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Tratado da natureza humana David Hume DavidHume Tratado da natureza humana Uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais Tradução Déborah Danowski Elaboração dos índices analítico e onomástico Amandio de Jesus Gomes 2ª edição revista e ampliada editora unesp Título original em inglês A Treatise of Human Nature 2000 da tradução brasileira Fundação Editora da UNESP FEU Praça da Sé 108 01001900 São Paulo SP Tel Oxxl 1 32427171 Fax Oxxl 1 32427172 wwweditoraunespcombr feueditora unesp br H91t 2ed CIP Brasil Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ Hume David 17111776 Tratado da natureza humana uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais David Hume tradução Débora Danowski 2ed rev e ampliada São Paulo Editora UNESP 2009 Tradução de A treatise of human nature Apêndice ISBN 9788571399013 1 Teoria do conhecimento 2 Filosofia inglesa 3 Filosofia moderna 1 Título 090081 Editora afiliada Asociaciôn de Editoiiales Universitalias de América Latina y el Cartbe Associação Brasileira de Editoras Unlversitãrlas CDD 121 CDU 165 Sobre a tradução 7 Nota à primeira edição 12 Nota à segunda edição 14 Livro 1 Do entendimento 15 Livro 2 Das paixões 307 Livro 3 Da moral 491 Apêndice 661 Sinopse 679 Notas e variantes 701 Índice geral 705 Índice analítico 713 Índice onomástico 757 Sumário 5 Sobre a tradução David Hume 17111776 terminou de escrever seu primeiro li vro o Tratado da natureza humana aos 27 anos de idade Os três vo lumes que o compunham foram publicados em 1739 Livros 1 e 2 e em 1740 Livro 3 juntamente com o Apêndice passando pratica mente despercebidos O jovem filósofo escocês que havia deposita do grandes esperanças em sua obra fica profundamente decepcio nado o livro diz ele no pequeno texto autobiográfico My own life 1776 já saiu da gráfica natimorto Não teve sequer o mérito de despertar murmurações entre os zelotes Hume entretanto estava seguro de que seu fracasso se devia mais à maneira que à matéria e que havia sido sobretudo incompreendido Por isso já em 1739 ou início de 1740 em resposta às críticas dos leitores que haviam consi derado os dois primeiros volumes demasiadamente difíceis ele pu blica de forma anônima e na terceira pessoa uma Sinopse Abstract do Tratado em que tenta explicar mais claramente o argumento prin cipal de seu livro Mas isso não muda muita coisa e alguns anos mais tarde Hume já quase não fala mais do Tratado dedicandose antes à publicação de três obras distintas Investigação sobre o entendi mento humano 1748 Investigação sobre os princípios da moral 1751 e Dissertação sobre as paixões 1757 Sob a nova maneira entretanto é a mesma matéria que ali se encontra com muito poucas modifi 7 Tratado da natureza humana cações substanciais E embora o próprio autor o tenha posto em se gundo plano como um mero escrito de juventude o Tratado perma nece certamente sua obra mais rica e complexa Semelhante complexidade como se poderia esperar torna a tra dução do Tratado tarefa cheia de dificuldades Inúmeras vezes tive de resistir ao impulso de acumular notas explicativas ou tecer conside rações sobre trechos obscuros ou ambíguos Dada a natureza da pre sente edição procurei limitar minhas notas aos casos em que a solu ção encontrada na tradução perde algo da precisão complicação ou mesmo ambigüidade do original Essas notas encontramse todas em pé de página com exceção de duas que por serem demasiadamen te longas e gerais apresento a seguir 1 Podemos encontrar ao longo do Tratado uma distinção entre os termos conjunction conjunção e connexion conexão A conjun ção em geral se refere a uma mera proximidade espacial ou tempo ral ao passo que a conexão supõe um princípio de união e um tra balho da imaginação Há dois bons exemplos disso no Livro 1 Já na Seção 1 da Parte 1 p25 a conjunção constante entre nossas im pressões e nossas idéias nos permite concluir a existência de uma co nexão entre os dois tipos de percepções E na Parte 3 toda a análise da relação causal mostra que a conexão necessária entre causa e efeito supõe a existência de uma conjunção constante entre duas es pécies de objetos Procurando manter essa distinção embora Hume raramente seja muito rigoroso quanto aos termos que emprega tra duzi sempre conjunction por conjunção e connexion por cone xão Entretanto algumas formas derivadas de conjunction como por exemplo conjoined requerem uma outra solução Assim utili zei três formas básicas para traduzir o termo conjoined sempre que possível utilizei a expressão em conjunção com quando isso não me pareceu estilisticamente adequado empreguei o termo conjuga do e suas variações conjugada conjugar etc Mas em alguns ca sos conjugado pode conotar um vínculo maior que o de uma mera conjunção espacial ou temporal Recorri então à forma mais simples 8 Sobre a tradução juntar cf p 108 e p 124 Finalmente em alguns raros casos tive de apelar ainda para outras soluções porém acredito sem trair o sentido do texto 2 Feeling é talvez o termo utilizado por Hume cuja tradução é a mais problemática Feeling pode significar sentir em oposição a pensar mas também quando usado como substantivo a ra zão ou pensamento aquilo que sinto uma maneira peculiar de sentir a faculdade de sentir dessa maneira peculiar uma impressão um sentimento ou uma sensação além de tato O ideal evidentemen te seria encontrar um termo diferente para exprimir cada um desses significados Entretanto embora essa tarefa seja razoavelmente sim ples no caso de tato não é isso o que ocorre na maioria das vezes De fato o próprio Hume com freqüência parece usar como equivalen tes palavras como sentiment feeling sensation e até impression Na página 133 por exemplo ele fala sucessivamente e um tanto in distintamente em sensation taste sentiment e feeling Michel Malherbe em La philosophie empiriste de David Hume Paris J Vrin 1984 notou a dificuldade da tradução do termo feeling e as diversas tentativas de so lução adotadas por autores de língua francesa ver p284 nota 39 Te mos assim maneira de sentir sentimento consciência moral impressão sensação O próprio Malherbe após expor as desvan tagens maiores ou menores de todas essas alternativas oscila em seu texto entre le sentir e le feeling mantendo neste último caso o ter mo em inglês como o fazem aliás outros comentadores de língua francesa Infelizmente essas duas soluções tampouco me parecem adequadas ao menos em uma tradução por uma razão estilística e também especificamente no caso da primeira solução porque esta ríamos excluindo aquilo que é sentido por esse sentir Em vista de todas essas dificuldades a solução que adotei que tam bém é imperfeita mas me pareceu a melhor foi alternar entre o ver bo sentir por exemplo quando feeling se opõe a thinking fór mulas como é sentida são sentidas de maneira diferente sempre que o original põe algo semelhante a it feels different ou they are different 9 Tratado da natureza humana to the feeling sentimento nos casos em que o sentido de feeling me pareceu equivalente ao de sentiment e em que além disso os dois ter mos não foram usados conjuntamente como ocorre com freqüência e finalmente sensação Essas três últimas soluções repito foram rejeitadas por Malherbe Sentimento porque Si le sentiment a toujours sa racine dans le feeling et de ce fait précede lentendement sil nest pas une opération de la pensée néanmoins il est dessence judicatoire maneira de sen tir porque ela suggere en effet une différence entre le sentir et sa maniere qui nexiste pas En toute rigueur la maniere du sentir est espace et le temps e sensação puisquil y a des impressions de réflexion Essa avaliação é perfeitamente legítima mas sobretudo nos dois primeiros casos nossa concordância com ela não impede que adotemos essas soluções de uma forma discriminada e não generalizada Quanto a sensação ressalvo que a nota em que Malherbe faz essas considerações ocorre por ocasião de sua análise acerca da parte inicial do Tratado em que Hume fala em sensation para se referir exclusivamente às impres sões de sensação de modo diferente do que ocorre por exemplo a propósito das paixões quando Hume fala em sensações sensations das paixões Além disso pareceme que em português a palavra sen sação não tem necessariamente de estar ligada apenas às impressões sensíveis Énos perfeitamente compreensível falar por exemplo na sensação de uma paixão ou na sensação peculiar de uma idéia De toda forma para evitar malentendidos sempre que utilizar mos a palavra sensação para verter feeling acrescentaremos en tre colchetes o termo em inglês feeling O mesmo procedimento será adotado quando feeling for traduzido por sentimento O leitor sa berá portanto que sempre que sensação ou sentimento aparece rem sem qualquer indicação o original diz respectivamente sensation e sentiment Da mesma forma para não sobrecarregar em demasia o texto não faremos exceto nas primeiras ocorrências nenhuma indicação ao original feeling quando for possível utilizar o verbo sentir ou a expressão maneira diferente de sentir ou equivalente nem quando empregarmos o par sensação ou sentimento que sem pre traduzirá a expressão feeling or sentiment 10 Sobre a tradução A presente tradução foi realizada com base na edição do texto ori ginal organizada em 1888 por L A SelbyBigge revista e modificada em 1978 por P H Nidditch A Treatise of Human Nature Clarendon Press Oxford Cotejei o original inglês com as traduções francesas de André Leroy Aubier Paris 1946 e para o terceiro livro de Philippe Saltel Garnier Flammarion Paris 1993 bem como com a tradução espanhola de Felix Duque Tecnos Madri 1992 Algumas notas explicativas por exemplo nomes completos de autores e obras men cionados por Hume basearamse em notas contidas nessas tradu ções Uma nova edição inglesa anotada e comentada por David Fate Norton e Mary Norton foi publicada quando esta tradução para o português estava já em fase de editoração A Treatise of Human Nature Oxford University Press Oxford 2000 Apesar do pouco tempo que me restava pude com base nela fazer pequenas retificações no tex to e complementar certas notas David Norton socorreume gentil mente em minha tentativa de compreender os motivos subjacentes a algumas decisões dessa nova edição enviandome um artigo que escreveu com Mary Norton Substantive differences between two texts of Humes Treatise Hume Studies nov 2000 XXVI2 24577 e discutindo comigo vários pontos que ainda me pareceram obscuros Além de ter podido recorrer a essas edições e traduções tive a sorte de contar com a ajuda de vários colegas no decorrer de meu tra balho Quero agradecer sobretudo a Eduardo Viveiros de Castro Luiz Carlos Pereira e Luiz Henrique Lopes dos Santos por suas muitas e preciosas sugestões Agradeço também por suas contribuições a Ana Lúcia de Lira Tavares Danilo Marcondes Fernando Rodrigues José Oscar de Almeida Marques Kátia Muricy Marina FrascaSpada Marina Velasco Michael Houseman Michael Wrigley Paulo Henrique Viana de Barros Peter Gow Plínio Smith e Renato Lessa 1 1 Nota à primeira edição Quando saiu a nova edição inglesa do Tratado da natureza huma na David Hume A Treatise of Human Nature ed David Fate Norton e Mary J Norton Oxford Philosophical Texts Oxford Oxford University Press 2000 tratase da edição completa para estudan tes mas seu texto será basicamente o mesmo usado na Clarendon Edition of the Works of David Hume edição crítica ainda em preparação vimonos diante de um dilema Há muito a edição de SelbyBigge Nidditch é a referência clássica para as três principais obras de Hume o Tratado a Investigação sobre o entendimento humano e a Investigação so bre os princípios da moral Ela é consultada pela maior parte dos estudio sos da filosofia de Hume e é à sua paginação que estes se remetem em seus próprios trabalhos A nova edição de Norton Norton en tretanto é excelente e não é nada improvável que venha a se tornar a nova fonte principal de referência Diante desses dois fatos que nos pareciam incontornáveis hesitávamos sobre a paginação que devería mos adotar Felizmente a solução não foi assim tão difícil A nova edi ção da Oxford procedeu a uma numeração dos parágrafos internos rio texto de Hume e foi também o que fizemos facilitando a referência pa dronizada ao texto independentemente da paginação adotada A numeração dos parágrafos entretanto gerou suas próprias difi culdades Parte do Apêndice é constituída de pequenos trechos que Hume recomendava que fossem inseridos em lugares específicos do Livro 1 do Tratado A edição de Norton Norton inseriu esses tre chos nos locais recomendados omitindoos do Apêndice Esse pro cedimento embora tenha a vantagem de facilitar a leitura impede o leitor de apreender este último texto em sua unidade tal como foi escrito por Hume e publicado originalmente Por isso decidimos mantêlo integralmente seguindo a edição de SelbyBiggeNidditch Com isso entretanto não podíamos respeitar a mesma numeração de parágrafos de Norton Norton A alternativa que encontramos foi inserir os devidos trechos no corpo do Livro 1 e repetilos no Apên dice preservando assim a unidade e integridade deste sem afetar a numeração correta dos parágrafos 12 Nota à primeira edição Restava ainda um problema entretanto Com a inserção dos tre chos do Apêndice no corpo do Livro 1 fazendo assim a numeração dos parágrafos coincidir exatamente com a da edição de Norton Norton tanto a edição para estudantes como a edição crítica vindoura criou se uma pequena defasagem em relação à edição de SelbyBigge Nidditch que não inclui esses trechos Por isso em cinco casos espe cíficos se o leitor quiser cotejar o texto da tradução ou o de Norton Norton aliás com o desta última edição deverá atentar para o seguinte 124 os parágrafos 32 e 33 da tradução correspondem aos pará grafos 31 e 32 em SBN 135 os parágrafos 5 a 7 da tradução correspondem aos parágra fos 4 a 6 em SBN 13 7 o parágrafo 8 da tradução corresponde ao parágrafo 7 em SBN 13 10 os parágrafos 1 O a 12 da tradução fazem parte do Apêndi ce e portanto não estão em SBN O parágrafo 13 corresponde ao pará grafo 10 em SBN e foi excluído por Norton Norton Para compreen der melhor estas últimas inclusões e exclusões o leitor pode consultar a nota da tradutora que antecede o parágrafo 1 O da mesma seção 13 14 os parágrafos 13 a 36 da tradução correspondem aos pa rágrafos 12 a 35 em SBN Por outro lado a manutenção do Apêndice em sua íntegra gerou uma discrepância entre a paragrafação desse texto em nossa edição e na nova edição da Oxford Assim os parágrafos 18 a 30 da tradução correspondem aos parágrafos 1Oa 22 de Norton Norton Finalmen te uma última diferença aparecerá dentro da nota de Hume a 3237 decorrente de uma alteração na paragrafação apenas indicada na edi ção de SelbyBiggeNidditch mas adotada na edição Norton Norton e em nossa tradução Outros esclarecimentos Os trechos do apêndice que foram inseridos no corpo do texto vêm entre colchetes Tanto as notas de Hume como as da tradutora aparecem em pé de página aquelas numeradas dentro de cada parte e estas marcadas por asteriscos As seguintes abreviaturas foram utilizadas nas notas da tradutora 13 NNOPT o texto completo para estudantes de A Treatise of Human Nature editado por David Fate Norton e Mary J Norton dentro da coleção Oxford Philosophical Texts Oxford Oxford University Press 2000 SBN a edição de SelbyBigge 1888 revista por P H Nidditch em 1976 Oxford Clarendon Press 1978 Nota à segunda edição Esta segunda edição do Tratado da Natureza Humana sofreu numerosas modificações em relação à anterior a maioria correções de cunho apenas tipográfico ou estilístico porém em certos casos razoavelmente importantes Destas últimas algumas são fruto de discussões com colegas entre os quais agradeço principalmente a Lívia Guimarães e a todos que participaram do Colóquio Hume por ela organizado em julho de 2002 no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais Além disso esta edição inclui um índice analítico e um índice onomástico cuidadosamente elaborados por Amandio de Jesus Gomes que assim nos redime do pecado de têlos omitido na primeira edição Agradeço também a Amandio a sugestão de algumas correções importantes à tradução Em meados de 2007 veio à luz em dois volumes a edição crítica do Tratado da Natureza Humana editada por David Fate e Mary J Norton David Hume A Treatise of Human Natureza Oxford Clarendon Press 2007 Infelizmente problemas editoriais tornaram impossível atualizar as correções aqui contidas para levar em conta tal como seria desejável esta nova e muito provavelmente definitiva edição Mal redimidos de um pecado portanto cometemos outro Esperamos poder desfazêlo num futuro próximo Finalmente passouse toda a numeração de livros partes e seções para algarismos arábicos o que conjugado com a numeração dos parágrafos já adotada na primeira edição deverá facilitar ainda mais as futuras referências ao texto da tradução brasileira A tradutora Tratado da natureza humana Uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais Rara tempornm felicitas ubi sentire qua velis qua sentias dicere licet Tácito Livro 1 Do entendimento Tácito Histórias 11 Rara felicidade de uma época em que se pode pensar o que se quer e dizer o que se pensa NT Advertência Meu objetivo no presente trabalho está explicado de maneira suficiente na Introdução O leitor deve apenas ter em mente que nem todos os temas que ali me propus tratar são abordados nestes dois volumes Os temas do en tendimento e das paixões compõem por si sós uma seqüência completa de racio cínios e minha intenção era tirar vantagem dessa divisão natural a fim de testar o gosto do público Se eu tiver a sorte de ser bemsucedido procederei ao exame da moral da política e da crítica o que completará este Tratado da natureza humana Considero a aprovação do público a maior recompensa que posso receber por meus esforças mas estou determinado a tomar seu juízo qualquer que seja ele como meu melhor ensinamento Introdução 1 Nada é mais usual e mais natural para aqueles que pretendem oferecer ao mundo novas descobertas filosóficas e científicas que in sinuar elogios a seu próprio sistema depreciando todos os que foram propostos anteriormente De fato se se contentassem em lamentar a ignorância que ainda nos envolve nas mais importantes questões que podem enfrentar o tribunal da razão humana seriam poucos os que tendo alguma familiaridade com as ciências não concordariam imediatamente com eles O homem dotado de discernimento e de saber percebe facilmente a fragilidade do fundamento até mesmo daque les sistemas mais bem aceitos e com as maiores pretensões de con ter raciocínios precises e profundos Princípios acolhidos com base na confiança conseqüências deles deduzidas de maneira defeituosa falta de coerência entre as partes e de evidência no todo tudo isso podese encontrar nos sistemas dos mais eminentes filósofos e pa rece cobrir de opróbrio a própria filosofia 2 Tampouco é necessário um conhecimento muito profundo para se descobrir quão imperfeita é a atual condição de nossas ciências Mesmo a plebe lá fora é capaz de julgar pelo barulho e vozerio que ouve que nem tudo vai bem aqui dentro Não há nada que não seja ob jeto de discussão e sobre o qual os estudiosos não manifestem opiniões contrárias A questão mais trivial não escapa à nossa controvérsia e não 19 Tratado da natureza humana somos capazes de produzir nenhuma certeza a respeito das mais im portantes Multiplicamse as disputas como se tudo fora incerto e essas disputas são conduzidas da maneira mais acalorada como se tudo fora certo Em meio a todo esse alvoroço não é a razão que con quista os louros mas a eloqüência e ninguém precisa ter receio de não encontrar seguidores para suas hipóteses por mais extravagan tes que elas sejam se for hábil o bastante para pintálas em cores atraen tes A vitória não é alcançada pelos combatentes que manejam o chuço e a espada mas pelos corneteiros tamborileiros e demais músicos do exército 3 É daí que surge em minha opinião o preconceito comum con tra todo tipo de raciocínio metafísico mesmo por parte daqueles que se dizem doutos e que costumam avaliar de maneira justa todos os ou tros gêneros da literatura Entendem eles por raciocínio metafísico não os raciocínios de um ramo particular da ciência mas qualquer espécie de argumento que seja de alguma forma abstruso e requeira alguma atenção para ser compreendido É tão freqüente ver nossos esforços desperdiçados em tais investigações que costumamos rejeitálas sem hesitação decidindo que se não podemos deixar deser vítimas de erros e ilusões então estes deverão ao menos ser naturais e agradáveis E realmente nada a não ser o mais determinado ceticis mo juntamente com um elevado grau de indolência pode justificar tal aversão à metafísica Pois se a verdade está ao alcance da capacidade humana é certo que ela deve se esconder em algum lugar muito pro fundo e abstruso Esperar alcançála sem grande esforço enquanto os maiores gênios falharam mesmo ao cabo das piores dificuldades é uma atitude que com toda razão deve ser considerada bastante vã e presunçosa De minha parte não tenho a pretensão de que a filoso fia aqui desenvolvida goze de tal privilégio se fosse tão fácil e óbvia aliás isso seria para mim um forte motivo para se suspeitar dela 4 É evidente que todas as ciências têm uma relação maior ou me nor com a natureza humana e por mais que alguma dentre elas pos sa parecer se afastar dessa natureza a ela sempre retornará por um 20 Introdução caminho ou outro Mesmo a matemática a filosofia da natureza e a re ligião natural dependem em certa medida da ciência do HOMEM pois são objetos do conhecimento dos homens que as julgam por meio de seus poderes e faculdades É impossível dizer que transformações e melhoramentos seríamos capazes de operar nessas ciências se co nhecêssemos plenamente a extensão e a força do entendimento hu mano e se pudéssemos explicar a natureza das idéias que emprega mos bem como das operações que realizamos em nossos raciocínios Tais melhoramentos seriam sobretudo bemvindos no caso da religião natural que não se contenta em nos instruir sobre a natureza dos poderes superiores mas vai além considerando ainda as disposições desses poderes em relação a nós assim como nossos deveres para com eles Em conseqüência disso nós não somos simplesmente os seres que raciocinam mas também um dos objetos acerca dos quais raciocinamos 5 Se portanto as ciências da matemática filosofia da natureza e re ligião natural mostram tal dependência em relação ao conhecimento do homem o que se pode esperar das outras ciências cuja conexão com a natureza humana é ainda mais estreita e íntima A única fina lidade da lógica é explicar os princípios e operações de nossa facul dade de raciocínio e a natureza de nossas idéias a moral e a crítica tra tam de nossos gostos e sentimentos e a política considera os homens enquanto unidos em sociedade e dependentes uns dos outros Essas quatro ciências lógica moral crítica e política compreendem quase tudo que possamos ter algum interesse em conhecer ou quase tudo que possa servir para aperfeiçoar ou adornar a mente humana 6 Eis pois o único recurso capaz de conduzir nossas investigações filosóficas ao sucesso abandonar o método moroso e entediante que seguimos até agora e ao invés de tomar vez por outra um castelo ou aldeia na fronteira marchar diretamente para a capital ou centro des sas ciências para a própria natureza humana estando nós de posse desta podemos esperar uma vitória fácil em todos os outros terrenos Partindo de tal posição poderemos estender nossas conquistas a to das as ciências que concernem de perto à vida humana e então pro 2 1 Tratado da natureza humana ceder calmamente à investigação mais completa daquelas que são ob jetos da pura curiosidade Não existe nenhuma questão importante cuja decisão não esteja compreendida na ciência do homem e não existe nenhuma que possa ser decidida com alguma certeza antes de conhe cermos essa ciência Portanto ao pretender explicar os princípios da natureza humana estamos de fato propondo um sistema completo das ciências construído sobre um fundamento quase inteiramente novo e o único sobre o qual elas podem se estabelecer com alguma se gurança 7 Assim como a ciência do homem é o único fundamento sólido para as outras ciências assim também o único fundamento sólido que podemos dar a ela deve estar na experiência e na observação Não é de espantar que a aplicação da filosofia experimental às questões morais tenha tido que esperar todo um século desde sua aplicação à ciência da natureza Na verdade sabemos que o mesmo intervalo separou a ori gem dessas ciências o tempo transcorrido entre TALES e SÓCRATES é quase igual ao que transcorreu entre LORD BACON e alguns filósofos recentes da Inglaterra 1 que deram início à construção de uma nova base para a ciência do homem atraindo a atenção e despertando a curiosidade do público Isso tanto é verdade que embora outras na ções possam rivalizar conosco na poesia e nos suplantar em outras artes agradáveis os aperfeiçoamentos na razão e na filosofia não po deriam caber senão a uma terra de tolerância e liberdade 8 Não devemos pensar que tal aperfeiçoamento na ciência do ho mem será menos honroso para nosso país natal que aquele ocorrido na filosofia da natureza devemos antes considerálo como uma glória ainda maior em virtude da maior importância daquela ciência bem como da necessidade de sua reforma Pareceme evidente que a es sência da mente sendonos tão desconhecida quanto a dos corpos externos deve ser igualmente impossível formar qualquer noção de seus poderes e qualidades de outra forma que não seja por meio de experimentos cuidadosos e precisos e da observação dos efeitos l Sr Locke Lord Shaftesbury Dr Mandeville Sr Hutcheson Dr Butler etc 22 Introdução particulares resultantes de suas diferentes circunstâncias e situações Embora devamos nos esforçar para tornar todos os nossos princípios tão universais quanto possível rastreando ao máximo nossos expe rimentos de maneira a explicar todos os efeitos pelas causas mais simples e em menor número ainda assim é certo que não podemos ir além da experiência E qualquer hipótese que pretenda revelar as qualidades originais e últimas da natureza humana deve imediatamente ser rejeitada como presunçosa e quimérica 9 Creio que um filósofo que se dedicasse com tal empenho a expli car os princípios últimos da alma não estaria na verdade revelando se um grande mestre nessa mesma ciência da natureza humana que ele pretende explicar nem um grande conhecedor daquilo que natu ralmente satisfaz à mente humana Pois nada é mais certo que o fato de que o desespero tem sobre nós quase o mesmo efeito que o con tentamento e tão