de seu poder não aceitaram mais serem dominadas e mantadas por isso a caçada as bruxas representam a primeira luta feministas no mundo a autora usou de exemplos práticos para fundamentar seu entendimento o que passa uma maior segurança ao leitor sobre a veracidade dos fatos apresentados no decorrer da leitura A partir daí a autora passou a analisar como a política dos corpos em relação ao contexto feminista revolucionou uma ideia losóca e política presente na época o que ressaltou hoje a importância de valorizar o corpo feminino e como a autora desempenhou um papel primordial na possibilidade de debater sobre as ideias negativas acarretadas dentro da sombra de feminilidade que obrigatoriamente as mulheres deveriam possuir As mulheres na visão de Federici signicam uma parte de suma importância dentro da história global como também uma exploração de considerar os reexos dessas lutas durante a caçada das bruxas até os dias atuais com o feminismo moderno muitas vezes as mulheres eram associadas a guras diabólicas o corpo feminino era visto como uma demonstração de tentação e as mulheres que não seguiam as imposições do que era tratado como imoralidade eram jogadas na fogueira uma vez que essas eram a personicação de tudo que a igreja abominava e considerava riscos ao crescimento da religião e dominação masculina Essa perseguição as bruxas relevada pela autora ainda demonstra como a história é preenchida por momentos sombrios o livro enfatiza principalmente a busca por igualdade de gênero e como essa perseguição deve ser vista como um processo de missiologia de gênero o entendimento dos povos antigos é que as mulheres estariam mais suscetíveis a se envolver com bruxaria e magias porque estavam sempre correndo riscos de entrar em colapsos Em resumo as páginas trazem um estudo quanto ao capitalismo preconceito e transição de tempos históricos importantes que muitas vezes são esquecidos por quem conta a história Federici trouxe ideias sobre essas caçadas as mulheres demonstrando ao leitor o lado escuro que existe em todo contexto de lutas por direitos iguais Nesse sentido observase que a caça às bruxas era uma forma de punir as vítimas e colocar nas mesmas a culpa por tal punição a autora ressalta a importância do movimento feminista para proporcionar o m da caça às bruxas uma vez que milhares de mulheres foram torturadas e assassinadas por métodos como enforcamento 0 Plagiarized 100 Unique Characters6263 Words992 Sentences36 Speak Time 8 Min Page 1 of 3 queimadas pelo simples fato de pensarem diferentes dos homens ou não estarem dispostas a seguirem o conservadorismo patriarcal presente no período a caça às bruxas é conhecida como um processo de extermínio e colonização Tal período foi marcado como um dos acontecimentos importantes no desenvolvimento do proletariado o capitulo e o livro de Federici o capitalismo é ressaltado como uma espécie de transição a autora demonstra como essas relações são importantes a autora foi motivada a escrever esse livro principalmente por ser importante apresentar o capitalismo com base nas visões feministas e também pelo fato das mulheres serem sempre colocadas como guras de loucas e com tratamentos inferiores aos homens por meio deste livro é visto que os preceitos em volta da desigualdade de gênero sempre estiveram presentes ao longo da história associados principalmente a questões capitalistas A autora ainda analisa a transição do feudalismo para o capitalismo como as mulheres enxergaram essa transição e como a cumulação primitiva estava associada aos corpos femininos e o marco conceitual feminista e marxista presente na leitura A caça as bruxas é um retrato da divisão social entre mulheres e homens onde coloca esses homens como guras que impuseram poder e as mulheres como representantes da subordinação esses elementos são destacados pela autora como uma forma de ilustrar ao leitor como a reprodução social e como essa caçada contribuiu para o proletariado moderno dos dias atuais Federici usou de muitas ligações entre passado e presente ao longo de seu livro esse traço é de suma importância para chegar ao ponto principal do livro como a religião contribuiu fortemente para esse genocídio A igreja católica contribuiu com ideais sobre essas bruxas estimulando diretamente tal perseguição nesse ponto qualquer mulher vista como imoral não digna revoltada ou até mesmo aquelas que nasciam de forma diferente do habitual eram queimadas em praça pública muito se conhece desse período como a parte de castigar as bruxas isso ressalta como a igreja durante um longo período parecia odiar as mulheres a autora ainda argumenta que não somente a igreja católica mantinha acaçá as bruxas como uma forma de castigo como também os protestantes esses dois grupos se uniram para compartilhar essa ideologia baseada em discriminação e preconceito esse acontecimento como Federici é uma escritora militante feminista O livro intitulado Calibã e a bruxa é uma forma de demonstrar a libertação das mulheres em relação as imposições sociais masculinas O principal objetivo encontrado no livro é a análise histórica que envolve a discriminação de gênero o capitalismo e como a sociedade é rmada em ideais construídos em torno de distinções sexuais O capitulo quatro a grande caçada às bruxas na Europa demonstrando ao longo da leitura como essa parte da história é deixada de lado nos estudos sobre a Europa a autora destaca que as principais vítimas foram mulheres camponesas pobres o que ressalta que essa caça não foi motivada por dinheiro mas sim por preconceito o que muitas vezes explica o fato de serem abandonadas por historiadores representando como a desigualdade social esteve presente não somente nos dias atuais como também em boa parte dos fatos históricos globais Para a autora o livro foi criado para o leitor identicar como os processos históricos Page 2 of 3 entorno das relações sociais e como elas eram estruturadas Federici usa o trabalho de Marx para se basear em muitos trechos do capitulo o trabalho dessas mulheres é visto como uma mão de obra inútil ou menos vantajoso do que os dos ho Sources Home Blog Testimonials About Us Privacy Policy Copyright 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EDITORAELEFANTECOMBR ISBN 9788593115035 SILVIA FEDERICI SILVIA FEDERICI As acadêmicas feministas desenvolveram um esquema interpretativo que lança bastante luz sobre duas questões históricas muito importantes como explicar a execução de centenas de milhares de bruxas no começo da Era Moderna e por que o surgimento do capitalismo coincide com essa guerra contra as mulheres Segundo esse esquema a caça às bruxas buscou destruir o controle que as mulheres haviam exercido sobre sua própria função reprodutiva e preparou o terreno para o desenvolvimento de um regime patriarcal mais opressor Essa interpretação também defende que a caça às bruxas tinha raízes nas transformações sociais que acompanharam o surgimento do capitalismo No entanto as circunstâncias históricas específicas em que a perseguição às bruxas se desenvolveu e as razões pelas quais o surgimento do capitalismo exigiu um ataque genocida contra as mulheres ainda não tinham sido investigadas Essa é a tarefa que empreendo em Calibã e a bruxa começando pela análise da caça às bruxas no contexto das crises demográfica e econômica europeias dos séculos XVI e XVII e das políticas de terra e trabalho da época mercantilista Meu esforço aqui é apenas um esboço da pesquisa que seria necessária para esclarecer as conexões mencionadas e especialmente a relação entre a caça às bruxas e o desenvolvimento contemporâneo de uma nova divisão sexual do trabalho que confinou as mulheres ao trabalho reprodutivo No entanto convém demonstrar que a perseguição às bruxas assim como o tráfico de escravos e os cercamentos constituiu um aspecto central da acumulação e da formação do proletariado moderno tanto na Europa como no Novo Mundo SILVIA FEDERICI TRADUÇÃO COLETIVO SYCORAX MULHERES CORPO E ACUMULAÇÃO PRIMITIVA MULHERES CORPO E ACUMULAÇÃO PRIMITIVA CALIBÃ E A BRUXA CALIBAJAQUETAƒ6indd 13 290617 1342 9 8 editado também no México na Argentina na Áustria e recen temente no Equador e na França Essa repercussão revela a importância da obra cuja publicação vinculase a editoras e projetos que insistem na necessidade de oferecer ferramentas intelectuais para o ciclo de lutas em curso formando assim uma espécie de círculo conspiratório A publicação de Calibã e a bruxa ganha pertinência após a onda de levantes ocorridos em todo o mundo e sobretudo na América Latina onde a contribuição dos afrodescendentes e dos indígenas recolocou conceitos e afrmou posicionamentos que provocaram mudanças no movimento feminista além de suscitar certa inquietude sobre as bases e as fontes do conheci mento no Ocidente Para o Coletivo Sycorax a publicação deste livro no Brasil é uma possibilidade de ampliar a compreensão sobre as conse quências do processo de acumulação primitiva do capital nas Américas como a invisibilização de grupos politicamente mi noritários e a perda de direitos comuns arduamente conquista dos outrora A obra também enriquece o conhecimento sobre as técnicas de controle social e extermínio tomando como base o caso da caça às bruxas na Europa e na América Lançamos uma versão eletrônica do livro em setembro de 2016 com uma mesa de debates composta por Silvia Federici Débora Maria da Silva Movimento Mães de Maio Regiany Silva Nós Mulheres da Periferia e Monique Prada Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais O debate foi realizado na Escola Ocupada Livre em São Paulo edifício ocupado por integrantes do Movimento Terra Livre que abriga uma série de eventos formativos na linha da educação popular Agradecemos imensamente a todas e todos que possibilitaram esse encontro e deixamos o endereço eletrô nico para quem se interessar pela leitura no arquivo digital coletivosycoraxorg Na ocasião discutimos a atualidade do tema da caça às bruxas no Brasil tendo como foco as estratégias relançadas pelo capitalismo a cada grande crise e as possibilidades de resistência dos movimentos de mulheres Para além de pensar o tema apenas circunscrito à Inquisição no Brasil e à caça às bruxas do período colonial entendemos que esse fenômeno ainda está presente no encarceramento massivo de mulheres negras perpetrado pelo Estado na subrepresen tação ou representação deturpada da mulher nos meios de comunicação nas violências obstétricas contra as cidadãs que recorrem ao Sistema Único de Saúde SUS nos corpos das vítimas da violência policial nas periferias e na expe riência cotidiana de perseguição silenciamento agressão e invisibilização das mulheres trans travestis e prostitutas entre tantos paralelos essenciais Nesse sentido durante o debate de lançamento da edição eletrônica de Calibã e a bruxa todas as convidadas dialoga ram com as ponderações de Silvia Federici a partir das suas próprias experiências sublinhando em cada caso como as dis cussões travadas no livro poderiam contribuir para os desafos que enfrentam no dia a dia A publicação em português é uma iniciativa independente e coletiva inicialmente vinculada à Revista Geni e concebida como uma tradução em fascículos que comporia por alguns meses uma coluna na revista Ao longo do processo opta mos pela publicação integral da obra mas o apoio da Geni continuou Conforme nos debruçávamos na tarefa fomos constituindo as bases do que se tornou o Coletivo Sycorax Aline Sodré Cecília Rosas Juliana Bittencourt Leila Giovana Izidoro Lia Urbini e Shisleni de OliveiraMacedo Mulheres de diferentes áreas de trabalho formação e militância Optamos por batizar o coletivo infuenciadas pela leitura do livro de Silvia e pelo referencial da obeah woman representada 11 10 por Sycorax em A tempestade de Shakespeare Carolina Menegatti Gustavo Motta Mariana Kinjo Marcos Visnadi Raquel Parrine e Nina Meirelles se somaram ao percurso tri lhado para o projeto de Calibã e a bruxa A edição impressa só foi possível graças ao estímulo de Ana Rüsche à parceria com a Editora Elefante e ao apoio do escritório regional da Fundação Rosa Luxemburgo em São Paulo Somos profundamente gratas Encerramos esta pequena nota recomendando a leitura de outro livro de Silvia Federici Revolution at Point Zero Housework Reproduction and Feminist Strugle Revolução no ponto zero trabalho doméstico reprodução e lutas feministas ainda sem edição em português mas publicado em espanhol pela Trafcantes de Sueños Esta compilação de textos escritos pela pensadora italiana ao longo de mais quarenta anos de ativismo combinando uma análise marxista e anticapitalista a uma aguda crítica feminista oferece ferramentas sólidas para o entendimento da forma de narrar e articular as fontes históricas e referências que fundamentam a argumentação da autora COLETIVO SYCORAX SÃO PAULO VERÃO DE 2017 PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA Realizado durante quase três décadas Calibã e a bruxa foi originalmente concebido como uma contribuição para o mo vimento de libertação das mulheres e em particular para o combate à subordinação das mulheres aos homens luta que foi a força motriz do movimento feminista Seu objetivo ori ginal era demonstrar a partir de uma análise histórica que a discriminação contra as mulheres na sociedade capitalista não é o legado de um mundo prémoderno mas sim uma formação do capitalismo construída sobre diferenças sexuais existentes e reconstruída para cumprir novas funções sociais Esse ponto foi importante no contexto da política feminis ta dos anos 1970 como contraponto à teoria marxistaleninista de que as mulheres têm menos poder social do que os homens no capitalismo porque como donas de casa estão fora das relações capitalistas uma visão cuja tradução política seria a emancipação das mulheres por meio do trabalho assala riado Para muitas feministas especialmente na Wages for Housework Campaign Campanha por um salário para o traba lho doméstico à qual me juntei em 1972 isso era inaceitável Rejeitamos a suposição de que o caminho para a libertação das mulheres seria ocupar os mesmos empregos fabris que os trabalhadores estavam recusando Sabíamos também dos esforços que os governos da Europa e da América do Norte tinham feito após 1945 para mandar as mulheres de volta ao lar e reconstituir a fgura da dona de casa em tempo integral que havia sido minada pelo esforço de guerra Não podería mos portanto acreditar que o trabalho doméstico fosse um remanescente do passado que não desempenhasse nenhuma função na organização capitalista do trabalho ou que nossa su bordinação aos homens pudesse ser atribuída à nossa exclusão 13 12 da produção socialmente necessária como os marxistas ortodoxos com base em A origem da família da propriedade privada e do Estado de Engels ainda sustentam Contra esse ponto de vista argumentamos em vários arti gos panfetos e folhetos que longe de ser um resquício préca pitalista o trabalho doméstico não remunerado das mulheres tem sido um dos principais pilares da produção capitalista ao ser o trabalho que produz a força de trabalho Argumentamos ainda que nossa subordinação aos homens no capitalismo foi causada por nossa não remuneração e não pela natureza im produtiva do trabalho doméstico e que a dominação masculi na é baseada no poder que o salário confere aos homens Foi nesse contexto que nasceu Calibã e a bruxa já que pa recia importante identifcar os processos históricos pelos quais essas relações estruturais foram construídas A este respeito o trabalho de Marx não nos foi útil Os três tomos de O capital foram escritos como se as atividades diárias que sustentam a reprodução da força de trabalho fossem de pouca importância para a classe capitalista e como se os trabalhadores se repro duzissem no capitalismo simplesmente consumindo os bens comprados com o salário Tais suposições ignoram não só o trabalho das mulheres na preparação desses bens de consumo mas o fato de que muitos dos bens consumidos pelos traba lhadores industriais como açúcar café e algodão foram produzidos pelo trabalho escravo empregado por exemplo nas plantações de cana brasileiras A tarefa que Calibã e a bruxa se propôs realizar foi a de escrever a história esquecida das mulheres e da reprodução na transição para o capitalismo Entretanto o livro não é um apêndice ao relato de Marx sobre a acumulação primitiva Como eu estava por descobrir analisar o capitalismo do ponto de vista da reprodução da vida e da força de trabalho signifca va repensar todo o processo de sua formação É por isso que além de revisitar a caça às bruxas dos sécu los XVI e XVII a ascensão da família nuclear e a apropriação es tatal da capacidade reprodutiva das mulheres Calibã e a bruxa também estuda a colonização da América a expulsão do cam pesinato europeu dos seus bens comuns e o processo pelo qual o corpo proletário foi transformado em uma máquina de trabalho De fato uma das principais contribuições de Calibã e a bruxa para a história das transformações na reprodução da vida e na força de trabalho durante a transição para o capita lismo é que o livro reúne análises sociais políticas e flosóf cas que geralmente são separadas por linhas disciplinares Desta história Calibã e a bruxa narra apenas uma parte Falta ainda uma análise da exploração capitalista da natureza e seu impacto no trabalho reprodutivo A função que o tra balho escravo desempenhou na reprodução do proletariado industrial e sua integração com a produção industrial por meio da produção de açúcar café chá e rum os combustíveis da Revolução Industrial também são apenas mencionadas Uma análise muito mais ampla seria necessária para entender totalmente como a caça às bruxas foi usada como um instru mento de colonização bem como quais foram as resistências encontradas nessa perseguição Mas apesar dessas omissões o quadro teórico que o livro fornece reorienta nossa com preensão sobre o capitalismo de forma a dialogar com desen volvimentos econômicos contemporâneos e debates radicais razões pelas quais acredito que o livro tenha recebido uma resposta extremamente positiva Observando o desenvolvimento capitalista do ponto de vista dos não assalariados que trabalham nas cozinhas nos campos e nas plantações fora de relações contratuais cuja exploração foi naturalizada creditada a uma inferioridade natural Calibã e a bruxa desmistifca a natureza democrática da sociedade capitalista e a possibilidade de qualquer troca 15 14 igualitária dentro do capitalismo Seu argumento é o de que o compromisso com o barateamento do custo da produção do trabalho ao longo do desenvolvimento capitalista exige o uso da máxima violência e da guerra contra as mulheres que são o sujeito primário dessa produção Logo tratase de um livrochave para entender por quê no começo do século XXI depois de mais de quinhentos anos de exploração capitalista a globalização ainda é movida pelo esta do de guerra generalizado e pela destruição de nossos sistemas reprodutivos e de nossa riqueza comum e por quê novamente são as mulheres que pagam o preço mais alto Observem o aumento da violência de gênero especialmente intensifcada em regiões como África e América Latina onde a solidariedade comunal está desmoronando sob o peso do empobrecimento e das múltiplas formas de despossessão Dentro da mesma lógica este livro também é um desafo aos programas políticos que propõem reformar o capitalismo ou presumir que a expansão das relações capitalistas e a apli cação da tecnologia capitalista podem melhorar as condições de existência do proletariado mundial ou ter como resultado a sua unifcação política Se é verdade como o livro argumenta que a produção de uma população sem direitos e a criação de divisões dentro da força de trabalho global são condiçõescha ve para o processo de acumulação então o horizonte de nossas lutas deve ser uma mudança sistêmica já que precisamos excluir a possibilidade de um capitalismo com rosto humano Igualmente importante é o fato de que Calibã e a bruxa coloca a reprodução no centro da mudança política social apoiando a visão de que se não revalorizar nossa capacidade de cooperação mútua e as atividades que atendam à reprodu ção de nossas vidas a política radical pode apenas racionalizar as contradições que o capital está enfrentando Nesse sentido a história está a serviço da política pois ela confrma que nas regiões onde povos oprimidos mantêm suas estruturas comu nais e algum controle sobre as condições de sua reprodução há maior sucesso na resistência à exploração SILVIA FEDERICI NOVA YORK PRIMAVERA DE 2017 17 16 PREFÁCIO À EDIÇÃO ESTADUNIDENSE Calibã e a bruxa apresenta as principais linhas de um projeto de pesquisa sobre as mulheres na transição do feudalismo para o capitalismo que iniciei em meados dos anos 1970 em colaboração com a feminista italiana Leopoldina Fortunati Os primeiros resultados apareceram em um livro que publicamos na Itália em 1984 Il Grande Calibano Storia del corpo social ribelle nella prima fase del capitale O grande Calibã história do corpo social rebelde na primeira fase do capital Milão Franco Agneli Meu interesse nessa pesquisa foi motivado originalmente pelos debates que acompanharam o desenvolvimento do mo vimento feminista nos Estados Unidos em relação às raízes da opressão das mulheres e das estratégias políticas que o pró prio movimento deveria adotar na luta por libertação Naquele momento as principais perspectivas teóricas e políticas a partir das quais se analisava a realidade da discriminação sexual vinham sendo propostas principalmente por dois ramos do movimento de mulheres as feministas radicais e as feministas socialistas Do meu ponto de vista no entanto nenhum deles oferecia uma explicação satisfatória sobre as raízes da explora ção social e econômica das mulheres Na época eu questionava as feministas radicais pela sua tendência a explicar a discri minação sexual e o domínio patriarcal a partir de estruturas transhistóricas que presumivelmente operavam com indepen dência das relações de produção e de classe As feministas so cialistas por outro lado reconheciam que a história das mulhe res não podia ser separada da história dos sistemas específcos de exploração e em sua análise davam prioridade às mulheres como trabalhadoras na sociedade capitalista Porém o limite de seu ponto de vista segundo o que eu entendia naquele momen to estava na incapacidade de reconhecer a esfera da reprodução como fonte de criação de valor e exploração o que as levava a localizar as raízes da diferença de poder entre mulheres e ho mens na exclusão das mulheres do desenvolvimento capitalista uma posição que mais uma vez nos obrigava a depender de esquemas culturais para dar conta da sobrevivência do sexismo dentro do universo das relações capitalistas Foi nesse contexto que tomou forma a ideia de esboçar a his tória das mulheres na transição do feudalismo para o capitalismo A tese que inspirou essa pesquisa foi articulada por Mariarosa Dalla Costa e Selma James bem como por outras ativistas do Wages for Housework Movement Movimento por um salário para o trabalho doméstico em uma série de textos muito controver sos durante os anos 1960 mas que terminaram por reconfgurar o discurso sobre as mulheres a reprodução e o capitalismo Os mais infuentes foram The Power of Women and the Subversion of the Community 1971 O poder das mulheres e a subversão da co munidade de Mariarosa Dalla Costa e Sex Race and Class 1975 Sexo raça e classe de Selma James Contra a ortodoxia marxista que explicava a opressão das mulheres e a subordinação aos homens como um resíduo das relações feudais Dalla Costa e James defendiam que a exploração das mulheres havia cumprido uma função central no processo de acumulação capitalista na medida em que as mulheres foram as produtoras e reprodutoras da mercadoria capitalista mais essen cial a força de trabalho Como dizia Dalla Costa o trabalho não remunerado das mulheres no lar foi o pilar sobre o qual se cons truiu a exploração dos trabalhadores assalariados a escravidão do salário assim como foi o segredo de sua produtividade 1972 p 31 Desse modo a assimetria de poder entre mulheres e ho mens na sociedade capitalista não podia ser atribuída à irrelevân cia do trabalho doméstico para a acumulação capitalista o que vinha sendo desmentido pelas regras estritas que governavam a vida das mulheres nem à sobrevivência de esquemas culturais 19 18 atemporais Pelo contrário devia ser interpretada como o efeito de um sistema social de produção que não reconhece a produção e a reprodução do trabalho como uma fonte de acumulação do capital e por outro lado as mistifca como um recurso natural ou um serviço pessoal enquanto tira proveito da condição não assalariada do trabalho envolvido Ao apontarem a divisão sexual do trabalho e o trabalho não remunerado realizado pelas mulheres como a raiz da explo ração feminina na sociedade capitalista Dalla Costa e James demonstraram que era possível transcender a dicotomia entre o patriarcado e a classe e deram ao patriarcado um conteúdo histórico específco Também abriram o caminho para uma reinterpretação da história do capitalismo e da luta de classes por um ponto de vista feminista Foi com esse espírito que Leopoldina Fortunati e eu come çamos a estudar aquilo que apenas eufemisticamente pode ser descrito como a transição para o capitalismo e a procurar por uma história que não nos fora ensinada na escola mas que se mostrou decisiva para nossa educação Essa história não apenas oferecia uma explicação teórica da gênese do trabalho doméstico em seus principais componentes estruturais a separação entre produção e reprodução o uso especifcamente capitalista do salário para comandar o trabalho dos não assalariados e a desva lorização da posição social das mulheres com o advento do capita lismo fornecia também uma genealogia dos conceitos modernos de feminilidade e masculinidade que questionava o pressuposto pósmoderno da existência na cultura ocidental de uma predisposição quase ontológica para enfocar o gênero a partir de oposições binárias Descobrimos que as hierarquias sexuais quase sempre estão a serviço de um projeto de dominação que só pode se sustentar por meio da divisão constantemente renovada daqueles a quem se procura governar O livro que resultou dessa investigação o já citado Il Grande Calibano 1984 foi uma tentativa de repensar a análise da acumulação primitiva de Marx a partir de um ponto de vista feminista Nesse processo porém as categorias marxianas amplamente aceitas se demonstraram inadequadas Dentre as baixas podemos mencionar a identifcação marxiana do capitalismo com o advento do trabalhador livre que contribui para a ocultação e a naturalização da esfera da reprodução Il Grande Calibano também fazia uma crítica à teoria do corpo de Michel Foucault Como destacamos a análise de Foucault sobre as técnicas de poder e as disciplinas a que o corpo se sujeitou ignora o processo de reprodução funde as histórias feminina e masculina num todo indiferenciado e se desinteressa pelo dis ciplinamento das mulheres a tal ponto que nunca menciona um dos ataques mais monstruosos perpetrados na Era Moderna contra o corpo a caça às bruxas A tese principal de Il Grande Calibano sustentava que para poder compreender a história das mulheres na transição do feudalismo para o capitalismo devemos analisar as mudanças que o capitalismo introduziu no processo de reprodução social e especialmente de reprodução da força de trabalho O livro examina assim a reorganização do trabalho doméstico da vida familiar da criação dos flhos da sexualidade das relações entre homens e mulheres e da relação entre produção e repro dução na Europa dos séculos XVI e XVII Essa análise é reprodu zida aqui em Calibã e a bruxa No entanto o alcance do presente volume difere do de Il Grande Calibano na medida em que responde a um contexto social diferente e a um conhecimento cada vez maior sobre a história das mulheres Pouco tempo depois da publicação de Il Grande Calibano saí dos Estados Unidos e aceitei um trabalho como professora na Nigéria onde permaneci durante quase três anos Antes de ir embora guardei meus papéis num sótão acreditando que não precisaria deles por um tempo Porém as circunstâncias de 21 20 minha temporada na Nigéria não me permitiram esquecêlos Os anos compreendidos entre 1984 e 1986 constituíram um ponto de infexão para a Nigéria bem como para a maioria dos países afri canos Foram os anos em que em resposta à crise da dívida o go verno nigeriano entrou em negociações com o Fundo Monetário Internacional FMI e com o Banco Mundial negociações que fnalmente implicaram na adoção de um programa de ajuste es trutural a receita universal do Banco Mundial para a recuperação econômica em todo o planeta O propósito declarado do programa consistia em fazer com que a Nigéria chegasse a ser competitiva no mercado internacio nal Mas logo se percebeu que isso pressupunha um novo ciclo de acumulação primitiva e uma racionalização da reprodução social orientada para destruir os últimos vestígios de proprieda de comunitária e relações comunitárias impondo desse modo formas mais intensas de exploração Foi assim que assisti diante de meus olhos ao desenvolvimento de processos muito similares aos que havia estudado na preparação de Il Grande Calibano Entre eles o ataque às terras comunitárias e uma intervenção decisiva do Estado instigada pelo Banco Mundial na reprodução da força de trabalho com o objetivo de regular as taxas de procriação e no caso nigeriano reduzir o tamanho de uma população que era considerada muito exigente e indiscipli nada do ponto de vista de sua esperada inserção na economia global Junto a essas políticas chamadas adequadamente de Guerra contra a Indisciplina também testemunhei a insti gação de uma campanha misógina que denunciava a vaidade e as excessivas demandas das mulheres e o desenvolvimento de um debate acalorado semelhante em muitos sentidos às querelles des femmes querelas das mulheres do século XVII Era uma discussão que tocava em todos os aspectos da reprodução da força de trabalho a família opondo poligamia e monogamia família nuclear e família estendida a criação das crianças o trabalho das mulheres as identidades masculinas e femininas e as relações entre homens e mulheres Nesse contexto meu trabalho sobre a transição adquiriu um novo sentido Na Nigéria compreendi que a luta contra o ajuste estrutural fazia parte de uma grande luta contra a privatização da terra e o cercamento não só das terras comunitárias mas também das relações sociais que data das origens do capitalis mo na Europa e na América no século XVI Também compreendi como era limitada a vitória que a disciplina do trabalho capitalis ta havia obtido neste planeta e quanta gente ainda via sua vida de uma forma radicalmente antagônica aos requisitos da produ ção capitalista Para os fomentadores do desenvolvimento as agências multinacionais e os investidores estrangeiros esse era e continuava sendo o problema de lugares como a Nigéria Mas para mim foi uma grande fonte de força pois demonstrava que ainda existem no mundo forças extraordinárias que enfrentam a imposição de uma forma de vida concebida exclusivamente em termos capitalistas A força que obtive também esteve ligada ao meu encontro com a Women in Nigeria Mulheres na Nigéria primeira organização feminista do país que me permitiu enten der melhor as lutas que as mulheres nigerianas travaram para defender seus recursos e rechaçar o novo modelo patriarcal que lhes era imposto agora promovido pelo Banco Mundial No fnal de 1986 a crise da dívida alcançou as instituições acadêmicas e como já não podia me sustentar deixei a Nigéria em corpo mas não em espírito A preocupação com os ataques efetuados contra o povo nigeriano nunca me abando nou Desse modo o desejo de voltar a estudar a transição ao capitalismo me acompanhou desde meu retorno A princípio havia lido os processos nigerianos por um prisma da Europa do século XVI Nos Estados Unidos foi o proletariado nigeriano que me fez retornar às lutas pelo comum e contra a submissão capitalista das mulheres dentro e fora da Europa Ao regressar 23 22 também comecei a lecionar num programa interdisciplinar em que devia fazer frente a um tipo distinto de cercamento o cercamento do saber isto é a crescente perda entre as novas gerações do sentido histórico de nosso passado comum É por isso que em Calibã e a bruxa reconstruo as lutas antifeudais da Idade Média e as lutas com as quais o proletariado europeu resistiu à chegada do capitalismo Meu objetivo não é apenas colocar à disposição dos não especialistas as provas que sus tentam as minhas análises mas reviver entre as gerações mais jovens a memória de uma longa história de resistência que hoje corre o risco de ser apagada Preservar essa memória é crucial se quisermos encontrar uma alternativa ao capitalismo pois essa possibilidade dependerá de nossa capacidade de ouvir as vozes daqueles que percorreram caminhos semelhantes INTRODUÇÃO Desde Marx estudar a gênese do capitalismo é um passo obrigatório para ativistas e acadêmicos convencidos de que a primeira tarefa da agenda da humanidade é a construção de uma alternativa à sociedade capitalista Não surpreende que cada novo movimento revolucionário tenha retornado à tran sição para o capitalismo trazendo ao tema as perspectivas de novos sujeitos sociais e descobrindo novos terrenos de explo ração e resistência1 Embora este livro tenha sido concebido dentro dessa tradição há duas considerações em particular que também o motivaram Em primeiro lugar havia um desejo de repensar o de senvolvimento do capitalismo a partir de um ponto de vista feminista ao mesmo tempo evitando as limitações de uma história das mulheres separada do setor masculino da classe trabalhadora O título Calibã e a bruxa inspirado na peça A tempestade de Shakespeare refete esse esforço Na minha interpretação no entanto Calibã não apenas representa o rebelde anticolonial cuja luta ressoa na literatura caribenha contemporânea mas também é um símbolo para o proletaria do mundial e mais especifcamente para o corpo proletário como terreno e instrumento de resistência à lógica do capi talismo Mais importante ainda a fgura da bruxa que em A tempestade fca relegada a segundo plano neste livro situase no centro da cena enquanto encarnação de um mundo de 1 O estudo da transição para o capitalismo tem uma longa história que não por acaso coincide com a dos principais movimentos políticos do século XX Historiadores marxistas como Maurice Dobb Rodney Hilton e Christopher Hill 1953 revisitaram a transição nos anos 1940 e 1950 depois dos debates gerados pela consolidação da União Soviética pela emergência dos Estados socialistas na Europa e na Ásia e pelo que nesse momento aparecia como uma iminente crise capitalista A transição foi mais uma vez revisitada em 1960 pelos teóricos terceiromundistas como Samir Amin e André Gunder Frank no contexto dos debates do momento sobre neocolonialismo subdesen volvimento e intercâmbio desigual entre o primeiro e o terceiro mundo 25 24 Bruxas conjurando um aguaceiro xilogravura em Ulrich Molitor De Lamiies et Pythonicis Mulieribus 1489 Sobre mulheres feiticeiras e adivinhas sujeitos femininos que o capitalismo precisou destruir a he rege a curandeira a esposa desobediente a mulher que ousa viver só a mulher obeah que envenenava a comida do senhor e incitava os escravos à rebelião A segunda motivação deste livro foi com a nova expansão das relações capitalistas o retorno em escala mundial de um conjunto de fenômenos que normalmente vinham associados à gênese do capitalismo Entre eles se encontra uma nova série de cercamentos que expropriou milhões de produtores agrários de suas terras além da pauperização massiva e da criminalização dos trabalhadores por meio de políticas de encarceramento que nos remetem ao Grande Confnamento descrito por Michel Foucault em seu estudo sobre a história da loucura Também fomos testemunhas do desenvolvimento mundial de novos movimentos de diáspora acompanhados pela perseguição dos trabalhadores migrantes Algo que nos remete uma vez mais às Leis Sangrentas introduzidas na Europa dos séculos XVI e XVII com o objetivo de colocar os vagabundos à disposição da exploração local Ainda mais importante para este livro foi a intensifcação da violência contra as mulheres inclusive o retorno da caça às bruxas em alguns países como por exemplo África do Sul e Brasil Por que depois de quinhentos anos de domínio do capital no início do terceiro milênio os trabalhadores ainda são massi vamente defnidos como pobres bruxas e bandoleiros De que maneira se relacionam a expropriação e a pauperização com o permanente ataque contra as mulheres O que podemos apren der sobre o desdobramento capitalista passado e presente quando examinado em perspectiva feminista Com essas perguntas em mente volto a analisar a transi ção do feudalismo para o capitalismo a partir do ponto de vista das mulheres do corpo e da acumulação primitiva Cada um desses conceitos se conecta a um marco conceitual que serve como ponto de referência para este trabalho o feminista o fou caultiano e o marxista Por isso vou começar esta introdução com algumas observações sobre a relação entre minha própria perspectiva de análise e cada um desses marcos de referência A acumulação primitiva é o termo usado por Marx no tomo I de O capital com a fnalidade de caracterizar o processo político no qual se sustenta o desenvolvimento das relações capitalistas Tratase de um termo útil na medida em que pro porciona um denominador comum que permite conceituar as 27 26 mudanças produzidas pelo advento do capitalismo nas relações econômicas e sociais Sua importância está especialmente no fato de Marx tratar a acumulação primitiva como um processo fundacional o que revela as condições estruturais que torna ram possível a sociedade capitalista Isso nos permite ler o pas sado como algo que sobrevive no presente uma consideração essencial para o uso do termo neste trabalho Porém minha análise se afasta da de Marx por duas vias distintas Enquanto Marx examina a acumulação primitiva do ponto de vista do proletariado assalariado de sexo masculino e do desenvolvimento da produção de mercadorias eu a examino do ponto de vista das mudanças que introduziu na posição social das mulheres e na produção da força de trabalho2 Daí que a minha descrição da acumulação primitiva inclui uma série de fenômenos que estão ausentes em Marx e que no entanto são extremamente importantes para a acumulação capitalista Entre esses fenômenos estão i o desenvolvimento de uma nova divisão sexual do trabalho ii a construção de uma nova ordem patriarcal baseada na exclusão das mulheres do trabalho assalariado e em sua subordinação aos homens iii a mecanização do corpo proletário e sua transformação no caso das mulheres em uma máquina de produção de novos trabalhadores E o que é mais importante coloquei no centro da análise da acumulação primitiva a caça às bruxas dos sécu los XVI e XVII sustento aqui que a perseguição às bruxas tanto na Europa quanto no Novo Mundo foi tão importante para o desenvolvimento do capitalismo quanto a colonização e a ex propriação do campesinato europeu de suas terras Essa análise se diferencia também da marxiana em sua ava liação do legado e da função da acumulação primitiva Embora 2 Essas duas realidades estão estreitamente conectadas nesta análise pois no capitalismo a reprodução geracional dos trabalhadores e a regeneração cotidiana de sua capa cidade de trabalho se converteram em um trabalho de mulheres embora mistificado pela sua condição de não assalariado como serviço pessoal e até mesmo como recurso natural Marx fosse profundamente consciente do caráter criminoso do desenvolvimento capitalista sua história declarou está escri ta nos anais da humanidade com letras de sangue e fogo não cabe dúvida de que considerava isso como um passo necessário no processo de libertação humana Marx acreditava que o desen volvimento capitalista acabava com a propriedade em pequena escala e incrementava até um grau não alcançado por nenhum outro sistema econômico a capacidade produtiva do trabalho criando as condições materiais para liberar a humanidade da escassez e da necessidade Também supunha que a violência que havia dominado as primeiras fases da expansão capitalista retro cederia com a maturação das relações capitalistas a partir desse momento a exploração e o disciplinamento do trabalho seriam alcançados fundamentalmente por meio do funcionamento das leis econômicas Marx 1867 1909 t I Nisso estava profunda mente equivocado Cada fase da globalização capitalista incluin do a atual vem acompanhada de um retorno aos aspectos mais violentos da acumulação primitiva o que mostra que a contínua expulsão dos camponeses da terra a guerra e o saque em escala global e a degradação das mulheres são condições necessárias para a existência do capitalismo em qualquer época Devo acrescentar que Marx nunca poderia ter suposto que o capitalismo preparava o caminho para a libertação humana se tivesse olhado sua história do ponto de vista das mulheres Essa história ensina que mesmo quando os homens alcançaram cer to grau de liberdade formal as mulheres sempre foram tratadas como seres socialmente inferiores exploradas de modo similar às formas de escravidão Mulheres então no contexto deste livro signifca não somente uma história oculta que necessita se fazer visível mas também uma forma particular de explo ração e portanto uma perspectiva especial a partir da qual se deve reconsiderar a história das relações capitalistas Esse projeto não é novo Desde o começo do movimento 29 28 feminista as mulheres se voltaram vez ou outra para a transição ao capitalismo ainda que nem sempre o tenham reconhecido Durante certo tempo o marco principal que confgurava a história das mulheres foi de caráter cronológico A designação mais comum que as historiadoras feministas utilizaram para descrever o período de transição foi Early Modern Times prin cípio da Idade Moderna que dependendo da autora podia designar o século XIII ou XVII Nos anos 1980 no entanto apareceu uma série de traba lhos que assumiram uma perspectiva mais crítica Entre eles estavam os ensaios de Joan Kelly sobre o Renascimento e as querelles des femmes The Death of Nature 1981 A morte da na tureza de Carolyn Merchant LArcano della Riproduzione 1981 O arcano da reprodução de Leopoldina Fortunati Working Women in Renaissance Germany 1986 Mulheres trabalhadoras no Renascimento alemão e Patriarchy and Accumulation on a World Scale 1986 Patriarcado e acumulação em escala global de Maria Mies A esses trabalhos devemos acrescentar uma grande quantidade de monografas que ao longo das últimas duas décadas reconstruíram a presença das mulheres nas eco nomias rural e urbana da Europa medieval assim como a vasta literatura e o trabalho de documentação que se realizou sobre a caça às bruxas e as vidas das mulheres na América précolonial e nas ilhas do Caribe Entre estas últimas quero recordar espe cialmente The Moon the Sun and the Witches 1987 A lua o sol e as bruxas de Irene Silverblatt o primeiro relato sobre a caça às bruxas no Peru colonial e Natural Rebels A Social History of Barbados 1995 Rebeldes naturais uma história social de Barbados de Hilary Beckles que junto com Slave Women in Caribbean Society 16501838 1990 Mulheres escravas na sociedade caribenha 16501838 de Barbara Bush se encontra entre os textos mais importantes sobre a história das mulheres escravizadas nas plantações do Caribe Essa produção acadêmica confrmou que a reconstrução da história das mulheres ou o olhar sobre a história por um ponto de vista feminino implica uma redefnição fundamen tal das categorias históricas aceitas e uma visibilização das estruturas ocultas de dominação e exploração Desse modo o ensaio de Joan Kelly Did Women Have a Renaissance 1984 As mulheres tiveram um Renascimento solapou a periodização histórica clássica que celebra o Renascimento como um exem plo excepcional de façanha cultural The Death of Nature de Carolyn Merchant questionou a crença no caráter socialmente progressista da revolução científca ao defender que o advento do racionalismo científco produziu um deslocamento cultural de um paradigma orgânico para um mecânico que legitimou a exploração das mulheres e da natureza De especial importância foi Patriarchy and Accumulation on a World Scale 1986 de Maria Mies um trabalho já clássico que reexamina a acumulação capitalista de um ponto de vista não eurocêntrico conectando o destino das mulheres na Europa ao dos sujeitos coloniais europeus e proporcionando uma nova compreensão do lugar das mulheres no capitalismo e no proces so de globalização Calibã e a bruxa se baseia nesses trabalhos e nos estudos contemporâneos contidos em Il Grande Calibano analisado no Prefácio Porém seu alcance histórico é mais amplo tendo em vista que o livro conecta o desenvolvimento do capitalismo com a crise de reprodução e as lutas sociais do período feudal tardio por um lado e com o que Marx defne como a formação do pro letariado por outro Nesse processo o livro aborda uma série de questões históricas e metodológicas que estiveram no centro do debate sobre a história das mulheres e da teoria feminista A questão histórica mais importante que este livro aborda é como explicar a execução de centenas de milhares de bru xas no começo da Era Moderna e por que o surgimento do 31 30 capitalismo coincide com essa guerra contra as mulheres As acadêmicas feministas desenvolveram um esquema que lança bastante luz sobre a questão Existe um acordo generalizado sobre o fato de que a caça às bruxas buscou destruir o controle que as mulheres haviam exercido sobre sua função reprodutiva e serviu para preparar o terreno para o desenvolvimento de um regime patriarcal mais opressor Defendese também que a caça às bruxas tinha raízes nas transformações sociais que acompa nharam o surgimento do capitalismo No entanto as circuns tâncias históricas específcas em que a perseguição de bruxas se desenvolveu e as razões pelas quais o surgimento do capitalismo exigiu um ataque genocida contra as mulheres ainda não foram investigadas Essa é a tarefa que empreendo em Calibã e a bruxa começando pela análise da caça às bruxas no contexto da crise demográfca e econômica dos séculos XVI e XVII e das políticas de terra e trabalho da era mercantilista Meu trabalho aqui é apenas um esboço da pesquisa que seria necessária para esclarecer as conexões mencionadas e especialmente a relação entre a caça às bruxas e o desenvolvimento contemporâneo de uma nova divisão sexual do trabalho que confna as mulheres ao trabalho reprodutivo No entanto convém demonstrar que a perseguição às bruxas assim como o tráfco de escravos e os cercamentos constituiu um aspecto central da acumulação e da formação do proletariado moderno tanto na Europa como no Novo Mundo Há outros caminhos através dos quais Calibã e a bruxa dialoga com a história das mulheres e a teoria feminista Em primeiro lugar confrma que a transição para o capitalismo é uma questão primordial para a teoria feminista já que a redefnição das tarefas produtivas e reprodutivas e as relações homemmulher nesse período ambas realizadas com máxima violência e intervenção estatal não deixam dúvidas quanto ao caráter construído dos papéis sexuais na sociedade capitalista A análise que aqui se propõe também nos permite transcender a dicotomia entre gênero e classe Se é verdade que na socieda de capitalista a identidade sexual se transformou no suporte específco das funções do trabalho o gênero não deveria ser tratado como uma realidade puramente cultural mas como uma especifcação das relações de classe Desse ponto de vista os debates que tiveram lugar entre as feministas pósmodernas acerca da necessidade de desfazerse do termo mulher como categoria de análise e defnir o feminismo em termos pura mente oposicionais foram mal orientados Para reformular o argumento que apresentei se na sociedade capitalista a femi nilidade foi construída como uma funçãotrabalho que oculta a produção da força de trabalho sob o disfarce de um destino biológico a história das mulheres é a história das classes e a pergunta que devemos nos fazer é se foi transcendida a divisão sexual do trabalho que produziu esse conceito em particular Se a resposta for negativa tal como ocorre quando consideramos a organização atual do trabalho reprodutivo então mulher é uma categoria de análise legítima e as atividades associadas à reprodução seguem sendo um terreno de luta fundamental para as mulheres como eram para o movimento feminista dos anos 1970 e um nexo de união com a história das bruxas Outra pergunta que Calibã e a bruxa analisa é aquela proposta pelas perspectivas opostas que oferecem as análises feministas e foucaultianas sobre o corpo tal como são aplicadas na interpretação da história do desenvolvimento capitalista Desde o início do movimento de mulheres as ativistas e teóricas feministas viram o conceito de corpo como uma chave para compreender as raízes do domínio masculino e da construção da identidade social feminina Para além das diferenças ideológicas chegaram à conclusão de que a catego rização hierárquica das faculdades humanas e a identifcação das mulheres com uma concepção degradada da realidade corporal foi historicamente instrumental para a consolidação 33 32 do poder patriarcal e para a exploração masculina do trabalho feminino Desse modo a análise da sexualidade da procriação e da maternidade foi colocada no centro da teoria feminista e da história das mulheres Em particular as feministas coloca ram em evidência e denunciaram as estratégias e a violência por meio das quais os sistemas de exploração centrados nos homens tentaram disciplinar e apropriarse do corpo feminino destacando que os corpos das mulheres constituíram os princi pais objetivos lugares privilegiados para a implementação das técnicas de poder e das relações de poder De fato a enorme quantidade de estudos feministas que foi produzida desde os princípios dos anos 1970 a respeito do controle exercido sobre a função reprodutiva das mulheres dos efeitos dos estupros e dos maustratos e da imposição da beleza como uma condição de aceitação social constitui uma imensa contribuição ao discurso sobre o corpo em nossos tempos e assinala a errônea percepção tão frequente entre os acadêmicos que atribui seu descobri mento a Michel Foucault Partindo de uma análise da política do corpo as femi nistas não somente revolucionaram o discurso flosófco e político mas também passaram a revalorizar o corpo Esse foi um passo necessário tanto para confrontar a negatividade que acarreta a identifcação de feminilidade com corporalidade como para criar uma visão mais holística do que signifca ser um ser humano3 Essa valorização ganhou várias formas desde 3 Não surpreende que a valorização do corpo tenha estado presente em quase toda a literatura da segunda onda do feminismo do século XX tal como foi caracterizada a literatura produzida pela revolta anticolonial e pelos descendentes de escravos africa nos Nesse terreno cruzando grandes fronteiras geográficas e culturais A Room of Ones Own 1929 Um teto todo seu de Virgina Woolf antecipou Cahier dun retour au pays natal 1938 Diário de um retorno ao país natal de Aimé Césaire quando repreende seu público feminino e por detrás disso o mundo feminino por não ter conseguido produzir outra coisa além de filhos Jovens diria que vocês nunca realizaram um descobrimento de certa impor tância Nunca fizeram tremer um império ou conduziram um exército à batalha As obras de Shakespeare não são suas Que desculpa vocês têm Vocês podem muito bem dizer apontando para as ruas e praças e para as selvas do mundo infestadas de habitantes ne gros e brancos e de cor de café que estivemos fazendo outro trabalho Sem ele esses a busca de saberes não dualistas até a tentativa com feministas que veem a diferença sexual como um valor positivo de de senvolver um novo tipo de linguagem e de repensar as raízes corporais da inteligência humana4 Tal como destacou Rosi Braidotti o corpo retomado não há de entenderse nunca como algo biologicamente dado No entanto slogans como recuperar a posse do corpo ou fazer o corpo falar5 foram criticados por teóricos pósestruturalistas e foucaultianos que rejeitam como ilusório qualquer chamamento à liberação dos instintos De sua parte as feministas acusaram o discurso de Foucault sobre a sexualidade de omitir a diferenciação sexual ao mesmo tempo que se apropriava de muitos saberes desenvolvidos pelo mares não seriam navegados e essas terras férteis seriam um deserto Temos erguido e criado e ensinado talvez até a idade de seis ou sete aos mil seiscentos e vinte e três milhões de seres humanos que de acordo com as estatísticas existem algo que mesmo quando algumas tenham tido ajuda requer tempo Woolf 1929 p 112 Essa capacidade de subverter a imagem degradada da feminilidade que foi cons truída por meio da identificação das mulheres com a natureza a matéria o corporal é a potência do discurso feminista sobre o corpo que trata de desenterrar o que o controle masculino de nossa realidade corporal sufocou No entanto é uma ilusão conceber a libertação feminina como um retorno ao corpo Se o corpo feminino como discuto neste trabalho é um significante para o campo de atividades reprodutivas que foi apropriado pelos homens e pelo Estado e convertido em um instrumento de produção de força de trabalho com tudo aquilo que isso pressupõe em termos de regras e regulações sexuais cânones estéticos e castigos então o corpo é o lugar de uma alienação funda mental que só pode ser superada com o fim da disciplinatrabalho que o define Essa tese se verifica também para os homens A descrição de um trabalhador que se sente à vontade apenas em suas funções corporais feita por Marx já intuía tal fato Marx porém nunca expôs a magnitude do ataque a que o corpo masculino estava submetido com o advento do capitalismo Ironicamente assim como Foucault Marx enfatizou também a produtividade do trabalho a que os trabalhadores estão subordinados uma produtividade que para ele é a condição para o futuro domínio da sociedade pelos trabalhadores Marx não observou que o desenvolvimento das potências industriais dos trabalhadores se deu à custa do subdesenvolvimento de seus poderes enquanto indivíduos sociais ainda que reconhecesse que os trabalhadores na sociedade capitalista estão tão alienados de seu trabalho de suas relações com os outros e dos produtos de seu trabalho como se estivessem dominados por estes parecendo tratarse de uma força alheia 4 Braidotti 1991 p 219 Para uma discussão do pensamento feminista sobre o corpo ver EcoFeminism as Politics 1997 O ecofeminismo como política de Ariel Salleh especialmente os capítulos 3 4 e 5 e Patterns of Dissonance 1991 Padrões de dissonância de Rosi Braidotti especialmente a seção intitulada Repossessing the Body A Timely Project Repossuindo o corpo um projeto oportuno pp 21924 5 Estou me referindo ao projeto de écriture féminine escrita feminina uma teoria e movimento literários que se desenvolveram na França na década de 1970 entre as feministas estudiosas da psicanálise lacaniana que buscavam criar uma lingua gem que expressasse a especificidade do corpo feminino e da subjetividade feminina Braidotti op cit 35 34 movimento feminista Essa crítica é bastante acertada Além disso Foucault fca tão intrigado pelo caráter produtivo das técnicas de poder de que o corpo foi investido que sua análise praticamente descarta qualquer crítica das relações de poder O caráter quase defensivo da teoria de Foucault sobre o corpo se vê acentuado pelo fato de que considera o corpo como algo constituído puramente por práticas discursivas e de que está mais interessado em descrever como se desdobra o poder do que em identifcar sua fonte Assim o Poder que produz o corpo aparece como uma entidade autossufciente metafísica ubíqua desconectada das relações sociais e econômicas e tão misteriosa em suas variações quanto uma força motriz divina Uma análise da acumulação primitiva e da transição para o capitalismo é capaz de nos ajudar a ir além dessas alternativas Acredito que sim No que diz respeito ao enfoque feminista nosso primeiro passo deve ser documentar as condições sociais e históricas nas quais o corpo se tornou elemento central e esfera de atividade defnitiva para a constituição da feminilidade Nessa linha Calibã e a bruxa mostra que na sociedade capitalista o corpo é para as mulheres o que a fábrica é para os homens tra balhadores assalariados o principal terreno de sua exploração e resistência na mesma medida em que o corpo feminino foi apro priado pelo Estado e pelos homens forçado a funcionar como um meio para a reprodução e a acumulação de trabalho Neste sentido é bem merecida a importância que adquiriu o corpo em todos os seus aspectos maternidade parto sexualidade tanto dentro da teoria feminista quanto na história das mulhe res Calibã e a bruxa também corrobora o saber feminista que se nega a identifcar o corpo com a esfera do privado e nessa linha fala de uma política do corpo Além disso explica como para as mulheres o corpo pode ser tanto uma fonte de identidade quanto uma prisão e por que ele tem tanta importância para as feminis tas ao mesmo tempo que é tão problemática a sua valoração Quanto à teoria de Foucault a história da acumulação primitiva oferece muitos contraexemplos demonstrando que a teoria foucaultiana só pode ser defendida à custa de omis sões históricas extraordinárias A mais óbvia é a omissão da caça às bruxas e do discurso sobre a demonologia na sua análise sobre o disciplinamento do corpo Sem dúvida se es sas questões tivessem sido incluídas teriam inspirado outras conclusões já que ambas demonstram o caráter repressivo do poder aplicado contra as mulheres e o inverossímil da cumplicidade e da inversão de papéis que Foucault em sua descrição da dinâmica dos micropoderes imagina que exis tem entre as vítimas e seus perseguidores O estudo da caça às bruxas também desafa a teoria de Foucault relativa ao desenvolvimento do biopoder despo jandoa do mistério com que cobre a emergência desse regime Foucault registra a virada alegadamente na Europa do século XVIII de um tipo de poder constituído sobre o direito de matar para um poder diferente que se exerce por meio da administra ção e da promoção das forças vitais como o crescimento da po pulação Porém ele não oferece pistas sobre suas motivações No entanto se situamos essa mutação no contexto do surgimento do capitalismo o enigma desaparece a promoção das forças da vida se revela como nada mais que o resultado de uma nova preocu pação pela acumulação e pela reprodução da força de trabalho Também podemos observar que a promoção do crescimento populacional por parte do Estado pode andar de mãos dadas com uma destruição massiva de vidas pois em muitas circunstâncias históricas como por exemplo a história do tráfco de escravos uma é condição para a outra Efetivamente num sistema em que a vida está subordinada à produção de lucro a acumulação de força de trabalho só pode ser alcançada com o máximo de vio lência para que nas palavras de Maria Mies a própria violência se transforme na força mais produtiva 37 36 Para concluir o que Foucault teria aprendido caso tivesse estudado em sua História da sexualidade 1978 a caça às bruxas em vez de ter se concentrado na confssão pastoral é que essa história não pode ser escrita do ponto de vista de um sujeito universal abstrato assexuado Além disso teria reconhecido que a tortura e a morte podem se colocar a serviço da vida ou melhor a serviço da produção da força de trabalho dado que o objetivo da sociedade capitalista é transformar a vida em capa cidade para trabalhar e em trabalho morto6 Desse ponto de vista a acumulação primitiva foi um pro cesso universal em cada fase do desenvolvimento capitalista Não é por acaso que seu exemplo histórico originário tenha sedimentado estratégias que diante de cada grande crise capi talista foram relançadas de diferentes maneiras com a fna lidade de baratear o custo do trabalho e esconder a exploração das mulheres e dos sujeitos coloniais Isso é o que ocorreu no século XIX quando as respostas ao surgimento do socialismo à Comuna de Paris e à crise de acu mulação de 1873 foram a Partilha da África e a invenção da família nuclear na Europa centrada na dependência econômica das mulheres aos homens seguida da expulsão das mulheres dos postos de trabalho remunerados Isso é também o que ocorre na atualidade quando uma nova expansão do mercado de trabalho busca colocarnos em retrocesso no que tange à luta anticolonial e às lutas de outros sujeitos rebeldes estudantes feministas trabalhadores industriais que nos anos 1960 e 1970 debilitaram a divisão sexual e internacional do trabalho Não é de surpreender portanto que a violência em grande escala e a escravidão tenham estado na ordem do dia do mesmo modo que estavam no período de transição com a 6 O trabalho morto é o trabalho já realizado que fica objetivado nos meios de produção Segundo Marx o trabalho morto depende da capacidade humana presente trabalho vivo mas o capital é trabalho morto que subordina e explora essa capaci dade Marx 2006 t I NTE diferença de que hoje os conquistadores são os ofciais do Banco Mundial e do FMI que ainda pregam o valor de um centavo às mesmas populações que as potências mundiais dominantes têm roubado e pauperizado durante séculos Uma vez mais muito da violência empregada é dirigida contra as mulheres porque na era do computador a conquista do corpo feminino continua sendo uma precondição para a acumulação de traba lho e riqueza tal como demonstra o investimento institucional no desenvolvimento de novas tecnologias reprodutivas que mais do que nunca reduzem as mulheres a meros ventres Ademais a feminização da pobreza que acompanhou a difusão da globalização adquire um novo signifcado quando recordamos que foi o primeiro efeito do desenvolvimento do capitalismo sobre as vidas das mulheres Com efeito a lição política que podemos extrair de Calibã e a bruxa é que o capitalismo enquanto sistema econômico social está necessariamente ligado ao racismo e ao sexismo O capitalismo precisa justifcar e mistifcar as contradições incrustadas em suas relações sociais a promessa de liber dade frente à realidade da coação generalizada e a promessa de prosperidade frente à realidade de penúria generalizada difamando a natureza daqueles a quem explora mulheres sujeitos coloniais descendentes de escravos africanos imi grantes deslocados pela globalização No cerne do capitalismo encontramos não apenas uma relação simbiótica entre o trabalho assalariado contratual e a escravidão mas também e junto com ela a dialética que existe entre acumulação e destruição da força de trabalho tensão pelas quais as mulheres pagaram o preço mais alto com seus corpos seu trabalho e suas vidas É portanto impossível associar o capitalismo com qual quer forma de libertação ou atribuir a longevidade do sistema à sua capacidade de satisfazer necessidades humanas Se o 38 capitalismo foi capaz de reproduzirse isso se deve somente à rede de desigualdades que foi construída no corpo do proleta riado mundial e à sua capacidade de globalizar a exploração Esse processo segue desenvolvendose diante de nossos olhos tal como se deu ao longo dos últimos quinhentos anos A diferença é que hoje a resistência ao capitalismo tam bém atingiu uma dimensão global CAPÍTULO 1 O MUNDO PRECISA DE UMA SACUDIDA OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A CRISE POLÍTICA NA EUROPA MEDIEVAL INTRODUÇÃO 44 A SERVIDÃO COMO RELAÇÃO DE CLASSE 47 A LUTA PELO COMUM 54 LIBERDADE E DIVISÃO SOCIAL 60 OS MOVIMENTOS MILENARISTAS E HERÉTICOS 66 A POLITIZAÇÃO DA SEXUALIDADE 80 AS MULHERES E A HERESIA 83 LUTAS URBANAS 89 A PESTE NEGRA E A CRISE DO TRABALHO 96 A POLÍTICA SEXUAL O SURGIMENTO DO ESTADO E A CONTRARREVOLUÇÃO 103 Albrecht Dürer A queda do homem 1510 Esta cena impactante da expulsão de Adão e Eva dos Jardins do Éden evoca a expulsão do campesinato das terras comunais que começou a ocorrer na Europa Ocidental exatamente na época em que Dürer produzia este trabalho O MUNDO DEVERÁ SOFRER UMA GRANDE SACUDIDA ACONTECERÁ UMA SITUAÇÃO TAL QUE OS ÍMPIOS SERÃO EXPULSOS DE SEUS LUGARES E OS OPRIMIDOS SE LEVANTARÃO THOMAS MÜNTZER OPEN DENIAL OF THE FALSE BELIEF OF THE GODLESS WORLD ON THE TESTIMONY OF THE GOSPEL OF LUKE PRESENTED TO MISERABLE AND PITIFUL CHRISTENDOM IN MEMORY OF ITS ERROR 1524 NÃO SE PODE NEGAR QUE DEPOIS DE SÉCULOS DE LUTA A EXPLORAÇÃO CONTINUA EXISTINDO SOMENTE SUA FORMA MUDOU O MAIS TRABALHO EXTRAÍDO AQUI E ALI PELOS ATUAIS SENHORES DO MUNDO NÃO É MENOR EM PROPORÇÃO À QUANTIDADE TOTAL DE TRABALHO QUE O MAISTRABALHO QUE SE EXTRAÍA HÁ MUITO TEMPO PORÉM A MUDANÇA NAS CONDIÇÕES DE EXPLORAÇÃO NÃO É INSIGNIFICANTE O QUE IMPORTA É A HISTÓRIA A LUTA POR LIBERTAÇÃO PIERRE DOCKES MEDIEVAL SLAVERY AND LIBERATION 1982 45 44 INTRODUÇÃO Uma história das mulheres e da reprodução na transição para o capitalismo deve começar com as lutas que o proletariado medieval pequenos agricultores artesãos trabalhadores travou contra o poder feudal em todas as suas formas Apenas se invocarmos essas lutas com sua rica carga de demandas aspirações sociais e políticas e práticas antagônicas podemos compreender o papel que tiveram as mulheres na crise do feu dalismo e os motivos pelos quais seu poder devia ser destruído a fm de que se desenvolvesse o capitalismo tal como ocorreu com a perseguição às bruxas durante três séculos Da perspectiva estratégica dessa luta é possível observar que o capitalismo não foi o produto do desenvolvimento evolutivo que deu à luz forças que estavam amadurecendo no ventre da antiga ordem O capitalismo foi uma resposta dos senhores feudais dos mer cadores patrícios dos bispos e dos papas a um confito social centenário que chegou a fazer tremer seu poder e que realmente produziu uma grande sacudida mundial O capitalismo foi a contrarrevolução que destruiu as possibilidades que haviam emergido da luta antifeudal possibilidades que se tivessem sido realizadas teriam evitado a imensa destruição de vidas e de espaço natural que marcou o avanço das relações capitalistas no mundo Devemos enfatizar este aspecto pois a crença de que o capitalismo evoluiu a partir do feudalismo e de que representa uma forma mais elevada de vida social ainda não se desfez No entanto o modo como a história das mulheres se entre cruza com a história do desenvolvimento capitalista não pode ser compreendida se nos preocuparmos apenas com os terrenos clássicos da luta de classes serviços laborais labor services índices salariais rendas e dízimos e ignorarmos as novas visões da vida social e da transformação das relações de gênero que tais confitos produziram Elas não foram insignifcantes É na luta antifeudal que encontramos o primeiro indício na história europeia da existência das raízes de um movimento de mulheres que se opunha à ordem estabelecida e contribuía para a construção de modelos alternativos de vida comunal A luta contra o poder feudal produziu também as primeiras ten tativas organizadas de desafar as normas sexuais dominantes e de estabelecer relações mais igualitárias entre mulheres e homens Combinadas à recusa do trabalho servil e das relações comerciais estas formas conscientes de transgressão social construíram uma poderosa alternativa não só ao feudalismo mas também à ordem capitalista que estava substituindo o feudalismo demonstrando que outro mundo era possível o que nos encoraja a perguntar por que ele não se desenvolveu Este capítulo procura respostas para essa pergunta ao mesmo tempo que examina os modos como se redefniram as relações entre as mulheres e os homens e a reprodução da força de traba lho em oposição ao regime feudal As lutas sociais da Idade Média também devem ser lembra das porque escreveram um novo capítulo na história da liber tação Em seu melhor momento exigiram uma ordem social igualitária baseada na riqueza compartilhada e na recusa às hie rarquias e ao autoritarismo Estas reivindicações continuariam sendo utopias No lugar do reino dos céus cujo advento foi pro fetizado na pregação dos movimentos heréticos e milenaristas o que resultou do fnal do feudalismo foram as enfermidades a guerra a fome e a morte os quatro cavaleiros do Apocalipse tal como estão representados na famosa gravura de Albrecht Dürer verdadeiros presságios da nova era capitalista No entanto as tentativas do proletariado medieval de colocar o mundo de cabeça para baixo devem ser levadas em conta ape sar de sua derrota conseguiram pôr em crise o sistema feudal e em sua época foram genuinamente revolucionários já que 47 46 Camponeses preparando a terra para semear O acesso à terra era a base do poder dos servos Miniatura em The Luttrell Psalter entre 1325 e 1340 não poderiam ter triunfado sem uma reconfguração radical da ordem social Hilton 1973 pp 2234 Realizar uma leitura da transição a partir do ponto de vista da luta antifeudal na Idade Média nos ajuda também a reconstruir as dinâmicas sociais que subjaziam no fundo dos cercamentos ingleses e da conquista da América nos ajudam sobretudo a desenterrar algumas das razões pelas quais nos séculos XVI e XVII o exter mínio das bruxas e a extensão do controle estatal a qualquer aspecto da reprodução se converteram nas pedras angulares da acumulação primitiva A SERVIDÃO COMO RELAÇÃO DE CLASSE Embora as lutas antifeudais da Idade Média lancem um pouco de luz sobre o desenvolvimento das relações capitalistas seu signifcado político permanece oculto a menos que as enqua dremos no contexto mais amplo da história da servidão isto é da relação de classe dominante na sociedade feudal e até o século XIV foco da luta antifeudal A servidão se desenvolveu na Europa entre os séculos V e VII em resposta ao desmoronamento do sistema escravagista sobre o qual se havia edifcado a economia da Roma Imperial Foi o resultado de dois fenômenos relacionados entre si Por volta do século IV nos territórios romanos e nos novos Estados germânicos os senhores de terra se viram obrigados a conceder aos escravos o direito a possuir uma parcela de terra e uma fa mília própria com a fnalidade de conter assim suas rebeliões e evitar sua fuga para o mato onde comunidades autogover nadas começavam a organizarse às margens do Império7 Ao 7 O melhor exemplo deste tipo de comunidade foram os bagaudae ou bacau dae que ocuparam a Gália por volta do ano 300 Dockes 1982 p 87 Eram campo neses e escravos libertos que exasperados pelas penúrias que haviam sofrido devido às disputas entre os aspirantes ao trono romano perambulavam sem rumo armados com ferramentas de cultivo e cavalos roubados em bandos errantes daí seu nome bando de combatentes RandersPehrson 1983 p 26 Os citadinos se uniam a eles e formavam comunidades autogovernadas nas quais cunhavam moedas com a palavra Esperança elegiam líderes e administravam a justiça Derrotados no campo aberto por Maximiliano correligionário do imperador Diocleciano lançaramse na guerra de guerrilhas para reaparecerem com força no século V quando se converteram em alvo de reiteradas ações militares No ano de 407 foram os protagonistas de uma feroz insurreição O impe rador Constantino os derrotou em batalha na Armórica Bretanha Ibidem p 124 Os escravos rebeldes e camponeses haviam criado uma organização estatal autônoma expulsando os oficiais romanos expropriando os proprietários reduzindo a escravos quem possuía escravos e organizando um sistema judicial e um exército Dockes 1982 p 87 Apesar das numerosas tentativas de reprimilos os bagaudae nunca foram com pletamente derrotados Os imperadores romanos tiveram que recrutar tribos de invasores bárbaros para dominálos Constantino retirou os visigodos da Espanha e fez generosas doações de terra a eles na Gália esperando que pusessem sob controle os bagaudae Até mesmo os hunos foram recrutados para perseguilos RandersPehrson 1983 p 189 Porém novamente encontramos os bagaudae lutando com os visigodos e os alanos contra o avanço de Átila 49 48 mesmo tempo os senhores de terra começaram a subjugar os camponeses livres que arruinados pela expansão do trabalho escravo e depois pelas invasões germânicas buscaram a proteção dos senhores ainda que a custo de sua independência Assim uma vez que a escravidão nunca foi completamente abolida desenvolveuse uma nova relação de classe que homo geneizou as condições dos antigos escravos e dos trabalhadores agrícolas livres Dockes 1982 p 151 relegando todo o cam pesinato a uma relação de subordinação Deste modo durante três séculos do século IX ao XI camponês rusticus villanus seria sinônimo de servo servus Pirenne 1956 p 63 Enquanto relação de trabalho e estatuto jurídico a servidão era uma carga pesada Os servos estavam atados aos senhores de terra suas pessoas e posses eram propriedades de seus senhores e suas vidas estavam reguladas em todos os aspectos pela lei do feudo Entretanto a servidão redefniu a relação de classe em termos mais favoráveis para os trabalhadores A servidão marcou o fm do trabalho com grilhões e da vida no ergástulo8 e uma diminuição dos castigos atrozes as coleiras de ferro as queima duras as crucifcações de que a escravidão havia dependido Nos feudos os servos estavam submetidos à lei do senhor porém suas transgressões eram julgadas a partir de acordos consuetudi nários de usos e costumes e com o tempo até mesmo por um sistema de júri constituído por seus pares Do ponto de vista das mudanças introduzidas na relação senhorservo o aspecto mais importante da servidão foi a con cessão aos servos do acesso direto aos meios de sua reprodução Em troca do trabalho que estavam obrigados a realizar na terra 8 Os ergástulos eram as vivendas dos escravos nas vilas romanas Tratavase de prisões subterrâneas onde os escravos dormiam acorrentados as janelas eram tão altas de acordo com a descrição de um senhor de terras da época que os escravos não podiam alcançálas Dockes 1982 p 69 Era possível encontrálas quase em qualquer parte nas regiões conquistadas pelos romanos onde os escravos superavam de forma ampla numericamente os homens livres Ibidem p 208 O termo ergastolo ainda é utilizado na justiça penal italiana com o significado de prisão perpétua do senhor a demesne os servos recebiam uma parcela de terra mansus ou hide9 que podiam utilizar para manterse e deixar a seus flhos como uma verdadeira herança simplesmente pagan do uma dívida de sucessão Boissonnade 1927 p 1934 Como assinala Pierre Dockes em Medieval Slavery and Liberation 1982 Escravidão medieval e libertação este acordo aumentou a autonomia dos servos e melhorou suas condições de vida já que agora podiam dedicar mais tempo à sua reprodução e negociar o alcance de suas obrigações em vez de serem tratados como bens móveis sujeitos a uma autoridade ilimitada O que é mais importante por terem o uso e a posse efetiva de uma parcela de terra os servos sempre dispunham de recursos inclusive no ponto máximo de seus enfrentamentos com os senhores não era fácil forçálos a obedecer pela ameaça de passar fome É verdade que o senhor podia expulsar da terra os servos rebeldes mas isso raramente ocorria dadas as difculdades para recrutar novos trabalhadores em uma economia bastante fechada e devido à natureza coletiva das lutas camponesas É por isso que no feudo como apontou Marx a exploração do trabalho sempre dependia do uso direto da força10 A experiência de autonomia adquirida pelos camponeses a partir do acesso à terra teve também um potencial político e ideológico Com o tempo os servos começaram a sentir como própria a terra que ocupavam e a considerar intoleráveis as restrições de liberdade que a aristocracia lhes impunha A terra é de quem a trabalha a mesma demanda que ressoou ao longo do século XX das revoluções mexicana e russa até as 9 Demesne mansus e hide eram termos usados no direito medieval inglês NTE 10 Marx referese a esta questão no tomo III de O capital quando compara a economia da servidão às economias escravista e capitalista O grau no qual o trabalhador servo autossuficiente pode ganhar aqui um excedente além de seus meios de subsistên cia imprescindíveis depende se outras circunstâncias permanecem constantes da proporção em que se divide seu tempo de trabalho em tempo de trabalho para si mesmo e em tempo de prestação pessoal servil para o senhor feudal Nestas condições o ex cedente de trabalho realizado pelos servos só pode ser subtraído mediante uma coerção extraeconômica seja qual for a forma que esta assuma Marx 1909 t III pp 9178 51 50 lutas de nossos dias contra a privatização da terra é um grito de batalha com o qual os servos medievais certamente se iden tifcariam No entanto a força dos servos provinha do fato de que o acesso à terra era para eles uma realidade Com o uso da terra também apareceu o uso dos espa ços comunais11 pradarias bosques lagos pastos que proporcionavam recursos imprescindíveis para a economia camponesa lenha para combustível madeira para construção tanques de peixes terras de pastoreio ao mesmo tempo que fo mentavam a coesão e a cooperação comunitárias Birrell 1987 p 23 No norte da Itália o controle sobre estes recursos serviu de base para o desenvolvimento de administrações autônomas comunais Hilton 1973 p 76 Os espaços comunais eram tão importantes na economia política e nas lutas da população rural medieval que sua memória ainda aviva nossa imaginação projetando a visão de um mundo em que os bens podem ser compartilhados e a solidariedade em vez do autoengrandeci mento pode ser o fundamento das relações sociais12 A comunidade servil medieval não alcançou esses objetivos e não deve ser idealizada como um exemplo de comunalismo Na verdade seu exemplo nos recorda que nem o comunalis mo nem o localismo podem garantir relações igualitárias a menos que a comunidade controle seus meios de subsistência e todos seus membros tenham igual acesso a eles Não era o caso dos servos e dos feudos Apesar de terem prevalecido formas 11 A expressão inglesa commons adquiriu com seu uso a condição de substantivo Referese ao comum ou ao tido em comum quase sempre com uma conotação espacial Decidimos traduzilo quando corresponda como terras comunais ou o comum Vários autores contribuíram com a discussão acerca da permanência da acumulação primitiva em termos de enclosure cercamento dos commons Entre eles cabe mencionar além de Silvia Federici George Caffentzis Peter Linebaugh Massimo de Angelis Nick DyerWitheford o coletivo Midnight Notes e os que contribuem com a revista The Commoner NTE 12 Para uma discussão sobre a importância dos bens e direitos comuns na Inglaterra ver Joan Thrisk 1964 Jean Birrell 1987 e J M Neeson 1993 Os movi mentos ecologistas e ecofeministas deram ao comum um novo sentido político Para uma perspectiva ecofeminista da importância do comum na economia da vida das mulheres ver Vandana Shiva 1989 coletivas de trabalho e contratos coletivos com os senhores feudais e apesar do caráter local da economia campesina a aldeia medieval não era uma comunidade de iguais Tal como se deduz de uma vasta documentação proveniente de todos os países da Europa Ocidental existiam muitas diferenças sociais entre os camponeses livres e os camponeses com um estatuto servil entre camponeses ricos e pobres entre aqueles que tinham assegurada posse da terra e os trabalhadores semterra que trabalhavam por um salário na demesne do senhor assim como também entre mulheres e homens13 Geralmente a terra era entregue aos homens e transmitida pela linhagem masculina embora tenha havido muitos casos de mulheres que a herdavam e administravam em seu nome14 As mulheres também foram excluídas dos cargos para os quais se designavam camponeses mais abastados e para todos os efeitos tinham um status de segunda classe Bennett1988 pp 1829 Shahar 1983 Talvez seja este o motivo pelo qual seus nomes raramente são mencionados nas crônicas dos feudos com exceção dos arquivos das cortes nos quais se registravam infrações dos servos No entanto as servas eram menos depen dentes de seus parentes de sexo masculino se diferenciavam menos deles física social e psicologicamente e estavam menos subordinadas a suas necessidades do que logo estariam as mu lheres livres na sociedade capitalista 13 Para uma discussão sobre a estratificação do campesinato europeu ver R Hil ton 1985 pp 1167 14151 e J Z Titow 1969 pp 569 É de especial importância a distinção entre liberdade pessoal e liberdade de posse A primeira significava que um camponês não era um servo ainda que ele ou ela tivesse a obrigação de fornecer serviços laborais A última queria dizer que um camponês tinha uma terra que não estava asso ciada a obrigações servis Na prática ambas tendiam a coincidir isso começou a mudar entretanto quando os camponeses livres passaram a adquirir terras que acarretavam encargos servis a fim de expandir suas propriedades Assim encontramos camponeses livres liberi em posse de terra vilã e encontramos vilões villani nativi em posse vitalí cia de terras embora ambos os casos sejam raros e estivessem mal considerados Titow 1969 pp 567 14 O exame de testamentos de Kibworth Inglaterra no século xv realizado por Barbara Hanawalt mostra que em 41 dos testamentos os homens preferiram filhos homens adultos enquanto em 29 dos casos escolheram somente a mulher ou a mulher e um filho homem Hanawalt 1986b p 155 53 52 A dependência das mulheres em relação aos homens na comunidade servil estava limitada pelo fato de que sobre a au toridade de seus maridos e de seus pais prevalecia a autoridade dos senhores que se declaravam em posse das pessoas e da pro priedade dos servos e tentavam controlar cada aspecto de suas vidas desde o trabalho até o casamento e a conduta sexual Era o senhor que mandava no trabalho e nas relações sociais das mulheres e decidia por exemplo se uma viúva deveria se casar novamente e quem deveria ser seu esposo Em algumas regiões reivindicavam inclusive o ius primae noctis o direito de deitarse com a esposa do servo na noite de núpcias A autoridade dos servos homens sobre suas parentas também estava limitada pelo fato de que a terra era entregue geralmente à unidade familiar e as mulheres não somente trabalhavam nela mas também podiam dispor dos produtos de seu trabalho e não precisavam depender de seus maridos para se manter A participação da esposa na posse da terra era tão aceita na Inglaterra que quando um casal aldeão se casava era comum que o homem fosse devolver a terra ao senhor retomandoa tanto em seu nome quanto no de sua esposa Hanawalt 1986b p 15515 Além disso dado que o trabalho no feudo estava orga nizado com base na subsistência a divisão sexual do trabalho era menos pronunciada e exigente que nos estabelecimen tos agrícolas capitalistas Na aldeia feudal não existia uma separação social entre a produção de bens e a reprodução da força de trabalho todo o trabalho contribuía para o sustento familiar As mulheres trabalhavam nos campos além de criar os flhos cozinhar lavar far e manter a horta suas atividades 15 Hanawalt vê a relação matrimonial entre camponeses como uma sociedade As transações de terra nas cortes feudais indicam uma forte prática de responsabilidade e tomada de decisões de ambos Marido e mulher também aparecem comprando e vendendo terrenos para eles ou para seus filhos Hanawalt 1986b p 16 Sobre a contribuição das mulheres ao trabalho agrícola e ao controle do excedente de produtos alimentícios ver Shahar 1983 pp 23942 E sobre a contribuição extralegal das mu lheres em seus lares B Hanawalt 1986b p 12 Na Inglaterra o espigamento ilegal era a forma mais comum para uma mulher obter mais grãos para sua família Ibidem domésticas não eram desvalorizadas e não supunham relações sociais diferentes das dos homens tal como ocorreria em breve na economia monetária quando o trabalho doméstico deixou de ser visto como um verdadeiro trabalho Se também levarmos em consideração que na sociedade medieval as relações coletivas prevaleciam sobre as familiares e que a maioria das tarefas realizadas pelas servas lavar far fazer a colheita e cuidar dos animais nos campos comunais era realizada em cooperação com outras mulheres nos damos conta de que a divisão sexual do trabalho longe de ser uma fon te de isolamento constituía uma fonte de poder e de proteção para as mulheres Era a base de uma intensa sociabilidade e so lidariedade feminina que permitia às mulheres enfrentar os ho mens embora a Igreja pregasse pela submissão e a Lei Canônica santifcasse o direito do marido a bater em sua esposa No entanto a posição das mulheres nos feudos não pode ser tratada como se fosse uma realidade estática16 O poder das mu lheres e suas relações com os homens estavam determinados a todo momento pelas lutas de suas comunidades contra os senhores feudais e pelas mudanças que essas lutas produziam nas relações entre senhores e servos 16 Esta é a limitação de alguns estudos em outros sentidos excelentes produzidos em anos recentes sobre as mulheres na Idade Média por parte de uma nova geração de historiadoras feministas Compreensivelmente a dificuldade de apresentar uma visão sintética de um campo cujos contornos empíricos ainda estão sendo reconstruí dos levou a certa tendência por análises descritivas focadas nas principais classificações da vida social das mulheres a mãe a trabalhadora mulheres em zonas rurais mulheres nas cidades com frequência abstraídas da mudança social e econômica e da luta social 55 54 A LUTA PELO COMUM Por volta do fm do século XIV a revolta do campesinato contra os senhores feudais havia se tornado constante massiva e frequentemente armada No entanto a força organizativa que os camponeses demonstraram nesse período foi resultado de um longo confito que de um modo mais ou menos manifesto atravessou toda a Idade Média Contrariamente à descrição da sociedade feudal como um mundo estático no qual cada estamento aceitava o lugar que lhe era designado na ordem social descrição que costumamos en contrar nos livros escolares o retrato que emerge do estudo sobre o feudo é na verdade de uma luta de classes incansável Como indicam os arquivos das cortes senhoriais inglesas a aldeia medieval era o cenário de uma luta cotidiana Hilton 1966 p 154 Hilton 1985 pp 1589 Em alguns casos alcança vamse momentos de grande tensão como quando os aldeões matavam o administrador ou atacavam o castelo de seu senhor Com mais frequência entretanto consistia em um permanente litígio pelo qual os servos tratavam de limitar os abusos dos senhores fxar seus fardos e reduzir os muitos tributos que lhes deviam em troca do uso da terra Bennett 1967 Coulton 1955 pp 3591 Hanawalt 1986a pp 325 O objetivo principal dos servos era preservar seu excedente de trabalho e seus produtos ao mesmo tempo que ampliavam a esfera de direitos econômicos e jurídicos Esses dois aspectos da luta servil estavam estreitamente ligados já que muitas obrigações decorriam do estatuto legal dos servos Assim na Inglaterra do século XIII tanto nos feudos laicos quanto nos religiosos os camponeses homens eram frequentemente multados por declarar que não eram servos mas homens livres um desafo que podia acabar num desagradável litígio seguido inclusive por apelação à corte real Hanawalt 1986a p 31 Os camponeses também eram multados por se recusarem a assar seu pão no forno dos senhores ou a moer seus grãos ou azeitonas em seus moinhos o que lhes permitia evitar os one rosos impostos que lhes impunham pelo uso destas instalações Bennett 1967 pp 1301 Dockes 1982 pp 1769 No entanto a questão mais importante da luta dos servos se tratava do tra balho que em certos dias da semana eles deviam executar nas terras dos senhores Esses serviços laborais eram as cargas que afetavam mais diretamente a vida dos servos e ao longo do século XIII foram o tema central na luta por liberdade17 A atitude dos servos ante a corveia outra das denomina ções dos serviços laborais se faz visível por meio das anotações nos livros das cortes senhoriais em que se registravam os castigos impostos aos arrendatários Em meados do século XIII há provas de uma deserção massiva dos serviços laborais Hilton 1985 pp 1301 Os arrendatários não iam nem envia vam seus flhos para trabalhar na terra dos senhores quando eram convocados para a colheita18 ou iam tarde demais para os campos de forma que a colheita estragava ou trabalhavam de má vontade demorandose em descansos mantendo em geral uma atitude insubordinada Daqui a necessidade dos senhores em exercer uma vigilância constante e estreita como demons tra a seguinte recomendação 17 Como escreve J Z Titow no caso dos camponeses ingleses sob regime de ser vidão Não é difícil ver por que o aspecto pessoal da vilanagem seria eclipsado na mente dos camponeses pelo problema dos serviços laborais As incapacidades que surgem do status submisso teriam lugar somente de forma esporádica Não tanto quanto os serviços laborais em particular o trabalho semanal que obrigava um homem a trabalhar para seu senhor tantos dias da semana todas as semanas além de prestar outros serviços ocasionais Titow 1969 p 59 18 Se tomarmos as primeiras páginas dos registros de Abbots Langley multavamse os homens por não irem à colheita ou por não irem com uma quantidade suficiente de homens chegavam tarde e quando chegavam faziam mal seu trabalho ou com preguiça Às vezes não apenas um servo mas um grupo inteiro faltava e deixava os cultivos do senhor sem serem colhidos Outros chegavam a ir mas se mostravam muito antipáticos Bennett 1967 p 112 57 56 Deixem que o administrador e o assistente estejam o tempo todo com os lavradores para que se assegurem de que estes façam bem e conscientemente seu trabalho e que no fnal do dia vejam quanto fzeram E dado que costumeiramente os servos se descuidam de seu trabalho é necessário que sejam vigiados com frequência e o administrador deve supervisionálos bem de perto para que trabalhem bem e se não fzerem de forma adequada seu trabalho que os repreenda Bennett 1967 p 113 Uma situação similar é ilustrada em Piers the Plowman c 13621370 Pedro o lavrador o poema alegórico de William Langland em que numa cena os peões que haviam estado ocupados durante a manhã passam a tarde sentados e cantan do e em outra se fala de folgazões que na época da colheita se reúnem em massa sem buscar nada para fazer além de beber e dormir Coulton 1955 p 87 A obrigação de prestar serviços militares em tempos de guerra também era objeto de forte resistência Tal como re lata H S Bennett nas aldeias inglesas sempre era necessário recorrer à força para o recrutamento e os comandantes me dievais raramente conseguiam reter seus homens na guerra pois os alistados depois de assegurarem seu pagamento desertavam assim que aparecesse a primeira oportunidade Exemplo disso são os registros de pagamento da campanha escocesa do ano 1300 que indicam que enquanto em junho havia sido ordenado o alistamento de 16 mil recrutas na metade de julho só conseguiram reunir 76 mil e essa foi a crista da onda em agosto restaram pouco mais de 3 mil Como consequência o rei dependia cada vez mais de criminosos indultados e foragidos para reforçar seu exército Bennett 1967 pp 1235 Outra fonte de confito vinha do uso das terras não cultiva das incluindo os bosques os lagos e as montanhas que os servos consideravam propriedade coletiva Podemos ir aos bosques declaravam os servos numa crônica inglesa de meados do século XII e tomar o que quisermos pescar peixes do tanque e caçar nos bosques faremos o que for nossa vontade nos bosques nas águas e nas pradarias Hilton 1973 p 71 Ainda assim as lutas mais duras foram aquelas contra os impostos e encargos que surgiam do poder jurisdicional da nobreza Elas incluíam a mãomorta um imposto que o senhor angariava quando um servo morria a mercheta mu lierum um imposto sobre o casamento que aumentava quan do um servo se casava com alguém de outro feudo o heriot um imposto sobre herança que era pago pelo herdeiro de um servo falecido pelo direito de obter acesso à sua propriedade que geralmente consistia no melhor animal do falecido e o pior de todos a talha uma quantia em dinheiro decidida arbitrariamente que os senhores podiam exigir à vontade Finalmente embora não menos significativo o dízimo era um décimo do ingresso do camponês que ia para o clero geralmente recolhido pelos senhores em nome deles Esses impostos contra a natureza e a liberdade eram junto com o serviço laboral os impostos feudais mais odiados pois como não eram compensados com nenhuma adjudicação de terra ou outros benefícios revelavam a arbitrariedade do poder feudal Em consequência eram energicamente rechaçados Um caso típico foi a atitude dos servos dos monges de Dunstable que em 1299 declararam que preferiam ir ao inferno a serem derrotados pela talha e depois de muita controvérsia compraram sua liberdade Bennett 1967 p 139 De maneira similar em 1280 os ser vos de Hedon uma aldeia de Yorkshire deixaram claro que se a talha não fosse abolida preferiam ir viver nas cidades vizinhas Revensered e Hull que dispõem de bons portos crescendo diariamente e não têm talha ibidem p 141 Não 59 58 eram ameaças vãs A fuga para cidades ou vilarejos19 era um elemento permanente da luta dos servos de tal maneira que em alguns feudos ingleses se dizia uma vez ou outra que ha via homens fugitivos que viviam nas cidades vizinhas e apesar de que se dessem ordens para que fossem trazidos de volta o vilarejo continuava dandolhes refúgio ibidem pp 2956 A estas formas de enfrentamento aberto devemos acrescen tar as múltiplas e invisíveis formas de resistência pelas quais os camponeses subjugados se tornaram famosos em todas as épocas e lugares má vontade dissimulação falsa docilidade ignorância fngida deserção furtos contrabando tráfco de animais Scott 1989 p 5 Essas formas cotidianas de re sistência tenazmente continuadas durante anos sem as quais não é possível qualquer descrição adequada das relações de classe eram abundantes na aldeia medieval Isso pode explicar a meticulosidade com que as cargas ser vis eram especifcadas nos registros dos feudos Por exemplo com frequência as crônicas feudais não dizem simplesmente que um homem deve arar semear e rastelar um acre da terra do senhor Dizem que deve lavrálo com tantos bois quanto houver em seu arado rastelálo com seu próprio cavalo e sacos Os serviços também eram registrados nos mínimos detalhes Devemos recordar os camponeses de Elton que admitiram que eram obrigados a empilhar o feno do senhor em seu campo e também em seu estábulo mas sustentavam que o costume não os obrigava a carregálos em carros para serem levados de um lugar a outro Homans 1960 p 272 Em alguns lugares da Alemanha onde as obrigações incluíam doações anuais de ovos e aves domésticas foram 19 A distinção entre cidade e vilarejo nem sempre é clara Para nossos propósitos neste trabalho cidade é um centro povoado com carta régia sede episcopal e mercado enquanto vilarejo é um centro povoado geralmente menor que a cidade com um mercado permanente designados exames de saúde para evitar que os servos entregas sem aos senhores os piores frangos A galinha é colocada então em frente à cerca ou portão se quando é assustada tem força sufciente para voar ou se movimentar rapidamente o administrador deve aceitála pois goza de boa saúde De novo um flhote de ganso deve ser aceito se está maduro o sufciente para arrancar pasto sem perder o equilíbrio e cair sentado vergonhosamente Coulton 1955 pp 745 Regulações tão minuciosas dão testemunho da difculdade de fazerse cumprir o contrato social medieval e a variedade de campos de batalha disponíveis para uma aldeia ou um arrendatário combativos Os direitos e obrigações dos servos estavam regulados por costumes mas sua interpretação tam bém era objeto de muitas disputas A invenção de tradições era uma prática comum na confrontação entre senhores feudais e camponeses já que ambos tratavam de redefnilas ou esque cêlas até que chegou um momento no fnal do século XIII em que os senhores as estabeleceram de forma escrita 61 60 LIBERDADE E DIVISÃO SOCIAL Em termos políticos a primeira consequência das lutas servis foi a concessão de privilégios e cartas de foral que fxavam as cargas e asseguravam um elemento de autonomia na adminis tração da comunidade aldeã garantindo em certos momentos para muitas aldeias particularmente no norte da Itália e na França verdadeiras formas de autogoverno local Estes forais es tipulavam as multas que as cortes feudais deviam impor e esta beleciam regras para os procedimentos judiciais eliminando ou reduzindo a possibilidade de prisões arbitrárias e outros abusos Hilton 1973 p 75 Também aliviavam a obrigação dos servos de alistaremse como soldados e aboliam ou fxavam a talha Com frequência outorgavam a liberdade de ter um posto isto é de vender bens no mercado local e menos frequentemente o direito de alienar a terra Entre 1177 e 1350 somente em Lorena foram concedidos 280 forais ibidem p 83 No entanto a resolução mais importante do confito entre se nhores e servos foi a substituição dos serviços laborais por um pa gamento em dinheiro arrendamentos em dinheiro impostos em dinheiro que colocava a relação feudal sobre uma base mais con tratual Com esse desenvolvimento de importância fundamental a servidão praticamente acabou mas assim como acontece com muitas vitórias dos trabalhadores que apenas satisfazem par cialmente as demandas originais a substituição também cooptou os objetivos da luta funcionou como um meio de divisão social e contribuiu para a desintegração da aldeia feudal Para os camponeses abastados que por possuir grandes extensões de terra podiam ganhar dinheiro sufciente para por exemplo comprar seu sangue e empregar outros trabalhadores a substituição deve ter sido um grande passo no caminho até a in dependência econômica e pessoal na mesma medida em que os senhores diminuíam seu controle sobre os arrendatários quando eles já não dependiam diretamente de seu trabalho Entretanto os camponeses mais pobres que possuíam somente uns poucos acres de terra apenas o sufciente para a sua sobrevivência per deram até o pouco que tinham Obrigados a pagar suas obrigações em dinheiro contraíram dívidas crônicas pegando emprestado da conta de colheitas futuras um processo que terminou fazendo com que muitos perdessem suas terras Em consequência no fnal do século XIII quando as substituições se difundiram por toda a Europa Ocidental as divisões sociais nas áreas rurais se aprofundaram e parte do campesinato sofreu um processo de proletarização Como escreve Bronislaw Geremek 1994 p 56 Os documentos do século XIII contêm grandes quantidades de informação sobre os camponeses semterra que a duras penas se ajeitam para viver às margens da vida aldeã ocupandose dos rebanhos Encontramse crescentes quantidades de jardineiros camponeses semterra ou quase semterra que ganhavam a vida oferecendo seus serviços No sul da França os brassiers viviam inteiramente da venda da força de seus braços bras oferecendose a camponeses mais ricos ou à aristocracia proprietária Desde o começo do século XIV os registros de impostos mostram um aumento marcante do número de camponeses pobres que aparecem nesses documentos como indigentes pobres ou até mendigos20 A substituição por dinheiroaluguel teve outras duas consequências negativas Primeiro tornou mais difícil para os produtores medirem sua exploração na medida em que os 20 O seguinte trecho é um retrato estatístico da pobreza rural em Picardy no sé culo XIII indigentes e mendigos representavam 13 proprietários de pequenas parcelas de terra economicamente tão instáveis que uma má colheita representava uma ameaça à sua sobrevivência eram 33 camponeses com mais terra porém sem animais de tra balho 36 camponeses ricos 19 Geremek 1994 p 57 Na Inglaterra em 1280 os camponeses com menos de três acres de terra insuficientes para alimentar uma família representavam 46 do campesinato ibidem 63 62 serviços laborais eram substituídos por pagamentos em dinhei ro os camponeses deixavam de diferenciar entre o trabalho que faziam para si mesmos e aquele que faziam para os senhores A substituição também possibilitou que os arrendatários agora livres empregassem e explorassem outros trabalhadores de tal maneira que em um desenvolvimento posterior promoveu o crescimento independente da propriedade camponesa trans formando os antigos possuidores camponeses em arrendatá rios capitalistas Marx 1909 t III p 924 e segs A monetização da vida econômica não benefciou portanto a todos contrariamente do que é afrmado pelos partidários da economia de mercado que lhe dão as boasvindas como se tivesse sido a criação de um novo bem comum que substitui a sujeição à terra e que introduz na vida social critérios de objeti vidade racionalidade e inclusive de liberdade pessoal Simmel 1978 Com a difusão das relações monetárias os valores certa mente mudaram mesmo dentro do clero que passou a repensar a doutrina aristotélica da esterilidade do dinheiro Kaye 1998 e não por acaso a rever sua visão do caráter redentor da caridade aos pobres Porém seus efeitos foram destrutivos e excludentes O dinheiro e o mercado começaram a dividir o campesinato ao transformar as diferenças de rendimentos em diferenças de clas se e ao produzir uma massa de pobres que só conseguiam sobre viver graças a doações periódicas Geremek 1994 pp 5662 O ataque sistemático a que os judeus foram submetidos a partir do século XII e a constante deterioração de seu estatuto legal e social nesse mesmo período também devem ser atribuídos à crescente infuência do dinheiro De fato existe uma correlação reveladora entre por um lado o deslocamento de judeus por concorrentes cristãos como fnanciadores de reis de papas e do alto clero e por outro as novas regras de discriminação por exemplo o uso de roupa distintiva que foram adotadas pelo clero contra eles assim como sua expulsão da Inglaterra e da França Degradados pela Igreja diferenciados pela população cristã e forçados a confnar seus empréstimos ao nível da aldeia uma das poucas ocupações que podiam exercer os judeus se transformaram em alvo fácil para os camponeses endividados que descarregavam neles seu enfrentamento contra os ricos Barber 1992 p 76 As mulheres em todas as classes também se viram afetadas de um modo muito negativo A crescente comercialização da vida reduziu ainda mais seu acesso à propriedade e à renda Nas cidades comerciais italianas as mulheres perderam o direito a herdar um terço da propriedade de seu marido a tertia Nas áreas rurais foram excluídas da posse da terra especialmente quando eram solteiras ou viúvas Consequentemente no fnal do século XIII encabeçaram o movimento de êxodo do campo sendo as mais numerosas entre os imigrantes rurais nas cidades Hilton 1985 p 212 e no século XV constituíam uma alta porcentagem da população das cidades Aqui a maioria vivia em condições de pobreza fazendo trabalhos mal pagos como servas vendedoras ambulantes comerciantes com frequência multadas por não terem licença fandeiras membros de guildas menores e prostitutas21 No entanto a vida nos centros urbanos entre a parte mais combativa da população medieval davalhes uma nova autonomia social As leis das cidades não libertavam as mulheres poucas podiam arcar com os custos da liberdade citadina como eram chamados os privilégios ligados à vida na cidade Porém na cidade a subordinação das mulheres à tutela masculina era menor pois agora podiam viver sozinhas ou como chefes de família com seus flhos ou podiam formar 21 A seguinte canção das fiandeiras de seda oferece uma imagem gráfica da pobreza em que viviam as trabalhadoras não qualificadas das cidades Geremek 1994 p 65 Sempre fiando lençóis de seda Nunca estaremos mais bem vestidas Porém sempre desnudas e pobres E sempre sofrendo de fome e sede Nos arquivos munici pais franceses as fiandeiras e outras assalariadas eram associadas com as prostitutas possivelmente porque viviam sozinhas e não contavam com uma estrutura familiar Nas cidades as mulheres não sofriam apenas pela pobreza mas também devido à falta de parentes o que as deixava vulneráveis ao abuso Hughes 1975 p 21 Geremek 1994 pp 656 Otis 1985 pp 1820 Hilton 1985 pp 2123 65 64 Mulheres pedreiras construindo o muro de uma cidade século xv Detalhe de uma miniatura de Cristina de Pisano antes das personificações de Retidão Razão e Justiça em seu estudo ajudando outra senhora a construir a Cidade das damas presente no manuscrito conhecido como O livro da rainha que inclui obras de Cristina de Pisano NTP novas comunidades frequentemente compartilhando a moradia com outras mulheres Embora geralmente fossem os membros mais pobres da sociedade urbana com o tempo as mulheres ganharam acesso a muitas ocupações que posteriormente seriam consideradas trabalhos masculinos Nas cidades medievais as mulheres trabalhavam como ferreiras açougueiras padeiras candeleiras chapeleiras cervejeiras cardadeiras de lã e comer ciantes Shahar 1983 pp 189200 King 1991 pp 647 Em Frankfurt havia aproximadamente duzentas ocupações nas quais participavam entre 1300 e 1500 mulheres Williams e Echols 2000 p 53 Na Inglaterra 72 das 85 guildas incluíam mulheres entre seus membros Algumas guildas incluindo a da indústria da seda eram controladas por elas em outras a porcentagem de trabalho feminino era tão alta quanto a dos homens22 No século XIV as mulheres também estavam tornan dose professoras escolares bem como médicas e cirurgiãs e começavam a competir com homens formados em universida des obtendo em certas ocasiões uma alta reputação Dezesseis médicas dentre elas várias mulheres judias especializadas em cirurgia ou terapia ocular foram contratadas no século XVI pela prefeitura de Frankfurt que como outras administrações urbanas oferecia à sua população um sistema público de saúde Médicas assim como parteiras ou sagefemmes predominavam na obstetrícia tanto contratadas por governos urbanos quanto se mantendo por meio da compensação paga por seus pacientes Após a introdução da cesariana no século XIII as obstetras eram as únicas que a praticavam Optiz 1996 pp 3701 À medida que as mulheres ganhavam mais autonomia sua presença na vida social passou a ser mais constante nos sermões dos padres que repreendiam sua indisciplina Casagrande 1978 nos arquivos dos tribunais aonde iam denunciar quem abusava 22 Para uma análise sobre as mulheres nas guildas medievais ver Maryanne Kowaleski e Judith M Bennett 1989 David Herlihy 1995 e Williams e Echols 2000 delas S Cohn 1981 nas ordenações das cidades que regulavam a prostituição Henriques 1966 entre as centenas de não comba tentes que seguiam os exércitos Hacker 1981 e sobretudo nos movimentos populares especialmente nos heréticos Logo veremos o papel que desempenharam nos movimentos heréticos Por ora basta dizer que em resposta à nova inde pendência feminina vemos o começo de uma reação misógina mais evidente nas sátiras dos fabliaux23 em que encontramos os primeiros indícios do que os historiadores defniram como a luta pelas calças 23 Fabliaux é o nome dado a pequenas estórias satíricas e narrativas populares cômicas muitas vezes em versos na literatura francesa da Idade Média NTP 67 66 Procissão de flagelantes durante a Peste Negra seus mais fervorosos seguidores Nicholas 1992 p 155 Essa gente pobre tecelões lavadores entrava para suas fleiras apa rentemente convencidos de que isso lhes daria prata ou ouro e possibilitaria uma reforma social total Volpe 1922 pp 2989 O movimento dos pastoureaux pastores camponeses e traba lhadores urbanos que arrasaram o norte da França por volta de OS MOVIMENTOS MILENARISTAS E HERÉTICOS O crescente proletariado semterra que surgiu destas mudan ças foi o protagonista dos movimentos milenaristas dos sécu los XII e XIII nestes podemos encontrar além de camponeses empobrecidos todos os párias da sociedade feudal prostitu tas padres afastados do sacerdócio trabalhadores urbanos e rurais N Cohn 1970 Os vestígios da breve aparição dos milenaristas na cena histórica são escassos e nos contam uma história de revoltas passageiras e de um campesinato bruta lizado pela pobreza e pela pregação infamada do clero que acompanharam o lançamento das cruzadas A importância de sua rebelião todavia está no fato de ter inaugurado um novo tipo de luta que já se projetava para além dos confns do feu do e que foi impulsionada por aspirações de mudança total Não é por acaso que o surgimento do milenarismo foi acom panhado pela difusão de profecias e de visões apocalípticas que anunciavam o fm do mundo e a iminência do Juízo Final não como visões de um futuro mais ou menos distante a ser esperado mas como acontecimentos iminentes nos quais muitos dos que estavam vivos naquele momento podiam ser participantes ativos Hilton 1973 p 223 O movimento que desencadeou a aparição em Flandres do pseudoBalduíno em 1224 e 1225 constitui um exemplo típico de milenarismo O homem um ermitão dizia ser o popular Balduíno IX que havia sido assassinado em Constantinopla em 1204 Embora não fosse possível provar sua identidade sua promessa de um mundo novo provocou uma guerra civil em que os trabalhadores têxteis famencos se transformaram em 69 68 1251 incendiando e saqueando as casas dos ricos exigindo uma melhoria de sua condição Russell 1972 p 136 Lea 1961 pp 126724 e o movimento dos fagelantes que começou em Úmbria Itália e se espalhou por vários países em 1260 momen to em que de acordo com a profecia do abade Joachim da Flora o mundo estaria fadado a acabar Russell 1972a p 137 com partilhava semelhanças com o movimento do pseudoBalduíno No entanto não foi o movimento milenarista mas a heresia popular a que melhor expressou a busca por uma alternativa concreta às relações feudais por parte do proletariado medieval e sua resistência à crescente economia monetária A heresia e o milenarismo são frequentemente tratados como se fossem a mesma coisa mas embora não seja possível fazer uma distinção precisa é necessário ressaltar que existem diferenças signifcativas entre ambos Os movimentos milenaristas eram espontâneos sem uma estrutura ou programa organizativo Geralmente eram incitados por um acontecimento específco ou por um líder carismático mas assim que eram enfrentados com violência colapsavam Em contraste os movimentos heréticos foram uma tentativa consciente de criar uma sociedade nova As principais seitas hereges tinham um programa social que reinterpretava a tradição religiosa e ao mesmo tempo eram bem organizadas do ponto de vista de sua disseminação da difusão de suas ideias e até mesmo de sua autodefesa Não foi por acaso que apesar da perseguição extrema que sofreram persistiram durante muito tempo e tive ram um papel fundamental na luta antifeudal 24 O movimento dos pastoureaux também foi provocado pelos acontecimentos do Oriente neste caso a captura do rei Luís IX da França pelos muçulmanos no Egito em 1249 Hilton 1973 pp 1002 Um movimento formado por gente pobre e simples se organizou para libertálo mas rapidamente adquiriu um caráter anticlerical Os pastoureaux reapareceram no sul da França na primavera e no verão de 1320 ainda diretamente influenciados pela atmosfera das cruzadas Eles não tiveram a oportu nidade de participar das cruzadas no Oriente em seu lugar utilizaram suas energias para atacar as comunidades judaicas do sudoeste da França Navarra e Aragão muitas vezes com a cumplicidade dos consulados locais antes de serem barrados ou dispersados pelos funcionários reais Barber 1992 pp 1356 Atualmente pouco se sabe sobre as diversas seitas hereges cátaros valdenses os Pobres de Lyon espirituais apostólicos que durante mais de três séculos foresceram entre as classes baixas de Itália França Flandres e Alemanha no que sem dúvida foi o movimento de oposição mais importante da Idade Média Werner 1974 Lambert 1977 Isso se deve funda mentalmente à ferocidade com que foram perseguidas pela Igreja que não poupou esforços para apagar todo rastro de suas doutrinas Foram convocadas cruzadas contra os hereges tal como a dirigida contra os albigenses25 da mesma maneira que se convocaram cruzadas para libertar a Terra Santa dos in féis Os hereges eram queimados aos milhares na fogueira e para erradicar sua presença o papa criou uma das instituições mais perversas jamais conhecidas na história da repressão esta tal a Santa Inquisição Vauchez 1990 pp 1627026 25 A cruzada contra os albigenses cátaros do povoado de Albi no sul da França foi o primeiro ataque em grande escala contra os hereges e a primeira cruzada contra europeus O papa Inocêncio III colocoua em marcha nas regiões de Toulouse e Montpel lier depois de 1209 A partir desse momento a perseguição aos hereges se intensificou de forma dramática Em 1215 por ocasião do quarto Concílio de Latrão Inocêncio III incluiu nos cânones conciliares um conjunto de medidas que condenavam os hereges ao exílio e ao confisco de suas propriedades ao mesmo tempo que os excluía da vida civil Mais tarde em 1224 o imperador Frederico II uniuse à perseguição com o ordenamento Cum ad conservandum que definia a heresia como um crime de lesa maiestatis que devia ser castigado com a morte na fogueira Em 1229 o Concílio de Toulouse estabeleceu que os hereges deveriam ser identificados e castigados Os hereges declarados e seus proteto res deviam ser queimados na fogueira A casa onde um herege era descoberto devia ser destruída e a terra sobre a qual estava construída devia ser confiscada Aqueles que rene gavam suas crenças deviam ser emparedados enquanto aqueles que reincidissem tinham que sofrer o suplício da fogueira Depois entre 1231 e 1233 Gregório IX instituiu um tribunal especial com a função específica de erradicar a heresia a Inquisição Em 1254 o papa Inocêncio IV com o consenso dos principais teólogos da época autorizou o uso da tortura contra os hereges Vauchez 1990 pp 1635 26 André Vauchez atribui o sucesso da Inquisição a seus procedimentos A prisão de suspeitos era planejada em absoluto segredo A princípio a perseguição consistia em incursões contra as reuniões dos hereges organizadas em colaboração com as autoridades públicas Mais adiante quando os valdenses e cátaros já haviam sido forçados à clandestinidade os suspeitos eram chamados a comparecer ante um tribunal sem que lhes fossem ditas as razões pelas quais haviam sido convocados O mesmo sigilo caracterizava o processo de investigação Não eram informadas aos investigados quais eram as acusações contra eles e era permitido manterse o anonimato daqueles que denunciavam Os suspeitos eram liberados se dessem informações sobre seus cúmplices e prometessem manter suas confissões em silêncio Desta forma quando os hereges eram presos nunca podiam saber se alguém de sua congregação havia declarado em seu prejuízo Vauchez 1990 pp 1678 Como destaca Italo Mereu o trabalho da Inquisição romana deixou cicatrizes profundas na história da cultura europeia criando um clima de 71 70 No entanto tal como Charles H Lea entre outros demons trou em sua monumental história da perseguição da heresia apesar das poucas crônicas disponíveis é possível criar uma imagem imponente de suas atividades e credos assim como do papel da resistência herege nas lutas antifeudais Lea 1888 Apesar de ter infuência das religiões orientais que mer cadores e cruzados traziam à Europa a heresia popular era menos um desvio da doutrina ortodoxa do que um movimento de protesto que aspirava a uma democratização radical da vida social27 A heresia era o equivalente à teologia da libertação para o proletariado medieval Selou um marco às demandas populares de renovação espiritual e justiça social desafando em seu apelo a uma verdade superior tanto a Igreja quanto a autoridade secular A heresia denunciou as hierarquias sociais a propriedade privada e a acumulação de riquezas e difundiu entre o povo uma concepção nova e revolucionária da socie dade que pela primeira vez na Idade Média redefnia todos os aspectos da vida cotidiana o trabalho a propriedade a repro dução sexual e a situação das mulheres colocando a questão da emancipação em termos verdadeiramente universais O movimento herético proporcionou também uma estrutura comunitária alternativa de dimensão internacional permitindo aos membros das seitas viverem suas vidas com maior auto nomia ao mesmo tempo que se benefciavam da rede de apoio constituída por contatos escolas e refúgios com os quais podiam contar como ajuda e inspiração nos momentos de necessidade Efetivamente não é exagero dizer que o movimento herético foi a primeira internacional proletária esse era o alcance das intolerância e suspeita institucional que continua corrompendo o sistema legal até nossos dias O legado da Inquisição é uma cultura de suspeita que depende da denúncia anônima e da detenção preventiva e trata os suspeitos como se sua culpabilidade já tivesse sido demonstrada Mereu 1979 27 Lembremos aqui da distinção de Friedrich Engels entre as crenças hereges de camponeses e artesãos associadas à sua oposição à autoridade feudal e aquelas dos burgueses que eram principalmente um protesto contra o clero Engels 1977 p 43 seitas particularmente dos cátaros e dos valdenses e as cone xões que estabeleceram entre si por meio das feiras comerciais das peregrinações e dos permanentes cruzamentos de fronteiras dos refugiados gerados pelas perseguições Camponeses enforcam monge que vendeu indulgências Niklaus Manuel Deutsch 1525 73 72 Na raiz da heresia popular estava a crença de que Deus já não falava por meio do clero devido à sua ganância à sua corrupção e ao seu comportamento escandaloso As duas seitas principais apresentavamse como as igrejas autênticas O desafo dos hereges porém era principalmente político já que desafar a Igreja pressupunha enfrentar ao mesmo tempo o pilar ideológico do poder feudal o principal senhor de terras da Europa e uma das instituições que mais contribuía com a exploração cotidiana do campesinato Até o século XI a Igreja havia se transformado num poder despótico que usava sua pretensa investidura divina para governar com mão de ferro e encher seus cofres com o uso de incontáveis meios de extorsão Vender absolvições indulgên cias e ofícios religiosos chamar os féis à Igreja só para pregar a santidade do dízimo e fazer de todos os sacramentos um mer cado eram práticas comuns que iam desde o papa até o padre da aldeia de forma que a corrupção do clero se tornou notória em todo o mundo cristão As coisas degeneraram a tal ponto que o clero não enterrava os mortos nem batizava ou dava absolvição dos pecados se não recebesse alguma compensação Até mesmo a comunhão se tornou ocasião para negociar e se alguém re sistia a uma demanda injusta o recalcitrante era excomungado e depois precisava pagar pela reconciliação uma soma maior do que a original Lea 1961 p 11 Nesse contexto a propagação das doutrinas heréticas não apenas canalizava o desdém que as pessoas sentiam pelo clero mas também dava a elas confança em suas opiniões e instigava sua resistência à exploração clerical Sob a égide do Novo Testamento os hereges ensinavam que Cristo não possuía propriedades e que se a Igreja queria recuperar seu poder espi ritual deveria desprenderse de todas as suas posses Também ensinavam que os sacramentos não eram válidos quando ministrados por padres pecaminosos e que as formas exterio res de adoração edifícios imagens símbolos deviam ser descartadas porque só o que importava era a crença interior Além disso exortavam as pessoas a não pagarem os dízimos e negavam a existência do Purgatório cuja invenção havia servi do ao clero como fonte de lucro por meio das missas pagas e da venda de indulgências A Igreja por sua vez usava a acusação de heresia para atacar toda forma de insubordinação social e política Em 1377 quando os trabalhadores têxteis de Ypres Flandres se levantaram empunhando armas contra seus empregadores não apenas foram enforcados como rebeldes mas também foram queimados pela Inquisição como hereges N Cohn 1970 p 105 Também há documentos que mostram que algumas tecelãs foram ameaçadas de excomunhão por não terem entregado a tempo o produto de seu trabalho aos mercadores ou por não terem feito adequadamente seu trabalho Volpe 1971 p 31 Em 1234 para castigar os arrendatários que se negavam a pagar os dízimos o bispo de Bremen convocou uma cruzada contra eles como se fossem hereges Lambert 1992 p 98 Entretanto os hereges também eram perseguidos pelas autoridades seculares desde o Imperador até os patrícios urbanos que percebiam que o apelo herético à verdadeira religião tinha implicações sub versivas e questionava os fundamentos de seu poder A heresia constituía tanto uma crítica às hierarquias sociais e à exploração econômica quanto uma denúncia da corrupção clerical Como destaca Gioacchino Volpe a rejeição a todas as formas de autoridade e um forte sentimento anticlerical eram elementos comuns a todas as seitas Muitos hereges comparti lhavam do ideal da pobreza apostólica28 e do desejo de regressar à 28 A politização da pobreza junto com o surgimento de uma economia monetá ria introduziu uma mudança decisiva na atitude da Igreja perante os pobres Até o século XIII a Igreja exaltou a pobreza como um estado de santidade e se dedicou à distribuição de esmolas tratando de convencer os rústicos a aceitarem sua situação e não invejarem os ricos Nos sermões dominicais os padres eram pródigos em histórias como a do pobre Lázaro sentado no céu ao lado de Jesus e vendo seu vizinho rico mas avarento ardendo em chamas A exaltação da sancta paupertas santa pobreza também servia para demar car para os ricos a necessidade da caridade como meio de salvação Com esta tática a 75 74 simples vida comunal que havia caracterizado a Igreja primitiva Alguns como os Pobres de Lyon e a Irmandade do Espírito Livre viviam de esmolas doadas Outros sustentavamse com trabalho manual29 Outros ainda faziam experiências com o comunismo como os primeiros taboritas na Boêmia para quem o estabelecimento da igualdade e a propriedade comunal eram tão importantes quanto a reforma religiosa30 Sobre os Igreja conseguia doações substanciais de terras edifícios e dinheiro supostamente a fim de distribuir entre os necessitados assim tornouse uma das instituições mais ricas da Europa Porém quando o número de pobres aumentou e os hereges começaram a desafiar a ganância e a corrupção da Igreja o clero retirou suas homilias sobre a pobreza e intro duziu muitos matizes A partir do século XIII a Igreja afirmou que somente a pobreza voluntária tinha mérito ante os olhos de Deus como sinal de humildade e renúncia aos bens materiais na prática isso significava que agora apenas seria oferecida ajuda aos pobres que merecessem isto é aos membros empobrecidos da nobreza e não aos que mendigavam nas ruas ou nas portas da cidade Esses últimos eram vistos cada vez mais como suspeitos de vadiagem ou fraude 29 Entre os valdenses se deu uma grande polêmica sobre qual era a forma correta de manterse Ela foi resolvida no Encontro de Bérgamo em 1218 com uma importante ruptura entre as duas vertentes principais do movimento Os valdenses franceses Pobres de Lyon optaram por uma vida baseada na esmola enquanto os da Lombardia decidiram que cada um deveria viver de seu próprio trabalho e formar coletivos de trabalhadores ou cooperativas congregationes laborantium Di Stefano 1950 p 775 Os valdenses lombardos mantiveram seus pertences casas e outras formas de propriedade privada e aceitaram o matrimônio e a vida familiar Little 1978 p 125 30 Holmes 1975 p 202 Hilton 1973 p 124 e N Cohn 1970 pp 2157 Segundo descrição de Engels os taboritas eram a ala democrática revolucionária do movimento nacional de libertação hussita contra a nobreza alemã na Boêmia Sobre isso Engels apenas nos diz que suas demandas refletiam o desejo do campesinato e das classes baixas urbanas de acabar com toda a opressão feudal Engels 1977 p 44n Porém sua história surpreendente é narrada com maiores detalhes em The Inquisition of the Middle Ages de H C Lea 1961 pp 52340 em que lemos que eram camponeses e pessoas pobres que não queriam nobres e senhores entre eles e que tinham tendências republicanas Eram chamados de taboritas porque em 1419 quando os hussitas de Praga foram atacados seguiram viagem até o monte Tabor Ali fundaram uma nova cidade que se tornou o centro tanto da resistência contra a nobreza alemã quanto de experimentos comunistas A história conta que quando chegaram de Praga abriram grandes baús nos quais foi pedido a cada um que guardasse suas posses para que todas as coisas pudessem ser comuns Aparentemente este acordo coletivo não durou muito mas seu espírito perdurou durante algum tempo depois de sua desaparição Demetz 1997 pp 1527 Os taboritas se distinguiam dos utraquistas mais moderados pois dentre seus objetivos estava a independência da Boêmia e a retenção da propriedade que haviam con fiscado Lea 1961 p 530 Ambos coincidiam nos quatro artigos de fé em que se uniam ao movimento hussita frente a inimigos externos i Livre pregação da Palavra de Deus ii Comunhão tanto do vinho quanto do pão iii Abolição do domínio do clero sobre as posses temporais e seu retorno à vida evangélica de Cristo e dos apóstolos e iv Castigo de todas as ofensas à lei divina sem exceção de pessoa ou condição A unidade era muito necessária Para sufocar a revolta dos hussitas em 1421 a Igreja enviou um exército de 150 mil homens contra taboritas e utraquistas Cinco vezes escreve Lea ao longo de 1421 os cruzados invadiram a Boêmia e nas cinco vezes foram derrotados Dois anos mais tarde no Concílio de Siena a Igreja decidiu que se não podia derrotar militarmente os hereges da Boêmia tinha que isolálos e matálos de fome por meio de um bloqueio valdenses um inquisidor relatou também que eles evitam todas as formas de comércio para se esquivarem das mentiras fraudes e blasfêmias e os descreveu caminhando descalços vestidos com roupas de lã sem nada que lhes pertencesse e assim como os apóstolos possuindo tudo comunitariamente Lambert 1992 p 64 O conteúdo social da heresia encontrase entretanto mais bem expresso nas palavras de John Ball o líder intelectual da Revolta Camponesa de 1381 na Inglaterra que denunciou fomos feitos à imagem de Deus mas nos tratam como animais e acrescentou nada estará bem na Inglaterra enquanto houver cavaleiros e servos Dobson 1983 p 37131 Os cátaros a mais infuente das seitas hereges destacamse na história dos movimentos sociais europeus pela sua singular aversão à guerra inclusive às cruzadas pela oposição à pena de morte que provocou o primeiro pronunciamento explícito da Igreja a favor da pena capital32 e pela sua tolerância com outras Mas isso também falhou e as ideias hussitas continuaram sendo difundidas na Alemanha na Hungria e nos territórios eslavos do sul Outro exército de 100 mil homens foi lançado contra eles em 1431 novamente em vão Desta vez os cruzados fugiram do campo de batalha ainda antes que a batalha começasse ao ouvirem o canto de batalha das temidas tropas hussitas ibidem O que finalmente destruiu os taboritas foram as negociações entre a Igreja e a ala moderada dos hussitas Habilmente os diplomatas eclesiásticos aprofundaram a divisão entre os utraquistas e os taboritas Assim quando se empreendeu outra cruzada contra os hussitas os utraquistas se uniram aos barões católicos pagos pelo Vaticano e extermina ram seus irmãos na Batalha de Lipany em 30 de maio de 1434 Nesse dia 13 mil taboritas foram mortos no campo de batalha As mulheres do movimento taborita eram muito ativas assim como todos os movimentos hereges Muitas lutaram na batalha por Praga em 1420 quando 1500 mulheres taboritas cavaram uma trincheira que defenderam com pedras e forquilhas Demetz 1997 31 Estas palavras o chamamento à igualdade social mais comovente da história da língua inglesa de acordo com o historiador R B Dobson foram postas na boca de John Ball para incriminálo e fazêlo parecer um idiota por Jean Froissart um cronista francês contemporâneo severo opositor da Revolta Camponesa na Inglaterra A primeira oração do sermão que segundo se dizia John Ball havia proferido muitas vezes é a seguinte na tradução de Lord Berners século XVI Ah vocês pessoas de bem as coisas não estão bem na Inglaterra não estarão até que tudo seja comum e até que não haja mais servos nem cavaleiros mas estejamos todos unidos e os senhores não sejam mais senhores que nós mesmos Dobson 1983 p 371 32 Por volta de 1210 a Igreja havia estabelecido que a reivindicação da abolição da pena de morte era um erro herege que atribuía aos valdenses e aos cátaros A pres suposição de que os opositores à Igreja eram abolicionistas era tão forte que cada herege que queria se submeter à Igreja tinha que afirmar que o poder secular pode sem cometer o pecado capital praticar juízos de sangue com a condição de que castigue com justiça não por ódio com prudência sem precipitação Mergivern 1997 p 101 Como destaca 77 76 religiões A França meridional seu bastião antes da cruzada albigense era um refúgio seguro para os judeus quando o antissemitismo crescia na Europa aqui uma fusão do pen samento cátaro e do pensamento judaico produziu a Cabala a tradição do misticismo judaico Spencer 1995b p 171 Os cáta ros também repudiavam o matrimônio e a procriação e eram estritamente vegetarianos tanto porque se recusavam a matar animais quanto porque desejavam evitar qualquer comida que como ovos e carnes fosse gerada sexualmente Tal atitude negativa contra a natalidade foi atribuída à in fuência exercida por seitas orientais dualistas sobre os cátaros como os paulicianos uma seita de iconoclastas que repudiava a procriação por considerar que é o ato pelo qual a alma fca presa ao mundo material Erbstosser 1984 pp 134 e sobre tudo os bogomilos que no século X faziam proselitismo entre os camponeses dos Bálcãs Os bogomilos movimento popular nascido entre camponeses cuja miséria física os tornou cons cientes da perversidade das coisas Spencer 1995b p 15 pre gavam que o mundo visível era obra do diabo pois no mundo de Deus os bons seriam os primeiros e se negavam a ter flhos para não trazer novos escravos a esta terra de atribulações tal como defniam a vida em um de seus panfetos Wakefeld e Evans 1991 p 457 A infuência dos bogomilos sobre os cátaros está compro vada33 e é possível que o repúdio ao matrimônio e à procriação J J Mergiven o movimento herege adotou superioridade moral nesta questão e forçou os ortodoxos ironicamente a assumir a defesa de uma prática muito questionável ibidem p 103 33 Entre as provas da influência dos bogomilos sobre os cátaros se encontram dois trabalhos que os cátaros da Europa Ocidental tomaram dos bogomilos The Vision of Isaiah A visão de Isaías e The Secret Supper A ceia secreta citados na resenha de literatura cátara de Wakefield e Evans 1969 pp 44765 Os bogomilos eram para a Igreja oriental o que os cátaros foram para a ocidental Além de seu maniqueísmo e antinatalismo o que mais alarmava as autoridades bizantinas era o anarquismo radical a desobediência civil e o ódio de classe dos bogomilos Como escreveu o presbítero Cosmo em seus sermões contra eles Ensinam sua gente a não obedecer a seus senhores inju riam os ricos odeiam o rei ridicularizam os anciãos condenam os boiardos veem como vis ante os olhos de Deus aqueles que servem ao rei e proíbem os servos de trabalhar para por parte dos cátaros provenha de uma recusa similar a uma vida degradada à mera sobrevivência Vaneigem 1998 p 72 mais do que uma pulsão de morte ou um desprezo pela vida Isso é o que sugere o fato de que o antinatalismo dos cátaros seu patrão A heresia teve uma enorme e longa influência no campesinato dos Bálcãs Os bogomilos pregavam na linguagem do povo e sua mensagem foi compreendida pelo povo sua organização flexível suas soluções atraentes para o problema do mal e seu compromisso com o protesto social tornaram o movimento praticamente indestru tível Browning 1975 pp 1646 A influência dos bogomilos sobre a heresia pode ser rastreada no uso frequente no século XIII da expressão buggery sodomia para conotar primeiro heresia e depois homossexualidade Bullough 1976a p 76 e segs Buggery é uma palavra utilizada em inglês como sinônimo de sodomia e deriva de búlgaro Os bogomilos eram frequentemente associados aos povos da região que hoje é ocupada pela Bulgária NTE John Hus martirizado em Gottlieben sobre o Rio Reno em 1413 Depois de sua morte suas cinzas foram arremessadas ao rio Ver nota de rodapé 30 79 78 não estava associado a uma concepção degradante da mulher e de sua sexualidade como é frequente no caso das flosofas que desprezam a vida e o corpo As mulheres ocupavam um lugar importante nas seitas Quanto à atitude dos cátaros acerca da sexualidade parece que enquanto os perfeitos se abstinham do coito não era esperado dos outros membros a prática da abstinência sexual Alguns desdenhavam da importância que a Igreja designava à castidade argumentando que implicava uma sobrevaloração do corpo Outros hereges atribuíam um valor místico ao ato sexual tratandoo inclusive como um sacramento Christeria e pregando que praticar sexo em vez de absterse era a melhor forma de alcançar um estado de inocên cia Assim ironicamente os hereges eram perseguidos tanto por serem libertinos quanto por serem ascetas extremos As crenças sexuais dos cátaros eram obviamente uma elaboração sofsticada de questões desenvolvidas por meio do encontro com religiões orientais mas a popularidade de que go zaram e a infuência que exerceram sobre outras heresias ressal tam também uma realidade experimental mais ampla arraigada nas condições do matrimônio e da reprodução na Idade Média Sabemos que na sociedade medieval devido à escassa dis ponibilidade de terras e às restrições protecionistas impostas pelas guildas para a entrada nos ofícios tanto para os campo neses quanto para os artesãos não era possível ou desejável ter muitos flhos e com efeito as comunidades de camponeses e artesãos esforçavamse para controlar a quantidade de crianças que nascia entre eles O método mais comumente usado para esta fnalidade era a postergação do matrimônio um aconteci mento que até mesmo entre os cristãos ortodoxos ocorria em idade madura se ocorria sob a regra de se não há terra não há casamento Homans 1960 pp 379 Consequentemente uma grande quantidade de jovens tinha que praticar a abstinên cia sexual ou desafar a proibição eclesiástica relativa ao sexo fora do casamento É possível imaginar que o repúdio herege à procriação deve ter encontrado ressonância entre eles Em outras palavras é concebível que nos códigos sexuais e repro dutivos dos hereges possamos ver realmente resquícios de uma tentativa de controle medieval da natalidade Isso explicaria o motivo pelo qual quando o crescimento populacional se tornou uma preocupação social fundamental durante a profunda crise demográfca e com a escassez de trabalhadores no fnal do século XIV a heresia passou a ser associada aos crimes reprodu tivos especialmente à sodomia ao infanticídio e ao aborto Isso não quer dizer que as doutrinas reprodutivas dos hereges tiveram um impacto demográfco decisivo mas que pelo me nos durante dois séculos na Itália na França e na Alemanha criouse um clima político em que qualquer forma de anticon cepção incluindo a sodomia isto é o sexo anal passou a ser associada à heresia A ameaça que as doutrinas sexuais dos hereges representava para a ortodoxia também deve ser levada em conta no contexto dos esforços realizados pela Igreja para estabelecer um controle sobre o matrimônio e a sexualidade que lhe permitia colocar a todos do imperador até o mais pobre camponês sob seu escrutínio disciplinar 81 80 A POLITIZAÇÃO DA SEXUALIDADE Como assinalou Mary Condren em The Serpent and the Goddess 1989 A serpente e a deusa um estudo sobre a entrada do cris tianismo na Irlanda céltica a tentativa eclesiástica de regular o comportamento sexual tem uma longa história na Europa Desde tempos muito antigos depois que o cristianismo se tor nou a religião estatal no século IV o clero reconheceu o poder que o desejo sexual conferia às mulheres sobre os homens e tentou persistentemente exorcizálo identifcando o sagrado com a prática de evitar as mulheres e o sexo Expulsar as mu lheres de qualquer momento da liturgia e do ministério dos sa cramentos tentar roubar os poderes mágicos das mulheres de dar vida ao adotar trajes femininos e fazer da sexualidade um objeto de vergonha esses foram os meios pelos quais uma cas ta patriarcal tentou quebrar o poder das mulheres e de sua atra ção erótica Neste processo a sexualidade foi investida de um novo signifcado Transformouse num tema de confssão no qual os mais ínfmos detalhes das funções corporais mais ín timas se transformaram em tema de discussão e os diferentes aspectos do sexo foram divididos no pensamento na palavra na intenção nas vontades involuntárias e nos fatos reais do sexo para conformar uma ciência da sexualidade Condren 1989 pp 867 Os penitenciais Paenitentiali manuais que começaram a ser distribuídos a partir do século VII como guias práticos para os confessores são um dos lugares privilegiados para a reconstrução dos cânones sexuais eclesiásticos No primeiro volume da História da sexualidade 1978 Foucault en fatizou o papel que tiveram estes manuais na produção do sexo como discurso e de uma concepção mais polimorfa da sexuali dade no século XVII Mas os penitenciais já exerciam um papel decisivo na produção de um novo discurso sexual na Idade Média Esses trabalhos demonstram que a Igreja tentou impor um verdadeiro catecismo sexual prescrevendo detalhadamen te as posições permitidas durante o ato sexual na verdade só uma era permitida os dias em que se podia fazer sexo com quem era permitido e com quem era proibido Essa supervisão sexual aumentou no século XII quando os concílios de Latrão de 1123 e 1139 lançaram uma nova cruzada contra a prática corrente do casamento e do concubinato34 entre os clérigos e declararam o matrimônio como um sacramento cujos votos não podiam ser dissolvidos por nenhum poder tem poral Nesse momento foram reiteradas também as limitações impostas pelos penitenciais sobre o ato sexual35 Quarenta anos 34 A proibição que a Igreja impunha aos casamentos e concubinatos dos clérigos era motivada mais que por alguma necessidade de restaurar sua reputação pelo desejo de defender sua propriedade que estaria ameaçada por muitas subdivisões e pelo medo de que as esposas dos padres interferissem excessivamente nas questões do clero Mc Namara e Wemple 1988 pp 935 A resolução do segundo Concílio de Latrão reforçou uma outra que já havia sido adotada no século anterior mas que não havia sido colocada em prática devido a uma revolta generalizada contrária a ela O protesto atingiu seu clímax em 1061 com uma rebelião organizada que levou à eleição do bispo de Parma como antipapa sob o título de Honório II e à sua posterior tentativa frustrada de capturar Roma Taylor 1954 p 35 O Concílio de Latrão de 1123 não apenas proibiu os casamen tos no clero mas também declarou nulos os que já existiam impondo uma situação de terror e pobreza às famílias dos padres especialmente a suas esposas e filhos Brundage 1987 pp 214 2167 35 Os cânones reformados do século XII ordenavam aos casados evitar o sexo durante os três períodos da quaresma associados com a Páscoa com o Pentecostes e com Castigo por adultério Amarrados um ao outro os amantes são levados pelas ruas Miniatura de um manuscrito de 1296 Toulouse França 83 82 mais tarde com o terceiro Concílio de Latrão em 1179 a Igreja intensifcou seus ataques contra a sodomia dirigindoos simultaneamente aos homossexuais e ao sexo não procriador Boswell 1981 pp 27786 e pela primeira vez condenou a homossexualidade a incontinência que vai contra a natureza Spencer 1995a p 114 Com a adoção desta legislação repressiva a sexualidade foi completamente politizada Todavia não vemos ainda a obsessão mórbida com que a Igreja Católica abordaria depois as questões sexuais Porém já no século XII podemos ver a Igreja não somente espiando os dormitórios de seu rebanho como também fazendo da sexualidade uma questão de Estado As escolhas sexuais não ortodoxas dos hereges também devem ser vistas portanto como uma postura antiautoritária uma tentativa de arrancar seus corpos das garras do clero Um claro exemplo desta rebelião anticlerical foi o surgimento no século XIII das novas seitas panteístas como os amalricanos e a Irmandade do Espírito Livre que contra os esforços da Igreja para controlar a conduta sexual pregavam que Deus está em todos nós e que portanto é impossível pecar o Natal em qualquer domingo do ano nos dias festivos que antecediam o recebimento da comunhão nas noites de bodas durante o período menstrual da esposa durante a gravi dez durante a amamentação e enquanto faziam penitência Brundage 1987 pp 1989 Estas restrições não eram novas Eram reafirmações da sabedoria eclesiástica expressas em dúzias de penitenciais A novidade era sua incorporação ao corpo da Lei Canônica que foi transformada em um instrumento efetivo para o governo e a disciplina eclesiásticas no século XII Tanto a Igreja como os laicos reconheciam que um requisito legal com pena lidades explícitas teria um estatuto diferente a uma penitência sugerida pelo confessor pessoal de cada um Neste período as relações mais íntimas entre pessoas se converteram em assunto de advogados e criminólogos Brundage 1987 p 578 AS MULHERES E A HERESIA Um dos aspectos mais signifcativos do movimento herético é a elevada posição social que este designou às mulheres Na Igreja como destaca Gioacchino Volpe as mulheres não eram nada mas entre os heréticos eram consideradas como iguais as mulheres tinham os mesmos direitos que os ho mens e desfrutavam de uma vida social e de uma mobilidade perambulando pregando que durante a Idade Média não se encontravam em nenhum outro lugar Volpe 1971 p 20 Koch 1983 p 247 Nas seitas hereges principalmente entre os cátaros e os valdenses as mulheres tinham direito de mi nistrar os sacramentos de pregar de batizar e até mesmo de alcançar ordens sacerdotais Está documentado que Valdo se afastou da ortodoxia porque seu bispo se recusou a permitir que as mulheres pudessem pregar E dos cátaros se diz que adoravam uma fgura feminina a Senhora do Pensamento que infuenciou o modo como Dante concebeu Beatriz Taylor 1954 p 100 Os hereges também permitiam que as mulheres e os homens compartilhassem a mesma moradia mesmo sem estar casados já que não temiam que isso os instigasse a comportamentos promíscuos Com frequência as mulheres e os homens hereges viviam juntos livremente como irmãos e irmãs da mesma forma que nas comunidades ágapes da Igreja primitiva As mulheres também formavam suas próprias co munidades Um caso típico foi o das beguinas mulheres laicas das classes médias urbanas que viviam juntas especialmente na Alemanha e em Flandres e mantinham seu trabalho fora do controle masculino e sem subordinação ao controle monás tico McDonnell 1954 Neel 198936 36 A relação entre as beguinas e a heresia é incerta Enquanto alguns de seus contemporâneos como Jacques de Vitry descrito por Carol Neel como um impor 85 84 Não é de se surpreender que as mulheres estivessem mais presentes na história da heresia que em qualquer outro aspecto da vida medieval Volpe 1971 p 20 De acordo com Gottfried Koch já no século X compunham uma parte importante dos bogomilos No século XI foram mais uma vez as mulheres que deram vida aos movimentos hereges na França e na Itália Nessa ocasião as hereges provinham dos setores mais pobres dos servos e constituíram um verdadeiro movimento de mulhe res que se desenvolveu dentro do marco dos diferentes grupos hereges Koch 1983 pp 2467 As hereges também estão pre sentes nas crônicas da Inquisição sabemos que algumas delas foram queimadas na fogueira outras foram emparedadas para o resto de suas vidas É possível dizer que esta importante presença das mulheres nas seitas hereges foi responsável pela revolução sexual nesses movimentos Ou devemos assumir que o chamado ao amor livre foi uma manobra masculina para ganhar fácil acesso aos favores sexuais das mulheres Estas perguntas não podem ser respondidas facilmente Sabemos entretanto que as mulheres tentavam controlar sua função reprodutiva já que são numerosas as referências ao aborto e ao uso feminino de contraceptivos nos penitenciais De forma signifcativa em vista da futura criminalização dessas práticas durante a caça às bruxas designavamse os métodos contraceptivos como po ções para a esterilidade ou malefcia Noonan 1965 pp 15561 e se pressupunha que eram as mulheres quem os usava Na Alta Idade Média a Igreja ainda via essas práticas com certa indulgência impulsionada pelo reconhecimento de que por razões econômicas as mulheres podiam estabelecer um tante ministro eclesiástico apoiaram a iniciativa como uma alternativa à heresia as beguinas foram finalmente condenadas sob suspeita de heresia pelo Concílio de Viena de 1312 provavelmente pela intolerância do clero contra as mulheres que escapavam do controle masculino As beguinas desapareceram posteriormente forçadas a deixar de existir pela reprovação eclesiástica Neel 1989 pp 3247 329 333 339 limite para suas gestações Assim no Decretum escrito por Burcardo bispo de Worms até 1010 depois da pergunta ritual Fizeste o que algumas mulheres estão acostumadas a fazer quando fornicam e desejam matar suas crias agir com suas malefcia e suas ervas para matar ou cortar o embrião ou se ainda não o tiverem concebido conspirar para que não o concebam era estipulado que as culpadas fzessem penitência durante dez anos mas também se observava que haveria diferença entre a ação de uma pobre mulherzinha motivada pela difculdade de prover a sua própria alimentação e a de uma mulher que busca esconder um crime de fornicação ibidem As coisas no entanto mudaram drasticamente logo que o controle das mulheres sobre a reprodução começou a ser perce bido como uma ameaça à estabilidade econômica e social tal como ocorreu no período subsequente à catástrofe demográfca produzida pela Peste Negra a praga apocalíptica que entre 1347 e 1352 destruiu mais de um terço da população europeia Ziegler 1969 p 230 Mais adiante veremos qual foi o papel deste desastre de mográfco na crise do trabalho da Baixa Idade Média Aqui podemos ressaltar que depois da disseminação da praga os aspectos sexuais da heresia adquiriram maior importância em sua perseguição Estes foram grotescamente distorcidos segundo formas que anteciparam as posteriores representações dos sabás de bruxas Em meados do século XIV não bastava aos inquisidores acusar os hereges de sodomia e de licenciosidade sexual em seus informes Agora eles também os acusavam de cultuar animais de praticar o infame bacium sub cauda beijo sob o rabo e de regozijaremse em rituais orgiásticos voos no turnos e sacrifícios de crianças Russell 1972 Os inquisidores relatavam também a existência de uma seita de adoradores do 87 86 diabo conhecidos como luciferianos Coincidindo com este processo que marcou a transição da perseguição à heresia para a caça às bruxas a fgura do herege se tornou cada vez mais a de uma mulher de forma que no início do século XV a bruxa se transformou no principal alvo da perseguição aos hereges No entanto o movimento herege não parou por aqui Seu epílogo se deu em 1533 com a tentativa dos anabatistas de estabelecer uma Nova Jerusalém na cidade alemã de Münster Esta tentativa foi sufocada com um banho de sangue seguido por uma onda de represálias impiedosas que afetaram as lutas proletárias em toda a Europa PoChia Hsia 1988a pp 5169 Até então nem a perseguição feroz nem a demonização da heresia tinham sido capazes de evitar a difusão das crenças he reges Como escreve Antonino di Stefano nem a excomunhão nem o confsco de propriedades nem a tortura nem a morte na fogueira nem as cruzadas contra os hereges puderam debilitar a imensa vitalidade e popularidade da heretica pravitatis o mal herege Di Stefano 1950 p 769 Não existe nenhuma co muna escrevia Jacques de Vitry em princípios do século XIII em que a heresia não tenha seus seguidores seus defensores e seus crentes Até mesmo depois da cruzada contra os cátaros de 1215 que destruiu seus bastiões a heresia junto com o Islã continuou sendo o inimigo e a ameaça principal que a Igreja teve que enfrentar Novos seguidores apareciam em todas as profssões e camadas sociais o campesinato os setores mais pobres do clero que se identifcavam com os pobres e levaram às suas lutas a linguagem do Evangelho os burgueses urbanos e até mesmo a nobreza menor Mas a heresia popular era so bretudo um fenômeno das classes baixas O ambiente em que foresceu foi o dos proletários rurais e urbanos camponeses sapateiros e trabalhadores têxteis aos quais se pregava a igualdade fomentando seu espírito de revolta com predições proféticas e apocalípticas ibidem p 776 Podemos vislumbrar a popularidade dos hereges a partir dos julgamentos que a Inquisição ainda levava adiante em 1330 na região de Trento norte da Itália contra aqueles que haviam oferecido hospitalidade aos apostólicos quando seu líder Frei Dolcino havia passado pela região trinta anos antes Orioli 1993 pp 21737 No momento de sua chegada muitas portas se abriram para dar refúgio a Dolcino e a seus Mulher herege condenada à fogueira As mulheres tiveram uma presença muito grande no movimento herético em todos os países europeus 89 88 seguidores Mais uma vez em 1304 quando junto ao anún cio da chegada de um reino sagrado de pobreza e amor Frei Dolcino fundou uma comunidade entre as montanhas de Vercellese Piemonte os camponeses da região que já haviam se levantado contra o bispo de Vercelli lhe ofereceram seu apoio Mornese y Buratti 2000 Durante três anos os dulcinia nos resistiram às cruzadas e ao bloqueio que o bispo organizou contra eles houve mulheres vestidas como homens lutando junto aos combatentes No fm das contas foram derrotados apenas pela fome e pela esmagadora superioridade das forças que a Igreja havia mobilizado Lea 1961 pp 61520 Milton 1973 p 108 No mesmo dia em que as tropas reunidas pelo bis po de Vercelli fnalmente venceram mais de mil hereges mor reram em meio às chamas ou no rio ou pela força da espada dos modos mais cruéis Margherita a companheira de Dolcino foi queimada lentamente até morrer diante de seus olhos porque se negou a retratarse Dolcino foi arrastado e pouco a pouco sendo despedaçado pelos caminhos da montanha a fm de dar um exemplo conveniente à população local Lea 1961 p 620 LUTAS URBANAS Não apenas as mulheres e os homens mas também os campo neses e os trabalhadores urbanos descobriram nos movimentos heréticos uma causa comum Essa comunhão de interesses entre pessoas que de outra forma poderíamos supor que teriam preocupações e aspirações distintas pode ser observada em diferentes situações Em primeiro lugar na Idade Média existia uma relação estreita entre a cidade e o campo Muitos burgueses eram exservos que haviam se mudado ou fugido para a cidade com a esperança de uma vida melhor e enquanto exerciam seus ofícios continuavam trabalhando a terra particularmente em épocas de colheita Seus pensamentos e desejos ainda estavam profundamente confgurados pela vida na aldeia e por sua permanente relação com a terra Camponeses e trabalhadores também eram unidos pelo fato de estarem subordinados aos mesmos governantes No século XIII especialmente no norte e no centro da Itália a nobreza proprietária de terras e os mer cadores patrícios da cidade estavam começando a se integrar funcionando como uma estrutura única de poder Esta situação promoveu solidariedade e preocupação mútua entre os traba lhadores Assim quando os camponeses se rebelavam encon travam os artesãos e os trabalhadores a seu lado além de uma massa de pobres urbanos cada vez mais importante Foi isso que aconteceu durante a revolta camponesa no Flandres marítimo que se iniciou em 1323 e terminou em junho de 1328 depois que o rei da França e a nobreza famenca derrotaram os rebeldes em Cassel em 1327 Como escreve David Nicholas a habilidade dos rebeldes para continuar o confito durante cinco anos só pôde ser concebida a partir da participação de toda a cidade Nicholas 1992 pp 2134 Nicholas acrescenta que no fnal de 1324 os arte sãos de Ypres e Bruxelas somaramse aos camponeses rebeldes 91 90 Bruxelas agora sob o controle de um partido de tecelões e fullers seguiu o rumo da revolta camponesa Iniciouse uma guerra de propaganda na qual os monges e pregadores disseram às massas que havia chegado uma nova era e que eles eram iguais aos aristocratas Ibidem pp 2134 Outra aliança entre camponeses e trabalhadores urbanos foi a dos tuchins um movimento de bandidos que operava nas mon tanhas do centro da França na qual os artesãos se uniram a uma organização típica das populações rurais Milton 1963 p 128 O que unia camponeses e artesãos era uma aspiração comum de nivelar as diferenças sociais Como escreve Norman Cohn esse fato é evidenciado em vários tipos de documentos Desde os provérbios dos pobres nos quais lamentam que o homem pobre sempre trabalha sempre preocupado trabalha e chora não ri nunca de coração enquanto o rico ri e canta Desde peças de mistério onde se diz que cada homem deve ter tantas propriedades quanto qualquer outro e não temos nada que podemos chamar de nosso Os grandes senhores possuem tudo e os pobres só contam com o sofrimento e a adversidade Desde as sátiras mais lidas que denunciavam que os magistrados reitores sacristãos e prefeitos vivem todos do roubo Todos engordando pelo trabalho dos pobres todos querem saqueálos O forte rouba o fraco Ou também Os bons trabalhadores fazem pão do trigo mas nunca o mastigam não só recebem os resíduos do grão do bom vinho só recebem os fundos e da boa roupa apenas a palha Tudo o que é saboroso e bom vai para a nobreza e para o clero N Cohn 1970 pp 99100 Essas queixas demonstram o quão profundo era o ressen timento popular contra as desigualdades que existiam entre os peixes grandes e os peixes pequenos os gordos e os magros como ricos e pobres eram chamados na gíria política forentina do século XIV Nada fcará bem na Inglaterra até que todos tenhamos a mesma condição proclamava John Ball durante sua campanha para organizar a Revolta Camponesa de 1381 ibidem p 199 Como vimos as principais expressões dessa aspiração a uma sociedade mais igualitária eram a exaltação da pobreza e o comunismo dos bens Entretanto a afrmação de uma perspec tiva igualitária também se refetiu em uma nova atitude diante do trabalho mais evidente entre as seitas hereges De um lado temos uma estratégia de recusa ao trabalho como a adotada pelos valdenses franceses os Pobres de Lyon e os membros de algumas ordens conventuais franciscanos espirituais Jacquerie Os camponeses pegaram em armas em Flandres em 1323 na França em 1358 na Inglaterra em 1381 em Florença Gante e Paris em 1370 e 1380 93 92 que com o desejo de se libertar das preocupações mundanas dependiam das esmolas e do apoio da comunidade para sobre viver Por outro lado temos uma nova valorização do trabalho particularmente do trabalho manual que alcançou sua forma mais consciente na propaganda dos lolardos ingleses que lem bravam seus seguidores de que os nobres têm casas bonitas nós temos apenas trabalho e penúrias mas tudo vem do nosso trabalho ibidem ChristieMurray 1976 pp 1145 Sem dúvida recorrer ao valor do trabalho uma novidade numa sociedade dominada pela classe militar fun cionava principalmente como um lembrete da arbitrariedade do poder feudal Porém esta nova consciência demonstra também a emergência de novas forças sociais que tiveram um papel crucial no desmantelamento do sistema feudal A valorização do trabalho refetia a formação de um prole tariado urbano constituído em parte por ofciais e aprendizes que trabalhavam para mestres artesãos e produziam para o mercado local mas fundamentalmente por trabalhadores assalariados empregados por mercadores ricos em indústrias que produziam para exportação Na virada do século XIV em Florença Siena e Flandres era possível encontrar con centrações de até quatro mil trabalhadores tecelões fullers tintureiros na indústria têxtil Para eles a vida na cidade era apenas um novo tipo de servidão neste caso sob o domínio dos mercadores de tecido que exerciam o mais estrito controle sobre suas atividades e a dominação de classe mais despótica Os assalariados urbanos não podiam formar associações e eram proibidos até mesmo de se reunir em qualquer lugar fosse qual fosse o objetivo não podiam portar armas nem as ferramentas de seu ofício e não podiam fazer greve sob pena de morte Pirenne 1956 p 1932 Em Florença não tinham direitos civis diferentemente dos artífces não eram parte de nenhum ofício ou guilda e estavam expostos aos abusos mais cruéis nas mãos dos mercadores Estes além de controlar o governo da cidade dirigiam um tribunal próprio e com total impunidade os espiavam prendiam torturavam e enforca vam ao menor sinal de problemas Rodolico 1971 É entre esses trabalhadores que encontramos as formas mais radicais de protesto social e uma maior aceitação das ideias heréticas ibidem pp 569 Durante o século XIV par ticularmente em Flandres os trabalhadores têxteis estiveram envolvidos em constantes rebeliões contra o bispo contra a nobreza contra os mercadores e até mesmo contra as princi pais corporações de ofício Em Bruxelas quando em 1378 os ofícios mais importantes se tornaram poderosos os trabalha dores da lã continuaram a se rebelar contra eles Em Gante em 1335 uma revolta da burguesia local foi superada por uma rebelião de tecelões que tentavam estabelecer uma democra cia operária baseada na supressão de todas as autoridades exceto das que viviam do trabalho manual Boissonnade 1927 pp 3101 Derrotados por uma coalizão imponente de forças que incluía o príncipe a nobreza o clero e a burguesia os tecelões tentaram novamente em 1378 e desta vez obtiveram êxito instituindo algo que talvez com certo exagero foi chamado de a primeira ditadura do proletariado conhecida na história Segundo Peter Boissonnade seu objetivo era im pulsionar os trabalhadores qualifcados contra seus patrões os assalariados contra os grandes empresários os camponeses contra os senhores e o clero Diziase que eles pensavam em exterminar toda a classe burguesa com exceção das crianças de até seis anos e que planejavam fazer o mesmo com a nobre za ibidem p 311 Só foram derrotados por uma batalha em campo aberto ocorrida em Roosebecque em 1382 onde 26 mil deles perderam a vida ibidem Os acontecimentos em Bruxelas e Gante não foram casos isolados Na Alemanha e na Itália os artesãos e os 95 94 trabalhadores também se rebelavam a cada ocasião que se apresentava forçando a burguesia local a viver em um estado de terror constante Em Florença os trabalhadores tomaram o poder em 1379 liderados pelos ciompi os trabalhadores da indústria têxtil forentina37 Eles também estabeleceram um governo de trabalhadores que durou apenas uns poucos meses antes de ser completamente derrotado em 1382 Rodolico 1971 Os trabalhadores de Liège nos Países Baixos obtiveram maior êxito Em 1384 a nobreza e os ricos chamados de grandes incapazes de continuar uma resistência que havia persistido durante mais de um século renderamse Dali para frente as corporações de ofício dominaram completamente a cidade tornandose os árbitros do governo municipal Pirenne 1937 p 201 No Flandres marítimo os artesãos também haviam dado seu apoio à revolta camponesa em uma luta que durou de 1323 até 1328 naquilo que Pirenne descreve como uma genuína tentativa de revolução social ibidem p 195 Aqui como destaca um contemporâneo oriundo de Flandres cuja fliação de classe é evidente a praga da 37 Os ciompi eram os encarregados de lavar pentear e lubrificar a lã para que pudesse ser trabalhada Eram considerados trabalhadores não qualificados e tinham o status social mais baixo Ciompo é um termo pejorativo que significa sujo e andrajoso provavelmente devido ao fato de que os ciompi trabalhavam seminus e sempre estavam engordurados e manchados com tintas Sua revolta começou em julho de 1382 disparada pelas notícias de que um deles Simoncino havia sido preso e torturado Aparentemente fizeramlhe revelar sob tortura que os ciompi haviam tido reuniões secretas durante as quais beijandose na boca haviam prometido defenderse mutuamente dos abusos de seus empregadores Ao saberem da prisão de Simoncino os trabalhadores correram até a casa da guilda da indústria da lã o Palazzo dellArte para exigir a libertação do companheiro Depois uma vez libertado ocuparam a casa da guilda estabeleceram pa trulhas sobre a Ponte Vecchio e penduraram a insígnia das guildas menores arti minori nas janelas da sede da guilda Também ocuparam a prefeitura onde afirmaram haver encontrado uma sala cheia de cordas de forca destinadas a eles segundo acreditavam Aparentemente com a situação sob controle os ciompi apresentaram uma petição exi gindo que fossem incorporados ao governo que não continuassem sendo castigados com a amputação de uma mão pela inadimplência que os ricos pagassem mais impostos e que os castigos corporais fossem substituídos por multas em dinheiro Na primeira semana de agosto formaram uma milícia e criaram novos ofícios enquanto eram realizados prepa rativos para eleições nas quais pela primeira vez participariam membros dos ciompi No entanto seu novo poder não durou mais que um mês já que os magnatas da lã organiza ram um locaute que os reduziu à fome Depois de serem derrotados muitos foram presos enforcados e decapitados muitos mais tiveram que abandonar a cidade num êxodo que marcou o início da decadência da indústria da lã em Florença Rodolico 1971 insurreição era tal que os homens se revoltaram com a vida ibidem p 196 Assim entre 1320 e 1332 a gente de bem de Ypres implorou ao rei que não permitisse que os bastiões internos do povoado em que viviam fossem demolidos dado que os protegiam da gente comum ibidem pp 2023 97 96 A PESTE NEGRA E A CRISE DO TRABALHO A Peste Negra que matou em média entre 30 e 40 da população europeia constituiu um dos momentos decisivos no decorrer das lutas medievais Ziegler 1969 p 230 Esse colapso demográfco sem precedentes ocorreu depois que a Grande Fome de 13151322 havia debilitado a resistência das pessoas contra doenças Jordan 1996 e mudou profundamente a vida social e política da Europa praticamente inaugurando uma nova era As hierarquias sociais foram viradas de cabeça para baixo devido ao efeito nivelador da mortandade generalizada A familiaridade com a morte também debilitou a disciplina social Diante da possibilidade de uma morte repentina as pessoas já não se preocupavam em trabalhar ou em acatar as regulações sociais e sexuais e tentavam ao máximo se divertir festejando o quanto podiam sem pensar no futuro A consequência mais importante da peste foi entretanto a intensifcação da crise do trabalho gerada pelo confito de classes ao dizimar a mão de obra os trabalhadores tornaramse extremamente escassos seu custo aumentou de forma crítica e a determinação das pessoas em romper os laços do domínio feudal foi fortalecida Como ressalta Christopher Dyer a escassez de mão de obra causada pela epidemia modifcou as relações de poder em bene fício das classes baixas Em épocas em que a terra era escassa era possível controlar os camponeses por meio da ameaça de expulsão Porém uma vez que a população foi dizimada e havia abundância de terra as ameaças dos senhores deixaram de ter um efeito signifcativo pois os camponeses podiam mudarse livremente e achar novas terras para cultivar Dyer 1968 p 26 Assim enquanto os cultivos estavam apodrecendo e o gado caminhava sem rumo pelos campos os camponeses e artesãos repentinamente tomaram conta da situação Um sintoma deste novo processo foi o aumento das greves de inquilinos reforçadas pelas ameaças de êxodo em massa para outras terras ou para a cidade Tal como mostram laconicamente as crônicas feudais os camponeses negavamse a pagar negant solvere Também declaravam que não seguiriam mais os costumes negant consuetudines e que ignorariam as ordens dos senhores de consertar suas casas limpar as valas ou capturar os servos fugitivos ibidem p 24 Até o fnal do século XIV a recusa a pagar o aluguel e a rea lizar serviços havia se transformado em um fenômeno coletivo Aldeias inteiras organizaramse conjuntamente para deixar de pagar as multas os impostos e a talha negandose a reconhecer a troca de serviços e as determinações dos tribunais senhoriais que eram os principais instrumentos do poder feudal Nesse contexto a quantidade de aluguéis e de serviços retidos era menos importante do que o fato de que a relação de classes em que se baseava a ordem feudal fosse subvertida Foi assim que um escritor do começo do século XVI cujas palavras refetiam o ponto de vista da nobreza resumiu a situação Os camponeses são ricos demais e não sabem o que signifca a obediência não levam a lei em consideração desejariam que não houvesse nobres e gostariam de decidir qual renda deveríamos obter por nossas terras ibidem p 33 Como resposta ao aumento do custo da mão de obra e ao desmoronamento da renda feudal ocorreram várias tentativas de aumentar a exploração do trabalho a partir do restabele cimento da prestação de serviços laborais compulsórios ou em alguns casos da escravidão Em Florença a importação 99 98 de escravos foi autorizada em 136638 Porém essas medidas só aprofundaram o confito de classes Na Inglaterra uma tenta tiva da nobreza para conter os custos do trabalho por meio de um Estatuto Laboral que impunha limite ao salário máximo provocou a Revolta Camponesa de 1381 Esta se estendeu de uma região a outra e terminou com milhares de camponeses marchando de Kent a Londres para falar com o rei Milton 1973 Dobson 1983 Na França entre 1379 e 1382 também hou ve um turbilhão revolucionário Boissonnade 1927 p 314 As insurreições proletárias eclodiram em Bezier onde quarenta tecelões e sapateiros foram enforcados Em Montpellier os tra balhadores insurgentes proclamaram que para o Natal ven deremos carne cristã a seis pence a libra Estouraram revoltas em Carcassone Orleans Amiens Tournai Rouen e fnalmente em Paris onde em 1413 se estabeleceu uma democracia dos trabalhadores39 Na Itália a revolta mais importante foi a dos ciompi Teve início em julho de 1382 quando os trabalhadores têxteis de Florença forçaram a burguesia durante um tempo a compartilhar o governo e a declarar uma moratória sobre todas as dívidas nas quais haviam incorrido os assalariados mais tarde proclamaram que essencialmente se tratava de 38 Depois da Peste Negra os países europeus passaram a condenar a vadiagem e a perseguir a vagabundagem a mendicância e a recusa ao trabalho A Inglaterra teve a iniciativa ao publicar o Estatuto de 1349 que condenava os salários altos e a vadiagem estabelecendo que quem não trabalhasse e não possuísse nenhum meio de sobrevivência teria que aceitar qualquer trabalho Na França foram emitidas ordenanças similares em 1351 recomendando às pessoas que não dessem comida nem hospedagem a mendigos e a vagabundos com boa saúde Uma ordenança posterior estabeleceu em 1354 que aqueles que permanecessem ociosos passassem o tempo em tavernas jogando dados ou mendigando teriam que aceitar algum trabalho ou aguentar as consequências os infratores primários iam à prisão a pão e água enquanto os reincidentes eram colocados no tronco Quem infringisse a regra pela terceira vez era marcado a fogo na fronte Na legislação francesa surgiu um novo elemento que se tornou parte da luta moderna contra os vagabundos o trabalho forçado Em Castela uma ordenança introduzida em 1387 permitia aos particulares prender vagabundos e empregálos durante um mês sem salário Geremek 1985 pp 5365 39 O conceito de democracia dos trabalhadores pode parecer absurdo quando é aplicado a estas formas de governo Porém devemos considerar que nos Estados Unidos comumente considerado um país democrático ainda nenhum trabalhador industrial se tornou presidente e que os órgãos mais altos de governo estão completamente ocupados pelos representantes da aristocracia econômica uma ditadura do proletariado o povo de Deus embora fosse rapidamente esmagada pelas forças conjuntas da nobreza e da burguesia Rodolico 1971 Agora é o momento frase que se repete nas cartas de John Ball ilustra claramente o espírito do proletariado euro peu até o fnal do século XIV uma época em que em Florença a roda da fortuna começava a aparecer nas paredes das tavernas e das ofcinas a fm de simbolizar a iminente mudança de sorte Durante esse processo o horizonte político e as dimensões organizacionais da luta dos camponeses e artesãos se expan diram Regiões inteiras rebelaramse formando assembleias e recrutando exércitos Algumas vezes os camponeses se organi zaram em bandos atacaram os castelos dos senhores e destruí ram os arquivos onde eram mantidos os registros escritos da servidão No século XV os enfrentamentos entre camponeses e nobres tornaramse verdadeiras guerras como a dos remensas na Espanha que se estendeu de 1462 a 148640 No ano de 1476 começou na Alemanha um ciclo de Guerras Camponesas cujo ponto de partida foi a conspiração liderada por Hans o Flautista Esses processos se propagaram na forma de quatro rebeliões sangrentas conduzidas pelo Bundschuh sindicato camponês que ocorreram entre 1493 e 1517 e que culminaram em uma guerra aberta que se estendeu de 1522 até 1525 em mais de quatro países Engels 1977 Blickle 1977 Em nenhum desses casos os rebeldes se conformaram ape nas em exigir algumas restrições do regime feudal tampouco 40 Os remensas eram uma liquidação de impostos que os servos camponeses tinham que pagar na Catalunha para deixar suas terras Depois da Peste Negra os campo neses sujeitos aos remensas também estavam submetidos a um novo imposto conhecido como mals usos que em épocas anteriores havia sido aplicado de maneira menos genera lizada Milton 1973 pp 1178 Estes novos impostos e os conflitos em torno do uso de terras abandonadas deram origem a uma guerra regional prolongada em cujo transcurso os camponeses catalães recrutaram um homem a cada três famílias Também estreitaram seus laços por meio de associações juramentadas tomaram decisões em assembleias camponesas e para intimidar os proprietários de terra cobriram os campos com cruzes e outros símbolos ameaçadores Na última fase da guerra exigiram o fim da renda e o estabelecimento de direitos campesinos de propriedade ibidem pp 12021 133 101 100 negociaram exclusivamente para obter melhores condições de vida O objetivo era colocar fm ao poder dos senhores Durante a Revolta Camponesa de 1381 os camponeses ingleses declararam que a velha lei deve ser abolida Efetivamente no começo do século XV pelo menos na Inglaterra a servidão ou a vilanagem haviam desaparecido quase por completo embora a revolta tenha sido derrotada política e militarmente e seus líderes executados brutalmente Titow 1969 p 58 O que se seguiu tem sido descrito como a idade de ouro do proletariado europeu Marx 1909 t I Braudel 1967 pp 128 e segs algo muito distinto da representação canônica do século XV que foi imortalizado iconografcamente como um mundo sob a maldição da dança da morte e do memento mori Thorold Rogers retratou uma imagem utópica deste perío do em seu famoso estudo sobre os salários e as condições de vida na Inglaterra medieval Em nenhum outro momento escreveu Rogers os salários foram tão altos e a comida tão barata na Inglaterra Rogers 1894 p 326 e segs Às vezes os trabalhadores eram pagos todos os dias do ano apesar de não trabalharem aos domingos ou nos principais feriados A comida corria à custa dos empregadores e era pago um viaticum para ir e vir de casa ao trabalho calculado por cada milha de distância Além disso exigiam ser pagos em dinheiro e queriam trabalhar apenas cinco dias por semana Como veremos há razões para sermos céticos com relação ao alcance dessa abundância No entanto para uma parte impor tante do campesinato da Europa Ocidental e para os trabalhado res urbanos o século XV foi uma época de poder sem preceden tes Não só a escassez de trabalho lhes deu poder de decisão mas também o espetáculo de empregadores competindo por seus serviços reforçou sua própria valorização e apagou séculos de de gradação e submissão Diante dos olhos dos empregadores o es cândalo dos altos salários que os trabalhadores demandavam só era igualado pela nova arrogância que exibiam sua recusa a tra balhar ou a continuar trabalhando depois que haviam satisfeito suas necessidades o que podiam fazer mais rapidamente agora devido aos salários mais elevados sua obstinada determinação para se oferecerem somente para tarefas limitadas em vez de períodos prolongados de tempo suas demandas por benefícios extras além do salário e sua vestimenta ostensiva que de acordo com as queixas de críticos sociais contemporâneos os tornava indistinguíveis dos senhores Os servos agora são senhores e os senhores são servos reclamava John Gower em Mirour de lomme 1378 Espelho do homem o camponês pretende imitar os costumes do homem livre e dá a si mesmo a aparência deste ao utilizar suas roupas Hatcher 1994 p 17 A condição dos semterra também melhorou depois da Peste Negra Hatcher 1994 e não apenas na Inglaterra Em 1348 os cânones da Normandia queixaramse de que não conseguiam A Peste Negra dizimou um terço da população da Europa Foi um momento social e politicamente decisivo na história europeia 103 102 encontrar ninguém que estivesse disposto a cultivar suas terras sem pedir mais do que aquilo que seus servos teriam cobrado no início do século Na Itália na França e na Alemanha os salários foram duplicados e triplicados Boissonnade 1927 pp 31620 Nas terras do Reno e do Danúbio o poder de compra do salário agrícola diário chegou a equipararse ao preço de um porco ou de uma ovelha e estes níveis salariais alcançavam também as mu lheres já que a diferença entre a renda feminina e a masculina havia diminuído drasticamente nos momentos da Peste Negra Para o proletário europeu isso signifcou não só a conquis ta de um nível de vida que não foi igualado até o século XIX mas também o desaparecimento da servidão No fm do século XIV as amarras entre os servos e a terra havia praticamente desaparecido Marx 1909 t I p 788 Por todas as partes os servos eram substituídos por camponeses livres titulares de posses consuetudinárias copyholds ou de enfteuses leaseholds que só aceitavam trabalhar em troca de uma recompensa substancial A POLÍTICA SEXUAL O SURGIMENTO DO ESTADO E A CONTRARREVOLUÇÃO Todavia no fnal do século XV foi posta em marcha uma con trarrevolução que atuava em todos os níveis da vida social e política Em primeiro lugar as autoridades políticas empreen deram importantes esforços para cooptar os trabalhadores mais jovens e rebeldes por meio de uma maliciosa política sexual que lhes deu acesso a sexo gratuito e transformou o antagonismo de classe em hostilidade contra as mulheres proletárias Como demonstrou Jacques Rossiaud em Medieval Prostitution 1988 A prostituição medieval na França as au toridades municipais praticamente descriminalizaram o estupro nos casos em que as vítimas eram mulheres de classe baixa Na Veneza do século XIV o estupro de mulheres proletárias solteiras raramente tinha como consequência algo além de um puxão de orelhas até mesmo nos casos frequentes de ataque em grupo Ruggiero 1989 pp 94 91108 O mesmo ocorria na maioria das cidades francesas Nelas o estupro coletivo de mulheres proletárias se tornou uma prática comum que se realizava aberta e ruidosamente durante a noite em grupos de dois a quinze que invadiam as casas ou arrastavam as vítimas pelas ruas sem a menor intenção de se esconder ou dissimular Aqueles que participavam desses esportes eram aprendizes ou empregados domésticos jovens e flhos das famílias ricas sem um centavo no bolso enquanto as mulheres eram meninas pobres que trabalhavam como criadas ou lavadeiras sobre as quais circulavam rumores de que eram mantidas por seus senhores Rossiaud 1988 p 22 Em média metade dos jovens participou alguma vez nesses ataques que Rossiaud descreve como uma forma de protesto de classe um meio para que 105 104 homens proletários forçados a postergar seus casamentos por muitos anos devido às suas condições econômicas cobras sem aquilo que era seu e se vingassem dos ricos Porém os resultados foram destrutivos para todos os trabalhadores pois o estupro de mulheres pobres com consentimento estatal de bilitou a solidariedade de classe que se havia alcançado na luta antifeudal Como era de se esperar as autoridades encararam os distúrbios causados por essa política as brigas a presença de bandos de jovens perambulando pelas ruas em busca de aven turas e perturbando a tranquilidade pública como um preço pequeno a se pagar em troca da diminuição das tensões sociais já que estavam obcecadas pelo medo das grandes insurreições urbanas e pela crença de que se os homens pobres conseguis sem se impor eles se apoderariam de suas esposas e disporiam delas coletivamente ibidem p 13 Para estas mulheres proletárias tão arrogantemente sacrifcadas por senhores e servos o preço a pagar foi incalcu lável Uma vez estupradas não era fácil recuperar seu lugar na sociedade Com a reputação destruída tinham que abandonar a cidade ou se dedicar à prostituição ibidem Ruggiero 1985 p 99 Porém elas não eram as únicas que sofriam A legali zação do estupro criou um clima intensamente misógino que degradou todas as mulheres qualquer que fosse sua classe Também insensibilizou a população frente à violência contra as mulheres preparando o terreno para a caça às bruxas que começaria nesse mesmo período Os primeiros julgamentos por bruxaria ocorreram no fnal do século XIV pela primeira vez a Inquisição registrou a existência de uma heresia e de uma seita de adoradores do demônio completamente feminina Outro aspecto da política sexual fragmentadora que prínci pes e autoridades municipais levaram a cabo com a fnalidade de dissolver o protesto dos trabalhadores foi a institucionaliza ção da prostituição implementada a partir do estabelecimento de bordéis municipais que logo proliferaram por toda a Europa Tornada possível graças ao regime de salários elevados a prostituição gerida pelo Estado foi vista como um remédio útil contra a turbulência da juventude proletária que podia des frutar na Grande Maison como era chamado o bordel estatal na França de um privilégio antes reservado aos homens mais velhos Rossiaud 1988 O bordel municipal também era consi derado um remédio contra a homossexualidade Otis 1985 que em algumas cidades europeias por exemplo Pádua e Florença se praticava ampla e publicamente mas que depois da Peste Negra começou a ser temida como causa de despovoamento41 Assim entre 1350 e 1450 em cada cidade e aldeia da Itália e da França foram abertos bordéis geridos publicamente e fnanciados por impostos numa quantidade muito superior à atingida no século XIX Em 1453 só Amiens tinha 53 bordéis Além disso foram eliminadas todas as restrições e penalidades 41 Assim a proliferação de bordéis públicos foi acompanhada de uma campanha contra os homossexuais que se estendeu até mesmo a Florença onde a homossexualidade era uma parte importante da tessitura social que atraía homens de todas as idades estados civis e níveis sociais A homossexualidade era tão popular em Florença que as prostitutas costumavam usar roupas masculinas para atrair seus clientes Os sinais de mudança vieram de duas iniciativas introduzidas pelas autoridades em 1403 quando a cidade proibiu os sodomitas de assumirem cargos públicos e instituiu uma comissão de controle dedicada a extirpar a homossexualidade o Escritório da Decência Significativamente o primeiro passo tomado pelo Escritório foi preparar a abertura de um novo bordel público de tal forma que em 1418 as autoridades ainda continuavam buscando meios para erradicar