logo nos damos conta da impossibilidade de satis fazer um desejo esse mesmo desejo desaparece Ao ver que atingimos o limite máximo da razão humana sossegamos satisfeitos ainda que no essencial estejamos totalmente convencidos de nossa ignorância e percebamos que não somos capazes de indicar nenhuma razão para nossos princípios mais gerais e sutis além de nossa experiência de sua realidade experiência que é a razão do vulgo e que inicialmen te não requereu nenhum estudo para ser descoberta mesmo no caso dos fenômenos mais particulares e extraordinários E assim como essa impossibilidade de qualquer progresso adicional basta para satisfazer ao leitor assim também o autor pode extrair uma satisfação ainda mais requintada da livre confissão de sua ignorância e de sua prudência em evitar o erro em que muitos incorreram a saber o de impor ao mun do suas conjeturas e hipóteses como se fossem os princípios mais cer tos Quando se consegue obter esse mútuo contentamento e satisfa ção entre mestre e discípulo não sei o que mais se pode exigir de nossa filosofia 10 Caso se considere essa impossibilidade de se explicarem os prin cípios últimos como um defeito da ciência do homem arriscarmeei a ponderar que esse defeito é comum a ela e a todas as ciências e to 23 Tratado da natureza humana das as artes a que possamos nos aplicar sejam elas cultivadas nas es colas dos filósofos ou praticadas nas oficinas dos mais humildes artesãos Nenhum deles pode ir além da experiência ou estabelecer princípios que não estejam fundados sobre essa autoridade É verda de que a filosofia moral tem uma desvantagem peculiar que não se encontra na filosofia da natureza ela não pode reunir experimentos de maneira deliberada e premeditada a fim de esclarecer todas as di ficuldades particulares que vão surgindo Quando não sou capaz de conhecer os efeitos de um corpo sobre outro em uma dada situação tudo que tenho a fazer é pôr os dois corpos nessa situação e observar o resultado Mas se tentasse esclarecer da mesma forma uma dúvida no domínio da filosofia moral colocandome no mesmo caso que aquele que estou considerando é evidente que essa reflexão e preme ditação iriam perturbar de tal maneira a operação de meus princípios naturais que se tornaria impossível formar qualquer conclusão cor reta a respeito do fenômeno Portanto nessa ciência devemos reu nir nossos experimentos mediante a observação cuidadosa da vida humana tomandoos tais como aparecem no curso habitual do mun do no comportamento dos homens em sociedade em suas ocupa ções e em seus prazeres Sempre que experimentos dessa espécie forem criteriosamente reunidos e comparados podemos esperar es tabelecer com base neles uma ciência que não será inferior em cer teza e será muito superior em utilidade a qualquer outra que esteja ao alcance da compreensão humana Seção 1 Parte 1 Das idéias sua origem composição conexão abstração etc Da origem de nossas idéias 1 As percepções da mente humana se reduzem a dois gêneros dis tintos que chamarei de IMPRESSÕES e IDÉIAS A diferença entre es tas consiste nos graus de força e vividez com que atingem a mente e penetram em nosso pensamento ou consciência As percepções que entram com mais força e violência podem ser chamadas de impres sões sob esse termo incluo todas as nossas sensações paixões e emoções em sua primeira aparição à alma Denomino idéias as páli das imagens dessas impressões no pensamento e no raciocínio como por exemplo todas as percepções despertadas pelo presente discur so excetuandose apenas as que derivam da visão e do tato e exce tuandose igualmente o prazer ou o desprazer imediatos que esse mesmo discurso possa vir a ocasionar Creio que não serão necessá rias muitas palavras para explicar essa distinção Cada um por si mes mo percebe imediatamente a diferença entre sentir e pensar Os graus 25 Tratado da natureza humana mais comuns dessas duas espécies de percepções são facilmente dis tinguíveis mas não é impossível que em certos casos elas possam estar muito próximas uma da outra Assim por exemplo no sono no delírio febril na loucura ou em qualquer emoção mais violenta da alma nossas idéias podem se aproximar de nossas impressões Por outro lado acontece às vezes de nossas impressões serem tão apagadas e fracas que não somos capazes de as distinguir de nossas idéias Mas apesar dessa grande semelhança em alguns poucos ca sos elas são geralmente tão diferentes que ninguém pode hesitar em separálas em duas classes distintas atribuindo a cada uma um nome característico para marcar sua diferença 1 2 Convém observar ainda uma segunda divisão entre nossas per cepções que se aplica tanto às impressões como às idéias Tratase da divisão em SIMPLES e COMPLEXAS Percepções simples sejam elas impressões ou idéias são aquelas que não admitem nenhuma dis tinção ou separação As complexas são o contrário dessas e podem ser distinguidas em partes Embora uma cor um sabor e um aroma particulares sejam todos qualidades unidas nesta maçã é fácil per ceber que elas não são a mesma coisa sendo ao menos distinguíveis umas das outras 3 Tendo com tais divisões ordenado e classificado nossos objetos podemos agora nos dedicar a considerar de maneira mais precisa suas qualidades e relações A primeira circunstância que me chama a aten ção é a grande semelhança entre nossas impressões e idéias em todos os pontos exceto em seus graus de força e vividez As idéias parecem ser de alguma forma os reflexos das impressões de modo que todas as percepções da mente são duplas aparecendo como impressões e Emprego aqui os termos impressão e idéia em sentido diferente do usual liberdade que espero me seja concedida Talvez na verdade eu esteja restituindo à palavra idéia seu sentido original do qual o Sr Locke a desviou quando a fez representar todas as nossas percepções Quanto ao termo impressão gostaria que não se o entendesse aqui como expri mindo a maneira pela qual nossas percepções vívidas são produzidas na alma mas como exprimindo apenas as próprias percepções para as quais não existe um nome particular nem em inglês nem que eu saiba em nenhuma outra língua 26 Livro 1 Parte 1 Seção 1 como idéias Quando fecho os olhos e penso em meu quarto as idéias que formo são representações exatas das impressões que antes senti e não há sequer uma circunstância naquelas que não se encontre também nestas últimas Ao passar em revista minhas outras percep ções encontro a mesma semelhança e representação Idéias e im pressões parecem sempre se corresponder mutuamente Essa cir cunstância me parece notável prendendo minha atenção por um momento 4 Ao proceder a um exame mais rigoroso vejo que me deixei levar longe demais pelas primeiras aparências e que terei de fazer uso da distinção das percepções em simples e complexas para limitar a conclu são geral de que todas as nossas idéias e impressões são semelhantes Ob servo que muitas de nossas idéias complexas jamais tiveram impres sões que lhes correspondessem e que muitas de nossas impressões complexas nunca são copiadas de maneira exata como idéias Posso imaginar uma cidade como a Nova jerusalém pavimentada de ouro e com seus muros cobertos de rubis mesmo que nunca tenha visto nenhuma cidade assim Eu vi Paris mas afirmarei por isso que sou capaz de formar daquela cidade uma idéia que represente perfeitamente todas as suas ruas e casas em suas proporções reais e corretas 5 Percebo portanto que embora haja em geral uma grande seme lhança entre nossas impressões e idéias complexas não é uma regra universalmente verdadeira que elas sejam cópias exatas umas das outras Consideremos agora o que ocorre com nossas percepções simples Após o exame mais rigoroso de que sou capaz arriscome a afirmar que aqui a regra não comporta exceção e que toda idéia sim ples tem uma impressão simples que a ela se assemelha e toda im pressão simples uma idéia correspondente A idéia de vermelho que formamos no escuro e a impressão que atinge nossos olhos à luz do sol diferem somente em grau não em natureza É impossível provar por uma enumeração exaustiva de todos os casos que isso se dá com todas as nossas impressões e idéias simples Qualquer pessoa po de se convencer disso examinando tantas quantas queira Mas se 27 Tratado da natureza humana alguém negar essa semelhança universal o único meio que vejo de o convencer é pedirlhe que mostre uma impressão simples que não tenha uma idéia correspondente ou uma idéia simples que não te nha uma impressão correspondente Se ele não responder a esse desafio e com certeza não conseguirá fazêlo poderemos com base em seu silêncio e em nossa própria observação ter por estabelecida nossa conclusão 6 Vemos assim que todas as idéias e impressões simples se asse melham umas às outras E como as complexas se formam a partir delas podemos afirmar de um modo geral que essas duas espécies de percepções são exatamente correspondentes Tendo descoberto essa relação que não requer nenhum exame adicional estou curioso por descobrir algumas outras de suas qualidades Consideremos como elas se situam no que diz respeito a sua existência e quais delas im pressões ou idéias são causas quais são efeitos 7 O exame completo dessa questão é o tema do presente tratado por isso contentarnosemos aqui em estabelecer nossa proposição geral que todas as nossas idéias simples em sua primeira aparição derivam de impres sões simples que lhes correspondem e que elas representam com exatidão 8 Ao buscar fenômenos que provem essa proposição encontro os de apenas dois tipos mas para cada um desses tipos os fenôme nos são óbvios numerosos e conclusivos Em primeiro lugar median te um novo exame certificome daquilo que já afirmei a saber que toda impressão simples é acompanhada de uma idéia correspondente e toda idéia simples de uma impressão correspondente Dessa con junção constante entre percepções semelhantes concluo imedia tamente que há uma forte conexão entre nossas impressões e idéias correspondentes e que a existência de umas tem uma influência con siderável sobre a das outras Uma tal conjunção constante em um número infinito de casos jamais poderia surgir do acaso Ela prova ao contrário que há uma dependência das impressões em relação às Ver supra p89 NT 28 Livro 1 Parte 1 Seção 1 idéias ou das idéias em relação às impressões Para saber de que lado está essa dependência examino a ordem de sua primeira aparição e descubro pela experiência constante que as impressões simples sem pre antecedem suas idéias correspondentes nunca aparecendo na or dem inversa Para dar a uma criança uma idéia do escarlate ou do la ranja do doce ou do amargo apresentolhe os objetos ou em outras palavras transmitolhe essas impressões mas nunca faria o absurdo de tentar produzir as impressões excitando as idéias Nossas idéias ao aparecerem não produzem impressões correspondentes tam pouco percebemos uma cor ou temos uma sensação qualquer sim plesmente por pensar nessa cor ou nessa sensação Em contrapartida vemos que qualquer impressão da mente ou do corpo é constante mente seguida por uma idéia que a ela se assemelha e da qual difere apenas nos graus de força e vividez A conjunção constante de nos sas percepções semelhantes é uma prova convincente de que umas são as causas das outras e essa anterioridade das impressões é uma prova equivalente de que nossas impressões são as causas de nossas idéias e não nossas idéias as causas de nossas impressões 9 Para confirmar isso considero um outro fenômeno bastante claro e convincente toda vez que algum acidente obstrui a operação das fa culdades que geram determinadas impressões como no caso de um cego ou surdo de nascença perdemse não apenas as impressões mas também suas idéias correspondentes de modo que jamais apa rece na mente nenhum traço de umas ou de outras Isso é verdade não apenas quando há uma total destruição dos órgãos da sensação mas igualmente quando estes nunca chegaram a ser acionados para pro duzir uma impressão particular Não somos capazes de formar uma idéia correta do sabor de um abacaxi sem têlo realmente provado 10 Existe entretanto um fenômeno que parece contradizer isso e que poderia provar que não é absolutamente impossível que as idéias antecedam suas impressões correspondentes Acredito que se admiti rá sem dificuldade que as diversas idéias distintas das cores que pene tram pelos olhos ou as idéias dos sons transmitidas pela audição 29 são na realidade diferentes umas das outras embora ao mesmo tempo semelhantes Ora se isso é verdade em relação às diferentes cores não deve ser menos verdade em relação às diferentes tonalidades da mesma cor ou seja que cada uma delas produz uma idéia distinta e independente do resto Pois se não fosse assim deveria ser possível pela gradação contínua das tonalidades fazer uma cor se transformar insensivelmente na mais afastada dela Se não se quiser admitir que nenhum dos matizes intermediários é diferente será absurdo negar que os extremos são iguais Suponhamos assim uma pessoa que tenha gozado de sua visão durante trinta anos e tenhase familiarizado perfeitamente com todos os tipos de cores exceto com uma única tonalidade de azul por exemplo a qual ela nunca teve a ocasião de encontrar Imaginemos que todas as diferentes tonalidades dessa cor excetuandose apenas aquela sejam dispostas à sua frente em ordem gradualmente descendente da mais escura à mais clara É evidente que essa pessoa irá perceber um vazio no lugar onde falta a tonalidade e será sensível à existência de uma maior distância entre as cores contíguas àquele espaço que entre quaisquer outras Pergunto então se lhe é possível suprir tal deficiência por meio de sua própria imaginação produzindo para si mesma a idéia daquela tonalidade particular muito embora esta jamais lhe tenha sido transmitida por seus sentidos Acredito que poucos discordarão de que isso seja possível Esse exemplo pode servir como prova de que as idéias simples nem sempre derivam das impressões correspondentes embora o caso seja tão particular e singular que quase não é digno de nossa atenção não merecendo que apenas por sua causa alteremos nossa máxima geral Will be sensible that Embora Hume geralmente utilize essa expressão com um sentido equivalente ao de perceber o que para ele aliás significa ter impressões ou idéias mantive aqui e em outras poucas ocorrências a tradução literal mesmo que soe um pouco estranha em português Neste caso por exemplo a compreensão da exceção apresentada por Hume a sua própria teoria da prioridade das impressões em relação às idéias depende em parte justamente da definição do que é esse ser sensível ao tom de azul ausente A solução que apela para a expressão ter consciência de me parece inconveniente por transferir para a consciência algo que diz respeito à sensação NT À parte essa exceção porém não é descabido observar acerca desse ponto que o princípio da anterioridade das impressões em relação às idéias deve ser tomado com uma limitação adicional a saber que assim como nossas idéias são imagens de nossas impressões assim também podemos formar idéias secundárias que são imagens das primárias como se vê no presente raciocínio a seu respeito Não se trata aqui propriamente falando de uma exceção à regra mas de uma explicação As idéias produzem imagens de si mesmas em novas idéias mas como supomos que as primeiras são derivadas de impressões continua sendo verdade que todas as nossas idéias simples procedem mediata ou imediatamente de suas impressões correspondentes Esse é portanto o primeiro princípio que estabeleço na ciência da natureza humana e não há que desprezálo por sua aparência simples Pois cabe notar que a presente questão a respeito da anterioridade de nossa impressão ou idéias é a mesma que produziu tanto barulho sob uma outra formulação quando se discutiu se haveria idéias inatas ou se todas as idéias derivam da sensação e da reflexão Podemos observar que a fim de provar que as idéias de extensão e de cor não são inatas os filósofos nada mais fazem que mostrar que elas são transmitidas por nossos sentidos Para provar que as idéias de paixão e desejo não são inatas eles observam que experimentamos previamente em nós mesmos essas emoções Ora se examinarmos cuidadosamente esses argumentos veremos que eles nada provam senão que as idéias são precedidas por outras percepções mais vívidas das quais derivam e as quais elas representam Espero que essa exposição clara do problema possa pôr fim a todas as disputas a seu respeito tornando esse princípio mais útil para nossos raciocínios do que ele parece ter sido até agora Seção 2 Divisão do tema Uma vez estabelecido que nossas impressões simples são anteriores às idéias correspondentes e que as exceções são bastante raras o Tratado da natureza humana método parece exigir que examinemos nossas impressões antes de considerar as idéias As impressões podem ser divididas em duas es pécies de SENSAÇÃO e de REFLEXÃO As da primeira espécie nascem originalmente na alma de causas desconhecidas As da segunda de rivam em grande medida de nossas idéias conforme a ordem seguin te Primeiro uma impressão atinge os sentidos fazendonos perce ber o calor ou o frio a sede ou a fome o prazer ou a dor de um tipo ou de outro Em seguida a mente faz uma cópia dessa impressão que permanece mesmo depois que a impressão desaparece e à qual denominamos idéia Essa idéia de prazer ou dor ao retornar à alma produz novas impressões de desejo ou aversão esperança ou medo que podemos chamar propriamente de impressões de reflexão porque derivadas dela Essas impressões de reflexão são novamente copiadas pela memória e pela imaginação convertendose em idéias as quais por sua vez podem gerar outras impressões e idéias Desse modo as impressões de reflexão antecedem apenas suas idéias corresponden tes mas são posteriores às impressões de sensação e delas derivadas Ora o estudo de nossas sensações cabe antes aos anatomistas e aos filósofos naturais que aos filósofos morais e por esse motivo não en traremos nele no momento E como as impressões de reflexão a sa ber as paixões os desejos e as emoções que sobretudo merecem nos sa atenção surgem em sua maior parte de idéias será necessário inverter o método acima mencionado e que à primeira vista parece mais natural Para explicar a natureza e os princípios da mente humana da remos uma explicação particular das idéias antes de passarmos às im pressões Por essa razão escolhi aqui começar pelas idéias Seção 3 Das idéias da memória e da imaginação 1 Pela experiência vemos que quando uma determinada impres são esteve presente na mente ela ali reaparece sob a forma de uma idéia o que pode se dar de duas maneiras diferentes ou ela retém 32 Livro 1 Parte 1 Seção 3 em sua nova aparição um grau considerável de sua vividez original constituindose em uma espécie de intermediário entre uma impres são e uma idéia ou perde inteiramente aquela vividez tornandose uma perfeita idéia A faculdade pela qual repetimos nossas impres sões da primeira maneira se chama MEMÓRIA e a outra IMAGINA ÇÃO É evidente mesmo à primeira vista que as idéias da memória são muito mais vivas e fortes que as da imaginação e que a primeira faculdade pinta seus objetos em cores mais distintas que todas as que possam ser usadas pela última Ao nos lembrarmos de um aconteci mento passado sua idéia invade nossa mente com força ao passo que na imaginação a percepção é fraca e lânguida e apenas com muita dificuldade pode ser conservada firme e uniforme pela mente durante um período considerável de tempo Temos aqui portanto uma diferença sensível entre as duas espécies de idéias Mas tratare mos desse ponto de maneira mais completa adiante 2 2 Há uma outra diferença não menos evidente entre esses dois tipos de idéias Embora nem as idéias da memória nem as da imagi nação nem as idéias vívidas nem as fracas possam surgir na mente antes que impressões correspondentes tenham vindo abrirlhes o ca minho a imaginação não se restringe à mesma ordem e forma das impressões originais ao passo que a memória está de certa maneira amarrada quanto a esse aspecto sem nenhum poder de variação 3 É evidente que a memória preserva a forma original sob a qual seus objetos se apresentaram Sempre que ao nos recordarmos de algo nós nos afastamos dessa forma isso se deve a algum defeito ou imperfeição dessa faculdade Um historiador pode talvez buscando facilitar sua narrativa relatar um evento antes de outro que lhe é efe tivamente anterior mas se for rigoroso ele fará notar essa desor dem recolocando assim a idéia na posição devida O mesmo ocorre com nossas recordações dos lugares e pessoas que alguma vez co nhecemos A principal função da memória não é preservar as idéias 2 Parte 3 Seção 5 33 Tratado da natureza humana simples mas sua ordem e posição Em suma esse princípio se apóia em tantos fenômenos comuns e vulgares que podemos nos poupar o trabalho de continuar insistindo nele 4 A mesma evidência nos acompanha em nosso segundo princí pio a liberdade que tem a imaginação de transpor e transformar suas idéias As fábulas que encontramos nos poemas e romances eliminam qual quer dúvida sobre isso A natureza é ali inteiramente embaralhada e não se fala senão de cavalos alados dragões de fogo e gigantes mons truosos Tal liberdade da fantasia não causará estranheza porém se considerarmos que todas as nossas idéias são copiadas de nossas im pressões e que não há duas impressões que sejam completamente inseparáveis isso para não mencionarmos o fato de que se trata aqui de uma conseqüência evidente da divisão das idéias em simples e com plexas Sempre que a imaginação percebe uma diferença entre idéias ela pode facilmente produzir uma separação Seção 4 Da conexão ou associação das idéias 1 Como a imaginação pode separar todas as idéias simples e uni las novamente da forma que bem lhe aprouver nada seria mais inexplicável que as operações dessa faculdade se ela não fosse guia da por alguns princípios universais que a tornam em certa medida uniforme em todos os momentos e lugares Fossem as idéias inteira mente soltas e desconexas apenas o acaso as juntaria e seria impos sível que as mesmas idéias simples se reunissem de maneira regular em idéias complexas como normalmente fazem se não houvesse al gum laço de união entre elas alguma qualidade associativa pela qual uma idéia naturalmente introduz outra Esse princípio de união en tre as idéias não deve ser considerado uma conexão inseparável pois isso já foi excluído da imaginação tampouco devemos concluir que sem ele a mente não poderia juntar duas idéias pois nada é mais li vre que essa faculdade Devemos vêlo apenas como uma força sua ve que comumente prevalece e que é a causa pela qual entre outras 34 Livro 1 Parte 1 Seção 4 coisas as línguas se correspondem de modo tão estreito umas às ou tras pois a natureza de alguma forma aponta a cada um de nós as idéias simples mais apropriadas para serem unidas em uma idéia com plexa As qualidades que dão origem a tal associação e que levam a mente dessa maneira de uma idéia a outra são três a saber SEME LHANÇA CONTIGÜIDADE no tempo ou no espaço e CAUSA e EFEITO 2 Creio que não haverá muita necessidade de provar que essas qua lidades produzem uma associação entre idéias e quando do apareci mento de uma idéia naturalmente introduzem outra Está claro que no curso de nosso pensamento e na constante circulação de nossas idéias a imaginação passa facilmente de uma idéia a qualquer outra que seja semelhante a ela tal qualidade por si só constitui um víncu lo e uma associação suficientes para a fantasia É também evidente que como os sentidos ao passarem de um objeto a outro precisam fazêlo de modo regular tomandoos em sua contigüidade uns em re lação aos outros a imaginação adquire por um longo costume o mes mo método de pensamento e percorre as partes do espaço e do tem po ao conceber seus objetos Quanto à conexão feita pela relação de causa e efeito teremos adiante ocasião de examinála a fundo e por esse motivo não insistiremos agora sobre ela Basta observar que ne nhuma relação produz uma conexão mais forte na fantasia e faz com que uma idéia evoque mais prontamente outra idéia que a relação de causa e efeito entre seus objetos 3 Para que possamos compreender toda a extensão dessas relações devemos considerar que dois objetos estão conectados na imaginação não somente quando um deles é imediatamente semelhante ou con tíguo ao outro ou quando é sua causa mas também quando entre eles encontrase inserido um terceiro objeto que mantém com ambos al guma dessas relações Esse encadeamento pode se estender até bem longe embora ao mesmo tempo possase observar que a cada in terposição a relação se enfraquece consideravelmente Primos de quarto grau são conectados pela causalidade se me permitem empre gar esse termo mas não de modo tão estreito quanto irmãos e menos 35 Tratado da natureza humana ainda que uma criança e seus pais Podemos observar de maneira ge ral que todas as relações de parentesco consangüíneo dependem da relação de causa e efeito sendo consideradas próximas ou remotas segundo o número de causas interpostas entre as pessoas por elas conectadas 4 Dentre as três relações acima mencionadas a de causalidade é a de maior extensão Dois objetos podem ser considerados como estan do inseridos nessa relação seja quando um deles é a causa de qual quer ação ou movimento do outro seja quando o primeiro é a causa da existência do segundo Pois como essa ação ou movimento não é senão o próprio objeto considerado sob um certo ângulo e como o objeto continua o mesmo em todas as suas diferentes situações é fácil imaginar de que forma tal influência dos objetos uns sobre os outros pode conectálos na imaginação 5 Podemos prosseguir com esse raciocínio observando que dois objetos estão conectados pela relação de causa e efeito não apenas quando um produz um movimento ou uma ação qualquer no outro mas também quando tem o poder de os produzir Notemos que essa é a fonte de todas as relações de interesse e de dever pelas quais os homens se influenciam mutuamente na sociedade e se ligam pelos laços de governo e subordinação Um senhor é aquele que por sua situação decorrente quer da força quer de um acordo tem o poder de dirigir sob certos aspectos particulares as ações de outro homem a que chamamos servo Um juiz é aquele que em todos os casos litigio sos entre membros da sociedade é capaz de decidir com sua opinião a quem cabe a posse ou a propriedade de determinado objeto Quan do uma pessoa possui um certo poder nada mais é necessário para convertêlo em ação que o exercício da vontade e isso em todos os ca sos é considerado possível e em muitos provável especialmente no caso da autoridade em que a obediência do súdito é um prazer e uma vantagem para seu superior 6 Tais são