a sodomia da cidade e do campo Rocke 1997 pp 302 35 Sobre a promoção da prostituição financiada publicamente como remédio contra a diminuição da população e a sodomia por parte do governo florentino ver também Richard C Trexler 1993 p 32 Como outras cidades italianas do século XV Florença acreditava que a prostituição patrocinada oficialmente combatia outros dois males incomparavelmente mais impor tantes do ponto de vista moral e social a homossexualidade masculina cuja prática se atribuía ao obscurecimento da diferença entre os sexos e portanto de toda a diferença e decoro e a diminuição da população legítima como consequência de uma quantidade insuficiente de matrimônios Trexler aponta que é possível encontrar a mesma correlação entre a difusão da homossexualidade a diminuição da população e o patrocínio estatal da prostituição em Lucca Veneza e Siena entre o final do século XIV e o início do XV aponta também que o crescimento na quantidade e no poder social das prostitutas levou finalmente a uma reação violenta de tal maneira que enquanto no começo do século XV pregadores e estadistas haviam acreditado profundamente em Florença que nenhuma cidade em que mulheres e homens parecessem iguais podia se sustentar por muito tempo um século mais tarde perguntavam para si mesmos se uma cidade poderia sobreviver enquanto as mulheres de classe alta não pudessem ser diferenciadas das prostitutas de bordel ibidem p 65 107 contra a prostituição As prostitutas agora podiam abordar seus clientes em qualquer parte da cidade inclusive na frente da igreja e durante a missa Não estavam mais ligadas a nenhum código de vestimenta ou obrigadas a usar marcas distintivas pois a prostituição era ofcialmente reconhecida como um ser viço público ibidem pp 910 Até mesmo a Igreja chegou a ver a prostituição como uma atividade legítima Acreditavase que o bordel administrado pelo Estado provia um antídoto contra as práticas sexuais orgiásticas das seitas hereges e que era um remédio para a sodomia assim como também era visto como um meio para proteger a vida familiar É difícil discernir de forma retrospectiva até que ponto esse recurso sexual ajudou o Estado a disciplinar e dividir o proletariado medieval O que é certo é que esse new deal foi parte de um processo mais amplo que em resposta à intensif cação do confito social levou à centralização do Estado como o único agente capaz de confrontar a generalização da luta e de preservar as relações de classe Nesse processo como se verá mais adiante o Estado tor nouse o gestor supremo das relações de classe e o supervisor da reprodução da força de trabalho uma função que continua desempenhando até os dias de hoje No exercício desse poder em muitos países foram criadas leis que estabeleciam limites ao custo do trabalho fxando o salário máximo proibiam a vadia gem agora duramente castigada Geremek 1985 p 61 e segs e incentivavam os trabalhadores a se reproduzirem Em última instância o crescente confito de classes provocou uma nova aliança entre a burguesia e a nobreza sem a qual as revoltas proletárias não poderiam ter sido derrotadas De fato é difícil aceitar a afrmação frequentemente feita pelos historia dores segundo a qual essas lutas não tinham possibilidades de sucesso devido à estreiteza de seu horizonte político e à confusão de suas demandas Na verdade os objetivos dos camponeses e dos artesãos eram absolutamente transparentes Eles exigiam que cada homem tivesse tanto quanto qualquer outro Pirenne 1937 p 202 e para atingir tal objetivo uniamse a todos aqueles que não tinham nada a perder atuando conjuntamente em diferen tes regiões sem medo de enfrentar os exércitos bem treinados da nobreza apesar de não terem treinamento militar Se eles foram derrotados foi porque todas as forças do poder feudal a nobreza a Igreja e a burguesia apesar de suas divisões tradicionais os enfrentaram de forma unifcada por medo de uma rebelião proletária Com efeito a imagem que chegou a nós de uma burguesia em guerra permanente contra a nobreza e que levava em suas bandeiras o clamor pela igualda de e pela democracia é uma distorção Na Baixa Idade Média Bordel xilogravura alemã do século XV Os bordéis eram vistos como um remédio contra os protestos sociais a heresia e a homossexualidade 108 para onde quer que olhemos desde a Toscana até a Inglaterra e os Países Baixos encontramos a burguesia já aliada com a nobreza visando à eliminação das classes baixas42 A burguesia reconheceu tanto nos camponeses quanto nos tecelões e sapateiros democratas de suas cidades um inimigo que fez até mesmo com que valesse a pena sacrifcar sua preciosa autono mia política Foi assim que a burguesia urbana depois de dois séculos de lutas para conquistar a soberania plena dentro das muralhas de suas comunas restituiu o poder à nobreza subor dinandose voluntariamente ao reinado do Príncipe e dando assim o primeiro passo em direção ao Estado absolutista 42 Na Toscana onde a democratização da vida política havia chegado mais longe do que em qualquer outra região europeia na segunda metade do século XV se deu uma inversão desta tendência e uma restauração do poder da nobreza promovida pela burgue sia mercantil com a finalidade de bloquear a ascensão das classes baixas Nessa época foi produzida uma fusão orgânica entre as famílias dos mercadores e da nobreza por meio do casamento e de prerrogativas compartilhadas Isso acabou com a mobilidade social a conquista mais importante da sociedade urbana e da vida comunal na Toscana medieval Luzzati 1981 pp 187 206 Mattheus Merian Os quatro cavaleiros do Apocalipse 1630 Ver nota de rodapé 64 INTRODUÇÃO 114 A ACUMULAÇÃO CAPITALISTA E A ACUMULAÇÃO DO TRABALHO NA EUROPA 120 A PRIVATIZAÇÃO DA TERRA NA EUROPA A PRODUÇÃO DE ESCASSEZ E A SEPARAÇÃO ENTRE PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO 130 A REVOLUÇÃO DOS PREÇOS E A PAUPERIZAÇÃO DA CLASSE TRABALHADORA EUROPEIA 148 A INTERVENÇÃO ESTATAL NA REPRODUÇÃO DO TRABALHO A ASSISTÊNCIA AOS POBRES E A CRIMINALIZAÇÃO DA CLASSE TRABALHADORA 159 DIMINUIÇÃO DA POPULAÇÃO CRISE ECONÔMICA E DISCIPLINAMENTO DAS MULHERES 167 A DESVALORIZAÇÃO DO TRABALHO FEMININO 181 AS MULHERES COMO NOVOS BENS COMUNS E COMO SUBSTITUTO DAS TERRAS PERDIDAS 191 O PATRIARCADO DO SALÁRIO 193 A DOMESTICAÇÃO DAS MULHERES E A REDEFINIÇÃO DA FEMINILIDADE E DA MASCULINIDADE MULHERES SELVAGENS DA EUROPA 199 COLONIZAÇÃO GLOBALIZAÇÃO E MULHERES 206 SEXO RAÇA E CLASSE NAS COLÔNIAS 215 O CAPITALISMO E A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO 232 CAPÍTULO 2 A ACUMULAÇÃO DO TRABALHO E A DEGRADAÇÃO DAS MULHERES A CONSTRUÇÃO DA DIFERENÇA NA TRANSIÇÃO PARA O CAPITALISMO ME PERGUNTO SE TODAS AS GUERRAS DERRAMAMENTO DE SANGUE E MISÉRIA NÃO ASSALTARAM A CRIAÇÃO QUANDO UM HOMEM PROCUROU SER SENHOR DE OUTRO E SE ESSA MISÉRIA NÃO IRÁ EMBORA QUANDO TODAS AS RAMIFICAÇÕES DA HUMANIDADE CONSIDERAREM A TERRA COMO UM TESOURO COMUM A TODOS GERRARD WINSTANLEY THE NEW LAW OF RIGHTEOUSNESS 1649 PARA ELE ELA ERA UMA MERCADORIA FRAGMENTADA CUJOS SENTIMENTOS E ESCOLHAS RARAS VEZES ERAM CONSIDERADAS SUA CABEÇA E SEU CORAÇÃO ESTAVAM SEPARADOS DE SUAS COSTAS E MÃOS E DIVIDIDAS DE SEU ÚTERO E VAGINA SUAS COSTAS E MÚSCULOS ERAM FORÇADOS NO TRABALHO DO CAMPO ÀS SUAS MÃOS SE EXIGIA CUIDAR E NUTRIR O HOMEM BRANCO SUA VAGINA USADA PARA O PRAZER SEXUAL DELE ERA A PORTA DE ACESSO AO ÚTERO LUGAR PARA OS INVESTIMENTOS DELE O ATO SEXUAL ERA O INVESTIMENTO DE CAPITAL E O FILHO A MAIS VALIA ACUMULADA BARBARA OMOLADE HEART OF DARKNESS 1983 115 114 INTRODUÇÃO O desenvolvimento do capitalismo não foi a única resposta à crise do poder feudal Em toda a Europa vastos movimentos sociais comunalistas e rebeliões contra o feudalismo haviam oferecido a promessa de uma nova sociedade construída sobre as bases da igualdade e da cooperação Contudo em 1525 sua expressão mais poderosa a Guerra Camponesa na Alemanha ou como foi chamada por Peter Blickle a revolução do homem comum foi esmagada43 Em represália cem mil rebeldes foram massacrados Mais tarde em 1535 a Nova Jerusalém a ten tativa dos anabatistas na cidade de Münster de trazer o reino de Deus para a terra também terminou em um banho de sangue Antes essa tentativa já havia sido enfraquecida presumivel mente pela virada patriarcal de seus líderes os quais ao impor a poligamia levaram as mulheres de suas fleiras a se revoltar44 43 Peter Blickle se opõe ao conceito de uma guerra camponesa devido à composição social dessa revolução que incluía em suas fileiras muitos artesãos mineiros e intelectuais A Guerra Camponesa combinou sofisticação ideológica expressa nos doze artigos promovidos pelos rebeldes com uma poderosa organização militar Os doze ar tigos incluíam rejeição à servidão redução dos dízimos revogação das leis contra a caça clandestina afirmação do direito de coletar lenha diminuição dos serviços laborais redu ção das rendas afirmação dos direitos de uso das terras comunais e abolição dos impostos de herança Bickle 1985 pp 195201 A excepcional destreza militar demonstrada pelos rebeldes dependia em parte da participação na revolta de soldados profissionais incluindo a participação dos lansquenetes os célebres soldados suíços que nessa época eram a elite das tropas mercenárias na Europa Os lansquenetes lideraram os exércitos campone ses colocando sua experiência militar a serviço dos camponeses e em diversas situações se recusaram a atuar contra os rebeldes Em certa ocasião justificaram sua recusa com o argumento de que eles próprios também vinham do campesinato e de que dependiam dos camponeses para seu sustento em tempos de paz Quando ficou claro para os príncipes ger mânicos que não se podia confiar nos lansquenetes passaram a mobilizar tropas da Liga da Suábia Schwäbischer Bund trazidas de regiões mais afastadas para quebrar a resistência camponesa Sobre a história dos lansquenetes e sua participação na Guerra Camponesa ver Reinhard Baumann I Lanzichenacchi 1994 pp 23756 44 Politicamente os anabatistas representaram uma fusão dos movimentos sociais da Baixa Idade Média e o novo movimento anticlerical que se desencadeou a partir da Reforma Como os hereges medievais os anabatistas condenavam o individualismo econômico e a cobiça e apoiavam uma forma de comunalismo cristão A tomada de Münster teve lugar sob a Guerra Camponesa quando a agitação e as insurreições urbanas se estenderam de Frankfurt a Colônia e a outras cidades do norte da Alemanha Em 1531 as corporações tomaram o controle da cidade de Münster rebatizandoa de Nova Jeru salém e sob a influência de imigrantes anabatistas holandeses instalaram um governo Com estas derrotas agravadas pelo desdobramento da caça às bruxas e pelos efeitos da expansão colonial o processo revo lucionário na Europa chegou ao fm O poderio militar não foi sufciente entretanto para evitar a crise do feudalismo Na Baixa Idade Média ante uma crise de acumulação que se prolongou por mais de um século a economia feudal estava condenada Podemos deduzir as dimensões da crise a partir de algumas estimativas básicas que indicam que entre 1350 e 1500 houve uma mudança muito importante na relação de poder entre trabalhadores e mestres O salário real cresceu em torno de 100 os preços caíram por volta de 33 os aluguéis também caíram a jornada de trabalho diminuiu e surgiu uma tendência à autossufciência local45 No pessimismo dos mercadores e proprietários de terra da época assim como nas medidas que os Estados europeus adotaram para proteger os mercados suprimir a concorrência e forçar as pessoas a trabalhar nas condições im postas também é possível encontrar provas de uma tendência crônica à desacumulação Anotações nos registros dos feudos documentam que o trabalho não valia nem o café da manhã comunal baseado na partilha de bens Como escreveu PoChia Hsia os documentos da Nova Jerusalém foram destruídos e sua história foi contada apenas por seus inimigos Não devemos supor portanto que os acontecimentos se deram tal como foram narrados De acordo com os documentos disponíveis as mulheres primeiro desfrutaram de um alto grau de liberdade na cidade podiam se divorciar de seus maridos incrédulos e formar novos matrimônios por exemplo As coisas mudaram com a decisão do governo reformado de introduzir a poligamia em 1534 o que provocou uma resistência ativa entre as mulheres que segundo se presume foi reprimida com prisões e até execuções PoChia Hsia 1988 pp 589 Não está claro o motivo dessa decisão mas dado o papel decisivo que desempenharam as corporações na transição em relação às mulheres o episódio merece maior investigação Sabemos de fato que as corporações realizaram campanhas em vários países para remover as mulheres dos lugares de trabalho assalaria do e nada indica que se opuseram à perseguição de bruxas 45 Sobre o aumento do salário real e a queda de preços na Inglaterra ver North e Thomas 1973 p 74 Sobre os salários florentinos Carlo M Cipolla 1994 p 206 Sobre a queda do valor da produção na Inglaterra ver R H Britnel 1993 pp 15671 Sobre a estagnação da produção agrária em distintos países europeus B H Slicher Van Bath 1963 pp 16070 Rodney Hilton sustenta que neste período se experimentou uma contração das economias rurais e industriais provavelmente sentida em primei ro lugar pela classe dominante Os rendimentos senhoriais e os lucros industriais e co merciais começaram a cair A revolta nas cidades desorganizou a produção industrial e a revolta do campo fortaleceu a resistência camponesa ao pagamento da renda A renda e os lucros caíram ainda mais Milton 1985 pp 2401 117 116 Dobb 1963 p 54 A economia feudal não podia se reproduzir Nem a sociedade capitalista poderia ter evoluído a partir dela já que a autossufciência e o novo regime de salários elevados permitiam a riqueza do povo mas excluíam a possibilidade da riqueza capitalista Marx 2006 t I p 897 Foi em resposta a essa crise que a classe dominante euro peia lançou a ofensiva global que ao longo de ao menos três séculos mudaria a história do planeta estabelecendo as bases do sistema capitalista mundial no esforço implacável de se apropriar de novas fontes de riqueza expandir sua base econô mica e colocar novos trabalhadores sob seu comando Como sabemos a conquista a escravização o roubo o assassinato em uma palavra a violência foi o pilar desse pro cesso ibidem 785 Assim o conceito de uma transição para o capitalismo é em muitos sentidos uma fcção Nos anos 1940 e 1950 historiadores britânicos usaram esse conceito para defnir um período que ia aproximadamente de 1450 a 1650 em que o feudalismo na Europa estava se decompondo enquanto nenhum novo sistema socioeconômico havia ainda tomado seu lugar apesar de alguns elementos da sociedade capitalista já estarem tomando forma46 O conceito de transição portanto nos ajuda a pensar em um processo prolongado de mudança e em sociedades nas quais a acumulação capitalista coexistia com formações políticas que não eram ainda predominantemente capitalistas Contudo o termo sugere um desenvolvimento histórico gradual linear ao passo que o período a que o termo se refere foi um dos mais sangrentos e descontínuos da história mundial uma época que foi testemunha de transformações apocalípticas que os historiadores só podem descrever nos termos mais duros a Era de Ferro Kamen a Era do Saque Hoskins e a Era do Chicote Stone O termo transição então é incapaz de evocar as mudanças que 46 Sobre Maurice Dobb e o debate sobre a transição ao capitalismo ver Harvey J Kaye 1984 pp 2369 abriram o caminho para a chegada do capitalismo e das forças que conformaram essas mudanças Portanto neste livro usarei esse termo principalmente em um sentido temporal enquanto para os processos sociais que caracterizaram a reação feudal e o desenvolvimento das relações capitalistas usarei o conceito marxiano de acumulação primitiva ou originária embora concorde como apontam alguns críticos que devemos repensar a interpretação de Marx nesse ponto47 Marx introduziu o conceito de acumulação primitiva no fnal do tomo I de O capital para descrever a reestruturação social e econômica iniciada pela classe dominante europeia em resposta à crise de acumulação e para estabelecer em polêmica com Adam Smith48 que i o capitalismo não poderia ter se desenvolvido sem uma concentração prévia de capital e trabalho e que ii a dissocia ção entre trabalhadores e meios de produção e não a abstinência dos ricos é a fonte da riqueza capitalista A acumulação primitiva é então um conceito útil já que conecta a reação feudal com o desenvolvimento de uma economia capitalista e identifca as condições históricas e lógicas para o desenvolvimento do sistema capitalista em que primitiva originária indica tanto uma précondição para a existência de relações capitalistas como um 47 Entre os críticos do conceito de acumulação primitiva tal como utilizado por Marx estão Samir Amin 1974 e Maria Mies 1986 Enquanto Samir Amin volta sua atenção para o eurocentrismo de Marx Mies enfatiza sua cegueira com relação à exploração das mulheres Uma crítica distinta aparece em Yann Moulier Boutang 1998 pp 1623 que aponta em Marx a origem da impressão errônea de que o objetivo da classe dominante na Europa era se libertar de uma força de trabalho de que não necessita va Boutang salienta que ocorreu exatamente o contrário o objetivo da expropriação de terras era fixar os trabalhadores em seus empregos e não incentivar a mobilidade O capitalismo como sublinha Moulier Boutang sempre se preocupou principalmente em evitar a fuga do trabalho 48 Michael Perelman assinala que o termo acumulação primitiva foi na reali dade cunhado por Adam Smith Foi logo rechaçado por Marx devido ao caráter ahistórico do uso que Smith deu ao termo Para sublinhar sua distância em relação a Smith Marx intitulou o capítulo final do primeiro tomo de O capital consagrado ao estudo da acu mulação primitiva como a assim chamada acumulação primitiva fazendo a expressão assim chamada preceder pejorativamente o termo acumulação primitiva Fundamen talmente Marx descartou a mítica acumulação anterior a fim de centrar a atenção na experiência histórica real Perelman 1985 pp 256 119 118 evento específco no tempo49 Contudo Marx analisou a acumulação primitiva quase exclusivamente partindo do ponto de vista do proletariado industrial assalariado o protagonista sob sua perspectiva do processo revolucionário do seu tempo e a base para uma sociedade comunista futura Deste modo em sua explicação a acumulação primitiva consiste essencialmente na expropriação da terra do campesinato europeu e na formação do trabalhador independente livre Entretanto Marx também reconheceu que A descoberta de ouro e prata na América o extermínio a escravização e o sepultamento da população nativa nas minas a conquista e a pilhagem das Índias Orientais a transformação da África em uma reserva para a caça comercial de peles negras são momentos fundamentais da acumulação primitiva Marx 2006 t I p 939 Marx também reconheceu que muito capital que aparece hoje nos Estados Unidos sem certidão de nascimento é sangue infantil ainda ontem capitalizado na Inglaterra ibidem p 945 Por outro lado não encontramos em seu trabalho nenhuma men ção às profundas transformações que o capitalismo introduziu na reprodução da força de trabalho e na posição social das mulheres Na análise de Marx sobre a acumulação primitiva tampouco apa rece alguma referência à grande caça às bruxas dos séculos XVI e XVII ainda que essa campanha terrorista patrocinada pelo Estado tenha sido fundamental para a derrota do campesinato europeu facilitando sua expulsão das terras anteriormente comunais 49 Sobre a relação entre as dimensões histórica e lógica da acumulação primi tiva e suas implicações para os movimentos políticos de hoje ver Massimo de Angelis Marx and Primitive Accumulation The Continuous Character of Capital Enclosures Marx e acumulação primitiva o caráter contínuo dos cercamentos do capital em The Commoner disponível em wwwconullonerorguk Fredy Perlman The Continuing Appeal of Nationalism O apelo continuado do nacionalismo Detroit Black and Red 1985 e Mitchel Cohen Fredy Perlman Out in Front of a Dozen Dead Oceans Fredy Perlman em frente a uma dúzia oceanos mortos manuscrito inédito Neste capítulo e nos que seguem discuto esses eventos especialmente com relação à Europa defendendo que i A expropriação dos meios de subsistência dos trabalhadores europeus e a escravização dos povos originários da América e da África nas minas e nas plantações do Novo Mundo não foram os únicos meios pelos quais um proletariado mundial foi formado e acumulado ii Este processo demandou a transformação do corpo em uma máquina de trabalho e a sujeição das mulheres para a repro dução da força de trabalho Principalmente exigiu a destrui ção do poder das mulheres que tanto na Europa como na América foi alcançada por meio do extermínio das bruxas iii A acumulação primitiva não foi então simplesmente uma acumulação e uma concentração de trabalhadores explorá veis e de capital Foi também uma acumulação de diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora em que as hierarquias construídas sobre o gênero assim como sobre a raça e a idade se tornaram constitutivas da dominação de classe e da formação do proletariado moderno iv Não podemos portanto identifcar acumulação capitalista com libertação do trabalhador mulher ou homem como muitos marxistas entre outros têm feito ou ver a chegada do capitalismo como um momento de progresso histórico Pelo contrário o capitalismo criou formas de escravidão mais brutais e mais traiçoeiras na medida em que implantou no corpo do proletariado divisões profundas que servem para intensifcar e para ocultar a exploração É em grande medida por causa dessas imposições especialmente a divisão entre homens e mulheres que a acumulação capitalista continua devastando a vida em todos os cantos do planeta 121 120 A ACUMULAÇÃO CAPITALISTA E A ACUMULAÇÃO DO TRABALHO NA EUROPA Marx escreveu que o capital emerge sobre a face da terra escorrendo sangue e sujeira dos pés à cabeça Marx 2006 t I p 950 e com efeito quando olhamos para o começo do desenvolvimento capitalista temos a impressão de estar num imenso campo de concentração No Novo Mundo encontramos a submissão das populações nativas por meio dos regimes de mita e do cuatequil50 sob os quais uma multidão de pessoas deu a vida para extrair prata e mercúrio das minas de Huancavelica e Potosí Na Europa do Leste desenvolveuse uma segunda servidão que prendeu à terra uma população de produtores agrícolas que jamais havia sido serva51 Na Europa Ocidental ocorreram os cercamentos a caça às bruxas as marcações a fogo os açoites e o encarceramento de vagabundos e mendigos em workhouses52 e em casas correcionais recémconstruídas 50 Para uma descrição dos sistemas de encomienda mita e catequil ver entre outros André Gunder Frank 1978 p 45 Steve J Stern 1982 e Inga Clendinnen 1987 Gunder Frank descreveu a encomienda como um sistema sob o qual eram concedidos aos proprietários de terra espanhóis direitos sobre o trabalho das comunidades indígenas Porém em 1548 os espanhóis começaram a substituir a encomienda de servicio pelo repartimiento chamado de catequil no México e de mita no Peru que obrigava os chefes da comunidade indígena a fornecer ao juez repartidor juiz distribuidor espanhol certa quantidade de dias de trabalho por mês Por sua vez o funcionário espanhol distribuía esse fornecimento de trabalho a empreendedores qualificados contratantes de força de trabalho que deveriam pagar aos trabalhadores certo salário mínimo 1978 p 45 Sobre os esforços dos espanhóis para submeter os trabalhadores no México e no Peru por meio de diferentes etapas de colonização e seus impactos no colapso catastró fico da população indígena ver novamente Gunder Frank ibidem pp 439 51 Para uma discussão sobre a segunda servidão ver Immanuel Wallerstein 1974 e Henry Kamen 1971 Aqui é importante destacar que os camponeses trans formados em servos pela primeira vez produziam agora para o mercado internacional de cereais Em outras palavras apesar do caráter aparentemente retrógrado da relação de trabalho que lhes foi imposta sob o novo regime esses camponeses estavam integrados a uma economia capitalista em desenvolvimento e à divisão de trabalho capitalista em escala internacional 52 As workhouses literalmente casas de trabalho eram uma espécie de asilo para pobres estabelecidas na Inglaterra no século XVII NTE modelos para o futuro sistema carcerário No horizonte temos o surgimento do tráfco de escravos enquanto nos mares os barcos já transportavam indentured servants servos contrata dos53 e criminosos condenados da Europa para a América O que se deduz desse panorama é que a violência foi a principal alavanca o principal poder econômico no processo de acumulação primitiva54 porque o desenvolvimento capitalista exigiu um imenso salto na riqueza apropriada pela classe domi nante europeia e no número de trabalhadores colocado sob o seu comando Em outras palavras a acumulação primitiva consistiu uma imensa acumulação de força de trabalho trabalho mor to na forma de bens roubados e trabalho vivo na forma de seres humanos postos à disposição para sua exploração coloca da em prática numa escala nunca antes igualada na história De forma signifcativa a tendência da classe capitalista durante os primeiros três séculos de sua existência era impor a escravidão e outras formas de trabalho forçado como relação de trabalho dominante uma tendência que só foi limitada pela resistência dos trabalhadores e pelo perigo de esgotamento da força de trabalho Isso era o que ocorria não apenas nas colônias americanas onde no século XVI se formavam as economias baseadas no trabalho forçado mas também na Europa Mais adiante examinarei a importância do trabalho escravo e do sistema de plantation na acumulação capitalista Aqui quero destacar que 53 Os indentured servants eram obrigados a trabalhar por um determinado período de tempo durante o qual recebiam casa comida e às vezes uma escassa remu neração com a qual pagavam seu traslado a outro país NTE 54 Faço aqui eco da frase de Marx no tomo I de O capital A violência é ela mesma uma potência econômica Marx 2006 p 940 Muito menos convincente é a ob servação de Marx que acompanha a frase A violência é a parteira de toda velha sociedade que está prenhe de uma nova ibidem Em primeiro lugar as parteiras trazem vida ao mundo e não destruição Essa metáfora também sugere que o capitalismo evoluiu a partir de forças gestadas no seio do mundo feudal uma suposição que o próprio Marx refuta em sua discussão sobre a acumulação primitiva Comparar a violência com as potências gerado ras de uma parteira também coloca um véu de bondade sobre o processo de acumulação de capital sugerindo necessidade inevitabilidade e em última análise progresso 123 122 também na Europa do século XV a escravidão nunca completa mente abolida se viu revitalizada55 Como relata o historiador italiano Salvatore Bono a quem devemos o mais extenso estudo sobre a escravidão na Itália havia muitos escravos nas regiões do Mediterrâneo durante os séculos XVI e XVII e sua quantidade aumentou depois da Batalha de Lepanto 1571 que intensifcou as hostilidades contra o mundo muçulmano Bono calcula que em Nápoles viviam mais de dez mil escravos e em todo o reino napolitano 25 mil 1 da população em outras cidades da Itália e do sul da França registramse números similares Na Itália desen volveuse também um sistema de escravidão pública em que milhares de estrangeiros sequestrados os antepassados dos atuais imigrantes sem documentos eram empregados pelos governos municipais para obras públicas ou então entregues a particulares para trabalhar na agricultura Muitos eram desti nados a galeras de embarcações uma fonte de trabalho na qual se destacava a frota do Vaticano Bono 1999 pp 68 A escravidão é aquela forma de exploração que o senhor sempre se esforça para alcançar Dockes 1982 p 2 A Europa não era uma exceção e é importante que isso seja enfatizado para dissipar a suposição de que existe uma conexão especial entre a escravidão e a África56 No entanto a escravidão na Europa continuou sendo um fenômeno limitado já que as condições materiais para sua existência não estavam dadas 55 A escravidão nunca foi abolida na Europa Sobrevivia em certos nichos basicamente como escravidão doméstica feminina No final do século XV entretanto os portugueses começaram novamente a importar escravos da África As tentativas de esta belecer a escravidão continuaram na Inglaterra durante o século XVI resultando depois da introdução da assistência pública na construção de workhouses e casas correcionais processo em que a Inglaterra foi a pioneira na Europa 56 Sobre esse ponto ver Samir Amin 1974 Também é importante ressaltar a existência da escravidão europeia durante os séculos XVI e XVII e depois pois esse fato foi frequentemente esquecido pelos historiadores europeus De acordo com Salvatore Bono este esquecimento autoinduzido é produto da Partilha da África justificada como uma missão para pôr fim à escravidão no continente africano Bono argumenta que as elites europeias não podiam admitir ter empregado escravos na Europa o pretenso berço da democracia embora o desejo dos empregadores em implementála deva ter sido muito intenso se levarmos em conta que na Inglaterra não foi abolida até o século XVIII A tentativa de reinstaurar a servi dão também falhou exceto no Leste Europeu onde a escassez populacional conferiu aos proprietários de terra um novo poder de decisão Immanuel Wallerstein 1974 pp 905 e Peter Kriedte 1978 pp 6970 Na Europa Ocidental sua restauração foi evitada devido à resistência campesina que culminou nas Guerras Camponesas na Alemanha A revolução do homem comum um amplo esforço organizacional que se espalhou por três países Alemanha Áustria e Suíça unindo trabalhadores de todos os setores agricultores mineiros artesãos inclusive os melhores artistas alemães e austríacos57 foi um marco na história europeia Assim como a Revolução Bolchevique de 1917 na Rússia a revolução atacou diretamente o centro de poder Ao recordar a tomada de Münster pelos anabatistas os poderosos confrmaram seus temores de que estava em marcha uma conspiração internacional para destituílos58 Depois da derrota 57 Paolo Thea 1998 reconstituiu de forma poderosa a história dos artistas alemães que se posicionaram ao lado dos camponeses Durante a Reforma alguns dos melhores artistas do século XVI abandonaram seus ateliês para se unir aos camponeses em luta Escreveram documentos inspirados nos princípios da pobreza evangélica como o de compartilhar os bens e o da redistribuição da riqueza Algumas vezes empunharam armas pela causa A lista interminável de quem depois das derrotas militares de maio e junho de 1525 encarou os rigores do Código Penal aplicado de forma impiedosa pelos vencedores contra os vencidos inclui nomes famosos Entre eles estão Jorg Ratget esquartejado em Pforzheim Stuttgart Philipp Dietman decapitado e Tilman Riemenschneider mutilado ambos em Würzburg e Matthias Grunewald perseguido na corte de Magonza onde trabalhava Os aconteci mentos impactaram Holbein o Jovem a tal ponto que ele abandonou a Basileia cidade dividida pelo conflito religioso Na Suíça na Áustria e no Tirol os artistas também participaram da Guerra Cam ponesa inclusive artistas famosos como Lucas Cranach Cranach o velho e um grande número de pintores e gravadores menores ibidem p 7 Thea afirma que a participação profundamente sentida dos artistas na causa dos camponeses também está demons trada pela revalorização de temas rurais que retratam a vida campesina camponeses dançando animais e flora na arte alemã do século XVI ibidem pp 1215 73 79 80 O campo tinha se animado ele havia adquirido no levante uma personalidade que valia a pena representar ibidem p 155 58 Durante os séculos XVI e XVII os governantes europeus interpretaram e re primiram cada protesto social pelo prisma da guerra campesina e do anabatismo Os ecos da revolução anabatista foram sentidos na Inglaterra elisabetana e na França inspirando severidade e rigorosa vigilância com relação a qualquer desafio à autoridade constituída Anabatista tornouse uma palavra maldita um símbolo de opróbrio e intenção crimino 125 124 Gravura alemã do início do século XVII revelando o credo anabatista na partilha comunitária de bens Ver nota de rodapé 58 ocorrida no mesmo ano da conquista do Peru e celebrada por Albrecht Dürer em seu Monumento aos camponeses vencidos Thea 1998 pp 65 1345 a vingança foi impiedosa Milhares de cadáveres jaziam no chão da Turíngia até a Alsácia nos campos nos bosques em fossos de milhares de castelos desmantelados e incendiados assassinados torturados empalados martirizados ibidem pp 146 153 Mas o relógio não podia andar para trás Em várias regiões da Alemanha e em outros territórios que haviam estado no centro da guerra mantiveramse direitos consuetudinários e até mesmo formas de governo territorial59 sa como comunista nos Estados Unidos da década de 1950 e como terrorista nos dias de hoje 59 Em algumas cidadesEstado mantiveramse as autoridades aldeãs e os pri vilégios Em várias comarcas os camponeses continuaram negandose a pagar dívidas impostos e serviços laborais Me deixavam gritar e não me davam nada queixavase o abade de Schussenried referindose a quem trabalhava em sua terra Blickle 1985 p 172 Na Alta Suábia apesar de a servidão não ter sido abolida algumas das principais demandas dos camponeses em relação aos direitos de herança e matrimônio foram acei tas por meio do Tratado de Memmingen de 1526 No Alto Reno algumas comarcas tam No entanto essa era uma exceção Nos lugares em que não foi possível vencer a resistência dos trabalhadores que se recu savam a voltar à situação de servos a resposta foi a expropriação da terra dos camponeses e a introdução do trabalho assalariado forçado Os trabalhadores que tentavam oferecer seu trabalho de forma independente ou abandonar seus empregadores eram castigados com o encarceramento e até mesmo com a morte em caso de reincidência Na Europa não se desenvolveu um mercado de trabalho livre até o século XVIII e mesmo depois disso o trabalho assalariado contratado só foi obtido após uma intensa luta e para um grupo limitado de pessoas na maioria homens adultos No entanto o fato de que a escravidão e a servidão não puderam ser restabelecidas signifcou que a crise do trabalho que caracterizou a Baixa Idade Média continuou na Europa até a entrada do século XVII agravada pelo fato de que a campanha para maximizar a exploração do trabalho colocou em risco a reprodução da força de trabalho Essa contradição que ainda caracteriza o desenvolvimento capitalista60 explodiu de modo ainda mais dramático nas colônias americanas onde o trabalho as doenças e os castigos disciplinares destruíram dois terços da população original nas décadas imediatamente após a bém chegaram a acordos que eram positivos para os camponeses ibidem pp 1729 Em Berna e Zurique na Suíça a escravidão foi abolida Negociaramse melhorias para o homem comum no Tirol e em Salzburgo ibidem pp 1769 Porém a verdadeira filha da revolução foi a assembleia territorial instituída na Alta Suábia depois de 1525 que assentou as bases para um sistema de autogoverno que perdurou até o século XIX Então surgiram novas assembleias territoriais que realizaram debilmente uma das demandas de 1525 que o homem comum fizesse parte das cortes territoriais junto com a nobreza o clero e os habitantes das cidades Blickle conclui que onde quer que essa causa tenha triunfado não podemos dizer que ali os senhores tenham coroado sua conquista militar com uma vitória política já que o príncipe estava ainda atado ao consentimento do homem comum Somente depois durante a formação do Estado absoluto o príncipe pôde liberarse do consentimento ibidem pp 1812 60 Referindose à crescente pauperização no mundo ocasionada pelo desen volvimento capitalista o antropólogo francês Claude Meillassoux 1981 p 140 em Mulheres celeiros capitais afirmou que essa contradição anuncia uma futura crise para o capitalismo Em última instância o imperialismo como meio para reproduzir força de trabalho barata está levando o capitalismo a uma grave crise já que embora existam milhões de pessoas no mundo que não participam diretamente do emprego capitalista quantos ainda podem devido ao rompimento dos laços sociais à fome e às guerras que causa produzir para sua própria subsistência e alimentar seus filhos 126 Conquista61 A contradição também estava no cerne do tráfco e da exploração do trabalho escravo Milhões de africanos morre ram devido às terríveis condições de vida a que estavam sujeitos durante a travessia62 e nas plantations Nunca na Europa a ex ploração da força de trabalho atingiu proporções tão genocidas exceto sob o regime nazista Ainda assim nos séculos XVI e XVII a privatização da terra e a mercantilização das relações sociais a resposta dos senhores e dos comerciantes à crise econômica também causaram ali uma pobreza e uma mortalidade genera lizadas além de uma intensa resistência que ameaçou afundar a nascente economia capitalista Sustento que esse é o contexto histórico em que se deve situar a história das mulheres e da re produção na transição do feudalismo para o capitalismo porque as mudanças que a chegada do capitalismo introduziu na posição social das mulheres especialmente entre as proletárias seja na Europa seja na América foram impostas basicamente com a fnalidade de buscar novas formas de arregimentar e dividir a força de trabalho Para apoiar essa argumentação neste texto serão traçados 61 A dimensão da catástrofe demográfica causada pelo intercâmbio colom biano continua sendo debatida até hoje As estimativas do declínio da população na América do Sul e na América Central no primeiro século póscolombiano variam muito mas a opinião acadêmica contemporânea é quase unânime em comparar seus efeitos a um holocausto americano André Gunder Frank escreve que em pouco mais de um século a população indígena caiu 90 chegando a 95 no México Peru e em algumas outras regiões 1978 p 43 De forma semelhante Noble David Cook diz que talvez nove milhões de pessoas viviam dentro dos limites delineados pelas fronteiras atuais do Peru Um século depois do contato o número de habitantes remanescentes era mais ou menos uma décima parte dos que estavam ali quando os europeus invadiram o mundo andino Cook 1981 p 116 62 Em inglês a travessia de barcos carregados de escravos da África até a América recebia o nome de Middle Passage Os barcos começavam a viagem na Europa carregados de mercadoria que trocavam por escravos na costa da África Logo empreen diam viagem à América carregados de escravos que vendiam para comprar mercadorias americanas que seriam por sua vez vendidas na Europa Isto é desse circuito triangular o tráfico de escravos ocupava o trajeto intermediário e por isso alguns textos traduzem a expressão por passagem intermediária NTE Camponês desfraldando a bandeira da Liberdade estimado em 1525 129 128 Albrecht Dürer Monumento aos camponeses vencidos 1526 Esta imagem que representa um camponês entronizado sobre uma coleção de objetos de sua vida cotidiana é altamente ambígua Pode sugerir que os camponeses foram traídos ou que eram eles mesmos que deveriam ser tratados como traidores Portanto a imagem foi interpretada tanto como uma sátira dos camponeses rebeldes quanto como uma homenagem à sua força moral O que sabemos com certeza é que Dürer ficou profundamente perturbado pelos eventos de 1525 e como luterano convicto deve ter seguido Lutero em sua condenação da revolta os principais desenvolvimentos que deram forma ao advento do capitalismo na Europa a privatização da terra e a Revolução dos Preços Defendo que nenhuma das duas foi sufciente para pro duzir um processo de proletarização autossustentável Depois examinarei em linhas gerais as políticas que a classe capita lista introduziu com o fm de disciplinar reproduzir e expandir o proletariado iniciando com o ataque contra as mulheres e resultando na construção de uma nova ordem patriarcal que defno como o patriarcado do salário Finalmente indagarei até que ponto a produção de hierarquias raciais e sexuais nas colônias foi capaz de formar um campo de confrontação ou de solidariedade entre mulheres indígenas africanas e europeias e entre mulheres e homens 131 130 Jacques Callot Os horrores da guerra 1633 Gravura em metal Os homens enforcados pelas autoridades militares eram soldados que viraram ladrões Exsoldados eram uma parte importante do contingente de vagabundos e mendigos que lotava as estradas da Europa do século XVII A PRIVATIZAÇÃO DA TERRA NA EUROPA A PRODUÇÃO DE ESCASSEZ E A SEPARAÇÃO ENTRE PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO Desde o começo do capitalismo a guerra e a privatização da terra empobreceram a classe trabalhadora Este fenômeno foi internacional Em meados do século XVI os comerciantes euro peus haviam expropriado boa parte da terra das Ilhas Canárias para transformála em plantations de canadeaçúcar O maior processo de privatização e cercamento de terras ocorreu no con tinente americano onde no início do século XVII os espanhóis tinham se apropriado de um terço das terras comunais indíge nas sob o sistema da encomienda A caça de escravos na África trouxe como consequência a perda de terras porque privou muitas comunidades de seus melhores jovens Na Europa a privatização da terra começou no fnal do século XV coincidindo com a expansão colonial Ela assumiu formas diferentes despejo de inquilinos aumento de aluguel e impostos elevados por parte do Estado o que levou ao endi vidamento e à venda de terras Defno todos esses processos como expropriação de terra porque mesmo quando a força não era usada a perda da terra se dava contra a vontade do indivíduo ou da comunidade solapando sua capacidade de subsistência Duas formas de expropriação de terra devem ser mencionadas a guerra cujo caráter mudou nesse período uma vez que passou a ser usada como meio para transformar arranjos territoriais e econômicos e a reforma religiosa Antes de 1494 o confito bélico na Europa havia consistido principalmente em guerras menores caracterizadas por cam panhas breves e irregulares Cunningham e Grell 2000 p 95 Elas frequentemente ocorriam no verão para dar tempo aos camponeses que formavam a maior parte dos exércitos de se mear seus cultivos os exércitos se enfrentavam durante longos períodos sem que houvesse muita ação No entanto no século XVI as guerras tornaramse mais frequentes e apareceu um novo tipo de confito em parte devido à inovação tecnológica mas principalmente porque os Estados europeus começaram a recorrer à conquista territorial para resolver suas crises econô micas fnanciados por ricos investidores As campanhas milita res tornaramse muito mais longas Os exércitos cresceram dez vezes em tamanho tornandose permanentes e profssionais63 Foram contratados mercenários que não tinham nenhum laço com a população O objetivo da guerra começou a ser a elimi nação do inimigo de tal maneira que deixava em sua esteira vilarejos abandonados campos cobertos de cadáveres fome e 63 Sobre as mudanças na natureza da guerra na Europa moderna ver Cunnin gham e Grell 2000 pp 95102 e Kaltner 1998 Cunningham e Grell 2000 p 95 es crevem Em 1490 um exército grande era formado por 20 mil homens em 1550 tinha duas vezes esse tamanho enquanto até o final da Guerra dos Trinta Anos os principais Estados europeus tinham exércitos terrestres de cerca de 150 mil homens 133 132 epidemias como em Os quatro cavaleiros do Apocalipse 1498 de Albrecht Dürer64 Esse fenômeno cujo impacto traumático sobre a população foi refetido em numerosas representações artísticas mudou a paisagem agrária da Europa Muitos contratos de arrendamento também foram anulados quando terras da Igreja foram confscadas durante a Reforma que começou com uma apropriação de terras massiva por parte da classe alta Na França um apetite comum pelas terras da Igreja inicialmente uniu classes baixas e altas no movimento protestante mas quando a terra foi leiloada a partir de 1563 os artesãos e os trabalhadores diaristas que haviam exigido a expropriação da Igreja com uma paixão nascida da amargura e da esperança e que haviam se mobilizado sob a promessa de que eles também receberiam a sua parte foram traídos em suas expectativas Le Roy Ladurie 1974 pp 1736 Os camponeses que haviam se tornado protestantes para se livrar dos dízimos também foram enganados Quando defenderam seus direitos declarando que o Evangelho promete terra liberdade e eman cipação foram selvagemente atacados como fomentadores da sedição ibidem p 19265 Na Inglaterra grande parte da terra também mudou de mãos em nome da reforma religiosa W G Hoskin descreveu essa mudança como a maior transferência de terras na história inglesa desde a conquista normanda ou mais sucintamente como O Grande Saque66 Na Inglaterra 64 A gravura de Albrecht Dürer não foi a única representação dos quatro cavalei ros do Apocalipse Há também uma de Lucas Cranach 1522 e uma de Mattheus Merian 1630 As representações de campos de batalha retratando matanças de soldados e civis vilarejos em chamas e filas de corpos enforcados são muitas para serem todas mencio nadas A guerra é provavelmente o tema principal na pintura dos séculos XVI e XVII infiltrandose em cada representação até mesmo nas mais ostensivamente dedicadas a temas sacros 65 Este desenlace põe em evidência os dois espíritos da Reforma um popular e outro elitista que logo se dividiram em linhas opostas Enquanto a ala conservadora da reforma insistia nas virtudes do trabalho e da acumulação de riquezas a ala popular exi gia uma sociedade governada pelo amor piedoso pela igualdade e pela solidariedade Sobre as dimensões de classe da Reforma ver Henry Heller 1986 e PoChia Hsia 1988 66 Hoskins 1976 pp 1213 Na Inglaterra a Igreja préReforma havia concen trado de 25 a 30 da propriedade Henrique VIII vendeu 60 das suas terras Hoskins 1976 pp 1213 Quem mais ganhou com o confisco e teve maior entusiasmo com o cer todavia a privatização da terra foi realizada basicamente por meio de cercamentos um fenômeno que foi associado de tal modo com a expropriação dos trabalhadores da sua riqueza coletiva que em nosso tempo é usado por militantes anticapi talistas como um signifcante para cada ataque sobre os direitos sociais67 No século XVI cercamento era um termo técnico que indicava o conjunto de estratégias usadas pelos lordes ingleses e pelos fazendeiros ricos para eliminar o uso comum da terra e expandir suas propriedades68 Referiase sobretudo à abolição camento das terras adquiridas não foi a antiga nobreza nem aqueles que dependiam dos espaços comuns para se manter mas a pequena nobreza proprietária de terras gentry e os homens novos especialmente advogados e comerciantes que personificavam a avareza na imaginação campesina Cornwall 1977 pp 228 Era contra esses homens novos que os camponeses se inclinavam a extravasar sua fúria A tabela Kridte 1983 p 60 registra um excelente retrato da situação ilustrando quem foram os vencedores e os perdedores na grande transferência de terras ocorrida durante a Reforma Inglesa Ela mostra que entre 20 e 25 da terra em mãos da Igreja se transformaram em proprieda de da gentry As colunas seguintes são as mais relevantes DISTRIBUIÇÃO DA TERRA POR GRUPO SOCIAL NA INGLATERRA E NO PAÍS DE GALES 1436 EM EXCLUINDO GALES 1690 EM GRANDES PROPRIETÁRIOS 1520 1520 GENTRY 25 4550 PEQUENOS PROPRIETÁRIOS 20 2533 IGREJA E COROA 2530 510 Sobre as consequências da Reforma na Inglaterra no que concerne à propriedade da terra ver também Christopher Hill 1958 p 41 que escreve Não é necessário idealizar as abadias como proprietárias indulgentes para admitir certa verdade nas acusações contemporâneas de que os novos compradores diminuíram os contratos de arrendamento arruinaram os aluguéis e desalojaram os inquilinos Não sabes disse John Palmer a um grupo de arrendatários que estava desalojando que a graça do rei degradou todas as casas dos monges dos frades e das freiras Portanto não terá che gado o momento em que nós gentlemen degradaremos as casas desses pobres patifes 67 Ver Midnight Notes 1990 Notas da meianoite também The Ecologist 1993 O Ecologista e o debate em curso sobre cercamentos e o comum em The Commoner disponível em wwwcommonerorguk especialmente o número 2 setem bro de 2001 e o número 3 janeiro de 2002 68 Antes de mais nada cercamento queria dizer envolver um pedaço de terra com cercas canais ou outras barreiras ao livre trânsito de homens e animais em que a cerca era marca de propriedade e ocupação exclusiva de um terreno Portanto por meio do cercamento o uso coletivo da terra geralmente acompanhando por algum grau de propriedade comunal seria abolido suplantado pela propriedade individual e pela ocupa ção isolada G Slater 1968 pp 12 Havia uma variedade de meios para se abolir o uso 135 134 do sistema de campos abertos openfeld system um acordo pelo qual os aldeões possuíam faixas de terra não contíguas num campo sem cercas Cercar incluía também o fechamento das terras comunais e a demolição dos barracos dos camponeses que não tinham terra mas podiam sobreviver graças a seus direitos consuetudinários69 Grandes extensões de terra também foram cercadas para criar reservas de veados ao passo que vilarejos inteiros foram derrubados para serem transformados em pasto Embora os cercamentos tenham continuado até o século XVIII Neeson 1993 antes mesmo da Reforma mais de duas mil comunidades rurais foram destruídas dessa maneira Fryde 1996 p 185 A extinção dos vilarejos rurais foi tão severa que a Coroa ordenou uma investigação em 1518 e outra em 1548 Porém apesar da nomeação de várias comissões reais pouco se fez para deter essa tendência Começou então uma luta intensa culminando em numerosos levantes acompanhados por um extenso debate sobre os méritos e deméritos da privatização da terra que continua até os dias atuais revitalizado pela investida do Banco Mundial sobre os últimos bens comuns do planeta Resumidamente o argumento oferecido pelos moderni zadores de todas as posições políticas é que os cercamentos coletivo da terra nos séculos XV e XVI As vias legais eram i a compra por uma pessoa de todos os lotes alugados e de seus direitos acessórios ii a emissão por parte do rei de uma licença especial para cercar ou a aprovação de uma lei de cercamento pelo Parlamento iii um acordo entre o proprietário e os inquilinos incorporado num decreto da Chancery corte especializada em assuntos civis NTE iv a realização de cercamentos parciais de terrenos baldios por parte dos lordes sob as disposições dos Estatutos de Merton 1235 e Westminster 1285 Roger Manning destaca no entanto que esses métodos legais escondiam muitas vezes o uso da força a fraude e a intimidação contra os inquilinos Manning 1998 p 25 E D Fryde também escreve que o assédio prolongado aos in quilinos combinado com ameaças de despejo à mínima oportunidade legal e a violência física foram usados para provocar despejos em massa particularmente durante os anos de desordem entre 1450 e 1485 isto é no período da Guerra das Duas Rosas Fryde 1996 p 186 Em Utopia 1516 Thomas More expressou a angústia e a desolação geradas por essas expulsões em massa quando falou de certas ovelhas que haviam se tornado tão gulo sas e selvagens que comiam e engoliam os próprios homens Ovelhas acrescentou que consomem e destroem e devoram campos inteiros casa e cidades 69 Em The Invention of Capitalism 2000 p 38 e segs A invenção do capita lismo Michael Perelman ressaltou a importância dos direitos consuetudinários por exemplo a caça que eram muitas vezes de vital importância marcando a diferença entre a sobrevivência e a indigência total estimularam a efciência agrícola e que os deslocamentos pro vocados foram compensados com um crescimento signifcativo da produtividade da terra Afrmase que a terra estava esgo tada e que se tivesse permanecido nas mãos dos pobres teria deixado de produzir antecipando a tragédia dos comuns de Garrett Hardin70 enquanto sua aquisição por parte dos ricos permitiu que a terra descansasse Junto com a inovação agrí cola continua o argumento os cercamentos tornaram a terra mais produtiva o que levou à expansão do abastecimento de alimentos Desse ponto de vista qualquer exaltação dos méri tos da posse coletiva da terra é descartada como uma nostalgia pelo passado presumindo que as formas comunais agrárias são retrógradas e inefcientes e que quem as defende sofre de um apego desmedido à tradição71 Entretanto esses argumentos não se sustentam A privatiza ção da terra e a comercialização da agricultura não aumentaram 70 O ensaio de Garrett Hardin sobre A Tragédia dos Comuns 1968 foi um dos pilares da campanha ideológica de apoio à privatização da terra na década de 1970 A tra gédia na versão de Hardin é a inevitabilidade do egoísmo hobbesiano como determinante do comportamento humano Em sua opinião num campo comum hipotético cada pastor quer maximizar seu lucro sem levar em conta as repercussões de sua ação sobre os outros pastores de tal maneira que a ruína é o destino a que todos os homens se apressam cada um perseguindo seu próprio interesse Baden e Nooan 1998 pp 89 71 A defesa dos cercamentos a partir da modernização tem uma longa história mas o neoliberalismo lhe deu novo impulso Seu principal fomentador foi o Banco Mundial que frequentemente exige aos governos da África da Ásia da América Latina e da Oceania que privatizem suas terras comuns como condição para recebimento de empréstimos Banco Mundial 1989 Uma defesa clássica dos ganhos em produtividade derivados dos cercamentos pode ser encontrada em Harriett Bradley 1968 1918 A literatura acadê mica adotou um enfoque a partir de custobenefício mais equânime exemplificado pelos trabalhos de G E Mingay 1997 e Robert s Duplessis 1997 pp 6570 A batalha sobre os cercamentos agora cruzou as fronteiras disciplinares e está sendo discutida também por especialistas em literatura Um exemplo do cruzamento de fronteiras disciplinares está em Richard Burt e John Michael Archer org Enclosure Acts Sexuality Property and Culture in Early Modern England 1994 Atos de cercamento sexualidade propriedade e cultura no início da Inglaterra Moderna especialmente os ensaios de James R Siemon Landlord Not King Agrarian Change and Interarticulation Senhor feudal não rei mu dança agrária e interarticulação e William C Carroll The Nursery of Beggary Enclosure Vagrancy and Sedition in the TudorStuart Period A creche da mendicância cercamento vagabundagem e sedição na era TudorStuart Carroll detectou que houve no período Tudor uma animada defesa dos cercamentos e uma crítica aos campos comuns levada a cabo por portavozes da própria classe que cercava De acordo com esse discurso os cerca mentos fomentavam a empresa privada que por sua vez aumentava a produção agrária enquanto os campos comuns eram os semeadores e receptáculos de ladrões delinquentes e mendigos Carroll 1994 pp 378 137 136 a quantidade de alimentos disponíveis para as pessoas comuns embora tenha aumentado a disponibilidade de comida para o mercado e para a exportação Para os trabalhadores isso representou a instauração de dois séculos de fome da mesma forma que atualmente mesmo nas áreas mais férteis da África da Ásia e da América Latina a desnutrição é endêmica devido à destruição da posse comum da terra e da política de expor tação ou morte imposta pelos programas de ajuste do Banco Mundial Tampouco a introdução de novas técnicas agrícolas na Inglaterra compensou essa perda Pelo contrário o desen volvimento do capitalismo operou em perfeita harmonia com o empobrecimento da população rural Lis e Soly 1979 p 102 Um testemunho da miséria produzida pela privatização da terra é o fato de que apenas um século depois do surgimento do capitalismo agrário sessenta cidades europeias instituíram alguma forma de assistência social ou estavam se movendo nesse sentido ao mesmo tempo que a indigência se tornava um problema internacional ibidem p 87 O crescimento populacio nal pode ter contribuído mas sua importância foi vista de modo exagerado e deve ser circunscrita no tempo Nos últimos anos do século XVI a população estava se estagnando ou diminuindo em quase toda a Europa mas naquela época os trabalhadores não extraíam nenhum benefício dessa mudança Há também erros em relação à efetividade do sistema de agricultura de campos abertos Historiadores neoliberais des creveramno como um desperdício mas até mesmo um partidá rio da privatização da terra como Jean De Vries reconhece que o uso comum dos campos agrícolas tinha muitas vantagens Ele protegia os camponeses do fracasso de uma colheita devido à variedade de faixas de terra a que uma família tinha acesso também permitia um planejamento manejável do trabalho dado que cada faixa requeria atenção em diferentes momen tos e promovia uma forma de vida democrática construída sobre a base do autogoverno e da autossufciência já que todas as decisões quando plantar quando colher quando drenar os pântanos quantos animais seriam permitidos nos campos comuns eram tomadas pelos camponeses em assembleia De Vries 1976 pp 423 Hoskins 1976 pp 112 As mesmas considerações são aplicáveis às terras comu nais Menosprezadas na literatura do século XVI como uma fonte de preguiça e de desordem as terras comunais eram fun damentais para a reprodução de muitos pequenos fazendeiros ou lavradores que sobreviviam apenas porque tinham acesso Festa Rural Todos os festivais os jogos e os encontros da comunidade camponesa tinham lugar nas terras comunais Detalhe de gravura de Daniel Hopfer século XVI 139 138 a pradarias nas quais podiam manter vacas ou bosques dos quais extraíam madeira frutos silvestres e ervas ou pedreiras lagoas onde podiam pescar e espaços abertos para reunirse Além de incentivar as tomadas de decisão coletivas e a coopera ção no trabalho as terras comunais eram a base material sobre a qual podia crescer a solidariedade e a sociabilidade campe sina Todos os festivais os jogos e as reuniões da comunidade camponesa eram realizados nas terras comunais72 A função social das terras comunais era especialmente importante para as mulheres que tendo menos direitos sobre a terra e menos poder social eram mais dependentes das terras comunais para a subsistência a autonomia e a sociabilidade Parafraseando a afrmação de Alice Clark sobre a importância dos mercados para as mulheres na Europa précapitalista é possível dizer que as terras comunais também foram o centro da vida social das mu lheres o lugar onde se reuniam trocavam notícias recebiam conselhos e podiam formar um ponto de vista próprio autô nomo da perspectiva masculina sobre os acontecimentos da comunidade Clark 1968 p 51 Essa rede de relações de cooperação a que R D Tawney se referiu como o comunismo primitivo do vilarejo feudal desmoronou quando o sistema de campos abertos foi abolido e as terras comunais foram cercadas Tawney 1967 Não só a cooperação no trabalho agrícola desapareceu quando a terra foi privatizada e os contratos individuais de trabalho substituíram os coletivos mas também as diferenças econômicas entre a população rural se aprofundaram à medida que aumentou o número de ocupantes ilegais que não tinham nada além de uma cama e uma vaca e a quem não restava outra opção a não 72 Os campos comuns eram os lugares onde se realizavam os festivais populares e outras atividades coletivas como esportes jogos e reuniões Quando foram cercados a sociabilidade que havia caracterizado a comunidade dos vilarejos foi gravemente debi litada Entre os rituais que deixaram de existir estava a rogationtide perambulation uma procissão anual entre os campos com o objetivo de benzer os futuros cultivos que não pôde continuar a acontecer devido aos cercamentos Underdown 1985 p 81 ser ajoelhar e baixar a cabeça para implorar por um emprego Seccombe 1992 A coesão social começou a se decompor73 as famílias se desintegraram os jovens deixaram os vilarejos para se unir à crescente quantidade de vagabundos ou trabalhadores itinerantes que logo se tornaram o principal problema social da época enquanto os idosos eram abandonados à sua pró pria sorte Isso prejudicou principalmente as mulheres mais ve lhas que não contando mais com o apoio de seus flhos caíam nas fleiras dos pobres ou sobreviviam à base de empréstimos pequenos furtos ou atrasando o pagamento de suas dívidas O resultado foi um campesinato polarizado não apenas por desi gualdades econômicas cada vez mais profundas mas também por um emaranhado de ódios e de ressentimentos que está bem documentado nos escritos sobre a caça às bruxas Eles mostram que as discussões relacionadas aos pedidos de ajuda à entrada de animais sem autorização em propriedades alheias e à ina dimplência de aluguéis estavam por trás de muitas acusações Kriedte 1983 p 55 Briggs 1998 pp 289316 Os cercamentos também debilitaram a situação econômica dos artesãos Da mesma forma que as corporações multina cionais se aproveitam dos camponeses cujas terras foram expropriadas pelo Banco Mundial para construir zonas de livre exportação onde as mercadorias são produzidas por menor custo nos séculos XVI e XVII os negociantes capitalistas se apro veitaram da mão de obra barata que se encontrava disponível nas áreas rurais para quebrar o poder das guildas urbanas e destruir a independência dos artesãos Isso aconteceu princi palmente com a indústria têxtil reorganizada como indústria artesanal rural na base do sistema doméstico antecedente 73 Sobre a decomposição da coesão social ver entre outros David Underdown 1985 Revel Riot and Rebellion Popular Politics and Culture in England 16031660 Festas revolta e rebelião política e cultura popular na Inglaterra 16031660 especial mente o capítulo 3 que também descreve os esforços empreendidos pela nobreza mais antiga para se distinguir dos novos ricos 141 140 da atual economia informal também construída sobre o trabalho das mulheres e das crianças74 Porém os trabalhadores têxteis não eram os únicos que tiveram seu trabalho barateado Logo que perderam o acesso à terra todos os trabalhadores lançaramse numa dependência econômica que não existia na época medieval considerandose que sua condição de semter ra deu aos empregadores o poder para reduzir seu pagamento e ampliar o dia de trabalho Em regiões protestantes isso ocorreu sob o disfarce da reforma religiosa que duplicou o ano de traba lho por meio da eliminação dos feriados religiosos Não é surpreendente que com a expropriação da terra vies se uma mudança de atitude dos trabalhadores com relação ao salário Enquanto na Idade Média os salários podiam ser vistos como um instrumento de liberdade em contraste com a obriga toriedade dos serviços laborais começaram a ser vistos como instrumentos de escravidão logo que o acesso à terra chegou ao fm Hill 1975 p 181 e segs75 Tamanho era o ódio que os trabalhadores sentiam pelo tra balho assalariado que Gerrard Winstanley o líder dos Digers76 declarou que se alguém trabalhava por um salário não faria 74 A indústria artesanal foi resultado da extensão da indústria rural no feudo reorganizada por negociantes capitalistas com a finalidade de aproveitar a grande reserva de trabalho liberada pelos cercamentos Com esta manobra os negociantes tentaram alterar os altos salários e o poder das guildas urbanas Foi assim que nasceu o sistema doméstico um sistema pelo qual os capitalistas distribuíam entre as famílias rurais lã ou algodão para fiar ou tecer e frequentemente também os instrumentos de trabalho e depois recolhiam o produto pronto A importância do sistema doméstico e da indústria artesanal para o desenvolvimento da indústria britânica pode ser deduzida do fato de que a totalidade da indústria têxtil o setor mais importante na primeira fase do desenvolvi mento capitalista foi organizada dessa maneira A indústria artesanal apresentava duas vantagens fundamentais para os empregadores evitava o perigo das associações e barateava o custo de trabalho já que sua organização no lar fornecia aos trabalhadores serviços domésticos gratuitos e a cooperação de seus filhos e esposas que eram tratadas como ajudantes e recebiam baixos salários como auxiliares 75 O trabalho assalariado foi tão identificado com a escravidão que os nivelado res levellers que defendiam a igualdade durante a Guerra Civil Inglesa no século XVII excluíam os trabalhadores assalariados do direito ao voto já que não os consideravam suficientemente independentes de seus empregadores para poder votar Por que uma pessoa livre haveria de escravizarse a si mesma perguntava o Zorro um personagem em Mother Hubbards Tale Conto da Mãe Hubbard de Edmund Spenser 1591 76 Diggers escavadores e Ranters faladores resmungões eram os nomes de grupos radicais que atuaram na Revolução Inglesa NTP diferença viver com o inimigo ou com seu próprio irmão Isso explica o crescimento na aurora do processo de cercamento usando o termo num sentido amplo para incluir todas as for mas de privatização da terra da quantidade de vagabundos e homens sem senhor que preferiam sair vagando pelos cami nhos arriscandose à escravidão ou à morte como prescrevia a legislação sangrenta aprovada contra eles a trabalhar por um salário Herzog 1989 pp 455277 Também explica a exte nuante luta que os camponeses realizaram para defender suas terras da expropriação não importa o quão escassas fossem Na Inglaterra as lutas contra o cercamento dos campos co meçaram no fnal do século XV e continuaram durante os séculos XVI e XVII quando a derrubada de cercas se tornou a forma mais importante de protesto social e o símbolo do confito de classes Manning 1988 p 311 Os motins contra os cercamentos se transformavam frequentemente em levantes de massa O mais notório foi a Rebelião de Kett assim chamada por causa de seu líder Robert Kett que se deu em Norfolk em 1549 Não se tratou de uma rusga menor Em seu auge os rebeldes somavam 16 mil contavam com uma artilharia derrotaram um exército do go verno de 12 mil homens e inclusive tomaram Norwich que era então a segunda maior cidade da Inglaterra78 Além disso os re beldes também haviam escrito um programa que se tivesse sido 77 A bibliografia sobre vagabundos é abundante Entre os autores mais impor tantes sobre este tema estão A Beier 1974 e B Geremek com a obra Poverty A History 1994 Pobreza uma história 78 Fletcher 1973 pp 6477 Cornwall 1977 pp 137241 Beer 1982 pp 82139 No início do século XVI a baixa gentry participou de muitos motins utilizando o ódio popular contra cercamentos aquisições e reservas para resolver disputas com seus superiores Porém depois de 1549 diminuiu a capacidade dirigente da pequena nobreza nas querelas sobre os cercamentos e os pequenos proprietários ou os artesãos e aqueles que trabalhavam na indústria artesanal doméstica tomaram a iniciativa nos protestos agrários Manning 1988 p 312 Manning descreve o forasteiro como típica vítima de um motim contra os cercamentos Os comerciantes que tentavam comprar seu ingresso na aristocracia proprietária eram particularmente vulneráveis aos motins contra os cercamentos assim como os fazendeiros que arrendavam terra Em 24 dos 75 casos da Corte da Star Chamber esses motins se dirigiram contra os novos proprietários e os fazen deiros Outros seis casos incluíam proprietários ausentes um perfil muito semelhante Manning 1988 p 50 143 142 colocado em prática teria controlado o avanço do capitalismo agrário e eliminado todos os vestígios do poder feudal no país Consistia em 29 demandas que Kett um fazendeiro e curtidor apresentou ao Lorde Protetor A primeira era que a partir de agora nenhum homem voltará a promover cercamentos Outros artigos exigiam que os aluguéis fossem reduzidos a valores que prevaleceram 65 anos antes que todos os possuidores de títulos pudessem desfrutar dos benefícios de todos os campos comuns e que todos os servos fossem libertados pois Deus fez a todos livres com seu precioso derramamento de sangue Fletcher 1973 pp 1424 Essas demandas foram colocadas em prática Em todo Norfolk cercas foram arrancadas Somente quando outro exército do governo atacou é que os rebeldes se detiveram 3500 foram assassinados no massacre que se seguiu e centenas foram feridos Kett e seu irmão William foram enforcados do lado de fora das muralhas de Norwich No entanto as lutas contra os cercamentos continuaram na época de James I com um evidente aumento da presença das mulheres Manning 1988 pp 967 1146 281 Mendelson e Crawford 1998 Durante seu reinado em torno de 10 dos motins contra os cercamentos incluíram mulheres entre os rebeldes Alguns protestos eram inteiramente femininos Em 1607 por exemplo 37 mulheres lideradas por uma tal Capitã Dorothy atacaram mineiros de carvão que trabalhavam naquilo que as mulheres reivindicavam como sendo os campos comuns do vilarejo de Thorpe Moor Yorkshire Quarenta mulheres foram derrubar as cercas e as barreiras de um cer camento em Waddingham Lincolnshire em 1608 e em 1609 num feudo de Dunchurch Warwickshire quinze mulheres incluindo esposas viúvas solteironas flhas solteiras e criadas se reuniram por sua conta para desenterrar as cercas e tapar os canais ibidem p 97 Novamente em York em maio de 1624 as mulheres destruíram um cercamento e por isso foram para a prisão diziase que haviam desfrutado do tabaco e da cer veja depois de sua façanha Fraser 1984 pp 2256 Mais tar de em 1641 a multidão que irrompeu num pântano cercado em Buckden era formada fundamentalmente por mulheres auxi liadas por meninos ibidem Esses são apenas alguns exemplos de um tipo de confronto em que mulheres portando forcados e foices resistiram ao cercamento de terras ou à drenagem de pântanos quando seu modo de vida estava ameaçado Essa forte presença feminina foi atribuída à crença de que as mulheres estavam acima da lei sendo protegidas legalmente por seus maridos Até mesmo os homens dizse se vestiam como mulheres para arrancar as cercas Porém essa Intitulada Mulheres e valetes a imagem de Hans Sebald Beham estimada em 1530 mostra o cortejo de mulheres que costumava seguir os exércitos inclusive nos campos de batalha As mulheres incluindo esposas e prostitutas cuidavam da reprodução dos soldados Notese a mulher usando uma mordaça 145 144 explicação não pode ser levada muito longe pois o governo não tardou em eliminar esse privilégio e começou a prender e encarcerar as mulheres que participavam nos motins contra os cercamentos79 Além disso não devemos pressupor que as mulheres não tinham seus próprios interesses na resistência à expropriação da terra Pelo contrário Assim como ocorreu com a comutação as mulheres foram as que mais sofreram quando a terra foi perdida e o vilarejo comunitário se desintegrou Isso se deve em parte ao fato de que para elas era muito mais difícil tornarse vagabundas ou trabalhadoras migrantes pois uma vida nômade as expunha à violência masculina especialmente num momento em que a misoginia estava crescendo As mulheres também tinham mo bilidade reduzida devido à gravidez e ao cuidado dos flhos um fato ignorado pelos pesquisadores que consideram que a fuga da servidão por meio da migração e de outras formas de no madismo seja uma forma paradigmática de luta As mulheres tampouco podiam se tornar soldados pagos apesar de algumas terem se unido aos exércitos como cozinheiras lavadeiras prostitutas e esposas80 porém essa opção também desapareceu no século XVII à medida que progressivamente os exércitos foram sendo regulamentados e as multidões de mulheres que costumavam seguilos foram expulsas dos campos de batalha Kriedte 1983 p 55 As mulheres também se viram prejudicadas pelos cerca mentos porque assim que a terra foi privatizada e as relações monetárias começaram a dominar a vida econômica elas 79 A crescente presença das mulheres nos levantes contra os cercamentos era in fluenciada pela crença popular de que a lei não regia as mulheres e de que estas podiam vencer os cercamentos com impunidade Mendelson e Crawford 1998 pp 3867 En tretanto a Corte da Star Chamber fez todo o possível para desacreditar a população sobre tal crença Em 1605 um ano depois da lei sobre bruxaria de Jaime I a Corte sancionou que se as mulheres cometerem as ofensas de entrar sem autorização amotinamento ou outra e se uma ação é trazida contra elas ou seus maridos eles pagarão multas e danos mesmo que a entrada ou a ofensa seja cometida sem o consentimento de seus maridos Manning 1988 p 98 80 Sobre esse tema ver entre outras Maria Mies 1986 passaram a encontrar difculdades maiores do que as dos homens para se sustentar tendo sido confnadas ao trabalho reprodutivo no exato momento em que este trabalho estava sendo absolutamente desvalorizado Conforme veremos esse fenômeno que acompanhou a mudança de uma economia de subsistência para uma monetária pode ser atribuído a diferen tes fatores em cada fase do desenvolvimento capitalista Fica claro todavia que a mercantilização da vida econômica forne ceu as condições materiais para que isso ocorresse Com o desaparecimento da economia de subsistência que havia predominado na Europa précapitalista a unidade entre produção e reprodução típica de todas as sociedades baseadas na produçãoparaouso chegou ao fm conforme essas ativi dades foram se tornando portadoras de outras relações sociais e eram sexualmente diferenciadas No novo regime monetário somente a produçãoparaomercado estava defnida como ati vidade criadora de valor enquanto a reprodução do trabalhador começou a ser considerada como algo sem valor do ponto de vista econômico e inclusive deixou de ser considerada um tra balho O trabalho reprodutivo continuou sendo pago embora em valores inferiores quando era realizado para os senhores ou fora do lar No entanto a importância econômica da repro dução da força de trabalho realizada no âmbito doméstico e sua função na acumulação do capital se tornaram invisíveis sendo mistifcadas como uma vocação natural e designadas como trabalho de mulheres Além disso as mulheres foram excluí das de muitas ocupações assalariadas e quando trabalhavam em troca de pagamento ganhavam uma miséria em compara ção com o salário masculino médio Essas mudanças históricas que tiveram um auge no sécu lo XIX com a criação da fgura da dona de casa em tempo inte gral redefniram a posição das mulheres na sociedade e com relação aos homens A divisão sexual do trabalho que emergiu 147 146 daí não apenas sujeitou as mulheres ao trabalho reprodutivo mas também aumentou sua dependência permitindo que o Estado e os empregadores usassem o salário masculino como instrumento para comandar o trabalho das mulheres Dessa forma a separação efetuada entre a produção de mercadorias e a reprodução da força de trabalho também tornou possível o desenvolvimento de um uso especifcamente capitalista do salário e dos mercados como meios para a acumulação de tra balho não remunerado O que é mais importante a separação entre produção e reprodução criou uma classe de mulheres proletárias que estavam tão despossuídas como os homens mas que diferen temente deles quase não tinham acesso aos salários Em uma sociedade que estava cada vez mais monetizada acabaram sendo forçadas à condição de pobreza crônica à dependência econômica e à invisibilidade como trabalhadoras Como veremos a desvalorização e a feminização do tra balho reprodutivo foi um desastre também para os homens trabalhadores pois a desvalorização do trabalho reprodutivo inevitavelmente desvalorizou o seu produto a força de traba lho Entretanto não há dúvida de que na transição do feuda lismo para o capitalismo as mulheres sofreram um processo excepcional de degradação social que foi fundamental para a acumulação de capital e que permaneceu assim desde então Diante desses fatos é impossível dizer que a separação en tre o trabalhador e a terra e o advento da economia monetária formaram o ponto culminante da luta travada pelos trabalha dores medievais para se libertarem da servidão Não foram os trabalhadores mulheres ou homens que foram libertados pela privatização da terra O que se libertou foi o capital na mesma medida em que a terra estava agora livre para funcionar como meio de acumulação e exploração e não mais como meio de subsistência Libertados foram os proprietários de terra que agora podiam despejar sobre os trabalhadores a maior parte do custo de sua reprodução dandolhes acesso a alguns meios de subsistência apenas quando estavam direta mente empregados Quando não havia trabalho disponível ou esse trabalho não era lucrativo o bastante como por exem plo em épocas de crises comerciais ou agrárias os trabalha dores podiam ao contrário ser despedidos e abandonados à própria sorte para morrer de fome A separação entre os trabalhadores e seus meios de sub sistência assim como sua nova dependência das relações monetárias signifcou também que o salário real agora podia ser reduzido ao mesmo tempo que o trabalho feminino podia ser mais desvalorizado com relação ao masculino por meio da manipulação monetária Não é coincidência então que assim que a terra começou a ser privatizada os preços dos alimentos que durante dois séculos haviam permanecido estacionados passaram a aumentar81 81 Por volta do ano de 1600 o salário real na Espanha havia perdido 30 de seu poder de compra com relação a 1511 Hamilton 1965 p 280 Sobre a Revolução dos Preços ver em particular o trabalho já clássico de Earl J Hamilton American Treasure and the Price Revolution in Spain 15011650 1965 O tesouro americano e a Revo lução dos Preços na Espanha 15011650 que estuda o impacto que tiveram os metais preciosos americanos David Hackett Fischer em The Great Wave Price Revolutions and the Rhythms of History 1996 A grande onda Revoluções dos Preços e os ritmos da his tória estuda os aumentos de preços desde a Idade Média até o presente particularmente no capítulo 2 pp 66113 e o livro compilado por Peter Ramsey The Price Revolution in Sixteenth Century England 1971 A Revolução dos Preços na Inglaterra do século XVI 149 148 A REVOLUÇÃO DOS PREÇOS E A PAUPERIZAÇÃO DA CLASSE TRABALHADORA EUROPEIA Devido às suas devastadoras consequências sociais esse fe nômeno infacionário foi chamado de Revolução dos Preços Ramsey 1971 Ele foi atribuído tanto pelos economistas daquele tempo quanto por posteriores Adam Smith por exemplo à chegada de ouro e prata da América fuindo para a Europa pela Espanha numa corrente colossal Hamilton 1965 p VII No entanto já foi notado que os preços haviam começado a aumentar antes de que esses metais passassem a circular nos mercados europeus Braudel 1966 vol I p 51724 Além disso o ouro e a prata por si mesmos não são capital e poderiam ter sido usados para outros fns como para produzir joias ou cúpulas douradas ou ainda para bordar roupas Se fun cionaram como instrumento para regular os preços capazes de transformar até mesmo o trigo em uma mercadoria preciosa foi porque se inseriram num universo capitalista em desenvolvi mento em que uma crescente porcentagem da população um terço na Inglaterra Laslett 1971 p 53 não tinha acesso à ter ra e precisava comprar os alimentos que antes havia produzido e porque a classe dominante aprendeu a usar o poder mágico do dinheiro para reduzir os custos laborais Em outras palavras os preços aumentaram por causa do desenvolvimento de um sistema de mercado nacional e internacional que estimulava a exportação e a importação de produtos agrícolas e porque os comerciantes acumulavam bens para depois vendêlos por um preço maior Em setembro de 1565 na Antuérpia enquanto os pobres literalmente morriam de fome nas ruas um depósito desmoronou de tão abarrotado que estava de cereais Hacket Fischer 1996 p 88 Foi nessas circunstâncias que a chegada do tesouro ameri cano provocou uma enorme redistribuição da riqueza e um novo processo de proletarização82 Os preços crescentes arruinaram os pequenos fazendeiros que tiveram de renunciar às suas terras para comprar cereais ou pão quando as colheitas não eram capazes de alimentar suas famílias e criaram uma classe de empresários capitalistas que acumularam fortunas pelo investimento na agri cultura e no empréstimo de dinheiro numa época em que possuir dinheiro era para muita gente uma questão de vida ou morte83 82 Assim resume Peter Kriedte 1983 pp 545 os desenvolvimentos econô micos desse período A crise aprofundou as diferenças de renda e de propriedade A pauperização e a proletarização cresceram de forma paralela à acumulação de riqueza Um trabalho sobre Chippenham em Cambridgeshire mostrou que as colheitas ruins de finais do século XVI e começo do XVII levaram a uma mudança decisiva Entre 1544 e 1712 as fazendas de porte médio quase desapareceram Ao mesmo tempo a proporção de propriedades de noventa acres ou mais cresceu de 3 para 14 as casas sem terras aumentaram de 32 para 63 83 Wallerstein 1974 p 83 Le Roy Ladurie 19281929 O crescente interesse dos empresários capitalistas pelo empréstimo foi talvez o motivo subjacente na expulsão dos judeus da maioria das cidades e países da Europa nos séculos XV e XVI Parma 1488 Milão 1489 Genebra 1490 Espanha 1492 e Áustria 1496 As expulsões e os pogroms continuaram durante um século ou mais Até a corrente mudar de rumo com Rodolfo II em 1577 era ilegal para os judeus viver em praticamente toda a Europa Ocidental Logo que o empréstimo se transformou em um negócio lucrativo esta atividade antes declarada indigna de um cristão foi reabilitada como demonstra esse diálogo entre um camponês e um bur guês rico escrito de forma anônima na Alemanha por volta de 1521 G Strauss pp 1101 CAMPONÊS O que me traz até você É que gostaria de ver como passa seu tempo BURGUÊS Como deveria passar meu tempo Estou aqui sentado contando meu dinhei ro não vê CAMPONÊS Digame burguês quem te deu tanto dinheiro que passa todo seu tempo a contálo BURGUÊS Quer saber quem me deu meu dinheiro Vou te contar Um camponês bate em minha porta e me pede que lhe empreste dez ou vinte florins Perguntolhe se possui um terreno de bons pastos ou um campo lindo para arar Ele diz Sim burguês tenho uma boa pradaria e um bom campo os dois juntos valem cem florins Eu lhe respondo Excelente Entregueme como garantia sua pradaria e seu campo e se você se comprometer a pagar um florim por ano como juros pode obter seu empréstimo de vinte florins Contente de ouvir a boa notícia o camponês responde Com prazer lhe darei essa garantia Mas devo dizer replico que se alguma vez deixar de pagar os juros a tempo tomarei posse de sua terra e a tornarei minha propriedade E isso não preocupa o camponês que prossegue empenhando a mim seus pastos e seu campo como garantia Eu emprestolhe o dinheiro e ele paga os juros pontualmente durante um ou dois anos logo vem uma colheita ruim e ele se atrasa em seus pagamentos Confisco sua terra desalojoo e a pradaria e o campo são meus E faço isso não só com os camponeses mas também com os artesãos Se um comerciante é dono de uma casa boa emprestolhe uma soma de dinheiro por ela e dentro de pouco tempo a casa me pertence Desta maneira adquiro uma grande quantidade de propriedades e riqueza e é por isso que passo todo meu tempo contando meu dinheiro CAMPONÊS E eu que pensava que só os judeus praticavam a usura Agora escuto que também os cristãos a praticam BURGUÊS Usura Quem está falando em usura O que o devedor paga são os juros 151 150 A Revolução dos Preços disparou também um colapso histórico nos salários reais comparável ao que vem ocorren do em nossa época na África na Ásia e na América Latina precisamente nos países que sofreram o ajuste estrutural do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional Em 1600 o salário real na Espanha havia perdido 30 de seu poder de compra com relação a 1511 Hamilton 1965 p 280 e seu colap so foi igualmente severo em outros países Enquanto o preço dos alimentos fcou oito vezes maior os salários apenas tripli caram Hackett Fischer 1996 p 74 Isso não foi obra da mão invisível do mercado mas produto de uma política estatal que impedia que os trabalhadores se organizassem enquanto dava aos comerciantes a máxima liberdade com relação ao estabele cimento de preços e ao movimento de mercadorias Como era de se esperar algumas décadas mais tarde o salário real havia perdido dois terços de seu poder de compra tal como mostram as mudanças que repercutiram nas remunerações diárias de um carpinteiro inglês expressas em quilos de cereais entre os séculos XIV e XVIII Slicher Van Bath 1963 p 327 ANOS QUILOS DE CEREAIS 13511400 1218 14011450 1551 14511500 1435 15001550 1224 15511600 830 16011650 483 16511700 741 17011750 946 17511800 796 Levou séculos para que os salários na Europa voltassem ao nível a que haviam chegado na Baixa Idade Média A situação piorou até o ponto em que na Inglaterra em 1550 os artesãos homens tinham que trabalhar quarenta semanas para ganhar o mesmo que ganhavam em quinze no começo do século Na França os salários caíram 60 entre 1470 e 1570 Hackett Fischer 1996 p 7884 O colapso do salário foi especialmente de sastroso para as mulheres No século XIV as mulheres recebiam metade da remuneração de um homem para realizar a mesma tarefa mas em meados do século XVI estavam recebendo ape nas um terço do salário masculino que já se encontrava redu zido e não podiam mais se manter com o trabalho assalariado nem na agricultura nem no setor manufatureiro um fato que sem dúvida é responsável pela gigantesca expansão da pros tituição nesse período85 O que se seguiu foi o empobrecimento absoluto da classe trabalhadora um fenômeno tão difundido e generalizado que em 1550 e muito tempo depois os trabalhado res na Europa eram chamados simplesmente de pobres Provas dessa dramática pauperização são as mudanças ocorridas na dieta dos trabalhadores A carne desapareceu de suas mesas com exceção de uns poucos restos de toucinho as sim como a cerveja e o vinho o sal e o azeite de oliva Braudel 1973 p 127 e segs Le Roy Ladurie 1974 Do século XVI ao XVIII a dieta dos trabalhadores consistiu basicamente em pão a principal despesa de seu orçamento Isso representou um 84 Com relação à Alemanha Peter Kriedte 1983 pp 512 escreve Uma investigação recente mostra que durante as três primeiras décadas do século XVI um trabalhador da construção em Augsburgo Baviera podia manter adequadamente sua mulher e dois filhos com seu salário anual A partir desse momento seu nível de vida começou a piorar Entre 1566 e 1575 e desde 1585 até a eclosão da Guerra dos Trinta Anos seu salário já não podia pagar o mínimo necessário para a subsistência de sua família Sobre o empobrecimento da classe trabalhadora europeia provocado pelos cercamentos e pela Revolução dos Preços ver também C Lis e H Soly 1979 pp 729 que afirmam que na Inglaterra entre 1500 e 1600 os preços dos cereais aumentaram seis vezes enquanto os salários aumentaram três vezes Não é de surpreender que para Francis Bacon os trabalhadores e os camponeses não fossem nada além de mendigos que vão de porta em porta Na França na mesma época a capacidade de compra dos camponeses e dos trabalhadores assalariados caiu 45 Em Newcastle trabalho assalariado e pobreza eram considerados sinônimos ibidem pp 724 85 Sobre o crescimento da prostituição no século XVI ver Nickie Roberts 1992 Whores in History Prostitution in Western Society As putas na história prostituição na sociedade ocidental 153 152 A Revolução dos Preços e a queda do salário real 14801640 A Revolução dos Preços desencadeou um colapso histórico no salário real Em poucas décadas o salário real perdeu dois terços de sua capacidade de compra Até o século XIX o salário real não voltaria ao nível que alcançara no século XV PhelpsBrown e Hopkins 1981 França Índice salarial 14511475 100 Alsácia Índice salarial 14511475 100 Sul da Inglaterra Índice salarial 14511475 100 As consequências sociais da Revolução dos Preços são reveladas por estes gráficos que indicam respectivamente o aumento do preço dos grãos na Inglaterra entre 1490 e 1650 o aumento concomitante dos preços e dos crimes contra a propriedade em Essex Inglaterra entre 1566 e 1622 e a queda da população medida em milhões de pessoas na Alemanha na Áustria na Itália e na Espanha entre 1500 e 1750 preços acusações preços acusações índice de preços Preço anual do grão 14501499 100 comparado com a média de 31 anos Alemanha e Áustria Itália Espanha população milhões 155 154 retrocesso histórico não importa o que pensemos sobre as nor mas alimentares comparado com a abundância de carne que caracterizou a Baixa Idade Média Peter Kriedte escreve que naquela época o consumo anual de carne havia atingido a ci fra de cem quilos por pessoa uma quantidade incrível até mes mo para os padrões atuais No século XIX esta cifra caiu para menos de vinte quilos Kriedte 1983 p 52 Braudel também fala do fm da Europa carnívora citando como testemunha o suábio Heinrich Müller que em 1550 comentou no passado comiase de uma forma diferente na casa de um camponês Naquela época havia abundância de carne e alimentos todos os dias as mesas das feiras e festas dos vilarejos afundavam de tanto peso Hoje tudo realmente mudou Por alguns anos de fato que época de calamidade que preços altos E a comida dos camponeses que estão em melhor situação é quase pior que a comida dos trabalhadores e ajudantes Braudel 1973 p 130 Não somente a carne desapareceu mas também se torna ram recorrentes os períodos de escassez agravados ainda mais nos tempos de colheitas ruins quando a falta de reservas de ce reais fazia com que seu preço subisse às nuvens condenando à fome os habitantes das cidades Braudel 1966 vol I p 328 Foi isso que ocorreu nas décadas de penúria de 1540 e de 1550 e no vamente nas de 1580 e de 1590 que foram umas das piores na história do proletariado europeu coincidindo com distúrbios generalizados e com uma quantidade recorde de julgamentos de bruxas A desnutrição porém também era desenfreada em tempos normais tanto que os alimentos adquiriram um alto va lor simbólico como indicador de privilégio O desejo por comida entre os pobres