portanto os princípios de união ou coesão entre nossas idéias simples ocupando na imaginação o lugar daquela conexão 36 Livro 1 Parte 1 Seção 5 inseparável que as une em nossa memória Eis aqui uma espécie de ATRAÇÃO cujos efeitos no mundo mental se revelarão tão extraordiná rios quanto os que produz no mundo natural assumindo formas igual mente numerosas e variadas Seus efeitos são manifestos em toda parte quanto a suas causas porém estas são em sua maioria des conhecidas devendo ser reduzidas a qualidades originais da natureza hu mana as quais não tenho a pretensão de explicar Não há nada tão ne cessário para um verdadeiro filósofo como a moderação do desejo excessivo de procurar causas ele deve sentirse satisfeito ao fundamen tar uma determinada doutrina em um número suficiente de experimen tos se perceber que um exame mais prolongado o levaria a especulações obscuras e incertas Nesse caso sua investigação seria muito mais bem empregada no exame dos efeitos do que no das causas de seu princípio 7 Dentre os efeitos dessa união ou associação de idéias nenhum é mais notável que as idéias complexas que são os objetos comuns de nossos pensamentos e raciocínios devendose geralmente a algum princípio de união entre nossas idéias simples Tais idéias complexas podem ser divididas em relações modos e substâncias Examinaremos brevemente cada um desses gêneros por ordem e acrescentaremos em seguida algumas considerações acerca de nossas idéias gerais e particulares Assim teremos concluído nosso presente assunto que pode ser definido como os elementos desta filosofia Seção 5 Das relações 1 A palavra RELAÇÃO é comumente usada em dois sentidos bem diferentes para designar a qualidade pela qual duas idéias são conec tadas na imaginação uma delas naturalmente introduzindo a ou tra da maneira acima explicada ou para designar a circunstância particular na qual ainda que a união de duas idéias na fantasia seja meramente arbitrária podemos considerar apropriado comparálas Na linguagem corrente usamos a palavra relação sempre no primeiro 37 Tratado da natureza humana sentido apenas na filosofia estendemos esse sentido fazendoo sig nificar qualquer objeto particular de comparação que prescinda de um princípio de conexão Assim por exemplo os filósofos admitem que a distância é uma verdadeira relação porque adquirimos essa idéia pela comparação de objetos Mas na linguagem comum quando afir mamos que nada pode ser mais distante que tais ou tais coisas queremos dizer que nada pode ter menos relação que essas coisas como se distân cia e relação fossem incompatíveis 2 Podese talvez pensar que é infindável a tarefa de enumerar to das as qualidades que tornam os objetos passíveis de comparação e que são responsáveis pela produção das idéias de relação filosófica Se observarmos cuidadosamente essas qualidades porém veremos que elas podem sem dificuldade ser reduzidas a sete classes gerais que po demos considerar as fontes de toda relação filosófica 3 1 A primeira é a semelhança Essa é uma relação sem a qual não pode existir nenhuma relação filosófica já que só admitem compa ração os objetos que apresentam entre si algum grau de semelhan ça Entretanto embora a semelhança seja necessária para todas as relações filosóficas daí não se segue que ela sempre produza uma conexão ou associação de idéias Quando uma qualidade se torna mui to geral e é comum a um grande número de indivíduos ela não leva a mente diretamente a nenhum deles ao contrário por apresentar de uma só vez uma grande variedade de alternativas impede que a imaginação se fixe em um objeto único 4 2 A identidade pode ser vista como uma segunda espécie de re lação Considero aqui essa relação enquanto aplicada em seu senti do mais estrito a objetos constantes e imutáveis sem examinar a na tureza ou o fundamento da identidade pessoal que terá seu lugar mais adiante De todas as relações a identidade é a mais universal sendo comum a todo ser cuja existência tenha alguma duração 5 3 Após a identidade as relações mais universais e abrangentes são as de espaço e tempo que estão na origem de um número infinito de com parações tais como distante contíguo acima abaixo antes depois etc 38 Livro 1 Parte 1 Seção 6 6 4 Todos os objetos que admitem quantidade ou número podem ser comparados sob esse aspecto que é outra fonte bastante fértil de relações 7 5 Quando dois objetos quaisquer possuem em comum uma mes ma qualidade os graus dessas qualidades formam uma quinta espécie de relação Assim de dois objetos pesados um pode ter um peso maior ou menor que o outro Duas cores ainda que do mesmo tipo podem possuir tonalidades diferentes e nesse sentido ser passíveis de com paração 8 6 A relação de contrariedade contrariety pode à primeira vista ser considerada uma exceção à regra de que nenhuma relação de nenhuma espécie pode subsistir sem algum grau de semelhança Mas observemos que nenhuma idéia em si mesma é contrária a outra exceto as idéias de existência e de nãoexistência que são claramente semelhantes uma vez que ambas implicam uma idéia do objeto embora a segunda exclua o objeto de todos os tempos e lugares em que se supõe que ele não existe 9 7 Quanto a todos os outros objetos tais como o fogo e a água ou o calor e o frio somente a experiência e a contrariedade de suas cau sas ou efeitos podem revelar se são contrários A relação de causa e efei to é portanto a sétima espécie de relação filosófica além de ser tam bém uma relação natural A semelhança implicada nessa relação será explicada mais tarde 10 Seria natural esperar que eu acrescentasse a diferença às demais relações Mas considero esta antes a negação de uma relação que algo real e positivo A diferença pode ser de dois tipos conforme seja oposta à identidade ou à semelhança A primeira é denominada diferença de número a outra diferença de espécie Seção 6 Dos modos e substâncias 1 Eu gostaria de perguntar àqueles filósofos que fundamentam tan tos de seus raciocínios na distinção entre substância e acidente e ima 39 Tratado da natureza humana ginam que temos idéias claras de ambos se a idéia de substância é derivada das impressões de sensação ou de reflexão Se ela nos é trans mitida pelos sentidos pergunto por qual deles e de que maneira Se é percebida pelos olhos deve ser uma cor se pelos ouvidos um som se pelo paladar um sabor e assim por diante para os demais sentidos Acredito porém que ninguém afirmará que a substância é uma cor ou um som ou um sabor Portanto a idéia de substância se é que ela existe realmente deve ser derivada de uma impressão de reflexão Mas as impressões de reflexão se reduzem às nossas pai xões e emoções nenhuma das quais poderia representar uma subs tância Assim sendo não temos nenhuma idéia de substância que seja distinta da idéia de uma coleção de qualidades particulares e tampouco temos em mente qualquer outro significado quando fala mos ou quando raciocinamos a seu respeito 2 A idéia de uma substância bem como a de um modo não passa de uma coleção de idéias simples que são unidas pela imaginação e às quais se atribui um nome particular nome este que nos permite evocar para nós mesmos ou para os outros aquela coleção Mas a diferença entre essas duas idéias consiste no fato de que as qualida des particulares que formam uma substância são comumente referi das a um algo desconhecido a que supostamente elas são inerentes Ou mesmo que essa ficção não ocorra supõese ao menos que as qualidades particulares são conectadas estreita e inseparavelmente pelas relações de contigüidade e causalidade O resultado disso é que sempre que descobrimos uma nova qualidade simples que tenha a mesma conexão com o restante imediatamente a incluímos entre as outras ainda que ela não tenha feito parte de nossa primeira concep ção da substância em questão Assim por exemplo nossa idéia de ouro pode a princípio ser a de uma cor amarela de peso de ma leabilidade e de fusibilidade mas com a descoberta de sua solubili dade em água régia acrescentamos esta última àquelas qualidades e supomos que pertence à substância tanto como se sua idéia houves se desde o início feito parte da idéia composta Visto como a prin 40 Livro 1 Parte 1 Seção 7 cipal parte da idéia complexa o princípio de união admite a inclusão de qualquer qualidade que se apresente posteriormente e essa qua lidade será nele compreendida como o são todas as outras que se apresentaram desde o início 3 Que isso não pode ocorrer no caso dos modos eis algo que fica evidente ao considerarmos sua natureza As idéias simples que for mam os modos representam qualidades que ou não estão unidas nem pela contigüidade nem pela causação estando antes dispersas em di ferentes sujeitos ou então se estiverem todas unidas seu princípio de união não é visto como o fundamento da idéia complexa A idéia de uma dança é exemplo da primeira espécie de modo a idéia de be leza é exemplo da segunda É óbvia a razão pela qual tais idéias com plexas não podem receber nenhuma idéia nova sem que com isso seja necessário mudar o nome que distingue o modo Seção 7 Das idéias abstratas 1 Uma questão muito importante foi levantada a respeito das idéias abstratas ou gerais a saber se são concebidas pela mente como gerais ou par ticulares Um grande filósofo3 contestou a opinião tradicional acerca desse ponto afirmando que as idéias gerais não passam de idéias particulares que vinculamos a um certo termo termo este que lhes dá um significado mais extenso e que quando a ocasião o exige faz com que evoquem outros indivíduos semelhantes a elas Considero esta descoberta uma das maiores e mais valiosas feitas recentemente na república das letras e por isso tentarei aqui confirmála mediante alguns argumentos que espero eliminarão qualquer dúvida e contro vérsia a seu respeito 2 É evidente que ao formar a maior parte de nossas idéias gerais se não todas elas fazemos abstração de todo e qualquer grau parti cular de quantidade e qualidade e que um objeto não deixa de per 3 Dr Berkeley George Berkeley Principies Introd 620 NT 41 Tratado da natureza humana tencer a uma espécie particular cada vez que ocorre uma pequena al teração em sua extensão duração e outras propriedades Podese pen sar portanto que existe aqui um claro dilema decisivo para a deter minação da natureza das idéias abstratas a qual tem sido motivo de tanta especulação por parte dos filósofos Como a idéia abstrata de homem representa homens de todos os tamanhos e todas as quali dades concluise que ela só será capaz de fazer isso se representar ao mesmo tempo todos os tamanhos e todas as qualidades possíveis ou então se não representar nenhum tamanho ou qualidade particu lar Ora a primeira proposição tendo sido considerada absurda por que implicaria uma capacidade infinita da mente costumouse infe rir que a segunda seria a correta e por isso se supôs que nossas idéias abstratas não representam nenhum grau particular de quanti dade ou de qualidade O que tentarei mostrar contudo é que essa inferência é errônea em primeiro lugar provando que é inteiramente impossível conceber qualquer quantidade ou qualidade sem formar uma noção precisa de seus graus e em segundo lugar mostrando que muito embora a capacidade da mente não seja infinita podemos for mar de uma só vez uma noção de todos os graus possíveis de quan tidade e qualidade de uma maneira tal que embora imperfeita pos sa ao menos servir a todos os propósitos da reflexão e do diálogo 3 Começaremos com a primeira proposição que a mente é incapaz de formar qualquer noção de quantidade ou qualidade sem f armar uma noção precisa de seus graus Podemos provar isso mediante os três argumen tos a seguir Em primeiro lugar já observamos que todos os objetos diferentes são distinguíveis e que todos os objetos distinguíveis são separáveis pelo pensamento e imaginação Podemos aqui acrescen tar que essas proposições são igualmente verdadeiras em seu senti do inverso todos os objetos separáveis são também distinguíveis e todos os objetos distinguíveis são também diferentes Pois como se ria possível separar o que não é distinguível ou distinguir o que não é diferente Para sabermos se a abstração implica uma separação portanto precisamos apenas considerála deste ponto de vista exa 42 Livro 1 Parte 1 Seção 7 minando se todas as circunstâncias de que fazemos abstração em nossas idéias gerais são distinguíveis e diferentes daquelas que rete mos como partes essenciais dessas idéias Ora é imediatamente evi dente que o comprimento preciso de uma linha não é diferente nem distinguível da própria linha assim como o grau preciso de uma qua lidade qualquer tampouco é distinguível dessa qualidade Essas idéias portanto não são mais suscetíveis de separação que de distinção e diferença Conseqüentemente estão sempre conjugadas na concep ção A idéia geral de uma linha não obstante todas as nossas abstra ções e depurações aparece na mente com um grau preciso de quan tidade e qualidade mesmo se a fazemos representar outras linhas dotadas de graus diferentes de ambas 4 Em segundo lugar reconhecese que nenhum objeto pode apa recer aos sentidos ou em outras palavras que nenhuma impressão pode se tornar presente à mente sem ser determinada em seus graus tanto de quantidade como de qualidade A confusão que por vezes envolve as impressões procede somente de sua fraqueza e instabili dade e não de uma capacidade que teria a mente de receber uma im pressão que em sua existência real não possua um grau ou propor ção particulares Isso seria uma contradição em termos e implicaria mesmo a mais absoluta das contradições a saber que é possível que uma mesma coisa seja e não seja 5 Ora uma vez que todas as idéias são derivadas de impressões e não são mais que cópias e representações destas tudo aquilo que é verdade de umas deve ser aceito a respeito das outras Impressões e idéias diferem apenas em sua força e vividez Tal conclusão não está fundamentada em nenhum grau particular de vividez não podendo portanto ser afetada por nenhuma variação nesse aspecto Uma idéia é uma impressão mais fraca e como uma impressão forte deve ne cessariamente ter uma quantidade e qualidade determinadas o mes mo deve valer para sua cópia ou representante 6 Em terceiro lugar tratase de um princípio geralmente aceito na filo sofia que tudo na natureza é individual e que é inteiramente absurdo 43 Tratado da natureza humana supor a existência real de um triângulo que não possua uma propor ção precisa entre seus lados e ângulos Se portanto isso é absurdo de fato e na realidade deve ser absurdo também no domínio das idéias pois nada a respeito do qual podemos formar uma idéia clara e dis tinta é absurdo ou impossível Mas formar a idéia de um objeto é o mesmo que simplesmente formar uma idéia pois a referência da idéia a um objeto é uma denominação extrínseca da qual não há nenhuma marca ou sinal na própria idéia Ora como é impossível formar a idéia de um objeto que possua quantidade e qualidade mas que não possua um grau preciso de nenhuma das duas seguese que é igualmente impossível formar uma idéia que não seja limitada e determinada em ambos os aspectos As idéias abstratas são portanto individuais em si mesmas embora possam se tornar gerais pelo que representam A imagem na mente é apenas a de um objeto particular ainda que a apliquemos em nosso raciocínio exatamente como se ela fosse universal 7 Tal aplicação das idéias para além de sua natureza procede do fato de que nós reunimos todos os seus graus possíveis de quantidade e de qualidade de uma maneira que embora imperfeita é capaz de aten der aos propósitos da vida esta é a segunda proposição que me pro pus explicar Quando encontramos uma semelhança entre diversos objetos que se apresentam a nós com freqüência aplicamos a todos eles o mesmo nome não obstante as diferenças que possamos ob servar em seus graus de quantidade e qualidade e não obstante quais quer outras diferenças que possam surgir entre eles Após termos adquirido tal costume a mera menção desse nome desperta a idéia de um desses objetos fazendo que a imaginação o conceba com to das as suas circunstâncias e proporções particulares Mas como por hipótese a mesma palavra foi com freqüência aplicada a outros indi víduos que diferem em muitos aspectos da idéia imediatamente pre sente à mente e como essa palavra não é capaz de despertar a idéia Ver Apêndice p675 44 Livro 1 Parte 1 Seção 7 de todos esses indivíduos ela apenas toca a alma se posso me expri mir assim e desperta o costume que adquirimos ao observálos Esses indivíduos não estão realmente e de fato presentes na mente mas apenas potencialmente tampouco os representamos todos de modo distinto na imaginação mas mantemonos prontos a considerar qual quer um deles conforme sejamos impelidos por um objetivo ou ne cessidade presente A palavra desperta uma idéia individual junta mente com um certo costume e esse costume produz qualquer outra idéia individual que se faça necessária Mas como na maior parte dos casos é impossível produzir todas as idéias às quais o no me pode se aplicar limitamos tal trabalho por uma consideração mais parcial procedimento que gera muito poucos inconvenientes em nos so raciocínio 8 Pois uma das circunstâncias mais extraordinárias da presente questão é o fato de que se por acaso formamos um raciocínio que não concorda com uma idéia individual produzida pela mente e acer ca da qual raciocinamos o costume que a acompanha reanimado pelo termo geral ou abstrato sugere imediatamente qualquer outro indi víduo Assim se mencionamos a palavra triângulo e formamos a idéia de um triângulo equilátero particular que lhe corresponda e se de pois afirmamos que os três ângulos de um triângulo são iguais entre si os outros casos individuais de triângulos escalenos e isósceles que a prin cípio negligenciamos imediatamente se amontoam à nossa frente fazendonos perceber a falsidade dessa proposição que entretanto é verdadeira em relação à idéia que havíamos formado Se a mente nem sempre sugere tais idéias na ocasião apropriada isso se deve a alguma imperfeição de suas faculdades imperfeição esta que freqüen temente gera raciocínios falsos e sofismas Mas tal fato ocorre sobre tudo no caso de idéias abstrusas e compostas Em outras ocasiões o costume é mais perfeito e é raro cometermos esse tipo de erro 9 O costume aliás é tão perfeito nesses casos que podese vincular a mesma idéia a diversas palavras diferentes e empregála em dife rentes raciocínios sem qualquer perigo de erro Assim a idéia de um 45 Tratado da natureza humana triângulo equilátero de uma polegada de altura pode servir para fa larmos de uma figura de uma figura retilínea de uma figura regular de um triângulo e de um triângulo equilátero Todos esses termos portanto se fazem acompanhar da mesma idéia mas como são usual mente aplicados em uma extensão ora maior ora menor eles susci tam seus hábitos próprios mantendo assim a mente de prontidão para que não se forme qualquer conclusão contrária a nenhuma das idéias comumente por eles compreendidas 10 Antes de esses hábitos terem se tornado inteiramente perfeitos talvez a mente não possa se contentar em formar a idéia de apenas um indivíduo devendo em lugar disso percorrer diversos deles a fim de compreender seu próprio sentido bem como o âmbito do conjunto que ela pretende exprimir pelo termo geral Para determinar o sentido da palavra figura podemos percorrer em nossa mente as idéias de círcu los quadrados paralelogramos triângulos de diferentes tamanhos e proporções sem necessariamente nos fixar em apenas uma imagem ou idéia Seja como for o certo é que sempre que empregamos um termo geral nós formamos a idéia de indivíduos que raramente ou nunca conseguimos esgotar a totalidade desses indivíduos e que aqueles que restam só são representados mediante o hábito pelo qual os evocamos sempre que uma ocasião presente o exige Tal é portanto a natureza de nossas idéias abstratas e de nossos termos gerais e é dessa maneira que resolvemos o paradoxo anterior a saber que algumas idéias são par ticulares em sua natureza mas gerais pelo que representam Uma idéia par ticular se torna geral quando a vinculamos a um termo geral isto é a um termo que por uma conjunção habitual relacionase com muitas outras idéias particulares evocandoas prontamente na imaginação 1 1 A única dificuldade que pode permanecer nesse assunto diz res peito àquele costume que tão prontamente evoca qualquer idéia par ticular de que necessitemos e que é despertado por qualquer palavra ou som a que usualmente a vinculamos Em minha opinião o méto do mais apropriado para se fornecer uma explicação satisfatória des se ato da mente é apresentar outros exemplos análogos a ele bem 46 Livro 1 Parte 1 Seção 7 como outros princípios que facilitam sua operação É impossível ex plicar as causas últimas de nossas ações mentais Basta sermos capa zes de dar uma explicação satisfatória dessas ações com base na ex periência e por analogia 12 Em primeiro lugar portanto observo que quando mencionamos um número elevado qualquer como por exemplo mil a mente em geral não possui uma idéia adequada dele mas apenas o poder de produzila mediante suas idéias adequadas dos decimais que o for mam Entretanto essa imperfeição de nossas idéias nunca se faz sentir em nossos raciocínios o que parece constituir um exemplo análogo ao caso das idéias universais de que estamos tratando 13 Em segundo lugar temos vários exemplos de hábitos que podem ser despertados por uma simples palavra Assim uma pessoa que sabe de cor determinadas frases de um discurso ou um certo número de versos dos quais entretanto não está conseguindo se lembrar pode vir a se recordar repentinamente de tudo ao ouvir aquelas palavras ou expressões que abrem o discurso ou poema 14 Em terceiro lugar acredito que todo aquele que examinar o que acontece com sua mente ao raciocinar irá concordar comigo que nós não vinculamos idéias distintas e completas a todos os termos que uti lizamos e que ao falarmos em governo igreja negociação conquista ra ramente explicitamos em nossa mente todas as idéias simples que compõem essas idéias complexas Observese entretanto que apesar dessa imperfeição podemos evitar dizer absurdos acerca desses temas e somos capazes de perceber qualquer incompatibilidade que haja en tre as idéias tão bem como se as compreendêssemos inteiramente Assim se em vez de dizer que na guerra os mais fracos sempre recorrem à negociação dissermos que eles sempre recorrem à conquista o costume que adquirimos de atribuir certas relações às idéias por continuar acompanhando essas palavras fará com que percebamos imediata mente o absurdo dessa proposição do mesmo modo que uma idéia particular pode servir para raciocinarmos acerca de outras idéias por mais diferentes que dela sejam em diversas circunstâncias 47 Tratado da natureza humana 15 Em quarto lugar como os indivíduos são agrupados e subsu midos sob um termo geral em razão da semelhança que mantêm entre si essa relação deve facilitar sua entrada na imaginação fazendo que sejam mais rapidamente sugeridos quando isso se torna necessário E de fato se considerarmos o curso usual do pensamento seja na reflexão seja no diálogo encontraremos uma boa razão para nos con vencermos disso Nada é mais admirável que a rapidez com que a ima ginação sugere suas idéias apresentandoas no instante mesmo em que elas se tornam necessárias ou úteis A fantasia percorre o uni verso de um extremo ao outro reunindo as idéias que dizem respei to a um determinado assunto É como se a totalidade do mundo in telectual das idéias fosse a um só tempo exposta à nossa visão e simplesmente escolhêssemos as mais adequadas a nosso propósito No entanto as únicas idéias que podem estar presentes são aquelas que foram reunidas por essa espécie de faculdade mágica da alma a qual embora seja sempre a mais perfeita possível nos grandes gênios constituindo aliás precisamente o que denominamos gênio per manece inexplicável para o entendimento humano a despeito de to dos os seus esforços 16 Essas quatro reflexões poderão talvez nos ajudar a eliminar to das as dificuldades da hipótese que propus acerca das idéias abstra tas tão contrária à que até agora tem prevalecido na filosofia Mas para falar a verdade confio sobretudo naquilo que já provei a respei to da impossibilidade das idéias gerais quando explicadas segundo o método usual É certo que devemos buscar algum novo sistema para dar conta dessa questão e evidentemente não existe nenhum além daquele que propus Se as idéias são particulares em sua natureza e ao mesmo tempo são em número finito somente pelo costume elas podem se tornar gerais em sua representação subsumindo um nú mero infinito de outras idéias 17 Antes de passar a outro tema farei uso dos mesmos princípios para explicar a distinção de razão tão falada e tão pouco compreendi da nas escolas Um exemplo é a distinção entre figura e corpo figu 48 Livro 1 Parte 1 Seção 7 rado ou entre movimento e corpo movido A dificuldade de se expli car essa distinção surge do princípio acima exposto que todas as idéias diferentes são separáveis Pois seguese desse princípio que se a figura for diferente do corpo suas idéias deverão ser separáveis bem como distinguíveis se não for diferente suas idéias não poderão ser nem separáveis nem distinguíveis O que significa então uma distinção de razão já que ela não implica nem diferença nem separação 18 Para eliminar tal dificuldade devemos recorrer à explicação das idéias abstratas acima apresentada É certo que a mente jamais teria sonha do em distinguir uma figura de um corpo figurado uma vez que na realidade estes não são nem distinguíveis nem diferentes nem se paráveis se não houvesse observado que mesmo nessa simplici dade poderiam estar contidas várias semelhanças e relações diferen tes Assim quando se nos apresenta um globo de mármore branco recebemos apenas a impressão de uma cor branca disposta em uma certa forma não sendo capazes de separar nem distinguir a cor da forma Mas observando em seguida um globo de mármore negro e um cubo de mármore branco e comparandoos com nosso primeiro objeto encontramos duas semelhanças separadas naquilo que an tes parecia e realmente é completamente inseparável Com a prá tica começamos a distinguir a forma da cor por meio de uma distin ção de razão Isto é consideramos a forma e a cor juntas já que elas são de fato indistinguíveis e uma só coisa mas as vemos também sob diferentes aspectos de acordo com as semelhanças de que são suscetíveis Quando queremos considerar apenas a forma do globo de mármore branco formamos na realidade uma idéia tanto da for ma como da cor mas tacitamente dirigimos nossa atenção para sua semelhança com o globo de mármore negro E do mesmo modo quando queremos considerar apenas sua