alcançou proporções épicas inspirando sonhos de orgias pantagruélicas como aquelas descritas por Rabelais em Gargântua e Pantagruel 1522 e causando obsessões apavorantes como a convicção difundida entre os agricultores do nordeste italiano de que as bruxas vagavam pelo campo à noite para se alimentar do gado Mazzali 1988 p 73 De fato a Europa que se preparava para se tornar o prome teico motor do mundo provavelmente levando a humanidade a novos patamares tecnológicos e culturais era um lugar onde as pessoas nunca tinham o sufciente para comer A comida passou a ser um objeto de desejo tão intenso que se acreditava que os pobres vendiam sua alma para o diabo para que ele lhes ajudasse a conseguir alimentos A Europa também era um lugar onde em tempos de más colheitas as pessoas do campo comiam caroços raízes selvagens e cortiça de árvores e multidões erravam pelos campos chorando e gemendo era tanta fome que poderiam devorar brotos nos campos Le Roy Ladurie 1974 ou invadiam as cidades para aproveitar a dis tribuição de cereais ou para atacar as casas e os armazéns dos ricos que por sua vez corriam para conseguir armas e fechar as portas das cidades de modo a manter os famintos do lado de fora Heller 1986 pp 5663 Que a transição para o capitalismo inaugurou um longo período de fome para os trabalhadores na Europa que muito possivelmente terminou devido à expansão econômica gera da pela colonização é algo que também fca demonstrado pelo fato de que enquanto nos séculos XIV e XV a luta dos trabalhadores havia se centrado em torno da demanda por mais liberdade e menos trabalho nos séculos XVI e XVII os trabalhadores foram espoliados pela fome e protagonizaram ataques a padarias e a armazéns e motins contra a exportação das colheitas locais Manning 1988 Fletcher 1973 Cornwall 1977 Beer 1982 Bercé 1990 Lombardini 1983 As autoridades descreviam quem participava desses ataques como inúteis pobres e gente humilde mas a maioria era composta de artesãos que viviam de forma muito precária nessa época 157 156 Eram as mulheres que em geral iniciavam e lideravam as revoltas por comida Na França do século XVII seis dos 31 motins por subsistência estudados por IvesMarie Bercé foram perpe trados exclusivamente por mulheres Nos demais a presença feminina era tão manifesta que Bercé os chama de motins de mulheres86 Ao comentar sobre esse fenômeno na Inglaterra do século XVIII Sheila Rowbotham concluiu que as mulheres se destacaram nesse tipo de protesto por seu papel de cuidadoras de suas famílias Porém as mulheres também foram as mais arrui nadas pelos altos preços já que por terem menos acesso que os homens ao dinheiro e ao emprego dependiam mais da comida barata para sobreviver Por esta razão apesar de sua condição subordinada rapidamente saíam às ruas quando os preços da comida aumentavam ou quando se espalhava o rumor de que se levariam os suprimentos de cereais da cidade Foi o que aconte ceu durante o levante de Córdoba em 1652 que começou cedo pela manhã quando uma mulher pobre foi chorando pelas ruas do bairro pobre levando o corpo de seu flho que havia morrido de fome Kamen 1971 p 364 O mesmo ocorreu em Montpellier no ano de 1645 quando as mulheres saíram às ruas para proteger seus flhos da fome ibidem p 356 Na França as mulheres cercavam as padarias se estivessem convencidas de que os cereais seriam racionados ou se descobrissem que os ricos 86 Kamen 1971 Bercé 1990 16979 Underdown 1985 Como comenta David Underdown 1985 p 117 O papel proeminente das mulheres amotinadas pela comida foi comentado com frequência Em Southampton em 1608 um grupo de mulheres se negou a esperar en quanto a corporação debatia sobre o que fazer com um barco que estava sendo carregado com destino a Londres o abordaram e se apossaram da carga Supõese que as mulheres foram as amotinadas no incidente de Weymouth em 1622 enquanto em Dorchester em 1631 um grupo alguns deles internos de uma casa de trabalho deteve uma carreta acreditando erroneamente que continha trigo um deles queixouse de um comerciante local que despachou para alémmar os melhores frutos da terra inclusive manteiga queijo trigo etc Sobre a presença das mulheres nos motins alimentares ver também Sara Mendelson e Patricia Crawford 1998 que escrevem As mulheres tiveram um papel preponderante nos motins por cereal na Inglaterra Por exemplo em Maldon em 1629 uma mul tidão de mais de cem mulheres e crianças abordaram os barcos para evitar que o cereal fosse despachado Eram liderados por uma tal Capitã Ann Carter que logo foi julgada e enforcada por liderar o protesto ibidem pp 3856 haviam comprado o melhor pão e que o restante era mais min guado ou mais caro Multidões de mulheres pobres se reuniam nas barracas dos padeiros exigindo pão e acusandoos de escon der suas provisões As revoltas estouravam também nas praças onde se realizavam as feiras de cereais ou nas rotas em que iam as carroças com milho para exportação e nas margens dos rios onde os barqueiros eram avistados carregando sacos Nessas ocasiões os amotinados armavam emboscadas para as carroças com forcados e varas os homens levavam os sacos as mulheres juntavam todo cereal que fosse possível em suas saias Bercé 1990 pp 1713 A luta por comida se deu também por outros meios tais como a caça ilegal o roubo dos campos ou casas vizinhas e os ataques às casas dos ricos Em Troyes em 1523 se espalhou Família de vagabundos Gravura de Lucas van Leyden 1520 159 158 o boato de que os pobres teriam tocado fogo nas casas dos ricos preparandose para invadilas Heller 1986 pp 556 Em Mechelen nos Países Baixos as casas dos especuladores foram marcadas com sangue por camponeses furiosos Hackett Fischer 1996 p 88 Não surpreende que os delitos famélicos tornaramse muito preocupantes nos procedimentos disciplina res dos séculos XVI e XVII Um exemplo é a recorrência do tema do banquete diabólico nos julgamentos por bruxaria suge rindo que banquetearse de cordeiro assado pão branco e vinho era agora considerado um ato diabólico se fosse feito por gente comum Mas as principais armas que os pobres tinham à sua disposição na luta pela sobrevivência eram seus próprios corpos famintos como nos tempos em que as hordas de vagabundos e mendigos cercavam os mais abastados meio mortos de fome e doentes empunhando suas armas mostrandolhes suas feridas e forçandoos a viver num constante estado de medo frente à possibilidade de contaminação e à revolta Não se pode cami nhar pela rua ou parar numa praça escreveu um homem de Veneza em meados do século XVII sem que as multidões nos rodeiem pedindo caridade vemos a fome estampada em seus rostos seus olhos como anéis sem joia o estado lamentável de seus corpos cujas peles têm apenas a forma de seus ossos ibi dem p 88 Um século mais tarde em Florença o cenário era o mesmo Era impossível ouvir a missa queixavase um tal G Balducci em abril de 1650 de tanto que se era importunado durante a cerimônia pelos desgraçados desnudos e cobertos por feridas Braudel 1966 vol II pp 734587 87 Os comentários de um médico na cidade italiana de Bérgamo durante a carestia de 1630 tinham um tom similar O ódio e o terror engendrados por uma multidão enlouquecida de gente meio morta que assedia as pessoas nas ruas nas praças nas igrejas nas portas das casas que torna a vida intolerável além do fedor imundo que emana deles e do espetáculo constante dos moribundos só pode acreditar nisso quem já tenha experimentado Citado por Carlo M Cipolla 1993 p 129 A INTERVENÇÃO ESTATAL NA REPRODUÇÃO DO TRABALHO A ASSISTÊNCIA AOS POBRES E A CRIMINALIZAÇÃO DA CLASSE TRABALHADORA A luta por comida não era a única frente na batalha contra a expansão das relações capitalistas Por toda parte as massas resistiam à destruição de suas formas anteriores de existência lutando contra a privatização da terra contra a abolição dos di reitos consuetudinários contra a imposição de novos impostos contra a dependência do salário e contra a contínua presença de exércitos em suas vizinhanças que eram tão odiados a ponto de as pessoas correrem para trancar as portas das cidades na tenta tiva de evitar que os soldados se assentassem junto a elas Na França ocorreram cerca de mil emoções levantes entre as décadas de 1530 e 1670 muitas delas envolvendo pro víncias inteiras e exigindo a intervenção de tropas Goubert 1986 p 205 Inglaterra Itália e Espanha apresentavam um cenário parecido88 o que indica que o mundo précapitalista dos vilarejos que Marx repudiou com a rubrica de idiotia rural pôde produzir um nível de lutas tão elevado quanto qualquer outro que o proletariado industrial tenha travado Na Idade Média a migração a vagabundagem e o aumento 88 Sobre os protestos no século XVI e XVII na Europa ver The Iron Century 1972 O século de ferro de Henry Kamen especialmente o capítulo 10 pp 33185 Popular Rebellion 15501660 Rebelião popular 15501660 Segundo Kamen 1972 p 336 A crise de 15951597 ocorreu em toda a Europa com repercussões na Inglaterra França Áustria Finlândia Hungria Lituânia e Ucrânia Provavelmente nunca antes na história da Europa coincidiram tantas rebeliões ao mesmo tempo Houve rebeliões em Nápoles em 1595 1620 1647 ibidem pp 3345 350 3613 Na Espanha as rebe liões estouraram em 1640 na Catalunha em Granada em 1648 em Córdoba e Sevilha em 1652 Sobre os motins e rebeliões na Inglaterra nos séculos XVI e XVII ver Cornwall 1977 Underdown 1985 e Manning 1988 Sobre as revoltas na Espanha e na Itália ver também Braudel 1976 vol II pp 7389 161 160 dos crimes contra a propriedade eram parte da resistência ao empobrecimento e à despossessão e estes fenômenos alcan çaram proporções massivas Em todas as partes se dermos crédito às queixas das autoridades daquela época os vaga bundos pululavam mudavam de cidade cruzavam fronteiras dormiam nos celeiros ou se apinhavam nas portas das cidades uma vasta humanidade envolvida em sua própria diáspora que durante décadas escapou ao controle das autoridades Só em Veneza foram registrados seis mil vagabundos em 1545 Na Espanha os semteto entulhavam completamente as vias parando em todas as cidades Braudel vol II p 74089 Começando pela Inglaterra sempre pioneira nesses assuntos o Estado promulgou novas leis contra a vagabundagem muito mais severas que prescreviam a escravidão e a pena de morte em casos de reincidência Mas a repressão não foi efetiva e nos séculos XVI e XVII as estradas europeias continuaram sendo lugares de encontros e de grande comoção Por elas passa ram hereges fugindo da perseguição soldados dispensados trabalhadores e outros tipos de gente humilde em busca de emprego e posteriormente artesãos estrangeiros camponeses expulsos de suas terras prostitutas vendedores ambulantes ladrões de galinha e mendigos profssionais Pelas rotas da Europa passaram sobretudo as lendas as histórias e as expe riências de um proletariado em desenvolvimento Enquanto isso os índices de criminalidade também aumentaram até o ponto de podermos supor que uma recuperação e reapropriação da riqueza comunal estava a caminho90 Hoje estes aspectos da transição para o capitalismo podem 89 Sobre a vagabundagem na Europa além de Beier e Geremek ver Braudel 1976 vol II pp 73943 e Kamen 1972 pp 3904 90 Sobre o aumento de delitos contra a propriedade depois da Revolução dos Preços ver gráficos Ver Richard J Evans 1996 p 35 Kamen 1972 pp 397403 e Lis e Soly 1984 Lis e Soly 1984 p 218 escrevem que os dados disponíveis sugerem que na Inglaterra a criminalidade total aumentou de forma acentuada no período elisa betano e na dinastia Stuart especialmente entre 1590 e 1620 parecer pelo menos para a Europa coisas do passado ou como Marx afrmou nos Grundrisse 1973 p 459 Manuscritos econômicos de 18571858 esboços da crítica da economia política précondições históricas do desenvolvimento capitalista que seriam superadas por formas mais maduras do capitalismo A semelhança fundamental entre esses fenômenos e as consequências sociais da nova fase de globalização que testemunhamos hoje no entanto nos diz algo diferente O em pobrecimento as rebeliões e a escalada do crime são elemen tos estruturais da acumulação capitalista na mesma medida em que o capitalismo deve despojar a força de trabalho de seus meios de reprodução para impor seu domínio O fato de que as formas mais extremas de miséria e de rebeldia tenham desaparecido nas regiões europeias que se industrializaram durante o século XIX não é uma prova con trária a tal afrmação A miséria e a rebeldia proletárias não pararam ali apenas diminuíram ao grau em que a superexplo ração dos trabalhadores teve que ser exportada por meio da institucionalização da escravidão num primeiro momento e Vagabundo sendo açoitado pelas ruas Gravura inglesa do século XVI 163 162 posteriormente por meio da expansão da dominação colonial Quanto ao período de transição este continuou sendo na Europa um período de intenso confito social preparando terreno para uma série de iniciativas estatais que a julgar por seus efeitos tiveram três objetivos principais i criar uma força de trabalho mais disciplinada ii dispersar os protestos sociais e iii fxar os trabalhadores nos trabalhos que lhes haviam sido impostos Vamos analisar cada um deles Ao se buscar a disciplina social um ataque foi lançado contra todas as formas de sociabilidade e sexualidade coletivas incluindo esportes jogos danças funerais festivais e outros ritos grupais que haviam servido para criar laços e solidarie dade entre os trabalhadores O ataque foi sancionado por um dilúvio de leis 25 na Inglaterra somente para a regulação de tabernas entre 1601 e 1606 Underdown 1985 pp 478 Peter Burke 1978 em sua obra sobre o assunto explicou esse proces so como uma campanha contra a cultura popular Contudo como podemos notar o que estava em jogo era a dessociali zação ou descoletivização da reprodução da força de trabalho bem como a tentativa de impor um uso mais produtivo do tempo livre Na Inglaterra este processo alcançou seu ápice com a chegada ao poder dos puritanos depois da Guerra Civil 16421649 quando o medo da indisciplina social deu lugar à proibição das reuniões e dos festejos proletários Entretanto a reforma moral foi igualmente intensa nas regiões não protestantes onde no mesmo período as procissões religiosas substituíram os bailes e as cantorias que vinham sendo reali zados dentro e fora das igrejas Até mesmo as relações entre os indivíduos e Deus foram privatizadas nas regiões protestantes por meio da instituição de uma relação direta entre o indivíduo e a divindade nas regiões católicas com a introdução da confs são individual A própria Igreja enquanto centro comunitário deixou de ser a sede de qualquer atividade que não estivesse relacionada com o culto Como resultado o cercamento físico operado pela privatização da terra e o cercamento das terras comunais foram ampliados por meio de um processo de cerca mento social a reprodução dos trabalhadores passou do campo aberto para o lar da comunidade para a família do espaço público a terra comunal a Igreja para o privado91 Em segundo lugar entre 1530 e 1560 foi introduzido um sistema de assistência pública em pelo menos sessenta cidades europeias tanto por iniciativa das prefeituras locais quanto por intervenção direta do Estado central Lis e Soly 1979 p 9292 Seus objetivos exatos ainda são debatidos Enquanto boa parte da literatura sobre a questão vê a introdução da assistência pública como uma resposta para a crise humanitária que colocou em perigo o controle social o acadêmico marxista francês Yann Moulier Boutang insiste em um vasto estudo sobre o trabalho forçado que seu principal objetivo era a grande fxação dos tra balhadores isto é a tentativa de evitar sua fuga do trabalho93 De qualquer modo a introdução da assistência pública foi um momento de infexão na mediação estatal entre os trabalha dores e o capital assim como na defnição da função do Estado 91 Na Inglaterra dentre os momentos de sociabilidade e reprodução coletiva que foram aniquilados com a perda dos campos abertos e das terras comunais encontra vamse as procissões primaveris organizadas com a finalidade de benzer os campos e que não puderam continuar a ser feitos uma vez que foram barrados e as danças que se realizavam em torno da Árvore de Maio no primeiro dia desse mês Underdown 1985 92 Sobre a instituição da assistência pública ver Geremek 1994 Poverty A History Pobreza uma história especialmente o capítulo 4 14277 The Reforme of Charity A reforma da caridade 93 Yann Moulier Boutang De lesclavage au salariat 1998 pp 2913 Da escravidão ao salário Concordo apenas parcialmente com o autor quando argumenta que a ajuda aos pobres não era tanto uma resposta à miséria produzida pela expropria ção da terra e pela inflação dos preços mas uma medida destinada a evitar a fuga dos trabalhadores e criar assim um mercado de trabalho local 1998 Como já mencionei Moulier Boutang superestima o grau de mobilidade que os trabalhadores tinham à sua disposição já que não considera a situação particular das mulheres Mais ainda diminui a importância do fato de que a assistência também fora o resultado de uma luta que não pode ser reduzida à fuga do trabalho mas incluía assaltos invasões de cidades por massas famintas de gente do campo uma constante na França do século XVI e outras formas de ataque Não é coincidência que nesse contexto Norwich centro da rebelião de Kett tenha se tornado pouco tempo depois de sua derrota o centro e o modelo das reformas de assistência aos pobres 165 164 Foi o primeiro reconhecimento da insustentabilidade de um sis tema capitalista regido exclusivamente por meio da fome e do terror Também foi o primeiro passo na construção do Estado como garantidor da relação entre as classes e como supervisor da reprodução e da disciplina da força de trabalho Antecedentes desta função podem ser encontrados no sé culo XIV quando frente à generalização das lutas antifeudais o Estado surgiu como a única organização capaz de enfrentar uma classe trabalhadora regionalmente unifcada armada e que já não limitava suas demandas à política econômica do feudo Em 1351 com a aprovação do Estatuto dos Trabalhadores na Inglaterra que fxou o salário máximo o Estado encarre gouse formalmente da regulação e da repressão do trabalho uma vez que os senhores locais não eram mais capazes de garantilas No entanto foi com a introdução da assistência pública que o Estado começou a reivindicar a propriedade da mão de obra ao mesmo tempo que instituía uma divisão do trabalho capitalista dentro da própria classe dominante Essa divisão permitia que os empregadores renunciassem a qualquer responsabilidade na reprodução dos trabalhadores com a segu rança de que o Estado interviria seja por meio de recompensas seja por meio de punições para encarar as inevitáveis crises Com essa inovação houve um salto também na administração da reprodução social resultando na introdução de registros demográfcos organização de censos registro das taxas de mortalidade e de natalidade e dos casamentos e na aplicação da contabilidade nas relações sociais É exemplar o trabalho dos administradores do Bureau des Pauvres Serviço aos Pobres em Lyon França que no fnal do século XVI aprenderam a cal cular a quantidade de pobres e a quantidade de alimentos que cada criança ou adulto necessitava e a rastrear os falecimentos para assegurar que ninguém pudesse reclamar assistência em nome de uma pessoa morta Zemon Davis 1968 pp 2446 Além dessa nova ciência social foi desenvolvido também um debate internacional sobre a administração da assistência pública que antecipava a atual discussão acerca do bemestar social Apenas os incapacitados para o trabalho descritos como pobres merecedores deviam ser assistidos Ou os trabalhadores saudáveis que não conseguissem arranjar um emprego também deveriam receber ajuda E quanto para mais ou para menos lhes deveria ser dado de modo que não fossem desestimulados a procurar trabalho Essas questões foram cruciais do ponto de vista da disciplina social na medida em que um objetivo fundamental da assistência pública era atar os trabalhadores aos seus empregos Porém nesses assuntos raramente era possível atingir um consenso Enquanto os reformadores humanistas como Juan Luis Vives94 e os portavozes dos burgueses ricos reconheciam os benefícios econômicos e disciplinares de uma distribuição da caridade mais liberal e centralizada embora não indo além da distribuição de pão uma parte do clero se opôs energica mente à proibição das doações individuais De todo modo a assistência apesar das diferenças de sistemas e opiniões foi administrada com tamanha tacanhez que o confito gerado era tão grande quanto o apaziguamento Aqueles que eram assistidos ressentiamse com os rituais humilhantes a eles im postos como carregar o sinal da infâmia antes reservado aos leprosos e aos judeus ou participar na França das procissões anuais dos pobres em que tinham que desflar cantando hinos e carregando velas E protestavam veementemente quando as esmolas não eram prontamente dadas ou eram inadequadas 94 O humanista espanhol Juan Luis Vives conhecedor dos sistemas de ajuda aos pobres de Flandres e da Espanha era um dos principais partidários da caridade pública Em sua obra De Subvention Pauperum 1526 Do socorro aos pobres sustentou que a autoridade secular não a Igreja deve ser responsável pela ajuda aos pobres Geremek 1994 p 187 Vives ressaltou que as autoridades deviam encontrar trabalho para os saudáveis insistindo que os indisciplinados os desonestos os que roubam e os ociosos devem receber o trabalho mais pesado e com pior pagamento a fim de que seu exemplo sirva para dissuadir os outros ibidem 167 166 às suas necessidades Como resposta em algumas cidades francesas foram erigidas forcas durante as distribuições de comida ou exigiase que os pobres trabalhassem em troca de alimentação Zemon Davis 1968 p 249 Na Inglaterra à me dida que avançava o século XVI o recebimento de assistência pública mesmo pelas crianças e idosos foi condicionado ao encarceramento de quem a recebia nas casas de trabalho onde passaram a ser submetidos à experimentação de diferen tes esquemas de trabalho95 Consequentemente o ataque aos trabalhadores que havia começado com os cercamentos e com a Revolução dos Preços levou ao cabo de um século à crimina lização da classe trabalhadora isto é à formação de um vasto proletariado que ou estava encarcerado nas recémconstruídas casas de trabalho e de correção ou se via forçado a buscar a sobrevivência fora da lei vivendo em aberto antagonismo com o Estado sempre a um passo do chicote e da forca Do ponto de vista da formação de uma força de trabalho laboriosa estas medidas foram defnitivamente um fracasso e a constante preocupação com a questão da disciplina social nos círculos políticos dos séculos XVI e XVII indica que os esta distas e os empresários do momento estavam profundamente conscientes disso Ademais a crise social que esse estado gene ralizado de rebelião provocava foi agravada na segunda metade do século XVI por uma nova retração econômica causada em grande medida pela drástica queda populacional na América es panhola após a Conquista e pela redução da economia colonial 95 A principal obra sobre o surgimento das casas de trabalho e de correção é The Prison and the Factory Origins of the Penitentiary System 1981 A prisão e a fábrica as origens do sistema penitenciário de Dario Melossi e Massimo Pavarini Estes autores afirmam que o principal objetivo do encarceramento era quebrar o senso de identidade e solidariedade entre os pobres Ver também Geremek 1994 pp 20629 Sobre os es quemas de trabalho projetados pelos proprietários ingleses para encarcerar os pobres em seus distritos ver Marx 1909 t I p 793 op cit Para o caso da França ver Foucault 1967 História da Loucura na Idade Clássica especialmente o capítulo 2 t I pp 75 125 A Grande Internação DIMINUIÇÃO DA POPULAÇÃO CRISE ECONÔMICA E DISCIPLINAMENTO DAS MULHERES Em menos de um século contando a partir da chegada de Colombo ao continente americano o sonho dos colonizadores de uma oferta infnita de trabalho ecoando a estimativa dos exploradores sobre a existência de uma quantidade infnita de árvores nas forestas americanas foi frustrado Os europeus haviam trazido a morte à América As esti mativas do colapso populacional que afetou a região depois da invasão colonial variam No entanto os especialistas de forma quase unânime comparam seus efeitos a uma espécie de ho locausto americano De acordo com David Stannard 1992 no século que se seguiu à Conquista a população caiu em torno de 75 milhões na América do Sul o que representava 95 de seus habitantes 1992 pp 268305 Esta é também a estimativa de André Gunder Frank que escreve que em menos de um século a população indígena caiu cerca de 90 chegando a 95 no México no Peru e em outras regiões 1978 pp 43 No México a população diminuiu de 11 milhões em 1519 para 65 milhões em 1565 e para mais ou menos 25 milhões em 1600 Wallerstein 1974 p 89 Em 1580 as doenças somadas à brutalidade espanhola haviam matado ou expulsado a maior parte da população das Antilhas e das planícies da Nova Espanha do Peru e do litoral caribenho Crosby 1972 p 38 e logo acabariam com muitos mais no Brasil O clero explicou esse holocausto como sendo um castigo de Deus pelo com portamento bestial dos índios Williams 1986 p 138 mas suas consequências econômicas não foram ignoradas Além disso na década de 1580 a população começou a diminuir também na Europa Ocidental e continuou assim até o início do 169 168 século XVII atingindo seu auge na Alemanha que perdeu um terço de seus habitantes96 Com exceção da Peste Negra 13451348 essa foi uma crise populacional sem precedentes As estatísticas realmente atrozes contam apenas uma parte da história A morte recaiu sobre os pobres Em geral não foram os ricos que morreram quando as pragas ou a varíola arrasaram as cidades mas os artesãos os trabalhadores e os vagabundos Kamen 1972 pp 323 Morreram em tal quantidade que seus corpos pavimenta vam as ruas e as autoridades denunciavam a existência de uma conspiração instigando a população a buscar os malfeitores No entanto também se considerou como fatores do declínio populacional a baixa taxa de natalidade e a relutância dos pobres em se reproduzir É difícil dizer até que ponto essa acusação era justifcada dado que os registros demográfcos antes do século XVII eram bastante desiguais Sabemos no en tanto que no fnal do século XVI a idade de casamento estava aumentando em todas as classes sociais e que no mesmo pe ríodo a quantidade de crianças abandonadas um fenômeno novo começou a crescer Temos também as reclamações dos pastores que do púlpito lançavam a acusação de que a juven tude não se casava e não procriava para não trazer mais bocas ao mundo do que eram capazes de alimentar O ápice da crise demográfca e econômica foram as décadas de 96 Enquanto Hackett Fischer 1996 pp 912 liga a diminuição da população na Europa no século XVII aos efeitos sociais da Revolução dos Preços Peter Kriedte 1983 p 63 apresenta um panorama mais complexo Kriedte defende que o declínio demográ fico se deu por uma combinação de fatores tanto malthusianos quanto socioeconômicos A diminuição foi para este autor uma resposta ao incremento populacional do início do século XVI e à apropriação da maior parte dos rendimentos agrícolas Uma observação interessante a favor de meus argumentos acerca da ligação entre declínio demográfico e políticas estatais prónatalidade foi feita por Robert S Duplessis 1997 p 143 que escreve que a recuperação que seguiu à crise populacional do século XVII foi muito mais rápida que nos anos posteriores à Peste Negra Foi necessário um século para que a popu lação começasse a crescer novamente depois da epidemia de 1348 enquanto no século XVII o processo de crescimento foi retomado em menos de cinquenta anos Essas estima tivas indicariam a presença na Europa do século XVII de uma taxa de natalidade muito mais alta que poderia ser atribuída ao feroz ataque a qualquer forma de contracepção 1620 e 1630 Na Europa assim como em suas colônias os mercados se contraíram o comércio se deteve o desemprego se expandiu e durante um tempo pairou a possibilidade de que a economia capi talista em desenvolvimento entrasse em colapso pois a integração entre as economias coloniais e europeias havia alcançado um pon to em que o impacto recíproco da crise acelerou rapidamente seu curso Essa foi a primeira crise econômica internacional Foi uma Crise Geral como designaram os historiadores Kamen 1972 p 307 e segs Hackett Fischer 1996 p 91 É nesse contexto que o problema da relação entre trabalho população e acumulação de riquezas passou ao primeiro plano do debate e das estratégias políticas com a fnalidade de pro duzir os primeiros elementos de uma política populacional e um regime de biopoder97 A crueza dos conceitos aplicados que às vezes confundem população relativa com população absoluta e a brutalidade dos meios pelos quais o Estado começou a castigar qualquer comportamento que obstruísse o crescimento populacional não deveriam nos enganar a esse respeito O que coloco em discussão é que tenha sido a crise populacional dos séculos XVI e XVII e não a fome na Europa durante o século XVIII tal como defendido por Foucault que transformou a reprodução e o crescimento populacional em assuntos de Estado e objetos principais do discurso intelec tual98 Sustento ademais que a intensifcação da perseguição 97 Biopoder é um conceito usado por Foucault em sua História da Sexualidade Volume I A vontade de saber 1978 para descrever a passagem de uma forma autoritária de governo para uma mais descentralizada baseada no fomento do poder da vida na Europa durante o século XIX O termo biopoder expressa a crescente preocupação em nível estatal pelo controle sanitário sexual e penal dos corpos dos indivíduos assim como a preocupação com o crescimento e os movimentos populacionais e sua inserção no âmbito econômico De acordo com esse paradigma a emergência do biopoder apareceu com a ascensão do liberalismo e marcou o fim do Estado jurídico e monárquico 98 Faço essa distinção a partir dos conceitos foucaultianos de população e biopoder discutidos pelo sociólogo canadense Bruce Curtis Curtis compara o conceito de população relativa populousness que se usava nos séculos XVI e XVII com a noção de população absoluta population que se tornou o fundamento da ciência moderna da demografia no século XIX Curtis destaca que populousness era um conceito orgânico e hierárquico Quando os mercantilistas o usavam estavam preocupados com a parte do corpo social que cria riqueza isto é com trabalhadores reais ou potenciais O conceito 171 170 às bruxas e os novos métodos disciplinares que o Estado adotou nesse período com a fnalidade de regular a procriação e quebrar o controle das mulheres sobre a reprodução têm também origem nessa crise As provas desse argumento são circunstanciais e devese reconhecer que outros fatores tam bém contribuíram para aumentar a determinação da estrutura de poder europeia dirigida a controlar de forma mais estrita a função reprodutiva das mulheres Entre eles devemos incluir a crescente privatização da propriedade e as relações econô micas que dentro da burguesia geraram uma nova ansiedade com relação à paternidade e à conduta das mulheres De forma parecida na acusação de que as bruxas sacrifcavam crianças para o demônio um tema central da grande caça às bruxas dos séculos XVI e XVII podemos interpretar não só uma preo cupação com o declínio da população mas também o medo que as classes abastadas tinham de seus subordinados parti cularmente das mulheres de classe baixa que como criadas mendigas ou curandeiras tinham muitas oportunidades para entrar nas casas dos empregadores e causarlhes dano No en tanto não pode ser apenas coincidência que no momento em que os índices populacionais caíam e em que se formava uma ideologia que enfatizava a centralidade do trabalho na vida econômica tenham se introduzido nos códigos legais europeus sanções severas destinadas a castigar as mulheres considera das culpadas de crimes reprodutivos O desdobramento concomitante de uma crise populacional de uma teoria expansionista da população e da introdução de políticas que promoviam o crescimento populacional está bem do cumentado Em meados do século XVI a ideia de que a quantidade posterior de população é atomístico A população consiste numa quantidade de átomos indiferenciados distribuídos por meio de um espaço e tempo abstratos escreve Curtis com suas próprias leis e estruturas O que procuro argumentar é que há entretanto uma continuidade entre essas duas noções já que tanto no período mercantilista quanto no capitalismo liberal a noção de população absoluta foi funcional à reprodução da força de trabalho de cidadãos determinava a riqueza de uma nação havia se tornado algo parecido a um axioma social Do meu ponto de vista escreveu o pensador político e demonólogo francês Jean Bodin nunca se deveria temer que haja demasiados súditos ou dema siados cidadãos já que a força da comunidade está nos homens Commonwealth Comunidade Livro VI O economista italiano Giovanni Botero 15331617 tinha uma posição mais sofsticada que reconhecia a necessidade de um equilíbrio entre o número de pessoas e os meios de subsistência Ainda assim declarou que a grandeza de uma cidade não dependia de seu tamanho físico nem do circuito de suas muralhas mas exclusivamente do número de residentes A citação de Henrique IV de que a força e a riqueza de um rei estão na quantidade e na opulência de seus cidadãos resume o pensamento demográfco da época99 A preocupação com o crescimento da população pode ser detectada também no programa da Reforma Protestante Rejeitando a tradicional exaltação cristã da castidade os refor madores valorizavam o casamento a sexualidade e até mesmo as mulheres por sua capacidade reprodutiva As mulheres são necessárias para produzir o crescimento da raça humana reconheceu Lutero refetindo que quaisquer que sejam suas debilidades as mulheres possuem uma virtude que anula todas elas possuem um útero e podem dar à luz King 1991 p 115 O apoio ao crescimento populacional chegou ao seu auge com o surgimento do mercantilismo que fez da existência de uma grande população a chave da prosperidade e do poder de uma nação Frequentemente o mercantilismo foi menospreza do pelo saber econômico dominante na medida em que se trata 99 O auge do mercantilismo se deu durante a segunda metade do século XVII Seu domínio na vida econômica esteve associado aos nomes de William Petty 16231687 e Jean Baptiste Colbert o ministro da Fazenda de Luís XIV No entanto os mercantilistas do final do século XVII apenas sistematizaram ou aplicaram teorias que vinham sendo desenvolvidas desde o século XVI Jean Bodin na França e Giovanni Botero na Itália são considerados economistas protomercantilistas Uma das primeiras formulações sistemá ticas da teoria econômica mercantilista encontrase em Englands Treasure by Forraign Trade 1622 Tesouro da Inglaterra pelo comércio exterior de Thomas Mun 173 172 a liberdade e não a coerção Foi uma classe mercantilista que inventou as casas de trabalho perseguiu os vagabundos transportou os criminosos às colônias americanas e investiu no tráfco de escravos sempre afrmando a utilidade da po breza e declarando que o ócio era uma praga social Assim embora não tenha sido reconhecido encontramos na teoria e na prática mercantilistas a expressão mais direta dos requisitos da acumulação primitiva e da primeira política capitalista que trata explicitamente do problema da reprodução da força de trabalho Essa política como vimos teve um aspecto intensi vo que consistia na imposição de um regime totalitário que usava todos os meios para extrair o máximo de trabalho de cada indivíduo independentemente de sua idade e condição Mas também teve um aspecto extensivo que consistia no esforço para aumentar o tamanho da população e desse modo a envergadura do exército e da força de trabalho Como destacou Eli Hecksher um desejo quase fanático por aumentar a população predominou em todos os países durante o período em que o mercantilismo esteve em seu apogeu no fnal do século XVII Hecksher 1966 p 158 Ao mesmo tempo foi estabelecida uma nova concepção dos seres humanos em que estes eram vistos como recursos naturais que trabalhavam e que criavam para o Estado Spengler 1965 p 8 Porém mesmo antes do auge da teoria mercantilista na França e na Inglaterra o Estado adotou um conjunto de medidas prónata listas que combinadas com a assistência pública formaram o embrião de uma política reprodutiva capitalista Aprovaramse leis que bonifcavam o casamento e penalizavam o celibato inspiradas nas que foram adotadas no fnal do Império Romano com o mesmo propósito Foi dada uma nova importância à família enquanto instituiçãochave que assegurava a trans missão da propriedade e a reprodução da força de trabalho Simultaneamente observase o início do registro demográfco Albrecht Dürer O nascimento da Virgem estimado em 1504 O parto era um dos principais eventos na vida de uma mulher e uma ocasião em que a cooperação feminina triunfava de um sistema de pensamento rudimentar e que supõe que a riqueza das nações seja proporcional à quantidade de trabalha dores e de metais preciosos que têm à sua disposição Os meios brutais que os mercantilistas aplicaram para forçar as pessoas a trabalhar em sua ânsia por volume de trabalho contribuiu para que tivessem uma má reputação afnal a maioria dos econo mistas desejava manter a ilusão de que o capitalismo promove 174 e da intervenção do Estado na supervisão da sexualidade da procriação e da vida familiar No entanto a principal iniciativa do Estado com o fm de restaurar a proporção populacional desejada foi lançar uma verdadeira guerra contra as mulheres claramente orientada a quebrar o controle que elas haviam exercido sobre seus corpos e sua reprodução Como veremos mais adiante essa guerra foi travada principalmente por meio da caça às bruxas que literal mente demonizou qualquer forma de controle de natalidade e de sexualidade não procriativa ao mesmo tempo que acusava as mulheres de sacrifcar crianças para o demônio Mas a guerra também recorreu a uma redefnição do que constituía um crime reprodutivo Desse modo a partir de meados do século XVI ao mesmo tempo que os barcos portugueses retornavam da África com seus primeiros carregamentos humanos todos os governos europeus começaram a impor penas mais severas à contracepção ao aborto e ao infanticídio Esta última prática havia sido tratada com certa indulgência na Idade Média pelo menos no caso das mulheres pobres mas agora se tornava um delito sancionado com a pena de morte e castigado com severidade maior do que a aplicada aos crimes masculinos Em Nuremberg no século XVI a pena por infanticídio materno era o afogamento em 1580 ano em que as cabeças cortadas de três mulheres condenadas por infanticídio materno eram pregadas para contemplação pública a sanção foi alterada para decapitação King 1991 p 10100 100 Para uma discussão sobre a nova legislação contra o infanticídio ver entre outros John Riddle 1997 pp 1636 Merry Wiesner 1993 pp 523 e Mendelson e Crawford 1998 p 149 Os últimos escrevem que o infanticídio era um crime que pro A masculinização da prática médica é retratada nesta gravura inglesa de 1651 que mostra um anjo afastando uma curandeira do leito de um homem doente A faixa denuncia sua incompetência Os erros do povo ou erros populares em questões de medicina NTE 177 176 Também foram adotadas novas formas de vigilância para assegurar que as mulheres não interrompessem a gravidez Na França um édito real de 1556 requeria que as mulheres regis trassem cada gravidez e sentenciava à morte aquelas cujos bebês morriam antes do batismo depois de um parto às escondidas não importando se fossem consideradas culpadas ou inocentes de sua morte Estatutos semelhantes foram aprovados na Inglaterra e na Escócia em 1624 e 1690 Também foi criado um sistema de espio nagem com a fnalidade de vigiar as mães solteiras e priválas de qualquer apoio Até mesmo hospedar uma mulher grávida solteira era ilegal por temor de que pudessem escapar da vigilância públi ca e quem fzesse amizade com ela era exposto à crítica pública Wiesner 1993 pp 512 Ozment 1983 p 43 Uma das consequências de tudo isso foi que a mulheres começaram a ser processadas em grande escala e nos séculos XVI e XVII mais mulheres foram executadas por infanticídio do que por qualquer outro crime exceto bruxaria uma acusação que também estava centrada no assassinato de crianças e em outras violações das normas reprodutivas Signifcativamente tanto no caso do infanticídio quanto no de bruxaria aboliram se os estatutos que anteriormente limitavam a atribuição de responsabilidade legal às mulheres Assim as mulheres ingres saram nas cortes da Europa pela primeira vez em nome próprio como legalmente adultas sob a acusação de serem bruxas e vavelmente fora mais cometido pelas mulheres solteiras do que por qualquer outro grupo na sociedade Um estudo do infanticídio no começo do século XVII mostrou que de sessen ta mães cinquenta e três eram solteiras e seis viúvas As estatísticas mostram também que o infanticídio era punido de forma mais frequente do que a bruxaria Margaret King 1991 p 10 escreve que em Nuremberg foram executadas quatorze mulheres por esse crime entre 1578 e 1615 mas apenas uma bruxa Entre 1580 e 1606 o parlamento de Rouen julgou quase tantos casos de infanticídio quanto de bruxaria mas castigou o infanticídio com maior severidade A Genebra calvinista mostra uma maior proporção de execuções por infanticídio do que por bruxaria entre 1590 e 1630 nove mulheres das onze condenadas foram executadas por infanticídio em comparação com apenas uma de trinta suspeitas por bruxaria Estas estimativas são confirmadas por Merry Wiesner 1993 p 52 que escreve que em Genebra por exemplo 25 de 31 mulheres acusadas de infanticídio durante o período de 1595 a 1712 foram executadas em comparação com 19 de 122 acusadas de bruxaria Na Europa mulheres foram executadas por infanticídio até o século XVIII assassinas de crianças Além disso a suspeita que recaiu sobre as parteiras nesse período e que levou à entrada de médicos homens na sala de partos provinha mais do medo que as autoridades tinham do infanticídio do que de qualquer outra preocupação pela suposta incompetência médica das parteiras Com a marginalização das parteiras começou um processo pelo qual as mulheres perderam o controle que haviam exer cido sobre a procriação sendo reduzidas a um papel passivo no parto enquanto os médicos homens passaram a ser consi derados como aqueles que realmente davam vida como nos sonhos alquimistas dos magos renascentistas Com essa mu dança também teve início o predomínio de uma nova prática médica que em caso de emergência priorizava a vida do feto em detrimento da vida da mãe Isso contrastava com o processo de nascimento habitual que as mulheres haviam controlado E para que efetivamente ocorresse a comunidade de mulheres que se reunia em torno da cama da futura mãe teve que ser ex pulsa da sala de partos ao mesmo tempo que as parteiras eram postas sob a vigilância do médico ou eram recrutadas para policiar outras mulheres Na França e na Alemanha as parteiras tinham que se tornar espiãs do Estado se quisessem continuar com a prática Esperavase delas que informassem sobre todos os novos nascimentos que descobrissem os pais de crianças nascidas fora do casamento e que examinassem as mulheres suspeitas de ter dado à luz em segredo Também tinham que examinar as mulheres locais buscando sinais de lactância quando eram encontradas crianças abandonadas nos degraus das igrejas Wiesner 1933 p 52 O mesmo tipo de colaboração era exigida de parentes e vizinhos Nos países e nas cidades protestantes esperavase que os vizinhos espiassem as mulheres e informas sem sobre todos os detalhes sexuais relevantes se uma mulher recebia um homem quando o marido estava ausente ou se 179 178 entrava numa casa com um homem e fechava a porta Ozment 1983 pp 424 Na Alemanha a cruzada prónatalista atingiu tal ponto que as mulheres eram castigadas se não faziam esforço sufciente durante o parto ou se demonstravam pouco entusiasmo por suas crias Rublack 1996 p 92 O resultado destas políticas que duraram duzentos anos as mulheres continuavam sendo executadas na Europa por infanticídio no fnal do século XVIII foi a escravização das mulheres à procriação Enquanto na Idade Média elas podiam usar métodos contraceptivos e haviam exercido um controle indiscutível sobre o parto a partir de agora seus úteros se transformaram em território político controlados pelos ho mens e pelo Estado a procriação foi colocada diretamente a serviço da acumulação capitalista Nesse sentido o destino das mulheres na Europa Ocidental no período de acumulação primitiva foi similar ao das negras nas plantations coloniais americanas que especialmente depois do fm do tráfco de escravos em 1807 foram forçadas por seus senhores a se tornar criadoras de novos trabalhadores A comparação obviamente tem sérios limites As mulheres europeias não estavam abertamente expostas às agressões se xuais embora as mulheres proletárias pudessem ser estupradas com impunidade e castigadas por isso Tampouco tiveram que sofrer a agonia de ver seus flhos levados embora e vendidos em leilão Os ganhos econômicos derivados dos nascimentos a que estavam obrigadas a gerar eram muito mais dissimulados Nesse aspecto a condição de mulher escrava revela de uma forma mais explícita a verdade e a lógica da acumulação capi talista Mas apesar das diferenças em ambos os casos o corpo feminino foi transformado em instrumento para a reprodução do trabalho e para a expansão da força de trabalho tratado como uma máquina natural de criação funcionando de acordo com ritmos que estavam fora do controle das mulheres Esse aspecto da acumulação primitiva está ausente na análise de Marx Com exceção de seus comentários no Manifesto comunista acerca do uso das mulheres na família burguesa como produtoras de herdeiros que garantiam a transmissão da propriedade familiar Marx nunca reconheceu que a procriação poderia se tornar um terreno de exploração e pela mesma razão um terreno de resistência Ele nunca imaginou que as mulheres pudessem se recusar a reproduzir ou que esta recusa pudesse se transformar em parte da luta de classes Nos Grundrisse 1973 p 100 ele argumentou que o desenvolvimento capitalista avança independentemente das taxas populacionais porque em virtude da crescente produtividade do trabalho o trabalho que o capital explora diminui constantemente em relação ao capital constante isto é o capital investido em maquinário e outros bens com a consequente determinação de uma população excedente Mas essa dinâmica que Marx defne como a lei de população típica do modo de produção capitalista O capital t I p 689 e segs só poderia ser imposta se a procriação fosse um processo puramente biológico ou uma atividade que respondesse automaticamente à mudança econômica e se o capital e o Estado não precisassem se preocupar com que as mulheres entrassem em greve contra a produção de crianças De fato este era o pressuposto de Marx Ele reconheceu que o desenvolvimento capitalista foi acompanhado por um crescimento na população cujas causas discutiu ocasionalmente No entanto como Adam Smith ele viu esse aumento como um efeito natural do de senvolvimento econômico No tomo I de O capital contrastou reiteradamente a determinação de um excedente de população com o crescimento natural da população Por que a procriação deveria ser um fato da natureza e não uma atividade histo ricamente determinada carregada de interesses e relações de poder diversas eis uma pergunta que Marx não formulou Tampouco imaginou que os homens e as mulheres poderiam ter 181 180 interesses distintos no que diz respeito a fazer flhos uma ativi dade que ele tratou como um processo indiferenciado neutro do ponto de vista de gênero Na realidade as mudanças na procriação e na população es tão tão longe de ser automáticas ou naturais que em todas as fases do desenvolvimento capitalista o Estado teve que recor rer à regulação e à coerção para expandir ou reduzir a força de trabalho Isso era especialmente verdade no momento em que o capitalismo estava apenas decolando quando os músculos e os ossos dos trabalhadores eram os principais meios de produção Mas mesmo depois e até o presente o Estado não poupou esforços na sua tentativa de arrancar das mãos femininas o controle da reprodução e da determinação sobre onde quando ou em que quantidade as crianças deveriam nascer Como resultado as mulheres foram forçadas frequentemente a pro criar contra sua vontade experimentando uma alienação de seus corpos de seu trabalho e até mesmo de seus flhos mais profunda que a experimentada por qualquer outro trabalhador Martin 1987 pp 1921 Ninguém pode descrever de fato a an gústia e o desespero sofridos por uma mulher ao ver seu corpo se voltando contra si mesma como acontece no caso de uma gravidez indesejada Isso é particularmente verdade naquelas situações em que a gravidez fora do casamento era penalizada com o ostracismo social ou até mesmo com a morte A DESVALORIZAÇÃO DO TRABALHO FEMININO A criminalização do controle das mulheres sobre a procriação é um fenômeno cuja importância não pode deixar de ser enfati zada tanto do ponto de vista de seus efeitos sobre as mulheres quanto por suas consequências na organização capitalista do trabalho Está bem documentado que durante a Idade Média as mulheres haviam contado com muitos métodos contracep tivos que consistiam basicamente em ervas transformadas em poções e pessários supositórios vaginais usados para estimular a menstruação para provocar um aborto ou para criar uma condição de esterilidade Em Eves Herbs A History of Contraception in the West 1997 Ervas de Eva uma história da contracepção no Ocidente o historiador estadunidense John Riddle nos oferece um extenso catálogo das substâncias mais utilizadas e os efeitos esperados ou mais prováveis101 A crimi nalização da contracepção expropriou as mulheres desse saber que havia sido transmitido de geração a geração proporcionan dolhes certa autonomia em relação ao nascimento dos flhos Aparentemente em alguns casos esse saber não foi perdido mas passou à clandestinidade no entanto quando o controle da natalidade apareceu novamente no cenário social os méto dos contraceptivos já não eram do tipo que as mulheres podiam usar mas foram especifcamente criados para o uso masculino Quais foram as consequências demográfcas que se seguiram a partir desta mudança eis uma pergunta que por enquanto não vou tentar responder embora recomende o trabalho de Riddle 1997 para uma discussão sobre o tema Aqui quero apenas ressaltar que ao negar às mulheres o controle sobre 101 Um artigo interessante sobre este tema é The Witches Pharmakopeia 1986 A farmacopeia das bruxas de Robert Fletcher 183 182 seus corpos o Estado privouas da condição fundamental de sua integridade física e psicológica degradando a maternidade à condição de trabalho forçado além de confnar as mulheres à atividade reprodutiva de um modo desconhecido por socieda des anteriores Entretanto forçar as mulheres a procriar contra a sua vontade ou como dizia uma canção feminista dos anos 1970 forçálas a produzir flhas e flhos para o Estado102 é uma defnição parcial das funções das mulheres na nova divisão sexual do trabalho Um aspecto complementar foi a redução das mulheres a não trabalhadoras um processo muito estudado pelas historiadoras feministas e que estava praticamente com pleto até o fnal do século XVII Nessa época as mulheres haviam perdido espaço inclusive em empregos que haviam tradicionalmente ocupado como a fabricação de cerveja e a realização de partos As proletárias em particular encontraram difculdades para obter qualquer emprego além daqueles com status mais baixos empregadas domésticas a ocupação de um terço da mão de obra femini na trabalhadoras rurais fandeiras tecelãs bordadeiras vendedoras ambulantes ou amas de leite Como nos conta Merry Wiesner entre outros ganhava espaço no direito nos registros de impostos nas ordenações das guildas a suposição de que as mulheres não deviam trabalhar fora de casa e de que tinham apenas que participar na produção para ajudar seus maridos Diziase até mesmo que qualquer trabalho feito por mulheres em sua casa era não trabalho e não possuía valor mesmo quando voltado para o mercado Wiesner 1993 p 83 e segs Assim se uma mulher costurava algumas roupas tratavase de trabalho doméstico ou de tarefas de dona de casa mesmo se as roupas não eram para a família enquanto 102 A referência é de uma canção feminista italiana de 1971 intitulada Aborto di Stato Aborto de Estado Esta canção faz parte do álbum Canti de donne in lotta Canções de mulheres em luta lançado em 1974 pelo Grupo Musical do Comitê por um salário para o trabalho doméstico da cidade de Pádua quando um homem fazia o mesmo trabalho se considerava como produtivo A desvalorização do trabalho feminino era tal que os governos das cidades ordenaram às guildas que ignorassem a produção que as mulheres especialmente as Uma prostituta convidando um cliente O número de prostitutas cresceu imensamente como saldo da privatização da terra e da comercialização da agricultura processos que expulsaram muitas camponesas das áreas rurais 185 184 viúvas realizavam em suas casas por não se tratar realmente de trabalho e porque as mulheres precisavam dessa produção para não depender da assistência pública Wiesner acrescenta que as mulheres aceitavam esta fcção e até mesmo se descul pavam por pedir trabalho suplicando por um serviço devido à necessidade de se manterem ibidem pp 845 Rapidamente todo o trabalho feminino quando realizado em casa seria de fnido como tarefa doméstica e até mesmo quando feito fora de casa era pago a um valor menor do que o trabalho masculino nunca o sufciente para que as mulheres pudessem sobreviver dele O casamento era visto como a verdadeira carreira para uma mulher e a incapacidade das mulheres de sobreviverem sozinhas era algo dado como tão certo que quando uma mulher solteira tentava se assentar em um vilarejo era expulsa mesmo se ganhasse um salário Somada à expropriação das terras essa perda de poder com relação ao trabalho assalariado levou à massifcação da pros tituição Como relata Le Roy Ladurie 1974 pp 1123 o cresci mento do número de prostitutas na França e na Catalunha era visível por todas as partes De Avignon a Barcelona passando por Narbona as mulheres libertinas femmes de débauche paravam nas portas das cidades nas ruas dos bairros de luz vermelha e nas pontes de tal modo que em 1594 o tráfco vergonhoso forescia como nunca antes A situação era similar na Inglaterra e na Espanha onde todos os dias chegavam às cidades mulheres pobres do campo Mesmo as esposas de artesãos complementavam a renda fami liar por meio desse trabalho Em Madri em 1631 um panfeto distribuído pelas autoridades políticas denunciava o problema queixandose de que muitas mulheres vagabundas estavam agora perambulando pelas ruas da cidade becos e tavernas atiçando os homens a pecar com elas Vigil 1986 pp 1145 Porém logo que a prostituição se tornou a principal forma de subsistência para uma grande parte da população feminina a atitude institucional a respeito dela mudou Enquanto na Baixa da Idade Média a prostituição havia sido aceita ofcialmente como um mal necessário e as prostitutas haviam se benefciado de um regime de altos salários no século XVI a situação se A prostituta e o soldado Viajando com frequência junto aos acampamentos militares as prostitutas atuavam como esposas para os soldados e para outros proletários lavando e cozinhando além de prover serviços sexuais aos homens 187 inverteu Num clima de intensa misoginia caracterizada pelo avanço da Reforma Protestante e pela caça às bruxas a pros tituição foi inicialmente sujeita a novas restrições e depois criminalizada Por todas as partes entre 1530 e 1560 os bordéis urbanos foram fechados e as prostitutas especialmente aquelas que trabalhavam na rua severamente penalizadas banimento fagelação e outras formas cruéis de reprimendas Entre elas a cadeira de imersão ducking stool ou acabussade peça de teatro macabro como a descreve Nickie Roberts em que as vítimas eram atadas às vezes presas numa jaula e então repetidamente imersas em rios ou lagoas até quase se afogarem Roberts 1992 pp 1156 Enquanto isso na França do século XVI o estupro de prostitutas deixou de ser um crime103 Em Madri também foi decidido que as vagabundas e as prostitutas não estavam autorizadas a permanecer e a dormir nas ruas ou sob os pórticos se fossem pegas em fagrante deveriam receber cem chibatadas e depois ser banidas da cidade por seis anos além de ter a cabeça e as sobrancelhas raspadas O que pode explicar esse ataque tão drástico contra as trabalhadoras E de que maneira a exclusão das mulheres da esfera do trabalho socialmente reconhecido e das relações mo netárias se relaciona com a imposição da maternidade forçada e com a simultânea massifcação da caça às bruxas Quando se consideram esses fenômenos da perspectiva privilegiada do presente depois de quatro séculos de disci plinamento capitalista das mulheres as respostas parecem se impor por si mesmas Embora o trabalho assalariado das mulheres e os trabalhos domésticos e sexuais remunerados ainda sejam estudados com muita frequência isolados uns dos outros agora nos encontramos numa melhor posição para ver 103 Margaret L King 1991 p 78 Women of the Renaissance Mulheres do Re nascimento Sobre o fechamento dos bordéis na Alemanha ver Merry Wiesner 1986 pp 17485 Working Women in Renaissance Germany Mulheres trabalhadoras na Alemanha Renascentista Uma prostituta submetida a um tipo de tortura conhecido como acabussade Ela será imersa no rio várias vezes e então encarcerada pelo resto da vida 189 188 que a discriminação sofrida pelas mulheres como mão de obra remunerada esteve diretamente relacionada à sua função como trabalhadoras não assalariadas no lar Dessa forma podemos relacionar a proibição da prostituição e a expulsão das mulheres do espaço de trabalho organizado com a aparição da fgura da dona de casa e da redefnição da família como lugar para a produção da força de trabalho De um ponto de vista teórico e político entretanto a questão fundamental está nas condições que tornaram possível tal degradação e as forças sociais que a promoveram ou que dela foram cúmplices A resposta aqui é que um importante fator na desvalori zação do trabalho feminino foi a campanha levada a cabo por artesãos a partir do fnal do século XV com o propósito de excluir as trabalhadoras de suas ofcinas supostamente para protegeremse dos ataques dos comerciantes capitalistas que empregavam mulheres a preços menores Os esforços dos artesãos deixaram um abundante rastro de provas104 Tanto na Itália quanto na França e na Alemanha os ofciais artesãos so licitaram às autoridades que não permitissem que as mulheres competissem com eles proibindoas entre seus quadros fze ram greve quando a proibição não foi levada em consideração e negaramse a trabalhar com homens que trabalhavam com mulheres Aparentemente os artesãos estavam interessados também em limitar as mulheres ao trabalho doméstico já que dadas as suas difculdades econômicas a prudente adminis tração da casa por parte de uma mulher estava se tornando para eles uma condição indispensável para evitar a bancarrota e para manter uma ofcina independente Sigfrid Brauner o autor da citação acima fala da importância que os artesãos alemães davam a esta norma social Brauner 1995 pp 967 As 104 Um vasto catálogo dos lugares e dos anos em que as mulheres foram expulsas do artesanato pode ser encontrado em David Herlihy 19781991 Ver também Merry Wiesner 1986 pp 17485 mulheres procuraram resistir a essa investida mas devido às táticas intimidatórias que os trabalhadores usaram contra elas fracassaram Aquelas que ousaram trabalhar fora do lar em um espaço público e para o mercado foram representadas como megeras sexualmente agressivas ou até mesmo como putas Assim como a luta pelas calças a imagem da esposa dominadora desafiando a hierarquia sexual e batendo no marido era um dos alvos favoritos da literatura social dos séculos XVI e XVII Gravura de Martin Treu a partir de Albrecht Dürer século XVII 191 190 ou bruxas Howell 1986 pp 1823105 Com efeito há provas de que a onda de misoginia que no fnal do século XV cresceu nas cidades europeias refetida na obsessão dos homens pela luta pelas calças e pela personagem da esposa desobediente retratada na literatura popular batendo em seu marido ou montando em suas costas como a um cavalo emanou também dessa tentativa contraproducente de tirar as mulheres dos postos de trabalho e do mercado Por outro lado é evidente que essa tentativa não haveria triunfado se as autoridades não tivessem cooperado Obviamente se deram conta de que aquilo era o mais favorável a seus interes ses pois além de pacifcar os ofciais artesãos rebeldes a exclu são das mulheres dos ofícios forneceu as bases necessárias para sua fxação no trabalho reprodutivo e para sua utilização como trabalho mal remunerado na indústria artesanal doméstica 105 Howell 1986 p 182 escreve As comédias e sátiras da época por exemplo retratavam com frequência as mulheres inseridas no mercado e nas oficinas como mege ras com caracterizações que não somente as ridicularizavam ou repreendiam por assumir papéis na produção mercadológica mas frequentemente também chegavam a acusálas de agressão sexual AS MULHERES COMO NOVOS BENS COMUNS E COMO SUBSTITUTO DAS TERRAS PERDIDAS Foi a partir desta aliança entre os artesãos e as autoridades das cidades junto com a contínua privatização da terra que se forjou uma nova divisão sexual do trabalho ou melhor dizen do um novo contrato sexual segundo as palavras de Carol Pateman 1988 que defnia as mulheres em termos mães esposas flhas viúvas que ocultavam sua condição de traba lhadoras e davam aos homens livre acesso a seus corpos a seu trabalho e aos corpos e ao trabalho de seus flhos De acordo com este novo contrato socialsexual as mulhe res proletárias se tornaram para os trabalhadores homens subs titutas das terras que eles haviam perdido com os cercamentos seu meio de reprodução mais básico e um bem comum de que qualquer um podia se apropriar e usar segundo sua vontade Os ecos desta apropriação primitiva podem ser ouvidos no conceito de mulher comum Karras 1989 que no século XVI qualifcava aquelas mulheres que se prostituíam Porém na nova organização do trabalho todas as mulheres exceto as que haviam sido privatizadas pelos homens burgueses tornaramse bens comuns pois uma vez que as atividades das mulheres foram defnidas como não trabalho o trabalho das mulheres começou a se parecer com um recurso natural disponível para todos assim como o ar que respiramos e a água que bebemos Esta foi uma derrota histórica para as mulheres Com sua ex pulsão dos ofícios e a desvalorização do trabalho reprodutivo a pobreza foi feminilizada Para colocar em prática a apropriação primitiva dos homens sobre o trabalho feminino foi construída uma nova ordem patriarcal reduzindo as mulheres a uma dupla dependência de seus empregadores e dos homens O fato de 193 192 que as relações de poder desiguais entre mulheres e homens existiam mesmo antes do advento do capitalismo assim como uma divisão sexual do trabalho discriminatória não foge a esta avaliação Isso porque na Europa précapitalista a subordinação das mulheres aos homens esteve atenuada pelo fato de que elas tinham acesso às terras e a outros bens comuns enquanto no novo regime capitalista as próprias mulheres se tornaram bens comuns dado que seu trabalho foi defnido como um recurso natural que estava fora da esfera das relações de mercado O PATRIARCADO DO SALÁRIO Nesse contexto são signifcativas as mudanças que se deram dentro da família que começou a se separar da esfera pública adquirindo suas conotações modernas enquanto principal cen tro para a reprodução da força de trabalho Complemento do mercado instrumento para a privatização das relações sociais e sobretudo para a propagação da disci plina capitalista e da dominação patriarcal a família surgiu no período de acumulação primitiva também como a instituição mais importante para a apropriação e para o ocultamento do trabalho das mulheres Isso pode ser observado especialmente nas famílias da classe trabalhadora Tratase todavia de um tema pouco estudado As discussões anteriores privilegiaram a família de homens proprietários plausivelmente porque na época a que estamos nos referindo esta era a forma e o modelo dominante de relação com os flhos e entre os cônjuges Também houve maior interesse na família como instituição política do que como lugar de trabalho O que foi enfatizado então foi o fato de que na nova família burguesa o marido tornouse o representante do Estado o encarregado de disciplinar e supervisionar as classes subordinadas uma categoria que para os teóricos políticos dos séculos XVI e XVII por exemplo Jean Bodin incluía a esposa e os flhos Schochet 1975 Daí a identifcação da família com um microestado ou uma mi croigreja assim como a exigência por parte das autoridades de que os trabalhadores e as trabalhadoras solteiros vivessem sob o teto e sob as ordens de um senhor Também é destacado que dentro da família burguesa a mulher perdeu muito de seu poder sendo geralmente excluída dos negócios familiares 195 194 e confnada a supervisionar os cuidados domésticos Mas o que falta nesse retrato é o reconhecimento de que enquanto na classe alta era a propriedade que dava ao marido poder sobre sua esposa e seus flhos a exclusão das mulheres do recebimento de salário dava aos trabalhadores um poder semelhante sobre suas mulheres Um exemplo dessa tendência foi o tipo de família que se formou em torno dos trabalhadores da indústria artesanal no sistema doméstico Longe de evitar o casamento e a formação de uma família os homens que trabalhavam na indústria artesanal doméstica dependiam disso afnal uma esposa podia ajudarlhes com o trabalho que eles realizavam para os comerciantes ao cuidarem de suas necessidades físicas e do provimento dos flhos que desde a tenra idade podiam ser empregados no tear ou em alguma ocupação auxiliar Desse modo até mesmo em tempos de declínio populacional os tra balhadores da indústria doméstica continuaram aparentemente se multiplicando Suas famílias eram tão numerosas que no século XVII um austríaco observando os trabalhadores que moravam em seu vilarejo os descreveu como pardais num poleiro apinhados em suas casas O que se destaca nesse tipo de organização é que embora a esposa trabalhasse junto ao marido produzindo também para o mercado era o marido que recebia o salário da mulher Isso também ocorria com outras trabalhadoras assim que se casavam Na Inglaterra um ho mem casado tinha direitos legais sobre os rendimentos de sua esposa inclusive quando o trabalho que ela realizava era a amamentação Dessa forma quando uma paróquia empre gava uma mulher para fazer esse tipo de trabalho os registros ocultavam frequentemente sua condição de trabalhadoras computando o pagamento em nome dos homens Se o paga mento seria feito ao homem ou à mulher dependia do capricho do administrador Mendelson e Crawford 1998 p 287 Tal política que impossibilitava que as mulheres tivessem seu próprio dinheiro criou as condições materiais para sua sujeição aos homens e para a apropriação de seu trabalho por parte dos trabalhadores homens É nesse sentido que eu falo do patriarcado do salário Também devemos repensar o conceito de escravidão do salário Se é certo que os trabalhadores homens sob o novo regime de trabalho assalariado passaram a ser livres apenas num sentido formal o grupo de trabalhadores que na transição para o capitalismo mais se aproximou da condição de escravos foram as mulheres trabalhadoras Ao mesmo tempo dadas as condições miseráveis em que viviam os trabalhadores assalariados o trabalho doméstico que as mulheres realizavam para a reprodução de suas famílias estava necessariamente limitado Casadas ou não as proletárias precisavam ganhar algum dinheiro o que conseguiam por meio de múltiplos serviços Por outro lado o trabalho doméstico exigia certo capital reprodutivo móveis utensílios vestimentas dinheiro para os alimentos No entanto os trabalhadores assa lariados viviam na pobreza escravizados dia e noite como denunciou um artesão de Nuremberg em 1524 passando fome e alimentando com grande difculdade suas esposas e flhos Brauner 1995 p 96 A maioria praticamente não tinha um teto sobre suas cabeças vivia em cabanas compartilhadas com outras famílias e animais em que a higiene pouco observada até mes mo entre aqueles que estavam em melhor situação faltava por completo suas roupas eram farrapos e no melhor dos casos sua dieta consistia em pão queijo e algumas verduras Dessa forma não encontramos entre a classe trabalhadora neste período a clássica fgura da dona de casa em período integral Foi somente no século XIX como resposta ao primeiro ciclo intenso de lutas contra o trabalho industrial que a família moderna centrada no trabalho reprodutivo em tempo integral e não remunerado da dona de casa se generalizou entre a classe trabalhadora 197 196 primeiro na Inglaterra e mais tarde nos Estados Unidos Seu desenvolvimento após a aprovação das Leis Fabris que limitavam o emprego de mulheres e de crianças nas fábri cas refetiu o primeiro investimento de longo prazo da classe capitalista sobre a reprodução da força de trabalho para além de sua expansão numérica Foi resultado de uma permuta forjada sob a ameaça de insurreição entre a garantia de maiores salários capazes de sustentar uma esposa não trabalhadora e uma taxa mais intensiva de exploração Marx tratou disso como uma mudança da maisvalia absoluta para a relativa isto é uma mudança de um tipo de exploração baseado na máxima extensão da jornada de trabalho e na redução do salário a um mínimo para um regime em que é possível compensar os salários mais altos e as horas de trabalho mais curtas por meio de um aumento da produtividade do trabalho e do ritmo da produção Da perspectiva capitalista foi uma revolução social que passou por cima do antigo comprometimento com baixos salários Foi resultado de um novo acordo entre os trabalha dores e os empregadores novamente baseado na exclusão das mulheres do recebimento de salários colocando um fm no recrutamento de mulheres observado nas primeiras fases da Revolução Industrial Também foi o marco de um novo período de afuência capitalista produto de dois séculos de exploração do trabalho escravo que logo seria potencializado por uma nova fase de expansão colonial Nos séculos XVI e XVII por outro lado apesar de uma obsessiva preocupação com o tamanho da população e com a quantidade de trabalhadores pobres o investimento real na reprodução da força de trabalho era extremamente baixo Consequentemente o grosso do trabalho reprodutivo realizado pelas proletárias não estava destinado às suas famílias mas às famílias de seus empregadores ou então ao mercado Em média um terço da população feminina de Inglaterra Espanha França e Itália trabalhava como criada Assim a tendência no proleta riado era de postergar o casamento e desintegrar a família os vilarejos ingleses do século XVI experimentaram uma diminui ção populacional anual de 50 Com frequência os pobres eram até mesmo proibidos de se casar quando se temia que seus flhos pudessem cair na assistência pública Nesses casos as crianças eram retiradas de sua guarda sendo colocadas para trabalhar na paróquia Estimase que um terço ou mais da população rural da Europa permaneceu solteira nas cidades as taxas eram ainda maiores especialmente entre as mulheres na Alemanha 40 eram solteironas ou viúvas Ozment 1983 pp 412 Contudo dentro da comunidade trabalhadora do período de transição já podemos ver o surgimento da divisão sexual do trabalho que seria típica da organização capitalista embora as tarefas domésticas tenham sido reduzidas ao mínimo e as mu lheres proletárias também tivessem que trabalhar para o mer cado Em seu cerne havia uma crescente diferenciação entre o trabalho feminino e o masculino à medida que as tarefas reali zadas por mulheres e homens se tornavam mais diversifcadas e sobretudo passavam a sustentar relações sociais diferentes Por mais empobrecidos e destituídos de poder os traba lhadores assalariados homens ainda podiam ser benefciados pelo trabalho e pelos rendimentos de suas esposas ou podiam comprar os serviços das prostitutas Ao longo dessa primeira fase de proletarização era a prostituta que realizava com maior frequência as funções de esposa para os trabalhadores homens cozinhando e limpando para eles além de servirlhes sexual mente Ademais a criminalização da prostituição que castigou a mulher mas quase não teve efeitos sobre seus clientes homens reforçou o poder masculino Qualquer homem podia agora destruir uma mulher simplesmente declarando que ela era uma prostituta ou dizendo publicamente que ela havia cedido a seus desejos sexuais As mulheres teriam que suplicar aos homens 199 198 que não lhes tirassem a honra a única propriedade que lhes restava Cavallo e Cerutti 1980 p 346 e segs já que suas vidas estavam agora nas mãos dos homens que como os senhores feudais podiam exercer sobre elas um poder de vida ou morte A DOMESTICAÇÃO DAS MULHERES E A REDEFINIÇÃO DA FEMINILIDADE E DA MASCULINIDADE MULHERES SELVAGENS DA EUROPA Não é surpreendente então diante da desvalorização do trabalho e da condição social femininas que a insubordinação das mulheres e os métodos pelos quais puderam ser domesti cadas estivessem entre os principais temas da literatura e da política social da transição Underdown 1985a pp 11636106 As mulheres não poderiam ter sido totalmente desvalorizadas enquanto trabalhadoras e privadas de toda sua autonomia com relação aos homens se não tivessem sido submetidas a um intenso processo de degradação social e de fato ao longo dos séculos XVI e XVII as mulheres perderam terreno em todas as áreas da vida social Uma destas áreaschave pela qual se produziram grandes mudanças foi a lei Aqui nesse período é possível observar uma constante erosão dos direitos das mulheres107 Um dos direitos mais importantes que as mulheres perderam foi o de realizar atividades econômicas por conta própria como femmes soles Na França perderam o direito de fazer contratos ou de representar a si mesmas nos tribunais tendo sido declaradas legalmente como imbecis Na Itália começaram a aparecer com menos frequência nos tribunais para denunciar abusos 106 Ver Underdown 1985a The Taming of the Scold The Enforcement of Patriarchal Authority in Early Modern England A domesticação das desbocadas A imposição da autoridade patriarcal no início da Inglaterra Moderna em Anthony Fletcher e John Stevenson 1985 pp 11636 Mendelson e Crawford 1998 pp 6971 107 Sobre a perda de direitos das mulheres nos séculos XVI e XVII na Europa ver entre outros Merry Wiesner 1993 p 33 que escreve A difusão do direito romano teve um efeito em grande parte negativo sobre o status legal civil das mulheres no início do período moderno tanto por causa das perspectivas que os próprios juristas adotaram sobre as mulheres a partir do direito romano quanto pela aplicação mais estrita das leis existentes que o direito romano possibilitou 201 200 reconstruídos É possível identifcar duas tendências dentro desse debate Por um lado construíamse novos cânones culturais que maximizavam as diferenças entre as mulheres e os homens criando protótipos mais femininos e mais masculinos Fortunati 1984 Por outro lado foi estabelecido que as mulheres eram ine rentemente inferiores aos homens excessivamente emocionais e Uma resmungona é obrigada a desfilar pela comunidade usando a rédea uma engenhoca de ferro empregada para punir mulheres de língua afiada Significativamente um aparato similar era usado por europeus traficantes de escravos na África para dominar os cativos e transportálos a seus barcos Gravura inglesa do século XVII perpetrados contra elas Na Alemanha quando uma mulher de classe média tornavase viúva passou a ser comum a designa ção de um tutor para administrar seus negócios Também foi proibido às mulheres alemãs que vivessem sozinhas ou com ou tras mulheres No caso das mais pobres não podiam morar nem com suas próprias famílias afnal pressupunhase que não seriam adequadamente controladas Em suma além da desva lorização econômica e social as mulheres experimentaram um processo de infantilização legal A perda de poder social das mulheres expressouse também por meio de uma nova diferenciação sexual do espaço Nos países mediterrâneos as mulheres foram expulsas não apenas de muitos trabalhos assalariados como também das ruas onde uma mulher desacompanhada corria o risco de ser ridicularizada ou atacada sexualmente Davis 1998 Na Inglaterra um paraíso para as mulheres na visão de alguns visitantes italianos a presença delas em público também começou a ser malvista As mulheres inglesas eram dissuadidas de sentarse em frente a suas casas ou de fcar perto das janelas também eram orientadas a não se reu nirem com suas amigas nesse período a palavra gossip fofoca que signifca amiga passou a ganhar conotações depreciativas Inclusive era recomendado às mulheres que não visitassem seus pais com muita frequência depois do casamento Como a nova divisão sexual do trabalho reconfgurou as relações entre homens e mulheres é algo que se pode ver a partir do amplo debate travado na literatura erudita e popular acerca da natureza das virtudes e dos vícios femininos um dos principais caminhos para a redefnição ideológica das relações de gênero na transição para o capitalismo Conhecido desde muito antes como la querelle des femmes o que resulta deste debate é uma curio sidade renovada pela questão indicando que as velhas normas estavam se desmembrando e que o público estava se dando conta de que os elementos básicos da política sexual estavam sendo 203 202 luxuriosas incapazes de se governar e tinham que ser colocadas sob o controle masculino Da mesma forma que ocorreu com a condenação da bruxaria o consenso sobre esta questão atraves sava as divisões religiosas e intelectuais Do púlpito ou por meio da escrita humanistas reformadores protestantes e contrarrefor madores católicos todos cooperaram constante e obsessivamente com o aviltamento das mulheres As mulheres eram acusadas de ser pouco razoáveis vaidosas selvagens esbanjadoras A língua feminina era especialmente culpável considerada um instrumento de insubordinação Porém a principal vilã era a esposa desobediente que ao lado da desbo cada da bruxa e da puta era o alvo favorito de dramaturgos escritores populares e moralistas Nesse sentido A megera doma da 1593 de Shakespeare era um manifesto da época O castigo da insubordinação feminina à autoridade patriarcal foi evocado e celebrado em inúmeras obras de teatro e panfetos A literatura inglesa dos períodos de Elizabeth I e de Jaime I fez a festa com esses temas Obra típica do gênero é Tis a Pity Shes a Whore 1633 Pena que ela é uma prostituta de John Ford que termina com o assassinato a execução e o homicídio didáticos de três das quatro personagens femininas Outras obras clássicas que trataram da disciplina das mulheres são Arraignment of Lewed Idle Forward Inconstant Women 1615 A denúncia de mulheres indecentes ociosas descaradas e inconstantes de John Swetnam e The Parliament of Women 1646 Parlamento de mulheres uma sátira dirigida basicamente contra as mulheres de classe média que as retrata muito ocupadas criando leis para conquistar a supremacia sobre seus maridos108 No mesmo período foram introduzidas 108 Se às obras de teatro e panfletos juntarmos também os registros da corte do período Underdown 1985a p 119 conclui que entre 1560 e 1640 estes registros revelam uma intensa preocupação com as mulheres que são uma ameaça visível para o sistema patriarcal Mulheres discutindo e brigando com seus vizinhos mulheres solteiras que recusam a se dedicar ao serviço doméstico esposas que dominam seus maridos ou batem neles todos aparecem com maior frequência que no período imediatamente ante rior ou posterior Não passa despercebido que esta também é a época em que as acusações de bruxaria atingiram um de seus picos novas leis e novas formas de tortura destinadas a controlar o com portamento das mulheres dentro e fora de casa o que confrma que o vilipêndio literário das mulheres expressava um projeto político preciso com o objetivo de deixálas sem autonomia nem poder social Na Europa da Era da Razão eram colocadas focinhei ras nas mulheres acusadas de serem desbocadas como se fossem cães e elas eram exibidas pelas ruas as prostitutas eram açoitadas ou enjauladas e submetidas a simulações de afogamentos ao pas so que se instaurava a pena de morte para mulheres condenadas por adultério Underdown 1985a p 117 e segs Não é exagero dizer que as mulheres eram tratadas com a mesma hostilidade e com o mesmo senso de distanciamento que se concedia aos índios selvagens na literatura produzida depois da Conquista O paralelismo não é casual Em ambos os casos a depreciação literária e cultural estava a serviço de um projeto de expropriação Como veremos a demonização dos povos indígenas americanos serviu para justifcar sua escravização e o saque de seus recursos Na Europa o ataque contra as mulheres justifcou a apropriação de seu trabalho pelos homens e a criminalização de seu controle sobre a reprodução O preço da resistência era sempre o extermínio Nenhuma das táticas empregadas contra as mulheres europeias e contra os sujeitos coloniais poderia ter obtido êxito se não tivesse sido sustentada por uma campanha de terror No caso das mulheres europeias foi a caça às bruxas que exerceu o papel principal na construção de sua nova função social e na degradação de sua identidade social A defnição das mulheres como seres demoníacos e as práti cas atrozes e humilhantes a que muitas delas foram submetidas deixaram marcas indeléveis em sua psique coletiva e em seu senso de possibilidades De todos os pontos de vista social econômico cultural político a caça às bruxas foi um momento decisivo na vida das mulheres foi o equivalente à derrota histó rica a que alude Engels em A origem da família da propriedade 205 privada e do Estado 1884 como causa do desmoronamento do mundo matriarcal visto que a caça às bruxas destruiu todo um universo de práticas femininas de relações coletivas e de sistemas de conhecimento que haviam sido a base do poder das mulheres na Europa précapitalista assim como a condição ne cessária para sua resistência na luta contra o feudalismo A partir desta derrota surgiu um novo modelo de feminilida de a mulher e esposa ideal passiva obediente parcimoniosa casta de poucas palavras e sempre ocupada com suas tarefas Esta mudança começou no fnal do século XVII depois de as mulheres terem sido submetidas a mais de dois séculos de terrorismo de Estado Uma vez que foram derrotadas a imagem da feminilidade construída na transição foi descartada como uma ferramenta desnecessária e uma nova domesticada ocupou seu lugar Embora na época da caça às bruxas as mulheres tenham sido re tratadas como seres selvagens mentalmente débeis de desejos in saciáveis rebeldes insubordinadas incapazes de autocontrole no século XVIII o cânone foi revertido Agora as mulheres eram retra tadas como seres passivos assexuados mais obedientes e morais que os homens capazes de exercer uma infuência positiva sobre eles Até mesmo sua irracionalidade podia ser valorizada como constatou o flósofo holandês Pierre Bayle em seu Dictionnaire historique et critique 1740 Dicionário histórico e crítico no qual elogiou o poder do instinto materno feminino defendendo que devia ser visto como um mecanismo providencial que assegurava que as mulheres continuassem se reproduzindo apesar das des vantagens do parto e da criação de flhos Frontispício de Parliament of Women 1646 Parlamento das mulheres obra típica da sátira antimulheres que dominou a literatura inglesa no período da Guerra Civil No frontispício se lê Parlamento das Mulheres Com as alegres leis recentemente aprovadas por elas Para viver com maior facilidade pompa orgulho e indecência mas especialmente para que elas possam ter superioridade e dominar seus maridos com um novo modo encontrado por elas de curar qualquer corno velho ou novo e como as duas partes podem recuperar sua honra e honestidade novamente NTE 207 206 COLONIZAÇÃO GLOBALIZAÇÃO E MULHERES Enquanto a resposta à crise populacional na Europa foi a sub jugação das mulheres à reprodução na América onde a coloni zação destruiu 95 da população nativa a resposta foi o tráfco de escravos capaz de prover à classe dominante europeia uma quantidade imensa de mão de obra Já no século XVI aproximadamente um milhão de escravos africanos e trabalhadores indígenas estavam produzindo mais valia para a Espanha na América colonial com uma taxa de exploração muito mais alta que a dos trabalhadores na Europa contribuindo em setores da economia europeia que estavam se desenvolvendo numa direção capitalista Blaut 1992a pp 456109 Em 1600 o Brasil sozinho exportava o dobro de valor em açúcar que toda a lã exportada pela Inglaterra no mesmo ano ibidem p 42 A taxa de acumulação das plantações de cana bra sileiras era tão alta que a cada dois anos as fazendas duplicavam sua capacidade A prata e o ouro também tiveram um papel fun damental na solução da crise capitalista O ouro importado do Brasil reativou o comércio e a indústria na Europa De Vries 1976 p 20 Eram importadas mais de 17000 toneladas em 1640 que davam à classe capitalista uma vantagem excepcional quanto ao acesso a trabalhadores mercadorias e terras Blaut 1992a pp 3840 Contudo a verdadeira riqueza era o trabalho acumulado 109 James Blaut 1992a destaca que apenas umas poucas décadas depois de 1492 a taxa de crescimento e mudança se acelerou dramaticamente e a Europa entrou num período de rápido desenvolvimento Ele diz 1992a p 38 A empresa colonial no século XVI produziu capital de diversas maneiras Uma foi a mineração de ouro e prata Uma segunda foi a agricultura de plantation principalmente no Brasil Uma terceira foi o comércio com a Ásia de especiarias tecidos e muitas outras coisas Um quarto elemento foi o lucro que retornou às casas europeias de uma variedade de empreendimentos produtivos e comerciais na América Um quinto foi a escravatura A acumulação destas receitas foi massiva por meio do tráfco de escravos que tornou possível um modo de produção que não poderia ser imposto na Europa É sabido que o sistema de plantation alimentou a Revolução Industrial como defendido por Eric Williams que destacou que difcilmente tenhase assentado um tijolo em Liverpool e em Bristol sem sangue africano 1944 pp 613 No entanto o capitalismo não poderia sequer ter decolado sem a anexação da América e sem o sangue e suor que durante dois séculos fuíram das plantations para a Europa Devemos enfatizar essa questão na medida em que ela nos ajuda a perceber o quão essencial foi a escravidão para a história do capitalismo e por que periódica mas sistematicamente sempre que o sistema capitalista se vê ameaçado por uma grande crise econômica a classe capitalista tem que pôr em marcha um processo de acumulação primitiva isto é um processo de colonização e escravidão em grande escala como o que testemunhamos atualmente Bales 1999 O sistema de plantations foi decisivo para o desenvolvi mento capitalista não somente pela imensa quantidade de maistrabalho que se acumulou a partir dele mas também por que estabeleceu um modelo de administração do trabalho de produção voltada para a exportação de integração econômica e de divisão internacional do trabalho que desde então tornouse o paradigma das relações de classe capitalistas Com sua imensa concentração de trabalhadores e uma mão de obra cativa arrancada de sua terra e que não podia confar no apoio local a plantation prefgurou não apenas a fábrica mas também o uso posterior da imigração além da globali zação voltada a reduzir os custos do trabalho Em particular a plantation foi um passo crucial na formação de uma divisão internacional do trabalho que por meio da produção de bens de consumo integrou o trabalho dos escravos à reprodução da força de trabalho europeia ao mesmo tempo que mantinha 209 208 os trabalhadores escravizados e os assalariados geográfca e socialmente separados A produção colonial de açúcar chá tabaco rum e algodão as mercadorias mais importantes junto com o pão para a reprodução da força de trabalho na Europa não se desenvol veu em grande escala até depois do decênio de 1650 após a escravidão ter sido institucionalizada e os salários terem come çado modestamente a aumentar Rowling 1987 pp 51 76 85 Devemos mencionar aqui no entanto que quando fnalmente a produção se desenvolveu foram introduzidos dois mecanis mos que reestruturaram de forma signifcativa a reprodução do trabalho em nível internacional De um lado foi criada uma linha de montagem global que reduziu o custo das mercadorias necessárias para produzir a força de trabalho na Europa e que conectou os trabalhadores escravizados e assalariados por meio de modalidades que anteciparam o uso que o capitalismo faz atualmente dos trabalhadores asiáticos africanos e latinoame ricanos como provedores de produtos de bens de consumo baratos ou seja barateados devido aos esquadrões da morte e à violência militar para os países capitalistas avançados Por outro lado nas metrópoles o salário se tornou um veículo pelo qual os bens produzidos pelos trabalhadores escravizados iam parar no mercado isto é um veículo por meio do qual os produtos do trabalho escravo realizavam seu valor Desta forma assim como ocorria com o trabalho doméstico feminino a integração do trabalho escravo à produção