cor voltamos nosso olhar para sua semelhança com o cubo de mármore branco Desse modo fazemos acompanhar nossas idéias por uma espécie de reflexão à qual o costume nos torna em grande medida insensíveis Uma pessoa que deseja que consideremos a forma de um globo de már 49 Tratado da natureza humana more branco sem pensar em sua cor deseja uma impossibilidade na realidade sua intenção é que consideremos a cor juntamente com a forma sem entretanto perder de vista sua semelhança com o globo de mármore negro ou com qualquer outro globo de qualquer cor ou substância 50 Seção 1 Da infinita divisibilidade Parte 2 Das idéias de espaço e tempo de nossas idéias de espaço e tempo Tudo que tem um ar de paradoxo e é contrário às primeiras no ções da humanidade às noções mais despidas de preconceitos cos tuma ser fervorosamente esposado pelos filósofos como se mostrasse a superioridade de sua ciência capaz de descobertas tão distantes da concepção vulgar De outro lado toda vez que alguém nos apresenta uma opinião que nos causa surpresa e admiração é tal a satisfação que ela proporciona à mente que esta se entrega por completo a es sas emoções agradáveis jamais se deixando persuadir de que seu prazer carece de todo e qualquer fundamento É dessas respectivas disposições dos filósofos e de seus discípulos que nasce aquela mú tua complacência entre eles em que os primeiros fornecem uma abun dância de opiniões estranhas e inexplicáveis enquanto os últimos nelas acreditam com enorme facilidade O exemplo mais evidente que posso apresentar dessa mútua complacência é a doutrina da infinita 51 Tratado da natureza humana divisibilidade pela qual inicio o exame do presente tema as idéias de espaço e tempo 2 Todos concordam que a mente tem uma capacidade limitada e nunca consegue formar uma concepção completa e adequada do in finito Mesmo que não se o admitisse tal fato seria suficientemente evidente pela mais simples observação e experiência É também evi dente que tudo aquilo que é suscetível de ser dividido ao infinito tem de consistir em um número infinito de partes e é impossível estabe lecer qualquer limite para o número de partes sem ao mesmo tem po limitar a divisão Não há necessidade de grandes raciocínios para se concluir daí que a idéia que formamos de uma quantidade finita qualquer não é infinitamente divisível ao contrário mediante dis tinções e separações apropriadas podemos resolver essa idéia em idéias inferiores perfeitamente simples e indivisíveis Ao rejeitar a capacidade infinita da mente supomos que ela pode atingir um ter mo na divisão de suas idéias Não há como fugir à evidênda dessa conclusão 3 É certo portanto que a imaginação atinge um mínimo e é capaz de gerar uma idéia da qual não pode conceber nenhuma subdivisão isto é que não pode ser diminuída sem ser totalmente aniquilada Quando alguém me fala da milésima e da décima milésima parte de um grão de areia faço uma idéia distinta desses números e de suas diferentes proporções mas as imagens que formo em minha mente para representar essas próprias coisas em questão não diferem em It requires scarce any induction Hume não parece estar usando aqui inductionno sen tido mais corrente para nós isto é inferência de uma conclusão geral a partir da observa ção de casos particulares mas antes no sentido mais amplo de mera inferência Cf Oxford English Dictionary induction 7b NT David Fate Norton e Mary Norton justificam assim sua correção de quality para quantity in Substantive differences between two texts of Humes Treatise Hume Studies nov 2000 XXVI2 24577 Hume goes on in the next paragraph to focus on our ideas of fractional parts or quantities thousandths and ten thousandths of grains of sand The remaining paragraphs of the section discuss the parts of entities ink spots mites but not the qualities ofthese entities The phrase finite quantity is repeated at 124 14 at 12432 we are told that no idea of quantity is infinitely divisible There are no relevantly similar discussions of finite qualities NT 52 Livro 1 Parte 2 Seção 1 nada uma da outra e tampouco são inferiores à imagem pela qual represento o próprio grão de areia que supostamente excede a ambas em tamanha proporção Tudo que é composto de partes é distinguível nessas partes e tudo que é distinguível é separável Mas o que quer que possamos imaginar da coisa mesma a idéia de um grão de areia não é distinguível nem separável em vinte e menos ainda em mil dez mil ou em um número infinito de idéias diferentes 4 O que se passa com as idéias da imaginação passase igualmente com as impressões dos sentidos Fazei uma pequena mancha de tin ta sobre uma folha de papel fixai nela os olhos e afastaivos gradati vamente até uma distância em que finalmente não mais a enxergueis É claro que no momento que precedeu seu desaparecimento a ima gem ou impressão era perfeitamente indivisível Não é por falta de raios de luz atingindo nossos olhos que as partes diminutas dos cor pos distantes não transmitem nenhuma impressão sensível e sim porque elas estão além da distância em que suas impressões estavam reduzidas a um mínimo e eram incapazes de sofrer qualquer outra diminuição Um microscópio ou um telescópio que as tornam visí veis não produzem novos raios de luz apenas espalham aqueles que já eram emitidos por essas partes produzindo assim partes em im pressões que a olho nu parecem simples e sem composição ao mes mo tempo em que elevam a um mínimo aquilo que antes era imper ceptível 5 Podemos desse modo descobrir em que consiste o erro da opi nião comum de que a capacidade da mente é limitada em ambos os sentidos e que é impossível para a imaginação formar uma idéia ade quada daquilo que ultrapassa um certo grau de pequenez ou de gran deza Nada pode ser menor que certas idéias que formamos na fan tasia ou que certas imagens que aparecem aos sentidos pois estas são idéias e imagens perfeitamente simples e indivisíveis O único de feito de nossos sentidos é o de nos fornecer imagens desproporcio nais das coisas representando como minúsculo e sem composição aquilo que na realidade é grande e composto de um imenso núme 53 Tratado da natureza humana ro de partes Mas não nos damos conta desse erro Em vez disso con sideramos que as impressões desses objetos minúsculos que apa recem aos sentidos são iguais ou quase iguais aos objetos e desco brindo pela razão que há outros objetos muitíssimo menores concluímos precipitadamente que eles são inferiores a qualquer idéia de nossa imaginação ou a qualquer impressão de nossos sentidos Em todo caso uma coisa é certa somos capazes de formar idéias que não serão maiores que o menor átomo dos espíritos animais de um inseto mil vezes menor que uma pulga E devemos antes concluir que a dificuldade está em ampliar nossas concepções até conseguirmos formar uma noção correta de uma pulga ou mesmo de um inseto mil vezes menor que uma pulga Pois para formar uma noção corre ta desses animais precisamos ter uma idéia distinta que represente todas as suas partes o que de acordo com o sistema da divisibilidade infinita é inteiramente impossível e de acordo com o das partes indivisíveis ou átomos é extremamente difícil em razão do enorme número e da imensa multiplicidade dessas partes Seção 2 Da divisibilidade infinita do espaço e do tempo 1 Quando as idéias representam adequadamente seus objetos to das as relações contradições e concordâncias entre elas são aplicá A NNOPT substitui objetos por partes seguindo antes a correção da Errata de Hume que suas correções manuscritas adotadas por SBN A justificativa dos editores Cf Davis F Norton Mary Norton op cit é que esta última correção faz Hume afirmar que certos objetos minúsculos são quase iguais a objetos o que lhes parece pouco provável Além disso haveria a discussão sobre partes diminutas no parágrafo anterior a referência a partes no final da frase e a insistência de Hume nesse mesmo parágrafo de que para formar uma noção correta de pulgas e insetos ainda menores precisamos ter uma idéia distinta que represente todas as suas partes Não posso concordar com essa conclusão O que Hume diz aqui e no parágrafo anterior é justamente que não temos impressões des sas partes de que são formados os objetos minúsculos Além disso não vejo qualquer problema na frase citada pois não são os objetos minúsculos que são quase iguais aos objetos mas sim as impressões desses objetos minúsculos NT 54 Livro 1 Parte 2 Seção 2 veis também a estes Tal é como podemos observar em geral o fun damento de todo o conhecimento humano Ora nossas idéias são representações adequadas das mais diminutas partes da extensão e não obstante todas as divisões e subdivisões que possam ter sido necessárias para se chegar a essas partes elas jamais poderão se tor nar inferiores a algumas idéias que formamos A conseqüência evidente disso é que tudo que parece impossível e contraditório pela compara ção entre essas idéias tem de ser realmente impossível e contraditório sem escapatória 2 Tudo que é suscetível de ser infinitamente dividido contém um número infinito de partes se assim não fosse a divisão seria abrup tamente interrompida pelas partes indivisíveis a que logo chegaría mos Portanto se qualquer extensão finita é infinitamente divisível não pode ser contraditório supor que uma extensão finita contém um número infinito de partes e viceversa se for contraditório supor que uma extensão finita contém um número infinito de partes nenhu ma extensão finita pode ser infinitamente divisível Ora ao exami nar minhas idéias claras convençome facilmente de que tal suposi ção é absurda Em primeiro lugar tomo a menor idéia que consigo formar de uma parte da extensão e certo de que não existe nada menor que essa idéia concluo que tudo que descubro por meio dela tem de ser uma qualidade real da extensão Repito então essa idéia uma duas três vezes e assim por diante e vejo que a idéia compos ta de extensão produzida por essa repetição aumenta sempre tornan dose duas três quatro vezes maior etc expandindose até finalmen te atingir um tamanho considerável que pode ser maior ou menor conforme eu repita mais ou menos vezes a mesma idéia Quando suspendo a adição de partes a idéia de extensão pára de aumentar Em troca percebo claramente que se prosseguisse ao infinito com a adição a idéia de extensão também se tornaria infinita De tudo isso concluo que a idéia de um número infinito de partes e a idéia de uma extensão infinita são numericamente idênticas que nenhuma exten 55 Tratado da natureza humana são finita é capaz de conter um número infinito de partes e conse qüentemente que nenhuma extensão finita é infinitamente divisível1 3 Gostaria de acrescentar aqui um outro argumento proposto por um autor famoso2 e que me parece bastante forte e elegante É evi dente que a existência em si cabe apenas à unidade e só pode ser aplicada aos demais números em virtude das unidades que os com põem Podese bem dizer que vinte homens existem mas é somen te porque um dois três quatro homens etc existem e se negarmos a existência destes a daqueles naturalmente desaparece É inteira mente absurdo portanto supor a existência de um número qualquer mas negar a existência de unidades E como conforme a opinião comum dos metafísicos a extensão é sempre um número e nunca pode ser resolvida em unidades ou quantidades indivisíveis segue se que a extensão não pode de maneira alguma existir Seria inútil replicar que uma quantidade determinada de extensão é uma unida de mas tal que admite um número infinito de frações sendo ines gotável em suas subdivisões pois pela mesma regra esses vinte ho mens podem ser considerados como uma unidade Todo o globo terrestre ou melhor ainda o universo inteiro pode ser considerado uma unidade O termo unidade é apenas uma denominação fictícia que a mente pode aplicar a qualquer quantidade de objetos por ela reunidos Sen do na realidade um verdadeiro número tal unidade não pode existir sozinha já que um número não o pode A unidade que pode existir so zinha e cuja existência é necessária à existência de todos os núme ros é uma unidade de outro tipo ela deve ser perfeitamente indivisível e incapaz de ser resolvida em qualquer unidade menor Foime objetado que a divisibilidade infinita supõe apenas um número infinito de partes proporcionais e não de partes alíquotas e que um número infinito de partes proporcionais não compõe uma extensão infinita Mas essa distinção não tem nenhum valor Quer se denominem tais partes alíquotas quer proporcionais elas não podem ser inferiores àquelas partes minúsculas que concebemos e portanto sua conjunção não pode formar uma extensão menor 2 Monsieur Malezieu Nicolas de Maléziee 1650172 7 A passagem a que Hume se refere encontrase em Éléments de Géométrie de Monseigneur le duc de Bourgogne livro IX 1715 NT 56 Todo esse raciocínio se aplica também ao tempo juntamente com um argumento adicional que valeria a pena considerar Uma propriedade inseparável do tempo e que constitui de certa maneira sua essência é que suas partes são todas sucessivas nenhuma delas podendo coexistir com outra ainda que sejam contíguas A mesma razão pela qual o ano de 1737 não pode coincidir com o presente ano de 1738 faz que todo momento deva ser distinto de outro isto é deva ser posterior ou anterior a ele Portanto é certo que o tempo tal como existe deve ser composto de momentos indivisíveis Pois se no caso do tempo nunca pudéssemos chegar ao fim da divisão e se cada momento ao suceder outro não fosse perfeitamente singular e indivisível haveria um número infinito de momentos ou partes coexistentes de tempo Acredito que todos irão concordar que isso seria uma pura e simples contradição A divisibilidade infinita do espaço implica a do tempo como fica evidente pela natureza do movimento Se a segunda portanto é impossível a primeira também deve ser Estou certo de que mesmo os mais obstinados defensores da doutrina da divisibilidade infinita admitirão que esses argumentos contêm dificuldades e que é impossível dar a eles uma resposta perfeitamente clara e satisfatória Mas podemos aqui observar que nada pode ser mais absurdo que esse costume de atribuir uma dificuldade àquilo que pretende ser uma demonstração tentando desse modo eludir sua força e evidência As demonstrações não são como as probabilidades em que podem ocorrer dificuldades e um argumento pode contrabalançar outro diminuindo sua autoridade Se for correta uma demonstração não admite a oposição de nenhuma dificuldade se não o for não passa de um mero sofisma e conseqüentemente jamais pode conter uma dificuldade Uma demonstração ou é irresistível ou não tem força alguma Portanto falar em objeções e respostas em contraposição de argumentos numa questão como essa é o mesmo que confessar que a razão humana é um simples jogo de palavras ou que a pessoa que assim se exprime não está à altura desses as Tratado da natureza humana sumos Há demonstrações difíceis de se compreender por causa do caráter abstrato de seu tema nenhuma demonstração porém uma vez compreendida pode conter dificuldades que enfraqueçam sua autoridade 7 Os matemáticos provavelmente dirão é verdade que nesta ques tão os argumentos da outra parte são igualmente fortes e que a dou trina dos pontos indivisíveis pode também ser alvo de objeções ir respondíveis Antes de examinar detalhadamente esses argumentos e objeções irei considerálos como um todo buscando provar de uma só vez mediante um raciocínio curto e decisivo que é inteiramente impossível que eles tenham qualquer fundamento correto 8 É uma máxima estabelecida da metafísica que tudo que a mente concebe claramente inclui a idéia da existência possível ou em outras pa lavras que nada que imaginamos é absolutamente impossível Como po demos formar a idéia de uma montanha de ouro concluímos que uma montanha assim pode realmente existir Não somos capazes porém de formar a idéia de uma montanha sem um vale e por isso a vemos como impossível 9 Ora é certo que temos uma idéia de extensão pois senão por que falamos e raciocinamos a seu respeito É igualmente certo que essa idéia tal como concebida pela imaginação embora seja divisível em partes ou idéias inferiores não é infinitamente divisível nem é composta de um número infinito de partes pois isso excederia o âmbito de nossa limitada capacidade Eis portanto uma idéia de ex tensão que se compõe de partes ou idéias inferiores perfeitamente indivisíveis conseqüentemente essa idéia não implica contradição conseqüentemente é possível que a extensão exista realmente con forme a essa idéia e conseqüentemente todos os argumentos em pregados contra a possibilidade dos pontos matemáticos são meras tergiversações escolásticas indignas de nossa atenção 10 Podemos levar um pouco adiante essas conseqüências e concluir que todas as pretensas demonstrações da divisibilidade infinita da extensão são igualmente sofísticas Pois é certo que essas demons 58 Livro 1 Parte 2 Seção 3 trações não podem ser corretas a menos que provem a impossibili dade dos pontos matemáticos o que seria manifestamente absurdo Seção 3 Das outras qualidades de nossas idéias de espaço e tempo 1 Não poderia haver descoberta mais feliz para a solução de todas as controvérsias em torno das idéias que a anteriormente menciona da que as impressões sempre precedem as idéias e que toda idéia contida na imaginação apareceu primeiro em uma impressão cor respondente As percepções deste último tipo são todas tão claras e evidentes que não admitem discussão ao passo que muitas de nos sas idéias são tão obscuras que é quase impossível mesmo para a mente que as forma dizer qual é exatamente sua natureza e composi ção Façamos pois uma aplicação desse princípio a fim de descobrir algo mais sobre a natureza de nossas idéias de espaço e de tempo 2 Ao abrir meus olhos e dirigir o olhar para os objetos à minha volta percebo vários corpos visíveis quando novamente os fecho e considero a distância entre esses corpos adquiro a idéia de exten são Como toda idéia é derivada de uma impressão que lhe é exata mente similar as impressões similares a essa idéia de extensão de vem ser ou bem sensações derivadas da visão ou bem impressões internas oriundas dessas sensações 3 Nossas impressões internas são as paixões emoções desejos e aversões e acredito que ninguém jamais afirmará que alguma delas é o modelo de que deriva a idéia de espaço Restam portanto apenas os sentidos como aquilo que seria capaz de nos transmitir essa im pressão original Ora que impressão nos transmitem nossos senti dos neste caso Essa é a questão principal e é ela que decidirá sem apelação possível qual a natureza da idéia 4 A visão da mesa à minha frente é suficiente para me dar a idéia de extensão Essa idéia portanto é obtida de alguma impressão que 59 Tratado da natureza humana ela representa e que aparece neste momento aos sentidos Mas meus sentidos me transmitem somente as impressões de pontos coloridos dispostos de uma certa maneira Se há alguma coisa mais a que o olho é sensível gostaria que me fosse apontada se isso não for possível poderemos concluir com segurança que a idéia de extensão não é se não uma cópia desses pontos coloridos e do modo como aparecem 5 Suponhamos que no objeto extenso isto é na composição de pontos coloridos da qual recebemos pela primeira vez a idéia de ex tensão os pontos fossem de cor púrpura Seguese que cada vez que repetíssemos essa idéia nós não apenas iríamos dispor os pontos na mesma ordem mas iríamos ainda atribuirlhes essa cor precisa a única que por hipótese conhecemos Mas depois de termos experi mentado também as outras cores violeta verde vermelho branco preto bem como todas as suas combinações e de termos encon trado uma semelhança na disposição dos pontos coloridos de que são compostas omitimos tanto quanto possível as peculiaridades rela tivas à cor e construímos uma idéia abstrata baseados apenas naqui lo em que elas concordam na disposição de seus pontos ou seja no modo como estes aparecem E mesmo quando a semelhança se es tende para além dos objetos de um único sentido mesmo quando descobrimos que as impressões do tato são semelhantes às da visão pela disposição de suas partes isso não impede que a idéia abstrata represente ambas em razão de sua semelhança Todas as idéias abs tratas são na realidade apenas idéias particulares consideradas sob um certo ângulo mas sendo vinculadas a termos gerais tornamse capazes de representar uma grande diversidade e de compreender objetos que embora semelhantes em alguns aspectos particulares são em outros aspectos bastante diferentes uns dos outros 6 A idéia de tempo derivada da sucessão de todo tipo de percepção tanto idéias como impressões e tanto impressões de reflexão como de sensação irá nos proporcionar um exemplo de uma idéia abstrata que compreende uma diversidade ainda maior que a do espaço e que entretanto é representada na fantasia por alguma idéia individual par ticular de uma quantidade e qualidade determinadas 60 Livro 1 Parte 2 Seção 3 7 Assim como recebemos a idéia de espaço da disposição dos obje tos visíveis e tangíveis assim também formamos a idéia de tempo partindo da sucessão de nossas idéias e impressões O tempo por si só jamais pode aparecer nem ser notado pela mente Um homem mer gulhado em sono profundo ou intensamente ocupado com um só pensamento é insensível ao tempo e conforme suas percepções su cedam umas às outras com uma rapidez maior ou menor a mesma duração parecerá mais longa ou mais curta para sua imaginação Um grande filósofo3 já observou que nossas percepções conhecem cer tos limites quanto a esse aspecto particular limites estes que são determinados pela natureza e constituição original da mente Nenhu ma influência de objetos externos sobre os sentidos é capaz de apres sar ou de retardar nosso pensamento para além desses limites Se fi zermos girar rapidamente um pedaço de carvão incandescente a imagem que irá se apresentar aos sentidos será a de um círculo de fogo Não se notará nenhum intervalo de tempo entre suas revolu ções e isso simplesmente porque é impossível que nossas percep ções se sucedam umas às outras com a mesma rapidez com que o movimento é comunicado aos objetos externos Quando não temos percepções sucessivas não temos nenhuma noção de tempo mes mo que exista uma sucessão real nos objetos Com base nesses e em muitos outros fenômenos podemos concluir que o tempo não pode aparecer à mente nem isolado nem acompanhado de um objeto fixo e imutável Ao contrário ele sempre é descoberto em virtude de al guma sucessão perceptível de objetos em mudança 8 Para confirmar o que foi dito podemos acrescentar o seguinte argumento que me parece inteiramente decisivo e convincente É evidente que o tempo ou duração é composto de partes diferentes pois de outro modo não seríamos capazes de conceber durações mais longas ou mais curtas É também evidente que tais partes não são coexistentes pois essa qualidade da coexistência das partes perten 3 Sr Locke Oohn Locke Essay 214 NT 61 Tratado da natureza humana ce à extensão sendo precisamente o que a distingue da duração Ora como o tempo é composto de partes não coexistentes um objeto in variável que produz apenas impressões coexistentes não produz nenhuma impressão capaz de nos dar a idéia de tempo Conseqüen temente essa idéia tem de ser derivada de uma sucessão de objetos em mudança Em sua primeira aparição o tempo não pode ser sepa rado de tal sucessão 9 Tendo assim descoberto que o tempo em sua primeira aparição à mente ocorre sempre em conjunção com uma sucessão de objetos em mudança e que se não fosse desse modo nós nunca o notaría mos devemos agora examinar se podemos concebêlo sem conceber uma sucessão de objetos e se ele sozinho é capaz de formar uma idéia distinta na imaginação 10 Para sabermos se dois objetos que estão juntos na impressão são separáveis na idéia precisamos apenas considerar se eles são diferen tes um do outro pois nesse caso é evidente que podem ser conce bidos separadamente Tudo que é diferente é distinguível e tudo que é distinguível pode ser separado de acordo com as máximas acima explicadas Se ao contrário esses objetos não forem diferentes eles não serão distinguíveis e se não forem distinguíveis não poderão ser separados Ora esse é precisamente o caso do tempo se comparado com nossas percepções sucessivas A idéia de tempo não é derivada de uma impressão particular misturada a outras das quais seria cla ramente distinguível Ela surge exclusivamente da maneira como as impressões aparecem à mente sem ser uma delas Cinco notas tocadas numa flauta nos dão a impressão e a idéia de tempo embo ra o tempo não seja uma sexta impressão que se apresentaria à audi ção ou a algum outro sentido Tampouco é uma sexta impressão que a mente encontraria dentro de si pela reflexão Esses cinco sons que aparecem dessa maneira particular não despertam nenhuma emo ção na mente nem produzem algum tipo de afeto cuja observação Hume utiliza o termo affection na maioria das vezes como sinônimo de passion pai xão É estritamente nesse sentido que emprego afeto em lugar de afecção que 62 Livro 1 Parte 2 Seção 3 pudesse gerar uma nova idéia pois é isso que é necessário para a produção de uma nova idéia da reflexão Mesmo que a mente repas sasse mil vezes todas as suas idéias de sensação nunca seria capaz de extrair daí uma nova idéia original a menos que a natureza hou vesse fabricado suas faculdades de tal maneira que ela sentisse algu ma nova impressão original surgir dessa contemplação Mas aqui a mente percebe apenas a maneira como os diferentes sons fazem sua aparição e essa maneira ela pode posteriormente considerála sem considerar os sons particulares conjugandoa com qualquer outro objeto As idéias de alguns objetos ela certamente tem de possuir e sem estas serlheia impossível chegar a uma concepção do tempo O tempo portanto uma vez que não aparece como uma impressão primária distinta não pode evidentemente ser outra coisa que dife rentes idéias impressões ou objetos dispostos de uma certa manei ra isto é sucedendose uns aos outros 11 Bem sei que há os que afirmam que a idéia de duração pode ser aplicada em um sentido apropriado a objetos perfeitamente invariá veis Essa me parece ser a opinião comum tanto dos filósofos como do vulgo Para nos convencermos de sua falsidade porém basta re fletir sobre a conclusão precedente ou seja que a idéia de duração deriva sempre de uma sucessão de objetos em mudança e jamais pode ser transmitida à mente por algo fixo e invariável Pois daí se segue inevitavelmente que já que a idéia de duração não pode ser derivada de tal objeto ela nunca pode ser aplicada a ele de maneira apropriada ou exata e portanto nunca se pode dizer que uma coisa imutável tem duração As idéias sempre representam os objetos ou impressões de que derivam e jamais podem representar ou ser aplica das a outros objetos ou impressões senão por uma ficção Posterior poderia gerar alguns malentendidos sobretudo se nos guiarmos pela distinção espinosista entre affectio e affectus É importante ressaltar entretanto que a palavra affection tem ainda para Hume o sentido de afeição que para nós aliás também corresponde a um segundo sentido de afeto Para evitar confusão portanto reservei sempre para este último sentido o termo afeição NT 63 Tratado da natureza humana mente 4 consideraremos por meio de que ficção aplicamos a idéia de tempo também àquilo que é imutável supondo como é usual que a duração é uma medida tanto do repouso como do movimento 12 Existe outro argumento bastante decisivo que confirma a pre sente doutrina acerca de nossas idéias de espaço e tempo e está fun dado unicamente neste simples princípio que essas idéias são compos tas de partes indivisíveis Vale a pena examinarmos esse argumento 13 Visto que toda idéia que é distinguível é também separável to memos uma dessas idéias simples e indivisíveis que formam a idéia composta de extensão separandoa de todas as outras e consideran doa à parte e formemos um juízo sobre sua natureza e qualidades 14 É claro que esta não é a idéia de extensão Pois a idéia de exten são é formada de partes ao passo que esta de acordo com nossa su posição é perfeitamente simples e indivisível Mas então ela não é nada Isso é absolutamente impossível Pois como a idéia composta de extensão que é real é composta de tais idéias simples fossem estas meras nãoentidades haveria uma existência real composta de não entidades o que é absurdo Devo portanto perguntar em que con siste nossa idéia de um ponto simples e indivisível Não é de admirar que minha resposta pareça um tanto nova uma vez que a própria ques tão raramente foi objeto de reflexão Costumamos discutir acerca da natureza dos pontos matemáticos mas quase nunca acerca da natu reza de suas idéias 15 A idéia de espaço é transmitida à mente por dois sentidos a vi são e o tato nada jamais parecerá extenso se não for visível ou tangí vel A impressão composta que representa a extensão consiste em várias impressões menores que são indivisíveis ao olhar ou ao tato e que podem ser denominadas impressões de átomos ou corpúscu los dotados de cor e solidez Mas isso não é tudo Não é preciso ape nas que esses átomos sejam coloridos ou tangíveis para que possam se mostrar a nossos sentidos é igualmente necessário que preserve 4 Seção 5 p93 64 Livro 1 Parte 2 Seção 4 mos a idéia de sua cor ou tangibilidade para que os possamos com preender por meio de nossa imaginação Somente a idéia de sua cor ou tangibilidade pode tornálos concebíveis pela mente Se suprimir mos essas qualidades sensíveis tais átomos serão inteiramente ani quilados para o pensamento ou imaginação 16 Ora tais as partes tal o todo Se um ponto não for considerado colorido ou tangível ele não poderá nos transmitir nenhuma idéia e como conseqüência a idéia de extensão que é composta das idéias desses pontos jamais poderá existir Mas se a idéia de extensão real mente pode existir e temos plena consciência de que o pode suas partes também têm de existir e para isso devem ser consideradas como coloridas ou tangíveis Portanto só possuímos idéia de espaço ou extensão se o consideramos como um objeto de nossa visão ou de nosso tato 17 O mesmo raciocínio provará que os momentos indivisíveis do tem po devem ser preenchidos por algum objeto ou existência real cuja sucessão forma a duração permitindo que esta seja concebida pela mente Seção 4 Resposta às objeções 1 Nosso sistema do espaço e do tempo possui duas partes intima mente ligadas A primeira depende da seguinte cadeia de raciocínios A capacidade da mente não é infinita conseqüentemente nenhuma idéia de extensão ou de duração consiste em um número infinito de partes ou idéias inferiores mas sim em um número finito de partes ou idéias simples e indivisíveis É possível portanto que o espaço e o tempo existam em conformidade com essa idéia E se isso é possí vel é certo que eles realmente existem em conformidade com ela uma vez que sua divisibilidade infinita é inteiramente impossível e con traditória 2 A outra parte de nosso sistema é uma conseqüência do que se se gue As partes a que se reduzem as idéias de espaço e de tempo são em 65 Tratado da natureza humana última análise indivisíveis e essas partes indivisíveis não sendo nada em si mesmas serão inconcebíveis se não estiverem preenchidas por algo real e existente As idéias de espaço e tempo portanto não são idéias separadas ou distintas mas simplesmente idéias da maneira ou ordem como os objetos existem Em outras palavras é impossí vel conceber seja um vácuo e uma extensão sem matéria seja um tempo em que não houve nenhuma sucessão ou alteração em uma existência real A estreita conexão entre essas partes de nosso siste ma é a razão pela qual examinaremos conjuntamente as objeções le vantadas contra ambas a começar pelas que atacam a divisibilidade finita da extensão 3 1 A primeira objeção que irei considerar serve mais para provar essa conexão e dependência entre as duas partes do que para des truir qualquer uma delas Sustentouse freqüentemente nas escolas que a extensão deve ser divisível ao infinito porque o sistema dos pontos matemáticos é absurdo e que esse sistema é absurdo porque um ponto matemático é uma nãoentidade e conseqüentemente jamais poderia por sua conjunção com outros pontos formar uma existência real Esse raciocínio seria absolutamente decisivo senão houvesse um meiotermo entre a divisibilidade infinita da matéria e a nãoentidade dos pontos matemáticos Mas é evidente que há um meiotermo a atribuição de cor ou solidez a esses pontos Aliás o absurdo dos dois extremos constitui uma demonstração da verdade e realidade desse meiotermo O sistema dos pontos físicos que seria um outro meiotermo é tão absurdo que não é necessário refutálo Uma extensão real tal como se supõe que seja um ponto físico jamais poderia existir sem partes diferentes entre si e todos os objetos dife rentes são distinguíveis e separáveis pela imaginação 4 2 A segunda objeção argumenta que se a extensão fosse com posta de pontos matemáticos seria necessária uma penetração Quan do um átomo simples e indivisível toca outro ele deve necessaria mente penetrálo pois seria impossível que ele tocasse apenas suas partes externas já que a própria suposição de sua perfeita simpli 66 Livro 1 Parte 2 Seção 4 cidade exclui a existência de partes Ele deve portanto tocálo intima mente e em toda sua essência secundum se tota et totaliter que é a definição mesma da penetração Mas a penetração é impossível E os pontos matemáticos são como conseqüência igualmente impossíveis 5 Respondo a essa objeção apresentando uma idéia mais correta de penetração Suponhamos que dois corpos que não contêm nenhum espaço vazio dentro de seus perímetros aproximemse um do outro unindose de tal maneira que o corpo resultante de sua união não seja mais extenso que qualquer um dos dois É isso que devemos ter em mente quando falamos de penetração É evidente porém que essa pe netração nada mais é que a aniquilação de um desses corpos e a pre servação do outro sem que sejamos capazes de distinguir qual deles particularmente foi preservado e qual foi aniquilado Antes da aproxi mação temos a idéia de dois corpos depois de apenas um É impossí vel à mente preservar qualquer noção de uma diferença entre dois cor pos da mesma natureza existindo no mesmo lugar ao mesmo tempo 6 Entendendo então a penetração nesse sentido ou seja como a aniquilação de um corpo quando de sua aproximação com um outro pergunto se alguém considera necessário que um ponto colorido ou tangível seja aniquilado ao se aproximar de um outro ponto colorido ou tangível Ao contrário não se perceberá claramente que da união desses pontos resulta um objeto composto e divisível que pode ser distinguido em duas partes cada uma das quais conserva sua exis tência distinta e separada apesar de sua contigüidade com a outra Para auxiliar a fantasia concebamos que esses pontos são dotados de cores diferentes o que impede melhor sua mistura e confusão Um ponto azul e um ponto vermelho certamente podem ser contí guos sem que haja penetração ou aniquilação Caso contrário o que poderia lhes acontecer Qual deles seria aniquilado o vermelho ou o azul Ou ainda se as duas cores se fundissem em uma só que nova cor seria produzida por essa união De acordo consigo mesmo todo e completamente NT 67 O que gera tais objeções tornandoas ao mesmo tempo tão difíceis de serem respondidas satisfatoriamente é sobretudo a falta de firmeza e a instabilidade naturais tanto de nossa imaginação como de nossos sentidos quando aplicados a objetos tão diminutos Fazei uma pequena mancha de tinta sobre uma folha de papel e afastaivos até a distância em que essa mancha se torna completamente invisível Ao vos aproximar novamente do papel vereis que primeiro a mancha se torna visível durante breves intervalos em seguida tornase visível o tempo todo depois apenas adquire nova força em seu colorido sem aumentar de tamanho e finalmente após ter crescido ao ponto de se tornar realmente extensa mesmo então ainda é difícil para a imaginação quebrála em suas partes componentes em razão da dificuldade que sente em conceber um objeto tão minúsculo como um simples ponto Essa deficiência afeta a maior parte de nossos raciocínios sobre o presente tema tornando quase impossível responder de um modo inteligível e por meio de expressões apropriadas a muitas questões que podem surgir a seu respeito 3 Muitas objeções contra a indivisibilidade das partes da extensão foram extraídas da matemática embora à primeira vista essa ciência pareça antes favorável à presente doutrina e mesmo quando contrária a ela em suas demonstrações élhe perfeitamente conforme em suas definições Minha tarefa neste momento deve ser por isso defender as definições e refutar as demonstrações Uma superfície se define como um comprimento e uma largura sem profundidade uma linha como um comprimento sem largura nem profundidade um ponto como aquilo que não possui nem comprimento nem largura nem profundidade É evidente que tudo isso é ininteligível se nos baseamos em qualquer outra suposição que não seja a de que a extensão se compõe de pontos ou átomos indivisíveis De que outro modo uma coisa poderia existir sem comprimento sem largura ou sem profundidade Constato que esse argumento recebeu duas respostas nenhuma das quais em minha opinião é satisfatória A primeira é que os Livro 1 Parte 2 Seção 4 objetos da geometria as superfícies linhas e pontos cujas propor ções e posições ela examina são meras idéias na mente e não ape nas nunca existiram como nunca podem vir a existir na natureza Nunca existiram pois ninguém tem a pretensão de traçar uma li nha ou desenhar uma superfície de maneira inteiramente confor me à definição Nunca podem vir a existir pois partindo dessas pró prias idéias podemos realizar demonstrações que provam sua impossibilidade 1 1 Mas podese imaginar algo mais absurdo e contraditório que esse raciocínio Tudo que pode ser concebido por uma idéia clara e distin ta implica necessariamente a possibilidade de sua existência E aquele que pretende provar a impossibilidade dessa existência por um argu mento derivado de sua idéia clara está afirmando na realidade que não temos disso nenhuma idéia clara porque temos uma idéia clara Seria em vão buscar uma contradição em algo que é distintamente concebido pela mente Se implicasse contradição seria impossível concebêlo 12 Não há meiotermo portanto entre admitir ao menos a possibi lidade de pontos indivisíveis e negar sua idéia É sobre este último princípio que se funda a segunda resposta ao argumento anterior Afirmouse5 que embora seja impossível conceber um comprimen to sem largura podemos por meio de uma abstração sem separação considerar uma dessas propriedades sem levar em conta a outra do mesmo modo como podemos pensar no comprimento do caminho entre duas cidades desprezando sua largura O comprimento é inseparável da largura tanto na natureza como em nossas mentes mas isso não exclui a possibilidade de uma consideração parcial e de uma distinção de razão da maneira acima explicada 13 Ao refutar essa resposta não insistirei sobre o argumento que já expliquei suficientemente de que se for impossível para a mente 5 LArt de penser A Arnauld 1 6121 694 e P Nicole 16251 695 La logique ou Lart de penser NT 69 Tratado da natureza humana atingir um mínimo em suas idéias sua capacidade deve ser infinita para que possa compreender o número infinito de partes que com poriam sua idéia de uma extensão qualquer Tentarei aqui encon trar novos absurdos nesse raciocínio 14 Um sólido é limitado por uma superfície uma superfície é limi tada por uma linha uma linha é limitada por um ponto Ora afirmo que se as idéias de ponto linha ou superfície não fossem indivisíveis sernosia impossível sequer conceber esses limites Pois suponha mos que essas idéias fossem infinitamente divisíveis Nesse caso se a fantasia tentasse se fixar na idéia da última superfície linha ou pon to ela imediatamente veria essa idéia cindirse em partes e ao ten tar se apoderar da última dessas partes deixálaia escapar por uma nova divisão e assim sucessivamente ao infinito sem nenhuma possibilidade de chegar a uma idéia última Um grande número de fracionamentos não a aproximaria mais da última divisão que a pri meira idéia formada Cada partícula esquivarseia à apreensão me diante um novo fracionamento como acontece com o mercúrio quan do o tentamos pegar Mas já que de fato deve haver algo que limite a idéia de toda qualidade finita e como essa idéialimite não pode ela mesma consistir em partes ou idéias inferiores pois senão a última de suas partes é que limitaria a idéia e assim por diante isso é uma prova clara de que as idéias de superfícies linhas e pontos não admi tem certas divisões as de superfícies não admitem divisão na pro fundidade as de linhas na largura e na profundidade e as de pontos em nenhuma dimensão 15 Os escolásticos estavam tão cientes da força desse argumento que alguns deles afirmavam que a natureza teria misturado um certo nú mero de pontos matemáticos entre as partículas de matéria divisíveis ao infinito com a finalidade de dar um limite aos corpos Outros ten tavam eludir a força do argumento por meio de um amontoado de cavilações e distinções ininteligíveis Mas todos estavam com isso reconhecendo a vitória de seu adversário O homem que se esconde 70 Livro 1 Parte 2 Seção 4 está admitindo a superioridade do inimigo de forma tão evidente quanto aquele que abertamente entrega suas armas 16 Desse modo parece que as próprias definições dos matemáticos destróem as pretensas demonstrações e que se temos a idéia de pon tos linhas e superfícies indivisíveis conforme às definições sua exis tência é certamente possível Mas se não temos tal idéia énos inteira mente impossível conceber o limite de uma figura qualquer E sem essa concepção não pode haver demonstração geométrica 17 Vou ainda mais longe contudo e afirmo que nenhuma dessas demonstrações pode ter peso suficiente para estabelecer um princí pio como o da divisibilidade infinita isso porque por dizerem respei to a objetos tão minúsculos elas não são propriamente demonstra ções uma vez que são construídas sobre idéias inexatas e sobre máximas que não são precisamente verdadeiras Quando a geome tria faz qualquer asserção acerca das relações de quantidade não devemos esperar a mais alta precisão e exatidão Nenhuma de suas provas tem tal alcance Ela toma as dimensões e proporções das fi guras de maneira correta mas aproximada e com alguma liberdade Seus erros nunca chegam a ser consideráveis aliás ela jamais erra ria se não aspirasse a uma perfeição absoluta 18 Pergunto primeiramente aos matemáticos o que querem dizer quando afirmam que uma linha ou superfície é IGUAL a ou MAIOR ou MENOR que outra Pouco importa o que possam responder seja qual for a escola a que pertençam e quer afirmem que a extensão é composta por pontos indivisíveis quer por quantidades divisíveis ao infinito Essa questão embaraçará tanto a uns como a outros 19 Poucos matemáticos se algum defendem a hipótese dos pontos indivisíveis e entretanto são os que a defendem que possuem a mais pronta e correta resposta à presente questão Bastalhes responder que as linhas ou superfícies são iguais quando o número de pontos em cada uma delas é o mesmo e que conforme varia a proporção dos números a proporção das linhas e superfícies também varia Mas 7 1 Tratado da natureza humana embora essa resposta seja correta além de óbvia posso afirmar que esse critério de igualdade é inteiramente inútil e que quando quere mos determinar se certos objetos são iguais ou desiguais entre si nunca recorremos a tal comparação Porque os pontos que entram na composição de uma linha ou superfície qualquer sejam eles per cebidos pela visão ou pelo tato são tão diminutos e se confundem tanto uns com os outros que é inteiramente impossível para a mente computar seu número e por isso tal computação nunca poderá for necer um critério que nos permita avaliar as proporções Ninguém jamais será capaz de determinar por uma enumeração exata que uma polegada tem menos pontos que um pé ou que um pé tem menos pontos que um côvado ou qualquer outra medida maior Por essa razão raramente ou nunca consideramos tal enumeração como cri tério de igualdade ou desigualdade 20 Quanto aos que imaginam que a extensão é divisível ao infinito estes não podem utilizar tal resposta nem determinar a igualdade de duas linhas ou superfícies por uma enumeração de suas partes com ponentes Pois uma vez que segundo sua hipótese tanto as figuras menores como as maiores contêm um número infinito de partes e uma vez que números infinitos propriamente falando não podem ser nem iguais nem desiguais entre si a igualdade ou a desigualdade entre duas porções quaisquer do espaço jamais pode depender da proporção entre o número de suas partes Podese bem dizer que a O termo em inglês standard pode significar tanto critério como padrão Nossa palavra critério tende a conotar uma operação mais ligada ao entendimento enquantopadrão remete à comparação sensível entre dois objetos Na maioria dos casos que ocorrem na Parte 2 do Livro 1 onde se dá a maior incidência desse termo Hume parece estar se referindo a critério mas isso nem sempre é claro já que em suas próprias palavras o critério último que nos permite determinar com precisão por exemplo se uma linha é uma reta ou uma curva deriva dos sentidos e da imaginação Se nos guiarmos porém pela distinção que ele próprio propõe no Apêndice p676 entre the accurate and exact standard e the inaccurate standard derived from a comparison of objects upon their general appearance teremos uma justificativa para traduzir o termo standard sempre por critério As únicas exceções estão nas páginas 167 linha 3 e 693 linha 1 7 onde me pareceu mais adequado o uso de padrão NT 72 Livro 1 Parte 2 Seção 4 desigualdade entre um côvado e uma jarda consiste na diferença entre os números de pés de que são compostos e a desigualdade entre um pé e uma jarda na diferença entre os números de polegadas Mas como a quantidade que chamamos de uma polegada em um caso é supostamente igual à que chamamos de uma polegada no outro e como é impossível para a mente encontrar tal igualdade prosseguindo ao infinito com essas referências a quantidades inferiores é evidente que ao final devemos fixar algum critério de igualdade que não seja uma enumeração das partes Há os que afirmam6 que a igualdade é mais bem definida pela congruência e que duas figuras são iguais quando ao colocarmos uma sobre a outra todas as suas partes se correspondem e se tocam mu tuamente A fim de julgar essa definição consideremos que como a igualdade é uma relação ela não é estritamente falando uma pro priedade contida nas figuras mesmas surgindo somente pela com paração que a mente faz entre elas Se portanto ela consiste nessa aplicação imaginária e nesse contato mútuo entre as partes devemos ao menos ter uma noção distinta dessas partes e devemos conceber seu contato Ora é claro que nessa concepção teríamos de reduzir essas partes à menor dimensão concebível pois o contato entre par tes grandes nunca tornaria essas figuras iguais Mas as menores partes que podemos conceber são justamente os pontos matemáticos e con seqüentemente esse critério de igualdade é o mesmo que aquele derivado da igualdade entre o número de pontos que já mostramos ser um critério correto porém inútil Devemos portanto buscar a solução da presente dificuldade em outro canto Há muitos filósofos que se recusam a apontar um critério de igualdade afirmando em vez disso que basta apresentar dois obje tos iguais para que tenhamos uma noção correta dessa proporção Sem a percepção dos objetos dizem eles qualquer definição é infrutí 6 Ver as conferências matemáticas do Dr Barrow Isaac Barrow 1 6301 677 Lectiones Mathematicre XI NT 73 Tratado da natureza humana fera e quando percebemos os objetos não temos mais necessidade de definições Concordo inteiramente com esse raciocínio e afirmo que a única noção útil de igualdade ou desigualdade deriva da apa rência una e global bem como da comparação entre objetos particu lares É evidente que o olho ou antes a mente é com freqüência capaz de determinar de uma só vez as proporções dos corpos declaran doos iguais maiores ou menores uns em relação aos outros sem ter de examinar ou comparar o número de suas partes diminutas Tais juízos não são apenas comuns mas em muitos casos são também certos e infalíveis Quando se apresentam as medidas de uma jarda e de um pé a mente não tem como questionar se a primeira é mais comprida que a segunda exatamente como não pode duvidar daque les princípios que são mais claros e autoevidentes 23 Existem portanto três proporções que a mente distingue na apa rência geral de seus objetos e que denomina maior menor e igual Mas embora suas conclusões acerca dessas proporções sejam às vezes infalíveis isso nem sempre é assim Nossos juízos nesses casos são tão passíveis de dúvidas e erros quanto os juízos acerca de qualquer outro assunto Freqüentemente corrigimos nossa primeira opinião mediante uma revisão e uma reflexão declarando serem iguais cer tos objetos que antes havíamos considerado desiguais ou vendo como menor um objeto que nos parecera maior que outro E essa não é a única correção experimentada por esses juízos de nossos sentidos É freqüente descobrirmos nosso erro por uma justaposi ção dos objetos ou quando isso é impraticável pela utilização de uma medida comum e invariável que aplicamos sucessivamente a cada um deles informandonos assim sobre suas diferentes propor ções E mesmo essa correção é suscetível de nova correção bem como de diferentes graus de exatidão segundo a natureza do instrumento que utilizamos para medir os corpos e o cuidado com que realizamos a comparação 24 Quando portanto a mente se habitua a esses juízos e a suas corre ções e descobre que a mesma proporção que faz com que duas figuras 74 Livro 1 Parte 2 Seção 4 tenham perante nossos olhos aquela aparência que chamamos de igualdade também faz que elas se correspondam uma à outra bem como a uma medida comum de comparação nós formamos uma noção mista de igualdade derivada ao mesmo tempo dos métodos mais frouxos e mais precisos de comparação Mas não nos conten tamos com isso Pois como a boa razão nos convence de que há cor pos imensamente menores que aqueles que aparecem aos sentidos e como uma falsa razão nos persuadiria de que há corpos infinitamente menores percebemos claramente que não possuímos nenhum ins trumento ou técnica de medição que pudesse nos resguardar de todo erro e incerteza Percebemos que o acréscimo ou a subtração de uma dessas partes minúsculas não é discernível nem pela aparência dos corpos nem pela medição E como imaginamos que duas figuras antes iguais não podem continuar iguais após essa subtração ou esse acréscimo fazemos a suposição de um critério imaginário de igual dade que possa corrigir com exatidão tanto as aparências desses cor pos como o procedimento de medição reduzindo inteiramente as fi guras a essa proporção Tal critério é claramente imaginário Porque como a própria idéia de igualdade é a de uma aparência particular corrigida por justaposição ou por uma medida comum a noção de qualquer correção além daquela para a qual possuímos instrumen tos ou uma técnica apropriada é uma mera ficção da mente tão inú til quanto incompreensível Entretanto embora esse critério seja so mente imaginário a ficção é muito natural Pois nada é mais usual para a mente que continuar com uma ação dessa maneira mesmo após ter deixado de existir a razão que originalmente a havia levado a começar Isso se mostra de maneira bastante conspícua no caso do tempo Aqui embora seja evidente que o método para determinar as Appearance no original Nos casos em que o sentido dessa palavra não é o de aparição ou aparecimento mantive a tradução literal aparência Devese entretanto notar que no texto humeano aparência não tem na maioria das vezes o sentido que ficou mais corrente entre nós ou seja de mera aparência podendo significar simplesmente aqui lo que aparece É o caso das diversas ocorrências deste parágrafo NT 75 Tratado da natureza humana proporções das partes é ainda menos exato que no caso da extensão as várias correções de nossas medidas e seus diferentes graus de exatidão nos deram uma noção obscura e implícita de uma igualdade perfeita e completa O mesmo se passa em muitas outras áreas Um músico que vê sua audição se tornar a cada dia mais refinada e que corrige a si próprio pela reflexão e atenção prolonga o mesmo ato da mente ainda que seu objeto lhe falte mantendo a noção de uma ter ça ou uma oitava completas sem ser capaz de dizer de onde extraiu seu critério Um pintor forma a mesma ficção a propósito das cores um mecânico a propósito do movimento Para um a luz e a sombra para o outro a rapidez e a lentidão são imaginados como passíveis de uma comparação e uma igualdade exatas e para além do julgamento dos sentidos 25 Podemos aplicar o mesmo raciocínio às curvas e retas Nada é mais evidente aos sentidos que a distinção entre uma linha curva e uma reta nem há idéia mais fácil de se formar que as idéias desses obje tos No entanto por mais facilmente que o façamos é impossível definilas de tal maneira que possamos fixar os limites precisos en tre elas Quando traçamos uma linha sobre um papel ou qualquer superfície contínua ela passa de um ponto a outro seguindo uma certa ordem e