e à reprodução da força de trabalho metropolitana foi progressi vamente consolidada O salário se redefniu claramente como instrumento de acumulação como alavanca para mobilizar não somente o trabalho dos trabalhadores remunerados mas tam bém o trabalho de uma multidão de trabalhadores que fcava oculta devido às suas condições não salariais Sabiam os trabalhadores na Europa que estavam comprando produtos do trabalho escravo Se sim se opunham a isso Essa é uma pergunta que gostaríamos de fazer a eles mas que não posso responder O certo é que a história do chá do açúcar do rum do tabaco e do algodão é muito mais impor tante para o surgimento do sistema fabril do que podemos de duzir da contribuição que essas mercadorias tiveram enquanto matériasprimas ou meios de troca no tráfco de escravos Isso porque o que viajava com estas exportações não era apenas o sangue dos escravos mas também as sementes de uma nova ciência da exploração e de uma nova divisão da classe trabalha dora pela qual o trabalho assalariado mais que oferecer uma alternativa ao trabalho escravo foi transformado em depen dente da escravidão enquanto mecanismo para ampliar a parte não remunerada do dia de trabalho assalariado da mesma maneira que o trabalho feminino não remunerado A vida dos trabalhadores escravizados na América e as dos assalariados na Europa estava tão estreitamente conectada que nas ilhas do Caribe onde se davam aos escravos porções de terra provision grounds110 a serem cultivadas para seu próprio consumo a quantidade de terra alocada a eles e a quantidade de tempo que lhes era dado para cultiválas variavam proporcio nalmente ao preço do açúcar no mercado mundial Morrissey 1989 pp 519 o que provavelmente era determinado pela dinâ mica dos salários dos trabalhadores e sua luta pela reprodução No entanto seria um erro concluir que a integração do tra balho escravo à produção do proletariado assalariado europeu criou uma comunidade de interesses entre os trabalhadores europeus e os capitalistas das metrópoles supostamente con solidada pelo seu desejo comum de bens importados baratos Na realidade assim como a Conquista o tráfco de escravos foi uma desgraça histórica para os trabalhadores europeus Como vimos a escravidão bem como a caça às bruxas foi um imenso 110 Roça NTE 211 210 laboratório para a experimentação de métodos de controle do trabalho que logo foram importados à Europa A escravidão afetou também os salários e a situação legal dos trabalhadores europeus não pode ser coincidência que foi só quando terminou a escravi dão que os salários na Europa aumentaram consideravelmente e os trabalhadores europeus conquistaram o direito de se organizar Também é difícil imaginar que os trabalhadores na Europa tenham lucrado com a Conquista da América pelo menos em sua fase inicial Lembremos que a intensidade da luta anti feudal foi o que instigou a nobreza menor e os comerciantes a buscarem a expansão colonial e que os conquistadores saíram das fleiras dos inimigos mais odiados da classe trabalhadora europeia Também é importante lembrar que a Conquista for neceu às classes dominantes a prata e o ouro que elas usaram para pagar os exércitos mercenários que derrotaram as revoltas urbanas e rurais e que nos mesmos anos em que os Aruaque Asteca e Inca eram subjugados os trabalhadores e trabalha doras na Europa eram expulsos de suas casas marcados como animais e queimadas como bruxas Não devemos supor então que o proletariado europeu foi sempre cúmplice do saque na América embora indubitavelmen te tenha havido proletários que de forma individual o foram A nobreza esperava tão pouca cooperação das classes baixas que inicialmente os espanhóis apenas permitiam que uns poucos embarcassem Somente oito mil espanhóis imigraram legalmente à América durante todo o século XVI dos quais o clero represen tava 17 Hamilton 1965 p 299 Williams 1984 pp 3840 Até mesmo posteriormente as pessoas foram proibidas de formarem assentamentos no exterior de forma independente devido ao temor de que pudessem colaborar com a população local Para a maioria dos proletários durante os séculos XVII e XVIII o acesso ao Novo Mundo foi realizado por meio da servi dão por dívidas e pelo degredo a punição que as autoridades inglesas adotaram para livrar o país dos condenados dos dissidentes políticos e religiosos e de uma vasta população de vagabundos e mendigos gerada por causa dos cercamentos Como Peter Linebaugh e Marcus Rediker destacam em The ManyHeaded Hydra 2000 A hidra de muitas cabeças o medo que os colonizadores tinham da migração sem restrições estava bem fundamentado dadas as condições de vida miseráveis que prevaleciam na Europa e a atração que exerciam as notícias que circulavam sobre o Novo Mundo mostrandoo como uma terra milagrosa em que as pessoas viviam livres da labuta e da tirania dos senhores feudais e da ganância e onde não havia lugar para meu e seu já que todas as coisas eram possuídas coletivamente Linebaugh e Rediker 2000 Brandon 1986 pp 67 A atração que o Novo Mundo exercia era tão forte que a visão da nova sociedade que oferecia aparentemente infuen ciou o pensamento político do Iluminismo contribuindo para a emergência de um novo sentido da noção de liberdade como ausência de amo uma ideia que antes era desconhecida para a teoria política europeia Brandon 1986 pp 238 Não é de se surpreender que alguns europeus tentaram perderse neste mundo utópico onde como Linebaugh e Rediker afrmam de modo contundente poderiam reconstruir a experiência perdi da das terras comunais 2000 p 24 Alguns viveram durante anos com as tribos indígenas apesar das restrições que sofriam aqueles que se estabeleciam nas colônias americanas e do alto preço que pagavam aqueles que eram pegos os que escapavam eram tratados como traidores e executados Este foi o destino de alguns dos colonos ingleses na Virgínia que quando foram pegos depois de terem fugido para viver com os indígenas foram condenados pelos conselheiros da colônia a serem queimados quebrados na roda e enforcados ou fuzilados Koning 1993 p 61 O terror criava fronteiras comentam Linebaugh e Rediker 2000 p 34 No entanto em 1699 os 213 212 ingleses continuavam tendo difculdades para convencer aque les que os indígenas haviam tornado cativos a abandonarem seu modo de vida indígena Nenhum argumento nenhuma súplica nenhuma lágrima como comentava um contemporâneo eram capazes de persuadir muitos deles a abandonarem seus amigos indígenas Por outro lado crianças indígenas foram educadas cuidadosamente entre os ingleses vestidas e ensinadas e mesmo assim não há nenhum caso de algum que tenha fcado com eles mas sim que voltaram para suas próprias nações Koning 1993 p 60 Também para os proletários europeus que se vendiam devido à servidão por dívidas ou chegavam ao Novo Mundo para cumprir uma sentença penal a sorte não foi muito dife rente a princípio do destino dos escravos africanos com quem frequentemente trabalhavam lado a lado A hostilidade por seus senhores era igualmente intensa de modo que os donos das plantations os viam como um grupo perigoso tanto que na segunda metade do século XVII começaram a limitar seu uso introduzindo uma legislação destinada a separálos dos africa nos No entanto no fnal do século XVIII as fronteiras raciais foram irrevogavelmente traçadas Moulier Boutang 1998 Até então a possibilidade de alianças entre brancos negros e indí genas bem como o medo dessa união na imaginação da classe dominante europeia tanto na sua terra quanto nas plantations estava constantemente presente Shakespeare deu voz a isso em A tempestade 1611 em que imaginou a conspiração organizada por Calibã o rebelde nativo flho de uma bruxa e por Trínculo e Estéfano os proletários europeus que se lançam a viagens marítimas sugerindo a possibilidade de uma aliança fatal entre os oprimidos e dando um contraponto dramático à capacidade mágica de Próspero em curar a discórdia entre os governantes Em A tempestade a conspiração termina desgraçadamente com os proletários europeus demonstrando que não eram nada mais que ladrõezinhos insignifcantes e bêbados e com Calibã suplicando pelo perdão de seu senhor colonial Assim quando os rebeldes derrotados são levados diante de Próspero e de seus antigos inimigos Sebastião e Antônio agora reconciliados com ele eles se encontram com escárnio e pensamentos de proprie dade e divisão SEBASTIÃO Ah Ah Que coisas ora nos surgem meu senhor Antônio Poderemos comprálas com dinheiro ANTÔNIO Decerto poderemos uma delas é puro peixe e sem nenhuma dúvida vendável no mercado PRÓSPERO Vede apenas senhores as roupagens destes homens Dizeime agora se eles são honestos Esse tipo disforme que ali vedes teve por mãe uma terrível bruxa e de poder tão grande que até mesmo na lua tinha infuência e provocava marés e baixamarés realizando da lua o ofício sem o poder dela Esses três indivíduos me roubaram e aquele meiodiabo pois é flho bastardo já se vê tramou com eles assassinarme Dois desses marotos são vossos conhecidos este bloco de escuridão é minha propriedade Shakespeare A tempestade Ato V Cena I linhas 265276111 No entanto fora de cena essa ameaça continuava Tanto nas Bermudas quanto em Barbados os servos foram desco bertos conspirando junto aos escravos africanos ao passo que na década de 1650 milhares de condenados eram levados em embarcações das Ilhas Britânicas até lá Rowling 1987 p 57 Na Virgínia o auge da aliança entre os servos negros e brancos foi a Rebelião de Bacon entre 1675 e 1676 quando os escravos 111 Edição Ridendo Castigat Mores Tradução de Nélson Jahr Garcia Disponível em httpwwwebooksbrasilorgeLibristempestadehtml Acesso em 30 de agosto de 2016 NTP 215 214 africanos e os servos por dívidas se uniram para conspirar con tra seus senhores É por essa razão que a partir da década de 1640 a acumu lação de um proletariado escravizado nas colônias do sul dos Estados Unidos e do Caribe foi acompanhada pela construção de hierarquias raciais frustrando a possibilidade de tais com binações Foram aprovadas leis que privavam os africanos de direitos civis que anteriormente lhes haviam sido concedidos como a cidadania o direito de portar armas e o direito de fazer declarações ou de buscar ressarcimentos perante um tribunal pelos danos que pudessem sofrer O momento decisivo ocorreu quando a escravidão foi transformada em condição hereditária e foi dado aos senhores de escravos o direito de espancálos e matálos Além disso os casamentos entre negros e brancos foram proibidos Mais tarde depois da Guerra de Independência dos Estados Unidos a servidão dos brancos por dívidas considerada um vestígio do domínio inglês foi eliminada Como resultado no fnal do século XVIII as colônias da América do Norte haviam passado de uma sociedade com escravos para uma sociedade escravista Moulier Boutang 1998 p 189 e a possibilidade de solidariedade entre africanos e brancos havia sido seriamente enfraquecida Branco nas colônias tornouse não apenas uma distinção de privilégio social e econômico que servia para designar aqueles que até 1650 tinham sido chamados de cristãos e depois de ingleses ou homens livres ibidem p 194 mas também um atributo moral um meio pelo qual a hegemonia foi naturalizada Por outro lado negro e africano passaram a ser sinônimos de escravo até o ponto de as pessoas negras livres que ainda representavam considerável parcela da população norteameri cana durante o século XVII se virem forçadas mais adiante a provar que eram livres SEXO RAÇA E CLASSE NAS COLÔNIAS Poderia ter sido diferente o resultado da conspiração de Calibã se seus protagonistas tivessem sido mulheres E se o rebelde não tivesse sido Calibã mas Sycorax sua mãe a poderosa bruxa argelina que Shakespeare oculta no segundo plano da peça Ou se ao invés de Trínculo e Estéfano fossem as irmãs das bruxas que na mesma época da Conquista estavam sendo queimadas na fogueira na Europa Essa é uma pergunta retórica mas serve para questionar a natureza da divisão sexual do trabalho nas colônias e dos laços que podiam ser estabelecidos ali entre as mulheres europeias as indígenas e as africanas em virtude de uma experiência comum de discriminação sexual Em Eu Tituba Feiticeira Negra de Salem 1992 Maryse Condé nos permite compreender bem o tipo de situação que podia gerar esse laço quando descreve como Tituba e sua nova senhora a jovem esposa do puritano Samuel Parris a princí pio se apoiaram mutuamente contra o ódio assassino de seu marido pelas mulheres Um exemplo ainda mais extraordinário vem do Caribe onde as mulheres inglesas de classe baixa degredadas da GrãBretanha como condenadas ou servas por dívidas torna ramse uma parte signifcativa das turmas de trabalho sob comando unifcado nas fazendas açucareiras Consideradas inadequadas para o casamento pelos homens brancos proprie tários e desqualifcadas para o trabalho doméstico pela sua insolência e temperamento arruaceiro as mulheres brancas semterra eram relegadas ao trabalho manual nas plantations às obras públicas e ao setor de serviços urbanos Nesse univer so se sociabilizavam intimamente com a comunidade escrava 216 e com homens negros escravizados Formavam lares e tinham flhos com eles Beckles 1995 pp 1312 Também cooperavam e competiam com as escravas na venda de produtos cultivados ou de artigos roubados Entretanto com a institucionalização da escravatura que veio acompanhada por uma diminuição da carga laboral para os trabalhadores brancos e por uma queda no número de mulheres vindas da Europa como esposas para os fazendeiros a situação mudou drasticamente Fosse qual fosse sua origem social as mu lheres brancas ascenderam de categoria esposadas dentro das classes mais altas do poder branco E quando se tornou possível também se tornaram donas de escravos geralmente de mulhe res empregadas para realizar o trabalho doméstico ibidem112 No entanto este processo não foi automático Assim como o sexismo o racismo teve que ser legislado e imposto Dentre as proibições mais reveladoras devemos mais uma vez levar em conta que o casamento e as relações sexuais entre negros e brancos foram proibidos As mulheres brancas que se casaram com escravos negros foram condenadas e os flhos gerados desses casamentos foram escravizados pelo resto de suas vidas Estas leis aprovadas em Maryland e na Virginia na década de 1660 são provas da criação de cima para baixo de uma socieda de segregada e racista e de que as relações íntimas entre ne gros e brancos deveriam ser efetivamente muito comuns se para acabar com elas considerouse necessário recorrer à escravização perpétua Como se seguissem o roteiro estabelecido para a caça às bru xas as novas leis demonizavam a relação entre mulheres brancas e homens negros Quando foram aprovadas na década de 1660 a caça às bruxas na Europa estava chegando ao fm mas nas 112 Um caso emblemático é o das Bermudas citado por Elaine Forman Crane 1990 pp 23158 Crane afirma que umas tantas mulheres brancas nas Bermudas eram donas de escravos geralmente de outras mulheres e graças ao trabalho deles pude ram manter um certo grau de autonomia econômica Uma escrava sendo marcada a ferro quente Nos processos por bruxaria na Europa a marca do demônio nas mulheres havia figurado de modo proeminente como um símbolo de sujeição total Mas na realidade os verdadeiros demônios eram os traficantes de escravos e os donos de terra brancos que como os homens nesta imagem não hesitavam tratar como gado as mulheres que escravizavam 219 218 colônias inglesas que logo se tornariam os Estados Unidos todos os tabus que rodeavam as bruxas e os demônios negros estavam sendo revividos desta vez às custas dos homens negros Dividir e conquistar também se tornou a política ofcial nas colônias espanholas depois de um período em que a inferioridade numérica dos colonos sugeria uma atitude mais liberal perante as relações interétnicas e as alianças com os chefes locais por meio do matrimônio No entanto na década de 1540 na medida em que o aumento na quantidade de mes tizos debilitava o privilégio colonial a raça foi instaurada como um fatorchave na transmissão da propriedade e uma hierarquia racial foi estabelecida para separar indígenas mes tizos e mulattos uns dos outros e da população branca Nash 1980113 As proibições em relação ao casamento e à sexualidade feminina também aqui serviram para impor a exclusão social Entretanto na América hispânica a segregação por raças foi apenas parcialmente bemsucedida devido à migração à diminuição da população às rebeliões indígenas e à formação de um proletariado urbano branco sem perspectivas de melhora econômica e portanto propenso a se identifcar com os mestizos e mulattos mais do que com os brancos de classe alta Por isso enquanto nas sociedades caribenhas baseadas no regime de plantation as diferenças entre europeus e africanos aumentaram com o tempo nas colônias sulamericanas se tor nou possível uma certa recomposição especialmente entre as mulheres de classe baixa europeias mestizas e africanas que além de sua precária posição econômica compartilhavam as desvantagens derivadas da dupla moral incorporada na lei que as tornava vulneráveis ao abuso masculino 113 June Nash 1980 p 140 afirma Houve uma mudança significativa em 1549 quando a origem racial se tornou um fator junto com as uniões matrimoniais le galmente sancionadas para a definição de direitos de sucessão A nova lei estabelecia que nem os mulattos descendentes de homem branco e mulher índia nem os mestizos nem as pessoas nascidas fora do casamento eram permitidas a possuir índios em encomienda Mestizo e ilegítimo se tornaram quase sinônimos É possível encontrar sinais dessa recomposição nos arquivos da Inquisição sobre as investigações que realizou no México durante o século XVIII para erradicar as crenças mági cas e heréticas Behar 1987 pp 3451 A tarefa era impossível e logo a própria Inquisição perdeu o interesse no projeto conven cida a essa altura de que a magia popular não era uma ameaça para a ordem política Os testemunhos que recolheu revelam no entanto a existência de numerosos intercâmbios entre mulheres sobre temas relacionados a curas mágicas e remédios para o amor criando com o tempo uma nova realidade cultural extraída do encontro entre tradições mágicas africanas euro peias e indígenas Como afrma Ruth Behar ibidem As mulheres indígenas davam beijafores às curandeiras espanholas para que os usassem para atração sexual as mulattas ensinaram as mestizas a domesticar seus maridos uma feiticeira loba contou sobre o demônio a uma coyota Este sistema popular de crenças era paralelo ao sistema de crenças da Igreja e se propagou tão rápido quanto o cristianismo pelo Novo Mundo de tal forma que depois de um tempo tornouse impossível distinguir nele o que era indígena e o que era espanhol ou africano114 Entendidas pela visão da Inquisição como gente carente de razão este universo feminino multicolorido descrito por Ruth Behar é um exemplo contundente das alianças que para além das fronteiras coloniais e de cores as mulheres podiam construir em virtude de sua experiência comum e de seu inte resse em compartilhar conhecimentos e práticas tradicionais que estavam ao seu alcance para controlar sua reprodução e combater a discriminação sexual Assim como a discriminação estabelecida pela raça a discriminação sexual era mais que uma bagagem cultural que 114 Uma coyota era metade mestiza e metade indígena Ruth Behar 1987 p 45 221 220 os colonizadores trouxeram da Europa com suas lanças e cava los Tratavase nada mais nada menos do que da destruição da vida comunitária uma estratégia ditada por um interesse econômico específco e pela necessidade de se criarem as condições para uma economia capitalista como tal sempre ajustada à tarefa do momento No México e no Peru onde o declínio populacional sugeria o incentivo do trabalho doméstico feminino uma nova hierarquia sexual introduzida pelas autoridades espanholas privou as mulheres indígenas de sua autonomia e deu a seus familiares homens mais poder sobre elas Sob as novas leis as mulheres casadas tornaramse propriedade dos homens e foram forçadas contra o costume tradicional a seguir seus maridos às casas deles Foi criado também um sistema de compadrazgo que limi tava ainda mais seus direitos colocando nas mãos masculinas a autoridade sobre as crianças Além disso para assegurar que as mulheres indígenas reproduzissem os trabalhadores recrutados para realizar o trabalho de mita nas minas as autoridades espa nholas promulgaram leis que dispunham que ninguém poderia separar marido e mulher o que signifcava que as mulheres se riam forçadas a seguir seus maridos gostando ou não inclusive para zonas que eram sabidamente campos de extermínio devido à poluição criada pela mineração Cook Noble 1981 pp 2056115 A intervenção dos jesuítas franceses na disciplina e no 115 As mais mortíferas eram as minas de mercúrio como a de Huancavelica em que milhares de trabalhadores morreram lentamente envenenados passando por sofri mentos horríveis Como escreve David Noble Cook 1981 pp 2056 Os trabalhadores na mina de Huancavelica enfrentavam tanto perigos imediatos quanto de longo prazo A derrubadas as inundações e as quedas devido a túneis escorregadios eram ameaças cotidianas A alimentação pobre a ventilação inadequada nas câmaras subterrâneas e a notável diferença de temperatura entre o interior da mina e o ar rarefeito dos Andes apre sentavam perigos imediatos para a saúde Os trabalhadores que permaneciam durante longos períodos nas minas talvez padecessem do pior de todos os destinos Pó e finas partículas eram liberados no ar devido aos golpes das ferramentas usadas para desgastar o mineral Os índios inalavam o pó que continha quatro substâncias perigosas vapores de mercúrio arsênico pentóxido de arsênico e cinábrio Uma exposição prolongada resultava em morte Conhecido como mal da mina quando avançava era incurável Nos casos menos severos as gengivas se ulceravam e ficavam carcomidas treinamento dos Innu no Canadá durante meados do século XVII nos dá um exemplo revelador de como se acumulavam as diferenças de gênero Esta história foi relatada pela antropóloga Eleanor Leacock em seus Myths of Male Dominance 1981 Mitos da dominação masculina em que examina o diário de um de seus protagonistas o padre Paul Le Jeune um missionário jesuíta que fazendo algo tipicamente colonial havia se juntado a um posto comercial francês para cristianizar os índios trans formandoos em cidadãos da Nova França Os Innu eram uma nação indígena nômade que havia vivido em grande harmonia caçando e pescando na zona oriental da Península do Labrador Porém na época em que Le Jeune chegou a comunidade vinha sendo debilitada pela presença de europeus e pela difusão do comércio de peles de tal maneira que alguns homens ávidos por estabelecer uma aliança comercial com eles pareciam estar tranquilos em deixar que os franceses determinassem de que forma deveriam ser governados Leacock 1981 p 39 e segs Como ocorreu com frequência quando os europeus en traram em contato com as populações indígenas americanas os franceses estavam impressionados pela generosidade dos Innu por seu senso de cooperação e pela sua indiferença com relação ao status mas se escandalizavam com sua falta de moralidade Observaram que os Innu careciam de concepções como propriedade privada autoridade superioridade mascu lina e inclusive recusavamse a castigar seus flhos Leacock 1981 pp 348 Os jesuítas decidiram mudar tudo isso propondose a ensinar aos indígenas os elementos básicos da civilização convencidos de que isso era necessário para trans formálos em sócios comerciais de confança Nesse espírito eles primeiro ensinaramlhes que o homem é o senhor que na França as mulheres não mandam em seus maridos e que buscar romances à noite divorciarse quando qualquer dos parceiros desejasse e liberdade sexual para ambos antes ou 223 222 depois do casamento eram coisas que deviam ser proibidas Essa é uma conversa que Le Jeune teve sobre essas questões com um homem innu Eu disselhe que não era honrável para uma mulher amar a qualquer um que não fosse seu marido e que com este mal pairando ele não poderia ter certeza de que seu flho era realmente seu Ele respondeu Não tens juízo Vocês franceses amam apenas a seus flhos mas nós amamos a todos os flhos de nossa tribo Comecei a rir vendo que ele flosofava como os cavalos ou as mulas ibidem 50 Apoiados pelo governador da Nova França os jesuítas conseguiram convencer os Innu a providenciarem eles mesmos alguns chefes e a submeterem suas mulheres Como era cos tume uma das armas que os religiosos usaram foi insinuar que as mulheres independentes demais que não obedeciam a seus maridos eram criaturas do demônio Quando as mulheres innu fugiram revoltadas pelas tentativas dos homens em submetê las os jesuítas persuadiram os homens a correrem atrás delas e ameaçarem aprisionálas Atos de justiça como estes comentou orgulhoso Le Jeune numa ocasião particular não causam surpresa na França porque lá é comum que as pessoas ajam dessa forma mas entre essa gente onde todos se consideram livres desde o nascimento como os animais selvagens que os rodeiam nas grandes forestas é uma maravilha ou talvez um milagre ver um comando peremptório sendo obedecido ou um ato de severidade ou de justiça ibidem 54 A maior vitória dos jesuítas foi no entanto persuadir os Innu a baterem em seus flhos por acreditarem que o excesso de ca rinho que os selvagens tinham por seus descendentes fosse o principal obstáculo para sua cristianização O diário de Le Jeune registra a primeira ocasião em que uma menina foi espancada publicamente enquanto um de seus familiares passava um sermão assustador aos presentes sobre o signifcado histórico do acontecimento Este é o primeiro castigo a golpes diz ele que infigimos a alguém de nosso povo ibidem pp 545 Os homens innu receberam seu treinamento sobre supre macia masculina pelo fato de que os franceses queriam incul carlhes o instinto da propriedade privada para induzilos a se tornarem sócios confáveis no comércio de peles A situação nas plantations era muito diferente já que a divisão sexual do trabalho era imediatamente ditada pelas demandas da força de trabalho dos agricultores e pelo preço das mercadorias produzi das pelos escravos no mercado internacional Até a abolição do tráfco de escravos como foi documentado por Barbara Bush e Marietta Morrissey tanto as mulheres como os homens eram submetidos ao mesmo grau de exploração os agri cultores achavam mais lucrativo fazer os escravos trabalharem e consumilos até a morte do que estimular sua reprodução Nem a divisão sexual do trabalho nem as hierarquias sexuais eram então pronunciadas Os homens africanos não podiam decidir nada sobre o destino de suas companheiras e familiares enquanto para as mulheres longe de terem uma consideração especial es peravase que trabalhassem nos campos assim como os homens especialmente quando a demanda de açúcar e de tabaco era alta Elas também estavam sujeitas a castigos cruéis até quando esta vam grávidas Bush 1990 pp 424 Ironicamente então parecia que as mulheres conquista ram na escravidão uma dura igualdade com os homens de sua classe Moinsen 1993 Contudo nunca foram tratadas de forma igual Davase menos comida às mulheres diferentemente dos homens elas eram vulneráveis aos ataques sexuais de seus se nhores e eramlhes infigidos castigos mais cruéis já que além da agonia física tinham que suportar a humilhação sexual 224 que sempre lhes acompanhava além dos danos aos fetos que traziam dentro de si quando estavam grávidas Uma nova página se abriu porém depois de 1807 quando foi abolido o comércio de escravos e os fazendeiros do Caribe e dos Estados Unidos adotaram uma política de criação de escravos Como destaca Hilary Beckles com relação à ilha de Barbados os proprietários das plantations tentavam controlar os hábitos reprodutivos das escravas desde o século XVII en corajandoas a terem mais ou menos flhos num determinado lapso de tempo dependendo de quanto trabalho era neces sário no campo Porém a regulação das relações sexuais e dos hábitos reprodutivos das mulheres apenas se tornou mais siste mática e intensa quando o fornecimento de escravos africanos foi diminuído Beckles 1989 p 92 Na Europa a coação de mulheres à procriação havia levado à imposição da pena de morte pelo uso de contraceptivos Nas plantations onde os escravos estavam se transformando numa mercadoria valiosa a mudança para uma política de criação tornou as mulheres mais vulneráveis aos ataques sexuais em bora tenha levado a certas melhorias nas suas condições de trabalho foram reduzidas as horas de trabalho construíramse casas de parto ofereceramse parteiras para assistirem o parto expandiramse os direitos sociais por exemplo de viagem e de reunião Beckles 1989 pp 99100 Bush 1990 p 135 No entanto essas mudanças não eram capazes de reduzir os danos Mulheres escravizadas batalhavam para continuar as atividades que exerciam originalmente na África como por exemplo vender os produtos que cultivavam o que lhes permitia dar melhor amparo a suas famílias e obter alguma autonomia Família de escravos negros originários do Loango no Suriname do livro de John Gabriel Stedman Narrative of a Five Years Expedition against the revolted Negroes of Surinam from the year 1772 to 1777 Londres 1796 Narrativa de uma expedição de cinco anos contra os negros revoltos do Suriname do ano 1772 ao 1777 vol II A partir de Barbara Bush 1990 Uma reunião festiva em uma fazenda caribenha As mulheres eram o coração dessas reuniões assim como eram o coração da comunidade escrava e defensoras obstinadas da cultura trazida da África Gravura de Louis Charles Ruotte a partir de pintura de Agostino Brunias Dança de negros na Ilha de São Domingos entre 1773 e 1779 infligidos contra as mulheres pelo trabalho nos campos nem a amargura que experimentavam por sua falta de liberdade Com exceção de Barbados a tentativa dos fazendeiros de expandir a força de trabalho por meio da reprodução natural fracassou e as taxas de natalidade nas plantations continuaram sendo anormalmente baixas Bush pp 1367 Beckles 1989 ibidem Se este fenômeno foi consequência de uma categórica resistência à perpetuação da escravidão ou consequência da debilidade física produzida pelas duras condições a que estavam submetidas as mulheres escravizadas ainda é matéria de debate Bush 1990 p 143 e segs Entretanto como afirma Bush há boas razões para crer que o principal motivo do fracasso se deveu à recusa das mulheres a procriar pois logo que a escravidão foi erradicada mesmo quando suas condições econômicas se deterioraram de certa forma as comunidades de escravos libertos começaram a crescer Bush 1990 A recusa das mulheres quanto à vitimização também reconfigurou a divisão sexual do trabalho assim como ocorreu nas ilhas do Caribe onde as mulheres escravizadas tornaramse semilibertas vendedoras de produtos que elas cultivavam nas roças chamadas de polink na Jamaica entregues pelos fazendeiros aos escravos para que pudessem se sustentar Os fazendeiros adotaram esta medida para economizar no custo da reprodução de mão de obra Porém o acesso às roças também demonstrou ser vantajoso para os escravos deulhes maior mobilidade e a possibilidade de usar o tempo destinado para seu cultivo em outras atividades O fato de poder produzir pequenos cultivos que podiam ser consumidos ou vendidos deu impulso à sua independência As mais empenhadas no sucesso das roças foram as mulheres que comercializavam a colheita reapropriandose e reproduzindo dentro do sistema de plantations as principais ocupações que realizavam na África Uma consequência disso foi que em meados do século XVIII as mulheres escravas no Caribe haviam forjado para si um lugar na economia das plantations contribuindo para a expansão e até mesmo para a criação do mercado de alimentos da ilha Fizeram isso tanto como produtoras de grande parte dos alimentos que os escravos e a população branca consumiam quanto como feirantes e vendedoras ambulantes das colheitas que cultivavam complementadas com bens tomados da venda de seu senhor ou trocados com outros escravos ou ainda dados por seus senhores para que elas vendessem Também foi a partir dessa habilidade que as escravas entraram em contato com as proletárias brancas que muitas vezes haviam sido servas por dívidas mesmo depois de que estas últimas tivessem sido liberadas do trabalho forçado e se emancipado Seu relacionamento às vezes podia ser hostil as proletárias europeias que também sobreviviam fundamentalmente do cultivo e da venda de sua colheita de alimentos roubavam por vezes os produtos que as escravas levavam ao mercado ou tentavam impedir sua venda No entanto ambos os grupos de mulheres colaboraram também na construção de uma vasta rede de relações de compra e venda que escapava às leis criadas pelas autoridades coloniais que de tempos em tempos se preocupavam com o fato de que estas atividades pudessem fazer com que perdessem o controle sobre as escravas Apesar da legislação introduzida para evitar que vendessem ou para limitar os lugares em que podiam fazêlo as mulheres 116 Barbara Bush 1990 p 141 destaca que se as escravas queriam abortar elas sem dúvida sabiam como fazêlo já que tinham à sua disposição o conhecimento que traziam da África 228 229 231 230 escravizadas continuaram ampliando suas atividades no mercado e o cultivo de suas roças que chegaram a considerar como próprias de tal maneira que no fnal do século XVIII estavam for mando um protocampesinato que praticamente detinha o mono pólio nos mercados das ilhas Desse modo de acordo com alguns historiadores até mesmo antes da emancipação a escravidão no Caribe havia praticamente terminado As escravas por mais ina creditável que pareça foram uma força fundamental neste pro cesso já que apesar das tentativas das autoridades de limitar seu poder deram forma com sua determinação ao desenvolvimento da comunidade escrava e das economias das ilhas As mulheres escravizadas do Caribe também tiveram im pacto decisivo na cultura da população branca especialmente na das mulheres brancas por meio de suas atividades como curandeiras videntes especialistas em práticas mágicas e no domínio que exerciam sobre as cozinhas e quartos de seus senhores Bush 1990 Não é de se surpreender que elas fossem vistas como o co ração da comunidade escrava Os visitantes impressionavamse com seus cantos seus turbantes seus vestidos e sua maneira extravagante de falar que segundo se entende agora eram os meios com que contavam para satirizar seus senhores As mulheres africanas e creoles infuenciaram os costumes das mulheres brancas pobres que de acordo com a descrição de um contemporâneo se comportavam como africanas caminhando com os flhos amarrados aos quadris enquanto equilibravam bandejas de produtos em suas cabeças Beckles 1989 p 81 No entanto sua principal conquista foi o desenvolvimento de uma política de autossufciência que tinha como base as estratégias de sobrevivência e as redes de mulheres Estas práticas e os valores a elas ligados que Rosalyn Terborg Penn 1995 pp 37 identifcou como os princípios fundamentais do feminismo africano contemporâneo redefniram a comunidade africana da diáspora Elas criaram não apenas as bases de uma nova identidade feminina africana mas também as bases para uma nova sociedade comprometida contra a tentativa capitalista de impor a escassez e a dependência como condições estruturais de vida com a reapropriação e a concentração nas mãos das mulheres dos meios fundamentais de subsistência começando pela terra pela produção de alimentos e pela trans missão intergeracional de conhecimento e cooperação 233 232 O CAPITALISMO E A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO Como demonstra essa breve história das mulheres e da acumu lação primitiva a construção de uma nova ordem patriarcal que tornava as mulheres servas da força de trabalho masculina foi de fundamental importância para o desenvolvimento do capitalismo Sobre esta base foi possível impor uma nova divisão sexual do trabalho que diferenciou não somente as tarefas que as mulheres e os homens deveriam realizar como também suas ex periências suas vidas sua relação com o capital e com outros se tores da classe trabalhadora Deste modo assim como a divisão internacional do trabalho a divisão sexual foi sobretudo uma relação de poder uma divisão dentro da força de trabalho ao mesmo tempo que um imenso impulso à acumulação capitalista Devemos enfatizar esse ponto dada a tendência a atribuir exclusivamente à especialização das tarefas laborais o salto que o capitalismo introduziu na produtividade do trabalho Na verdade as vantagens que a classe capitalista extraiu da diferenciação entre trabalho agrícola e industrial e dentro do trabalho industrial celebrada na ode de Adam Smith à fabrica ção de alfnetes atenuamse em comparação às extraídas da degradação do trabalho e da posição social das mulheres Conforme defendi a diferença de poder entre mulheres e homens e o ocultamento do trabalho não remunerado das mu lheres por trás do disfarce da inferioridade natural permitiram ao capitalismo ampliar imensamente a parte não remunerada do dia de trabalho e usar o salário masculino para acumular trabalho feminino Em muitos casos serviram também para desviar o antagonismo de classe para um antagonismo entre homens e mulheres Dessa forma a acumulação primitiva foi sobretudo uma acumulação de diferenças desigualdades Frontispício de De Humani Corporis Fabrica Pádua 1543 de Andreas Vesalius O triunfo da ordem patriarcal dos homens da classe dominante mediante a constituição de um novo teatro anatômico não poderia ser mais completo Sobre a mulher dissecada e apresentada ao público o autor nos diz que por medo de ser enforcada ela declarou que estava grávida mas depois que se descobriu que ela não estava ela foi então enforcada A figura feminina ao fundo talvez uma prostituta ou uma parteira abaixa os olhos possivelmente envergonhada frente à obscenidade da cena e à violência implícita 234 hierarquias e divisões que separaram os trabalhadores entre si e inclusive alienaram a eles mesmos Como vimos os trabalhadores homens foram frequente mente cúmplices deste processo tendo em vista que tentaram manter seu poder com relação ao capital por meio da des valorização e da disciplina das mulheres das crianças e das populações colonizadas pela classe capitalista No entanto o poder que os homens impuseram sobre as mulheres em virtu de de seu acesso ao trabalho assalariado e de sua contribuição reconhecida na acumulação capitalista foi pago pelo preço da autoalienação e da desacumulação primitiva de seus poderes individuais e coletivos Nos próximos capítulos procuro avançar no exame deste processo de desacumulação a partir da discussão de três as pectoschave da transição do feudalismo para o capitalismo a constituição do corpo proletário em uma máquina de trabalho a perseguição das mulheres como bruxas e a criação dos selva gens e dos canibais tanto na Europa quanto no Novo Mundo CAPÍTULO 3 O GRANDE CALIBÃ A LUTA CONTRA O CORPO REBELDE Jan Luyken A execução de Anne Hendricks por bruxaria em Amsterdam 1571 A VIDA NÃO É MAIS DO QUE UM MOVIMENTO DOS MEMBROS POIS O QUE É O CORAÇÃO SENÃO UMA MOLA E OS NERVOS SENÃO OUTRAS TANTAS CORDAS E AS JUNTAS SENÃO OUTRAS TANTAS RODAS IMPRIMINDO MOVIMENTO AO CORPO INTEIRO HOBBES LEVIATÃ 1650 TENHA ALGUMA PIEDADE DE MIM POIS MEUS AMIGOS SÃO MUITO POBRES E MINHA MÃE ESTÁ MUITO DOENTE E EU MORREREI NA PRÓXIMA QUARTAFEIRA PELA MANHÃ ENTÃO ESPERO QUE O SENHOR SEJA BOM O SUFICIENTE PARA DAR A MEUS AMIGOS UMA QUANTIA SUFICIENTE DE DINHEIRO PARA QUE PAGUEM O CAIXÃO E A MORTALHA PARA QUE POSSAM RETIRAR MEU CORPO DA ÁRVORE EM QUE VOU MORRER E NÃO SEJA COVARDE ESPERO QUE TENHA CONSIDERAÇÃO PELO MEU POBRE CORPO CONSIDEREO COMO SE FOSSE O SEU O SENHOR GOSTARIA QUE SEU PRÓPRIO CORPO ESTIVESSE A SALVO DOS CIRURGIÕES NÃO OBSTANTE SEREI UMA CRIATURA MAIS NOBRE NO PRECISO MOMENTO EM QUE MINHAS NECESSIDADES NATURAIS ME REBAIXAREM À CONDIÇÃO DE ANIMAL MEU ESPIRITO SURGIRÁ SE ELEVARÁ E VOARÁ ATÉ O TRABALHO DOS ANJOS COTTON MATHER DIARY 16801708 CARTA DE RICHARD TOBIN CONDENADO À MORTE EM LONDRES EM 1739 241 240 UMA DAS CONDIÇÕES PARA o desenvolvimento capitalista foi o processo que Michel Foucault defniu como disciplinamento do corpo que a meu ver consistia em uma tentativa do Estado e da Igreja de transformar as potencialida des dos indivíduos em força de trabalho Este capítulo examina como este processo foi concebido e mediado no debate flosófco da época e as intervenções estratégicas geradas em torno dele No século XVI nas regiões da Europa Ocidental mais afeta das pela Reforma Protestante e pelo surgimento da burguesia mercantil observase a emergência em todos os campos no palco no púlpito na imaginação política e flosófca de um novo conceito de pessoa Sua encarnação ideal é o Próspero de Shakespeare em A tempestade 1611 que combina a espiri tualidade celestial de Ariel e a materialidade brutal de Calibã Não obstante sua fgura demonstra certa ansiedade sobre o equilíbrio que se havia alcançado o que impossibilita qualquer orgulho pela posição especial do Homem na ordem dos se res117 Ao derrotar Calibã Próspero deve admitir que este ser de trevas é meu recordando assim à sua audiência de que sendo humanos é verdadeiramente problemático que sejamos ao mesmo tempo o anjo e a besta No século XVII o que permanece em Próspero como apreensão subliminar se concretiza como confito entre a razão e as paixões do corpo o que dá um novo sentido aos clássicos temas judaicocristãos para produzir um paradigma antropoló gico inovador O resultado é a reminiscência das escaramuças medievais entre anjos e demônios pela possessão das almas que partem para o além No entanto o confito é agora encenado 117 Próspero é um homem novo Didaticamente suas desgraças são atribuídas por Shakespeare ao seu interesse excessivo por livros de magia aos quais finalmente renuncia em troca de uma vida mais ativa em seu reino onde seu poder virá não de sua magia mas do governo de seus súditos Contudo já na ilha de seu exílio suas atividades prefiguram uma nova ordem mundial na qual o poder não se ganha com uma varinha má gica e sim por meio da escravidão de muitos Calibãs em colônias distantes O tratamento explorador de Próspero para com Calibã antecipa o papel do futuro senhor de plantation que não poupará torturas e tormentas para forçar seus subordinados a trabalhar dentro da pessoa que é apresentada como um campo de bata lha no qual existem elementos opostos em luta pela dominação De um lado estão as forças da razão a parcimônia a pru dência o senso de responsabilidade o autocontrole De outro lado estão os baixos instintos do corpo a lascívia o ócio a dissipação sistemática das energias vitais que cada um possui Este combate se passa em diferentes frentes já que a razão deve manterse atenta ante os ataques do ser carnal e evitar que nas palavras de Lutero a sabedoria da carne corrompa os poderes da mente Nos casos extremos a pessoa se converte em um terreno de luta de todos contra todos Não me deixes ser nada se dentro da bússola do meu ser não encontro a Batalha de Lepanto as Paixões contra a Razão a Razão contra a Xilogravura do século xv O ataque do diabo ao homem moribundo é um tema que domina toda a tradição popular medieval de Alfonso M di Nola 1987 243 242 Fé a Fé contra o Demônio e a minha Consciência contra todos eles Thomas Browne 1928 p 76 Ao longo desse processo uma mudança ocorre no campo metafórico enquanto a representação flosófca da psicologia se apropria de imagens do Estado como entidade política para tra zer à luz uma paisagem habitada por governantes e sujeitos rebeldes multidões e revoltas cadeias e ordens im periosas e inclusive pelo carrasco como diz Thomas Browne ibidem p 72118 Como veremos este confito entre a razão e o corpo descrito pelos flósofos como um enfrentamento de senfreado entre o melhor e o mais baixo que não pode ser atribuído somente ao gosto pelo fgurativo durante o Barroco será purifcado mais tarde para favorecer uma linguagem mais masculina119 O discurso sobre a pessoa no século XVII imagina o desenvolvimento de uma batalha no microcosmos do indi víduo que sem dúvida se fundamenta na realidade da época Este é um aspecto do processo mais geral de reforma social a partir do qual já na Era da Razão a burguesia emergente tentou moldar as classes de acordo com as necessidades do desenvolvi mento da economia capitalista 118 Cada homem é seu pior inimigo e de certo modo seu próprio carrasco escreve Thomas Browne Também Pascal em Pensée Pensamento declara Guerra interna do homem entre a razão e as paixões Se ele tivesse apenas razão sem paixões Se ele tivesse apenas paixões sem razão Contudo posto que existem uma e outra não se pode estar sem conflito Deste modo se está sempre dividido e sempre se é con trário a si mesmo p 130 Sobre o conflito entre paixões e razão e sobre as correspon dências entre o microcosmos humano e o corpo político body politic na literatura elisabetana ver Tillyard 1961 pp 759 949 119 A reforma da linguagem temachave na filosofia dos séculos XVI e XVII de Bacon a Locke era uma das principais preocupações de Joseph Glanvil que em sua Vanity of Dogmatizing 1665 Vaidade de dogmatizar depois de proclamar sua adesão à cosmovisão cartesiana advoga por uma linguagem adequada para descrever os entes cla ros e distintos Glanvil 1970 p XXVIXXX Como resume S Medcalf em sua introdução ao trabalho de Glanvil uma linguagem adequada para descrever este mundo guarda uma ampla semelhança com as matemáticas tem palavras de grande generalidade e clareza apresenta uma imagem do universo de acordo com sua estrutura lógica distingue cla ramente entre mente e matéria entre o subjetivo e o objetivo e evita a metáfora como forma de conhecer e descrever já que a metáfora depende da suposição de que o universo não está composto de seres completamente diferentes e por isso não pode ser descrito completamente em termos positivos e distintos ibidem Na tentativa de formar um novo tipo de indivíduo a burguesia estabeleceu uma batalha contra o corpo que se converteu em sua marca histórica De acordo com Max Weber a reforma do corpo está no coração da ética burguesa porque o capitalismo faz da aquisição o objetivo fnal da vida em vez de tratála como meio para satisfazer nossas necessidades para tanto necessita que percamos o direito a qualquer forma espontânea de desfrutar a vida Weber 1958 p 53 O capita lismo tenta também superar nosso estado natural ao romper as barreiras da natureza e ao estender o dia de trabalho para além dos limites defnidos pela luz solar dos ciclos das es tações e mesmo do corpo tal como estavam constituídos na sociedade préindustrial Marx é outro que concebe a alienação do corpo como um traço distintivo da relação entre capitalista e trabalhador Ao transformar o trabalho em uma mercadoria o capitalismo faz com que os trabalhadores subordinem sua atividade a uma ordem externa sobre a qual não têm controle e com a qual não podem se identifcar Deste modo o processo de trabalho se converte em um espaço de estranhamento o trabalhador se sente fora do trabalho e no trabalho sentese fora de si Está em casa quando não trabalha e quando trabalha não o está Marx 1961 p 72 Por outro lado no desenvolvimento de uma economia capitalista o trabalhador se converte ainda que não seja formalmente em livre dono de sua força de trabalho diferentemente do escravo pode colocála à disposição do comprador por um período limitado de tempo Isso implica no fato de que possa dispor livremente de sua força de tra balho suas energias suas faculdades como de sua própria mercadoria Marx 1909 t I p 186120 e também conduz a um 120 Marx não faz distinção entre trabalhadores e trabalhadoras em sua discussão sobre a liberação da força de trabalho Há no entanto uma razão para manter o mascu lino na descrição deste processo Ainda quando foram liberadas das terras comuns as mulheres não foram conduzidas pela trilha do mercado de trabalho assalariado 245 244 sentido de dissociação com relação ao corpo que vem redef nido e reduzido a um objeto com o qual a pessoa deixa de estar imediatamente identifcada A imagem de um trabalhador que vende livremente seu trabalho ou que entende seu corpo como um capital que deva ser entregue a quem oferecer o melhor preço se refere a uma classe trabalhadora já moldada pela disciplina do trabalho capitalista Contudo é apenas na segunda metade do século XIX que se pode vislumbrar um trabalhador como este mode rado prudente responsável orgulhoso de possuir um relógio Mendigo e vendedora de retalhos Os camponeses e artesãos expropriados não concordaram pacificamente em trabalhar por um salário Mais frequentemente viraram mendigos errantes ou criminosos Desenho de LouisLéopold Boilly entre 1761 e 1845 Thompson 1964 e que considera as condições impostas pelo modo de produção capitalista como leis da natureza Marx 1909 t I p 809 um tipo que personifca a utopia capitalista e que é ponto de referência para Marx A situação era completamente diferente no período da acu mulação primitiva quando a burguesia emergente descobriu que a liberação de força de trabalho quer dizer a expro priação das terras comuns do campesinato não foi sufciente para forçar os proletários despossuídos a aceitar o trabalho assalariado À diferença do Adão de Milton que ao ser expulso do Jardim do Éden caminhou alegremente para uma vida dedicada ao trabalho121 não foi pacifcamente que os trabalha dores e artesãos expropriados aceitaram trabalhar por um sa lário Na maior parte das vezes se converteram em mendigos em vagabundos e em criminosos Seria necessário um longo processo para produzir mão de obra disciplinada Durante os séculos XVI e XVII o ódio contra o trabalho assalariado era tão intenso que muitos proletários preferiam arriscarse a terminar na forca a se subordinarem às novas condições de trabalho Hill 1975 pp 21939122 Esta foi a primeira crise capitalista muito mais séria que to das as crises comerciais que ameaçaram os alicerces do sistema capitalista durante a primeira fase de seu desenvolvimento123 121 Com trabalho devo ganhar meu pão com dano O ócio teria sido pior Meu trabalho me manterá é a resposta de Adão aos medos de Eva diante da perspectiva de irem embora do Jardim do Éden Paradise Lost Paraíso perdido versos 10546 p 579 122 Até o século XV como assinala Christopher Hill o trabalho assalariado pode ter aparecido como uma liberdade conquistada porque as pessoas tinham acesso às terras comuns e possuíam terras próprias não dependendo somente do salário No entanto no século XVI aqueles que trabalhavam por um salário haviam sido expropriados além do mais os empregadores alegavam que os salários eram apenas complementares manten doos em seu nível mais baixo Deste modo trabalhar pelo pagamento significava descer até a base da pirâmide social e as pessoas lutavam desesperadamente para evitar tal des tino Hill 1975 pp 2202 No século XVII o trabalho assalariado ainda era considerado uma forma de escravidão tanto que os Levellers excluíam os trabalhadores assalariados do direito ao voto já que não os consideravam suficientemente independentes para poder eleger livremente seus representantes Macpherson 1962 pp 10759 123 Em 1622 quando Jacob I pediu a Thomas Mun que investigasse as causas da crise econômica que havia golpeado a Inglaterra este finalizou seu informe imputando a culpa dos problemas da nação à ociosidade dos trabalhadores ingleses Referiuse em 247 246 Como é bem sabido a resposta da burguesia foi a multiplicação das execuções a instituição de um verdadeiro regime de terror implementado por meio da intensifcação das penas em parti cular daquelas que puniam os crimes contra a propriedade e a introdução das Leis Sangrentas contra os vagabundos com a intenção de atar os trabalhadores aos trabalhos que lhes haviam sido impostos da mesma maneira que em sua época os servos estiveram fxados à terra Só na Inglaterra 72 mil pessoas foram enforcadas por Henrique VIII durante os 38 anos de seu reinado e o massacre continuou até fnais do século XVI Na década de 1570 entre trezentos e quatrocentos delinquentes foram devorados pelas forcas em um lugar ou outro a cada ano Hoskins 1977 p 9 Apenas em Devon 74 pessoas foram enforcadas durante o ano de 1598 ibidem No entanto as classes dominantes não limitaram sua vio lência à repressão dos transgressores Também apontavam para uma transformação radical da pessoa pensada para erradicar no proletariado qualquer comportamento que não conduzisse à imposição de uma disciplina mais estrita de trabalho As di mensões deste ataque podem ser vistas nas legislações sociais introduzidas na Inglaterra e na França em meados do século XVI Proibiramse os jogos em particular aqueles que além de serem inúteis debilitavam o sentido de responsabilidade do in divíduo e a ética do trabalho Fecharamse tabernas e banhos públicos Estabeleceramse castigos para a nudez e também para outras formas improdutivas de sexualidade e sociabili dade Era proibido beber praguejar e insultar124 Em meio a este vasto processo de engenharia social uma nova concepção e uma nova política sobre o corpo começaram a tomar particular à lepra generalizada do nosso tocar gaita do nosso falar de qualquer jeito de nossos festins de nossas discussões e o tempo que perdemos no ócio e no prazer que em sua perspectiva colocavam a Inglaterra em desvantagem na competição comercial com os laboriosos holandeses Hill 1975 p 125 124 Wright 1960 pp 803 Thomas 1971 Van Ussel 1971 pp 2592 Riley 1973 p 19 e segs e Underdown 1985 pp 772 forma A novidade foi o ataque ao corpo como fonte de todos os males ataque tão bem estudado e com paixão igual a que na mesma época animava a investigação dos movimentos celestes Por que o corpo foi tão importante para a política estatal e para o discurso intelectual Alguém pode se sentir inclinada a responder que esta obsessão pelo corpo refetia o medo que o proletariado inspirava na classe dominante125 Era o mesmo medo que sentiam igualmente o burguês e o nobre que onde quer que fossem nas ruas ou em suas viagens eram assediados por uma multidão ameaçadora que implorava ajuda ou se pre parava para roubálos Era também o mesmo medo que sentiam aqueles que dirigiam a administração do Estado cuja consoli dação era continuamente minada mas também determinada pela ameaça de distúrbios e desordens sociais No entanto isso não era tudo Não se pode esquecer que o proletariado mendicante e revoltoso que forçava os ricos a viajar em charretes para escapar de seus ataques ou a ir para a cama com duas pistolas de baixo do travesseiro foi o mesmo sujeito social que aparecia cada vez mais como fonte de toda a riqueza Era o mesmo proletariado sobre o qual os mercantilis tas os primeiros economistas da sociedade capitalista nunca se cansaram de repetir embora sem tanta certeza que quanto mais melhor lamentando frequentemente a quantidade de corpos desperdiçados na forca126 125 O medo que as classes baixas os vis os miseráveis na gíria da época inspi ravam na classe dominante pode medirse na história relatada em Social England Illustrated 1903 Inglaterra social ilustrada Em 1580 Francis Hitchcock em um panfleto intitulado Presente de Ano Novo para Inglaterra elevou a proposta de recrutar os pobres do país na Marinha argumentando que as pessoas miseráveis são aptas a participar de uma rebe lião ou tomar partido por quem quiser invadir esta nobre ilha reúnem as condições para prover soldados ou guerreiros à fortuna dos homens ricos Pois eles podem indicar com seus dedos ali está é aquele e ele tem e desta maneira alcançar o martírio de muitas pessoas ricas por sua fortuna A proposta de Hitchcock foi no entanto derrotada objetouse que se os pobres da Inglaterra fossem recrutados na Marinha roubariam os barcos e se tornariam piratas Social England Illustrated 1903 pp 856 126 Eli F Heckscher escreve que em seu trabalho teórico mais importante A Treatise of Taxes and Contributions 1662 Um tratado sobre impostos e contribui ções Sir William Petty propôs substituir todas as penas por trabalhos forçados o que aumentaria o trabalho e o tesouro público Por que não perguntava Petty castigar os 249 248 Muitas décadas se passaram antes que o conceito de valor do trabalho entrasse no panteão do pensamento econômico No entanto o fato de o trabalho a indústria mais do que a terra ou qualquer outra riqueza natural ter se convertido na fonte principal de acumulação foi uma verdade bem compreendida em um tempo no qual o baixo nível de desenvolvimento tecnológico fez dos seres humanos o recurso produtivo mais importante Como disse Thomas Mun flho de um comerciante londrino e portavoz da doutrina mercantilista sabemos que nossas próprias mercadorias não nos rendem tanto lucro quanto nossa indústria Pois o ferro não é de grande valor se está nas minas quando comparado com o uso e com as vantagens que este aporta quando é extraído testado transportado comprado vendido fundido em armamento mosquetes forjado em âncoras parafusos palhetas pregos e coisas similares para ser usado em embarcações casas carroças carros arados e outros instrumentos de cultivo Abbott 1946 p 2 Até mesmo o Próspero de Shakespeare insiste neste feito econômico fundamental em um breve solilóquio sobre o valor do trabalho que ele direciona a Miranda após ela ter manifesta do o desgosto absoluto que lhe produzia Calibã Contudo Não podemos dispensálo Acendenos o fogo Traznos lenha e nos presta serviços variados De muita utilidade Shakespeare A tempestade Ato I Cena 2 ladrões insolventes com a escravidão em vez de morte Enquanto forem escravos podem ser tão forçados por tão pouco quanto a natureza o permita convertendose assim em homens agregados à Nação e não em um a menos Heckscher 1962 II p 297 Na Fran ça Colbert exortou a Corte de Justiça a condenar à galé tantos convictos quanto fossem possíveis a fim de manter este corpo necessário ao Estado ibidem pp 2989 O corpo então passou ao primeiro plano das políticas sociais porque aparecia não apenas como uma besta inerte diante dos estímulos do trabalho mas como um recipiente de força de trabalho um meio de produção a máquina de trabalho primária Esta é a razão pela qual encontramos muita violência e também muito interesse nas estratégias que o Estado adotou com relação ao corpo e o estudo dos movimentos e das proprie dades do corpo se converteu no ponto de partida para boa parte da especulação teórica da época já utilizada por Descartes para afrmar a imortalidade da alma ou por Hobbes para inves tigar as premissas da governabilidade social Efetivamente uma das principais preocupações da nova flosofa mecânica era a mecânica do corpo cujos elementos constitutivos desde a circulação do sangue até a dinâmica da fala desde os efeitos das sensações até os movimentos voluntá rios e involuntários foram separados e classifcados em todos os seus componentes e possibilidades O Tratado do Homem publicado em 1664127 é um verdadeiro manual anatômico ainda que a anatomia que realiza seja tanto psicológica quanto física Uma tarefa fundamental do projeto de Descartes foi instituir uma divisão ontológica entre um domínio considerado puramente mental e outro puramente físico Cada costume cada atitude e cada sensação são desta maneira defnidas seus limites são marcados e suas possibilidades equilibradas com tal meticulosidade que se pode ter a impressão de que o livro da natureza humana foi aberto pela primeira vez ou mais provável que uma nova terra foi descoberta e os conquistado res estão se apressando em trazer um mapa de suas veredas 127 O Tratado do Homem Traité de lHomme publicado doze anos depois da morte de Descartes como LHomme de René Descartes 1664 abre o período maduro do filósofo Aplicando a física de Galileu a uma investigação dos atributos do corpo Des cartes tentou explicar todas as funções fisiológicas como matéria em movimento Desejo que considerem escreveu Descartes no final do Tratado do Homem 1972 p 113 que todas as funções que atribuí a esta máquina se deduzam naturalmente da disposição de seus órgãos tal e como os movimentos de um relógio ou outro autômato se deduzem da organização dos contrapesos e rodas 251 250 em compilar a lista de seus recursos naturais e em avaliar suas vantagens e desvantagens Neste aspecto Hobbes e Descartes foram representantes de sua época O cuidado que exibem na exploração dos detalhes da realidade corporal e psicológica reaparece na análise puritana das inclinações e talentos individuais128 Este último selou o começo de uma psicologia burguesa que neste caso estudava explicitamente todas as faculdades humanas desde o ponto de vista de seu potencial para o trabalho e de sua contribuição para a disciplina Outro signo da nova curiosidade pelo corpo e de uma mudança com relação às formas de ser e os costumes de épocas anteriores que permitiram que o corpo pudesse se abrir segundo as palavras de um médico do século XVII foi 128 Um princípio puritano consistia em que Deus dotou o homem de dons espe ciais que o fazem apto para uma vocação particular daí a necessidade de um autoexame meticuloso para esclarecer a vocação para a qual fomos designados Morgan 1966 pp 723 Weber 1958 p 47 e segs Lição de anatomia na Universidade de Pádua O teatro de anatomia revelou ao público um corpo desencantado e profanado em De Fascículo de Medicina Veneza 1494 o desenvolvimento da anatomia como disciplina científca de pois de sua relegação à obscuridade intelectual durante a Idade Média Wightman 1972 pp 909 Galzigna 1978 Ao mesmo tempo que o corpo aparecia como o principal protagonista da cena flosófca e política um aspecto surpreen dente destas investigações foi a concepção degradada que se formara dele O teatro anatômico129 expõe à vista pública um corpo desencantado e profanado que apenas no princípio pode ser concebido como a morada da alma e que em troca é tratado como uma realidade separada Galzigna 1978 pp 1634130 Aos olhos do anatomista o corpo é uma fábrica tal qual mostra o título fundamental de Andrea Vesalius sobre seu trabalho da indústria de dissecação De humani corporis fabrica 1543 Da organização do corpo humano Na flosofa mecanicista se descreve o corpo por uma analogia com a máquina com fre quência colocando a ênfase em sua inércia O corpo é concebido como matéria bruta completamente divorciada de qualquer qualidade racional não sabe não deseja não sente O corpo é puramente uma coleção de membros disse Descartes em seu Discurso do Método de 1634 1973 vol I p 152 Nicolás Malebrance em Entretiens sur la métaphysique sur la religion et sur la mort 1688 Diálogos sobre a metafísica sobre a religião e sobre a morte faz eco disso e formula a pergunta decisiva 129 Como mostrou Giovanna Ferrai uma das principais inovações introduzidas pelo estudo da anatomia na Europa do século XVI foi o teatro anatômico onde se organizava a dissecação como uma cerimônia pública sujeita a normas similares às que regulavam as funções teatrais Tanto na Itália como no exterior as lições públicas de anatomia se haviam convertido na época moderna em cerimônias ritualizadas que se realizavam em lugares especialmente destinados a elas Sua semelhança com as funções teatrais é imediatamente visível se se tem em conta algumas de suas características a divisão das lições em fases distintas a implantação de uma entrada de pagamento e a interpretação de música para entreter a audiência as regras introduzidas para regular o comportamento dos assistentes e o cuidado colocado na produção W S Heckscher sustenta inclusive que muitas técnicas gerais de teatro foram desenhadas originalmente tendo em mente as funções das lições de anatomia públicas Ferrari 1987 pp 823 130 Segundo Mario Galzigna da revolução epistemológica realizada pela ana tomia no século XVI é que surge o paradigma mecanicista O corte anatômico rompe o laço entre microcosmos e macrocosmos e apresenta o corpo tanto como uma realidade separada quanto como um elemento de produção nas palavras de Vesalio uma fábrica 253 252 Pode o corpo pensar para responder imediatamente Não sem dúvida alguma pois todas as modifcações de tal extensão consistem apenas em percepções raciocínio prazeres desejos sentimentos em uma palavra pensamentos Popkin 1966 p 280 Também para Hobbes o corpo é um conglomerado de movimentos mecânicos que ao necessitar de poder autônomo opera a partir de uma causalidade externa em um jogo de atrações e aversões em que tudo está regulado como em um autômato Leviatã parte I capítulo VI No entanto é correto o que sustenta Michel Foucault sobre a flosofa mecanicista e igualmente o que afrma com relação às disciplinas sociais dos séculos XVII e XVIII Foucault 1977 p 137 Neste período encontramos uma perspectiva distinta do ascetismo medieval em que a degradação do corpo tinha uma função puramente negativa que buscava estabelecer a natureza temporal e ilusória dos prazeres terrenos e consequentemente a necessidade de renunciar ao próprio corpo Na flosofa mecanicista se percebe um novo espírito burguês que calcula classifca faz distinções e degrada o corpo só para racionalizar suas faculdades o que aponta não apenas para a intensifcação de sua sujeição mas também para maximização de sua utilidade social ibidem pp 1378 Longe de renunciar ao corpo os teóricos mecanicistas tratavam de conceituálo de tal forma que suas operações se fzessem inteli gíveis e controláveis Daí vem o orgulho mais do que a comise ração com que Descartes insiste que esta máquina como ele chama o corpo de maneira persistente no Tratado do Homem é apenas um autômato robô e que sua morte não deve ser mais lamentada do que a quebra de uma ferramenta131 131 Em As paixões da alma Artigo VI Descartes também minimiza a diferença que existe entre um corpo vivente e um morto Descartes 1973 t I ibidem pode mos julgar que o corpo de um homem vivo se diferencia do de um homem morto tanto quanto um relógio de outro autômato quer dizer uma máquina que se move a si mesma quando se dá corda e contém dentro de si o princípio corporal destes movimentos se diferencia do mesmo relógio ou de outra máquina quando está quebrada e quando o Certamente nem Hobbes nem Descartes dedicaram muita atenção aos assuntos econômicos e seria absurdo ler em suas flosofas as preocupações cotidianas dos comerciantes ingleses ou holandeses No entanto não podemos evitar observar as importantes contribuições que suas especulações em torno da natureza humana fzeram à aparição de uma ciência capitalista do trabalho A concepção de que o corpo era algo mecânico vazio de qualquer teleologia intrínseca as virtudes ocultas atribuídas ao corpo tanto pela magia natural quanto pelas superstições populares da época pretendia fazer inteligível a possibilidade de subordinálo a um processo de trabalho que dependia cada vez mais de formas de comportamento unifor mes e previsíveis Uma vez que seus mecanismos foram desconstruídos e ele próprio foi reduzido a uma ferramenta o corpo pôde ser aberto à manipulação infnita de seus poderes e de suas possibilida des Fezse possível investigar os vícios e os limites da imagi nação as virtudes do hábito e os usos do medo como certas paixões podem ser evitadas ou neutralizadas e como podem ser utilizadas de forma mais racional Neste sentido a flosofa mecanicista contribuiu para incrementar o controle da classe dominante sobre o mundo natural o que constitui o primeiro passo e também o mais importante no controle sobre a natureza humana Assim como a natureza reduzida à Grande Máquina pôde ser conquistada e segundo as palavras de Bacon penetrada em todos seus segredos da mesma maneira o corpo esvaziado de suas forças ocultas pôde ser capturado em um sistema de sujeição em que seu comportamento pôde ser calculado organizado pensado tecnicamente e investido de relações de poder Foucault 1977 p 30 Para Descartes existe uma identidade entre o corpo e a natureza já que ambos estão compostos das mesmas partículas princípio de seu movimento deixa de atuar 255 254 e ambos atuam obedecendo a leis físicas uniformes postas em marcha pela vontade de Deus Desta maneira o corpo cartesiano não apenas se empobrece e perde toda virtude mágica na grande divisória ontológica que institui Descartes entre a essência da humanidade e suas condições acidentais o corpo está divorciado da pessoa está literalmente desumanizado Não sou este cor po insiste Descartes ao longo de suas Meditações 1641 E efe tivamente em sua flosofa o corpo confui com um continuum mecânico de matéria que a vontade pode contemplar agora sem travas como objeto próprio de dominação Como veremos Descartes e Hobbes expressam dois pro jetos diferentes com relação à realidade corporal No caso de Descartes a redução do corpo à matéria mecânica faz possível o desenvolvimento de mecanismos de autocontrole que sujeitam o corpo à vontade Para Hobbes em contraste a mecanização do corpo serve de justifcação para a submissão total do indivíduo ao poder do Estado Em ambos no entanto o resultado é uma redefnição dos atributos corporais que ao menos idealmente fazem com que o corpo seja apropriado para a regularidade e para o automatismo exigido pela disciplina do trabalho capita lista132 Ponho ênfase no idealmente porque nos anos em que Descartes e Hobbes escreviam seus tratados a classe dominante tinha que se confrontar com uma corporalidade que era muito diferente da que aparecia nas prefgurações destes flósofos De fato é difícil reconciliar os corpos insubordinados que rondam a literatura social do Século de Ferro com as imagens dos relógios por meio dos quais Descartes e Hobbes 132 De particular importância neste contexto foi o ataque à imaginação vis imaginativa que na magia natural dos séculos XVI e XVII era considerada uma força poderosa por meio da qual o mago podia afetar o mundo circundante e trazer saúde ou enfermidade não apenas a seu próprio corpo mas também a outros corpos Easlea 1980 p 94 e segs Hobbes dedicou um capítulo do Leviatã a demonstrar que a ima ginação é apenas um sentido em decadência similar nisso à memória sendo que esta se torna gradualmente debilitada pelo traslado dos objetos de nossa percepção parte I capítulo 2 também pode encontrarse uma crítica da imaginação em Religio Medici 1642 A religião de um médico de Sir Thomas Browne representavam o corpo em seus trabalhos Não obstante embora aparentemente distanciadas dos assuntos cotidianos da luta de classes é nas especulações destes flósofos que se encontram as primeiras conceitualizações sobre a transforma ção do corpo em máquina de trabalho o que constitui uma das principais tarefas da acumulação primitiva Quando por exem plo Hobbes declara que o coração é apenas uma mola e as articulações apenas muitas rodas percebemos em suas palavras um espírito burguês em que não apenas o trabalho é a condição e o motivo de existência do corpo mas que também sente a necessidade de transformar todos os poderes corporais em força de trabalho Este projeto é chave para compreender por que tanta especulação flosófca e religiosa dos séculos XVI e XVII está composta de uma verdadeira vivissecção do corpo humano por meio da qual se decidia quais de suas propriedades poderiam viver e quais em troca deveriam morrer Tratavase de uma alquimia social que não convertia metais comuns em ouro mas sim poderes corporais em força de trabalho A mesma relação que o capitalismo introduziu entre a terra e o trabalho estava começando a tomar o controle sobre a relação entre o corpo e o trabalho Enquanto o trabalho começava a ser considerado como uma força dinâmica capaz de um desenvolvimento inf nito o corpo era visto como matéria inerte e estéril que apenas poderia se mover numa condição similar à relação que Newton estabelecera para a massa e o movimento em que a massa tendia à inércia a menos que se aplicasse sobre ela uma força Do mesmo modo que a terra o corpo tinha que ser cultivado e antes de mais nada decomposto em partes de tal maneira que pudesse liberar seus tesouros escondidos Pois enquanto o cor po é a condição de existência da força de trabalho é também seu limite já que constitui o principal elemento de resistência à sua utilização Não era sufciente então decidir que em si mesmo o 257 256 corpo não tinha valor O corpo tinha que viver para que a força de trabalho pudesse viver O que morreu foi o conceito do corpo como receptáculo de poderes mágicos que havia predominado no mundo medieval Na realidade este conceito foi destruído Por trás da nova flo sofa encontramos a vasta iniciativa do Estado a partir da qual o que os flósofos classifcaram como irracional foi considera do crime Esta intervenção estatal foi o subtexto necessário da flosofa mecanicista O saber apenas pode converterse em poder se conseguir fazer cumprir suas prescrições Isso signifca que o corpo mecânico o corpomáquina não poderia ter se convertido em modelo de comportamento social sem a destruição por parte do Estado de uma ampla gama de cren ças précapitalistas práticas e sujeitos sociais cuja existência contradizia a regulação do comportamento corporal prometido pela flosofa mecanicista É por isso que em plena Era da Razão a idade do ceticismo e da dúvida metódica encontra mos um ataque feroz ao corpo frmemente apoiado por muitos dos que subscreviam a nova doutrina Assim é como devemos ler o ataque contra a bruxaria e con tra a visão mágica do mundo que apesar dos esforços da Igreja seguia predominante em escala popular durante a Idade Média O substrato mágico formava parte de uma concepção animista da natureza que não admitia nenhuma separação entre a ma téria e o espírito e deste modo imaginava o cosmos como um organismo vivo povoado de forças ocultas onde cada elemento estava em relação favorável com o resto De acordo com esta perspectiva na qual a natureza era vista como um universo de signos e sinais marcados por afnidades invisíveis que tinham que ser decifradas Foucault 1970 pp 267 cada elemento as ervas as plantas os metais e a maior parte do corpo humano escondia virtudes e poderes que lhe eram peculiares É por isso que existia uma variedade de práticas desenhadas para A concepção do corpo como um receptáculo de poderes mágicos derivava em grande medida da crença em uma correspondência entre o microcosmo do indivíduo e o macrocosmo do mundo celestial como ilustra a imagem do homem do zodíaco do século XVI 259 258 se apropriar dos segredos da natureza e torcer seus poderes de acordo com a vontade humana Desde a quiromancia até a adi vinhação desde o uso de feitiços até a cura receptiva a magia abria uma grande quantidade de possibilidades Havia feitiços para ganhar jogos de cartas para interpretar instrumentos desconhecidos para se tornar invisível para conquistar o amor de alguém para ganhar imunidade na guerra para fazer as crianças dormirem Thomas 1971 Wilson 2000 A erradicação destas práticas era uma condição necessária para a racionalização capitalista do trabalho dado que a magia aparecia como uma forma ilícita de poder e como um instru mento para obter o desejado sem trabalhar quer dizer aparecia como a prática de uma forma de rechaço ao trabalho A magia Frontispício da primeira edição do Doctor Faustus 1604 de Christopher Marlowe que apresenta o mago conjurando o diabo no espaço protegido de seu círculo mágico mata a indústria lamentava Francis Bacon admitindo que nada lhe parecia mais repulsivo do que a suposição de que alguém po deria alcançar coisas com um punhado de recursos inúteis e não com o suor de sua própria testa Bacon 1870 p 381 Por outro lado a magia se apoiava em uma concepção qualitativa do espaço e do tempo que impedia a normalização do processo de trabalho Como podiam os novos empresários impor hábitos repetitivos a um proletariado ancorado na crença de que há dias de sorte e dias sem sorte ou seja dias nos quais se pode viajar e outros nos quais não se deve sair de casa dias bons para se casar e outros nos quais qualquer iniciativa deve ser prudentemente evitada Uma concepção do cosmos que atribuía poderes especiais ao indivíduo o olhar magnético o poder de tornarse invisível de abandonar o corpo de submeter a vontade dos outros por meio de encantos mágicos era igual mente incompatível com a disciplina do trabalho capitalista Não seria frutífero investigar se estes poderes eram reais ou imaginários Podese dizer que todas as sociedades préca pitalistas acreditaram neles e que em tempos recentes fomos testemunhas de uma revalorização de práticas que na época a que nos referimos foram condenadas por bruxaria Este é por exemplo o caso do crescente interesse pela parapsicologia e o biofeedback que se aplicam cada vez mais inclusive na medicina convencional O renovado interesse pelas crenças mágicas é possível hoje porque elas já não representam uma ameaça social A mecanização do corpo é a tal ponto constitu tiva do indivíduo que ao menos nos países industrializados a crença em forças ocultas não coloca em perigo a uniformidade do comportamento social Também se admite que a astrologia reapareça com a certeza de que até mesmo o consumidor mais assíduo de cartas astrais consultará automaticamente o relógio antes de ir para o trabalho Sem dúvida essa não era a única opção para a classe 261 260 dominante do século XVII que nesta fase inicial e experimental do desenvolvimento capitalista não havia alcançado o controle social necessário para neutralizar a prática da magia e que tampouco podia integrar funcionalmente a magia à organiza ção da vida social Desde o seu ponto de vista pouco importava se os poderes que as pessoas diziam ter ou aspiravam ter eram reais ou não pois a mera existência de crenças mágicas era uma fonte de insubordinação social Tomemos por exemplo a difundida crença na possibili dade de encontrar tesouros escondidos com a ajuda de feitiços mágicos Thomas 1971 pp 2347 Esta crença era certamente um obstáculo à instauração de uma disciplina do trabalho rigorosa e cuja aceitação fora inerente Igualmente ameaçador foi o uso que as classes baixas fzeram das profecias que parti cularmente durante a Revolução Inglesa como já o haviam feito na Idade Média serviram para formular um programa de luta Elton 1972 p 142 e segs As profecias não são simplesmente a expressão de uma resignação fatalista Historicamente têm sido um meio pelo qual os pobres expressam seus desejos com o fm de dotar seus planos de legitimidade e de motivarse para atuar Hobbes reconheceu isso quando advertiu Não há nada que dirija tão bem os homens em suas deliberações como a previsão das consequências de suas ações a profecia é muitas vezes a causa principal dos acontecimentos prognostica dos Hobbes Behemot Works VI p 399 Contudo além dos perigos que apresentava a magia a burguesia tinha que combater seu poder porque ele debilitava o princípio de responsabilidade individual já que a magia rela cionava as causas da ação social com as estrelas o que estava fora de seu alcance e seu controle Deste modo mediante a racionalização do espaço e do tempo que caracterizou a especu lação flosófca dos séculos XVI e XVII a profecia foi substituída pelo cálculo de probabilidades cuja vantagem do ponto de vista capitalista é que o futuro pode ser antecipado apenas enquanto se suponha que o futuro será como o passado e que nenhuma grande mudança nenhuma revolução alterará as condições nas quais os indivíduos tomam decisões De maneira similar a burguesia teve que combater a suposição de que é possível estar em dois lugares ao mesmo tempo pois a fxação do corpo no espaço e no tempo quer dizer a identifcação espaçotemporal do indivíduo é uma condição essencial para a regularidade do processo de trabalho133 A incompatibilidade da magia com a disciplina do trabalho capitalista e com a exigência de controle social é uma das ra zões pelas quais o Estado lançou uma campanha de terror con tra a magia um terror aplaudido sem reservas por muitos dos que hoje em dia são considerados fundadores do racionalismo científco Jean Bodin Mersenne o flósofo mecanicista e mem bro da Royal Society Richard Boyle e o mestre de Newton Isaac Barrow134 Até mesmo o materialista Hobbes mantendo distân cia deu sua aprovação Quanto às bruxas escreveu 1963 p 67 não creio que sua bruxaria contenha em si nenhum poder efetivo mas é justo que as castiguem pela falsa crença que têm de ser a causa do malefício e ademais por seu propósito de fazêlo se puderem Defendeu que se se eliminassem estas superstições os homens estariam mais dispostos do que estão à obediência cívica ibidem Hobbes estava bem assessorado As fogueiras nas quais as 133 Escreve Hobbes 1963 p72 Consequentemente ninguém pode conceber uma coisa sem situála em algum lugar provida de uma determinada magnitude e susce tível de dividirse em partes não é possível que uma coisa esteja neste lugar e em outro ao mesmo tempo nem que duas ou mais coisas estejam ao mesmo tempo em um mesmo e idêntico lugar 134 Entre os partidários da caça às bruxas se encontrava Sir Thomas Browne um médico e segundo dizem um dos primeiros defensores da liberdade científica cujo trabalho aos olhos de seus contemporâneos apresentava um perigoso aroma de ceti cismo Gosse 1905 p 25 Thomas Browne contribuiu pessoalmente à morte de duas mulheres acusadas de serem bruxas que não fosse sua intervenção teriam sido salvas da forca já que as acusações contra elas eram absurdas Gosse 1905 pp 1479 Para uma análise detalhada deste julgamento ver Gilbert Geis e Ivan Bunn 1997 263 262 bruxas e outros praticantes da magia morreram e as câmaras em que se executaram suas torturas foram um laboratório onde tomou forma e sentido a disciplina social e onde muitos conhecimentos sobre o corpo foram adquiridos Com as foguei ras se eliminaram aquelas superstições que faziam obstáculo à transformação do corpo individual e social em um conjunto de mecanismos previsíveis e controláveis E foi aí novamente onde nasceu o uso científco da tortura pois foram necessários o sangue e a tortura para criar um animal capaz de um com portamento regular homogêneo e uniforme marcado a fogo com o sinal das novas regras Nietzsche 1965 pp 18990 Um elemento signifcativo neste contexto foi a condenação do aborto e da contracepção como um malefcium o que deixou o corpo feminino o útero foi reduzido a uma máquina para a re produção do trabalho nas mãos do Estado e da profssão médica Voltarei a este ponto no capítulo sobre a caça às bruxas no qual sustento que a perseguição das bruxas foi o ponto culminante da intervenção estatal contra o corpo proletário na Era Moderna É necessário insistir que apesar da violência empregada pelo Estado o disciplinamento do proletariado continuou lentamente ao longo do século XVII assim como durante o século XVIII frente a uma forte resistência que nem sequer o medo da execução pôde superar Um exemplo emblemático dessa resistência é analisado por Peter Linebaugh em The Tyburn Riots Against the Surgeons As revoltas de Tyburn contra os cirurgiões Segundo Linebaugh no início do século XVIII durante uma execução em Londres os familiares e amigos do condenado lutaram pra evitar que os assistentes dos cirurgiões se apropriassem do cadáver com o fm de usálo em estudos anatômicos Linebaugh 1975 A batalha foi feroz porque o medo de ser dissecado não era menor que o medo da morte A dissecação eliminava a possibilidade de que o condenado pudesse recuperar os sentidos após um enforcamento mal A câmara de tortura Gravura de 1809 por Manet em Joseph Lavalee Histoires des Inquisitions Religieuses dItalie dEspagne et de Portugal História das inquisições religiosas da Itália de Espanha e de Portugal feito tal e como ocorria frequentemente na Inglaterra do século XVIII ibidem pp 1024 Entre a população se difundiu uma concepção mágica do corpo segundo a qual este continuava vivo depois da morte e esta o enriquecia com novos poderes Acreditavase que os mortos tinham o poder de regressar e levar a cabo sua última vingança contra os vivos Acreditavase também que um cadáver tinha virtudes curativas Deste modo multidões de enfermos se reuniam ao redor das forcas espe rando dos membros dos mortos efeitos tão milagrosos quanto aqueles atribuídos pelo toque do rei ibidem pp 10910 A dissecação aparecia assim como uma infâmia maior uma segunda morte ainda mais defnitiva e os condenados passavam seus últimos dias assegurandose de que seu corpo 265 não seria abandonado nas mãos dos cirurgiões A batalha que se dava aos pés da forca colocava à mostra tanto a violência predominante na racionalização científca do mundo como o choque de dois conceitos opostos de corpo Por um lado temos um conceito de corpo que lhe confere poderes depois da morte o corpo não inspira repulsa e não é tratado como algo apodrecido ou alheio Por outro lado o corpo é considerado morto embora ainda esteja vivo já que é concebido como um instrumento mecânico que pode ser desmantelado como se se tratasse de uma máquina Nas forcas junto à cruz das ruas Tyburn e Edware escreve Peter Linebaugh encontramos a conexão entre a his tória dos pobres de Londres e a história da ciência inglesa Esta não foi uma coincidência tampouco foi uma coincidência que o progresso da anatomia dependesse da capacidade dos cirurgiões para arrebatar os corpos pendurados em Tyburn135 O curso da racionalização científca estava intimamente ligado à tentativa por parte do Estado de impor seu controle sobre uma força de trabalho que não estava disposta a colaborar Esta tentativa foi ainda mais importante como determi nante das novas práticas com relação ao corpo que o desen volvimento da tecnologia Tal como sustenta David Dickson a conexão entre a nova visão científca do mundo e a crescente mecanização da produção apenas pode se sustentar como uma metáfora Dickson 1979 p 24 Certamente o relógio e os mecanismos automáticos que tanto intrigavam Descartes e seus contemporâneos por exemplo as estátuas movidas hi draulicamente eram modelos para uma nova ciência e para as 135 Em todos os países da Europa do século XVI onde floresceu a anatomia as autoridades aprovaram estatutos que permitiam que os corpos dos executados fossem usados em estudos anatômicos Na Inglaterra o Colégio Médico ingressou no campo da anatomia em 1565 quando Elizabeth I concedeu o direito de apropriarse dos corpos de delinquentes dissecados OMalley 1964 Sobre a colaboração entre as autoridades e os anatomistas em Bolonha durante os séculos XVI e XVII ver Giovanna Ferrari 1984 pp 59 60 64 878 que assinala que não apenas os executados mas também todos os piores entre os que morriam no hospital eram separados para os anatomistas Em um caso uma condenada à prisão perpétua foi trocada por uma condenada à morte para satisfazer a demanda dos acadêmicos Um exemplo revelador na nova concepção mecânica do corpo nesta xilogravura alemã do século XVI na qual um camponês é representado como nada mais do que um meio de produção seu corpo composto inteiramente de utensílios agrícolas 267 266 especulações da flosofa mecanicista sobre os movimentos do corpo Certo é também que a partir do século XVII as analogias anatômicas provinham das ofcinas de produção os braços eram considerados como alavancas o coração como uma bom ba os pulmões como fole os olhos como lentes o punho como um martelo Munford 1962 p 32 No entanto estas metáforas mecânicas não refetiam a infuência da tecnologia como tal senão o feito de que a máquina estava se convertendo no modelo de comportamento social A força inspiradora da necessidade de controle social é evidente até mesmo no campo da astronomia Um exemplo clássico é o de Edmond Halley secretário da Royal Society que concomitantemente à aparição em 1695 do cometa que logo receberia seu nome organizou clubes em toda Inglaterra para demonstrar a previsibilidade dos fenômenos naturais e dissipar a crença popular de que os cometas anunciavam as desordens sociais O caminho da racionalização científca confuiu com o disciplinamento do corpo social de maneira ainda mais evidente nas ciências sociais Podemos ver efe tivamente que seu desenvolvimento teve como premissas a homogeneização do comportamento social e a construção de um indivíduo prototípico ao que se esperava que todos se ajustassem Nos termos de Marx este é um indivíduo abstra to construído de maneira uniforme como uma média social social average e sujeito a uma descaracterização radical de tal modo que todas as suas faculdades apenas podem ser apreendidas a partir de seus aspectos mais normalizados A construção deste novo indivíduo foi a base para o desenvol vimento do que William Petty chamaria mais tarde usando a terminologia hobbesiana de aritmética política uma nova ciência que estudaria cada forma de comportamento social em termos de números pesos e medidas O projeto de Petty se realizou com o desenvolvimento da estatística e da demografa Wilson 1966 Cullen 1975 que efetuam sobre o corpo social as mesmas operações que a anatomia efetua sobre o corpo individual dissecando a população e estudando seus movi mentos das taxas de natalidade às taxas de mortalidade das estruturas geracionais até as ocupacionais em seus aspectos mais massifcados e regulares Também é possível observar que desde o ponto de vista do processo de abstração pelo qual passa o indivíduo na transição ao capitalismo o desenvolvi mento da máquina humana foi o principal salto tecnológico o passo mais importante no desenvolvimento das forças pro dutivas que teve lugar no período de acumulação primitiva J Case Compendium Anatomicum 1696 Compêndio anatômico Em contraste com o homem mecânico há esta imagem do homem vegetal na qual os vasos sanguíneos são vistos como ramos crescendo a partir do corpo humano 269 268 Podemos observar em outras palavras que a primeira máquina desenvolvida pelo capitalismo foi o corpo humano e não a má quina a vapor nem tampouco o relógio Contudo se o corpo é uma máquina surge imediatamente um problema como fazêlo trabalhar Das teorias da flosofa mecânica derivam dois modelos diferentes de governo