é assim que se produz a impressão global de uma curva ou uma reta Essa ordem porém nos é inteiramente desconhecida e a única coisa que se observa é a aparência como um todo Assim mes mo de acordo com o sistema dos pontos indivisíveis não podemos formar senão uma noção vaga de algum critério desconhecido para esses objetos De acordo com o sistema da divisibilidade infinita não chegamos sequer a isso ficamos restritos a adotar a aparência geral como a regra pela qual determinamos se as linhas são curvas ou re tas Mas embora não possamos dar uma definição perfeita dessas linhas nem produzir um método exato o bastante para distinguir Mechanic no original o que no contexto pode significar tanto um tipo específico de trabalhador por exemplo um que lida com máquinas e portanto com movimento quanto um físico especializado em mecânica NT 76 Livro 1 Parte 2 Seção 4 mos umas das outras isso não nos impede de corrigir a primeira apa rência por um exame mais preciso e pela comparação com alguma regra de cuja correção graças a testes repetidos estejamos mais se guros É por meio dessas correções e levando adiante a mesma ação da mente mesmo quando não temos mais uma razão para ela que formamos a vaga idéia de um critério perfeito para essas figuras sem que sejamos capazes de explicálo ou compreendêlo 26 É verdade que os matemáticos pretendem dar uma definição exata de uma reta quando dizem que é o caminho mais curto entre dois pontos Mas em primeiro lugar observo que isso é mais propriamente a des coberta de uma das propriedades da reta que uma definição precisa Pois pergunto se à menção de uma linha reta não pensamos imedia tamente nessa aparência particular e se não é apenas acidentalmen te que consideramos aquela propriedade Uma reta pode ser compreen dida por si só mas a definição em causa é ininteligível sem uma comparação da reta com outras linhas que concebemos como mais extensas Na vida corrente temse como uma máxima que o cami nho mais reto é sempre o mais curto o que seria tão absurdo como dizer que o caminho mais curto é sempre o mais curto se nossa idéia de uma linha reta não fosse diferente da idéia do caminho mais curto entre dois pontos 27 Em segundo lugar repito aquilo que já estabeleci que não temos nenhuma idéia mais precisa de igualdade ou desigualdade de mais curto ou mais longo do que a que temos de linha reta ou curva e que em conseqüência disso não podemos extrair das primeiras um critério perfeito para estas últimas Uma idéia precisa jamais pode ser construída com base em idéias vagas e indeterminadas 28 A idéia de uma superfície plana é tão pouco suscetível de um crité rio preciso quanto a de uma linha reta O único meio que temos de distinguir tal superfície é por sua aparência geral É inteiramente em vão que os matemáticos representam a superfície plana como pro duzida pelo deslocamento de uma reta Objetarseá imediatamente que nossa idéia de superfície é tão independente desse método de 77 Tratado da natureza humana formação de uma superfície quanto nossa idéia de uma elipse o é do método de formação de um cone que a idéia de uma reta não é mais precisa que a de um plano que uma reta pode se deslocar de modo irregular e assim formar uma figura bem diferente de um plano e que portanto vemonos obrigados a supor que ela se desloca ao longo de duas retas paralelas entre si e localizadas no mesmo plano Mas essa descrição é circular pois explica uma coisa por ela mesma 29 Vemos portanto que concebidas segundo nosso método usual as idéias mais essenciais à geometria a saber igualdade e desigual dade reta e plano estão longe de ser exatas e determinadas Não apenas somos incapazes de dizer no caso de haver algum grau de dúvida se tais figuras particulares são iguais se tal linha é uma reta ou tal superfície um plano tampouco somos capazes de formar uma idéia firme e invariável daquela proporção ou dessas figuras Temos de continuar recorrendo ao julgamento fraco e falível que produzi mos baseados na aparência dos objetos e que corrigimos por meio de um compasso ou uma medida comum E se supusermos que é possível fazer qualquer outra correção esta será uma correção inútil ou imaginária Seria vão recorrer ao lugarcomum evocando uma di vindade cuja onipotência lhe permitisse formar uma figura geomé trica perfeita e desenhar uma linha reta sem nenhuma curva ou inflexão Como o critério último para essas figuras não é derivado senão dos sentidos e da imaginação é absurdo falar de qualquer per feição que ultrapasse a capacidade de julgamento dessas faculdades Pois a verdadeira perfeição de algo consiste em sua conformidade com seu critério 30 Ora já que essas idéias são tão vagas e incertas eu gostaria que algum matemático me respondesse em que consiste sua segurança infalível não apenas acerca das proposições mais intricadas e obscu ras de sua ciência mas também acerca dos princípios mais vulgares e óbvios Como ele me provaria por exemplo que duas retas não po dem ter um segmento em comum Ou que é impossível traçar mais de uma reta entre dois pontos quaisquer Se me dissesse que tais opi 78 Livro 1 Parte 2 Seção 4 niões são obviamente absurdas e que contradizem nossas idéias cla ras eu responderia que não nego que quando a inclinação entre duas retas forma um ângulo perceptível é absurdo imaginar que elas pos suam um segmento comum Mas supondo que essas duas linhas se aproximem uma da outra na proporção de uma polegada a cada vinte léguas não vejo nenhum absurdo em afirmar que ao se encon trarem elas se tornam uma só Pois peçovos que me respondeis que regra ou critério norteia vosso juízo quando afirmais que a linha para a qual supus que elas convergem não pode formar uma só e mesma reta com aquelas duas que formam entre si um ângulo tão pequeno Certamente essa linha não concorda com vossa idéia de reta Quereis portanto dizer que seus pontos não seguem a mesma ordem e regra que é peculiar e essencial a uma reta Se for assim devo informar vos não apenas que ao julgar dessa maneira admitis que a exten são é composta de pontos indivisíveis o que talvez seja mais do que pretendeis como também que não é esse o critério de acordo com o qual formamos a idéia de uma reta Além disso mesmo que fosse esse o critério não existe uma tal firmeza em nossos sentidos ou imaginação que nos permita determinar quando essa ordem foi violada ou preservada O critério original de uma linha reta na rea lidade não passa de uma certa aparência geral E é evidente que se pode fazer que as retas coincidam e ainda assim correspondam a esse critério mesmo corrigido por todos os meios praticáveis ou ima gináveis 31 Para onde quer que se voltem os matemáticos encontram sem pre esse dilema Se julgam a igualdade ou qualquer outra proporção pelo critério preciso e exato a saber pela enumeração das diminutas partes indivisíveis eles estão ao mesmo tempo empregando um cri tério que na prática é inútil e provando de fato a indivisibilidade da extensão que tentavam demolir Ou então se empregam como é usual o critério aproximado derivado de uma comparação entre os objetos com base em sua aparência geral corrigida pela medição e justaposição seus primeiros princípios embora certos e infalíveis 79 Tratado da natureza humana são demasiadamente grosseiros para permitir inferências tão sutis como as que comumente deles se extraem Os primeiros princípios fundamentamse na imaginação e nos sentidos a conclusão por tanto jamais pode ultrapassar e menos ainda contradizer essas fa culdades 32 Isso pode abrirnos um pouco os olhos e nos fazer ver que ne nhuma demonstração geométrica da divisibilidade infinita da exten são pode ter a força que naturalmente atribuímos a todo argumento sustentado por pretensões tão grandiosas Ao mesmo tempo pode mos descobrir a razão pela qual a geometria carece de evidência nes se único ponto enquanto todos os seus outros raciocínios merecem nosso mais completo assentimento e aprovação De fato parece mais importante dar a razão dessa exceção que mostrar que nós realmen te devemos abrila e considerar como inteiramente sofísticos todos os argumentos matemáticos a favor da divisibilidade infinita Porque é evidente que uma vez que nenhuma idéia de quantidade é infinita mente divisível não se pode imaginar absurdo mais manifesto que a tentativa de provar que a própria quantidade admite tal divisão e proválo por meio de idéias que são diretamente opostas sob esse as pecto particular E assim como esse absurdo é em si mesmo evidente assim também não há argumento nele fundado que não traga consigo um novo absurdo e não envolva uma evidente contradição 33 Como exemplos posso citar os argumentos a favor da divisibili dade infinita derivados do ponto de contato Sei que não há um só ma temático que não se recusaria a ser julgado pelos diagramas que cons trói sobre o papel pois como eles próprios nos diriam tais diagramas são rascunhos imprecisos e só servem para facilitar a transmissão de certas idéias que são estas sim os verdadeiros fundamentos de todos os nossos raciocínios Estou perfeitamente de acordo com isso e pretendo basear a controvérsia apenas nessas idéias Sugiro portan to que nosso matemático forme com a maior precisão possível as idéias de um círculo e de uma reta e então lhe pergunto se ao con ceber o contato entre essas figuras ele consegue concebêlas tocan 80 Livro 1 Parte 2 Seção 5 dose apenas em um ponto matemático ou se tem necessariamente que imaginar que elas coincidem ao longo de um segmento Seja qual for sua opção ele se verá emaranhado em dificuldades equivalentes Se afirmar que ao traçar essas figuras em sua imaginação é capaz de imaginar que elas se tocam em apenas um ponto estará admitindo a possibilidade dessa idéia e conseqüentemente da própria coisa Se disser que ao conceber o contato dessas linhas deve fazêlas coinci dir estará reconhecendo a falácia das demonstrações geométricas quando aplicadas além de um certo grau de minúcia Porque é certo que suas demonstrações contra a coincidência entre um círculo e uma reta são desse tipo Em outras palavras nosso matemático é capaz de provar que uma idéia a de coincidência é incompatível com outras duas idéias de círculo e de reta ao mesmo tempo entretanto ele reconhece que essas idéias são inseparáveis Seção 5 Continuação do mesmo tema 1 Se for verdadeira a segunda parte de meu sistema a saber que a idéia de espaço ou extensão não é senão a idéia de pontos visíveis ou tan gíveis distribuídos segundo uma certa ordem seguese que não podemos formar nenhuma idéia de vácuo ou seja de um espaço onde não existe nada visível ou tangível Isso gera três objeções que examinarei con juntamente já que a resposta que darei a uma delas será uma conse qüência da que utilizarei para rebater as outras 2 Em primeiro lugar podese dizer que há séculos os homens dis cutem sobre o vácuo e o pleno sem conseguir chegar a uma conclu são definitiva E os filósofos ainda hoje acreditamse livres para to mar partido de um lado ou de outro ao sabor de sua fantasia Mas seja qual for o fundamento que possa ter uma controvérsia a respeito dessas coisas mesmas podese alegar que a própria discussão é de cisiva no que concerne à idéia em questão e é impossível que os homens tenham podido raciocinar há tanto tempo sobre um vácuo 8 1 Tratado da natureza humana fosse para negálo fosse para afirmálo sem ter uma noção daquilo que negavam ou afirmavam 3 Em segundo lugar mesmo que se conteste esse argumento a realidade ou ao menos a possibilidade da idéia de um vácuo poderia ser provada pelo seguinte raciocínio Toda idéia é possível se é uma conseqüência necessária e infalível de idéias possíveis Ora mesmo que aceitemos que o mundo presente é um pleno podemos facilmente concebêlo desprovido de movimento e com certeza se admitirá que essa idéia é possível Devese também admitir que é possível conce ber a aniquilação de uma parte qualquer da matéria pela onipotência divina enquanto as outras partes permanecem em repouso Porque como toda idéia distinguível é separável pela imaginação e como toda idéia separável pela imaginação pode ser concebida existindo separa damente é evidente que a existência de uma partícula de matéria implica tão pouco a existência de outra quanto o fato de um corpo possuir uma figura quadrada implica que todos os outros também a possuam Uma vez aceito isso pergunto agora qual o resultado da concorrência dessas duas idéias possíveis de repouso e de aniquila ção e o que devemos conceber que se segue à aniquilação de todo o ar e de toda a matéria sutil contida em um aposento supondose que as paredes permaneçam iguais sem nenhum movimento ou altera ção Alguns metafísicos respondem que uma vez que matéria e ex tensão são a mesma coisa a aniquilação de uma implica necessaria mente a da outra e não havendo agora qualquer distância entre as paredes do aposento essas paredes se tocam do mesmo modo que minha mão toca o papel que se encontra imediatamente à minha fren te Embora tal resposta seja bastante comum porém desafio esses metafísicos a conceberem a matéria segundo sua hipótese ou a ima ginar o chão e o teto juntamente com todos os lados opostos do aposento tocandose uns aos outros ao mesmo tempo em que perma necem em repouso e preservam a mesma posição Pois como é pos sível que as duas paredes que vão de norte a sul se toquem mutua mente enquanto também tocam os extremos opostos das duas outras 82 Livro 1 Parte 2 Seção 5 paredes que vão de leste a oeste E como é possível que o teto e o chão se encontrem estando separados pelas quatro paredes situa das em posição contrária Se alterarmos sua posição estaremos su pondo um movimento Se concebermos alguma coisa entre eles es taremos supondo que algo é criado Ao contrário se nos ativermos estritamente às duas idéias de repouso e aniquilação é evidente que a idéia delas resultante não será a de um contato entre as partes mas algo diferente que podemos concluir ser a idéia de um vácuo 4 A terceira objeção vai ainda mais longe afirmando que a idéia de um vácuo é não apenas real e possível mas também necessária e ine vitável Essa asserção se funda no movimento que observamos nos corpos e que segundo se afirma seria impossível e inconcebível sem um vácuo para onde um corpo deve se mover a fim de abrir caminho a outro Não me estenderei sobre essa objeção porque ela diz respei to sobretudo à filosofia da natureza que está fora de nossa esfera pre sente 5 Para responder a essas objeções sem correr o risco de iniciar uma discussão antes de ter compreendido perfeitamente o objeto da con trovérsia devemos examinar profundamente a questão consideran do a natureza e a origem de diversas idéias É evidente que a idéia de escuridão não é uma idéia positiva mas a mera negação da luz ou mais propriamente falando de objetos coloridos e visíveis Na total ausência de luz um homem dotado de visão por mais que olhe para todos os lados não recebe outra percepção que aquela mesma que um cego de nascença receberia e é certo que este último não possui nenhuma idéia de luz ou de escuridão A conclusão disso é que não é pela mera supressão dos objetos visíveis que recebemos a impres são de uma extensão sem matéria e que a idéia da escuridão total nunca poderia ser a mesma que a de um vácuo 6 Suponhamos agora um homem suspenso no ar sendo transpor tado suavemente por algum poder invisível É evidente que ele nada sente e que jamais obtém a idéia de extensão ou qualquer outra idéia partindo desse movimento invariável Mesmo supondo que mova suas 83 Tratado da natureza humana pernas para a frente e para trás isso não poderia lhe transmitir tal idéia Nesse caso ele teria alguma sensação ou impressão cujas partes sucedendose umas às outras poderiam lhe dar a idéia de tempo mas certamente essas partes não estariam dispostas da maneira necessária para lhe transmitir a idéia de espaço ou extensão 7 Vemos assim que a escuridão e o movimento quando há total supressão de todo objeto visível e tangível nunca poderiam nos dar a idéia da extensão sem matéria ou seja de um vácuo A próxima questão é pois se poderiam nos transmitir essa idéia quando mistu rados a algo visível e tangível 8 Os filósofos comumente admitem que todos os corpos que se mostram à visão aparecem como se estivessem pintados sobre uma superfície plana e que seus diferentes graus de afastamento em re lação a nós são descobertos mais pela razão que pelos sentidos Quan do ergo minha mão espalmada os dedos se mostram separados pela cor azul do firmamento de maneira tão perfeita quanto o seriam por qualquer objeto visível que eu pudesse inserir entre eles Portanto para saber se a visão é capaz de transmitir a impressão e a idéia de um vácuo temos de supor que em meio a uma total escuridão apre sentamse a nós corpos luminosos cuja luz revela apenas eles mes mos sem nos dar nenhuma impressão dos objetos circundantes 9 Devemos fazer uma suposição análoga a respeito dos objetos de nosso tato Não convém supor a eliminação completa de todos os objetos tangíveis devemos admitir que alguma coisa é percebida pelo tato e que após um intervalo e um movimento da mão ou de algum outro órgão da sensação um outro objeto tangível é encontrado e largandose este um outro e assim por diante tão freqüentemente quanto se queira A questão é se esses intervalos não nos proporcio nam a idéia da extensão sem nenhum corpo 10 Começando com o primeiro caso é evidente que quando ape nas dois objetos luminosos aparecem à visão podemos perceber se eles estão juntos ou separados se estão separados por uma distância 84 Livro 1 Parte 2 Seção 5 pequena ou grande e quando essa distância varia podemos perce ber seu aumento ou sua diminuição juntamente com o movimen to dos corpos Mas como neste caso a distância não é algo colorido ou visível podese pensar que existe aqui um vácuo ou extensão pura não apenas inteligível à mente mas evidente para os próprios sentidos 1 1 Esse é nosso modo mais natural e familiar de pensar mas uma pequena reflexão nos ensinará a corrigilo Podemos observar que quando dois objetos se apresentam lá onde antes havia uma total es curidão a única mudança que se pode descobrir está na aparição des ses dois objetos todo o resto continua como antes uma perfeita negação da luz e de todo objeto colorido ou visível Isso vale não ape nas para aquilo que se pode considerar distante desses corpos mas para a própria distância entre eles e esta não é senão a escuridão ou negação da luz sem partes sem composição invariável e in divisível Ora uma vez que essa distância não causa nenhuma per cepção diferente daquela que um cego recebe de seus olhos ou da quela que nos é transmitida na mais escura noite ela deve partilhar das mesmas propriedades E como a cegueira e a escuridão não nos proporcionam nenhuma idéia de extensão é impossível que a dis tância obscura e indistinguível entre dois corpos possa jamais pro duzir tal idéia 12 A única diferença entre uma escuridão absoluta e a aparição de dois ou mais objetos luminosos e visíveis consiste como disse an tes nos próprios objetos e na maneira como afetam nossos sentidos Os ângulos que os raios de luz emanados desses objetos formam entre si o movimento necessário ao olho para passar de um a outro e as diferentes partes dos órgãos por eles afetados isso é o que pro duz as únicas percepções que nos permitem julgar acerca da distân cia Como cada uma dessas percepções é simples e indivisível po rém elas nunca poderão nos dar a idéia de extensão Ver Apêndice p674 85 Tratado da natureza humana 13 Isso pode ser ilustrado considerandose o sentido do tato e a dis tância ou intervalo imaginário interposto entre objetos tangíveis ou sólidos Suponho dois casos o de um homem suspenso no ar e que movimenta suas pernas para a frente e para trás sem encontrar ne nhuma coisa tangível e o de um homem que sente alguma coisa tan gível largaa e após um movimento ao qual é sensível percebe ou tro objeto tangível Pergunto então em que consiste a diferença entre esses dois casos Ninguém hesitará em afirmar que ela consiste me ramente na percepção desses objetos e que a sensação originada do movimento é a mesma nos dois casos E assim como essa sensação é incapaz de nos transmitir uma idéia de extensão quando não vem acompanhada de alguma outra percepção ela tampouco pode nos dar essa idéia quando misturada às impressões de objetos tangíveis uma vez que essa mistura não produz nela nenhuma alteração 14 Mas embora nem o movimento nem a escuridão quer quando isolados quer quando acompanhados de objetos tangíveis e visíveis possam nos transmitir qualquer idéia de um vácuo ou de uma exten são sem matéria eles são as causas que nos levam a imaginar fàlsa mente que somos capazes de formar tal idéia Pois existe uma rela ção estreita entre de um lado tal movimento e escuridão e de outro uma extensão real ou composição de objetos visíveis e tangíveis 15 Primeiramente podemos observar que dois objetos visíveis que aparecem em meio a uma total escuridão afetam os sentidos da mes ma maneira e os ângulos dos raios que deles emanam e se encon tram no olho formam o mesmo ângulo que formariam se a distância entre eles estivesse preenchida por objetos visíveis que nos propor cionassem urna verdadeira idéia de extensão A sensação do movimento também é a mesma seja quando não há nada tangível interposto entre os dois corpos seja quando sentimos um corpo composto cujas dife rentes partes estão dispostas urnas ao lado das outras 16 Em segundo lugar descobrimos pela experiência que dois cor pos situados de forma a afetar os sentidos da mesma maneira que 86 Livro 1 Parte 2 Seção 5 outros dois corpos entre os quais existe uma certa extensão de obje tos visíveis são capazes de receber a mesma extensão de objetos sem sofrer nenhum impacto impulse ou penetração sensível e sem que haja nenhuma alteração no ângulo com que aparecem aos sentidos De modo semelhante sempre que para tocarmos um objeto após ou tro for necessário um intervalo entre eles e a percepção dessa sen sação que chamamos movimento de nossa mão ou órgão do tato a experiência nos mostra que os mesmos objetos podem ser tocados com a mesma sensação de movimento quando esta se acompanha da impressão interposta de objetos sólidos e tangíveis Em outras palavras uma distância invisível e intangível pode se tornar uma dis tância visível e tangível sem nenhuma mudança nos objetos distantes 17 Em terceiro lugar podemos observar outra relação entre esses dois tipos de distância a saber que elas têm quase o mesmo efeito sobre todos os fenômenos naturais Uma vez que todas as qualida des como calor frio luz atração etc diminuem proporcionalmente a distância não se pode observar quase nenhuma diferença entre os casos em que essa distância é indicada por objetos compostos e sen síveis e aqueles em que ela é conhecida apenas pela maneira como os objetos distantes afetam os sentidos 18 Eis aqui portanto três relações entre aquela distância que trans mite a idéia de extensão e essa outra que não é preenchida por ne nhum objeto colorido ou sólido Os objetos distantes afetam os sen tidos da mesma maneira não importando qual das duas distâncias os separa A segunda espécie de distância se mostra capaz de aco lher a primeira e ambas diminuem igualmente a força de todas as qualidades 19 Essas relações entre os dois tipos de distância nos proporcionam uma razão simples para explicar por que as duas têm sido tão fre qüentemente confundidas uma com a outra e por que imaginamos ter uma idéia de extensão mesmo sem a idéia de um objeto qualquer da visão ou do tato De fato podemos estabelecer como uma máxi ma geral nessa ciência da natureza humana que sempre que há uma 87 Tratado da natureza humana relação estreita entre duas idéias a mente apresenta uma forte ten dência a confundilas e a usar uma em lugar da outra em todos os seus discursos e raciocínios Esse fenômeno ocorre em tantas oca siões e tem conseqüências tão consideráveis que não posso deixar de parar um momento para examinar suas causas Minha única pre missa será que devemos distinguir exatamente entre o próprio fenô meno e as causas que a ele atribuirei e qualquer incerteza que possa existir nessas causas não nos deve fazer imaginar que o fenômeno seja igualmente incerto O fenômeno pode ser real mesmo que mi nha explicação seja quimérica A falsidade daquele não é conseqüên cia da falsidade desta embora ao mesmo tempo possamos observar que é muito natural extrairmos tal conseqüência o que aliás é um exemplo manifesto do próprio princípio que tento explicar 20 Quando admiti as relações de semelhança contigüidade e causalida de como princípios de união entre idéias sem examinar suas causas foi antes para seguir minha primeira máxima de que devemos em última instância nos contentar com a experiência que pela falta de alguma coisa especiosa e plausível que eu pudesse ter apresentado sobre esse tema Teria sido fácil fazer uma dissecção imaginária do cérebro e mostrar por que ao concebermos determinada idéia os espíritos animais se espalham por todas as vias contíguas desper tando as outras idéias relacionadas à primeira Entretanto embora eu tenha desprezado qualquer vantagem que teria podido extrair des sas considerações para explicar as relações de idéias receio que devo aqui recorrer a elas a fim de dar conta dos erros provenientes dessas relações Observarei portanto que como a mente é dotada do poder de despertar qualquer idéia que lhe aprouver quando ela envia os espíritos animais para a região do cérebro em que está localizada tal idéia esses espíritos sempre a despertam penetrando precisamente nas vias apropriadas e vasculhando o compartimento a ela pertencen te Mas o movimento dos espíritos animais raramente é direto ao contrário ele se desvia naturalmente um pouco para um lado ou para outro Por essa razão ao penetrarem nas vias contíguas os espíritos 88 apresentam outras idéias relacionadas em lugar daquela que a mente de início desejava considerar Nem sempre percebemos essa troca Continuamos com a mesma cadeia de pensamentos e fazemos uso da idéia relacionada que se nos apresenta empregandoa em nosso raciocínio como se fosse a mesma que aquela que buscávamos Essa é a causa de tantos erros e sofismas presentes na filosofia como se poderia naturalmente imaginar e como seria fácil mostrar se houvesse ocasião para tal Das três relações acima mencionadas a de semelhança é a fonte mais fértil de erros De fato poucos são os erros presentes nos raciocínios que não se devem em grande parte a essa origem Não apenas as idéias semelhantes são relacionadas como também as ações mentais que realizamos para considerar cada uma delas diferem tão pouco umas das outras que não somos capazes de as distinguir Esta última circunstância tem conseqüências importantes