do corpo De um lado temos o modelo cartesiano que a partir da suposição de um corpo puramente mecânico postula a possibilidade de que no indivíduo se desenvolvam mecanismos de autodisciplina de autocontrole selfmanagement e de autorregulação que tornem possíveis as relações de trabalho voluntárias e o governo baseado no consentimento De outro lado está o modelo hobbesiano que ao negar a possibilidade de uma razão livre do corpo externaliza as funções de mando consignandoas à autoridade absoluta do Estado O desenvolvimento de uma teoria do autocontrole a partir da mecanização do corpo é o centro das atenções da flosofa de Descartes quem recordemos não completou sua formação intelectual na França do absolutismo monárquico mas sim na Holanda burguesa que elegeu como morada na medida em que combinava mais com seu espírito As doutrinas de Descartes possuem um duplo objetivo negar que o comportamento hu mano possa verse infuenciado por fatores externos tais como as estrelas ou as inteligências celestiais e liberar a alma de qualquer condicionamento corporal fazendoa assim capaz de exercer uma soberania ilimitada sobre o corpo Descartes acreditava que podia levar a cabo ambas as tarefas a partir da demonstração da natureza mecânica do com portamento animal Nada dizia em Le Monde 1633 O mundo causa mais erros do que a crença de que os animais têm alma como nós Por isso quando preparava seu Tratado do Homem dedicou muitos meses a estudar a anatomia de órgãos dos animais toda manhã ia ao matadouro para observar o corte das bestas136 Fez inclusive muitas vivissecções consolado possi velmente por sua crença de que tratandose apenas de seres inferiores despojados de razão os animais que ele dissecava não podiam sentir nenhuma dor Rosenfeld 1968 p 8137 136 De acordo com o primeiro biógrafo de Descartes Monsieur Adrien Baillet durante sua estadia em Amsterdam em 1629 enquanto preparava seu Tratado do Homem Descartes visitou os matadouros da cidade e fez dissecções de diferentes partes dos animais começou a execução do seu plano estudando anatomia à qual se dedicou durante todo o inverno em que esteve em Amsterdã Declarou ao padre Marsenne que em seu entusiasmo para conhecer sobre este tema havia visitado um açougueiro quase diariamente com a finalidade de presenciar a matança e que ele o havia permitido que levasse a sua casa os órgãos animais que quisesse para dissecálos com maior tranquili dade Com frequência fez o mesmo em outros lugares onde esteve posteriormente sem encontrar nada pessoalmente vergonhoso ou que não estivesse à altura de sua posição em uma prática que em si mesma era inocente e que podia produzir resultados muito úteis Por isso se riu de certa pessoa maliciosa e invejosa que havia tratado de fazêlo passar por um criminoso e o havia acusado de ir pelos povoados para ver como matavam os cervos Não deixou de observar o que Versalius e os mais experientes entre os outros autores haviam escrito sobre anatomia Contudo aprendeu de uma maneira mais segura dissecan do pessoalmente animais de diferentes espécies Descartes 1972 XIIIXIV Em uma carta a Mersenne de 1633 escreveu Eu anatomizo agora as cabeças de di versos animais para explicar em que consiste a imaginação a memória Cousin 1824 26 vol IV p 255 Também em uma carta de 20 de janeiro relata em detalhe experimentos de dissecção Após ter aberto o peito de um coelho vivo de maneira que o tronco e o coração da aorta se vejam facilmente Seguindo a dissecção desse animal vivo eu corto essa parte do coração que chamamos de sua ponta ibidem vol VII p 350 Finalmente em junho de 1640 em resposta a Marsenne que lhe havia perguntado por que os animais sentem dor se não possuem alma Descartes assegurou que eles não sentem pois dor existe apenas quando há entendimento que é ausente nas bestas Rosenfield 1968 p 8 Este argumento insensibilizou muitos contemporâneos cientificistas de Descartes sobre a dor que a vivissecção causava nos animais Assim é como Nicolas de la Fontaine descrevia a atmosfera criada em Port Royal pela crença no automatismo dos animais Apenas havia um solitário que não falasse em autômato Ninguém dava im portância ao fato de golpear um cachorro com a maior indiferença lhe davam pauladas rindo daqueles que se compadeciam de tais bestas como se estas tivessem sentido dor de verdade Se dizia que eram relógios que aqueles gritos que lançavam ao ser golpeados não eram mais que o ruído de um pequeno impulso que haviam colocado em marcha mas que de modo algum havia nele sentimento Cravavam os pobres bichos sobre tábuas pelas quatro patas para cortálos em vida e ver a circulação do sangue que era grande matéria de discussão Rosenfield 1968 p 54 137 A doutrina de Descartes sobre a natureza mecânica dos animais representava uma inversão total com respeito à concepção dos animais que havia prevalecido durante a Idade Média e até o século XVI quando eram considerados seres inteligentes responsáveis com uma imaginação particularmente desenvolvida e inclusive com capacidade de falar Como Eward Westermark e mais recentemente Esther Cohen mostraram em alguns países da Europa se julgavam os animais e às vezes eram executados publicamente por crimes que haviam cometido Um advogado era designado para eles e o processo julgamento conde nação e execução era realizado com todas as formalidades legais Em 1565 os cidadãos de Arles por exemplo pediram a expulsão das lagostas de seu povoado e em outro caso foram excomungados os vermes que infestavam uma paróquia O último julgamento de um animal teve lugar na França em 1845 Os animais também eram aceitos na corte como testemunhas para o compurgatio compurgação Um homem que havia sido condenado por assassinato compareceu ante a corte com seu gato e seu galo em presença deles jurou que era inocente e foi liberado Westermarck 1924 p 254 e segs Cohen 1986 271 270 Demonstrar a brutalidade dos animais era fundamental para Descartes ele estava convencido de que poderia encontrar aí a resposta para suas perguntas sobre a localização a natureza e o alcance do poder que controlava a conduta humana Acreditava que em um animal dissecado poderia encontrar a prova de que o corpo só é capaz de realizar ações mecânicas e involuntárias e que portanto o corpo não é constitutivo da pessoa a essência humana reside então em faculdades puramente imateriais Para Descartes o corpo humano é também um autômato mas o que diferencia o homem da besta e confere a ele domínio sobre o mundo circundante é a presença do pensamento Deste modo a alma que Descartes desloca do cosmos e da esfera da corpo ralidade retorna ao centro de sua flosofa dotada de um poder infnito na forma de razão e de vontade individuais Situado em um mundo sem alma e em um corpomáquina o homem cartesiano podia então como Próspero romper sua varinha mágica para se converter não apenas no responsável por seus atos mas também aparentemente no centro de todos os poderes Ao se dissociar de seu corpo o eu racional se desvinculava certamente de sua realidade corpórea e da natureza Sua solidão sem dúvida seria a de um rei no modelo cartesiano de pessoa não há um dualismo igualitário entre a cabeça pensante e o corpomáquina há apenas uma relação de senhorescravo já que a tarefa principal da vontade é dominar o corpo e o mundo natural No modelo cartesiano de pessoa se vê então a mesma centralização das funções de mando que neste mesmo período ocorria com o Estado assim como a tarefa do Estado era governar o corpo social na nova subjetividade a mente se converteu em soberana Descartes reconhece que a supremacia da mente sobre o corpo não se alcança facilmente já que a razão deve afron tar suas contradições internas Assim em As paixões da alma 1650 ele nos apresenta a perspectiva de uma batalha constante entre as faculdades baixas e as faculdades altas da alma que ele descreve quase em termos militares ape lando para a nossa necessidade de ser valentes e de obter as armas adequadas para resistir aos ataques de nossas paixões Devemos estar preparados para derrotas temporárias pois talvez nossa vontade não seja sempre capaz de mudar ou deter nossas paixões Mas ela pode neutralizálas desviando sua atenção para outra coisa ou pode restringir os movimentos que provocam no corpo Pode em outras palavras evitar que as paixões se convertam em ações Descartes 1973 vol I p 3545 Com a instituição de uma relação hierárquica entre a mente e o corpo Descartes desenvolveu as premissas teóricas da disciplina do trabalho requerida para o desenvolvimento da economia capitalista A supremacia da mente sobre o corpo implica que a vontade pode em princípio controlar as necessidades as reações e os refexos do corpo que pode impor uma ordem regular sobre suas funções vitais e forçar o corpo a trabalhar de acordo com especifcações externas independentemente de seus desejos Ainda mais importante é que a supremacia da vontade permite a interiorização dos mecanismos de poder Por isso a contrapartida da mecanização do corpo é o desenvolvimento da razão como juiz inquisidor gerente manager e adminis trador Aqui encontramos as origens da subjetividade burgue sa baseada no autocontrole selfmanagement na propriedade de si na lei e na responsabilidade com os corolários da me mória e da identidade Aqui encontramos também as origens dessa proliferação de micropoderes que Michel Foucault descreveu em sua crítica do modelo jurídicodiscursivo do Poder Foucault 1977 Sem dúvida o modelo cartesiano mos tra que o Poder pode ser descentralizado difundido através do corpo social apenas na medida em que volta a centrarse na pessoa que é então reorganizada como um microEstado Em outras palavras ao difundirse o Poder não perde sua força 273 272 quer dizer seu conteúdo e seus propósitos simplesmente adquire a colaboração do Eu em sua ascensão Dentro deste contexto deve considerarse a tese proposta por Brian Easlea o principal benefício que o dualismo cartesia no ofereceu à classe capitalista foi a defesa cristã da imortalida de da alma e a possibilidade de derrotar o ateísmo implícito na magia natural que estava carregada de implicações subversivas Easlea 1980 p 132 e segs Para apoiar esta perspectiva Easlea sustenta que a defesa da religião foi uma questão central no cartesianismo que particularmente em sua versão inglesa nunca esqueceu que sem espírito não há Deus nem bispo nem rei ibidem p 202 O argumento de Easlea é atrativo sua insistência nos elementos reacionários do pensamento de Descartes faz com que possa responder às perguntas que ele mesmo formula por que o controle do cartesianismo na Europa foi tão forte a ponto de inclusive depois que a física newtonia na dissipara a crença em um mundo natural carente de poderes ocultos e mesmo depois do advento da tolerância religiosa continuar dando forma à visão dominante do mundo Em mi nha opinião a popularidade do cartesianismo entre as classes médias e altas estava diretamente relacionada com o programa de domínio de si promovido pela flosofa de Descartes Em suas implicações sociais este programa foi tão importante para a elite contemporânea a Descartes que a relação hegemônica entre os seres humanos e a natureza se legitimou a partir do dualismo cartesiano O desenvolvimento do autocontrole isto é do domínio de si do desenvolvimento próprio se tornou um requisito funda mental em um sistema socioeconômico capitalista no qual se pressupunha que cada um fosse proprietário de si mesmo o que se converteu em fundamento das relações sociais e em que a disciplina já não dependia exclusivamente da coerção externa O signifcado social da flosofa cartesiana recaía em parte no fato de que lhe provia uma justifcativa intelectual Deste modo a teoria de Descartes sobre o autocontrole derrota mas também recupera o lado ativo da magia natural Deste modo substitui o poder imprevisível do mago construído a partir da manipulação sutil das infuências e das correspondências astrais por um po der muito mais rentável um poder para o qual nenhuma alma tem que ser confscada gerado apenas a partir da administra ção e da dominação dos corpos de outros seres Não podemos di zer então como fez Easlea repetindo uma crítica formulada por Leibniz que o cartesianismo não pôde traduzir seus princípios em um conjunto de regulações práticas quer dizer que não pôde demonstrar aos flósofos sobretudo aos comerciantes e fabri cantes como poderiam benefciarse com ele em sua tentativa de controlar a matéria do mundo ibidem p 151 Se o cartesianismo falhou ao dar uma tradução tecnológica a seus preceitos proveu no entanto informações valiosas em relação ao desenvolvimento da tecnologia humana Sua com preensão da dinâmica do autocontrole levaria à construção de um novo modelo de pessoa no qual o indivíduo funcionava ao mesmo tempo como senhor e como escravo Como interpretava tão bem os requerimentos da disciplina do trabalho capitalista no fnal do século XVII a doutrina de Descartes já havia se difun dido pela Europa e sobrevivido inclusive à chegada da biologia vitalista e à crescente obsolescência do paradigma mecanicista As razões do triunfo de Descartes se veem com maior clareza quando comparamos sua explicação de pessoa com a de Hobbes seu rival inglês O monismo biológico hobbesiano rechaçava o postulado de uma mente imaterial ou alma que ha via constituído a base do conceito cartesiano de pessoa e com isso a suposição cartesiana de que a vontade humana pode se libertar do determinismo corpóreo e instintivo138 Para Hobbes 138 Foi dito que a perspectiva antimecanicista de Hobbes na realidade concedia mais poderes e dinamismo ao corpo que a versão cartesiana Hobbes rechaça a ontologia 275 274 o comportamento humano era um conglomerado de ações refe xas que seguiam leis naturais precisas e obrigavam o indivíduo a lutar incessantemente pelo poder e pela dominação sobre outros 1963 p 141 e segs Daí a guerra de todos contra todos em um hipotético estado de natureza e a necessidade de um poder absoluto que garantisse por meio do medo e do castigo a sobrevivência do indivíduo na sociedade As leis de natureza tais como as da justiça equidade modéstia piedade e em defnitivo faça aos outros o que quer que façam por você são por si mesmas quando não existe o temor a um determinado poder que motive sua vigilância contrárias às nossas paixões naturais às quais nos induzem à parcialidade ao orgulho à vingança e a coisas semelhantes ibidem p 173 Como é bem sabido a doutrina política de Hobbes causou escândalo entre seus contemporâneos que a consideraram peri gosa e subversiva ao ponto de que embora desejasse fortemente Hobbes nunca foi admitido na Royal Society Bowle 1952 p 163 Apesar de Hobbes impôsse o modelo de Descartes que expressava a tendência já existente a democratizar os meca nismos de disciplina social atribuindo à vontade individual a função de mando que no modelo hobbesiano havia sido deixada unicamente nas mãos do Estado Tal como sustenta ram muitos críticos de Hobbes as bases da disciplina pública devem estar arraigadas nos corações dos homens pois na dualista de Descartes e em particular a noção da mente como substância imaterial e incorpórea A visão do corpo e da mente como um continuum monista dá conta das operações mentais recorrendo a princípios físicos e fisiológicos No entanto não menos que Descartes ele retira o poder do organismo humano assim como lhe nega movimento próprio e reduz as mudanças corporais a mecanismos de ação e reação Por exemplo para Hobbes a percepção dos sentidos é o resultado de uma açãoreação já que os órgãos e os sentidos opõem resistência aos impulsos atômicos que vêm do objeto externo a imaginação é um sentido em decadência Igualmente a razão não é outra coisa além de uma máquina de fazer cálculos Hobbes não menos que Descartes concebe as operações do corpo como termos de uma causalidade mecânica sujeitas às mesmas leis que regulam o mundo da matéria inanimada ausência de uma legislação interna os homens se dirigem inevitavelmente à revolução citado em Bowle 1951 pp 978 Para Hobbes queixavase Henry Moore não existe a liberdade da vontade e portanto não existe remorso da consciência ou da razão apenas existe a vontade de quem tem a maior espada citado em Easlea 1980 p 159 Mais explícito foi Alexander Ross que observou que o freio da consciência é o que retém os homens frente à rebelião não existe força exterior mais poderosa não existe um juiz tão severo nem um torturador tão cruel quanto uma consciência acusadora citado em Bowle 1952 p 167 É evidente que a crítica contemporânea ao ateísmo e ao materialismo de Hobbes não estava motivada por preocupações religiosas A visão de Hobbes sobre o indivíduo enquanto máqui na movida apenas por seus apetites e por suas aversões não foi rechaçada porque eliminou o conceito de criatura humana feita à imagem de Deus mas sim porque descartava a possibilidade de uma forma de controle social que não dependia exclusivamente do domínio férreo do Estado Aqui está em minha opinião a diferença principal entre a flosofa de Hobbes e o cartesianismo Esta distinção no entanto não pode ser vista se insistimos nos elementos feudais da flosofa de Descartes e particularmente em sua defesa da existência de Deus com tudo o que isso supõe como aval do poder estatal Se efetivamente privilegiamos o Descartes feudal perdemos de vista o feito de que a eliminação do elemento religioso em Hobbes isto é a crença na existência das substâncias incorpóreas era na realidade uma resposta à democratização implícita no modelo cartesiano do autocontrole de que Hobbes sem dúvida desconfava Tal como havia de monstrado o ativismo das seitas puritanas durante a Guerra Civil Inglesa o autocontrole podia transformarse facilmente em uma proposta subversiva O chamado dos puritanos a converter a gestão do comportamento próprio em consciência individual e a 277 276 fazer da consciência própria o juiz fnal da verdade havia se radi calizado nas mãos dos sectários para se converter em uma recusa anárquica da autoridade estabelecida139 O exemplo dos Digers e dos Ranters e de dezenas de pregadores mecanicistas que em nome da luz da consciência haviam se oposto à legislação do Estado e da propriedade privada devia ter convencido Hobbes de que o chamado da razão era uma perigosa arma de dois gumes140 O confito entre o teísmo cartesiano e o materialismo hobbesiano se resolveu com o tempo em uma assimilação recíproca no sentido de que como sempre na história do capitalismo a descentralização dos mecanismos de comando através de sua localização no indivíduo foi fnalmente alcan çada apenas na medida em que houve uma centralização do poder no Estado Para colocar essa resolução nos termos em que estava pautado o debate durante a Guerra Civil Inglesa nem os Digers nem o absolutismo e sim uma bem calcula da mistura de ambos em que a democratização do comando recairia sobre as costas de um Estado sempre pronto como o deus newtoniano para impor novamente a ordem sobre as almas que avançavam demasiadamente longe nas formas da autodeterminação O xis da questão foi expresso lucidamente por Joseph Glanvil membro cartesiano da Royal Society que em uma polêmica com Hobbes sustentou que o problema 139 Tal como Hobbes lamentava em Behemoth 1962 p 190 Depois que a Bíblia foi traduzia ao inglês cada homem melhor dizendo cada criança e cada moça que podia ler inglês pensava que podia falar com Deus Todo Poderoso e que compreendia o que ele dizia quando havia lido as Escrituras uma ou duas vezes vários capítulos por dia A reverência e a obediência devidas à Igreja Reformada e aos bispos e pastores foi abandonada e cada homem se converteu em juiz da religião e intérprete das Escrituras Também assinala 1962 p 194 que uma quantidade de homens costumava ir às suas paróquias e cidades em dia de trabalho abandonando suas profissões para escutar aos pregadores mecanicistas 140 É exemplar a Law of Righteousness 1649 de Gerrard Winstanley onde o mais célebre dos Diggers pergunta Winstanley 1941 p 197 Por acaso a luz da Razão fez a terra para que alguns homens acumulem em bolsas e estábulos enquanto outros são oprimidos pela pobreza Acaso a luz da Razão fez esta lei que se um homem não tem abundância de terra para dar àqueles a quem tomou emprestado aquele que empresta deve levar o outro como prisioneiro e fazer que seu corpo passe fome em um quarto fechado Por acaso a luz da Razão fez esta lei que uma parte da humanidade mate e enforque a outra parte em vez de colocarse no seu lugar fundamental era o controle da mente sobre o corpo Isso no entanto não implicava simplesmente o controle da classe do minante a mente por excelência sobre o corpoproletariado e sim o que é igualmente importante o desenvolvimento da capacidade de autocontrole dentro da pessoa Como demonstrou Foucault a mecanização do corpo não apenas supôs a repressão dos desejos das emoções e de outras formas de comportamento que tinham que ser erradicadas Também supôs o desenvolvimento de novas faculdades no indi víduo que apareceriam como outras em relação ao corpo e que se converteriam em agentes de sua transformação O produto desta alienação do corpo foi em outras palavras o desenvolvimento da identidade individual concebida precisamente como alteri dade em relação ao corpo e em perpétuo antagonismo com ele A aparição deste alter ego e a determinação de um confito histórico entre a mente e o corpo representam o nascimento do indivíduo na sociedade capitalista Fazer do próprio corpo uma realidade alheia que se deve avaliar desenvolver e manter na linha com o fm de obter dele os resultados desejados se con vertia em uma característica típica do indivíduo moldado pela disciplina do trabalho capitalista Como assinalamos entre as classes baixas o desenvol vimento do autocontrole selfmanagement como autodiscipli na foi durante muito tempo objeto de especulação A escassa autodisciplina que se esperava das pessoas comuns pode julgarse pelo fato de que já na Inglaterra no século XVIII ha via 160 crimes punidos com a pena de morte Linebaugh 1992 e todo ano milhares de pessoas comuns eram transporta das às colônias ou condenadas às galés Além disso quando a população apelava à razão era para apresentar demandas an tiautoritárias já que o domínio de si selfmastery em escala popular signifcava a rejeição da autoridade estabelecida mais do que a interiorização das normas sociais 279 278 Efetivamente durante o século XVII o domínio de si foi uma prerrogativa burguesa Como assinala Easlea quando os flósofos falavam do homem como um ser racional faziam referência exclusiva a uma pequena elite composta por homens adultos brancos e de classe alta A grande multidão dos ho mens escreveu Henry Power um seguidor inglês de Descartes se parece mais com o autômato de Descartes já que carece de qualquer poder de raciocinar e seus membros apenas podem ser chamados homens enquanto metáfora Easlea 1980 p 140141 Os da melhor classe concordavam que o proletariado era de uma raça diferente A seus olhos desconfados pelo medo o proletariado parecia uma grande besta um monstro de muitas cabeças selvagem vociferante dado a qualquer excesso Hill 1975 p 181 e segs Linebaugh e Rediker 2000 Também no plano individual o vocabulário ritual identifcava as massas como seres puramente instintivos Assim na literatura elisabe tana o mendigo é sempre vigoroso e robusto grosseiro irascível e desordenado tais são as palavras que aparecem vez ou outra nas discussões sobre a classe baixa Nesse processo o corpo não apenas perdeu todas as suas conotações naturalistas como também começou a emergir uma funçãocorpo no sentido de que o corpo se converteu em um ter mo puramente relacional que já não signifcava nenhuma reali dade específca pelo contrário o corpo passou a ser identifcado com qualquer impedimento ao domínio da razão Isso signifca que enquanto o proletariado se converteu em corpo o corpo se converteu em proletariado e em particular em sinônimo de fraqueza e irracionalidade a mulher em nós como dizia Hamlet ou ainda em selvagem africano defnido puramente 141 É tentador sugerir que essa suspeita a respeito da humanidade das classes baixas pode ser a razão pela qual poucos entre os primeiros críticos do mecanicismo cartesiano objetaram à visão mecânica do corpo humano Como assinala L C Rosenfield Esta é uma das coisas estranhas de toda a discussão nenhum dos ardentes defensores da alma animal neste primeiro período levantou seu garrote para evitar que o corpo humano fosse contaminado pelo mecanicismo Rosenfield 1968 p 25 por sua função limitadora isto é por sua alteridade com res peito à razão e tratado como um agente de subversão interna No entanto a luta contra esta grande besta não esteve dirigida apenas contra as pessoas de classe baixa Também foi interiorizada pelas classes dominantes em sua batalha contra seu próprio estado natural Como vimos assim como Próspero a burguesia também teve que reconhecer que este ser de trevas é meu isto é que Calibã era parte de si mesma Brown 1988 Tyllard 1961 pp 345 Esta consciência impreg na a produção literária dos séculos XVI e XVII A terminologia é reveladora Inclusive aqueles que não seguiam Descartes viram o corpo como uma besta que de forma constante tinha que ser mantida sob controle Seus instintos foram comparados com súditos destinados a serem governados e os sentidos foram considerados uma prisão para a alma racional Oh quem surgirá desta masmorra Uma alma escravizada de tantas formas perguntou Andrew Marvell em seu Diálogo entre a alma e o corpo Com parafusos de ossos que se levantam agrilhoados nos pés e nas mãos algemadas Aqui cegos de um olho e ali surdos com o tamborilar de uma orelha Uma alma pendurada como por uma corrente de nervos e artérias e veias Citado por Hill 1964b p 345 O confito entre os apetites e a razão foi um tema central na lite ratura elisabetana Tillayrd 1961 p 75 enquanto entre os puri tanos começou a ganhar força a ideia de que o Anticristo estava presente em todos os homens Ao mesmo tempo os debates so bre a educação e sobre a natureza do homem correntes entre a gente de classe média se centravam ao redor do confito entre 281 280 o corpo e a alma colocando a pergunta crucial sobre se os seres humanos são agentes voluntários ou involuntários Contudo a defnição de uma nova relação com o corpo não permaneceu em uma esfera puramente ideológica Muitas práti cas que começaram a aparecer na vida cotidiana assinalavam as profundas transformações que estavam ocorrendo neste âmbito o uso de talheres o desenvolvimento da vergonha com respeito à nudez o advento dos modos das boas maneiras que ten tavam regular como se deveria rir caminhar bocejar como se comportar à mesa e quando se podia cantar brincar jogar Elias 1978 p 129 e segs Na medida em que o indivíduo se dissociava cada vez mais do corpo este último se convertia em um objeto de observação constante como se se tratasse de um inimigo O corpo começou a inspirar medo e repugnância O corpo do homem está cheio de sujeira declarou Jonathan Edwards cuja atitude é típica da experiência puritana na qual a subjugação do corpo é uma prática cotidiana Greven 1977 p 67 Eram particularmente repugnantes aquelas funções corporais que diretamente enfrentavam os homens com sua animalidade Tal foi o caso de Cotton Mather que em seu diário confessou quão humilhado se sentiu um dia quando urinando contra uma parede viu um cachorro fazer o mesmo Pensei em que coisas vis e baixas são os flhos de homens neste estado mortal Até que ponto nossas necessidades naturais nos degradam e nos colocam em certo sentido no mesmo patamar que os cães Por conseguinte resolvi como deveria ser minha prática ordinária quando decido responder a uma ou a outra necessidade da natureza o fazer dela uma oportunidade para dar forma em minha mente a algum pensamento sagrado nobre divino Ibidem Como parte da grande paixão médica da época a análise dos excrementos a partir da qual se extraíram múltiplas deduções sobre as tendências psicológicas do indivíduo seus vícios e suas virtudes Hunt 1970 pp 1436 deve ser rastreada a partir da concepção do corpo como um receptáculo de sujeira e de perigos ocultos Claramente essa obsessão pelos excrementos humanos refetia em parte o desgosto que a classe média começava a sentir pelos aspectos não produtivos do corpo um desgosto inevitavel mente acentuado em um ambiente urbano onde os excrementos apresentavam um problema logístico além de aparecerem como puro resíduo Contudo nessa obsessão podemos ler também a necessidade burguesa de regular e purifcar a máquina corporal de qualquer elemento que pudesse interromper sua atividade e oca sionar tempos mortos para o trabalho Os excrementos eram ao mesmo tempo tão analisados e degradados porque eram o símbolo dos humores enfermos que se acreditava viverem nos corpos e aos quais se atribuíam todas as tendências perversas dos seres humanos Para os puritanos os excrementos se converteram no signo visível da corrupção da natureza humana uma forma de pe cado original que tinha que ser combatido subjugado exorcizado Pieter Bruegel O país da Cocanha 1567 Ver nota de rodapé 142 283 282 Daí o uso de purgantes eméticos e enemas lavagens intestinais que se administravam às crianças e aos possuídos para expulsar deles os feitiços Thorndike 1958 p 553 e segs Nesse intento obsessivo por conquistar o corpo em seus mais íntimos segredos se vê refetida a mesma paixão com que nesses mesmos anos a burguesia tratou de conquistar pode ríamos dizer colonizar esse ser alheio perigoso e improdu tivo que a seus olhos era o proletariado Pois o proletariado era o Grande Calibã da época O proletariado era esse ser material bruto e por si mesmo desordenado que Petty recomendava que fosse entregue às mãos do Estado que em sua prudência deveria melhorar administrar e confgurar para seu proveito Furniss 1957 p 17 e segs Como Calibã o proletariado personifcava os humores enfermos que se escondiam no corpo social começando pelos monstros repugnantes da vagabundagem e do alcoolismo Aos olhos de seus senhores sua vida era pura inércia mas ao mesmo tempo era paixão descontrolada e fantasia desenfreada sempre pronta para explodir em violentos tumultos Acima de tudo era indisciplina falta de produtividade incontinência desejo de satisfação física imediata sua utopia não era uma vida de trabalho e sim o país de Cocanha Burke 1978 Graus 1987142 onde as casas eram feitas de açúcar os rios de leite e onde não apenas se podia obter o que se desejava sem esforço como se recebia dinheiro por comer e beber Por dormir uma hora de sono profundo sem caminhar ganhase seis francos e por beber bem ganhase uma pistola este país é alegre ganhase dez francos por dia por fazer amor Burke 1978 p 190 142 F Graus 1967 afirma que o nome Cocanha apareceu pela primeira vez no século XIII se supõe que Cucaniensis vem de Kuchen e parece ter sido usado como paródia já que o primeiro contexto no qual foi encontrado é uma sátira de um monastério inglês da época de Eduardo II Graus 1967 p 9 Graus discute a diferença entre o conceito medieval de País das Maravilhas e o conceito moderno de Utopia argumentando que Na época moderna a ideia básica de construção do mundo ideal significa que a Utopia deve estar povoada por seres ideais que se desfizeram de seus defeitos Os habi tantes de Utopia estão caracterizados por sua justiça e inteligência Por outro lado as visões utópicas da Idade Média começam a partir do homem tal e como é e buscam realizar seus desejos atuais Ibidem p6 Em Cocanha Schlaraffenland por exemplo há comida e bebida em abundância não há desejo de alimentarse prudentemente e sim de comer com gulodice tal qual se havia desejado fazer na vida cotidiana Nesta Cocanha também há uma fonte da juventude na qual homens e mulheres entram por um lado para saírem pelo outro como belos jovens e meninas Logo o relato continua com sua atitude de Mesa dos Desejos que tão bem reflete a simples visão de uma vida ideal Graus 1967 pp 78 Em outras palavras o ideal de Cocanha não encarna nenhum projeto racional nem uma noção de progresso é no entanto muito mais concreto se apoia decidida mente no entorno da aldeia e retrata um estado de perfeição não alcançado na época moderna Graus ibidem Lucas Cranach A fonte da juventude 1546 Ver nota de rodapé 142 284 A ideia de transformar este ser ocioso que sonhava a vida como um grande carnaval em um trabalhador incansável deve ter parecido uma empreitada desesperadora Signifcou literalmente colocar o mundo de pernas pra cima mas de uma maneira totalmente capitalista um mundo onde a inércia do poder se converteria na falta de desejo e de vontade própria onde a vis erótica se tornaria vis lavorativa e onde a necessidade seria experimentada apenas como carência absti nência e penúria eterna Daí esta batalha contra o corpo que caracterizou os primórdios do desenvolvimento capitalista e que continua de diversas formas até nossos dias Vem deste contexto também a mecanização do corpo que foi o projeto da nova flosofa natural e o ponto focal dos primeiros experimentos na organização do Estado Se fzermos um apanhado desde a caça às bruxas até as especulações da flosofa mecanicista in cluindo as investigações meticulosas dos talentos individuais pelos puritanos veremos que um único fo condutor une os caminhos aparentemente divergentes da legislação social da reforma religiosa e da racionalização científca do universo Esta foi uma tentativa de racionalizar a natureza humana cujos poderes tinham que ser reconduzidos e subordinados ao desenvolvimento e à formação da mão de obra Como vimos neste processo o corpo foi progressivamen te politizado desnaturalizado e redefinido como o outro o objeto limite da disciplina social Deste modo o nascimento do corpo no século XVII também marcou seu fim uma vez que o conceito de corpo deixaria de definir uma realidade or gânica específica e se tornaria em vez disso um significante das relações de classe e das fronteiras movediças continua mente redesenhadas que essas relações produzem no mapa da exploração humana Mulheres voam em suas vassouras para o sabá depois de aplicar unguentos em seus corpos Estampa francesa do século XVI em Dialogues touchant le pouvoir des sorcières 1570 Diálogos tocantes ao poder das bruxas INTRODUÇÃO 290 A ÉPOCA DE QUEIMA DE BRUXAS E A INICIATIVA ESTATAL 294 CRENÇAS DIABÓLICAS E MUDANÇAS NO MODO DE PRODUÇÃO 304 CAÇA ÀS BRUXAS E REVOLTA DE CLASSES 312 A CAÇA ÀS BRUXAS A CAÇA ÀS MULHERES E A ACUMULAÇÃO DO TRABALHO 323 A CAÇA ÀS BRUXAS E A SUPREMACIA MASCULINA A DOMESTICAÇÃO DAS MULHERES 336 A CAÇA ÀS BRUXAS E A RACIONALIZAÇÃO CAPITALISTA DA SEXUALIDADE 346 A CAÇA ÀS BRUXAS E O NOVO MUNDO 357 A BRUXA A CURANDEIRA E O NASCIMENTO DA CIÊNCIA MODERNA 361 CAPÍTULO 4 A GRANDE CAÇA ÀS BRUXAS NA EUROPA UM ANIMAL IMPERFEITO SEM FÉ SEM LEI SEM MEDO SEM CONSISTÊNCIA DITADO FRANCÊS DO SÉCULO XVII SOBRE AS MULHERES ABAIXO DA CINTURA SÃO CENTAUROS MUITO EMBORA MULHERES PARA CIMA ATÉ A CINTURA OS DEUSES É QUE MANDAM PARA BAIXO OS DEMÔNIOS ALI É O INFERNO ESCURIDÃO ABISMO SULFUROSO CALOR FERVURA CHEIRO DE PODRIDÃO SHAKESPEARE REI LEAR 1606 VOCÊS SÃO AS VERDADEIRAS HIENAS QUE NOS ENCANTAM COM A BRANCURA DE SUAS PELES E QUANDO A LOUCURA NOS COLOCOU A SEU ALCANCE VOCÊS SE LANÇARAM SOBRE NÓS VOCÊS SÃO AS TRAIDORAS DA SABEDORIA O IMPEDIMENTO DA INDÚSTRIA OS IMPEDIMENTOS DA VIRTUDE E OS AGUILHÕES QUE NOS INSTIGAM A TODOS OS VÍCIOS À IMPIEDADE E À RUÍNA VOCÊS SÃO O PARAÍSO DOS NÉSCIOS A PRAGA DO SÁBIO E O GRANDE ERRO DA NATUREZA WALTER CHARLETON EPHESIAN MATRON 1659 291 290 INTRODUÇÃO A caça às bruxas aparece raramente na história do proletariado Até hoje continua sendo um dos fenômenos menos estudados na história da Europa143 ou talvez da história mundial se con sideramos que a acusação de adoração ao demônio foi levada ao Novo Mundo pelos missionários e conquistadores como uma ferramenta para a subjugação das populações locais O fato de que a maior parte das vítimas na Europa tenham sido mulheres camponesas talvez possa explicar o motivo da indiferença dos historiadores com relação a tal genocídio uma indiferença que beira a cumplicidade já que a eliminação das bruxas das páginas da história contribuiu para banalizar sua eli minação física na fogueira sugerindo que foi um fenômeno com um signifcado menor quando não uma questão de folclore Inclusive os estudiosos da caça às bruxas no passado eram quase exclusivamente homens foram frequentemente dignos herdeiros dos demonólogos do século XVI Ainda que deploras sem o extermínio das bruxas muitos insistiram em retratálas como tolas miseráveis que sofriam com alucinações Desta ma neira sua perseguição poderia ser explicada como um processo de terapia social que serviu para reforçar a coesão amistosa Midelfort 1972 p 3 ou poderia ser descrita em termos médi cos como um pânico uma loucura uma epidemia todas caracterizações que tiram a culpa dos caçadores das bruxas e despolitizam seus crimes Os exemplos da misoginia que inspirou a abordagem acadêmica da caça às bruxas são abundantes Como apontou 143 Como sinalizou Erik Midelfort Com poucas exceções notáveis o estudo da caça às bruxas se manteve impressionista É verdadeiramente chamativo quão poucas pesquisas existem sobre a bruxaria no caso da Europa pesquisas que tentem enumerar todos os julgamentos a bruxas em certa cidade ou região Midelfort 1972 p 7 Mary Daly já em 1978 boa parte da literatura sobre este tema foi escrita de um ponto de vista favorável à execução das mulheres o que desacredita as vítimas da sua perseguição retratandoas como fracassos sociais mulheres desonradas ou frustradas no amor ou até mesmo como pervertidas que se divertiam zombando dos seus perseguidores masculinos com suas fantasias sexuais Daly 1978 p 213 cita o exemplo da obra The History of Psychiatry A história da psiquiatria de F G Alexander e S T Selesnick em que lemos que as bruxas acusadas frequentemente davam razão a seus perseguidores Uma bruxa mitigava sua culpa confessando suas fantasias sexuais em audiência pública ao mesmo tempo alcançava certa gratifcação erótica ao se ater a todos os detalhes diante de seus acusadores masculinos Estas mulheres gravemente perturbadas do ponto de vista emocional eram particularmente suscetíveis à sugestão de que abrigavam demônios e diabos e estavam dispostas a confessar sua convivência com espíritos malignos da mesma maneira que hoje em dia os indivíduos perturbados infuenciados pelas manchetes dos jornais fantasiam serem assassinos procurados Tanto na primeira como na segunda geração de especialistas acadêmicos na caça às bruxas podemos encontrar exceções a essa tendência de acusar as vítimas Entre elas devemos lembrar de Alan Macfarlane 1970 E W Monter 1969 1976 1977 e Alfred Soman 1992 Mas foi somente com o advento do movimento fe minista que o fenômeno da caça às bruxas emergiu da clandesti nidade a que foi confnado graças à identifcação das feministas com as bruxas que logo foram adotadas como símbolo da revolta feminina Bovenschen 1978 p 83 e segs144 As feministas reco 144 Uma expressão desta identificação foi a criação da WITCH bruxa uma rede de grupos feministas autônomos que teve um papel importante na fase inicial do movimento de liberação das mulheres nos Estados Unidos Como relata Robin Morgan em Sisterhood is Powerful 1970 Irmandade é poderosa a WITCH nasceu durante o 293 292 de a caça às bruxas ter sido contemporânea ao processo de colonização e extermínio das populações do Novo Mundo aos cercamentos ingleses ao começo do tráfco de escravos à pro mulgação das Leis Sangrentas contra vagabundos e mendigos e de ter chegado a seu ponto culminante no interregno entre o fm do feudalismo e a guinada capitalista quando os campo neses na Europa alcançaram o ponto máximo do seu poder ao mesmo tempo que sofreram a maior derrota da sua história Até agora no entanto este aspecto da acumulação primitiva tem permanecido como um verdadeiro mistério146 mencionados nos arquivos fiscais e tais arquivos ainda não foram analisados 1976 p 21 Trinta anos depois as cifras ainda são amplamente discrepantes Enquanto algumas acadêmicas feministas defendem que a quantidade de bruxas executadas equivale ao número de judeus assassinados na Alemanha nazista de acordo com Anne L Barstow com base no atual trabalho arquivístico aproximadamente 200 mil mulheres foram acusadas de bruxaria em um lapso de três séculos sendo que a menor parte delas foi assassinada Barstow admite entretanto que é muito difícil estabelecer quantas mulheres foram executadas ou morreram pelas torturas que sofreram Muitos arquivos ela escreve não enumeravam os vereditos dos julgamentos ou não incluem as mortas na prisão Outras levadas ao desespero pela tortura se suicidaram nas celas Muitas bruxas acusadas foram assassinadas na prisão Outras morreram nos calabouços pelas torturas sofridas Barstow pp 223 Levando em conta também as que foram linchadas Barstow conclui que ao menos 100 mil mulheres foram assassinadas mas acrescenta que as que escaparam foram arruinadas para toda a vida já que uma vez acusadas a suspeita e a hostilidade as perseguiriam até a cova ibidem Enquanto a polêmica sobre a magnitude da caça às bruxas continua Midelfort e Larner forneceram estimativas regionais Midelfort 1972 descobriu que no sudeste da Alemanha ao menos 3200 bruxas foram queimadas somente entre 1560 e 1670 um período no qual já não queimavam uma ou duas bruxas mas vintenas e centenas Lea 1922 p 549 Christina Larner 1981 estima em 4500 a quantidade de mulheres executadas na Escócia entre 1590 e 1650 mas também concorda que a quantidade pode ser muito maior já que a prerrogativa de levar a cabo a caça às bruxas era conferida também a notáveis conterrâneos que tinham liberdade para prender bruxas e estavam encarregados de manter os arquivos 146 Duas escritoras feministas Starhawk e Maria Mies explicaram a caça às bruxas no contexto da acumulação primitiva deduzindo conclusões muito similares às apresentadas neste livro Em Dreaming the Dark 1982 Sonhando com as trevas Starhawk conectou a caça às bruxas com a desapropriação do campesinato europeu das terras comunais com os efeitos sociais da inflação de preços causada pela chegada do ouro e prata americanos à Europa e com o surgimento da medicina profissional Também sinalizou que A bruxa já se foi mas seus medos e as forças contra as quais lutou durante sua vida ainda vivem Podemos abrir nossos diários e ler as mesmas acusações contra o ócio dos pobres Os expropriadores vão ao Terceiro Mundo destruindo culturas roubando os recursos da terra e das pessoas Se ligamos a rádio podemos escutar o ruído das chamas Mas a luta também continua Starhawk 1997 p 2189 Enquanto Starhawk examina principalmente a caça às bruxas no contexto da ascensão da economia de mercado na Europa Patriarchy and Accumulation on a World Scale 1986 Patriarcado e acumulação em escala global de Maria Mies o conecta com nheceram rapidamente que centenas de milhares de mulheres não poderiam ter sido massacradas e submetidas às torturas mais cruéis se não tivessem proposto um desafo à estrutura de poder Também se deram conta de que essa guerra contra as mu lheres que se manteve durante um período de pelo menos dois séculos constituiu um ponto decisivo na história das mulheres na Europa o pecado original no processo de degradação social que as mulheres sofreram com a chegada do capitalismo o que o conforma portanto como um fenômeno ao qual devemos re tornar de forma reiterada se quisermos compreender a misoginia que ainda caracteriza a prática institucional e as relações entre homens e mulheres Ao contrário das feministas os historiadores marxistas sal vo raras exceções inclusive quando se dedicaram ao estudo da transição ao capitalismo relegaram a caça às bruxas ao esquecimento como se carecesse de relevância para a história da luta de classes As dimensões do massacre deveriam en tretanto ter levantado algumas suspeitas em menos de dois séculos centenas de milhares de mulheres foram queimadas enforcadas e torturadas145 Deveria parecer signifcativo o fato Halloween de 1968 em Nova York mas conciliábulos rapidamente se formaram em outras cidades O que a figura da bruxa significou para estas ativistas pode ser entendido por meio de um panfleto escrito pelo conciliábulo de Nova York que depois de recordar que as bruxas foram as primeiras praticantes do controle de natalidade e do aborto afirma As bruxas sempre foram mulheres que se atreveram a ser corajosas agressivas inteligentes não conformistas curiosas independentes sexualmente liberadas revo lucionárias WITCH vive e ri em cada mulher Ela é a parte livre de cada uma de nós Você é uma Bruxa pelo fato de ser mulher indomável desvairada alegre e imortal Morgan 1970 pp 6056 Entre as escritoras feministas estadunidenses que de uma forma mais consciente identificaram a história das bruxas com a luta pela liberação das mulheres estão Mary Daly 1978 Starhawk 1982 e Barbara Ehrenreich e Deidre English cujo Witches Mi dwives and Nurses A History of Women Healers 1973 Bruxas parteiras e enfermeiras uma história de mulheres curandeiras foi para muitas feministas incluindo eu mesma a primeira aproximação à história da caça às bruxas 145 Quantas bruxas foram queimadas Tratase de uma questão controversa dentro da pesquisa acadêmica sobre a caça às bruxas muito difícil de responder já que muitos julgamentos não foram registrados ou se foram o número de mulheres executadas não está especificado Além disso muitos documentos nos quais podemos encontrar referências aos julgamentos por bruxaria ainda não foram estudados ou foram destruídos Na década de 1970 E W Monter advertiu por exemplo que era impossível calcular a quantidade de jul gamentos seculares a bruxas que aconteceram na Suíça já que frequentemente só estavam 295 294 A ÉPOCA DE QUEIMA DE BRUXAS E A INICIATIVA ESTATAL O que ainda não foi reconhecido é que a caça às bruxas consti tuiu um dos acontecimentos mais importantes do desenvolvi mento da sociedade capitalista e da formação do proletariado moderno Isso porque o desencadeamento de uma campanha de terror contra as mulheres não igualada por nenhuma outra perseguição debilitou a capacidade de resistência do cam pesinato europeu frente ao ataque lançado pela aristocracia latifundiária e pelo Estado em uma época na qual a comuni dade camponesa já começava a se desintegrar sob o impacto combinado da privatização da terra do aumento dos impostos e da extensão do controle estatal sobre todos os aspectos da vida social A caça às bruxas aprofundou a divisão entre mulheres e homens inculcou nos homens o medo do poder das mulheres e destruiu um universo de práticas crenças e sujeitos sociais cuja existência era incompatível com a disciplina do trabalho capitalista redefnindo assim os principais elementos da repro dução social Neste sentido de um modo similar ao ataque con temporâneo à cultura popular e ao Grande Internamento de pobres e vagabundos em hospícios e workhouses casas de trabalho a caça às bruxas foi um elemento essencial da acu mulação primitiva e da transição ao capitalismo Mais adiante veremos que tipos de medo a caça às bruxas conseguiu espalhar em favor da classe dominante europeia e que efeitos tiveram na posição das mulheres na Europa Nesse ponto quero reforçar que contrariamente à visão propagada pelo o processo de colonização e com a crescente conquista da natureza que caracterizaram a dominação capitalista Mies sustenta que a caça às bruxas foi parte da tentativa da classe capitalista emergente de estabelecer seu controle sobre a capacidade produtiva das mulheres e fundamentalmente sobre sua potência procriativa no contexto de uma nova divisão sexual e internacional do trabalho construída sobre a exploração das mulheres das colônias e da natureza Mies 1986 pp 6970 7888 Iluminismo a caça às bruxas não foi o último suspiro de um mun do feudal agonizante É bem consagrado que a supersticiosa Idade Média não perseguiu nenhuma bruxa o próprio conceito de bruxaria não tomou forma até a Baixa Idade Média e nunca houve julgamentos e execuções massivas durante a Idade das Trevas apesar de a magia ter impregnado a vida cotidiana e desde o Império Romano tardio ter sido temida pela classe domi nante como ferramenta de insubordinação entre os escravos147 Nos séculos VII e VIII o crime de malefcium foi introduzido nos códigos dos novos reinos teutônicos tal como aconteceu com o código romano Esta era a época da conquista árabe que aparentemente agitou os corações dos escravos na Europa ante a expectativa de liberdade animandoos a tomar as armas contra seus donos148 Dessa forma essa inovação legal pode ter sido uma reação ao medo gerado entre as elites pelo avanço dos sarracenos que de acordo com o que se acreditava eram grandes especialistas nas artes mágicas Chejne 1983 pp 115 32 Porém naquela época só eram castigadas por malefcium 147 Desde o Império Romano tardio as classes dominantes consideraram a magia suspeita de ser parte da ideologia dos escravos e de constituir um instrumento de insubordinação Pierre Dockes cita a De re rustica de Columella um agrônomo romano da República tardia que por sua vez cita a Cato no sentido de que a familiaridade com astrólogos adivinhos e feiticeiros deveria ser mantida sob controle pois tinha uma influência perigosa sobre os escravos Columella recomendou que o villicus escravo ou liberto de confiança não deve fazer sacrifícios sem ordens do seu senhor Não deve receber adivinhos nem magos que se aproveitavam das superstições dos homens para os conduzir ao crime Deve evitar a confiança de arúspices e feiticeiros duas classes de pessoas que infectam as almas ignorantes com o veneno das superstições sem fundamen to Citado por Dockes 1982 p 213 148 Dockes cita o seguinte extrato de Les Six Livres de la Republique 1576 Os seis livros da república de Jean Bodin O poder dos árabes cresceu somente deste modo dando ou prometendo a liberda de aos escravos Pois assim que o capitão Omar um dos tenentes de Maomé prometeu a liberdade aos escravos que o seguiam atraiu a tantos outros que em poucos anos eles se converteram em senhores de todo o Oriente Os rumores de liberdade e as conquistas dos escravos enalteceram os corações dos escravos na Europa ao que eles passaram a pegar em armas primeiro na Espanha em 781 e logo no Sacro Império nos tempos de Carlos Magno e Ludovico Pio como se pode ver nos éditos expedidos na época contra as conspi rações declaradas entre os escravos Ao mesmo tempo este arranque de ira estalou na Alemanha onde os escravos em pé de guerra sacudiram as propriedades dos príncipes e as cidades e inclusive Ludovico rei dos alemães foi forçado a reunir todas as suas forças para os aniquilar Pouco a pouco isso forçou os cristãos a diminuir a servidão e a liberar aos escravos com exceção de algumas corvées Citado en Dockes 1982 p 237 297 296 aquelas práticas mágicas que infigiam dano às pessoas e às coisas e a Igreja só usou esta expressão para criticar os que acreditavam nos atos de magia149 A situação mudou por volta da metade do século XV Nesta época de revoltas populares epidemias e crise feudal incipiente tiveram lugar os primeiros julgamentos de bruxas no sul da França na Alemanha na Suíça e na Itália as primeiras des crições do sabá Monter 1976 p 18150 e o desenvolvimento da doutrina sobre a bruxaria na qual a feitiçaria foi declarada como uma forma de heresia e como o crime máximo contra Deus contra a Natureza e contra o Estado Monter 1976 pp 117 Entre 1435 e 1487 foram escritos vinte e oito tratados sobre bruxaria Monter 1976 p 19 culminando às vésperas da viagem de Colombo na publicação em 1486 do tristemente célebre Malleus Malefcarum O martírio das bruxas que de acordo com uma nova bula papal sobre a questão a Summis Desiderantes 1484 Desejando com supremo ardor de Inocêncio VIII afrmava 149 O Canon Episcopi século X considerado o texto mais importante na docu mentação da tolerância da Igreja em relação às crenças mágicas qualificou como infiéis aqueles que acreditavam em demônios e voos noturnos argumentando que tais ilusões eram produtos do diabo Russell 1972 pp 767 Entretanto em seu estudo sobre a caça às bruxas no sudoeste da Alemanha Eric Midelfort questionou a ideia de que a Igreja na Idade Média fosse cética e tolerante no que diz respeito à bruxaria Este autor foi par ticularmente crítico com o uso que se fez do Canon Episcopi defendendo que este afirma o oposto do que foi feito a dizer Em outras palavras não devemos concluir que a Igreja tolerava práticas mágicas porque o autor do Canon atacava a crença na magia De acordo com Midelfort a posição do Canon era a mesma que a Igreja sustentou até o século XVIII A Igreja condenava a crença de que os atos de magia eram possíveis porque considerava que era uma heresia maniqueísta atribuir poderes divinos às bruxas e aos demônios Entretanto sustentava que era correto castigar aqueles que praticavam a magia porque acobertavam maldade e se aliavam ao demônio Midelfort 1975 pp 169 Midelfort reforça que até mesmo na Alemanha do século XVI o clero insistiu na necessidade de não acreditar nos poderes do demônio Mas sinaliza que i a maioria dos julgamentos foram instigados e administrados por autoridades seculares a quem não interessavam as disquisições teológicas ii tampouco entre o clero a distinção entre maldade e feito maligno teve muitas consequências práticas já que depois de tudo muitos clérigos recomendaram que as bruxas fossem castigadas com a morte 150 Monter 1976 p 18 O sabá apareceu pela primeira vez na literatura medieval por volta da metade do século xv Rossell Hope Robbins 1959 p 415 escreveu que Johannes Nieder 1435 um dos primeiros demonólogos desconhecia o sabá mas o panfleto francês anônimo Errores Gazariarum 1459 contém uma descrição detalhada da sinagoga Por volta de 1458 Nicholas Jacquier usou a palavra sabbat apesar do seu relato ser pouco preciso sabbat apareceu também em um informe sobre a perseguição às bruxas em Lyon em 1460 já no século XVI o sabbat era um componente conhecido da bruxaria que a Igreja considerava a bruxaria como uma nova ameaça Entretanto o clima intelectual que predominou durante o Renascimento especialmente na Itália seguiu caracterizado pelo ceticismo perante tudo que fosse ligado ao sobrenatural Os intelectuais italianos de Ludovico Ariosto até Giordano Bruno e Nicolau Maquiavel olharam com ironia para as histórias clericais sobre os atos do diabo enfatizando por outro lado especialmen te no caso de Bruno o poder nefasto do ouro e do dinheiro Non incanti ma contanti não encantos mas sim moedas é o lema de um personagem de uma das comédias de Bruno que resume a perspectiva da elite intelectual e dos círculos aristocráticos da época Parinetto 1998 pp 2999 Foi depois de meados do século XVI nas mesmas décadas em que os conquistadores espanhóis subjugaram as popula ções americanas que começou a aumentar a quantidade de mulheres julgadas como bruxas Além disso a iniciativa da perseguição passou da Inquisição às cortes seculares Monter 1976 p 26 A caça às bruxas alcançou seu ápice entre 1580 e 1630 ou seja numa época em que as relações feudais já esta vam dando lugar às instituições econômicas e políticas típicas do capitalismo mercantil Foi neste longo Século de Ferro que praticamente por meio de um acordo tácito entre países que a princípio estavam em guerra se multiplicaram as fogueiras ao passo que o Estado começou a denunciar a existência de bruxas e a tomar a iniciativa de perseguilas Foi a Constitutio Criminalis Carolina o Código Legal Imperial promulgado pelo rei católico Carlos V em 1532 que estabeleceu que a bruxaria seria penalizada com a morte Na Inglaterra protestante a perseguição foi legalizada por meio de três Atos do Parlamento aprovados respectivamente em 1542 em 1563 e em 1604 sendo que o último introduziu a pena de morte inclusive na ausência de dano a pessoas ou a coisas Depois de 1550 na Escócia na Suíça na França e nos Países Baixos Espanhóis também foram 299 298 aprovadas leis e ordenanças que fzeram da bruxaria um crime ca pital e incitaram a população a denunciar as suspeitas de bruxaria Estas foram republicadas nos anos seguintes para aumentar a quantidade de pessoas que podiam ser executadas e novamente para fazer da bruxaria por si só e não dos danos que supostamen te provocava um crime grave Os mecanismos da perseguição confrmam que a caça às bruxas não foi um processo espontâneo um movimento vindo de baixo ao qual as classes governantes e administrativas esta vam obrigadas a responder Larner 1983 p 1 Como Christina Larner demonstrou no caso da Escócia a caça às bruxas requeria uma vasta organização e administração ofcial151 Antes que os vizinhos se acusassem entre si ou que comunidades inteiras fos sem presas do pânico teve lugar um frme doutrinamento no qual as autoridades expressaram publicamente sua preocupação com a propagação das bruxas e viajaram de aldeia em aldeia para ensinar as pessoas a reconhecêlas em alguns casos levando consigo listas de mulheres suspeitas de serem bruxas e amea çando castigar aqueles que as dessem asilo ou lhes oferecessem ajuda Larner 1983 p 2 Na Escócia a partir do Sínodo de Aberdeen 1603 os minis tros da Igreja Presbiteriana receberam ordens para perguntar a seus paroquianos sob juramento se suspeitavam que alguma mulher fosse bruxa Nas igrejas foram colocadas urnas para 151 Os julgamentos por bruxaria eram custosos já que podiam durar meses e se tor nar uma fonte de trabalho para muita gente Robbins 1959 p 111 Os pagamentos pelos serviços e as pessoas envolvidas o juiz o cirurgião o torturador o escriba os guardas inclusive suas refeições e o vinho estavam descaradamente incluídos nos arquivos dos processos ao que é preciso agregar o custo das execuções e o de manter as bruxas na prisão O que segue é a fatura de um julgamento na cidade escocesa de Kirkaldy em 1636 Por dez cargas de carvão para as queimar 5 marcos ou 3 libras ou 6 xelins e 8 pences Por um barril de alcatrão 14 xelins Pela tela de cânhamo para coletes para elas 3 libras ou 10 xelins Por os fazer 3 libras Para a viagem à Finmouth para que o laird senhor de terras ocupe sua sessão como juiz 6 libras Para o carrasco por seus esforços 8 libras ou 14 xelins Por seus gastos neste lugar 16 xelins ou 4 pences Robbins 1959 p 114 Os custos do julgamento de uma bruxa eram pagos pelos parentes da vítima mas quando a vítima não tinha um centavo eram custeados pelos cidadãos do povoado ou pelo proprietário de terras Robbins ibidem Sobre este tema ver Robert Mandrou 1968 p 112 e Christina Larner 1983 p 115 entre outros permitir aos informantes o anonimato então depois que uma mulher caísse sob suspeita o ministro exortava os féis do púlpito a testemunharem contra ela estando proibido ofere cer qualquer assistência Black 1971 p 13 Em outros países também se provocavam denúncias Na Alemanha esta era a tarefa dos visitantes designados pela Igreja Luterana com o consentimento dos príncipes alemães Strauss 1975 p 54 Na Itália setentrional eram os ministros e as autoridades que ali mentavam suspeitas e que se asseguravam de que resultassem em denúncias também certifcavamse de que as acusadas fcassem completamente isoladas forçandoas entre outras coisas a levar cartazes nas suas vestimentas para que as pes soas se mantivessem longe delas Mazzali 1998 p 112 A caça às bruxas foi também a primeira perseguição na Europa que usou propaganda multimídia com o objetivo de ge rar uma psicose em massa entre a população Uma das primeiras tarefas da imprensa foi alertar o público sobre os perigos que as bruxas representavam por meio de panfetos que publicizavam os julgamentos mais famosos e os detalhes de seus feitos mais atrozes Para este trabalho foram recrutados artistas entre eles o alemão Hans Bandung a quem devemos alguns dos mais mor dazes retratos de bruxas Mas foram os juristas os magistrados e os demonólogos frequentemente encarnados na mesma pessoa os que mais contribuíram na perseguição eles sistematizaram os argumentos responderam aos críticos e aperfeiçoaram a maqui naria legal que por volta do fnal do século XVI deu um formato padronizado quase burocrático aos julgamentos o que explica as semelhanças entre as confssões para além das fronteiras na cionais No seu trabalho os homens da lei contaram com a coo peração dos intelectuais de maior prestígio da época incluindo flósofos e cientistas que ainda hoje são elogiados como os pais do racionalismo moderno Entre eles estava o teórico político inglês Thomas Hobbes que apesar de seu ceticismo sobre a 301 O sabá das bruxas A primeira e mais famosa de uma série de gravuras produzida pelo artista alemão Hans Baldung Grien a partir de 1510 explorando pornograficamente o corpo feminino sob a aparência de uma denúncia existência da bruxaria aprovou a perseguição como forma de controle social Outro inimigo feroz das bruxas obsessivo em seu ódio a elas e em seus apelos para um derramamento de san gue foi Jean Bodin o famoso advogado e teórico político fran cês a quem o historiador Trevor Roper chama de o Aristóteles e o Montesquieu do século XVI Bodin a quem se atribui o pri meiro tratado sobre a infação participou de muitos julgamentos e escreveu um livro sobre provas Demomania 1580 no qual insistia que as bruxas deveriam ser queimadas vivas em vez de misericordiosamente estranguladas antes de serem atiradas às chamas que deveriam ser cauterizadas de forma que sua carne apodrecesse antes de morrer e que seus flhos também deveriam ser queimados Bodin não foi um caso isolado Neste século de gênios Bacon Kepler Galileu Shakespeare Pascal Descartes que foi testemunho do triunfo da revolução copernicana do nascimen to da ciência moderna e do desenvolvimento do racionalismo científco a bruxaria tornouse um dos temas de debate favo ritos das elites intelectuais europeias Juízes advogados es tadistas flósofos cientistas e teólogos se preocuparam com o problema escreveram panfetos e demonologias concluíram que este era o mais vil dos crimes e exigiram sua punição152 Não pode haver dúvida então de que a caça às bruxas foi uma iniciativa política de grande importância Reforçar este ponto não signifca minimizar o papel que a Igreja Católica teve 152 H R TrevorRoper escreve A caça às bruxas foi promovida pelos papas refinados do Renascimento pelos grandes reformadores protestantes pelos santos da Contrarreforma pelos acadêmicos advogados e eclesiásticos Se estes dois séculos foram a era das luzes temos que admitir que ao menos em algum aspecto a era da escuri dão foi mais civilizada TrevorRoper 1967 p 122 e segs 303 302 na perseguição A Igreja Católica forneceu o arcabouço metafí sico e ideológico para a caça às bruxas e estimulou sua perse guição da mesma forma que anteriormente havia estimulado a perseguição aos hereges Sem a Inquisição sem as numerosas bulas papais que exortavam as autoridades seculares a pro curar e castigar as bruxas e sobretudo sem os séculos de campanhas misóginas da Igreja contra as mulheres a caça às bruxas não teria sido possível Mas ao contrário do que sugere o estereótipo a caça às bruxas não foi somente um produto do fanatismo papal ou das maquinações da Inquisição Romana No seu apogeu as cortes seculares conduziram a maior parte dos juízos enquanto nas regiões onde a Inquisição operava Itália e Espanha a quantidade de execuções permaneceu comparativamente mais baixa Depois da Reforma Protestante que debilitou o poder da Igreja Católica a Inquisição começou inclusive a conter o fervor das autoridades contra as bruxas ao mesmo tempo que intensifcava a perseguição aos judeus Milano 1963 pp 2879153 Além disso a Inquisição sempre dependeu da cooperação do Estado para levar adiante as exe cuções já que o clero queria evitar a vergonha do derramamen to de sangue A colaboração entre a Igreja e o Estado foi ainda maior nas regiões em que a Reforma levou o Estado a se tornar a Igreja como na Inglaterra ou a Igreja a se tornar Estado como em Genebra e em menor grau na Escócia Nesses 153 Cardini 1989 pp 136 Prosperi 1989 p 217 e segs e Martin 1989 p 32 Conforme escreve Ruth Martin acerca do trabalho da Inquisição em Veneza Uma comparação feita por P F Grendler sobre a quantidade de sentenças de morte concedi das pela Inquisição e pelos tribunais civis o levou a concluir que as inquisições italianas atuaram com grande moderação se comparadas aos tribunais civis e que a Inquisição italiana esteve marcada mais pelos castigos levianos e pelas comutações do que pela severidade uma conclusão confirmada recentemente por E W Monter em seu estudo da Inquisição no Mediterrâneo No que diz respeito aos julgamentos venezianos não houve sentenças de execução nem de mutilação e a condenação às galés era rara As penas a longos tempos em prisão também eram raras e quando se ditavam condenações deste tipo ou banimentos estes eram frequentemente comutados depois de um lapso de tempo relativamente curto As solicitações daqueles que estavam na prisão para que se lhes permitisse passar à prisão domiciliar em decorrência de problemas de saúde também foram tratadas com compaixão Martin 1989 pp 323 casos um ramo do poder legislava e executava e a ideologia religiosa revelava abertamente suas conotações políticas A natureza política da caça às bruxas também fca demons trada pelo fato de que tanto as nações católicas quanto as pro testantes em guerra entre si quanto a todas as outras temáticas se uniram e compartilharam argumentos para perseguir as bruxas Assim não é um exagero dizer que a caça às bruxas foi o primeiro terreno de unidade na política dos novos Estadosnação europeus o primeiro exemplo de unifcação europeia depois do cisma provocado pela Reforma Isso porque atravessando todas as fronteiras a caça às bruxas se disseminou da França e da Itália para Alemanha Suíça Inglaterra Escócia e Suécia Que medos instigaram semelhante política combinada de genocídio Por que se desencadeou semelhante violência E por que foram as mulheres seus alvos principais 305 304 CRENÇAS DIABÓLICAS E MUDANÇAS NO MODO DE PRODUÇÃO Devemos destacar de imediato que até o dia de hoje não exis tem respostas seguras a essas perguntas Um obstáculo funda mental no caminho para encontrar uma explicação reside no fato de que as acusações contra as bruxas foram tão grotescas e inacreditáveis que não podem ser comparadas com nenhuma outra motivação ou crime154 Como dar conta do fato de que du rante mais de dois séculos em distintos países europeus cente nas de milhares de mulheres tenham sido julgadas torturadas queimadas vivas ou enforcadas acusadas de terem vendido seu corpo e sua alma ao demônio e por meios mágicos assassinado inúmeras crianças sugado seu sangue fabricado poções com sua carne causado a morte de seus vizinhos destruído gado e cultivos provocado tempestades e realizado muitas outras abo minações De todo modo ainda hoje alguns historiadores nos pedem que acreditemos que a caça às bruxas foi completamente razoável no contexto da estrutura de crenças da época Um problema que se acrescenta a isso é que não contamos com o ponto de vista das vítimas já que tudo o que restou das suas vozes são as confssões redigidas pelos inquisidores geral mente obtidas sob tortura e por melhor que escutemos como foi feito por Carlo Ginzburg 1991 o que vem à tona para além do folclore tradicional por entre as fssuras das confssões que 154 Também há provas de mudanças significativas no peso atribuído às acusações específicas à natureza dos crimes comumente associados à bruxaria e à composição social dos acusadores e das acusadas A mudança mais significativa é talvez que em uma fase prematura da perseguição durante os julgamentos do século XV a bruxaria foi vista principalmente como um crime coletivo que dependia da organização de reuniões massi vas enquanto no século XVII foi vista como um crime de natureza individual uma carreira maléfica na qual se especializavam bruxas isoladas sendo isso um signo da ruptura dos laços comunais que resultaram da crescente privatização da terra e da expansão das relações comerciais durante este período se encontram nos arquivos não contamos com nenhuma forma de determinar sua autenticidade Além disso o extermínio das bruxas não pode ser explicado como sendo um simples produto da cobiça já que nenhuma recompensa comparável às riquezas das Américas poderia ter sido obtida com a execução e o confsco dos bens de mulheres que eram pobres em sua maioria155 É por esta razão que alguns historiadores como Brian Levack se abstiveram de apresentar uma teoria explicativa contentandose em identifcar os prérequisitos para a caça às bruxas por exemplo a mudança no procedimento legal de um sistema acusatório privado para um público durante a Baixa Idade Média a centralização do poder estatal e o impacto da Reforma e da Contrarreforma na vida social Levack 1987 Não existe entretanto a necessidade de tal agnosticismo nem temos que decidir se os caçadores de bruxas acreditavam realmente nas acusações que dirigiram contra suas vítimas ou se as empregavam cinicamente como instrumentos de repres são social Se consideramos o contexto histórico no qual se pro duziu a caça às bruxas o gênero e a classe das acusadas bem como os efeitos da perseguição podemos concluir que a caça às bruxas na Europa foi um ataque à resistência que as mulheres apresentaram contra a difusão das relações capitalistas e contra o poder que obtiveram em virtude de sua sexualidade de seu controle sobre a reprodução e de sua capacidade de cura A caça às bruxas foi também instrumento da construção de uma nova ordem patriarcal em que os corpos das mulheres seu trabalho e seus poderes sexuais e reprodutivos foram co locados sob o controle do Estado e transformados em recursos 155 A Alemanha é uma exceção dentro deste padrão já que ali a caça às bruxas afetou muitos membros da burguesia inclusive muitos vereadores Sem dúvida na Alemanha o confisco da propriedade foi o principal motivo por trás da perseguição o que explica o fato de esta ter alcançado ali proporções incomparáveis com qualquer outro país com exceção da Escócia Entretanto de acordo com Midelfort a legalidade do con fisco foi controversa e até mesmo no caso das famílias ricas não lhes subtraíram mais de um terço da propriedade Midelfort agrega também que na Alemanha é inquestionável que a maior parte das pessoas executadas era pobre Midelfort 1972 pp 1649 307 306 econômicos O que quer dizer que os caçadores de bruxas esta vam menos interessados no castigo de qualquer transgressão específca do que na eliminação de formas generalizadas de comportamento feminino que já não toleravam e que tinham que se tornar abomináveis aos olhos da população O fato de que as acusações nos julgamentos referiamse frequentemente a acontecimentos ocorridos havia várias décadas de que a bruxaria tivesse sido transformada em um crimen exceptum ou seja um crime que deveria ser investigado por meios especiais incluindo a tortura e de que eram puníveis inclusive na ausência de qualquer dano comprovado a pessoas e coisas são fatores que indicam que o alvo da caça às bruxas como ocorre frequente mente com a repressão política em épocas de intensa mudança e confito social não eram crimes socialmente reconhecidos mas práticas anteriormente aceitas de grupos de indivíduos que ti nham que ser erradicados da comunidade por meio do terror e da criminalização Neste sentido a acusação de bruxaria cumpriu uma função similar à que cumpre o crime de lesamajestade que de forma signifcativa foi introduzido no código legal inglês no mesmo período e a acusação de terrorismo atualmente A própria obscuridade da acusação o fato de que era impossível comprovála ao mesmo tempo que evocava o máximo horror implicava que pudesse ser utilizada para castigar qualquer forma de protesto com a fnalidade de gerar suspeita inclusive sobre os aspectos mais corriqueiros da vida cotidiana Uma primeira ideia sobre o signifcado da caça às bruxas na Europa pode ser encontrada na tese proposta por Michael Taussig em seu clássico trabalho The Devil and Commodity Fetishism in South America 1980 O demônio e o fetichismo da mercadoria na América do Sul Neste livro o autor sustenta que as crenças diabólicas surgem em períodos históricos em que um modo de produção é substituído por outro Em tais períodos não somente as condições materiais de vida são transformadas radicalmente mas também o são os fundamentos metafísicos da ordem social por exemplo a concepção de como se cria o valor do que gera vida e crescimento do que é natural e do que é antagônico aos costumes estabelecidos e às relações sociais Taussig 1980 p 17 e segs Taussig desenvolveu sua teoria a partir do estudo das crenças de trabalhadores rurais colombianos e mineiros de estanho bolivianos numa época em que em ambos os países estavam surgindo certas relações monetárias que aos olhos do povo se associavam com a morte e inclusive com o diabólico ainda mais se comparadas com as formas de produção mais antigas que ainda persistiam orientadas à subsistência Desse modo nos casos analisados por Taussig eram os pobres que suspeitavam da adoração ao demônio por parte dos mais ri cos Ainda assim sua associação entre o diabo e a forma merca doria nos faz lembrar também que por detrás da caça às bruxas esteve a expansão do capitalismo rural que incluiu a abolição de direitos consuetudinários e a primeira onda de infação na Europa moderna Estes fenômenos não somente levaram ao cres cimento da pobreza da fome e do deslocamento social Le Roy Ladurie 1974 p 208 mas também transferiram o poder para as mãos de uma nova classe de modernizadores que viram com medo e repulsa as formas de vida comunais que haviam sido típi cas da Europa précapitalista Foi graças à iniciativa desta classe protocapitalista que a caça às bruxas alçou voo tanto como uma plataforma na qual uma ampla gama de crenças e práticas po pulares podiam ser perseguidas Normand e Roberts 2000 p 65 quanto como uma arma com a qual se podia derrotar a resistência à reestruturação social e econômica É signifcativo que a maioria dos julgamentos por bruxaria na Inglaterra tenham ocorrido em Essex região em que a maior parte da terra foi cercada durante o século XVI156 enquanto 156 Ainda não foi feita nenhuma análise séria da relação entre as mudanças na posse da terra sobretudo a privatização da terra e a caça às bruxas Alan Macfarlane 309 308 nas Ilhas Britânicas onde a privatização da terra não ocorreu e tampouco foi parte da agenda não existem registros de caça às bruxas Os exemplos mais marcantes neste contexto são a Irlanda e as Terras Altas Ocidentais da Escócia onde não é possível encontrar nenhum rastro da perseguição provavel mente porque em ambas as regiões ainda predominavam os laços de parentesco e um sistema coletivo de posse da terra que impediram as divisões comunais e o tipo de cumplicidade com o Estado que tornou possível a caça às bruxas Desta maneira enquanto nas Terras Altas da Escócia e na Irlanda as mulheres estiveram a salvo na época da perseguição às bruxas nas Terras Baixas da Escócia que passaram por um processo de privatiza ção e de conversão à religião anglicana e onde a economia de subsistência foi desaparecendo sob o impacto da Reforma pres biteriana a caça às bruxas custou a vida de quatro mil vítimas o equivalente a 1 da população feminina Que a difusão do capitalismo rural com todas as suas consequências expropriação da terra aprofundamento das diferenças sociais deterioração das relações coletivas tenha sido um fator decisivo no contexto de caça às bruxas é algo que também se pode provar pelo fato de que a maioria dos acusa dos eram mulheres camponesas pobres cottars157 trabalhado ras assalariadas enquanto os que as acusavam eram abasta dos e prestigiosos membros da comunidade muitas vezes seus próprios empregadores ou senhores de terra ou seja indiví duos que formavam parte das estruturas locais de poder e que que foi o primeiro em sugerir que existiu uma importante conexão entre os cercamentos em Essex e a caça às bruxas na mesma área se retratou depois Macfarlane 1978 Ape sar disso a relação entre ambos os fenômenos é inquestionável Como vimos no Capítulo 2 a privatização da terra foi um fator significativo direta e indiretamente para o empobrecimento que sofreram as mulheres no período no qual a caça às bruxas alcançou proporções massivas Ao mesmo tempo em que a terra foi privatizada e o comércio de terras se desenvolveu as mulheres se tornaram vulneráveis a um duplo processo de expropriação por parte dos ricos compradores de terras e por parte dos homens com os quais se relacionavam 157 Cottar é o termo escocês usado para designar uma espécie de camponês lavra dor Os cottars ocupavam casas de campo e cultivavam pequenos pedaços de terra NTP com frequência tinham laços estreitos com o Estado central Somente na medida em que a perseguição avançou e o medo de bruxas assim como o medo de ser acusada de bruxaria ou de associação subversiva foi disseminado entre a população é que as acusações começaram a vir também dos vizinhos Na Inglaterra as bruxas eram normalmente mulheres velhas que viviam da assistência pública ou mulheres que sobreviviam indo de casa em casa mendigando pedaços de comida um jarro de vinho ou de leite se estavam casadas seus maridos eram trabalhadores diaristas mas na maioria das vezes eram viúvas e viviam sozinhas Sua pobreza se destaca nas confssões Era em tempos de necessidade que o diabo aparecia para elas para assegurarlhes que a partir daquele momento nunca mais deveriam pedir mesmo que o dinheiro que lhes Uma imagem clássica da bruxa inglesa velha decrépita rodeada de animais e de suas cupinchas e ainda mantendo uma postura provocadora em The Wonderful Discoveries of the Witchcrafts of Margaret and Phillip Flowers 1619 As maravilhosas descobertas da feitiçaria de Margaret e Phillip Flowers de Thomas Erastus 311 310 seria entregue em tais ocasiões rapidamente se transformasse em cinzas um detalhe talvez relacionado com a experiência da hiperinfação que era comum na época Larner 1983 p 95 Mandrou 1968 p 77 Quanto aos crimes diabólicos das bru xas eles não nos parecem mais que a luta de classes desenvol vida na escala do vilarejo o mauolhado a maldição do men digo a quem se negou a esmola a inadimplência no pagamento do aluguel a demanda por assistência pública Macfarlane 1970 p 97 Thomas 1971 p 565 Kittredge 1929 p 163 As dis tintas formas pelas quais a luta de classes contribuiu na criação da fgura da bruxa inglesa podem ser observadas nas acusações contra Margaret Harkett uma velha viúva de sessenta e cinco anos enforcada em Tyburn em 1585 Ela colheu uma cesta de peras no campo do vizinho sem pedir autorização Quando pediram que as devolvesse atirouas no chão com raiva desde então nenhuma pera cresceu no campo Mais tarde o criado de William Goodwin negouse a lhe dar levedura ao que seu tonel para fermentar cerveja secou Ela foi golpeada por um ofcial de justiça que a havia visto roubando madeira do campo do senhor o ofcial enlouqueceu Um vizinho não lhe emprestou um cavalo todos os seus cavalos morreram Outro pagoulhe menos do que ela havia pedido por um par de sapatos logo morreu Um cavalheiro disse ao seu criado que não lhe desse leitelho ao que não puderam fazer nem manteiga nem queijo Thomas 1971 p 556 Encontramos o mesmo padrão de relatos no caso das mulheres que foram apresentadas perante a corte em Chelmsford Windsor e Osyth A Mãe Waterhouse enforcada em Chelmsford em 1566 era uma mulher muito pobre descri ta como alguém que mendigava um pouco de bolo ou manteiga e que era brigada com muitos dos seus vizinhos Rosen 1969 pp 7682 Elizabeth Stile Mãe Devell Mãe Margaret e Mãe Dutton executadas em Windsor no ano de 1579 também eram viúvas pobres Mãe Margaret vivia num abrigo como a sua suposta líder Mãe Seder e todas saíam para mendigar su postamente vingandose no caso de recusa ibidem pp 8391 Quando lhe negaram um pouco de levedura Elizabeth Francis uma das bruxas de Chelmsford amaldiçoou uma vizinha que mais tarde teve com uma forte dor de cabeça Mãe Staunton co chichou de forma suspeita enquanto se afastava de um vizinho que lhe negou levedura ao que o flho do vizinho adoeceu gra vemente ibidem p 96 Ursula Kemp enforcada em Osyth no ano de 1582 tornou coxa uma tal de Grace depois que esta não lhe deu um pouco de queijo também fez com que se inchasse o traseiro do flho de Agnes Letherdale depois que esta lhe negou um punhado de areia para polir Alice Newman amaldiçoou de morte Johnson o cobrador de impostos dos pobres depois que este se negou a lhe dar doze centavos também castigou um tal Butler que não lhe deu um pedaço de carne ibidem p 119 Encontramos um padrão similar na Escócia onde as acusadas também eram cottars pobres que ainda possuíam um pedaço de terra próprio mas que mal sobreviviam frequentemente despertando a hostilidade de seus vizinhos por terem empurra do seu gado para pastar na terra deles ou por não terem pago o aluguel Larner 1983 313 312 CAÇA ÀS BRUXAS E REVOLTA DE CLASSES Como podemos ver a partir desses casos a caça às bruxas se desenvolveu em um ambiente no qual os de melhor estirpe viviam num estado de constante temor frente às classes baixas das quais certamente se podia esperar que abrigassem pensamentos malignos já que nesse período estavam perdendo tudo o que tinham Não surpreende que este medo se expressasse como um ataque em forma de magia popular A batalha contra a magia sempre acompanhou o desenvolvimento do capitalismo até os dias de hoje A premissa da magia é que o mundo está vivo que é imprevisível e que existe uma força em todas as coisas água árvores substâncias palavras Wilson 2000 p XVII Desta maneira cada acontecimento é interpretado como a ex pressão de um poder oculto que deve ser decifrado e desviado de acordo com a vontade de cada um As implicações que isso tem na vida cotidiana vêm descritas provavelmente com certo exagero na carta que um sacerdote alemão enviou depois de uma visita pastoral a um vilarejo em 1594 O uso de encantamentos está tão difundido que não há homem ou mulher que comece ou faça algo sem primeiro recorrer a algum sinal encantamento ato de magia ou método pagão Por exemplo durante as dores de parto quando se pega ou se solta a criança quando se levam os animais ao campo quando um objeto foi perdido ou não conseguiram encontrálo ao fechar as janelas à noite quando alguém adoece ou uma vaca comportase de forma estranha recorrem imediatamente ao adivinho para perguntarlhe quem os roubou quem os enfeitiçou ou para obter um amuleto A experiência cotidiana dessa gente nos mostra que não há limite para o uso das superstições Aqui todos participam das práticas supersticiosas com palavras nomes rimas usando os nomes de Deus da Santíssima Trindade da Virgem Maria dos doze Apóstolos Estas palavras são pronunciadas tanto abertamente como em segredo estão escritas em pedaços de papel engolidos levados como amuletos Também fazem sinais ruídos e gestos estranhos E depois fazem magia com ervas raízes e ramos de certas árvores têm seu dia e lugar especial para todas essas coisas Strauss 1975 p 21 Como aponta Stephen Wilson em The Magical Universe 2000 p XVIII O universo mágico as pessoas que praticavam esses rituais eram majoritariamente pobres que lutavam para sobreviver sempre tentando evitar o desastre e com o desejo portanto de aplacar persuadir e inclusive manipular estas forças que controlam tudo para se manter longe de danos e do mal e para obter o bem que consistia na fertilidade no bemestar na saúde e na vida Mas aos olhos da nova classe capitalista esta concepção anárquica e molecular da difusão do poder no mundo era insuportável Ao tentar controlar a natureza a organização capitalista do trabalho devia rejeitar o imprevisível que está implícito na prática da magia assim como a possibilidade de se estabelecer uma relação privilegiada com os elementos naturais e a crença na existência de poderes a que somente alguns indivíduos tinham acesso não sendo portan to facilmente generalizáveis e exploráveis A magia constituía também um obstáculo para a racionalização do processo de trabalho e uma ameaça para o estabelecimento do princípio da responsabilidade individual Sobretudo a magia parecia uma forma de rejeição do trabalho de insubordinação e um instrumento de resistência de base ao poder O mundo devia ser desencantado para poder ser dominado Por volta do século XVI o ataque contra a magia já estava no seu auge e as mulheres eram os alvos mais prováveis Mesmo 315 314 quando não eram feiticeirasmagas experientes chamavamnas para marcar os animais quando adoeciam para curar seus vizinhos para ajudarlhes a encontrar objetos perdidos ou roubados para lhes dar amuletos ou poções para o amor ou para ajudarlhes a prever o futuro Embora a caça às bruxas estivesse dirigida a uma ampla variedade de práticas femininas foi princi palmente devido a essas capacidades como feiticeiras curan deiras encantadoras ou adivinhas que as mulheres foram per seguidas158 pois ao recorrerem ao poder da magia debilitavam o poder das autoridades e do Estado dando confança aos pobres em sua capacidade para manipular o ambiente natural e social e possivelmente para subverter a ordem constituída Por outro lado é de se duvidar que as artes mágicas que as mulheres praticaram durante gerações tivessem sido ampliadas até o ponto de se converterem em uma conspiração demoníaca se não tivessem ocorrido num contexto de intensa crise e luta social A coincidência entre crise socioeconômica e caça às bruxas foi apontada por Henry Kamen que observou que foi exatamente no período de aumento de preços mais importante entre o fnal do século XVI e a primeira metade do século XVII que houve o maior número de acusações e perseguições Kamen 1972 p 249159 Ainda mais signifcativa é a coincidência entre a intensif cação da perseguição e a eclosão das revoltas urbanas e rurais Tais revoltas foram as Guerras Camponesas contra a privatização da terra que incluíram as insurreições contra os cercamentos 158 Entretanto à medida que a caça às bruxas se estendeu se ofuscaram as dis tinções entre a bruxa profissional e aquelas mulheres que lhe pediam ajuda ou realizavam práticas de magia sem pretender ser especialistas 159 Midelfort 1972 pp 1234 também vê uma conexão entre a Revolução dos Preços e a perseguição às bruxas Sobre a intensificação de julgamentos de bruxas no sudoeste da Alemanha depois de 1620 escreveu Os anos 16221623 foram testemu nhas da total ruptura do sistema monetário O dinheiro se depreciou a tal ponto que os preços dispararam até se perder de vista A primavera do ano 1625 foi fria e as colheitas foram más de Würzburg passando por Württemberg até o Vale do Reno No ano seguinte houve fome no Vale do Reno Estas condições elevaram os preços para além do que muitos trabalhadores podiam suportar na Inglaterra em 1549 1607 1628 e 1631 quando centenas de homens mulheres e crianças armados com forquilhas e pás começaram a destruir as cercas erguidas ao redor das terras co munais proclamando que a partir de agora nunca mais precisa remos trabalhar Na França entre 1593 e 1595 ocorreu a revolta dos croquants contra os dízimos contra os impostos excessivos e contra o aumento do preço do pão um fenômeno que causou fome extrema e maciça em amplas áreas da Europa Durante estas revoltas muitas vezes eram as mulheres que iniciavam e dirigiam a ação Um exemplo disso foi a revolta ocorrida em Montpellier no ano de 1645 que foi iniciada por mulheres que tentavam proteger seus flhos da fome assim como a revolta de Córdoba em 1652 que também foi promovida por mulheres Além disso as mulheres depois que as revoltas Este gráfico indicando a dinâmica dos processos a bruxas entre 1505 e 1650 se refere especificamente à área de Namur e da Lorena na França mas é representativo da perseguição em outros países europeus Por toda parte as décadaschave foram as de 1550 a 1630 quando o preço da comida foi às alturas Em Henry Kamen 1972 317 316 foram esmagadas e muitos dos homens foram encarcerados ou massacrados persistiram no propósito de levar adiante a resistência ainda que fosse de forma subterrânea Isso é o que pode ter acontecido no sudoeste da Alemanha onde duas décadas após o fm das Guerras Camponesas começou a se desenvolver a caça às bruxas Ao escrever sobre a questão Eric Midelfort rejeitou a tese da existência de uma conexão entre esses dois fenômenos Midelfort 1972 p 68 Todavia tal autor não questionou se havia relações familiares ou comunitárias como as que Le Roy Ladurie encontrou em Cevennes160 entre por um lado os milhares de camponeses que de 1476 até 1525 se levantaram continuamente empunhando armas contra o poder feudal mas acabaram brutalmente derrotados e por outro as inúmeras mulheres que menos de duas décadas mais tarde foram levadas à fogueira na mesma região e nos mesmos vilarejos Contudo podemos imaginar que o feroz trabalho de repressão conduzido pelos príncipes alemães e as centenas e centenas de camponeses crucifcados decapitados e queimados vivos sedimentaram ódios insaciáveis e planos secretos de vin gança sobretudo entre as mulheres mais velhas que haviam testemunhado e recordavam esses acontecimentos e que por isso eram mais inclinadas a tornar pública de diversas manei ras sua hostilidade contra as elites locais A perseguição às bruxas se desenvolveu nesse terreno Foi uma guerra de classes levada a cabo por outros meios Não podemos deixar de ver nesse contexto uma conexão entre o medo da revolta e a insistência dos acusadores no sabá ou na sinagoga das bruxas161 a famosa reunião noturna em que 160 Le Roy Ladurie 1987 p 208 escreve Entre estes levantes frenéticos as caças às bruxas e as autênticas revoltas populares que também alcançaram seu clímax nas mesmas montanhas entre 1580 e 1600 existiu uma série de coincidências geográfi cas cronológicas e às vezes familiares 161 Na obsessão com o sabá ou sinagoga como era chamada a mítica reunião de bruxas encontramos uma prova da continuidade entre a perseguição das bruxas e a perse guição dos judeus Como hereges e propagadores da sabedoria árabe os judeus eram vistos como feiticeiros envenenadores e adoradores do demônio As histórias sobre a prática da supostamente se reuniam milhares de pessoas vindo muitas vezes de lugares muito distantes Não há como determinar se ao evocar os horrores do sabá as autoridades miravam para formas de organização reais Mas não há dúvida de que na ob sessão dos juízes por estas reuniões diabólicas além do eco da perseguição aos judeus escutamos o eco das reuniões secretas que os camponeses realizavam à noite nas colinas desertas e nos bosques para planejar suas revoltas162 A historiadora italiana Luisa Muraro escreveu sobre estas reuniões na obra La Signora del Gioco A Senhora do Jogo um estudo sobre os julgamentos das bruxas que ocorreram nos Alpes italianos no começo do século XVI Durante os julgamentos em Val di Fiemme uma das acusadas disse espontaneamente aos juízes que uma noite enquanto estava nas montanhas com sua sogra viu um grande fogo ao longe Fuja fuja gritou sua avó esse é o fogo da Senhora do Jogo Jogo gioco em muitos dialetos do norte da Itália é o nome mais antigo para o sabá nos julgamentos de Val di Fiemme ainda se menciona uma fgura feminina que dirigia o jogo Em 1525 na mesma região houve um levante campesino Eles exigiam a eliminação de dízimos e tributos liberdade para caçar menos conventos hospitais para os pobres o direito de cada vilarejo eleger seu sacerdote Incendiaram castelos conventos e casas do clero Porém foram derrotados massacrados e os que sobreviveram foram perseguidos durante anos por vingança das autoridades circuncisão que diziam que os judeus matavam crianças em rituais contribuíram para re tratálos como seres diabólicos Uma e outra vez os judeus foram descritos nos mistérios teatro medieval e também nas sketches como demônios do Inferno inimigos da raça humana Trachtenberg 1944 p 23 Sobre a conexão entre a perseguição aos judeus e a caça às bruxas ver também Ecstasies 1991 de Carlo Ginzburg capítulos 1 e 2 162 A referência provém aqui dos conspiradores do Bundschuh o sindicato de camponeses alemães cujo símbolo era o tamanco que na Alsácia na década de 1490 conspirou para um levante contra a Igreja e o castelo Friedrich Engels comenta que estavam habituados a fazer suas reuniões durante a noite no solitário Hunger Hill Engels 1977 p 66 319 318 Muraro conclui O fogo da Senhora do Jogo desaparece ao longe enquanto no primeiro plano estão os fogos da revolta e as fogueiras da repressão Só podemos supor que os camponeses se reuniam secretamente à noite ao redor de uma fogueira para se esquentar e conversar e que aqueles que sabiam guardavam sigilo sobre estas reuniões proibidas apelando à velha lenda Se as bruxas tinham segredos esse deve ter sido um deles Muraro 1977 pp 467 A revolta de classe somada à transgressão sexual era um elemento central nas descrições do sabá retratado como uma monstruosa orgia sexual e como uma reunião política subversiva que culminava com a descrição dos crimes que os participantes haviam cometido e com o diabo dando instruções às bruxas para se rebelarem contra seus senhores Também é signifcativo que o pacto entre a bruxa e o diabo era chamado de conjuratio como os pactos que os escravos e trabalhadores em luta faziam frequentemente Dockes 1982 p 222 Tigar e Levy 1977 p 136 e o fato de que na visão dos acusadores o diabo representava uma promessa de amor poder e riquezas pelas quais uma pessoa estava disposta a vender sua alma ou seja infringir todas as leis naturais e sociais A ameaça de canibalismo que era um tema central na morfologia do sabá recorda também segundo Henry Kamen a morfologia das revoltas já que os trabalhadores rebeldes às vezes demonstravam seu desprezo por aqueles que vendiam seu sangue ameaçando comêlos163 Kamen menciona o que ocorreu 163 O historiador italiano Luciano Parinetto sugeriu que a questão do canibalismo pode ter sido importada do Novo Mundo já que o canibalismo e a adoração do demônio se fundiam nos informes sobre os índios realizados pelos conquistadores e seus cúmplices no clero Para fundamentar a tese Parinetto cita o Compendium Maleficarum 1608 de Francesco Maria Guazzo que do seu ponto de vista demostra que os demonólogos na Europa foram influenciados no seu retrato das bruxas como canibais por informes provenientes do Novo Mundo De qualquer forma as bruxas na Europa foram acusadas de sacrificar crianças ao demônio muito antes da Conquista e da colonização da América no povoado de Romans em Dauphiné na França no inverno de 1580 quando os camponeses rebelados contra os dízimos procla maram que em menos de três dias se venderá carne cristã e então durante o carnaval o líder dos rebeldes vestido com pele de urso comeu iguarias que se fzeram passar por carne cristã Kamen 1972 p 334 Le Roy Ladurie 1981 pp 189216 Noutra ocasião em Nápoles no ano de 1585 durante um protesto contra os altos preços do pão os rebeldes mutilaram o corpo do magis trado responsável pelo aumento e colocaram à venda pedaços da sua carne Kamen 1972 p 335 Kamen aponta que comer carne humana simbolizava uma inversão total dos valores sociais indo ao encontro da imagem da bruxa como personifcação da perver são moral que sugerem muitos dos rituais atribuídos à prática da bruxaria a missa celebrada ao contrário e as danças em sentido antihorário Clark 1980 Kamen 1972 De fato a bruxa era um símbolo vivo do mundo ao contrário uma imagem recorrente na literatura da Idade Média vinculada a aspirações milenares de subversão da ordem social A dimensão subversiva e utópica do sabá das bruxas é destacada também de um ângulo diferente por Luciano Parinetto que em Streghe e Potere 1998 Bruxas e poder insistiu na necessidade de realizar uma interpretação moderna desta reunião fazendo uma leitura de seus aspectos transgres sores do ponto de vista do desenvolvimento de uma disciplina capitalista do trabalho Parinetto aponta que a dimensão noturna do sabá era uma violação à regularização capitalista contemporânea do tempo de trabalho bem como um desafo à propriedade privada e à ortodoxia sexual já que as sombras noturnas confundiam as distinções entre os sexos e entre o meu e o seu Parinetto sustenta também que o voo a viagem um elemento importante nas acusações contra as bruxas deve ser interpretado como um ataque à mobilidade dos imigrantes e dos trabalhadores itinerantes um fenômeno novo refetido 321 no medo que pairava contra os vagabundos que tanto preo cupavam as autoridades nesse período Parinetto conclui que considerado em sua especifcidade histórica o sabá noturno aparece como uma demonização da utopia encarnada na rebe lião contra os senhores e como uma ruptura dos papéis sexuais representando também um uso do espaço e do tempo contrário à nova disciplina capitalista do trabalho Nesse sentido há uma continuidade entre a caça às bruxas e a perseguição precedente dos hereges que castigou formas específcas de subversão social com o pretexto de impor uma ortodoxia religiosa De forma signifcativa a caça às bruxas se desenvolveu primeiro nas zonas onde a perseguição aos hereges foi mais intensa no sul da França na Cordilheira do Jura no nor te da Itália Em algumas regiões da Suíça numa fase inicial as bruxas eram chamadas pela expressão herege ou vaudois val denses Monter 1976 p 22 Russell 1972 p 34 e segs164 Além disso os hereges também foram queimados na fogueira como traidores da verdadeira religião e foram acusados de crimes que logo entraram no decálogo da bruxaria sodomia infanticídio adoração aos animais Em certa medida se trata de acusações habituais que a Igreja sempre lançou contra as religiões rivais Mas como vimos a revolução sexual foi um ingrediente essen cial do movimento herético desde os cátaros até os adamitas Os cátaros em particular desafavam a degradada visão que a Igreja tinha das mulheres e defendiam a rejeição ao matrimônio e in clusive à procriação que consideravam uma forma de enganar a alma Também adotaram a religião maniqueísta que de acordo com alguns historiadores foi responsável pela crescente preo cupação da Igreja com a presença do diabo no mundo durante a Baixa Idade Média e pela visão da bruxaria como uma espécie 164 Nos séculos XIV e XV a Inquisição acusou as mulheres os hereges e os judeus de bruxaria A palavra Hexerei bruxaria foi usada pela primeira vez durante os julgamen tos realizados entre 1419 e 1420 em Lucerna e Interlaken Russell 1972 p 203 Hereges valdenses tal como representados no Tractatus contra sectum Valdensium de Johannes Tinctoris estimado em 1460 A caça às bruxas se desenvolveu primeiro nas regiões em que a perseguição aos hereges havia sido mais intensa No primeiro período em algumas áreas da Suíça as bruxas eram conhecidas como waudois 323 322 de contraIgreja por parte da Inquisição Desta maneira não há como duvidar da continuidade entre a heresia e a bruxaria ao menos nesta primeira etapa da caça às bruxas No entanto a caça às bruxas se deu em um contexto histórico distinto que havia sido transformado de forma dramática primeiro pelos traumas e pelos deslocamentos produzidos pela Peste Negra um divisor de águas na história europeia e mais tarde no século XV pela profunda mudança nas relações de classe que trouxe consigo a reorganização capitalista da vida econômica e social Inevitavelmente então até mesmo os elementos de continuida de visíveis por exemplo o banquete noturno promíscuo tinham um signifcado diferente do que tiveram seus antecessores na luta da Igreja contra os hereges A CAÇA ÀS BRUXAS A CAÇA ÀS MULHERES E A ACUMULAÇÃO DO TRABALHO A diferença mais importante entre a heresia e a bruxaria é que esta última era considerada um crime feminino Isso pode ser notado especialmente no momento em que a perseguição alcançou seu ponto máximo no período compreendido entre 1550 e 1650 Em um momento anterior os homens chegaram a representar cerca de 40 dos acusados e um número menor deles continuou sendo processado posteriormente sobretudo vagabundos mendigos trabalhadores itinerantes assim como ciganos e padres de classe baixa Já no século XVI a acusação de adoração ao demônio se tornou um tema comum nas lutas políticas e religiosas quase não houve bispo ou político que no momento de maior exaltação não fosse acusado de praticar bruxaria Protestantes acusavam católicos especialmente o papa de servir ao demônio o próprio Lutero foi acusado da prática de magia como também o foram John Knox na Escócia Jean Bodin na França e muitos outros Os judeus também foram seguidamente acusados de adorar ao demônio e muitas vezes foram retratados com chifres e garras Mas o fato mais notável é que mais de 80 das pessoas julgadas e executadas na Europa nos séculos XVI e XVII pelo crime de bruxaria eram mulheres De fato mais mulheres foram perseguidas por bruxaria neste período do que por qualquer outro crime exceto de forma signifcativa o de infanticídio O fato de que a fgura da bruxa fosse uma mulher também era enfatizado pelos demonólogos que se regozijavam por Deus ter livrado os homens de tamanho fagelo Como fez notar Sigrid Brauner 1995 os argumentos que se usaram para justifcar esse fenômeno foram mudando Enquanto os autores 325 324 do Malleus Malefcarum explicavam que as mulheres tinham mais tendência à bruxaria devido à sua luxúria insaciável Martinho Lutero e os escritores humanistas ressaltaram as debilidades morais e mentais das mulheres como origem dessa perversão De todo modo todos apontavam as mulheres como seres diabólicos Outra diferença entre as perseguições aos hereges e às bru xas é que as acusações de perversão sexual e infanticídio contra as bruxas tinham um papel central e estavam acompanhadas pela virtual demonização das práticas contraceptivas A associação entre contracepção aborto e bruxaria apare ceu pela primeira vez na Bula de Inocêncio VIII 1484 que se queixava de que através de seus encantamentos feitiços conjurações além de outras superstições execráveis e sortilégios atrocidades e ofensas horrendas as bruxas destroem as crias das mulheres Elas impedem a procriação dos homens e a concepção das mulheres daí que nem os maridos podem realizar o ato sexual com suas mulheres nem as mulheres podem realizá lo com seus maridos Kors e Peters 1972 pp 1078 A partir desse momento os crimes reprodutivos ocuparam um lugar de destaque nos julgamentos No século XVII as bruxas foram acusadas de conspirar para destruir a potência geradora de humanos e animais de praticar abortos e de pertencer a uma seita infanticida dedicada a assassinar crianças ou ofertálas ao demônio Também na imaginação popular a bruxa começou a ser associada à imagem de uma velha luxuriosa hostil à vida nova que se alimentava de carne infantil ou usava os corpos das crianças para fazer suas poções mágicas um estereótipo que mais tarde seria popularizado pelos livros infantis Qual foi a razão de tal mudança na trajetória que vai da heresia à bruxaria Em outras palavras por que no transcurso de um século os hereges tornaramse mulheres e por que a transgressão religiosa e social foi redefnida como predomi nantemente um crime reprodutivo Na década de 1920 a antropóloga inglesa Margaret Murray propôs em The WitchCult in Western Europe 1921 O culto à bruxaria na Europa Ocidental uma explicação que foi re centemente utilizada pelas ecofeministas e pelas praticantes da Wicca Murray defendeu que a bruxaria foi uma religião matrifocal na qual a Inquisição centrou sua atenção depois da derrota das heresias estimulada por um novo medo à desviação doutrinal Em outras palavras as mulheres processadas como bruxas pelos demonólogos eram de acordo com esta teoria praticantes de antigos cultos de fertilidade destinados a propi ciar partos e reprodução cultos que existiram nas regiões do Mediterrâneo durante milhares de anos mas aos quais a Igreja se opôs por representarem ritos pagãos além de constituírem uma ameaça ao seu poder165 Entre os fatores mencionados na defesa dessa perspectiva estão a presença de parteiras entre as acusadas o papel que as mulheres tiveram na Idade Média como curandeiras comunitárias e o fato de que até o século XVI o parto fosse considerado um mistério feminino Entretanto essa hipótese não é capaz de explicar a sequência cronológica da caça às bruxas nem de nos dizer por que estes cultos da fertilidade se tornaram tão abomináveis aos olhos das 165 A tese de Murray foi revisitada nos últimos anos graças ao renovado interesse das ecofeministas pela relação entre as mulheres e a natureza nas primeiras sociedades matrifocais Entre as que interpretaram as bruxas como defensoras de uma antiga religião ginocêntrica que idolatrava as potências reprodutivas se encontra Mary Condren Em The Serpent and the Goddess 1989 A serpente e a deusa Condren sustenta que a caça às bruxas foi parte de um longo processo em que o cristianismo deslocou as sacerdotisas da antiga religião afirmando a princípio que estas usavam seus poderes para propósitos malignos e negando depois que tivessem semelhantes poderes Condren 1989 pp 806 Um dos argumentos mais interessantes aos que recorre Condren está relacionado com a conexão entre a perseguição às bruxas e a intenção dos sacerdotes cristãos de se apropriarem dos poderes reprodutivos das mulheres Condren mostra como os sacerdo tes participaram em uma verdadeira concorrência com as mulheres sábias realizando milagres reprodutivos fazendo com que mulheres estéreis ficassem grávidas mudando o sexo de bebês realizando abortos sobrenaturais e por último mas não menos importan te dando abrigo a crianças abandonadas Condren 1989 pp 845 327 326 autoridades a ponto de levar ao extermínio das mulheres que praticavam a antiga religião Uma explicação distinta é a que aponta a proeminência dos crimes reprodutivos nos julgamentos por bruxaria como uma consequência das altas taxas de mortalidade infantil que eram típicas dos séculos XVI e XVII devido ao crescimento da pobreza e da desnutrição As bruxas segundo se sustenta eram acusa das pelo fato de que morriam muitas crianças porque elas mor riam subitamente morriam pouco depois de nascer ou porque eram vulneráveis a uma grande gama de enfermidades Esta explicação entretanto não vai muito longe Ela não dá conta do fato de que as mulheres que eram chamadas de bruxas também eram acusadas de impedir a concepção e não é capaz de situar a caça às bruxas no contexto da política econômica e institucio nal do século XVI Desta maneira perde de vista a signifcativa conexão entre o ataque às bruxas e o desenvolvimento de uma nova preocupação entre os estadistas e economistas europeus com a questão da reprodução e do tamanho da população a rubrica sob a qual se discutia a questão da extensão da força de trabalho naquela época Como vimos anteriormente a questão do trabalho se tornou especialmente urgente no século XVII quando a população na Europa começou a entrar em declínio novamente fazendo surgir o espectro de um colapso demográ fco similar ao que se deu nas colônias americanas nas décadas que se seguiram à Conquista Com este pano de fundo parece plausível que a caça às bruxas tenha sido pelo menos em parte uma tentativa de criminalizar o controle da natalidade e de colocar o corpo feminino o útero a serviço do aumento da população e da acumulação da força de trabalho Essa é uma hipótese o que podemos afrmar com certeza é que a caça às bruxas foi promovida por uma classe política que estava preocupada com a diminuição da população e motivada pela convicção de que uma população numerosa constitui a riqueza de uma nação O fato de que os séculos XVI e XVII marca ram o momento de apogeu do mercantilismo e testemunharam o começo dos registros demográfcos nascimentos mortes e matrimônios do recenseamento e da formalização da própria demografa como a primeira ciência de Estado é uma prova clara da importância estratégica que começava a adquirir o con trole dos movimentos da população para os círculos políticos que instigavam a caça às bruxas Cullen 1975 p 6 e segs166 Também sabemos que muitas bruxas eram parteiras ou mulheres sábias tradicionalmente depositárias do 166 Em meados do século XVI a maioria dos países europeus começou a realizar estatísticas com regularidade Em 1560 o historiador italiano Francesco Guicciardini expressou sua surpresa ao tomar conhecimento de que na Antuérpia e nos Países Baixos as autoridades normalmente não recolhiam dados demográficos exceto nos casos de urgente necessidade Helleneir 1958 pp 12 Durante o século XVII todos os Estados em que houve caça às bruxas promoveram também o crescimento demográfico ibidem p 46 Bruxas assando crianças em Compendium Maleficarum 1608 de Francesco Maria Guazzo 329 328 conhecimento e do controle reprodutivo femininos Midelfort 1972 p 172 O Malleus dedicoulhes um capítulo inteiro no qual afrmava que elas eram piores que quaisquer outras O drama da mortalidade infantil é bem expresso nesta imagem de Hans Holbein o Jovem A dança da morte uma série de 41 desenhos impressa na França em 1538 mulheres já que ajudavam as mães a destruir o fruto do seu ventre uma conspiração facilitada acusavam pela restrição à entrada de homens nas habitações onde as mulheres pariam167 Ao notarem que não havia uma só cabana que não desse guari da a alguma parteira os autores recomendaram que essa arte não deveria ser permitida a nenhuma mulher a menos que demonstrasse de antemão ser uma boa católica Esta reco mendação não passou despercebida Como vimos as parteiras ou eram contratadas para vigiar as mulheres para verifcar por exemplo se não ocultavam uma gravidez ou se tinham flhos fora do casamento ou eram marginalizadas Tanto na França quanto na Inglaterra a partir do fnal do século XVI poucas mu lheres foram autorizadas a praticar a obstetrícia uma atividade que até então havia sido seu mistério inviolável Por volta do início do século XVII começaram a aparecer os primeiros ho mens parteiros e em questão de um século a obstetrícia havia caído quase completamente sob controle estatal Segundo Alice Clark O contínuo processo de substituição das mulheres por homens na profssão é um exemplo do modo como elas foram excluídas de todos os ramos de trabalho especializado conforme as oportunidades de obtenção de um treinamento profssional adequado lhes eram negadas Clark 1968 p 265 167 Monica Green desafiou entretanto a ideia de que na Idade Média existisse uma divisão sexual do trabalho médico tão rígida que os homens estivessem excluídos do cuidado das mulheres e em particular da ginecologia e da obstetrícia Também sustenta que as mulheres estiveram presentes embora em menor quantidade em todos os ramos da medicina não somente como parteiras mas também como médicas boticárias barbei rascirurgiãs Green questiona o argumento comum de que as parteiras foram especial mente perseguidas pelas autoridades e de que é possível estabelecer uma conexão entre a caça às bruxas e a expulsão das mulheres da profissão médica a partir dos séculos XIV e XV Argumenta que as restrições à prática foram resultado de inúmeras tensões sociais na Espanha por exemplo do conflito entre cristãos e muçulmanos e que enquanto as crescentes limitações à prática das mulheres puderam ser documentadas não ocorreu o mesmo com as razões que se deram por trás delas Green admite que as questões impe rantes por trás destas limitações eram de origem moral ou seja estavam relacionadas com considerações sobre o caráter das mulheres Green 1989 p 453 e segs 331 330 nos possibilita evitar as especulações sobre as intenções dos perseguidores e concentrar nossas atenções por outro lado nos efeitos que a caça às bruxas provocou sobre a posição social das mulheres Desse ponto de vista não pode haver dúvida de que a caça às bruxas destruiu os métodos que as mulheres utilizavam para controlar a procriação posto que eles eram denunciados como instrumentos diabólicos e institucionalizou o controle do Estado sobre o corpo feminino o principal prérequisito para sua subordinação à reprodução da força de trabalho Todavia a bruxa não era só a parteira a mulher que evitava a maternidade ou a mendiga que a duras penas ganhava a vida roubando um pouco de lenha ou de manteiga de seus vizinhos Contudo interpretar o declínio social da parteira como um caso de desprofssionalização feminina deixa escapar sua importância fundamental Há provas convincentes de que na verdade as parteiras foram marginalizadas porque não eram vistas como confáveis e porque sua exclusão da profssão aca bou com o controle das mulheres sobre a reprodução168 Do mesmo modo que os cercamentos expropriaram as terras comunais do campesinato a caça às bruxas expropriou os corpos das mulheres os quais foram assim liberados de qualquer obstáculo que lhes impedisse de funcionar como máquinas para produzir mão de obra A ameaça da fogueira ergueu barreiras mais formidáveis ao redor dos corpos das mulheres do que as cercas levantadas nas terras comunais Podemos imaginar o efeito que teve nas mulheres o fato de ver suas vizinhas suas amigas e suas parentes ardendo na fogueira enquanto percebiam que qualquer iniciativa contra ceptiva de sua parte poderia ser interpretada como produto de uma perversão demoníaca169 Procurar entender o que as mulheres caçadas como bruxas e as demais mulheres de suas comunidades deviam pensar sentir e decidir a partir desse horrendo ataque contras elas em outras palavras lançar um olhar à perseguição vindo de dentro como Anne L Barstow fez no seu Witchcraze 1994 Loucura das bruxas também 168 J Gelis escreve que o Estado e a Igreja desconfiaram tradicionalmente desta mulher cuja prática era frequentemente secreta e impregnada de magia quando não de bruxaria e que podia sem dúvida contar com o apoio da comunidade rural Agrega que foi necessário sobretudo quebrar a cumplicidade verdadeira ou imaginada das sagefemmes em crimes como o aborto o infanticídio e o abandono de crianças Gelis 1977 p 927 e segs Na França o primeiro edito que regulava a atividade das sage femmes foi promulgado em Estrasburgo no final do século XVI No final do século XVII as sagefemmes estavam completamente sob o controle do Estado e eram usadas como força reacionária em campanhas de reforma moral Gelis 1977 169 Isso pode explicar por que os contraceptivos que foram amplamente usados na Idade Média desapareceram no século XVII sobrevivendo somente nos ambientes da prostituição Quando reapareceram já estavam em mãos masculinas de tal maneira que não se permitiu às mulheres o seu uso exceto com permissão dos homens De fato durante muito tempo o único contraceptivo oferecido pela medicina burguesa foi o preservativo A camisinha começou a aparecer na Inglaterra no século XVIII Uma de suas primeiras menções aparece no diário de James Boswell citado por Helleiner 1958 p 94 Bruxas oferecem crianças ao diabo Xilogravura de um folheto sobre o processo de Agnes Sampson 1591 333 332 Também era a mulher libertina e promíscua a prostituta ou a adúltera e em geral a mulher que praticava sua sexualidade fora dos vínculos do casamento e da procriação Por isso nos julgamentos por bruxaria a má reputação era prova de culpa A bruxa era também a mulher rebelde que respondia discutia insultava e não chorava sob tortura Aqui a expressão rebel de não se refere necessariamente a nenhuma atividade subver siva específca em que possa estar envolvida uma mulher Pelo contrário descreve a personalidade feminina que se havia desenvolvido especialmente entre o campesinato no contexto da luta contra o poder feudal quando as mulheres atuaram à Três mulheres são queimadas vivas no mercado de Guernsey Inglaterra Gravura anônima do século XVI frente dos movimentos heréticos muitas vezes organizadas em associações femininas apresentando um desafo crescente à autoridade masculina e à Igreja As descrições das bruxas nos lembram as mulheres tal como eram representadas nos autos de moralidade medievais e nos fabliaux prontas para tomar a ini ciativa tão agressivas e vigorosas quanto os homens vestindo roupas masculinas ou montando com orgulho nas costas dos seus maridos segurando um chicote Sem dúvida entre as acusadas havia mulheres suspeitas de crimes específcos Uma foi acusada de envenenar o marido ou tra de causar a morte do seu empregador outra de ter prostituído a flha Le Roy Ladurie 1974 pp 2034 Porém não só as mulhe res delinquentes eram levadas a juízo mas as mulheres enquanto mulheres em particular aquelas das classes inferiores as quais geravam tanto medo que nesse caso a relação entre educação e punição foi virada de pontacabeça Devemos disseminar o terror entre algumas castigando muitas declarou Jean Bodin E de fato em alguns vilarejos poucas foram poupadas Além disso o sadismo sexual demonstrado durante as tor turas às quais eram submetidas as acusadas revela uma miso ginia sem paralelo na história e não pode ser justifcado a partir de nenhum crime específco De acordo com o procedimento padrão as acusadas eram despidas e depiladas completamente se dizia que o demônio se escondia entre seus cabelos depois eram furadas com longas agulhas por todo o corpo inclusive na vagina em busca do sinal com o qual o diabo supostamente marcava suas criaturas tal como os patrões na Inglaterra faziam com os escravos fugitivos Muitas vezes elas eram estu pradas investigavase se eram ou não virgens um sinal da sua inocência e se não confessavam eram submetidas a ordálias ainda mais atrozes seus membros eram arrancados sentavam nas em cadeiras de ferro embaixo das quais se acendia fogo seus ossos eram esmagados E quando eram enforcadas ou 335 334 queimadas tomavase cuidado para que a lição a ser extraída de sua pena não fosse ignorada A execução era um importante evento público que todos os membros da comunidade deviam presenciar inclusive os flhos das bruxas e especialmente suas flhas que em alguns casos eram açoitadas em frente à foguei ra na qual podiam ver a mãe ardendo viva A caça às bruxas foi portanto uma guerra contra as mu lheres foi uma tentativa coordenada de degradálas de demo nizálas e de destruir seu poder social Ao mesmo tempo foi precisamente nas câmaras de tortura e nas fogueiras onde se forjaram os ideais burgueses de feminilidade e domesticidade Também nesse caso a caça às bruxas amplifcou as ten dências sociais de então De fato existe uma continuidade inconfundível entre as práticas que foram alvo da caça às bruxas e aquelas que estavam proibidas pela nova legislação introduzida na mesma época com a fnalidade de regular a vida familiar e as relações de gênero e de propriedade De um extremo ao outro da Europa Ocidental à medida que a caça às bruxas avançava aprovavamse leis que castigavam as adúl teras com a morte na Inglaterra e na Escócia com a fogueira como no caso de crime de lesamajestade e a prostituição era colocada na ilegalidade assim como os nascimentos fora do casamento ao passo que o infanticídio foi transformado em crime capital170 Ao mesmo tempo as amizades femininas 170 Em 1556 Enrique II sancionou na França uma lei punindo como assassina qualquer mulher que ocultasse sua gravidez e cujo filho nascesse morto Uma lei similar foi sancionada na Escócia em 1563 Até o século XVIII o infanticídio foi castigado na Eu ropa com a pena de morte Na Inglaterra durante o Protetorado foi introduzida a pena de morte por adultério Ao ataque aos direitos reprodutivos da mulher e à introdução de no vas leis que sancionavam a subordinação da esposa ao marido no âmbito familiar devese agregar a criminalização da prostituição a partir de meados do século XVI Como vimos no Capítulo 2 as prostitutas eram submetidas a castigos atrozes tais como a acabussade Na Inglaterra eram marcadas na testa com ferros quentes de maneira semelhante à marca do diabo e depois eram chicoteadas e tinham seus cabelos raspados como bruxas o ca belo era visto como o lugar favorito do diabo Na Alemanha a prostituta podia ser afoga da queimada ou enterrada viva Em algumas ocasiões lhe cortavam o nariz uma prática de origem árabe usada para castigar crimes de honra e infligida também às mulheres acusadas de adultério Assim como a bruxa a prostituta era supostamente reconhecida pelo seu mau olhado Supunhase que a transgressão sexual era diabólica e dava às tornaramse objeto de suspeita denunciadas no púlpito como uma subversão da aliança entre marido e mulher da mesma maneira que as relações entre mulheres foram demonizadas pelos acusadores das bruxas que as forçavam a delatar umas às outras como cúmplices do crime Foi também neste período que como vimos a palavra gossip fofoca que na Idade Média signifcava amiga mudou de signifcado adquirindo uma conotação depreciativa mais um sinal do grau a que foram solapados o poder das mulheres e os laços comunais Há também no plano ideológico uma estreita correspon dência entre a imagem degradada da mulher forjada pelos demonólogos e a imagem da feminilidade construída pelos debates da época sobre a natureza dos sexos171 que canoni zava uma mulher estereotipada fraca do corpo e da mente e biologicamente inclinada ao mal o que efetivamente servia para justifcar o controle masculino sobre as mulheres e a nova ordem patriarcal mulheres poderes mágicos Sobre a relação entre o erotismo e a magia no Renascimento ver P Couliano 1987 171 O debate sobre a natureza dos sexos começou na Baixa Idade Média e foi retomado no século XVII 337 336 A CAÇA ÀS BRUXAS E A SUPREMACIA MASCULINA A DOMESTICAÇÃO DAS MULHERES A política sexual da caça às bruxas é revelada pela relação entre a bruxa e o diabo que constitui uma das novidades in troduzidas pelos julgamentos dos séculos XVI e XVII A Grande Caça às Bruxas marcou uma mudança na imagem do diabo em comparação àquela que podia ser encontrada nas hagiografas medievais ou nos livros dos magos do Renascimento No ima ginário anterior o diabo era retratado como um ser maligno mas com pouco poder em geral bastava borrifar água benta e dizer algumas palavras santas para derrotar suas tramas Sua imagem era a de um malfeitor fracassado que longe de inspirar terror possuía algumas virtudes O diabo medieval era um especialista em lógica competente em assuntos legais às vezes representado atuando na defesa de seu caso perante um tribu nal Seligman 1948 pp 1518172 Também era um trabalhador qualifcado que podia ser usado para cavar minas ou construir muralhas de cidades ainda que fosse rotineiramente enganado ao chegar o momento de receber sua recompensa A visão re nascentista da relação entre o diabo e o mago também retratava sempre o diabo como um ser subordinado chamado ao dever querendo ou não como um criado e feito para agir de acordo com a vontade do seu senhor A caça às bruxas inverteu a relação de poder entre o diabo e a bruxa Agora a mulher era a criada a escrava o súcubo 172 Tu non pensavi chio fossi Você não imaginava que minha especialidade fosse a lógica ri o Diabo no Inferno de Dante enquanto arrebatava a alma de Bonifácio VIII que sutilmente pensou escapar do fogo eterno arrependendose no exato momento de cometer seus crimes A Divina Comédia Inferno canto XXVII verso 123 de corpo e alma enquanto o diabo era ao mesmo tempo seu dono e senhor cafetão e marido Por exemplo era o diabo que se dirigia à suposta bruxa Ela raramente o fazia aparecer Larner 1983 p 148 Depois de aparecer para ela o diabo pedialhe que se tornasse sua criada e o que vinha a seguir era um exemplo clássico da relação senhorescravo maridomu lher Ele imprimialhe sua marca tinha relações sexuais com ela e em alguns casos inclusive modifcava seu nome Larner 1983 p 148 Além disso em uma clara previsão do destino matrimonial das mulheres a caça às bruxas introduzia um só diabo em vez da multidão de diabos que pode ser encontrada no mundo medieval e renascentista e um diabo masculino por sinal em contraste com as fguras femininas Diana Here a Senhora do Jogo cujos cultos estavam presentes entre as mulheres da Idade Média tanto nas regiões mediterrâneas quanto nas teutônicas O diabo leva a alma de uma mulher que o servia Xilogravura de Olaus Magnus Historia de Gentibus Septentrionalibus Roma 1555 339 338 O quão preocupados estavam os caçadores de bruxas com a afrmação da supremacia masculina pode ser constatado pelo fato de que até mesmo quando se rebelavam contra as leis humanas e divinas as mulheres tinham que ser retratadas como subservientes a um homem e o ponto culminante de sua rebelião o famoso pacto com o diabo devia ser represen tado como um contrato de casamento pervertido A analogia matrimonial era levada a tal ponto que as bruxas chegavam a confessar que elas não se atreviam a desobedecer o diabo ou ainda mais curioso que elas não tinham nenhum prazer em co pular com ele uma contradição no que diz respeito à ideologia da caça às bruxas para a qual a bruxaria era consequência da luxúria insaciável das mulheres A caça às bruxas não só santifcava a supremacia mascu lina como também induzia os homens a temer as mulheres e até mesmo a vêlas como destruidoras do sexo masculino Segundo pregavam os autores do Malleus Malefcarum as mu lheres eram lindas de se ver mas contaminavam ao serem to cadas elas atraem os homens mas só para fragilizálos fazem de tudo para lhes satisfazer mas o prazer que dão é mais amar go que a morte pois seus vícios custam aos homens a perda de suas almas e talvez seus órgãos sexuais Kors e Peters 1972 p 1145 Supostamente uma bruxa podia castrar os homens ou deixálos impotentes seja por meio do congelamento de suas forças geradoras ou fazendo com que um pênis se levan tasse e caísse segundo sua vontade173 Algumas roubavam os pênis dos homens escondendoos em grandes quantidades em ninhos de aves ou em caixas até que sob pressão eram 173 A sabotagem do ato conjugal era um dos principais temas nos processos judi ciais relacionados ao matrimônio e à separação especialmente na França Como observa Robert Mandrou os homens temiam tanto se tornarem impotentes pelas mulheres que os padres dos povoados proibiam com frequência mulheres suspeitas de serem especialistas em atar nós um suposto ardil para causar a impotência masculina de assistirem aos casamentos Mandrou 1968 pp 812 391 e segs Le Roy Ladurie 1974 pp 2045 Lecky 1886 p 100 forçadas a devolvêlos aos seus donos174 Mas quem eram essas bruxas que castravam os homens e os deixavam impotentes Virtualmente todas as mulheres Num vi larejo ou cidade pequena de uns poucos milhares de habitantes onde durante o momento de apogeu da caça às bruxas dezenas de mulheres foram queimadas em poucos anos ou até mesmo em poucas semanas nenhum homem podia sentirse a salvo ou estar seguro de que não vivia com uma bruxa Muitos deviam fcar aterrorizados ao ouvir que à noite algumas mulheres dei xavam seu leito matrimonial para viajar ao sabá enganando seus maridos que dormiam colocando uma estaca perto deles ou ao escutar que as mulheres tinham o poder de fazer com que seus pênis desaparecessem como a bruxa mencionada no Malleus que armazenou dezenas deles em uma árvore Apesar das tentativas individuais de flhos maridos ou pais de salvarem suas parentes mulheres da fogueira não há registro salvo uma exceção de qualquer organização masculina que se opusesse à perseguição o que sugere que a propaganda teve êxito em separar as mulheres dos homens A exceção é o caso dos pescadores de uma região basca onde o inquisidor francês Pierre Lancre estava conduzindo julgamentos em massa que le varam à queima de aproximadamente seiscentas mulheres Mark Kurlansky relata que os pescadores estiveram ausentes pois estavam ocupados com a temporada anual do bacalhau Porém quando os homens da frota de bacalhau de StJeandeLuz uma das maiores do País Basco ouviram rumores de que suas esposas mães e flhas estavam sendo despidas apunhaladas e que muitas delas já haviam sido executadas a campanha do bacalhau de 1609 terminou dois meses antes do normal Os pescadores regressaram com porretes 174 Este relato aparece em várias demonologias Geralmente termina quando o homem descobre o dano que lhe foi causado e obriga a bruxa a lhe devolver seu pênis Ela o acompanha até o alto de uma árvore onde tem muitos pênis escondidos em um ninho o homem escolhe um deles mas a bruxa se opõe Não esse é o do bispo 341 340 nas mãos e libertaram um comboio de bruxas que estava sendo levado ao lugar da queima Esta resistência popular foi sufciente para deter os julgamentos Kurlansky 2001 p 102 A intervenção dos pescadores bascos contra a perseguição de suas parentes foi um acontecimento único Nenhum outro grupo ou organização se levantou em defesa das bruxas Sabemos por outro lado que alguns homens fzeram negócios voltados à denúncia de mulheres designandose a si mesmos como caça dores de bruxas viajando de vilarejo em vilarejo ameaçando delatar as mulheres a menos que elas pagassem Outros homens aproveitaram o clima de suspeita que rondava as mulheres para se livrar de suas esposas e amantes indesejadas ou para debilitar a vingança das mulheres a que tinham estuprado ou seduzido Sem dúvida a inércia dos homens diante das atrocidades a que foram submetidas as mulheres foi frequentemente motivada pelo medo de serem implicados nas acusações já que a maioria dos homens que foram julgados por tais crimes eram parentes de mulheres suspeitas ou condenadas por bruxaria Contudo os anos de propaganda e terror certamente plantaram entre os homens as sementes de uma profunda alienação psicológica com relação às mulheres o que quebrou a solidariedade de classe e minou seu próprio poder coletivo Podemos concordar com Marvin Harris quanto ao seguinte A caça às bruxas dispersou e fragmentou todas as energias de protesto latentes Fez com que todos se sentissem impotentes e dependentes dos grupos sociais dominantes e além disso deu uma válvula de escape local às frustrações Por esta razão impediu que os pobres mais que qualquer outro grupo social enfrentassem as autoridades eclesiásticas e a ordem secular ou reivindicassem a redistribuição da riqueza e a igualdade social Harris 1974 pp 23940 Assim como atualmente ao reprimir as mulheres as classes dominantes reprimiam de forma ainda mais efcaz o proletariado como um todo Instigavam os homens que foram expropriados empobrecidos e criminalizados a culpar a bruxa castradora pela sua desgraça e a enxergar o poder que as mulheres tinham ganhado contra as autoridades como um poder que as mulheres utilizariam contra eles Todos os medos profundamente arraigados que os homens nutriam em relação às mulheres principalmente devido à propaganda misógina da Igreja foram mobilizados nesse contexto As mulheres não só foram acusadas de tornar os homens impotentes mas também sua sexualidade foi transformada num objeto de temor uma força perigosa demoníaca pois se ensinava aos homens que uma bruxa podia escravizálos e acorrentálos segundo sua vontade Kors e Peters 1972 pp 1302 Uma acusação recorrente nos julgamentos por bruxaria era de que as bruxas estavam envolvidas em práticas sexuais dege neradas essencialmente na cópula com o diabo e na participação em orgias que supostamente aconteciam no sabá Mas as bruxas também eram acusadas de gerar uma excessiva paixão erótica nos homens de modo que era fácil para aqueles que fossem pegos fazendo algo ilícito dizer que haviam sido enfeitiçados ou para uma família que quisesse acabar com a relação do flho com uma mulher que desaprovavam acusála de ser bruxa De acordo com o Malleus Existem sete métodos por meio dos quais as bruxas infectam o ato venéreo e a concepção do útero primeiro levando as mentes dos homens a uma paixão desenfreada segundo obstruindo sua força geradora terceiro removendo os membros destinados a esse ato quarto transformando os homens em animais por meio de suas artes mágicas quinto destruindo a força geradora das mulheres sexto provocando o aborto sétimo oferecendo as crianças ao diabo 1971 p 47 343 O fato de as bruxas terem sido acusadas simultaneamente de deixar os homens impotentes e de despertar neles paixões sexuais excessivas é uma contradição apenas aparente No novo código patriarcal que se desenvolvia de modo concomitante à caça às bruxas a impotência física era a contrapartida da impotência moral era a manifestação física da erosão da auto ridade masculina sobre as mulheres já que do ponto de vista funcional não havia nenhuma diferença entre um homem castrado e um inutilmente apaixonado Os demonólogos olha vam ambos os estados com suspeita claramente convencidos de que seria impossível colocar em prática o tipo de família exigida pelo senso comum da burguesia da época inspirada no Estado com o marido como rei e a mulher subordinada à sua vontade devotada à administração do lar de maneira abnegada Schochet 1975 se as mulheres com seu glamour e seus feiti ços de amor pudessem exercer tanto poder a ponto de tornar os homens os súcubos de seus desejos A paixão sexual destruía não somente a autoridade dos ho mens sobre as mulheres como lamentava Montaigne o homem pode conservar seu decoro em tudo exceto no ato sexual Easlea 1980 p 243 mas também a capacidade de um homem de go vernar a si mesmo fazendoo perder esta preciosa cabeça onde a flosofa cartesiana situaria a fonte da razão Por isso uma mulher sexualmente ativa constituía um perigo público uma ameaça à ordem social já que subvertia o sentido de responsabilidade dos homens e sua capacidade de trabalho e de autocontrole Para que as mulheres não arruinassem moralmente ou o que era mais importante fnanceiramente os homens a sexualidade feminina tinha que ser exorcizada Isso se alcançava por meio da tortura da morte na fogueira assim como pelos interrogatórios meticulosos a que as bruxas foram submetidas e que eram uma mistura de exorcismo sexual e estupro psicológico175 175 Carolyn Merchant 1980 p 168 afirma que os interrogatórios e as torturas O diabo seduz uma mulher a fim de fazer um pacto em Ulrich Molitor De Lamiies et Pythonicis Mulieribus 1489 Sobre mulheres feiticeiras e adivinhas 345 344 Para as mulheres então os séculos XVI e XVII inaugu raram de fato uma era de repressão sexual A censura e a proibição chegaram a defnir efetivamente sua relação com a sexualidade Pensando em Michel Foucault devemos insistir também em que não foi a pastoral católica nem a confssão o que melhor demonstrou como o Poder no começo da Era Moderna tornou obrigatório que as pessoas falassem de sexo Foucault 1978 p 142 Em nenhum outro lugar a explosão discursiva sobre o sexo que Foucault detectou nessa época foi exibida com maior contundência do que nas câmaras de tortura da caça às bruxas Mas isso não teve nada a ver com a excitação mútua que Foucault imaginava fuindo entre a mulher e seu confessor Ultrapassando de longe qualquer padre de vilarejo os inquisidores forçaram as bruxas a revelar suas aventuras sexuais em cada detalhe sem se dissuadir pelo fato de que muitas vezes se tratava de mulheres idosas e de que suas façanhas sexuais datavam de muitas décadas atrás De uma maneira quase ritual forçavam as supostas bruxas a explicar de que maneira haviam sido possuídas pelo demônio na sua juventude o que sentiram durante a penetra ção que pensamentos impuros alimentaram Mas o cenário em que se desdobrou esse discurso peculiar sobre sexo foi a câmara de torturas onde as perguntas eram feitas entre aplicações de strappado176 a mulheres enlouquecidas pela dor De nenhum modo podemos presumir que a orgia de palavras às bruxas proporcionaram o modelo para o método da Nova Ciência tal como definida por Francis Bacon Boa parte do imaginário usado por Bacon para delinear seus objetivos e métodos científicos deriva dos julgamentos Na medida em que trata a natureza como uma mulher a ser torturada por meio de invenções mecânicas seu imaginário está fortemente sugestionado pelos interrogatórios durante os julgamentos por bruxaria e pelos aparatos mecânicos usados para torturar bruxas Em uma passagem pertinente Bacon afirmou que o método pelo qual os segredos da natureza poderiam ser descobertos consistia em investigar os segredos da bruxaria pela Inquisição 176 O strappado era uma forma de tortura pela qual as mãos da vítima eram amar radas em suas costas e então suspensas no ar por meio de uma corda ligada aos pulsos que quase sempre causava deslocamento dos braços Pesos podiam ser colocados junto ao corpo para intensificar o efeito e aumentar a dor NTP que as mulheres torturadas dessa maneira estavam forçadas a dizer incitava seu prazer ou reorientava por sublimação linguística seu desejo No caso da caça às bruxas que Foucault ignora de forma surpreendente em sua História da sexualidade Foucault 1978 vol I o discurso interminá vel sobre sexo não foi desencadeado como uma alternativa à repressão mas a serviço da repressão da censura da rejeição Certamente podemos dizer que a linguagem da caça às bru xas produziu a mulher como uma espécie diferente um ser sui generis mais carnal e pervertido por natureza Também podemos dizer que a produção da mulher pervertida foi o primeiro passo para a transformação da vis erotica feminina em vis lavorativa isto é um primeiro passo na transfor mação da sexualidade feminina em trabalho Mas devemos reconhecer o caráter destrutivo deste processo que também demonstra os limites de uma história da sexualidade gené rica como a proposta por Foucault que trata a sexualidade a partir da perspectiva de um sujeito indiferenciado de gênero neutro e como uma atividade que supostamente tem as mes mas consequências para homens e mulheres 347 346 A CAÇA ÀS BRUXAS E A RACIONALIZAÇÃO CAPITALISTA DA SEXUALIDADE A caça às bruxas não resultou em novas capacidades sexuais nem em prazeres sublimados para as mulheres Foi pelo con trário o primeiro passo de um longo caminho ao sexo limpo entre lençóis limpos e à transformação da atividade sexual feminina em um trabalho a serviço dos homens e da procriação Neste processo foi fundamental a proibição por serem antis sociais e demoníacas de todas as formas não produtivas não procriativas da sexualidade feminina A repulsa que a sexualidade não procriativa estava come çando a inspirar é bem evidenciada pelo mito da velha bruxa voando na sua vassoura que assim como os animais em que ela também montava cabras éguas cachorros era a projeção de um pênis estendido símbolo da luxúria desenfreada Este imaginário retrata uma nova disciplina sexual que negava à velha feia que já não era fértil o direito a uma vida sexual Na criação desse estereótipo os demonólogos se ajustavam à sensibilidade moral de sua época tal como revelam as palavras de dois contemporâneos ilustres da caça às bruxas Acaso há algo mais odioso que ver uma velha lasciva O que pode ser mais absurdo E entretanto é tão comum É pior nas mulheres que nos homens Ela enquanto velha megera e bruxa não pode ver nem ouvir não é mais que uma carcaça ela uiva e deve ter um garanhão Burton 1977 p 56 É ainda mais divertido ver mulheres velhas que quase já não se sustentam em pé pelo peso dos anos e que parecem cadáveres que ressuscitaram saírem por aí dizendo que a vida é boa ainda excitadas procurando por um parceiro sempre espalhando maquiagem no rosto e depilando os pelos pubianos ainda exibem seus peitos moles e murchos e tentam provocar com trêmulos cochichos apetites lânguidos enquanto bebem dançam em meio a garotas e escrevem cartas de amor Erasmo de Rotterdam 1941 p 42 Essa era uma imagem muito distante daquela do mundo de Chaucer em que a Mulher de Bath depois de queimar cinco maridos ainda podia declarar abertamente Bemvindo o sexto Não pretendo ser casta de forma alguma Quando um de meus maridos se vai outro cristão deve ser responsável por mim Chaucer 1977 p 277 No mundo de Chaucer a vitalida de sexual da mulher velha era uma afrmação da vida contra a morte na iconografa da caça às bruxas a velhice impede a pos sibilidade de uma vida sexual para as mulheres a contamina transforma a atividade sexual em uma ferramenta da morte em vez de um meio de regeneração Independentemente da idade das mulheres julgadas por bruxaria mas levando em consideração sua classe social há uma constante identifcação da sexualidade feminina com a bestialidade Esse fato era sugerido pela cópula com o deusca bra uma das representações do demônio pelo infame beijo sub cauda e pela acusação de que as bruxas guardavam uma série de animais diabinhos ou familiares que as ajudavam nos seus crimes e com os quais mantinham uma relação parti cularmente íntima Eram gatos cachorros lebres sapos dos quais a bruxa cuidava supostamente mamando neles por meio de tetas especiais Havia também outros animais que cumpriam um papel na vida das bruxas como instrumentos do demônio cabras e éguas noturnas177 levavamnas voando ao sabá sapos forneciam ve 177 No texto original em inglês se lê goats and nightmares Night significa noite e mare se traduz como égua Nightmare porém significa pesadelo 349 neno para suas poções A presença dos animais no mundo das bruxas era tamanha que devemos presumir que eles também estavam sendo julgados178 O casamento entre a bruxa e seus familiares era talvez uma referência às práticas bestiais que caracterizavam a vida sexual dos camponeses na Europa e que continuaram sendo um delito capital muito tempo depois do fnal da caça às bruxas Numa época em que se começava a adorar a razão e a dissociar o humano do corpóreo os animais também foram submetidos a uma drástica desvalorização reduzidos a sim ples bestas ao Outro defnitivo símbolos perenes do pior dos instintos humanos Nenhum crime portanto seria capaz de inspirar mais aversão do que a cópula com uma besta um verdadeiro ataque aos fundamentos ontológicos de uma natu reza humana cada vez mais identifcada com seus aspectos ima teriais No entanto o excesso de presenças animais na vida das bruxas sugere também que as mulheres se encontravam numa encruzilhada escorregadia entre os homens e os animais e que não somente a sexualidade feminina mas também a se xualidade como tal se assemelhava à animalidade Para fechar esta equação as bruxas foram frequentemente acusadas de mudar de forma e tomar a aparência animal sendo que o fami liar normalmente mais citado era o sapo que simbolizando a vagina sintetizava a sexualidade a bestialidade e o mal A caça às bruxas não só condenou a sexualidade feminina como fonte de todo mal mas também representou o principal veículo para levar a cabo uma ampla reestruturação da vida sexual que ajustada à nova disciplina capitalista do trabalho criminalizava qualquer atividade sexual que ameaçasse a pro criação e a transmissão da propriedade dentro da família ou que Não se trata só de um jogo de palavras Em inglês a fêmea do cavalo forma parte da etimologia da palavra pesadelo NTE 178 Sobre o ataque contra animais ver o Capítulo 2 Hans Burkmair Contenda entre uma bruxa e um inquisidor anterior a 1514 Muitas mulheres acusadas e processadas por bruxaria eram velhas e pobres e dependiam com frequência da caridade pública para sobreviver A bruxaria segundo dizem é a arma daqueles que não têm poder Mas as mulheres mais velhas eram também mais propensas que qualquer outra pessoa a resistir à destruição das relações comunais causada pela difusão das relações capitalistas Elas encarnavam o saber e a memória da comunidade A caça às bruxas inverteu a imagem da mulher velha tradicionalmente considerada sábia ela se tornou um símbolo de esterilidade e de hostilidade à vida 351 350 diminuísse o tempo e a energia disponíveis para o trabalho Os julgamentos por bruxaria fornecem uma lista informati va das formas de sexualidade que estavam proibidas uma vez que eram não produtivas a homossexualidade o sexo entre jovens e velhos179 o sexo entre pessoas de classes diferentes o 179 Nesse contexto é significativo que as bruxas tenham sido acusadas com fre quência por crianças Norman Cohn interpretou o fenômeno como uma revolta dos jovens contra os velhos e em particular contra a autoridade dos pais N Cohn 1975 Trevor Roper 2000 Mas é necessário considerar outros fatores Em primeiro lugar é verossímil que o clima de medo criado pela caça às bruxas ao longo dos anos fosse o motivo para que houvesse uma grande presença de crianças entre os acusadores o que começou a se materializar no século XVII Também é importante destacar que as acusadas de ser bruxas eram fundamentalmente mulheres proletárias enquanto as crianças que as acusavam eram frequentemente os filhos de seus patrões Assim é possível supor que as crianças foram manipuladas por seus pais para que formulassem acusações que eles mesmos eram reticentes em fazer como foi sem dúvida o que aconteceu no caso do julgamento das bruxas de Salem Também se deve considerar que nos séculos XVI e XVII havia uma crescente preocupação entre os endinheirados pela intimidade física entre seus filhos e seus serventes sobretudo suas babás que começava a aparecer como uma fonte de coito anal o coito por trás acreditavase que levava a relações estéreis a nudez e as danças Também estava proscrita a sexualidade pública e coletiva que prevaleceu durante a Idade Média como ocorria nos festivais de primavera de origem pagã que no século XVI ainda se celebravam em toda Europa Compare neste contexto a descrição que faz P Stubbes em Anatomy of Abuse 1583 Anatomia do abuso sobre a celebração do Dia do Trabalhador na Inglaterra com os típicos relatos do sabá que acusavam as bruxas de dançar nessas reuniões pulan do sem parar ao som dos pífaros e das fautas completamente entregues ao sexo e à folia coletiva Quando chega maio em cada paróquia cidade e vilarejo se reúnem tanto homens quanto mulheres e crianças velhos e jovens Eles correm para o mato e para os bosques colinas e montanhas onde passam toda a noite em passatempos prazerosos e pela manhã voltam trazendo arcos de bétulas e ramos de árvores A principal joia que levam para casa é o mastro enfeitado que carregam com grande veneração Logo começam a comer e celebrar a pular e dançar ao seu redor como faziam os pagãos ao adorar seus ídolos Partridge III É possível fazer uma comparação análoga entre as des crições do sabá e as descrições que fzeram as autoridades presbiterianas escocesas das peregrinações para poços e outros locais sagrados encorajadas pela Igreja Católica mas contra as quais os presbiterianos se opuseram por considerá las congregações do diabo e ocasiões para práticas lascivas Como tendência geral deste período qualquer reunião potencialmente transgressora encontros de camponeses indisciplina A familiaridade que havia existido entre os patrões e seus serventes durante a Idade Média desapareceu com a ascensão da burguesia que formalmente instituiu relações mais igualitárias entre os patrões e seus subordinados por exemplo ao nivelar os estilos de vestir mas que na realidade aumentou a distância física e psicológica entre eles No lar burguês o patrão já não se despia na frente dos seus serventes nem dormia na mesma habitação que eles Uma bruxa cavalga um bode pelo céu causando uma chuva de fogo Xilogravura de Francesco Maria Guazzo em Compendium Maleficarum 1610 Ver nota de rodapé 187 353 352 que gastou resmas de papel discutindo tais alucinações deba tendo por exemplo sobre o papel dos súcubos e dos íncubos ou sobre a questão de a bruxa poder ou não ser fecundada pelo dia bo uma pergunta que aparentemente ainda era de interesse para os intelectuais no século XVIII Couliano 1987 pp 14851 Hoje estas grotescas investigações são ocultadas das histórias da civilização ocidental ou simplesmente esquecidas embora tenham tramado uma rede que condenou centenas de milhares de mulheres à morte Dessa forma o papel da caça às bruxas no desenvolvimento acampamentos rebeldes festivais e bailes foi descrita pelas autoridades como um possível sabá180 Também é signifcativo que em algumas zonas do norte de Itália a expressão ir ao baile ou ir ao jogo al zogo era usada para se referir à ida ao sabá sobretudo quando se considera a campanha que a Igreja e o Estado estavam conduzindo contra tais passatempos Muraro 1977 p 109 e segs Hill 1964 p 183 segs Tal como aponta Ginzburg uma vez eliminados do sabá os mitos e adornos fantásticos descobrimos uma reunião de gente acompanhada por danças e promiscuidade sexual Ginzburg 1966 p 189 e devemos acrescentar de muita co mida e bebida certamente uma fantasia numa época em que a fome era uma experiência comum na Europa Quão revelador da natureza das relações de classe na época da caça às bruxas é o fato de que os sonhos com cordeiro assado e cerveja pu dessem ser reprovados como se fossem sinais de convivência diabólica por uma burguesia bem alimentada e acostumada a comer carne Entretanto seguindo um caminho muito trilha do Ginzburg qualifca as orgias associadas ao sabá como alu cinações de mulheres pobres que lhes serviam de recompensa por uma existência esquálida ibidem p 190 Desta maneira ele culpa as vítimas por seu fracasso e ignora também que não foram as mulheres acusadas de bruxaria mas a elite europeia 180 Para um exemplo de sabá verossímil em que elementos sexuais se combinam com temas que evocam a rebelião de classe ver a descrição de Julian Cornwall sobre o acampamento rebelde que os camponeses estabeleceram durante a revolta de Norfolk de 1549 O acampamento causou bastante escândalo entre a alta burguesia que aparente mente o considerou um verdadeiro sabá A conduta dos rebeldes foi deturpada em todos seus aspectos Se dizia que o acampamento havia se convertido na Meca de todos os libertinos do país Bandas de rebeldes buscavam suprimentos e dinheiro Foi dito que três mil bois e vinte mil ovelhas sem contar porcos aves de curral cervos cisnes e milhares de celamins de milho foram trazidos e consumidos em poucos dias Homens cuja dieta cotidiana era com frequência escassa e monótona se rebelaram diante da abundância de carne e se esbanjou com imprudência O sabor foi muito mais doce por provir de bestas que eram a raiz de tanto ressentimento Cornwall 1977 p 147 As bestas eram as muito valorizadas ovelhas produtoras de lã que estavam efetiva mente como disse Thomas Morus em sua Utopia comendo os humanos já que as terras aráveis e os campos comuns eram cercados e convertidos em pasto para sua criação Execução das bruxas de Chelmsford em 1589 Joan Prentice uma das vítimas é apresentada com seus familiares 355 354 do mundo burguês e especifcamente no desenvolvimento da disciplina capitalista da sexualidade foi apagado da memória Contudo é possível estabelecer uma relação entre esse pro cesso e alguns dos principais tabus da nossa época É o caso da homossexualidade que em muitas partes da Europa era plenamente aceita inclusive durante o Renascimento mas logo foi erradicada na época da caça às bruxas A perseguição aos homossexuais foi tão feroz que sua memória ainda está sedi mentada em nossa linguagem Fagot181 é um termo que remete ao fato de que os homossexuais eram às vezes usados para acender a fogueira onde as bruxas seriam queimadas enquanto 181 Na América do Norte a palavra faggot é uma das mais ofensivas para desqua lificar os homossexuais Na Inglaterra o termo ainda conserva seu significado original feixe de lenha para fogo NTE a palavra italiana fnocchio182 que signifca ervadoce se referia à prática de esparramar essas plantas aromáticas nas fogueiras para mascarar o fedor da carne ardente É especialmente signifcativa a relação que a caça às bruxas estabeleceu entre a prostituta e a bruxa refetindo o processo de desvalorização sofrido pela prostituição durante a reorganização capitalista do trabalho sexual Como diz o ditado prostituta quando jovem bruxa quando velha já que ambas usavam o sexo somente para enganar e corromper os homens fngindo um amor que era somente mercenário Stiefelmeir 1977 p 48 e segs E ambas se vendiam para obter dinheiro e um poder ilícito a bruxa que vendia sua alma para o diabo era a imagem ampliada da prostituta que vendia seu corpo aos homens Além do mais tanto a velha bruxa quanto a prostituta eram símbolos da esterilidade e a personifcação da sexualidade não procriativa Assim enquanto na Idade Média a prostituta e a bruxa foram consideradas fguras positivas que realizavam um serviço social à comunidade com a caça às bruxas adquiriram as conotações mais negativas sendo rejeitadas como identidades femininas possíveis e relacionadas fsicamente com a morte e socialmente com a criminalização A prostituta morreu como sujeito legal so mente depois de ter morrido mil vezes na fogueira como bruxa Ou melhor dizendo à prostituta podia ser permitido sobreviver ela inclusive se tornaria útil embora de maneira clandestina desde que a bruxa pudesse ser assassinada a bruxa era o sujeito social mais perigoso uma vez que na visão dos inquisidores era menos controlável era ela que podia dar dor ou prazer curar ou machucar misturar os elementos e acorrentar a vontade dos homens podia até mesmo causar dano com seu olhar um maloc chio mauolhado que supostamente podia matar Era a natureza sexual dos seus crimes e o status de classe 182 Finocchio é uma gíria italiana de significado semelhante à expressão em inglês faggot NTP O banquete é um tema importante em muitas representações do sabá fantasia de uma época em que a fome generalizada era uma experiência comum na Europa Detalhe da estampa de Jan Ziarnko para Tableau de linconstance 1612 Quadro da inconstância de Pierre De Lancre 357 356 baixa que distinguiam a bruxa do mago do Renascimento que fcou na maior parte dos casos imune à perseguição A magia cerimonial e a bruxaria compartilhavam muitos elementos Os temas derivados da tradição mágica ilustrada foram introduzi dos pelos demonólogos na defnição de bruxaria Entre eles se encontrava a crença de origem neoplatônica de que Eros seria uma força cósmica unindo o universo por meio de relações de simpatia e atração permitindo ao mago manipular e imitar a natureza nos seus experimentos Um poder similar foi atribuído à bruxa que segundo se dizia podia levantar tormentas ao mimeticamente agitar uma poça ou exercer uma atração similar à ligação dos metais na tradição alquimista Yates 1964 p 145 e segs Couliano 1987 A ideologia da bruxaria também refetiu o dogma bíblico comum à magia e à alquimia que estipula uma conexão entre sexualidade e conhecimento A tese de que as bruxas adquiriram seus poderes copulando com o diabo ecoava a crença alquimista de que as mulheres se apropriaram dos segredos da química copulando com demônios rebeldes Seligman 1948 p 76 A magia cerimonial entretan to não foi perseguida embora a alquimia fosse cada vez mais malvista pois parecia uma busca inútil e como tal uma perda de tempo e de recursos Os magos formavam uma elite que com frequência prestava serviços a príncipes e a outras pessoas que ocupavam altos postos Couliano 1987 p 156 e segs e os demonólogos os distinguiam cuidadosamente das bruxas ao incluir a magia cerimonial em particular a astrologia e a astro nomia no âmbito das ciências183 183 Thorndike 19231958 p 69 Holmes 1974 pp 856 e Monter 1969 pp 578 Kurt Seligman escreve que a alquimia foi universalmente aceita desde meados do século XIV até o século XVI Mas com o surgimento do capitalismo a atitude dos monarcas mudou Nos países protestantes a alquimia se converteu em objeto de ridicularização O alquimista era retratado como um vendedor de tabaco que prometia converter os metais em ouro e fracassava na sua tentativa Seligman 1948 p 126 e segs Com frequência era representado trabalhando em seu estúdio rodeado de estranhos vasos e instrumen tos alheio a tudo que o rodeava enquanto do outro lado da rua estavam sua esposa e filhos batendo na porta da casa pobre O retrato satírico do alquimista feito por Ben Jonson reflete esta nova atitude A CAÇA ÀS BRUXAS E O NOVO MUNDO As fguras correspondentes à típica bruxa europeia não fo ram portanto os magos do Renascimento mas os nativos americanos colonizados e os africanos escravizados que nas plantations do Novo Mundo tiveram um destino similar ao das mulheres na Europa fornecendo ao capital a aparentemente inesgotável provisão de trabalho necessário para a acumulação Os destinos das mulheres na Europa e dos ameríndios e africanos nas colônias estavam tão conectados que suas in fuências foram recíprocas A caça às bruxas e as acusações de adoração ao demônio foram levadas à América para romper a resistência das populações locais justifcando assim a coloni zação e o tráfco de escravos ante os olhos do mundo Por sua vez de acordo com Luciano Parinetto a experiência americana persuadiu as autoridades europeias a acreditarem na existência de populações inteiras de bruxas o que as instigou a aplicar na Europa as mesmas técnicas de extermínio em massa desenvol vidas na América Parinetto 1998 No México entre 1536 e 1543 o bispo Zumárraga conduziu dezenove julgamentos que envolviam 75 hereges indígenas em sua maioria selecionados entre os líderes políticos e religiosos das comunidades do México central muitos dos quais tiveram suas vidas acabadas na fogueira O frade Diego de Landa conduziu julgamentos por idolatria em A astrologia também era praticada no século XVII Em sua Demonología 1597 James I afirmava que era legítima sobretudo quando se limitava ao estudo das estações e à previsão do tempo Uma descrição detalhada da vida de um astrólogo inglês no final do século XVI se encontra em Sex and Society in Shakespeares Age 1974 Sexo e socidade na era de Shakespeare de A L Rowse Aqui tomamos conhecimento de que na mesma época em que a caça às bruxas chegava ao seu apogeu um mago podia continuar reali zando seu trabalho embora com alguma dificuldade e correndo às vezes certos riscos 358 Yucatán durante a década de 1560 nos quais a tortura os açoites e os autos de fé fguravam de forma destacada Behar 1987 p 51 Caças às bruxas também eram conduzidas no Peru com a fnalidade de destruir o culto aos deuses locais considerados demônios pelos europeus Os espanhóis viam a cara do diabo por todas as partes nas comidas nos vícios primitivos dos índios nas suas línguas bárbaras De León 1985 vol I pp 334 Nas colônias as mulheres também eram as mais passíveis de acusações por bruxaria porque ao serem especialmente desprezadas pelos europeus como mulheres de mente fraca logo se tornaram as defensoras mais leais de suas comunidades Silverblatt 1980 pp 173 1769 O destino comum das bruxas europeias e dos sujeitos coloniais pode ser ainda melhor demonstrado pelo crescente intercâmbio ao longo do século XVII entre a ideologia da bruxaria e a ideologia racista que se desenvolveu sobre o solo da Conquista e do tráfco de escravos O diabo era representado como um homem negro e os negros eram tratados cada vez mais como diabos de tal modo que a adoração ao diabo e as in tervenções diabólicas tornaramse o aspecto mais comumente descrito sobre as sociedades não europeias que os trafcantes de escravos encontravam Barker 1978 p 91 Dos lapões aos samoiedos dos hotentotes aos indonésios não havia socie dade escreve Anthony Barker que não fora etiquetada por algum inglês como ativamente infuenciada pelo diabo 1978 p 91 Assim como na Europa a marca característica do Imagem do século XVI em que os indígenas do Caribe são representados como demônios em A Compendium Of Authentic And Entertaining Voyages Digested In A Chronological Series 1766 Um compêndio de viagens autênticas e divertidas digerido em uma série cronológica compilado por Tobias George Smollett 361 360 diabólico era um desejo e uma potência sexual anormais184 O diabo com frequência era retratado com dois pênis enquanto as histórias sobre práticas sexuais brutais e a afeição desmedida pela música e pela dança tornaramse os ingredientes básicos dos informes dos missionários e dos viajantes ao Novo Mundo Segundo o historiador Brian Easlea esse exagero sistemáti co da potência sexual dos negros denuncia a ansiedade que os homens brancos ricos sentiam sobre sua própria sexualidade provavelmente os homens brancos de classe alta temiam a con corrência das pessoas que eles escravizavam que viam como seres mais próximos à natureza pois se sentiam incompetentes sexualmente devido às doses excessivas de autocontrole e raciocínio prudente Easlea 1980 pp 24950 No entanto a sexualização exagerada das mulheres e dos homens negros as bruxas e os demônios também deve ter como origem a posi ção que ocupavam na divisão internacional do trabalho surgida com a colonização da América com o tráfco de escravos e com a caça às bruxas A defnição da negritude e da feminilidade como marcas da bestialidade e da irracionalidade correspondia à exclusão das mulheres na Europa assim como das mulheres e dos homens nas colônias do contrato social implícito no salário com a consequente naturalização de sua exploração 184 Em referência às Antilhas Anthony Barker 1978 pp 1213 escreveu Nenhum aspecto desfavorável da imagem do negro construída pelos proprietários de escravos tinha raízes mais amplas ou profundas que a acusação de apetite sexual insa ciável Os missionários informavam que os negros se negavam a ser monogâmicos eram excessivamente libidinosos e contavam histórias de negros que tinham relações sexuais com macacos A BRUXA A CURANDEIRA E O NASCIMENTO DA CIÊNCIA MODERNA Havia outros motivos por trás da perseguição às bruxas Com frequência as acusações de bruxaria foram usadas para punir o ataque à propriedade principalmente os roubos que seguindo a crescente privatização da terra e da agricultura aumentaram de forma dramática nos séculos XVI e XVII Como vimos as mulhe res pobres da Inglaterra que mendigavam ou roubavam leite ou vinho das casas de seus vizinhos ou que viviam da assistência pública tendiam a se tornar suspeitas de praticar artes malignas Alan Macfarlane e Keith Thomas mostraram que nesse período houve uma marcante deterioração da condição de vida das mulheres idosas que se seguiu à perda das terras comunais e à reorganização da vida familiar que passou a priorizar a criação dos flhos às custas do cuidado que antes se dedicava aos idosos Macfarlane 1970 p 205185 Agora estes idosos eram forçados a depender de seus amigos e vizinhos para sobreviver ou então se somavam às Listas de Necessitados no mesmo momento em que a nova ética protestante começava a apontar a entrega de esmolas como um desperdício e como meio de fomentar a pre guiça Ao mesmo tempo as instituições que no passado haviam atendido os pobres estavam entrando em colapso Algumas mulheres pobres usaram provavelmente o medo que inspirava sua reputação como bruxas para obter aquilo que necessitavam Contudo não se condenou somente a bruxa má que supos tamente maldizia e deixava o gado coxo arruinava cultivos ou 185 Na Idade Média quando um filho ou uma filha se responsabilizava pela propriedade familiar ele ou ela assumia automaticamente o cuidado de seus envelhe cidos pais enquanto no século XVI os pais começaram a ser abandonados e se deu maior prioridade aos filhos Macfarlane 1970 p 205 363 362 causava a morte dos flhos de seus empregadores A bruxa boa que havia feito da feitiçaria sua carreira também foi castigada muitas vezes com maior severidade Historicamente a bruxa era a parteira a médica a adivinha ou a feiticeira do vilarejo cuja área privilegiada de competência como escreveu Burckhardt sobre as bruxas italianas era a intriga amorosa Burckhardt 1927 pp 31920 Uma encarnação urbana deste tipo de bruxa foi a Celestina da peça teatral de Fernando de Rojas La Celestina 1499 Dela se dizia que Tinha seis ofícios a saber lavadeira perfumista mestra na fabricação de cosméticos e na reparação de hímens danifcados alcoviteira e um pouco bruxa Seu primeiro ofício era uma fachada para encobrir os demais e com esta desculpa muitas garotas que trabalhavam como criadas iam à casa dela para fazer o serviço de lavagem de roupa Não é possível imaginar o movimento que geravam Era médica de bebês pegava linho de uma casa e o levava a outra tudo isso como desculpa para entrar em Gravura de Hans Weiditz O herbário da bruxa 1532 Como o globo estrelado sugere a virtude das ervas era reforçada pelo alinhamento astral correto todos os lugares Alguém lhe dizia Mãe venha ou Lá vem a senhora Todos a conheciam E apesar de suas muitas tarefas ela ainda encontrava tempo para ir à missa ou às vésperas Rojas 1959 pp 178 Entretanto uma curandeira mais típica foi Gostanza uma mulher julgada por bruxaria em San Miniato uma pequena ci dade da Toscana em 1594 Depois de fcar viúva Gostanza havia se estabelecido como curandeira profssional logo tornandose bem conhecida na região pelos seus remédios terapêuticos e exorcismos Morava com sua sobrinha e duas mulheres mais velhas também viúvas Uma vizinha que também era viúva fornecialhe especiarias para os medicamentos Recebia os clien tes em casa mas também viajava quando fosse necessário a fm de marcar um animal visitar um enfermo ajudar as pessoas a se vingar ou se liberar dos efeitos de encantamentos médicos Cardini 1989 pp 518 Suas ferramentas eram óleos naturais e pós bem como artefatos aptos a curar e proteger por simpatia ou contato Não lhe interessava inspirar medo à comunidade já que a prática dessas artes era sua forma de ganhar a vida Ela era de fato muito popular todos a procuravam para serem curados para que lhes lesse o futuro para encontrar objetos perdidos ou para comprar poções de amor Mesmo assim ela não escapou da perseguição Depois do Concílio de Trento 15451563 a Contrarreforma adotou uma postura dura contra as curandeiras populares temendo seus poderes e suas profundas raízes na cultura de suas comunidades Na Inglaterra o destino das bruxas boas também foi selado quando em 1604 um estatuto aprovado por Jaime I estabeleceu a pena de morte para qualquer pessoa que usasse os espíritos e a magia ainda que não fossem causadores de danos visíveis186 186 O estatuto aprovado por Jaime I em 1604 impôs a pena de morte para quem usasse os espíritos ou a magia sem importar se provocaram algum dano Este estatuto se converteu depois na base sobre a qual se realizou a perseguição às bruxas nas colônias americanas 365 364 Com a perseguição à curandeira popular as mulheres foram expropriadas de um patrimônio de saber empírico relativo a ervas e remédios curativos que haviam acumulado e transmitido de geração a geração uma perda que abriu o caminho para uma nova forma de cercamento o surgimento da medicina profssional que apesar de suas pretensões curativas erigiu uma muralha de conhecimento científco indisputável inacessível e estranho para as classes baixas Ehrenreich e English 1973 Starhawk 1997 A substituição da bruxa e da curandeira popular pelo doutor levanta a questão sobre o papel que o surgimento da ciência moderna e da visão científca do mundo tiveram na as censão e queda da caça às bruxas Em relação a esta pergunta há dois pontos de vista opostos Por um lado há a teoria originada no Iluminismo que reconhece o advento da racionalidade científca como fator determinante para o fm da perseguição Tal como formulada por Joseph Klaits 1895 p 62 esta teoria sustenta que a nova ciência transformou a vida intelectual gerando um novo ceti cismo ao revelar o universo como um mecanismo autorregu lado no qual a intervenção divina direta e constante era des necessária Contudo Klaits admite que os mesmos juízes que na década de 1650 estavam limitando os julgamentos contra as bruxas nunca questionaram a veracidade da bruxaria Nem na França nem em nenhuma outra parte os juízes do século XVII que acabaram com a caça às bruxas declararam que elas não existiam Como Newton e outros cientistas da época os juízes continuaram aceitando a magia sobrenatural como teoricamente plausível ibidem p 163 Na verdade não há provas de que a nova ciência teve um efeito libertador A visão mecanicista da natureza que surgiu com o início da ciência moderna desencantou o mundo Mas não há provas de que aqueles que a promoveram tenham em algum momento falado em defesa das mulheres acusadas como bruxas Descartes se declarou agnóstico acerca desse assunto outros flósofos mecanicistas como Joseph Glanvill e Thomas Hobbes apoiaram fortemente a caça às bruxas O que acabou com a caça às bruxas conforme demonstrou Brian Easlea de forma convincente foi a aniquilação do mundo das bruxas e a imposição da disciplina social requerida pelo sistema capitalista triunfante Em outras palavras a caça às bruxas chegou ao fm no fnal do século XVII porque a classe dominante nesse período desfrutava de uma crescente sen sação de segurança com relação ao seu poder e não porque uma visão mais ilustrada do mundo tivesse surgido O desejo de se apropriar da função materna do alquimista é bem refletido neste desenho de Hermes Trimegistus o fundador mítico da alquimia portando um feto em seu ventre sugerindo o papel inseminador do macho 367 366 A pergunta que permanece é se o surgimento do método científco moderno pode ser considerado como fator para o desenvolvimento da caça às bruxas Esta visão foi sustentada vigorosamente por Carolyn Merchant em The Death of Nature 1980 A morte da natureza Merchant considera que a raiz da perseguição às bruxas encontrase na mudança de para digma provocada pela revolução científca e em particular no surgimento da flosofa mecanicista cartesiana Segundo a autora esta mudança substituiu uma visão orgânica do mundo que via na natureza nas mulheres e na terra as mães protetoras por outra que as degradava à categoria de recursos permanentes retirando qualquer restrição ética à sua exploração Merchant 1980 p 127 e segs A mulheren quantobruxa sustenta Merchant foi perseguida como a en carnação do lado selvagem da natureza de tudo aquilo que na natureza parecia desordenado incontrolável e portanto antagônico ao projeto assumido pela nova ciência Merchant defende que uma das provas da conexão entre a perseguição às bruxas e o surgimento da ciência moderna encontrase no trabalho de Francis Bacon considerado um dos pais do novo método científco Seu conceito de investigação científca da natureza foi moldado a partir do interrogatório das bruxas sob tortura do qual surgiu uma representação da natureza como uma mulher a ser conquistada revelada e estuprada Merchant 1980 pp 16872 As considerações de Merchant têm o grande mérito de desafar a suposição de que o racionalismo científco foi um veículo de progresso centrando nossa atenção sobre a profun da alienação que a ciência moderna instituiu entre os seres humanos e a natureza Também associa a caça às bruxas à destruição do meio ambiente e relaciona a exploração capita lista do mundo natural à exploração das mulheres Merchant ignora porém o fato de que a visão orgânica do mundo adotada pelas elites da Europa précientífca dei xou espaço para a escravidão e para o extermínio dos hereges Também sabemos que a aspiração ao domínio tecnológico da natureza e a apropriação do poder criativo das mulheres acomodaram diferentes estruturas cosmológicas Os magos do Renascimento estavam igualmente interessados nesses obje tivos187 e o descobrimento da gravitação universal pela física newtoniana não se deveu a uma visão mecânica da natureza mas sim a uma visão mágica Além disso quando a moda do mecanicismo flosófco chegou ao fm no começo do século XVIII novas tendências flosófcas surgiram reforçando o valor da simpatia da sensibilidade e da paixão que to davia foram facilmente integradas ao projeto da nova ciência Barnes e Shapin 1979 Também devemos considerar que o arcabouço intelectual que serviu de base à perseguição às bruxas não foi tirado dire tamente das páginas do racionalismo flosófco Pelo contrário foi um fenômeno transitório uma espécie de bricolage ideoló gico que se desenvolveu sob a pressão da tarefa que precisava cumprir Dentro dessa tendência combinaramse elementos tomados do mundo fantástico do cristianismo medieval argu mentos racionalistas e os modernos procedimentos burocráti cos das cortes europeias da mesma maneira que na constru ção do nazismo o culto à ciência e à tecnologia foi combinado com um cenário que pretendia restaurar um mundo mítico e arcaico de laços de sangue e lealdades prémonetárias Esse ponto é sugerido por Parinetto que considera a caça 187 Em Outrunning Atlanta Feminine Destiny in Alchemic Transmutations Ultrapassando Atlanta destino feminino em transmutações alquímicas Allen e Hubbs escrevem que o simbolismo recorrente nos trabalhos de alquimia sugere uma obsessão por reverter ou talvez inclusive deter a hegemonia feminina sobre o processo de criação biológica Este domínio desejado é também representado em imagens como a de Zeus parindo a Atenas pela sua cabeça ou Adão parindo a Eva em seu peito O alquimista que exemplifica a luta pelo controle do mundo natural busca nada menos que a magia da maternidade Desta maneira o grande alquimista Paracelso responde afirmativamen te à pergunta sobre se é possível para a arte e a natureza que um homem nasça fora do corpo de uma mulher e fora de uma mãe natural Allen e Hubbs 1980 p 213 368 às bruxas um exemplo clássico infelizmente não o último na história do capitalismo de como retroceder pode ser considerado uma forma de avançar do ponto de vista do estabelecimento das condições para a acumulação de capital Ao conjurar o demônio os inquisidores descartaram o ani mismo e o panteísmo popular redefnindo de uma maneira mais centralizada a localização e a distribuição do poder no cosmos e na sociedade Assim paradoxalmente segundo Parinetto na caça às bruxas o diabo funcionava como o verdadeiro servo de Deus sendo o fator que mais contribuiu na abertura do caminho à nova ciência Como um ofcial de justiça ou como o agente secreto de Deus o diabo trouxe a ordem ao mundo esvaziandoo de infuências confitivas e reafrmando Deus como o soberano exclusivo Consolidou tão bem o comando de Deus sobre os assuntos humanos que em questão de um século com a chegada da física newtoniana Deus pôde se retirar do mundo feliz em resguardar de longe a precisão dos seus mecanismos Nem o racionalismo nem o mecanicismo foram portanto a causa imediata das perseguições embora tenham contri buído para criar um mundo comprometido com a exploração da natureza Mais importante o principal fator de incentivo à caça às bruxas foi o fato de que as elites europeias precisavam erradicar todo um modo de existência que no fnal da Baixa Idade Média ameaçava seu poder político e econômico Quando esta tarefa foi cumprida por completo no momento em que a disciplina social foi restaurada e a classe dominante consolidou sua hegemonia os julgamentos de bruxas cessaram A crença na bruxaria pôde inclusive se tornar algo ridículo desprezada como superstição e apagada rapidamente da memória As mulheres de Paris Xilografia reproduzida em The Graphic 29 de abril de 1871 371 Esse processo começou por toda Europa no fnal do século XVII embora os julgamentos de bruxas na Escócia continuassem durante mais três décadas Um fator que con tribuiu para o fm da perseguição foi a perda de controle da classe dominante sobre a caça às bruxas uma vez que alguns de seus membros acabaram sendo alvo de denúncias e se transformando em vítimas de seu próprio aparato repressivo Midelfort escreve que na Alemanha Quando as chamas começaram a arder cada vez mais próximas dos nomes de gente que fazia parte do alto escalão e tinha muito poder os juízes perderam a confança nas confssões e o pânico cessou Midelfort 1972 p 206 Também na França a última onda de julgamentos trouxe uma desordem social generalizada os criados acusavam seus senhores os filhos acusavam seus pais os maridos acusavam suas mulheres Nestas circunstâncias o rei decidiu intervir e Colbert estendeu a jurisdição de Paris a toda a França para colocar fim à perseguição Foi promulgado um novo código legal no qual a bruxaria não foi sequer mencionada Mandrou 1968 p 443 Logo que o Estado assumiu o controle da caça às bruxas um por um os vários governos foram tomando a iniciativa de acabar com ela A partir da metade do século XVII se fzeram esforços para frear o fervor judicial e inquisitorial Uma conse quência imediata foi que no século XVIII os crimes comuns multiplicaramse repentinamente ibidem p 437 Entre 1686 e 1712 na Inglaterra à medida que se atenuava a caça às bruxas as prisões por danos à propriedade em particular os incêndios Pétroleuses litografia colorida de Bertall reproduzida em Les Communeux n 20 372 de celeiros casas e palheiros e por assaltos cresceram enor memente Kittredge 1929 p 333 assim como novos crimes entraram nos códigos legais A blasfêmia começou a ser tratada como um delito punível na França decretouse que depois da sexta condenação os blasfemadores teriam sua língua cor tada da mesma maneira que o sacrilégio profanação de relí quias e roubo de hóstias Também foram estabelecidos novos limites para a venda de venenos seu uso privado foi proibido sua venda foi condicionada à aquisição de uma licença e esten deuse a pena de morte aos envenenadores Tudo isso sugere que a nova ordem social já estava sufcientemente consolidada para que os crimes fossem identifcados e castigados como tais sem a possibilidade de recorrer ao sobrenatural Nas palavras de um parlamentar francês Já não se condenam as bruxas e as feiticeiras em primeiro lugar porque é difícil determinar a prova de bruxaria e em segundo lugar porque tais condenações foram usadas para provocar dano Parouse então de culpálas pelo incerto para acusálas do que se tem certeza Mandrou 1968 p 361 Uma vez destruído o potencial subversivo da bruxaria foi possível até mesmo permitir que tal prática seguisse adiante Depois de que a caça às bruxas chegou ao fm muitas mulheres continuaram sustentandose por meio da adivinhação da ven da de encantamentos e da prática de outras formas de magia Como escreveu Pierre Bayle em 1704 em muitas províncias da França em Saboia no cantão de Berna e em muitas outras partes da Europa não existe vilarejo ou povoado não importa quão pequeno seja onde não haja uma pessoa consi derada bruxa Erhard 1963 p 30 Na França do século XVIII também se desenvolveu um interesse pela bruxaria entre a nobreza urbana que sendo excluída da produção econômica e percebendo que seus privilégios eram atacados tratou de satisfazer seu desejo de poder recorrendo às artes da magia ibidem pp 312 Mas agora as autoridades já não estavam interessadas em processar essas práticas sendo inclinadas ao contrário a ver a bruxaria como um produto da ignorância ou como uma desordem da imaginação Mandrou 1968 p 519 No século XVIII a intelligentsia europeia começou inclusive a se sentir orgulhosa da ilustração que havia adquirido e segura de si mesma continuou reescrevendo a história da caça às bruxas rejeitandoa como um produto da superstição medieval O espectro das bruxas seguiu de qualquer forma as sombrando a imaginação da classe dominante Em 1871 a burguesia parisiense o retomou instintivamente para demonizar as mulheres communards acusandoas de querer incendiar Paris Não pode haver muita dúvida de fato de que os modelos das histórias e imagens mórbidas de que se valeu a imprensa burguesa para criar o mito das pétroleuses188 foram retirados do repertório da caça às bruxas Como descreve Edith Thomas os inimigos da Comuna alegavam que milhares de proletárias vagavam como bruxas pela cidade dia e noite com panelas cheias de querosene e etiquetas com a inscrição BPB bon pour brûler bom para queimar supostamente seguindo as instruções recebidas em uma grande conspiração para reduzir a cidade de Paris a cinzas frente às tropas que avançavam de Versalhes Thomas escreve que não se encon traram pétroleuses em lugar nenhum Nas áreas ocupadas pelo exército de Versalhes bastava que uma mulher fosse pobre e malvestida e que levasse um cesto uma caixa ou uma garrafa de leite para que se tornasse suspeita Thomas 1966 pp 1667 Desse modo centenas de mulheres foram executadas 188 Communards era a denominação dos membros e apoiadores da Comuna de Paris em 1871 Pétroleuses era o termo utilizado para qualificar as mulheres acusadas de terem causado incêndios durante a queda da Comuna tendo como alvo principal destas acusações as mulheres que haviam participado dos combates armados NTP 374 sumariamente ao mesmo tempo que eram difamadas