Podemos observar em geral que sempre que as ações da mente pelas quais formamos duas idéias quaisquer são iguais ou semelhantes temos uma forte tendência a confundir tais idéias tomando uma pela outra Veremos vários exemplos disso no decorrer deste tratado Entretanto embora a semelhança seja a relação que mais facilmente produz um equívoco nas idéias as outras relações de contigüidade e causalidade podem igualmente contribuir para esse mesmo efeito Poderíamos apresentar as figuras poéticas e retóricas como provas suficientes do que acaba de ser mencionado se fosse tão comum como é razoável nas questões metafísicas extrair nossos argumentos desse domínio Mas como os metafísicos talvez considerem tal procedimento abaixo de sua dignidade extrairei minha prova de algo que pode ser observado na maioria de seus discursos a saber que é muito comum que os homens utilizem palavras em lugar de idéias e em seus raciocínios falem ao invés de pensar Utilizamos palavras em lugar de idéias porque elas normalmente estão conectadas de forma tão estreita que a mente as confunde com facilidade E essa também é a razão de utilizarmos a idéia de uma distância que não é considerada nem como Tratado da natureza humana visível nem tangível em lugar da extensão que não é mais que uma composição de pontos visíveis ou tangíveis dispostos em uma certa ordem As relações de semelhança e de causalidade concorrem para causar esse erro Como a primeira espécie de distância se mostra con versível na segunda ela constitui nesse sentido uma espécie de cau sa e a similaridade da maneira como as duas afetam os sentidos e diminuem todas as qualidades forma a relação de semelhança 22 Com essa série de raciocínios e explicações de meus princípios estou agora preparado para responder a todas as objeções que me foram apresentadas sejam elas derivadas da metafísica ou da mecâni ca A freqüência das discussões acerca de um vácuo ou extensão sem matéria não prova a realidade da idéia sobre a qual se discute Pois nada é mais comum que ver os homens enganarem a si mesmos sobre esse ponto especialmente quando se apresenta uma outra idéia es treitamente relacionada capaz de ocasionar seu erro 23 Podemos dar uma resposta quase igual à segunda objeção deri vada da conjunção das idéias de repouso e aniquilação Quando to das as coisas dentro do aposento são aniquiladas e as paredes conti nuam imóveis o aposento deve ser concebido de uma maneira muito próxima à maneira como é concebido agora quando o ar que o preen che não é um objeto dos sentidos Essa aniquilação deixa aos olhos a distância fictícia revelada pelas diferentes partes desse órgão que são afetadas e pelos graus de luz e sombra e deixa ao tato aquela outra distância que consiste na sensação de um movimento na mão ou em outro membro do corpo Em vão buscaríamos algo além disso De qualquer lado que examinemos este assunto veremos que essas são as únicas impressões que tal objeto é capaz de produzir após a su posta aniquilação E já observamos que as impressões só podem ori ginar idéias que a elas se assemelhem 24 Uma vez que se pode supor que um corpo interposto entre dois outros seja aniquilado sem produzir nenhuma mudança nos que o ladeiam é fácil conceber como esse mesmo corpo pode ser recriado produzindo tão pouca alteração como no caso anterior Ora o mo 90 Livro 1 Parte 2 Seção 5 vimento de um corpo tem quase o mesmo efeito que sua criação Os corpos distantes não são mais afetados em um caso que no outro Isso é suficiente para satisfazer a imaginação provando que não há incompatibilidade nesse movimento Posteriormente entra em jogo a experiência persuadindonos de que dois corpos situados da ma neira acima descrita têm realmente uma tal capacidade de acolher al gum corpo entre eles e que não há obstáculo à conversão da distân cia invisível e intangível em uma distância visível e tangível Por mais natural que possa parecer essa conversão só podemos ter certeza de que é factível depois de ter tido experiência dela 25 Pareceme que com isso respondi às três objeções menciona das embora ao mesmo tempo eu tenha consciência de que poucos ficarão satisfeitos com essas respostas e que novas objeções e difi culdades serão imediatamente propostas Dirseá provavelmente que meu raciocínio é irrelevante e que eu explico somente a maneira como os objetos afetam os sentidos sem dar conta de sua natureza e ope rações reais Ainda que não haja nada visível ou tangível interposto entre dois corpos vemos pela experiência que esses corpos podem es tar situados da mesma maneira em relação ao olho e exigir que a mão faça o mesmo movimento para passar de um a outro como se esti vessem separados por algo visível e tangível A experiência também mostra que essa distância invisível e intangível possui a capacidade de acolher algum corpo ou seja de se tornar visível e tangível Essa seria a totalidade de meu sistema E em nenhuma parte dele teria eu expli cado a causa que separa os corpos dessa maneira dandolhes a ca pacidade de acolher outros corpos entre eles sem sofrer nenhum impacto ou penetração 26 Respondo a essa objeção confessandome culpado e admitindo que minha intenção nunca foi penetrar na natureza dos corpos ou explicar as causas secretas de suas operações Além de isso estar fora de meu propósito presente receio que tal empresa ultrapasse o al cance do entendimento humano e que nunca poderemos conhecer os corpos senão por meio das propriedades externas que se mostram 9 1 Tratado da natureza humana aos sentidos Quanto àqueles que tentam algo além disso não pode rei lhes dar crédito até ver que tiveram sucesso em pelo menos um caso No momento contentome em conhecer perfeitamente a ma neira como os objetos afetam meus sentidos e as conexões que eles mantêm entre si até onde a experiência disso me informa Esse co nhecimento basta para a condução da vida e basta também para mi nha filosofia que pretende explicar tãosomente a natureza e as cau sas de nossas percepções ou seja de nossas impressões e idéias 27 Concluirei esse tema da extensão com um paradoxo que será facilmente explicado com base no raciocínio anterior O paradoxo con siste em que se quisermos dar à distância invisível e intangível ou em outras palavras à capacidade de se tornar uma distância visível e tangível o nome de vácuo então extensão e matéria são a mesma coisa e entretanto existe o vácuo Se não quisermos darlhe tal nome o movimento é possível no pleno sem nenhum impacto transmitido ao infinito sem retornar em círculos e sem penetração Porém como quer que nos expressemos devemos sempre confessar que não possuímos nenhuma idéia de uma extensão real se não a preenche mos com objetos sensíveis e se não concebemos suas partes como visíveis e tangíveis 28 Quanto à doutrina de que o tempo não é senão a maneira pela qual certos objetos reais existem podemos observar que ela está su jeita às mesmas objeções que a doutrina similar a respeito da exten são Se o fato de discutirmos e raciocinarmos acerca de um vácuo fosse uma prova suficiente de que temos essa idéia então pela mes ma razão deveríamos ter uma idéia de tempo ainda que na ausência de qualquer existência mutável pois não há objeto de discussão mais freqüente e comum Entretanto é certo que não temos realmente tal idéia Pois de onde ela seria derivada Surgiria ela de uma impressão de sensação ou de reflexão Mostrainos distintamente essa impres Ver Apêndice p676 92 Livro 1 Parte 2 Seção 6 são para que possamos conhecer sua natureza e suas qualidades Mas se não fordes capazes de nos mostrar uma tal impressão podeis estar certos de vosso engano quando imaginais possuir uma tal idéia 29 De todo modo mesmo que seja impossível mostrar a impressão de que deriva a idéia de um tempo sem existência mutável podemos facilmente apontar as aparências que nos fazem imaginar que temos essa idéia Podemos observar que existe uma sucessão contínua de percepções em nossa mente de modo que a idéia de tempo está sem pre presente em nós E quando consideramos um objeto estável às cinco horas e voltamos a olhálo às seis tendemos a aplicar a ele essa idéia como se cada momento fosse distinguível por uma posição di ferente ou por uma alteração no objeto A primeira e a segunda apa rições do objeto ao serem comparadas com a sucessão de nossas per cepções parecem tão afastadas entre si como se o objeto houvesse iealmente mudado A isso podemos acrescentar algo que nos é mos trado pela experiência a saber que o objeto poderia ter sofrido um tal número de alterações entre essas aparições como também que a duração imutável ou antes fictícia tem o mesmo efeito sobre todas as qualidades aumentandoas ou diminuindoas que aquela sucessão que é evidente para os sentidos É em razão dessas três relações que tendemos a confundir nossas idéias imaginando que somos capa zes de formar a idéia de um tempo e de uma duração sem nenhuma mudança ou sucessão Seção 6 Da idéia de existência e de existência externa 1 Antes de passarmos a outro tema talvez não seja fora de propó sito explicar as idéias de existência e de existência externa que assim como as de espaço e de tempo apresentam suas dificuldades próprias Desse modo e uma vez que tenhamos compreendido perfeitamente Ver nossa nota à p 139 NT 93 todas as idéias particulares que podem entrar em nossos raciocínios estaremos mais bem preparados para examinar o conhecimento e a probabilidade Não há impressão ou idéia de nenhum tipo da qual tenhamos alguma consciência ou memória que não seja concebida como existente E é evidente que é dessa consciência que deriva a mais perfeita idéia e a certeza do ser Com base nisso podemos formular uma alternativa a mais clara e conclusiva que se pode imaginar já que nunca nos lembramos de nenhuma idéia ou impressão sem atribuir a ela uma existência a idéia de existência deve ou bem ser derivada de uma impressão distinta em conjunção com cada percepção ou objeto de nosso pensamento ou então ser exatamente a mesma que a idéia da percepção ou objeto Esse dilema é uma conseqüência evidente do princípio de que toda idéia procede de uma impressão similar e por isso também não resta dúvida sobre qual das duas proposições do dilema escolheremos Como não penso que existam duas impressões distintas que sejam inseparavelmente conjugadas assim também estou longe de admitir que haja uma impressão distinta acompanhando cada idéia e cada impressão Embora certas sensações possam estar unidas em determinado momento nós rapidamente descobrimos que elas admitem uma separação e podem se apresentar separadamente Assim embora toda impressão e idéia de que nos recordamos seja considerada como existente a idéia de existência não é derivada de nenhuma impressão particular A idéia de existência portanto é exatamente a mesma que a idéia daquilo que concebemos como existente A simples reflexão sobre uma coisa em nada difere da reflexão sobre essa coisa enquanto existente A idéia de existência quando conjugada com a idéia de um objeto não acrescenta nada a esta Tudo que concebemos concebemos como existente Qualquer idéia que quisermos formar será a idéia de um ser e a idéia de um ser será qualquer idéia que quisermos formar Livro 1 Parte 2 Seção 6 5 Quem se opuser a isso deverá necessariamente apontar a impres são distinta de que deriva a idéia de entidade e provar que essa im pressão é inseparável de toda percepção que acreditamos ser existente Mas podemos concluir sem hesitar que isso é impossível 6 Nosso raciocínio anterior7 a respeito da distinção de idéias na au sência de uma diferença real não nos servirá aqui de forma alguma Esse tipo de distinção se baseia nas diferentes semelhanças que a mesma idéia simples pode ter com várias idéias diferentes Mas não se pode apresentar nenhum objeto que se assemelhe a um segundo objeto no que concerne à sua existência e que seja diferente de ou tros no que concerne a esse mesmo ponto pois todo objeto que se nos apresenta deve necessariamente existir 7 Um raciocínio semelhante dará conta da idéia de existência exter na Podemos observar que todos os filósofos admitem e aliás é bas tante óbvio por si só que nada jamais está presente à mente além de suas percepções isto é suas impressões e idéias e que só conhece mos os objetos externos pelas percepções que eles ocasionam Odiar amar pensar sentir ver tudo isso não é senão perceber 8 Ora como nada jamais está presente à mente além das percep ções e como todas as idéias são derivadas de algo anteriormente pre sente à mente seguese que nos é impossível sequer conceber ou for mar uma idéia de alguma coisa especificamente diferente de idéias e impressões Dirijamos nossa atenção para fora de nós mesmos tan to quanto possível lancemos nossa imaginação até os céus ou até os limites extremos do universo Na realidade jamais avançamos um passo sequer além de nós mesmos nem somos capazes de conceber um tipo de existência diferente das percepções que apareceram den tro desses estreitos limites Tal é o universo da imaginação e não possuímos nenhuma idéia senão as que ali se produzem 9 O mais longe que podemos chegar no que diz respeito à concep ção de objetos externos quando se os supõe especificamente diferen 7 Parte 1 Seção 7 95 Tratado da natureza humana tes de nossas percepções é formar deles uma idéia relativa sem pre tender compreender os objetos relacionados Falando de um modo geral nós não supomos que sejam especificamente diferentes ape nas atribuímos a eles relações conexões e durações diferentes Mas trataremos disso de maneira mais completa um pouco adiante 8 8 Parte 4 Seção 2 96 Seção 1 Do conhecimento Parte 3 Do conhecimento e da probabilidade Existem 1 sete tipos diferentes de relação filosófica semelhança identidade relações de tempo e espaço proporção de quantidade ou núme ro graus de qualidade contrariedade e causalidade Essas relações po dem ser divididas em duas classes as que dependem inteiramente das idéias comparadas e as que podem se transformar sem que haja nenhuma transformação nas idéias É partindo da idéia de um triân gulo que descobrimos a relação de igualdade que existe entre seus três ângulos e dois retos e essa relação fica invariável enquanto nossa idéia permanece a mesma Ao contrário as relações de contigüidade e distância entre dois objetos podem se alterar por uma mera alteração de seus lugares sem nenhuma mudança nos próprios objetos ou em suas idéias e o lugar depende de centenas de acidentes diferentes que não podem ser previstos pela mente O mesmo se passa com a 1 Parte 1 Seção 5 9 7 Tratado da natureza humana identidade e a causalidade Dois objetos ainda que perfeitamente se melhantes um ao outro e ainda que apareçam no mesmo lugar em momentos diferentes podem ser numericamente diferentes E como o poder pelo qual um objeto produz outro jamais pode ser descober to apenas por meio de suas idéias é evidente que só podemos conhe cer as relações de causa e efeito pela experiência e não por algum ra ciocínio ou reflexão abstratos Não há um só fenômeno por mais simples que seja que possa ser explicado pelas qualidades dos obje tos tais como estas aparecem a nós ou que pudéssemos prever sem a ajuda de nossa memória e experiência 2 Vêse portanto que dessas sete relações filosóficas apenas qua tro por dependerem unicamente das idéias podem ser objetos de co nhecimento e certeza Essas quatro relações são semelhança contrarie dade graus de qualidade e proporções de quantidade ou número Três dessas quatro relações podem ser descobertas à primeira vista e per tencem mais propriamente ao domínio da intuição que ao da demons tração Quando dois objetos ou mais se assemelham a semelhança logo salta aos olhos ou antes à mente e quase nunca requer um novo exame O mesmo se dá com a contrariedade e com os graus de uma qualidade Ninguém jamais poderia duvidar que a existência e a não existência destróemse uma à outra sendo absolutamente incompa tíveis e contrárias E embora seja impossível formar um juízo exato acerca dos graus de uma qualidade qualquer como cor sabor calor ou frio quando a diferença entre esses graus é muito pequena é fá cil decidir qual deles é superior ou inferior ao outro quando sua dife rença é considerável E tal decisão é sempre tomada à primeira vista sem necessitar de nenhuma investigação ou raciocínio 3 Poderíamos proceder da mesma maneira para determinar as pro porções de quantidade ou de número percebendo de um só olhar uma superioridade ou inferioridade entre dois números ou figuras quais quer sobretudo quando a diferença é muito grande e evidente Quan to à igualdade ou qualquer proporção exata podemos apenas estimá la quando de uma primeira consideração exceto no caso de números 9 8 Livro 1 Parte 3 Seção 1 muito pequenos ou de porções muito limitadas de extensão que apreen demos imediatamente e em relação aos quais percebemos ser impos sível cometer um erro considerável Em todos os demais casos de vemos estabelecer as proporções com alguma liberdade ou proceder de maneira mais artificial 4 Já observei que a geometria arte pela qual determinamos as pro porções das figuras embora seja muito superior em universalidade e exatidão aos juízos imprecisos dos sentidos e da imaginação nun ca chega a atingir uma total precisão e exatidão Seus primeiros prin cípios são sempre extraídos da aparência geral dos objetos e essa aparência jamais pode nos proporcionar uma segurança quando se trata de examinar a prodigiosa minúcia de que a natureza é capaz Nossas idéias parecem nos dar uma total certeza de que duas retas não podem ter um segmento em comum Se examinarmos essas idéias porém veremos que elas sempre supõem uma inclinação sensível das duas linhas e que quando o ângulo formado por elas é extrema mente pequeno não possuímos nenhum critério de reta que seja tão preciso a ponto de nos assegurar da verdade dessa proposição O mes mo se aplica à maior parte dos juízos fundamentais da matemática 5 Restam portanto a álgebra e a aritmética como as únicas ciên cias em que podemos elevar uma série de raciocínios a qualquer ní vel de complexidade e ainda assim preservar uma perfeita exatidão e certeza Aqui estamos de posse de um critério preciso que nos per mite julgar acerca da igualdade e proporção dos números E con forme esses números correspondam ou não a tal critério determi namos suas relações sem possibilidade de erro Quando dois números se relacionam de tal forma que cada unidade de um cor responde sempre a uma unidade do outro afirmamos que eles são iguais É por falta de um critério de igualdade semelhante aplicável à extensão que a geometria dificilmente pode ser considerada uma ciên cia perfeita e infalível 6 Mas talvez não seja fora de propósito afastar aqui uma dificuldade que pode surgir de minha afirmação de que embora a geometria careça 9 9 Seção 9 Dos efeitos de outras relações e outros hábitos Por mais convincentes que possam parecer os argumentos anteriores não devemos nos contentar com eles Devemos examinar a questão de todos os lados a fim de encontrar novos pontos de vista que possam ilustrar e confirmar princípios tão extraordinários e fundamentais Uma cuidadosa hesitação perante qualquer hipótese nova é uma disposição tão louvável nos filósofos e tão necessária ao exame da verdade que merece nossa adesão exigindo que apresentemos a eles todos os argumentos capazes de lhes satisfazer como também que afastemos qualquer objeção que lhes perturbe o raciocínio Observei várias vezes que além da causa e efeito as relações de semelhança e contigüidade devem ser consideradas como princípios de associação do pensamento e capazes de conduzir a imaginação de uma idéia a outra Também observei que quando dois objetos estão conectados por uma dessas relações e um deles está imediatamente presente à memória ou aos sentidos a mente não apenas é levada a seu correlato pelo princípio de associação mas além disso concebeo com uma força e um vigor adicionais graças à ação conjunta desse princípio e da impressão presente Tudo isso observei com o intuito de confirmar por analogia minha explicação de nossos juízos a respeito das causas e efeitos Mas esse mesmo argumento pode talvez voltarse contra mim e em lugar de confirmar minha hipótese tornarse uma objeção a ela Pois podese dizer que se todas as partes dessa hipótese forem verdadeiras a saber que essas três espécies de relações são derivadas dos mesmos princípios que todas têm o mesmo efeito de reforçar e avivar nossas idéias e que a crença não é senão uma concepção mais imperativa e vívida de uma idéia devese seguir daí que essa ação mental pode ser derivada não somente da relação de causa e efeito mas também das de contigüidade e semelhança Mas como descobrimos pela experiência que a crença surge exclusivamente da causalidade e que não somos capazes de Tratado da natureza humana daquela precisão e certeza peculiares à aritmética e à álgebra ela supe ra os juízos imperfeitos de nossos sentidos e imaginação A razão que me leva a atribuir alguma deficiência à geometria é que seus princípios originais e fundamentais são derivados meramente das aparências E talvez se imagine que tal deficiência deva para sempre acompanhála impedindo que essa ciência possa jamais atingir uma maior exatidão na comparação entre os objetos ou idéias que aquela que nossos olhos ou imaginação sozinhos são capazes de alcançar Reconheço que essa deficiência marca a geometria a ponto de impedila de jamais aspirar a uma certeza completa Mas como seus princípios fundamentais de pendem daquelas aparências que são mais fáceis e menos enganosas eles conferem às suas conseqüências um grau de exatidão que essas conseqüências por si sós são incapazes de atingir É impossível ao olho determinar que os ângulos de um quiliágono são iguais a 1996 ângu los retos ou fazer qualquer conjetura que se aproxime de tais propor ções Mas quando determina que duas retas não podem coincidir ou que não podemos traçar mais de uma reta entre dois pontos dados seus erros nunca são muito significativos Essa é a natureza e a fun ção da geometria a saber conduzirnos a aparências tais que em razão de sua simplicidade não podem nos levar a cometer nenhum erro muito considerável 7 Aproveitarei aqui a ocasião para propor uma segunda observação a respeito de nossos raciocínios demonstrativos sugerida pelo mes mo tema da matemática É comum os matemáticos afirmarem que as idéias de que se ocupam possuem uma natureza tão refinada e espiri tual que não podem ser concebidas pela fantasia devendo antes ser compreendidas por uma visão pura e intelectual acessível apenas às faculdades superiores da alma Tal concepção perpassa quase todas as partes da filosofia sendo utilizada sobretudo para explicar nossas idéias abstratas e para mostrar como podemos formar a idéia de um triân gulo por exemplo que não seja nem isósceles nem escaleno e tam pouco seja restrito a um comprimento ou proporção particular entre seus lados É fácil ver por que os filósofos gostam tanto dessa noção 1 00 Livro 1 Parte 3 Seção 2 de algumas percepções espirituais e refinadas é que assim eles enco brem vários de seus absurdos e podem se recusar a aceitar as resolu ções impostas pelas idéias claras recorrendo em lugar destas a idéias obscuras e incertas Para destruir esse artifício porém bastanos re fletir acerca daquele princípio sobre o qual insistimos com tanta fre qüência que todas as nossas idéias são copiadas de nossas impressões Dele podemos imediatamente concluir que uma vez que todas as impres sões são claras e precisas as idéias que são delas copiadas devem ter essa mesma natureza e só por uma falha de nossa parte poderiam conter algo tão obscuro e intricado Uma idéia por sua própria natu reza é mais fraca e pálida que uma impressão Mas sendo igual a ela em todos os demais aspectos não pode conter grandes mistérios Se sua fraqueza a torna obscura cabe a nós remediar tal defeito tanto quan to possível mantendo a idéia firme e precisa Enquanto não o fizer mos é vão pretender raciocinar e filosofar Seção 2 Da probabilidade e da idéia de causa e efeito 1 Isso é tudo que penso ser necessário observar a respeito das qua tro relações que constituem o fundamento da ciência Quanto às ou tras três que não dependem da idéia e podem estar presentes ou au sentes enquanto aquela permanece a mesma cabe explicálas mais detalhadamente Essas três relações são identidade situações no tempo e no espaço e causalidade 2 Todos os tipos de raciocínio consistem apenas em uma compara ção e uma descoberta das relações constantes ou inconstantes en tre dois ou mais objetos Essa comparação pode ser feita quando ambos os objetos estão presentes aos sentidos ou quando nenhum dos dois está presente ou ainda quando apenas um está Quando ambos os objetos estão presentes aos sentidos juntamente com a relação cha mamos a isso antes de percepção que de raciocínio pois neste caso não há propriamente falando um exercício do pensamento e tam pouco uma ação mas uma mera admissão passiva das impressões 1 0 1 Tratado da natureza humana pelos órgãos da sensação De acordo com esse modo de pensar não deveríamos considerar como raciocínio nenhuma das observações que se podem fazer a respeito da identidade e das relações de tempo e espaço Em nenhuma delas a mente é capaz de ir além daquilo que está imediatamente presente aos sentidos para descobrir seja a exis tência real seja as relações dos objetos Apenas a causalidade produz uma conexão capaz de nos proporcionar uma convicção sobre a exis tência ou ação de um objeto que foi seguido ou precedido por outra existência ou ação As outras duas relações só podem ser emprega das no raciocínio enquanto afetam ou são afetadas por ela Não há nada em nenhum objeto capaz de nos persuadir de que ele está sem pre distante de outro ou que os dois sejam sempre contíguos E quan do pela observação e experiência descobrimos que essa sua relação é invariável sempre concluímos haver alguma causa secreta que os separa ou une O mesmo raciocínio aplicase à identidade Estamos sempre prontos a supor que um objeto pode continuar sendo nume ricamente idêntico ainda que se ausente e se reapresente diversas vezes perante os sentidos Apesar da descontinuidade da percepção atribuímos a ele uma identidade sempre que concluímos que caso o tivéssemos mantido constantemente ao alcance de nosso olhar ou sob nossa mão ele teria transmitido uma percepção invariável e inin terrupta Mas tal conclusão que ultrapassa as impressões de nossos sentidos só pode estar fundada na conexão de causa e efeito De ou tro modo não poderíamos de forma alguma estar seguros de que o que temos agora diante de nós não é um outro objeto muito seme lhante àquele que estava antes presente aos sentidos Sempre que des cobrimos uma semelhança tão perfeita examinamos se