nos periódicos Como a bruxa a pétroleuse era representada como uma mulher mais velha descabelada de aspecto bárbaro e selvagem Em suas mãos levava o recipiente com o líquido que usava para praticar seus crimes189 189 Sobre a imagem da pétroleuse ver Albert Boime 1995 pp 10911 196 99 Art and the French Commune Arte e a Comuna Francesa e Rupert Christiansen 1994 pp 3523 Paris Babylon The Story of the Paris Commune Paris Babilônia a história da Comuna de Paris O desembarque de Américo Vespúcio na costa da América do Sul em 1497 À sua frente deitada numa rede sedutora está América Atrás dela alguns canibais assam restos humanos Desenho de Jan van der Straet gravado por Théodore Galle 1589 INTRODUÇÃO 380 O NASCIMENTO DOS CANIBAIS 383 EXPLORAÇÃO RESISTÊNCIA E DEMONIZAÇÃO 390 MULHERES E BRUXAS NA AMÉRICA 400 AS BRUXAS EUROPEIAS E OS ÍNDIOS 407 A CAÇA ÀS BRUXAS E A GLOBALIZAÇÃO 413 CAPÍTULO 5 COLONIZAÇÃO E CRISTIANIZAÇÃO CALIBÃ E AS BRUXAS NO NOVO MUNDO E ENTÃO ELES DIZEM QUE VIEMOS A ESSA TERRA PARA DESTRUIR O MUNDO DIZEM QUE OS VENTOS DEVASTAM AS CASAS E CORTAM AS ÁRVORES E O FOGO AS QUEIMA MAS QUE NÓS DEVORAMOS TUDO CONSUMIMOS A TERRA MUDAMOS O CURSO DOS RIOS NUNCA ESTAMOS TRANQUILOS NUNCA DESCANSAMOS SEMPRE CORREMOS DE LÁ PRA CÁ BUSCANDO OURO OU PRATA NUNCA SATISFEITOS E ENTÃO ESPECULAMOS COM ELES FAZEMOS GUERRA MATAMOS UNS AOS OUTROS ROUBAMOS INSULTAMOS NUNCA FALAMOS A VERDADE E OS PRIVAMOS DE SEUS MEIOS DE VIDA E FINALMENTE MALDIZEM O MAR QUE PÔS SOBRE A TERRA CRIANÇAS TÃO MALVADAS E CRUÉIS GIROLAMO BENZONI HISTÓRIA DO MUNDO NOVO 1565 VENCIDAS PELA TORTURA E PELA DOR AS MULHERES FORAM OBRIGADAS A CONFESSAR QUE ADORAVAM OS HUACAS ELAS SE LAMENTAVAM AGORA NESTA VIDA NÓS MULHERES SOMOS CRISTÃS TALVEZ DEPOIS O SACERDOTE SEJA CULPADO SE NÓS MULHERES ADORARMOS AS MONTANHAS SE FUGIRMOS PARA AS COLINAS E PARA AS MONTANHAS E A PUNA JÁ QUE AQUI NÃO HÁ JUSTIÇA PARA NÓS FELIPE GUAMÁN POMA DE AYALA NOVA CRÔNICA E BOM GOVERNO 1615 Huacas são divindades andinas que fazem parte da cultura inca e de culturas anteriores Puna é um bioma de pastagens e matagais de montanha encontrado na parte central da Cordilheira dos Andes NTP 381 380 INTRODUÇÃO A história do corpo e da caça às bruxas que apresentei é ba seada em uma hipótese que pode ser resumida na referência a Calibã e a bruxa personagens de A tempestade símbolos da resistência dos índios americanos à colonização190 A hipó tese é precisamente a continuidade entre a dominação das populações do Novo Mundo e a das populações da Europa em especial as mulheres durante a transição ao capitalismo Em ambos os casos populações inteiras foram expulsas de suas terras pela força houve um empobrecimento em grande escala e campanhas de cristianização que destruíram a autonomia das pessoas e suas relações comunais Também houve uma infuência recíproca entre os dois processos por meio da qual certas formas repressivas que haviam sido desenvolvidas no Velho Mundo foram transportadas para o Novo e depois reim portadas para a Europa As diferenças não devem ser subestimadas No século XVIII a afuência de ouro prata e outros recursos da América para a Europa deu lugar a uma nova divisão internacional do trabalho 190 Na verdade Sycorax a bruxa não entrou no imaginário revolucionário latino americano do mesmo modo que Calibã Ela ainda permanece invisível O mesmo ocorreu durante muito tempo com a luta das mulheres contra a colonização Em relação a Calibã o que ele defendeu ficou expresso em um ensaio de grande influência do escritor cubano Roberto Fernández Retamar 1989 p 521 Nosso símbolo não é então Ariel mas Calibã Isso é algo que nós os mestiços que vivem nas mesmas ilhas em que viveu Calibã vemos com particular nitidez Próspero invadiu as ilhas matou nossos ancestrais escravizou Calibã e ensinoulhe seu idioma para se comunicar com ele O que mais pode fazer Calibã senão utilizar este mesmo idioma atualmente ele não possui outro para maldizêlo Desde Tupac Amaru ToussaintLouverture Simón Bolívar José Martí Fidel Castro Che Guevara Frantz Fanon qual é a nossa história qual é a nossa cultura senão a história a cultura de Calibã 1989 pp 14 334 Em relação a essa questão ver também Margaret Paul Joseph quem em Caliban in Exile 1992 p 2 Calibã no exílio escreve Dessa forma Próspero e Calibã nos proporcionam uma poderosa metáfora do co lonialismo Um ramo dessa interpretação aborda a condição abstrata de Calibã vítima da história frustrado ao entenderse completamente carente de poder Na América Latina o nome de Calibã tem sido adotado de um modo mais positivo tendo em vista que Calibã parece representar as massas que lutam para se levantar contra a opressão da elite que fragmentou o proletariado global por meio de segmenta ções classistas e de sistemas disciplinares que marcaram o co meço de trajetórias frequentemente confitivas dentro da classe trabalhadora As semelhanças no tratamento que receberam tanto as populações europeias como as da América são sufcien tes para demonstrar a existência de uma mesma lógica que rege o desenvolvimento do capitalismo e conforma o caráter estru tural das atrocidades perpetradas neste processo A extensão da caça às bruxas às colônias americanas é um exemplo notável No passado a perseguição de mulheres e homens sob a alegação de bruxaria era um fenômeno que os historiadores normalmente consideravam limitado à Europa A única exce ção a essa regra eram os julgamentos das bruxas de Salem que ainda constituem o principal tema de estudo dos acadêmicos que pesquisam a caça às bruxas no Novo Mundo Hoje em dia no entanto admitese que a acusação de adoração ao diabo também teve um papelchave na colonização dos indígenas americanos Sobre o tema devese mencionar particularmen te dois textos que constituem a base da minha argumentação neste capítulo O primeiro é Moon Sun and Witches 1987 A lua o sol e as bruxas de Irene Silverblatt um estudo sobre a caça às bruxas e a redefnição das relações de gênero na socie dade inca e no Peru colonial Segundo meus conhecimentos esse é o primeiro estudo em inglês que reconstrói a história das mulheres andinas perseguidas por bruxaria O outro texto é Streghe e Potere 1998 Bruxas e poder de Luciano Parinetto uma série de ensaios que documenta o impacto que a caça às bruxas na América exerceu sobre os julgamentos de bruxas na Europa Tratase todavia de um estudo prejudica do pela insistênica do autor em assinalar que havia neutralida de de gênero na perseguição às bruxas Ambos trabalhos demonstram que também no Novo Mundo a caça às bruxas constituiuse em uma estratégia 383 382 deliberada utilizada pelas autoridades com o objetivo de propa gar terror destruir resistências coletivas silenciar comunida des inteiras e instigar o confito entre seus membros Também foi uma estratégia de cercamento que segundo o contexto podia consistir em cercamentos de terra de corpos ou de relações sociais Assim como na Europa a caça às bruxas na América foi sobretudo um meio de desumanização e como tal uma forma paradigmática de repressão que servia para justifcar a escravidão e o genocídio A caça às bruxas porém não destruiu a resistência dos povos colonizados O vínculo dos índios americanos com a terra com as religiões locais e com a natureza sobreviveu à perseguição devido principalmente à luta das mulheres pro porcionando uma fonte de resistência anticolonial e anticapi talista durante mais de quinhentos anos Isso é extremamente importante para nós no momento em que assistimos a um novo assalto aos recursos e às formas de existência das populações indígenas Devemos repensar a maneira como os conquistado res se esforçaram para dominar aqueles a quem colonizavam e repensar também o que permitiu aos povos originários sub verter este plano e contra a destruição de seu universo social e físico criar uma nova realidade histórica O NASCIMENTO DOS CANIBAIS Quando Cristóvão Colombo navegou em direção às Índias a caça às bruxas ainda não constituía um fenômeno de massa na Europa No entanto usar as acusações de adoração ao demônio como arma para atacar inimigos políticos e vilipendiar popu lações inteiras muçulmanos e judeus por exemplo já era uma prática comum entre as elites europeias Mais do que isso como escreve Seymour Philips uma sociedade persecutória foi se desenvolvendo na Europa medieval alimentada pelo mi litarismo e pela intolerância cristã que olhava o Outro princi palmente como objeto de agressão Philips 1994 Dessa forma não surpreende que canibal infel bárbaro raças mons truosas e adorador do diabo fossem modelos etnográfcos com os quais os europeus adentraram a nova era de expansão ibidem p 62 proporcionando o fltro com que missionários e conquistadores interpretaram as culturas as religiões e os cos tumes sexuais da população que encontraram191 Outras marcas culturais também contribuíram para a invenção dos índios O nudismo e a sodomia eram muito mais estigmatizantes e provavelmente mais úteis para projetar as necessidades de mão de obra dos espanhóis que qualifcavam os ameríndios como seres que viviam em estado animal prontos para serem transformados em burros de carga apesar de alguns informes enfatizarem como um sinal de bestialidade suas propensões a compartilhar e a entregar tudo o que possuem em troca de objetos de pouco valor Hulme 1994 p 198 191 Em seu relato sobre a Ilha de São Domingos em Historia General de las Indias 1551 História geral das Índias Francisco López de Gómara pôde declarar com total certeza que o deus mais importante que existe nessa ilha é o diabo e que o diabo vivia entre as mulheres De Gomara p 49 De forma parecida o livro V da Historia 1590 de Acosta no qual se discute a religião e os costumes dos habitantes do México e do Peru é dedicado às diversas formas de adoração ao diabo praticadas por essas populações que incluíam sacrifícios humanos 385 384 Ao defnir as populações indígenas como canibais adorado res do diabo e sodomitas os espanhóis respaldaram a fcção de que a Conquista não foi uma busca desenfreada por ouro e pra ta mas uma missão de conversão uma alegação que em 1508 ajudou a Coroa espanhola a obter a benção papal e a autoridade absoluta da Igreja na América Tal alegação também eliminou aos olhos do mundo e possivelmente dos próprios coloniza dores qualquer sanção contra as atrocidades que pudessem cometer contra os índios funcionando assim como uma licença para matar independentemente do que as possíveis vítimas pudessem fazer E efetivamente o chicote a forca o tronco a prisão a tortura o estupro e ocasionalmente o assassinato se converteram em armas comuns para reforçar a disciplina do trabalho no Novo Mundo Cockroft 1990 p 19 Em uma primeira fase no entanto a imagem dos coloniza dos como adoradores do diabo pôde coexistir com uma imagem mais positiva inclusive idílica que descrevia os índios como seres inocentes e generosos que levavam uma vida livre da la buta e da tirania remetendo à mítica época dourada ou a um paraíso terreno Brandon 1986 pp 68 Sale 1991 pp 1001 Essa caracterização pode ter sido um estereótipo literário ou como sugeriu Roberto Fernández Retamar entre outros a contrapartida retórica da imagem do selvagem expres sando assim a incapacidade dos europeus em considerar as pessoas com as quais se encontravam como verdadeiros seres humanos192 Mas esse olhar otimista também corresponde a um 192 Esta imagem de Galibicanibal escreve Retamar contrasta com uma outra imagem do homem americano presente nos escritos de Colombo a do Aruaque das Gran des Antilhas principalmente nosso Taíno que é representado como pacífico dócil até mesmo temeroso e covarde Ambas visões dos indígenas americanos se difundiriam rapidamente pela Europa O Taíno se transformará no habitante paradisíaco de um mundo utópico O Galibi por sua vez dará lugar ao canibal um antropófago um homem bestial situado à margem da civilização a quem é preciso combater até a morte No entanto ambas as visões estão mais próximas do que pode parecer à primeira vista Cada imagem corresponde a uma intervenção colonial assegurando seu direito de controlar a vida da população indígena do Caribe que segundo Retamar continua até o presente Retamar assinala que o extermínio tanto dos amáveis Taíno quanto dos ferozes período da Conquista de 1520 a 1540 em que os espanhóis ain da acreditavam que as populações indígenas seriam facilmente convertidas e subjugadas Cervantes 1994 Essa foi a época dos batismos massivos quando se manifestou maior fervor para convencer os índios a mudar seus nomes e a abandonar seus deuses e costumes sexuais especialmente a poligamia e a homossexualidade As mulheres com seus peitos nus foram obrigadas a se cobrir os homens tiveram que trocar a tanga pelas calças Cockroft 1983 p 21 Nessa época a luta contra o demônio consistia principalmente em fogueiras de ídolos locais ainda que entre 1536 quando se introduziu a Inquisição na América e 1543 muitos líderes políticos e religiosos do Galibi constitui uma prova da afinidade entre estas duas imagens ibidem pp 234 Canibais na Bahia se regalando com restos humanos Ilustrações que mostravam a comunidade ameríndia assando e se alimentando de restos humanos completaram o aviltamento das populações nativas americanas iniciado previamente pelo trabalho dos missionários 387 386 centro do México tivessem sido julgados e queimados na fo gueira pelo padre franciscano Juan de Zumárraga À medida que a Conquista avançava porém deixou de ha ver espaço para qualquer tipo de acordo Não é possível imporse sobre outras pessoas sem rebaixálas a um ponto em que até mesmo a possibilidade de identifcação tornase inviável Assim apesar das primeiras homilias sobre os amáveis Taíno colocou se em marcha uma máquina ideológica que complementando a máquina militar retratava os colonizados como seres imun dos e demoníacos praticantes de todo tipo de abominações enquanto os mesmos crimes que antes haviam sido atribuídos à falta de educação religiosa sodomia canibalismo incesto travestismo eram agora considerados provas de que os ín dios se encontravam sob o domínio do diabo e que portanto poderiam ser justifcadamente privados de suas terras e de suas vidas Williams 1986 pp 1367 Em relação a essa mudança de imagem Fernando Cervantes escreve o seguinte em The Devil in the New World 1994 p 8 O demônio no Novo Mundo antes de 1530 seria difícil prever qual desses enfoques se converteria no ponto de vista dominante No entanto na metade do século XVI já havia triunfado uma visão demoníaca muito negativa das culturas ameríndias e sua infuência pairava como um imenso nevoeiro sobre cada afrmação ofcial ou não feita sobre o tema Com base em relatos escritos contemporaneamente à conquista das Índias como as de De Gómara 1556 e Acosta 1590 seria possível conjeturar que essa mudança de pers pectiva foi provocada pelo encontro dos europeus com Estados imperialistas como o asteca e o inca cujas maquinarias repres sivas incluíam a prática de sacrifícios humanos Martínez et al 1976 Em Historia Natural y Moral de las Indias História natural e moral das Índias publicado em Sevilha pelo jesuíta José de Acosta em 1590 há descrições que nos trazem uma vívida sensa ção da repulsa dos espanhóis em relação aos sacrifícios de cente nas de jovens prisioneiros de guerra crianças compradas e escravos praticados principalmente pelos Asteca193 No entanto ao ler o relato de Bartolomé de las Casas sobre a destruição das Índias ou sobre qualquer outro informe relativo à Conquista nos perguntamos por que os espanhóis se sentiriam 193 Os sacrifícios humanos ocupam um lugar muito importante no relato de Acosta sobre os costumes religiosos dos Inca e dos Asteca Acosta descreve como durante certas festividades no Peru trezentas crianças de dois a quatro anos em um total de quatrocentas eram sacrificadas espetáculo forte e desumano segundo suas palavras Entre outros sacrifícios descreve também o de setenta soldados espanhóis capturados durante uma batalha no México e da mesma forma que Gómara afirma com total certe za que tais matanças eram obras do diabo Acosta 1962 p 250 e segs Como resultado da Conquista proliferou na Europa a edição dos diários de viagem ilustrados com terríveis imagens de canibais se empanturrando de restos humanos Um banquete canibal na Bahia Brasil de acordo com a descrição do alemão J G Aldenburg 389 388 impressionados por essas práticas quando eles mesmos não tiveram escrúpulos ao cometer impronunciáveis atrocidades em nome de Deus e do ouro como quando em 1521 segundo Cortés massacraram cem mil pessoas apenas para conquistar Tenochtitlán Cockroft 1983 p 19 Do mesmo modo os rituais canibalistas que os espanhóis descobriram na América e que ocupam um lugar destacado nos registros da Conquista não devem ter sido muito diferentes das práticas médicas populares na Europa durante aquela época Nos séculos XVI XVII e até mesmo XVIII o consumo de sangue humano especialmente daqueles que haviam morrido de forma violenta e de água de múmias que se obtinha banhando a car ne humana em beberagens era uma cura comum para epilepsia e outras doenças em muitos países europeus Este tipo de cani balismo envolvendo carne humana sangue coração crânio medula óssea e outras partes do corpo não estava limitado a grupos marginais era também praticado nos círculos mais res peitáveis GordonGrube 1988 pp 4067194 Portanto o novo horror que os espanhóis sentiram pelas populações indígenas a partir da década de 1550 não pode ser facilmente atribuído a um choque cultural mas sim deve ser visto como uma resposta inerente à lógica da colonização que inevitavelmente precisa desumanizar e temer aqueles que quer escravizar O êxito dessa estratégia pode ser observado na facilidade com que os espanhóis explicaram de forma racional as altas taxas de mortalidade causadas pelas epidemias que dizimaram a região no começo da Conquista e que eles conceberam como um castigo divino pela conduta bestial dos índios195 Também o 194 Na Nova Inglaterra os médicos administravam remédios feitos com cadáveres humanos Entre os mais populares universalmente recomendado como uma panaceia para qualquer problema estava a Múmia um remédio preparado com os restos de um cadáver seco ou embalsamado Em relação ao consumo de sangue humano GordonGruber 1988 p 407 escreve que vender o sangue de criminosos decapitados era uma prerrogativa dos executores Era dado ainda quente a epiléticos ou a outros clientes que esperavam em meio à multidão com o copo na mão no lugar da execução 195 Walter L Williams 1986 p 138 escreve Os espanhóis nunca se deram debate ocorrido em Valladolid em 1550 entre Bartolomé de las Casas e o jurista espanhol Juan Ginés de Sepúlveda sobre se os índios deveriam ou não ser considerados seres humanos teria sido impensável sem uma campanha ideológica que os repre sentasse como animais e demônios196 A divulgação de ilustrações banquetes canibalísticos com multidões de corpos nus oferecendo cabeças e membros humanos como prato principal que retratavam a vida no Novo Mundo com reminiscências dos sabás das bruxas e que começa ram a circular por toda a Europa depois da década de 1550 com pletaram o trabalho de degradação Le Livre des Antipodes 1630 O livro das antípodas compilado por Johann Ludwig Gottfried constitui um exemplo tardio do gênero literário que exibe uma grande quantidade de imagens terrífcas mulheres e crianças empanturrandose com vísceras humanas ou uma comunidade canibal reunida ao redor de uma grelha deleitandose com per nas e braços enquanto observam restos humanos sendo assados Já as ilustrações que aparecem em Les singularités de la France Antarctique Paris 1557 As singularidades da França Antártica realizadas pelo franciscano francês André Thevet centradas no esquartejamento na preparação e na degustação de carne humana e a obra de Hans Staden Wahrhaftige Historia Marburg 1557 Verdadeira história na qual o autor descreve seu cativeiro entre os índios canibais do Brasil Parinetto 1998 p 428 constituem contribuições anteriores à produção cultural dos ameríndios como seres bestiais conta do motivo pelo qual os índios estavam sendo consumidos pelas doenças mas tomaram o fenômeno como um indício de que essa realidade era parte dos planos de Deus para eliminar os infiéis Oviedo concluiu Não é sem motivo que Deus permite que eles sejam destruídos E não tenho dúvidas de que devido a seus pecados Deus logo se livrará deles Mais tarde em uma carta destinada ao rei condenando os Maia por aceitarem o comportamento homossexual afirmou o seguinte Desejo mencionálo a fim de declarar ainda mais fortemente o motivo pelo qual Deus castiga os índios e a razão pela qual não têm sido merecedores de sua misericórdia 196 O fundamento teórico do argumento de Sepúlveda a favor da escravização dos índios era a doutrina de Aristóteles sobre a escravidão natural Hanke 1970 p 16 e segs 391 390 EXPLORAÇÃO RESISTÊNCIA E DEMONIZAÇÃO A decisão da Coroa espanhola de introduzir um sistema muito mais severo de exploração nas colônias americanas na década de 1550 constituiu um dos momentos de virada na propaganda antiíndígena e na campanha antiidolatria que acompanharam o processo de colonização A decisão foi motivada pela crise da economia de rapina introduzida depois da Conquista pela qual a acumulação de riqueza dependia muito mais da expropriação dos excedentes dos bens dos índios do que da exploração direta de seu trabalho Spalding 1984 Steve J Stern 1982 Até a década de 1550 apesar dos massacres e da exploração associados ao sistema de encomienda os espanhóis não haviam desorganizado completamente as economias de subsistência que encontraram nas áreas colonizadas Pelo contrário devido à riqueza que acumularam eles confavam nos sistemas de impostos colocados em prática pelos Asteca e pelos Inca por meio do qual os chefes caciques no México curacas no Peru entregavam aos conquistadores parcelas de bens e trabalho supostamente compatíveis com a sobrevivên cia das economias locais O tributo fxado pelos espanhóis era muito maior do que os Inca e os Asteca impunham àqueles a quem conquistavam mas ainda assim não era sufciente para satisfazer suas necessidades Por volta da década de 1550 passou a ser mais difícil obter mão de obra sufciente tanto para os obrajes ofcinas de manufatura nas quais se produziam bens para o mercado internacional como para a exploração das minas de prata e mercúrio recentemente descobertas como a lendária mina de Potosí197 197 A mina de Potosí foi descoberta em 1545 cinco anos antes do debate entre Las Casas e Sepúlveda A necessidade de extrair mais trabalho das populações indígenas provinha principalmente da situação interna da metrópole A Coroa espanhola estava literalmente navegando em um mar de lingotes de ouro e prata americanos com os quais comprava bens e alimentos que já não se produziam na Espanha Além disso a riqueza produzida pelo saque fnanciou a expansão da Coroa em território europeu Esta situação dependia em tal medida da contínua chegada de grandes quantidades de prata e outro do Novo Mundo que na década de 1550 a Coroa estava preparada para destruir o poder dos encomenderos com a fnalidade de se apropriar de grande parte do trabalho dos índios para a extração de prata que posterior mente seria enviada em navios para a Espanha198 Por outro lado a resistência à colonização estava aumentando Spalding 1984 pp 1345 Stern 1982199 Foi em resposta a este desafo que tanto no México como no Peru se declarou uma guerra contra as culturas indígenas abrindo caminho para uma inten sifcação draconiana do domínio colonial No México essa mudança ocorreu em 1562 quando por iniciativa do provincial Diego de Landa foi lançada uma campanha antiidolatria na Península de Yucatán durante a qual mais de 4500 pessoas foram capturadas e brutalmente torturadas sob a acusação de praticar sacrifícios humanos Em seguida foram objetos de um castigo público bem orquestrado 198 Na década de 1550 a Coroa espanhola dependia de tal forma dos metais preciosos da América para sobreviver e para pagar os mercenários que lutavam em suas guerras que confiscava as cargas de lingotes de ouro e prata que chegavam em navios privados Normalmente estes navios transportavam de volta o dinheiro que havia sido guardado por aqueles que tinham participado da Conquista e que agora estavam se preparando para uma aposentadoria na Espanha Dessa forma durante alguns anos eclodiu um conflito entre os expatriados e a Coroa que culminou na aprovação de uma nova legislação que limitava o poder de acumulação dos primeiros 199 Na obra Tribute to the Household 1982 Tributo para o lar de Enrique Mayer encontrase uma poderosa descrição dessa resistência Nela são descritas as famosas visitas que os encomenderos costumavam fazer às aldeias com a finalidade de fixar o tributo que cada comunidade devia a eles e à Coroa Nos vilarejos andinos a procissão de homens a cavalo podia ser vista horas antes de sua chegada diante da qual muitos jovens fugiam as crianças eram realocadas em casas diferentes e os recursos eram escondidos 393 392 que por fm completou a destruição de seus corpos e de sua moral Clendinnen 1987 pp 7192 As penas foram tão cruéis anos de escravidão nas minas açoites tão severos que fze ram o sangue correr que muita gente morreu ou fcou inváli da outros fugiram de suas casas ou se suicidaram de tal forma que o trabalho terminou e a economia regional foi destruída A perseguição montada por Landa porém se transformou no fundamento de uma nova economia colonial que fez com que a população local entendesse que os espanhóis haviam chegado para fcar e que o domínio dos antigos deuses havia terminado ibidem p 190 No Peru o primeiro ataque em grande escala contra o culto diabólico também ocorreu em 1560 coincidindo com o surgi mento do Taki Onqoy200 um movimento nativo milenarista que argumentava contra a colaboração dos indígenas com os eu ropeus e a favor de uma aliança panandina dos deuses locais huacas para pôr fm à colonização Os takionqos atribuíam a derrota e a crescente mortalidade sofridas pelo seu povo ao abandono dos deuses locais e encorajavam as pessoas a rejei tar a religião cristã os nomes a comida e a roupa recebidas dos espanhóis Também incitavam as pessoas a não pagarem os tributos impostos pelos espanhóis a recusarem submeterse ao trabalho forçado e a abandonarem o uso de camisas chapéus sandálias ou qualquer outro tipo de vestimenta proveniente da Espanha Stern 1982 p 53 Prometiam que se isso aconte cesse os huacas revividos dariam a volta ao mundo e destrui riam os espanhóis enviandolhes doenças e inundações a suas cidades e o oceano se elevaria para apagar todo rastro de sua existência Stern 1982 pp 5264 A ameaça formulada pelos takionqos era séria uma vez que ao convocar uma unifcação panandina dos huacas o 200 O nome Taki Onqoy descreve o transe em que entravam durante a dança os participantes do movimento movimento marcava o começo de um novo senso de identidade capaz de superar as divisões vinculadas à organização tradi cional dos ayullus unidades familiares Nas palavras de Stern essa foi a primeira vez que os povos dos Andes começaram a se enxergar como um só como índios Stern 1982 p 59 De fato o movimento se expandiu amplamente alcançando como extremo norte a cidade de Lima como extremo leste Cuzco e do topo da elevada puna do sul até La Paz na atual Bolívia Spalding 1984 p 246 A resposta veio do conselho eclesiástico realizado em Lima em 1567 que estabeleceu que os sacerdotes deviam extirpar as inumeráveis superstições ceri mônias e ritos diabólicos dos índios Também deviam erradicar a embriaguez prender médicosbruxos e sobretudo descobrir e destruir os lugares sagrados e os talismãs relacionados com o culto dos huacas Essas recomendações foram repetidas em um sínodo celebrado em Quito no ano de 1570 durante o qual novamente foi denunciada a existência de médicosbru xos que protegem os huacas e conversam com o diabo Hemming 1970 p 397 Os huacas eram as montanhas as fontes de água as pedras e os animais que encarnavam os espíritos dos ancestrais Como tais eram cuidados alimentados e adorados de forma coletiva já que todos os consideravam como os principais vín culos com a terra e com as práticas agrícolas primordiais para a reprodução econômica As mulheres falavam com eles como parece ainda acontecer em algumas regiões da América do Sul para se assegurarem de uma boa colheita Descola 1994 pp 191214201 Destruílos ou proibir seu culto era uma forma 201 Philippe Descola escreve que entre os Achuar uma população indígena da alta Amazônia a condição necessária para um cultivo eficaz depende do comércio direto harmonioso e constante com Nunkui o espírito protetor das hortas Descola 1994 p 192 Isso é o que faz toda mulher quando canta canções secretas do coração e ensalmos cura de doenças por meio de feitiços e rezas medicina alternativa mágicos às plantas e ervas de seu jardim encorajandoas a crescer ibidem 198 A relação entre a mulher e o espírito que protege seu jardim é tão íntima que quando ela morre seu jar dim segue seu exemplo dado que à exceção de sua filha solteira nenhuma outra mulher 394 de atacar a comunidade suas raízes históricas a relação do povo com a terra e sua relação intensamente espiritual com a natureza Os espanhóis compreenderam isso na década de 1550 e embarcaram em uma sistemática destruição de tudo aquilo que se assemelhava a um objeto de culto O que Claude Baudez e Sydney Picasso escreveram sobre a campanha antiidolatria dirigida pelos franciscanos contra os Maia em Yucatán também se aplica ao ocorrido no resto do México e no Peru Os ídolos foram destruídos os templos incendiados e aqueles que celebravam ritos nativos e praticavam sacrifícios foram punidos com a morte as festividades tais como os banquetes as canções e as danças assim como as atividades artísticas e intelectuais pintura escultura observação das estrelas escrita hieroglífca suspeitas de serem inspiradas pelo diabo foram proibidas e aqueles que participavam delas foram perseguidos sem misericórdia Baudez e Picasso 1992 p 21 Esse processo veio de mãos dadas com a reforma exigida pela Coroa espanhola que aumentou a exploração do trabalho indígena com a fnalidade de assegurar um maior fuxo de lin gotes de ouro e prata para os seus cofres Para tanto introduziu duas medidas ambas facilitadas pela campanha antiidolatria Em primeiro lugar a cota de trabalho que os chefes locais deviam prover para o trabalho nas minas e obrajes foi aumen tada notavelmente e a execução da nova norma foi posta em mãos de um representante local da Coroa corregidor com o poder de prender e administrar outras formas de punição no caso de desobediência Além disso houve um programa de se animaria a sustentar uma relação desse tipo se ela mesma não houvesse iniciado Quanto aos homens são completamente incapazes de substituir suas esposas se esta necessidade aparecer Quando um homem já não tem uma mulher mãe esposa irmã ou filha que cultive sua horta e prepare sua comida não há alternativa além do suicídio Descola 1994 p 175 Uma mulher andina é obrigada a trabalhar nos obrajes oficinas de manufatura que produziam para o mercado internacional Cena de Felipe Guaman Poma de Ayala em seu manuscrito Nueva crónica y buen gobierno 1615 397 396 reassentamento reducciones que levou a maior parte da popu lação rural a aldeias designadas a fm de controlála mais di retamente A destruição dos huacas e a perseguição da religião ancestral a eles associada tiveram um papel decisivo em ambas as medidas dado que as reducciones adquiriram maior força a partir da demonização dos lugares de culto Rapidamente evidenciouse que sob o manto da cristia nização os povos continuaram adorando a seus deuses da mesma forma que continuaram retornando a suas milpas cam pos depois de terem sido tirados de casa Por isso o ataque aos deuses locais ao invés de diminuir se intensifcou com o pas sar do tempo alcançando seu ápice entre 1619 e 1660 quando a destruição dos ídolos foi acompanhada por verdadeiras caças às bruxas desta vez convertendo em alvo particularmente as mulheres Karen Spalding descreveu uma das caças às bruxas conduzidas no repartimiento repartição de Huarochirí em 1660 pelo sacerdote inquisidor Don Juan Sarmiento Tal como ela assinala a investigação foi dirigida segundo o mesmo pa drão das caças às bruxas realizadas na Europa Começou com a leitura do édito contra a idolatria e com a pregação de um sermão contra este pecado procedimentos seguidos por de núncias secretas fornecidas por informantes anônimos Então se iniciava o interrogatório dos suspeitos o uso de tortura para extrair confssões e fnalmente ditavase a sentença e a puni ção que nesse caso consistia em açoitamento público exílio e outras formas de humilhação As pessoas sentenciadas eram levadas à praça pública colocadas entre mulas e burros com cruzes de madeira de aproximadamente seis polegadas de largura penduradas ao redor de seus pescoços A partir desse dia deveriam levar essas marcas de humilhação As autoridades religiosas colocavam uma coroa medieval sobre suas cabeças um capuz em forma de cone feito de papelão que era a marca europeia e católica da infâmia e da desgraça O cabelo por debaixo dos capuzes era cortado como uma marca de humilhação andina Aqueles que eram condenados a receber chicotadas tinham suas costas despidas Colocavam cordas ao redor de seus pescoços Eram levados lentamente pelas ruas do povoado precedidos por um pregonero202 que lia seus crimes Depois desse espetáculo as pessoas eram trazidas de volta algumas com as costas sangrando devido às vinte quarenta ou cem chibatadas desferidas pelo carrasco com um açoite com tiras de nove nós Spalding 1984 p 256 Spalding conclui As campanhas de idolatria eram rituais exemplares didáticas peças teatrais dirigidas tanto para a audiência como para os participantes parecidas com os enforcamentos públicos da Europa medieval Ibidem p 265 Seu objetivo era intimidar a população criar um espaço de morte203 em que os potenciais rebeldes se sentissem tão paralisados pelo medo que passassem a aceitar qualquer coisa para não ter de enfrentar o tormento daqueles que eram espancados e humilhados publicamente Nisso os espanhóis foram em parte bemsucedidos Graças à tortura às denúncias 202 Na Espanha e em suas colônias pregonero era um oficial público que dava em voz alta notícias de interesse público NTP 203 Esta é a expressão utilizada por Michael Taussig em Shamanism Colonialism and the Wild Man 1987 p 5 Xamanismo colonialismo e o homem selvagem com a finalidade de destacar a função do terror no estabelecimento da hegemonia colonial na América Quaisquer que sejam as conclusões a que cheguemos sobre a rapidez com que se efetivou a hegemonia seria pouco sensato subestimar o papel do terror E com isso quero dizer que devemos analisar a fundo o terror que não constitui apenas um estado fisioló gico mas também social cujas características particulares permitem que ele sirva como um mediador por excelência da hegemonia colonial o espaço da morte onde os índios os africanos e os brancos pariram um Novo Mundo Grifo nosso Taussig acrescenta todavia que o espaço da morte constitui também um espaço de transformação dado que por meio da experiência de encontrarse próximo da morte também é possível experimentar um sentido mais intenso da vida por meio do medo é possível chegar não só a um crescimento da consciência de si mesmo mas também a uma separação e depois a uma perda da adaptação à autoridade ibidem p 7 399 Cena 2 As mulheres como botins da Conquista Cena 1 Humilhação pública durante uma campanha antiidolatria Cena 3 As divindades huacas representadas como demônios falam através de um sonho Cena 4 Um membro do movimento Taki Onqoy com um índio bêbado possuído por uma divindade huaca representada como o diabo Cenas de Felipe Guaman Poma de Ayala representando a terrível experiência das mulheres andinas e dos seguidores da religião dos antepassados Steve J Stern 1982 anônimas e às humilhações públicas muitas alianças e amizades se romperam a fé dos povos na efetividade de seus deuses se debilitou e o culto se transformou em uma prática individual e secreta mais que coletiva tal como havia sido na América antes da Conquista Segundo Spalding a profundidade com que o tecido social se viu afetado por essas campanhas de terror pode ser obser vada nas mudanças que com o passar do tempo começaram a ocorrer na natureza das acusações Enquanto na década de 1550 as pessoas podiam reconhecer abertamente seu apego e o de sua comunidade à religião tradicional na década de 1650 os crimes de que eram acusadas giravam em torno da bruxaria uma prática que agora pressupunha uma conduta secreta e que se parecia cada vez mais com as acusações feitas contra as bruxas na Europa Na campanha lançada em 1660 na zona de Huarochirí por exemplo os crimes descobertos pelas auto ridades estavam vinculados à cura ao achado de objetos perdidos e a outras modalidades do que em termos gerais poderia denominarse bruxaria aldeã No entanto a própria campanha revelava que apesar da perseguição aos olhos das comunidades os antepassados e os huacas continuavam sen do essenciais para sua sobrevivência Spalding 1984 p 261 401 400 MULHERES E BRUXAS NA AMÉRICA Não é coincidência que a maioria dos condenados na inves tigação de 1660 em Huarochirí 28 em um total de 32 fossem mulheres Spalding 1984 p 258 Também não é por acaso que as mulheres tivessem maior presença no movimento Taki Onqoy Foram as mulheres que defenderam de forma mais ferrenha o antigo modo de existência e que se opuseram com mais veemência à nova estrutura de poder provavelmente devido ao fato de serem também as mais afetadas Como mostra a existência de importantes divindades femininas nas religiões précolombianas as mulheres tinham uma posição de poder nessas sociedades Em 1517 Hernández de Córdoba chegou a uma ilha situada a pouca distância da costa da Península de Yucatán e a chamou de Isla Mujeres pois os templos que visitaram ali continham uma grande quantidade de ídolos femininos Baudez e Picasso 1992 p 17 Antes da Conquista as mulheres americanas tinham suas próprias organizações suas esferas de atividade eram reconhecidas socialmente e embora não fossem iguais aos homens204 eram consideradas complementares a eles quanto à 204 Em relação à posição das mulheres no México e no Peru antes da Conquis ta ver respectivamente June Nash 1978 1980 Irene Silverblatt 1987 e María Rostworowski 2001 Nash discute acerca da decadência do poder das mulheres astecas conforme ocorreu a transformação de uma sociedade baseada no parentesco para um império estruturado em classes Assinala que durante o século XV os astecas desen volveramse no sentido da formação de um império guerreiro tendo surgido então uma rígida divisão sexual do trabalho ao mesmo tempo as mulheres dos inimigos vencidos tornaramse o o espólio a ser repartido pelos vitoriosos Nash 1978 pp 3568 Simultaneamente as divindades femininas deram lugar a deuses masculinos especial mente o sanguinário Huitzilopochtli embora continuassem sendo adoradas pela gente comum De todo modo as mulheres da sociedade asteca possuíam muitas habilidades como produtoras independentes de artesanatos de cerâmica e tecidos como sacerdotisas médicas e comerciantes A política de desenvolvimento espanhola em contraposição tal como foi levada a cabo pelos sacerdotes e administradores da Coroa desviou a produção doméstica em direção aos estabelecimentos comerciais de artesanato ou aos moinhos dirigidos por homens Ibidem sua contribuição na família e na sociedade Além de serem agricultoras donas de casa tecelãs e pro dutoras dos panos coloridos utilizados tanto na vida cotidiana quanto durante as cerimônias também eram oleiras herbo ristas curandeiras e sacerdotisas a serviço dos deuses locais No sul do México na região de Oaxaca estavam vinculadas à produção de pulquemaguey uma substância sagrada que segundo acreditavam havia sido inventada pelos deuses e es tava relacionada com Mayahuel uma deusa mãe terra que era o centro da religião campesina Taylor 1970 pp 312 Tudo mudou com a chegada dos espanhóis que trouxeram sua bagagem de crenças misóginas e reestruturaram a eco nomia e o poder político em favor dos homens As mulheres sofreram também nas mãos dos chefes tradicionais que a fm de manter seu poder começaram a assumir a propriedade das terras comunais e a expropriar das integrantes femininas da comunidade o uso da terra e seus direitos sobre a água Na economia colonial as mulheres foram assim reduzidas à condição de servas que trabalhavam como criadas para encomenderos sacerdotes e corregidores ou como tecelãs nos obrajes As mulheres também foram forçadas a acompanhar seus maridos no trabalho de mita nas minas um destino que era considerado pior que a morte uma vez que em 1528 as autoridades estabeleceram que os cônjuges não podiam ser separados um do outro mulheres e crianças seriam assim compelidas a trabalhar nas minas além de prepararem a co mida para os trabalhadores homens A nova legislação espanhola que declarou a ilegalidade da poligamia constituiu outra fonte de degradação para as mulheres Do dia para a noite os homens se viram obrigados a se separar de suas mulheres ou então convertêlas em criadas Mayer 1981 ao passo que as crianças que haviam nascido dessas uniões eram classifcadas de acordo com cinco 403 402 categorias diferentes de ilegitimidade Nash 1980 p 143 Ironicamente com a chegada dos espanhóis ao mesmo tempo que as uniões poligâmicas eram dissolvidas nenhuma mulher indígena se encontrava a salvo do estupro ou do rapto Dessa forma muitos homens em vez de se casarem começaram a recorrer à prostituição Hemming 1970 Na fantasia eu ropeia a América em si era uma mulher nua sensualmente reclinada em sua rede que convidava o estrangeiro branco a se aproximar Em certos momentos eram os próprios homens índios que entregavam suas parentes aos sacerdotes ou aos encomenderos em troca de alguma recompensa econômica ou de um cargo público Por todos esses motivos as mulheres se converteram nas principais inimigas do domínio colonial negandose a ir à missa a batizar seus flhos ou a qualquer tipo de cooperação com as autoridades coloniais e com os sacerdotes Nos Andes algumas se suicidaram e mataram seus flhos homens muito provavelmente para evitar que fossem às minas e também de vido à repugnância possivelmente provocada pelo maustratos que lhe infigiam seus parentes masculinos Silverblatt 1987 Outras organizaram suas comunidades e diante da traição de muitos chefes locais cooptados pela estrutura colonial se converteram em sacerdotisas líderes e guardiãs dos huacas assumindo tarefas que nunca antes haviam exercido Isso explica por que as mulheres constituíram a coluna vertebral do movimento Taki Onqoy No Peru elas também realizaram reuniões confessionais com o fm de preparar as pessoas para o momento em que se encontrassem com os sacerdotes cató licos aconselhando sobre que coisas deveriam contar e quais não deveriam revelar Se antes da Conquista as mulheres esta vam encarregadas exclusivamente das cerimônias dedicadas às divindades femininas posteriormente se converteram em assistentes ou principais ofciantes em cultos dedicados aos huacas dos antepassados masculinos algo que era proibido antes da chegada dos espanhóis Stern 1982 Também luta ram contra o poder colonial escondendose nas zonas mais elevadas punas onde podiam praticar a religião antiga Como assinala Irene Silverblatt 1987 p 197 Enquanto os homens indígenas fugiam da opressão da mita e do tributo abandonando suas comunidades e indo trabalhar como yaconas quaseservos nas novas haciendas as mulheres fugiam para as punas inacessíveis e muito distantes das reducciones de suas comunidades nativas Uma vez nas punas as mulheres rejeitavam as forças e os símbolos de sua opressão desobedecendo os administradores espanhóis e o clero assim como os dirigentes de sua própria comunidade Também rejeitavam energicamente a ideologia colonial que reforçava sua opressão negandose a ir à missa a participar em confssões católicas ou a aprender o dogma católico E o que é ainda mais importante as mulheres não rejeitavam só o catolicismo mas retornavam à sua religião nativa e até onde era possível à qualidade das relações sociais que sua religião expressava Ao perseguir as mulheres como bruxas os espanhóis atingiam tanto os praticantes da antiga religião como os instigadores da revolta anticolonial ao mesmo tempo que tentavam redefnir as esferas de atividade nas quais as mu lheres indígenas podiam participar Silverblatt 1987 p 160 Como assinala Silverblatt o conceito de bruxaria era alheio à sociedade andina No Peru assim como em todas as socie dades préindustriais muitas mulheres eram especialistas no conhecimento médico estavam familiarizadas com as propriedades de ervas e plantas e também eram adivinhas A noção cristã de demônio era desconhecida Não obstante por volta do século XVII devido ao impacto da tortura da intensa perseguição e da aculturação forçada as mulheres andinas 405 404 que acabavam presas em sua maioria idosas e pobres ad mitiam os mesmos crimes que eram imputados às mulheres nos julgamentos de bruxaria na Europa pactos e fornicação com o diabo prescrição de remédios a base de ervas uso de unguento voar pelos ares e fazer amuletos de cera Silverblatt 1987 p 174 Também confessaram adorar as pedras as mon tanhas e os mananciais e alimentar os huacas O pior de tudo foi que reconheceram ter enfeitiçado as autoridades ou outros homens poderosos causando a sua morte ibidem p 1878 Como na Europa a tortura e o terror foram utilizados para forçar os acusados a revelar outros nomes Assim os círculos de perseguição se ampliaram cada vez mais Contudo um dos objetivos da caça às bruxas o isolamento das bruxas do resto da comunidade não foi alcançado As bruxas andinas não foram transformadas em párias Pelo contrário foram muito solicitadas como comadres parteiras e sua presença era requerida em reuniões aldeãs pois na consciência dos coloni zados a bruxaria a continuidade das tradições ancestrais e a resistência política consciente passaram a estar cada vez mais entrelaçadas ibidem De fato graças em grande medida à resistência das mulheres as antigas crenças puderam ser preservadas Houve certas mudanças no sentido das práticas associadas à religião O culto foi levado à clandestinidade às custas do caráter coletivo que tinha na época anterior à Conquista Mas os laços com as montanhas e os outros lugares dos huacas não foram destruídos Encontramos uma situação parecida no centro e no sul do México onde as mulheres sobretudo as sacerdotisas cumpriam um papel importante na defesa de suas comuni dades e culturas Segundo a obra de Antonio García de León Resistencia y Utopía Resistência e utopia as mulheres di rigiram ou guiaram todas as grandes revoltas anticoloniais De León 1985 vol I p 31 ocorridas na região a partir da Conquista Em Oaxaca a presença das mulheres nas rebeliões populares continuou durante o século XVIII Nessa época visivelmente mais agressivas ofensivas e rebeldes Taylor 1979 p 116 elas lideraram um em cada quatro ataques às autoridades Também em Chiapas as mulheres foram os ato reschave da preservação da religião antiga e da luta anticolo nial Quando os espanhóis lançaram uma campanha de guerra para subjugar os rebeldes chiapanecos em 1524 foi uma sacerdotisa quem liderou as tropas nativas contra o invasor As mulheres também participaram das redes clandestinas de adoradores de ídolos e de resistência que eram periodicamen te descobertas pelo clero Em 1584 por exemplo durante uma visita a Chiapas o bispo Pedro de Feria foi informado de que muitos chefes indígenas locais ainda praticavam os antigos cultos e que estes estavam sendo aconselhados por mulheres com as quais mantinham práticas obscenas tais como cerimô nias ao estilo do sabá durante as quais dormiam juntos e se convertiam em deuses e deusas fcando a cargo das mulhe res enviar a chuva e prover riqueza a quem as solicitava De León 1985 vol I p 76 A partir desse registro é irônico que seja Calibã e não sua mãe a bruxa Sycorax quem os revolucionários latinoa mericanos tomaram depois como símbolo da resistência à co lonização Calibã só pôde lutar contra seu senhor insultandoo na linguagem que havia aprendido com ele próprio fazendo que sua rebelião dependesse das ferramentas do senhor Ele também pôde ser enganado quando o fzeram crer que sua libertação chegaria por meio de um estupro e da iniciativa de alguns proletários oportunistas brancos transladados ao Novo Mundo a quem ele adorava como se fossem deuses Em con traposição Sycorax uma bruxa tão poderosa que dominava a lua e provocava os fuxos e refuxos A tempestade ato V cena 1 pode ter ensinado seu flho a apreciar os poderes locais a 407 406 terra as águas as árvores os tesouros da natureza e os la ços comunais que durante séculos de sofrimento continuam nutrindo a luta pela libertação até o dia de hoje e que habita vam como uma promessa a imaginação de Calibã Não tenhas medo esta ilha é sempre cheia de sons ruídos e agradáveis árias que só deleitam sem causarnos dano Muitas vezes estrondamme aos ouvidos mil instrumentos de possante bulha outras vezes são vozes que me fazem dormir de novo embora despertado tenha de um longo sono Então em sonhos presumo ver as nuvens que se afastam mostrando seus tesouros como prestes a sobre mim choverem de tal modo que ao acordar choro porque desejo prosseguir a sonhar Shakespeare A tempestade ato III AS BRUXAS EUROPEIAS E OS ÍNDIOS A caça às bruxas no Novo Mundo teve algum impacto sobre os acontecimentos na Europa Ou ambas as campanhas simples mente faziam uso das mesmas estratégias e táticas repressivas que a classe dirigente europeia havia forjado ainda na Idade Média durante a perseguição dos hereges Faço essas perguntas a partir da tese do historiador italiano Luciano Parinetto para quem a caça às bruxas no Novo Mundo teve um enorme impacto na elaboração da ideologia sobre a bruxaria e na cronologia da caça às bruxas na Europa Em poucas palavras Parinetto sustenta que foi sob o impac to da experiência americana que a caça às bruxas na Europa se transformou em um fenômeno de massas ao longo da segunda metade do século XVI Isso se deve ao fato de que as autorida des e o clero encontraram na América a confrmação de suas teses sobre a adoração ao diabo chegando a crer na existência de populações inteiras de bruxas uma convicção que depois aplicaram a suas campanhas de cristianização na Europa Dessa forma a adoção do extermínio como estratégia política por parte dos Estados europeus foi importada do Novo Mundo que era descrito pelos missionários como a terra do demônio Muito possivelmente foi daí que veio a inspiração para o massacre dos huguenotes e para a massifcação da caça às bruxas a partir das últimas décadas do século XVI Parinetto 1998 pp 41735205 205 Parinetto assinala que a conexão entre o extermínio dos selvagens amerín dios e o dos huguenotes ficou gravada de forma clara na consciência e na literatura dos franceses protestantes depois da Noite de São Bartolomeu influenciando de maneira indi reta os ensaios de Montaigne sobre os canibais e de uma forma completamente distinta a associação que estabeleceu Jean Bodin entre as bruxas europeias e os índios canibais e sodomitas Citando fontes francesas Parinetto sustenta que esta associação entre os selvagens e os huguenotes alcançou seu auge nas últimas décadas do século XVI quando os massacres perpetrados pelos espanhóis na América como a matança ocorrida na Flórida em 1565 de milhares de colonos franceses acusados de serem luteranos tor 409 408 Como utilizar essa teoria e onde traçar a linha entre o expli cável e o especulativo Tratase de uma pergunta que os futuros estudiosos deverão responder Limitome nesse sentido a realizar algumas observações A tese de Parinetto é importante na medida em que nos aju da a dissipar o eurocentrismo que tem caracterizado o estudo da caça às bruxas e potencialmente pode responder a algumas perguntas que têm surgido em torno da perseguição das bruxas europeias Sua principal contribuição está no entanto no fato de que amplia nossa consciência sobre o caráter global do de senvolvimento capitalista e nos ajuda a entender que no século XVI já existia na Europa uma classe dominante implicada em termos práticos políticos e ideológicos na formação de um Segundo Parinetto o uso que os demonólogos fzeram dos relatórios das Índias é uma evidência da decisiva conexão entre ambas as perseguições Parinetto se concentra em Jean Bodin mas também menciona Francesco Maria Guazzo e cita como um exemplo do efeito bumerangue produzido pela im plementação da caça às bruxas na América o caso do inquisidor Pierre Lancre que durante uma perseguição de vários meses na região de Labourd País Basco denunciou toda a população local por bruxaria Além disso Parinetto reforça as evidências de sua tese com uma série de temas que ganhou proeminência no repertório da bruxaria na Europa durante a segunda metade do século XVI canibalismo oferenda de crianças ao diabo uso de unguentos e drogas e identifcação da homossexualidade sodomia com o diabolismo Todos esses temas argumenta Parinetto tiveram matriz no Novo Mundo naramse uma arma política amplamente utilizada na luta contra o domínio espanhol Parinetto 1998 pp 42930 Francesco Maria Guazzo Compendium Maleficarum Milão 1608 Guazzo foi um dos demonólogos mais influenciados pelos relatos vindos das Américas Este retrato de bruxas rodeando os restos de corpos desenterrados ou tirados da forca apresenta reminiscências de um banquete canibal Canibais preparando sua refeição Wahrhaftige Historia de Hans Staden Marburg 1557 411 410 proletariado mundial e que portanto elaborava seus mode los de dominação de acordo com o conhecimento que continua mente adquiria em outras partes do mundo Quanto a suas alegações a história da Europa anterior à Conquista basta para provar que os europeus não precisavam atravessar o oceano para descobrir a vontade de exterminar aqueles que cruzavam seu caminho Também é possível ex plicar a cronologia da caça às bruxas na Europa sem recorrer à hipótese do impacto do Novo Mundo uma vez que o período entre as décadas de 1560 e 1620 testemunhou um empobreci mento generalizado e deslocamentos sociais na maior parte da Europa Ocidental As semelhanças temáticas e iconográfcas entre a caça às bruxas na Europa e na América são muito sugestivas para repen sar a perseguição no Velho Mundo a partir da perseguição que teve lugar no Novo Mundo O uso de unguentos é um dos pontos mais reveladores enquanto as descrições do comportamento dos sacerdotes asteca ou inca durante os sacrifícios humanos evocam características encontradas em algumas demonologias sobre os preparativos das bruxas para o sabá Vejamos a seguinte passagem narrada por Acosta 1590 pp 2623 em que considera a prática americana como uma perversão do hábito cristão de consagrar os sacerdotes com unções Os sacerdotesídolos no México se besuntavam da seguinte maneira Se engorduravam dos pés à cabeça inclusive no cabelo a substância com a qual se manchavam era chá comum porque este desde a Antiguidade sempre constituiu uma oferenda a seus deuses e por isso foi muito adorado esta era a forma comum de se engordurar exceto Preparação para o sabá Gravura alemã do século XVI Preparando uma refeição canibal Wahrhaftige Historia de Hans Staden Marburg 1557 413 412 quando compareciam a um sacrifício ou quando iam às cavernas onde guardavam seus ídolos situação em que utilizavam um unguento diferente para dar coragem Este unguento era feito de substâncias venenosas rãs salamandras cobras com este unguento eles podiam se converter em magos brujos e falar com o diabo Supostamente segundo seus acusadores as bruxas euro peias espalhavam a mesma infusão venenosa sobre seus corpos com a fnalidade de obter o poder de voar até o sabá Mas não é possível garantir que esse assunto tenha se iniciado no Novo Mundo uma vez que nos julgamentos e nas demonologias do século XV já se encontravam referências a mulheres que preparavam unguentos com sangue de sapos ou com ossos de crianças206 Por outro lado é possível que os relatos da América revitalizassem essas acusações acrescentando novos detalhes e outorgando a eles maior autoridade A mesma consideração serve para explicar a semelhança iconográfca entre as imagens do sabá e as diversas representa ções da família e do clã canibal que começaram a aparecer na Europa nos fnais do século XVI e que permitem a compreensão de muitas outras coincidências tais como o fato de que as bruxas tanto na Europa como na América foram acusadas de sacrifcar crianças ao diabo 206 Faço especial referência aos julgamentos que ocorreram na Inquisição em Dauphiné na França na década de 1440 durante os quais inúmeras pessoas pobres camponeses ou pastores foram acusadas de cozinhar crianças para fazer pós mágicos com seus corpos Russell 1972 pp 2178 e à obra Formicarius 1435 do suábio Johannes Nider pertencente à ordem dominicana na qual lemos que as bruxas cozinham seus filhos fervemnos comem sua carne e bebem a sopa que sobra na panela Da matéria sólida elas fazem um unguento ou pomada mágica sendo a obtenção desta a terceira principal causa de assassinato de crianças ibidem p 240 Russell aponta que esse unguento ou pomada foi um dos elementos mais importantes da bruxaria no século XV e seguintes ibidem A CAÇA ÀS BRUXAS E A GLOBALIZAÇÃO A caça às bruxas na América continuou se desenvolvendo em ondas durante a última metade do século XVII até que a persis tência da diminuição demográfca e a crescente segurança polí tica e econômica da estrutura de poder colonial se combinaram colocando fm à perseguição Dessa forma na mesma região em que se desenvolveram as grandes campanhas antiidolatria nos séculos XVI e XVII a Inquisição renunciou a qualquer tentativa de infuenciar as crenças religiosas e morais da população apa rentemente a partir do século XVIII os inquisidores considera vam que elas já não representavam um perigo para o domínio colonial A perseguição deu lugar a uma perspectiva paterna lista que considerava a idolatria e as práticas mágicas como de bilidades de pessoas ignorantes que não deviam ser levadas a sério pela gente de razón Behar 1987 A partir daí a preocupa ção com a adoração ao diabo se deslocou para as plantations que se desenvolviam com o emprego de trabalho escravo no Brasil no Caribe e na América do Norte onde a partir das guerras conduzidas pelo rei Felipe os colonos ingleses justifcaram os massacres dos nativos americanos qualifcandoos de servos do diabo Williams e Williams Adelman 1978 p 143 Os julgamentos de Salem também foram explicados pelas autoridades locais com o argumento de que aqueles que viviam na Nova Inglaterra haviam se estabelecido na terra do diabo Como assinalou Cotton Mather anos mais tarde ao recordarse dos fatos ocorridos em Salem Encontrei algumas coisas estranhas que me fzeram pensar que esta guerra inexplicável a guerra iniciada pelos espíritos do mundo invisível contra as pessoas de Salem poderia ter suas origens entre os 414 índios cujos principais chefes sagamore são famosos inclusive entre alguns de nossos cativos por terem sido horríveis feiticeiros e magos diabólicos que como tais conversavam com os demônios ibidem 145 Nesse contexto é signifcativo que os julgamentos de Salem tenham sido provocados por adivinhações de uma escrava índia do Oeste Tituba uma das primeiras a serem presas e que a última execução de uma bruxa em território de língua inglesa tenha sido a de uma escrava negra Sarah Bassett morta nas Bermudas em 1730 Daly 1978 p 179 De fato no século XVIII a bruxa estava se convertendo em uma praticante africana do obeah um ritual que os colonos temiam e demonizavam por considerálo uma incitação à rebelião No entanto a abolição da escravidão não pressupôs a desaparição da caça às bruxas do repertório da burguesia Pelo contrário a expansão global do capitalismo por meio da colonização e da cristianização assegurou que esta perseguição fosse implantada no corpo das sociedades colonizadas e com o tempo posta em prática pelas comunidades subjugadas em seu próprio nome e contra seus próprios membros Na década de 1840 por exemplo houve uma onda de quei ma de bruxas no oeste da Índia Nesse período foram queima das mais mulheres por serem consideradas bruxas do que por incorrerem na prática do sati Skaria 1997 p 110207 Esses assas 207 Sati era um antigo costume entre algumas comunidades hindus no qual as viúvas se sacrificavam na pira funerária de seu marido morto Tornouse uma prática proibida na Índia a partir do colonialismo britânico NTP Podese ver refletida a africanização da bruxa nesta caricatura de uma pétroleuse em um panfleto contrarrevolucionário de 1871 Notese seu chapéu e brincos incomuns e suas características africanas sugerindo o parentesco entre as comunardas e as mulheres africanas selvagens que incutiam nos escravos a coragem da revolta assombrando a imaginação da burguesia francesa como um exemplo de selvageria política 417 416 sinatos se deram no contexto da crise social causada tanto pelo ataque das autoridades coloniais contra as comunidades que viviam nos bosques indianos nas quais as mulheres tinham um grau de poder muito maior do que nas sociedades de casta instaladas nas regiões de planície como pela desvalorização colonial do poder feminino que teve como resultado o declínio do culto às deusas ibidem p 13940 A caça às bruxas também ocorreu na África onde sobrevive até hoje como um instrumentochave de divisão em muitos países especialmente naqueles que em determinado mo mento estiveram implicados no comércio de escravos como a Nigéria e a África do Sul Nessas regiões a caça às bruxas tem sido acompanhada pela perda de posição social das mulheres provocada pela expansão do capitalismo e pela intensifcação da luta pelos recursos naturais que nos últimos anos vem se agravando pela imposição da agenda neoliberal Como conse quência dessa disputa de vida ou morte por recursos cada vez mais escassos uma grande quantidade de mulheres em sua maioria idosas e pobres foi perseguida durante a década de 1990 no norte da região sulafricana do Transvaal onde setenta delas acabaram queimadas nos primeiros quatro meses de 1994 Diario de México 1994 Também foram denunciados casos de caça às bruxas no Quênia na Nigéria e no Camarões nas déca das de 1980 e 1990 coincidindo com a imposição da política de ajuste estrutural do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial algo que levou a uma nova série de cercamentos cau sando um empobrecimento sem precedentes da população208 208 Com relação à renovada atenção que recebeu a bruxaria na África concei tuada explicitamente em relação às mudanças da modernidade ver a edição de dezem bro de 1998 de African Studies Review Revista Estudos Africanos que é dedicada a esta questão Em particular ver Diane Ciekawy e Peter Geschiere em Containing Witchcraft Conflicting Scenarios in Postcolonial Africa Conter a feitiçaria cenários conflitantes na África póscolonial ibidem pp 114 Ver também Adam Ashforth Witchcraft Violence and Democracy in South Africa Bruxaria violência e democracia na África do Sul Chi cago University of Chicago Press 2005 e o documentário Witches in Exile Bruxas no exílio produzido e dirigido por Allison Berg California Newsreel 2005 Na década de 1980 na Nigéria meninas inocentes confes savam ter matado dezenas de pessoas enquanto em outros países africanos foram encaminhadas aos governantes petições a fm de que as bruxas fossem perseguidas com maior rigor Enquanto isso na África do Sul e no Brasil mulheres idosas foram assassinadas por vizinhos e parentes sob a acusação de bruxaria Ao mesmo tempo um novo tipo de crenças de bru xaria começou a se desenvolver Ditas crenças apresentavam semelhanças com as que foram documentadas por Michael Taussing na Bolívia nas quais os pobres suspeitavam que os nouveau riches novos ricos haviam adquirido sua riqueza por meios ilícitos e sobrenaturais acusandoos de querer trans formar suas vítimas em zumbis e colocálas para trabalhar Gerschiere e Nyamnjoh 1998 pp 734 Poucas vezes chegam à Europa e aos Estados Unidos casos sobre as caçadas de bruxas que ocorrem na África ou na América Latina da mesma forma que as caças às bruxas dos sé culos XVI e XVII tiveram durante muito tempo pouco interesse para os historiadores Inclusive nos casos conhecidos sua im portância é normalmente ignorada de tão disseminada que é a crença de que estes fenômenos pertencem a uma era longínqua sem qualquer vínculo com os dias atuais Se aplicarmos no entanto as lições do passado ao presente nos damos conta de que a reaparição da caça às bruxas em tantas partes do mundo durante a década de 1980 e 1990 cons titui um sintoma claro de um novo processo de acumulação primitiva o que signifca que a privatização da terra e de outros recursos comunais o empobrecimento massivo o saque e o fomento de divisões de comunidades que antes estavam em coesão têm voltado a fazer parte da agenda mundial Se as coi sas continuarem dessa forma comentavam as idosas de uma aldeia senegalesa a um antropólogo norteamericano expres sando seus temores em relação ao futuro nossas crianças 418 se comerão umas às outras E com efeito isto é o que se consegue por meio da caça às bruxas seja orquestrada de cima para baixo como uma forma de criminalização da resistência à expropriação ou de baixo para cima como um meio para se apropriar dos recursos cada vez mais escassos como parece ser o caso de alguns lugares na África atualmente Em alguns países este processo requer ainda uma mobi lização de bruxas espíritos e diabos Mas não deveríamos nos enganar pensando que isso não nos concerne Como Arthur Miller observou em sua interpretação dos julgamentos de Salem assim que despojamos de parafernália metafísica a per seguição às bruxas começamos a reconhecer nela fenômenos que estão muito próximos a nós 421 420 AGRADECIMENTOS Para as muitas bruxas que conheci no movimento de mulheres e para outras bruxas cujas histórias me acompanharam por mais de 25 anos deixando um desejo inesgotável de contálas para que as pessoas as conheçam para ter certeza de que não serão esquecidas Para nosso irmão Jonathan Cohen cujo amor coragem e resistência implacável à injustiça me ajudaram a não perder a confança na possibilidade de mudar o mundo e na capacidade dos homens de tornar sua a luta pela liberação das mulheres Para as pessoas que me ajudaram a produzir este volume Agradeço a George Cafentzis com quem discuti todos os aspectos deste livro a Mitchell Cohen pelos excelentes comentários pela edição de parte do manuscrito e pelo apoio entusiasmado a este projeto a Ousseina Alidou e Maria Sari por me apresentarem o trabalho de Maryse Condé a Ferruccio Gambino por chamar minha atenção para a existência de escravidão na Itália nos séculos xvi e xvii a David Goldstein pelos materiais da pharmakopeia das bruxas a Conrad Herold por contribuir com minha pesquisa sobre a caça às bruxas no Peru a Massimo de Angelis por me dar seus escritos sobre acumulação primitiva e organizar um importante debate sobre esse tópico no The Commoner a Willy Murunga pelos materiais sobre os aspectos legais da feitiçaria na África Oriental Agradeço ainda a Michaela Brennan e Veena Viswanatha por ler o manuscrito e me dar con selhos e apoio a Mariarosa Dalla Costa Nicholas Faraclas Leopoldina Fortunati Everet Green Peter Linebaugh Bene Madunagu Maria Mies Ariel Salleh e Hakim Bey Seus trabalhos foram um ponto de partida para a perspectiva que dá forma a Calibã e a bruxa embora eles possam não estar de acordo com tudo o que escrevi aqui Agradeço especialmente a Jim Fleming Sue Ann Harkey Ben Meyers e Erika Biddle que dedicaram muitas horas a este livro e com paciência e assis tência me deram a possibilidade de terminálo a despeito da minha infnita procrastinação SILVIA FEDERICI NOVA YORK PRIMAVERA DE 2004 423 422 SOBRE A AUTORA Silvia Federici é uma intelectual militante de tradição feminista marxista autônoma Nascida na cidade italiana de Parma em 1942 mudouse para os Estados Unidos em 1967 onde foi cofundadora do International Feminist Collective Coletivo internacional feminista participou da Wages for Housework Campaign Campanha por um salário para o trabalho doméstico e contribuiu com o Midnight Notes Collective Coletivo notas da meianoite Durante os anos 1980 foi professora na Universidade de Port Harcourt na Nigéria onde acompanhou a organização feminista Women in Nigeria Mulheres na Nigéria e contribuiu para a criação do Committee for Academic Freedom in Africa Comitê para a liberdade acadêmica na África Na Nigéria pôde ainda presenciar a implementação de uma série de ajustes estruturais patrocinada pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial Atualmente Silvia Federici é professora emérita da Universidade de Hofstra em Nova York Além de Calibã e a bruxa escreveu o livro Revolution at Point Zero Housework Reproduction and Feminist Strugle Revolução em ponto zero trabalho doméstico reprodução e luta feminista inédito no Brasil e possui inúmeros artigos sobre feminismo colonialismo globalização trabalho precário commons e outros temas correlatos FOTO JULIANA BITTENCOURT 424 425 IMAGENS O Coletivo Sycorax e a Editora Elefante agradecem a editora Autonomedia pela cessão de toda a base gráfca que acom panha a presente edição A editora Autonomedia publicou a primeira edição deste livro em inglês em 2004 É um projeto sem ânimo de lucro de trabalho voluntário e para o inte resse geral Agradecemos às seguintes pessoas e entidades por facilitar o exercício do uso legítimo das imagens como estabelece o domínio público p 6 Tacuinum Sanitatis MS Viena Osterreichische Nationalbibliothek Viena Sally Fox 1985 p 24 JeanMichael Sallaman 1995 p 39 e 40 British Library Londres p 46 British Museum Londres p 65 Collected Works of Christine de Pisan MS Harley 4431 British Library Londres Sally Fox 1985 p 67 LaurosGiraudon Art Resource Nova York Richard L Greaves eds 1992 p 71 Hans Peter Duerr 1991 p 77 Peter Cornej 1993 p 81 Hans Peter Duerr 1991 p 86 Paul Carus 1990 p 91 Bibliothèque nationale de France Paris Marvin Perry eds 1981 p 109 e 110 Cunningham e Grell 2000 p 124 Hugh TrevorRoper 1968 p 127 Tommaso La Rocca ed 1990 p 128 Paolo Thea 1998 p 131 Henry Kamen 1972 p 137 Hans Peter Duerr 1991 p 142 Cunningham e Grell 2000 p 157 Staatliche Museen Preussischer Kulturbesitz Berlim Richard L Greaves eds 1992 p 161 Holinsheds Chronicles 1577 Henry Kamen 1972 p 172 e 175 Mendelson e Crawford 1998 p 183 e 185 Lujo Bassermann 1967 p186 B Murstein 1974 p189 Olwen Hufton 1993 p 201 Mendelson e Crawford 1998 p 204 David Underdown 1985a p 217 Verene Shepherd 1999 p 224 226 e 227 Barbara Bush 1990 p 235 e 236 JeanMichel Sallaman 1995 p 172 C D OMalley 1964 p 244 Bibliothèque nationale de France Paris p 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Publications Calibã e a bruxa mulheres corpo e acumulação primitiva cc Silvia Federici 2017 cc Editora Elefante 2017 cc Tradução Coletivo Sycorax 2017 Título original Caliban and the Witch Women the Body and Primitive Accumulation cc Autonomedia 2004 Você tem a liberdade de compartilhar copiar distribuir e transmitir esta obra desde que cite a autoria e não faça uso comercial Primeira edição julho de 2017 Impresso no Brasil TRADUÇÃO COLETIVO SYCORAX ALINE SODRÉ CECÍLIA ROSAS JULIANA BITTENCOURT LEILA GIOVANA IZIDORO LIA URBINI SHISLENI DE OLIVEIRAMACEDO COORDENAÇÃO TADEU BREDA PREPARAÇÃO COLETIVO SYCORAX TADEU BREDA REVISÃO COLETIVO SYCORAX TADEU BREDA PROJETO GRÁFICO BIANCA OLIVEIRA KAREN KA COLABORADORES GUSTAVO MOTTA MARCOS VISNADI MARIANA KINJO NINA MEIRELLES RAQUEL PARRINE Coletivo Sycorax coletivosycoraxorg coletivosycoraxgmailcom Editora Elefante editoraelefantecombr editoraelefantegmailcom fbcomeditoraelefante Esta publicação foi realizada com o apoio da Fundação Rosa Luxemburgo com fundos do Ministério Federal para a Cooperação Econômica e de Desenvolvimento da Alemanha bmz Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Angélica Ilacqua CRB87057 Federici Silvia Calibã e a bruxa mulheres corpo e acumulação primitiva Sivia Federici Título original Caliban and the Witch Women the Body and Primitive Accumulation Tradução coletivo Sycorax São Paulo Elefante 2017 464 p 145 x 23 cm ISBN 9788593115035 1 Mulheres Europa Condições sociais 2 Mulheres Europa Condições econômicas 3 Capitalismo Europa História 4 Feminismo I Título II Coletivo Sycorax 170934 CDD 30542094 Índices para catálogo sistemático 1 Mulheres Europa História CALIBAJAQUETAƒ6indd 46 290617 1342 FONTES Guardian Akhand PAPEL Supremo alta alvura 300 gm2 e Pólen soft 70 gm2 IMPRESSÃO RR Donnelley TIRAGEM 3000 exemplares EDITORAELEFANTECOMBR ISBN 9788593115035 SILVIA FEDERICI SILVIA FEDERICI As acadêmicas feministas desenvolveram um esquema interpretativo que lança bastante luz sobre duas questões históricas muito importantes como explicar a execução de centenas de milhares de bruxas no começo da Era Moderna e por que o surgimento do capitalismo coincide com essa guerra contra as mulheres Segundo esse esquema a caça às bruxas buscou destruir o controle que as mulheres haviam exercido sobre sua própria função reprodutiva e preparou o terreno para o desenvolvimento de um regime patriarcal mais opressor Essa interpretação também defende que a caça às bruxas tinha raízes nas transformações sociais que acompanharam o surgimento do capitalismo No entanto as circunstâncias históricas específicas em que a perseguição às bruxas se desenvolveu e as razões pelas quais o surgimento do capitalismo exigiu um ataque genocida contra as mulheres ainda não tinham sido investigadas Essa é a tarefa que empreendo em Calibã e a bruxa começando pela análise da caça às bruxas no contexto das crises demográfica e econômica europeias dos séculos XVI e XVII e das políticas de terra e trabalho da época mercantilista Meu esforço aqui é apenas um esboço da pesquisa que seria necessária para esclarecer as conexões mencionadas e especialmente a relação entre a caça às bruxas e o desenvolvimento contemporâneo de uma nova divisão sexual do trabalho que confinou as mulheres ao trabalho reprodutivo No entanto convém demonstrar que a perseguição às bruxas assim como o tráfico de escravos e os cercamentos constituiu um aspecto central da acumulação e da formação do proletariado moderno tanto na Europa como no Novo Mundo SILVIA FEDERICI TRADUÇÃO COLETIVO SYCORAX MULHERES CORPO E ACUMULAÇÃO PRIMITIVA MULHERES CORPO E ACUMULAÇÃO PRIMITIVA CALIBÃ E A BRUXA CALIBAJAQUETAƒ6indd 13 290617 1342 RESENHA CRITICA Calibã e a bruxa mulheres corpo e acumulação primitiva de Silvia Federici FEDERICI Silvia Calibã e a bruxa mulheres corpo e acumulação primitiva Rio de Janeiro Editora Elefante 2017 Federici é uma escritora militante feminista O livro intitulado Calibã e a bruxa é uma forma de demonstrar a libertação das mulheres em relação as imposições sociais masculinas O principal objetivo encontrado no livro é a análise histórica que envolve a discriminação de gênero o capitalismo e como a sociedade é firmada em ideais construídos em torno de distinções sexuais O capitulo quatro a grande caçada às bruxas na Europa demonstrando ao longo da leitura como essa parte da história é deixada de lado nos estudos sobre a Europa a autora destaca que as principais vítimas foram mulheres camponesas pobres o que ressalta que essa caça não foi motivada por dinheiro mas sim por preconceito o que muitas vezes explica o fato de serem abandonadas por historiadores representando como a desigualdade social esteve presente não somente nos dias atuais como também em boa parte dos fatos históricos globais Para a autora o livro foi criado para o leitor identificar como os processos históricos entorno das relações sociais e como elas eram estruturadas Federici usa o trabalho de Marx para se basear em muitos trechos do capitulo o trabalho dessas mulheres é visto como uma mão de obra inútil ou menos vantajoso do que os dos homens nesse sentido a autora desperta a curiosidade do leitor ao destacar as relações de consumo e o trabalho escravo na colheita de café e cana de açúcar Um fato interessante sobre a caçada as bruxas trazida pela autora é que os caçadores eram em sua totalidade homens considerados dignos e com heranças grandiosas no período do século XVI essas mulheres denominadas de bruxas eram consideradas pessoas que sofriam de alucinações essas alucinações se tratavam de questões relacionadas a desigualdade de gênero essa perseguição é tratada no capitulo por Federici como uma forma de terapia social todas aquelas que não seguiam padrões ou pensassem diferente das ordens masculinas eram taxadas por bruxas esse retrato da sociedade durante esse século foi tratado com grande maestria e objetividade por parte da autora destacando os pontos necessários históricos para ilustrar ao leitor como esse período era cruel e preconceituoso com as mulheres Essa caçada as bruxas ainda são definidas pela obra The History of Psychiatry A história da psiquiatria de F G as bruxas acusadas frequentemente davam razão a seus perseguidores Uma bruxa mitigava sua culpa confessando suas fantasias sexuais em audiência pública ao mesmo tempo alcançava certa gratificação erótica ao se ater a todos os detalhes diante de seus acusadores masculinos Estas mulheres gravemente perturbadas do ponto de vista emocional eram particularmente suscetíveis à sugestão de que abrigavam demônios e diabos e estavam dispostas a confessar sua convivência com espíritos malignos da mesma maneira que hoje em dia os indivíduos perturbados influenciados pelas manchetes dos jornais fantasiam serem assassinos procurados Nesse sentido observase que a caça às bruxas era uma forma de punir as vítimas e colocar nas mesmas a culpa por tal punição a autora ressalta a importância do movimento feminista para proporcionar o fim da caça às bruxas uma vez que milhares de mulheres foram torturadas e assassinadas por métodos como enforcamento queimadas pelo simples fato de pensarem diferentes dos homens ou não estarem dispostas a seguirem o conservadorismo patriarcal presente no período a caça às bruxas é conhecida como um processo de extermínio e colonização Tal período foi marcado como um dos acontecimentos importantes no desenvolvimento do proletariado o capitulo e o livro de Federici o capitalismo é ressaltado como uma espécie de transição a autora demonstra como essas relações são importantes a autora foi motivada a escrever esse livro principalmente por ser importante apresentar o capitalismo com base nas visões feministas e também pelo fato das mulheres serem sempre colocadas como figuras de loucas e com tratamentos inferiores aos homens por meio deste livro é visto que os preceitos em volta da desigualdade de gênero sempre estiveram presentes ao longo da história associados principalmente a questões capitalistas A autora ainda analisa a transição do feudalismo para o capitalismo como as mulheres enxergaram essa transição e como a cumulação primitiva estava associada aos corpos femininos e o marco conceitual feminista e marxista presente na leitura A caça as bruxas é um retrato da divisão social entre mulheres e homens onde coloca esses homens como figuras que impuseram poder e as mulheres como representantes da subordinação esses elementos são destacados pela autora como uma forma de ilustrar ao leitor como a reprodução social e como essa caçada contribuiu para o proletariado moderno dos dias atuais Federici usou de muitas ligações entre passado e presente ao longo de seu livro esse traço é de suma importância para chegar ao ponto principal do livro como a religião contribuiu fortemente para esse genocídio A igreja católica contribuiu com ideais sobre essas bruxas estimulando diretamente tal perseguição nesse ponto qualquer mulher vista como imoral não digna revoltada ou até mesmo aquelas que nasciam de forma diferente do habitual eram queimadas em praça pública muito se conhece desse período como a parte de castigar as bruxas isso ressalta como a igreja durante um longo período parecia odiar as mulheres a autora ainda argumenta que não somente a igreja católica mantinha acaçá as bruxas como uma forma de castigo como também os protestantes esses dois grupos se uniram para compartilhar essa ideologia baseada em discriminação e preconceito esse acontecimento como ressalta a autora foi o primeiro laço político entre essas nações europeias Observase que o preconceito é o principal motivador dessa caçada A autora ainda indigna os questionamentos Que medos instigaram semelhante política combinada de genocídio Por que se desencadeou semelhante violência E por que foram as mulheres seus alvos principais Questionamentos que levam ao leitor a refletir sobre o papel da mulher na história pensando nisso observouse que a sociedade capitalista viu as mulheres muitas vezes como produtos pertencentes a função de trabalho com uma visão acerca do destino Os corpos femininos eram vistos tantas vezes como um domínio masculino pedaços de carne manipulados por homens e quando esses corpos tomaram consciência de seu poder não aceitaram mais serem dominadas e mantadas por isso a caçada as bruxas representam a primeira luta feministas no mundo a autora usou de exemplos práticos para fundamentar seu entendimento o que passa uma maior segurança ao leitor sobre a veracidade dos fatos apresentados no decorrer da leitura A partir daí a autora passou a analisar como a política dos corpos em relação ao contexto feminista revolucionou uma ideia filosófica e política presente na época o que ressaltou hoje a importância de valorizar o corpo feminino e como a autora desempenhou um papel primordial na possibilidade de debater sobre as ideias negativas acarretadas dentro da sombra de feminilidade que obrigatoriamente as mulheres deveriam possuir As mulheres na visão de Federici significam uma parte de suma importância dentro da história global como também uma exploração de considerar os reflexos dessas lutas durante a caçada das bruxas até os dias atuais com o feminismo moderno muitas vezes as mulheres eram associadas a figuras diabólicas o corpo feminino era visto como uma demonstração de tentação e as mulheres que não seguiam as imposições do que era tratado como imoralidade eram jogadas na fogueira uma vez que essas eram a personificação de tudo que a igreja abominava e considerava riscos ao crescimento da religião e dominação masculina Essa perseguição as bruxas relevada pela autora ainda demonstra como a história é preenchida por momentos sombrios o livro enfatiza principalmente a busca por igualdade de gênero e como essa perseguição deve ser vista como um processo de missiologia de gênero o entendimento dos povos antigos é que as mulheres estariam mais suscetíveis a se envolver com bruxaria e magias porque estavam sempre correndo riscos de entrar em colapsos Em resumo as páginas trazem um estudo quanto ao capitalismo preconceito e transição de tempos históricos importantes que muitas vezes são esquecidos por quem conta a história Federici trouxe ideias sobre essas caçadas as mulheres demonstrando ao leitor o lado escuro que existe em todo contexto de lutas por direitos iguais REFERENCIAS CHRISTIANSEN Rupert 1994 Paris Babylon The Story of the Paris Commune Nova York Viking ed bras Paris Babilônia a capital FEDERICI Silvia Calibã e a bruxa mulheres corpo e acumulação primitiva Rio de Janeiro Editora Elefante 2017 Oct 11 2023 Plagiarism Scan Report Excluded URL None Content Checked for Plagiarism Os corpos femininos eram vistos tantas vezes como um domínio masculino pedaços de carne manipulados por homens e quando esses corpos tomaram consciência de seu poder não aceitaram mais serem dominadas e mantadas por isso a caçada as bruxas representam a primeira luta feministas no mundo a autora usou de exemplos práticos para fundamentar seu entendimento o que passa uma maior segurança ao leitor sobre a veracidade dos fatos apresentados no decorrer da leitura A partir daí a autora passou a analisar como a política dos corpos em relação ao contexto feminista revolucionou uma ideia losóca e política presente na época o que ressaltou hoje a importância de valorizar o corpo feminino e como a autora desempenhou um papel primordial na possibilidade de debater sobre as ideias negativas acarretadas dentro da sombra de feminilidade que obrigatoriamente as mulheres deveriam possuir As mulheres na visão de Federici signicam uma parte de suma importância dentro da história global como também uma exploração de considerar os reexos dessas lutas durante a caçada das bruxas até os dias atuais com o feminismo moderno muitas vezes as mulheres eram associadas a guras diabólicas o corpo feminino era visto como uma demonstração de tentação e as mulheres que não seguiam as imposições do que era tratado como imoralidade eram jogadas na fogueira uma vez que essas eram a personicação de tudo que a igreja abominava e considerava riscos ao crescimento da religião e dominação masculina Essa perseguição as bruxas relevada pela autora ainda demonstra como a história é preenchida por momentos sombrios o livro enfatiza principalmente a busca por igualdade de gênero e como essa perseguição deve ser vista como um processo de missiologia de gênero o entendimento dos povos antigos é que as mulheres estariam mais suscetíveis a se envolver com bruxaria e magias porque estavam sempre correndo riscos de entrar em colapsos Em resumo as páginas trazem um estudo quanto ao capitalismo preconceito e transição de tempos históricos importantes que muitas vezes são esquecidos por quem conta a história Federici trouxe ideias sobre essas caçadas as mulheres demonstrando ao leitor o lado escuro que existe em todo contexto de lutas por direitos iguais Nesse sentido observase que a caça às bruxas era uma forma de punir as vítimas e colocar nas mesmas a culpa por tal punição a autora ressalta a importância do movimento feminista para proporcionar o m da caça às bruxas uma vez que milhares de mulheres foram torturadas e assassinadas por métodos como enforcamento 0 Plagiarized 100 Unique Characters6263 Words992 Sentences36 Speak Time 8 Min Page 1 of 3 queimadas pelo simples fato de pensarem diferentes dos homens ou não estarem dispostas a seguirem o conservadorismo patriarcal presente no período a caça às bruxas é conhecida como um processo de extermínio e colonização Tal período foi marcado como um dos acontecimentos importantes no desenvolvimento do proletariado o capitulo e o livro de Federici o capitalismo é ressaltado como uma espécie de transição a autora demonstra como essas relações são importantes a autora foi motivada a escrever esse livro principalmente por ser importante apresentar o capitalismo com base nas visões feministas e também pelo fato das mulheres serem sempre colocadas como guras de loucas e com tratamentos inferiores aos homens por meio deste livro é visto que os preceitos em volta da desigualdade de gênero sempre estiveram presentes ao longo da história associados principalmente a questões capitalistas A autora ainda analisa a transição do feudalismo para o capitalismo como as mulheres enxergaram essa transição e como a cumulação primitiva estava associada aos corpos femininos e o marco conceitual feminista e marxista presente na leitura A caça as bruxas é um retrato da divisão social entre mulheres e homens onde coloca esses homens como guras que impuseram poder e as mulheres como representantes da subordinação esses elementos são destacados pela autora como uma forma de ilustrar ao leitor como a reprodução social e como essa caçada contribuiu para o proletariado moderno dos dias atuais Federici usou de muitas ligações entre passado e presente ao longo de seu livro esse traço é de suma importância para chegar ao ponto principal do livro como a religião contribuiu fortemente para esse genocídio A igreja católica contribuiu com ideais sobre essas bruxas estimulando diretamente tal perseguição nesse ponto qualquer mulher vista como imoral não digna revoltada ou até mesmo aquelas que nasciam de forma diferente do habitual eram queimadas em praça pública muito se conhece desse período como a parte de castigar as bruxas isso ressalta como a igreja durante um longo período parecia odiar as mulheres a autora ainda argumenta que não somente a igreja católica mantinha acaçá as bruxas como uma forma de castigo como também os protestantes esses dois grupos se uniram para compartilhar essa ideologia baseada em discriminação e preconceito esse acontecimento como Federici é uma escritora militante feminista O livro intitulado Calibã e a bruxa é uma forma de demonstrar a libertação das mulheres em relação as imposições sociais masculinas O principal objetivo encontrado no livro é a análise histórica que envolve a discriminação de gênero o capitalismo e como a sociedade é rmada em ideais construídos em torno de distinções sexuais O capitulo quatro a grande caçada às bruxas na Europa demonstrando ao longo da leitura como essa parte da história é deixada de lado nos estudos sobre a Europa a autora destaca que as principais vítimas foram mulheres camponesas pobres o que ressalta que essa caça não foi motivada por dinheiro mas sim por preconceito o que muitas vezes explica o fato de serem abandonadas por historiadores representando como a desigualdade social esteve presente não somente nos dias atuais como também em boa parte dos fatos históricos globais Para a autora o livro foi criado para o leitor identicar como os processos históricos Page 2 of 3 entorno das relações sociais e como elas eram estruturadas Federici usa o trabalho de Marx para se basear em muitos trechos do capitulo o trabalho dessas mulheres é visto como uma mão de obra inútil ou menos vantajoso do que os dos ho Sources Home Blog Testimonials About Us Privacy Policy Copyright 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