essa seme lhança é comum nessa espécie de objeto e se é possível ou provável que alguma causa tenha produzido a mudança e a semelhança Nos so juízo a respeito da identidade do objeto será formulado de acordo com a conclusão acerca dessas causas e efeitos 3 Vemos assim que dessas três relações que não dependem mera mente das idéias a única que remete para além de nossos sentidos 1 02 Livro 1 Parte 3 Seção 2 e nos informa acerca de existências e objetos que não vemos ou to camos é a causalidade Por isso procuraremos explicar essa relação de maneira mais completa antes de abandonarmos o tema do enten dimento 4 Para começar de maneira ordenada devemos considerar a idéia de causação e examinar qual sua origem É impossível raciocinar de maneira correta sem compreender perfeitamente a idéia sobre a qual raciocinamos e é impossível compreender perfeitamente uma idéia sem referila à sua origem e sem examinar aquela impressão primeira da qual ela surge O exame da impressão confere clareza à idéia e o exame da idéia confere uma clareza semelhante a todos os nossos raciocínios 5 Voltemos assim nosso olhar para dois objetos quaisquer que chamaremos de causa e efeito e examinemolos de todos os lados a fim de encontrar a impressão que produz uma idéia de tamanha im portância Logo à primeira vista percebo que não devo buscar essa impressão em nenhuma das qualidades particulares dos objetos pois qualquer que seja a qualidade que escolho encontro sempre um obje to que não a possui e que não obstante se inclui sob a denominação de causa ou de efeito De fato não existe nada interno ou externo que não deva ser considerado uma causa ou um efeito E entretanto é claro que não existe nenhuma qualidade que pertença universalmente a todos os seres e que lhes dê direito a essa denominação 6 A idéia de causação portanto deve ser derivada de alguma rela ção entre os objetos e é essa relação que devemos agora tentar en contrar Em primeiro lugar vejo que todos os objetos considerados causas ou efeitos são contíguos e que nenhum objeto pode atuar em um momento ou lugar afastados por menos que seja do momento e lugar de sua própria existência Embora algumas vezes possa pare cer que objetos distantes produzem uns aos outros descobrimos ao examinálos que estão ligados por uma cadeia de causas contíguas entre si e em relação ao objeto distante E quando em um caso par ticular não somos capazes de descobrir essa conexão ainda assim 1 03 Tratado da natureza humana presumimos que ela existe Podemos portanto considerar a relação de CONTIGÜIDADE como essencial à de causalidade Ou ao menos podemos supor que é essencial de acordo com a opinião geral até que encontremos uma ocasião2 mais apropriada para esclarecer esse pro blema examinando que objetos são ou não suscetíveis de justaposi ção e de conjunção 7 A segunda relação que assinalarei como essencial às causas e efei tos não é tão universalmente reconhecida estando ao contrário su jeita a alguma controvérsia Tratase da PRIORIDADE temporal da causa em relação ao efeito Há os que afirmam que não é absolutamente necessário que uma causa preceda seu efeito e que qualquer objeto ou ação já no primeiro instante de sua existência pode exercer sua qualidade produtiva gerando outro objeto ou ação que lhe seja per feitamente contemporâneo Contudo além do fato de que a experiên cia parece contradizer essa opinião na maioria dos casos podemos estabelecer a relação de prioridade por meio de uma espécie de inferência ou raciocínio Tanto a filosofia da natureza como a filoso fia moral têm como uma máxima estabelecida que um objeto que exista durante algum período de tempo em sua plena perfeição sem produzir um outro não é a única causa deste sendo antes auxiliado por algum outro princípio que o arranca de seu estado de inativida de fazendo com que exerça aquela energia que secretamente possuía Ora se alguma causa pode ser perfeitamente contemporânea a seu efeito é certo que de acordo com essa máxima todas devem sêlo Pois qualquer causa que retarde sua operação por um só instante deixa de atuar naquele momento particular preciso em que poderia ter atua do e portanto não é propriamente uma causa A conseqüência disso seria nada menos que a destruição da sucessão de causas que observamos no mundo e mesmo a total aniquilação do tempo Por que se uma causa fosse contemporânea a seu efeito e esse efeito a seu efeito e assim por diante é claro que não haveria algo como uma sucessão e os objetos seriam todos coexistentes 2 Parte 4 Seção 5 1 04 Livro 1 Parte 3 Seção 2 8 Se esse argumento parece satisfatório ótimo Se não peço ao lei tor que me conceda a mesma liberdade que tomei no caso anterior isto é de supor que é satisfatório pois verá que a questão não tem grande importância 9 Tendo assim descoberto ou suposto que as duas relações de con tigüidade e sucessão são essenciais às causas e efeitos vejo que tenho de parar subitamente e que não posso ir adiante pelo exame de um exemplo isolado de causa e efeito O movimento de um corpo é visto como a causa por impacto do movimento de outro corpo Quando consideramos atentamente esses objetos tudo que vemos é que um corpo se aproxima do outro e que seu movimento precede o movi mento do outro porém sem um intervalo perceptível É inútil atormentarmonos com mais pensamentos e reflexões sobre esse as sunto Não podemos ir mais longe considerando este caso particular 10 Se alguém descartar esse exemplo e quiser definir uma causa co mo uma coisa que produz outra é evidente que não estará dizendo nada Pois o que quer dizer com produção Poderá dar uma definição desse termo que não seja a mesma que a definição de causação Se puder peço que a mostre Se não puder é porque está andando em círculos oferecendo um sinônimo em lugar de uma definição 11 Deveremos pois ficar satisfeitos com essas duas relações de con tigüidade e sucessão como fornecendo uma idéia completa da causação De forma alguma Um objeto pode ser contíguo e anterior a outro sem ser considerado sua causa Há uma CONEXÃO NECES SÁRIA a ser levada em consideração e essa relação é muito mais im portante que as outras duas anteriormente mencionadas 12 Aqui novamente examino o objeto de todos os lados a fim de descobrir a natureza dessa conexão necessária e encontrar a impres são ou impressões de que pode ser derivada sua idéia Quando diri jo meu olhar para as qualidades conhecidas dos objetos descubro ime diatamente que a relação de causa e efeito não depende em nada delas Quando considero suas relações as únicas que encontro são as de 1 05 Tratado da natureza humana contigüidade e sucessão que já mostrei serem imperfeitas e insa tisfatórias Deverei afirmar em desespero de causa que estou aqui de posse de uma idéia que não é precedida por qualquer impressão similar Isso seria uma prova demasiadamente forte de leviandade e inconstância uma vez que o princípio contrário já foi firmemente es tabelecido não admitindo mais dúvidas ao menos até termos exa minado de modo mais completo a presente dificuldade 13 Devemos portanto proceder como aqueles que à procura de al guma coisa escondida e não a encontrando no lugar esperado saem por todos os campos vizinhos sem objetivo ou propósito certo na esperança de que a sorte acabe por guiálos até aquilo que buscam É necessário que abandonemos a investigação direta dessa questão a respeito da natureza daquela conexão necessária que faz parte de nossa idéia de causa e efeito e que nos esforcemos para encontrar outras questões cujo exame talvez nos forneça alguma indicação para es clarecermos a presente dificuldade Dessas questões há duas que exa minarei a seguir a saber 14 Em primeiro lugar por que razão afirmamos ser necessário que tudo aquilo cuja existência tem um começo deva também ter uma causa 15 Em segundo lugar por que concluímos que tais causas particula res devem necessariamente ter tais efeitos particulares e qual a natu reza da inferência que fazemos daquelas a estes bem como da crença que depositamos nessa inferência 16 Antes de passar adiante observarei apenas que embora as idéias de causa e de efeito sejam derivadas das impressões de reflexão as sim como das de sensação entretanto no interesse da concisão men cionarei em geral apenas estas últimas como a origem de tais idéias mas estou supondo que tudo o que delas disser pode se estender às primeiras As paixões estão tão conectadas com seus objetos e umas com as outras quanto os corpos externos entre si Portanto a mesma relação de causa e efeito que pertence a um tipo de impres são deve ser comum a todas 1 06 Livro 1 Parte 3 Seção 3 Seção 3 Por que uma causa é sempre necessária 1 Comecemos pela primeira questão a respeito da necessidade de uma causa Tratase de uma máxima geral da filosofia que tudo que começa a existir deve ter uma causa para sua existência Costumase pres supor essa máxima em todos os raciocínios sem se fornecer ou exi gir prova alguma Ela supostamente está fundada na intuição sendo uma dessas máximas que embora possam ser negadas verbalmen te não podem ser sinceramente postas em dúvida pelos homens Mas se a examinarmos segundo a idéia de conhecimento anteriormente explicada não descobriremos nela nenhuma marca de uma tal certe za intuitiva Ao contrário veremos que sua natureza é bastante alheia a essa espécie de convicção 2 Toda certeza provém da comparação de idéias e da descoberta de relações que permanecem inalteráveis enquanto as idéias continuam iguais Essas relações são a semelhança as proporções de quantidade e de número os graus de uma qualidade e a contrariedade nenhuma das quais está implicada na proposição de que tudo que tem um começo deve ter uma causa para sua existência Essa proposição portanto não é in tuitivamente certa Ou ao menos qualquer pessoa que queira afir mar que é intuitivamente certa deverá negar que essas sejam as úni cas relações infalíveis e deverá descobrir alguma outra relação desse tipo implicada naquela proposição e então será o momento ade quado de examinála 3 Mas eis aqui um argumento que prova de uma só vez que a pro posição precedente não é nem intuitiva nem demonstrativamente cer ta Nunca poderíamos demonstrar a necessidade de uma causa para toda nova existência ou para toda nova modificação de existência sem mostrar ao mesmo tempo a impossibilidade de que alguma coisa co mece a existir sem algum princípio produtivo E se esta última pro posição não puder ser provada devese perder qualquer esperança de jamais provar a primeira Ora que a última proposição é inteiramente incapaz de receber uma prova demonstrativa é algo de que podemos 1 0 7 Tratado da natureza humana nos convencer considerando que como todas as idéias distintas são separáveis entre si e como as idéias de causa e de efeito são eviden temente distintas é fácil conceber que um objeto seja nãoexistente neste momento e existente no momento seguinte sem juntar a ele a idéia distinta de uma causa ou princípio produtivo Portanto a sepa ração da idéia de uma causa da idéia de um começo de existência é claramente possível para a imaginação Uma vez portanto que não implica contradição ou absurdo a separação real desses objetos é pos sível e por isso não pode ser refutada por nenhum raciocínio basea do nas meras idéias E sem isso é impossível demonstrar a necessi dade de uma causa 4 Por conseguinte o exame das demonstrações já apresentadas a favor da necessidade de uma causa mostrará que são todas falaciosas e sofísticas Alguns filósofos3 dizem que todos os pontos do tempo e do espaço em que podemos supor que um objeto começa a existir são em si mesmos equivalentes A menos que haja alguma causa que seja peculiar a um momento e a um lugar determinando e fixando dessa maneira a existência esta deverá permanecer eternamente em suspenso e o objeto nunca poderá começar a existir em por falta de alguma coisa que fixe seu começo Mas eu pergunto será mais difícil supor que o tempo e o espaço sejam fixados sem uma causa do que su por que a existência seja determinada dessa mesma maneira A pri meira pergunta que se coloca a esse respeito é sempre se o objeto irá ou não existir a pergunta seguinte é quando e onde ele começará a existir Se no primeiro caso for intuitivamente absurdo suprimir toda causa também deve ser assim no segundo mas se no primei ro caso esse absurdo não ficar claro sem uma prova esta também será necessária no segundo Portanto o absurdo de uma suposi ção jamais pode servir de prova do absurdo da outra pois elas estão na mesma condição sendo confirmadas ou refutadas pelo mes mo raciocínio 3 Sr Hobbes 1 08 Livro 1 Parte 3 Seção 3 5 O segundo argumento4 que vi ser utilizado a propósito dessa questão enfrenta a mesma dificuldade Tudo deve ter uma causa di zem pois se alguma coisa carecesse de causa ela seria produzida por si mesma isto é existiria antes de existir o que é impossível Esse ra ciocínio porém é claramente inconcludente Ele supõe que ao ne garmos uma causa estamos ainda admitindo aquilo que negamos ex pressamente a saber que deve haver uma causa a qual portanto é tida como o próprio objeto Isso sem dúvida é uma evidente contra dição Mas dizer que alguma coisa é produzida ou para me exprimir de maneira mais apropriada dizer que uma coisa passa a existir sem uma causa não é afirmar que ela é sua própria causa Ao contrário ao excluirmos todas as causas externas excluímos também a fortiori a própria coisa criada Um objeto que existe absolutamente sem ne nhuma causa com certeza não é sua própria causa Sustentar o con trário seria supor aquilo mesmo que está em questão tomando como certo que é inteiramente impossível que alguma coisa possa come çar a existir sem uma causa e que se excluirmos um princípio pro dutivo teremos sempre de recorrer a outro 6 Exatamente o mesmo se passa com o terceiro argumento5 utili zado para demonstrar a necessidade de uma causa Tudo que é pro duzido sem causa é produzido por nada ou em outras palavras tem como causa o nada Mas o nada nunca poderia ser uma causa assim como não pode ser alguma coisa ou ser igual a dois ângulos retos A mesma intuição que nos leva a perceber que o nada não é igual a dois ângulos retos ou que não é alguma coisa levanos a perceber que jamais poderia ser uma causa Conseqüentemente devemos perce ber que a existência de todo objeto possui uma causa real 7 Creio que não precisarei ser muito prolixo para mostrar a fra queza desse argumento após o que eu já disse acerca do argumento 4 Dr Clarke e outros 5 Sr Locke Whatever is produc d without any cause is produc d by nothing A frase gramaticalmen te correta em português seria Tudo que é produzido sem causa não é produzido por nada mas isso deixaria sem sentido o raciocínio de Hume NT 1 09 Tratado da natureza humana anterior Os dois estão fundados na mesma falácia e derivam do mes mo modo de pensar Basta apenas observar que ao excluirmos todas as causas nós realmente as excluímos e não supomos nem que o nada nem que o objeto mesmo sejam as causas da existência deste Conseqüentemente não podemos extrair do absurdo dessas supo sições nenhum argumento para provar o absurdo daquela exclusão Se tudo deve ter uma causa seguese que ao excluirmos outras cau sas devemos aceitar que o próprio objeto ou o nada são causas Mas o que está em questão é justamente se tudo deve ou não ter uma causa Portanto de acordo com todas as regras do bom raciocínio isso é algo que nunca se deve dar por suposto 8 São ainda mais levianos aqueles que dizem que todo efeito deve ter uma causa porque a idéia de causa está implicada na idéia mesma de efeito Todo efeito pressupõe necessariamente uma causa já que efeito é um termo relativo cujo correlato é causa Mas isso não pro va que todo ser tenha de ser precedido por uma causa assim como do fato de que todo marido deve ter uma esposa não se segue que por isso todo homem tenha de ser casado A verdadeira questão é se todo objeto que começa a existir deve ter sua existência atribuída a uma causa E isso eu afirmo que não é nem intuitiva nem demons trativamente certo como espero haver provado de maneira suficien te pelos argumentos precedentes 9 Uma vez que não é do conhecimento ou de um raciocínio cien tífico que derivamos a opinião de que uma causa é necessária para toda nova produção tal opinião deve vir necessariamente da obser vação e da experiência A questão seguinte portanto deveria natu ralmente ser como a experiência dá origem a um tal princípio Mas penso que o mais conveniente será embutir essa questão na seguinte a saber por que concluímos que tais causas particulares devem necessaria mente ter tais efeitos particulares e por que realizamos uma inferência daquelas para estes últimos Esse portanto será o tema de nossa pró xima investigação Talvez acabemos descobrindo que a mesma res posta serve para ambas as questões 1 1 o Livro 1 Parte 3 Seção 4 Seção 4 Das partes componentes de nossos raciocínios acerca da causa e do efeito 1 Embora a mente em seus raciocínios partindo de causas ou efei tos dirija sua atenção para além dos objetos que vê ou recorda ela nunca deve perdêlos inteiramente de vista nem raciocinar apenas com base em suas próprias idéias sem combinálas com impressões ou ao menos com idéias da memória que equivalem a impressões Quan do inferimos efeitos de causas devemos estabelecer a existência des sas causas E só temos dois meios de fazêlo por uma percepção ime diata de nossa memória ou nossos sentidos ou por uma inferência a partir de outras causas Estas últimas por sua vez devem ser deter minadas da mesma maneira ou seja por uma impressão presente oµ por uma inferência baseada em suas causas e assim por diante até chegarmos a um objeto que vemos ou recordamos É impossível prosseguir com nossas inferências ao infinito e a única coisa capaz de as deter é uma impressão da memória ou dos sentidos além da qual não cabem dúvidas nem perquirições 2 Para ilustrar esse tema podemos escolher um ponto qualquer da história e examinar por que razão acreditamos nele ou o rejeita mos Assim por exemplo acreditamos que César foi morto no Se nado nos idos de março porque esse fato foi estabelecido com base no testemunho unânime dos historiadores que concordam em atri buir esse momento e lugar precisos a tal acontecimento Temos aqui certos caracteres e letras que estão presentes em nossa memória ou a nossos sentidos e também nos lembramos de que esses caracteres foram usados como signos de certas idéias Ora essas idéias ou es tavam nas mentes dos que se encontravam imediatamente presen tes àquela ação recebendo tais idéias diretamente da existência de tal ação ou foram derivadas do testemunho de outras pessoas e este novamente de outro testemunho mediante um visível processo gradativo até chegarmos às testemunhas oculares e espectadores do 1 1 1 Tratado da natureza humana acontecimento É óbvio que toda essa cadeia de argumentos ou cone xão de causas e efeitos está fundada primeiramente nesses caracteres ou letras que são vistos ou recordados e que sem a autoridade seja da memória seja dos sentidos todo o nosso raciocínio seria quimérico e infundado Nesse caso cada elo da cadeia estaria preso a outro mas não haveria nada afixado a um dos extremos capaz de sustentar o todo conseqüentemente não haveria nem crença nem evidência É isso o que de fato se passa com todos os argumentos hipotéticos ou seja ra ciocínios baseados em uma suposição pois neles não há nenhuma impressão presente nem tampouco crença em uma existência real 3 É desnecessário observar que não se trata de uma objeção legíti ma à presente doutrina dizer que podemos raciocinar com base em nossas conclusões ou princípios passados sem ter de recorrer às im pressões de que estes derivaram em primeiro lugar Pois mesmo supondo que essas impressões se apaguem inteiramente de nossa memória a convicção por elas produzida pode ainda permanecer Por isso é igualmente verdadeiro que todo raciocínio acerca de cau sas e efeitos deriva originalmente de alguma impressão do mesmo modo que a certeza de uma demonstração procede sempre de uma comparação de idéias embora possa permanecer mesmo depois de es quecida essa comparação Seção 5 Das impressões dos sentidos e da memória 1 Nesse tipo de raciocínio por causalidade portanto empregamos materiais de natureza mista e heterogênea que embora conectados são essencialmente diferentes uns dos outros Todos os nossos argu mentos concernentes a causas e efeitos consistem tanto em uma im pressão da memória ou dos sentidos como na idéia daquela existência que produz o objeto da impressão ou que é por ele produzida Temos aqui portanto três coisas a explicar em primeiro lugar a impressão original em segundo a transição para a idéia da causa ou do efeito conectados e em terceiro a natureza e as qualidades dessa idéia Livro 1 Parte 3 Seção 5 2 Quanto às impressões provenientes dos sentidos sua causa última é em minha opinião inteiramente inexplicável pela razão humana e será para sempre impossível decidir com certeza se elas surgem ime diatamente do objeto se são produzidas pelo poder criativo da men te ou ainda se derivam do autor de nosso ser Tal questão digase de passagem não tem nenhuma importância para nosso propósito pre sente Podemos sempre fazer inferências partindo da coerência de nos sas percepções sejam estas verdadeiras ou falsas representem elas a natureza de maneira correta ou sejam meras ilusões dos sentidos 3 Quando buscamos a característica que distingue a memória da ima ginação devemos imediatamente perceber que ela não pode estar nas idéias simples que aquela nos apresenta pois ambas as faculdades retiram suas idéias simples das impressões e nunca podem ir além dessas percepções originais As duas faculdades tampouco se distin guem pela disposição de suas idéias complexas Porque embora seja uma propriedade peculiar da memória preservar a ordem e posição originais de suas idéias enquanto a imaginação as transpõe e altera a seu belprazer essa diferença não é suficiente para distinguilas em suas operações ou para nos permitir discernir uma da outra Pois é impossível recordar impressões passadas a fim de comparálas com nossas idéias presentes e dessa forma ver se sua ordenação é exata mente igual Como portanto a memória não é conhecida nem pela ordem de suas idéias complexas nem pela natureza de suas idéias sim ples seguese que a diferença entre ela e a imaginação está em sua força e vividez superior Um homem pode dar vazão a sua fantasia imaginandose como personagem de uma cena passada de aventu ras E não haveria possibilidade de distinguir essa cena de uma lem brança de um tipo semelhante se as idéias da imaginação não fossem mais fracas e obscuras 4 É freqüente acontecer que quando dois homens estiveram en volvidos em um episódio um deles se lembre dele muito melhor que o outro e tenha a maior dificuldade do mundo para fazer que seu com 1 1 3 Tratado da natureza humana panheiro se lembre também Enumera em vão diversas circunstân cias menciona o momento o lugar as pessoas que estavam presen tes o que foi dito o que cada um fez até que finalmente toca em uma circunstância feliz que faz reviver o conjunto todo dando a seu amigo uma memória perfeita de cada detalhe Aqui a pessoa que es queceu recebe inicialmente do discurso da outra todas as idéias com as mesmas circunstâncias de tempo e lugar mas as considera como meras ficções da imaginação Entretanto assim que é mencionada a circunstância que toca sua memória exatamente as mesmas idéias aparecem sob nova luz produzindo como que uma sensação feeling diferente daquela que antes produziam Sem qualquer outra altera ção além dessa na sensação feeling elas se tomam imediatamente idéias da memória e recebem nosso assentimento 5 Portanto como a imaginação é capaz de representar todos os mes mos objetos que a memória pode nos oferecer e já que essas facul dades só se distinguem pela maneira diferente como sentimos as idéias que nos apresentam talvez seja apropriado considerar qual a natureza dessa sensação feeling E aqui acredito que todos con cordarão imediatamente comigo que as idéias da memória são mais fortes e mais vívidas que as da fantasia Um pintor que quisesse repre sentar uma paixão ou emoção qualquer tentaria observar uma pes soa movida por uma emoção semelhante a fim de avivar suas idéias e darlhes uma força e vividez superiores às encontradas nas idéias que são meras ficções da fantasia Quanto mais recente essa memória mais clara a idéia e quando após um longo intervalo o pintor vol tasse a contemplar seu objeto sempre acharia a idéia deste bastan te enfraquecida senão apagada por completo Freqüentemente quando as idéias da memória se tomam muito fracas e pálidas fi camos indecisos a seu respeito e não sabemos como determinar se uma imagem procede da fantasia ou da memória quando não está pintada com as cores vivas que distinguem esta última facul dade Acho que me lembro de tal acontecimento diz alguém mas não tenho certeza Um longo intervalo de tempo quase o apagou de 1 1 4 Livro 1 Parte 3 Seção 6 minha memória e não sei dizer se é ou não um mero produto de mi nha fantasia 6 E assim como uma idéia da memória ao perder sua força e vi videz pode degenerar a ponto de ser tomada por uma idéia da imagi nação assim também em contrapartida uma idéia da imaginação pode adquirir tal força e vividez que chega a passar por uma idéia da memória simulando seus efeitos sobre a crença e o juízo Isso pode ser notado no caso dos mentirosos que pela freqüente repetição de suas mentiras acabam finalmente por acreditar nelas e lembramse mesmo delas como realidades Neste caso como em muitos outros o costume e o hábito exercem sobre a mente a mesma influência que a natureza fixando a idéia com igual força e vigor 7 Vemos assim que a crença ou assentimento que sempre acompa nha a memória e os sentidos não consiste senão na vividez das per cepções que ambos apresentam e que somente isso os distingue da imaginação Crer nesse caso é sentir uma impressão imediata dos sentidos ou uma repetição dessa impressão na memória É simples mente a força e a vividez da percepção que constituem o primeiro ato do juízo e estabelecem o fundamento do raciocínio que construímos com base nela quando traçamos a relação de causa e efeito Seção 6 Da inferência da impressão à idéia 1 É fácil observar que ao traçarmos essa relação a inferência que fazemos da causa ao efeito não deriva meramente de um exame des ses objetos particulares nem de uma penetração em suas essências que pudesse revelar a dependência de um em relação ao outro Ne nhum objeto implica a existência de outro se consideramos esses ob jetos em si mesmos sem olhar para além das idéias que deles forma mos Uma tal inferência equivaleria a um conhecimento e implicaria a absoluta contradição e impossibilidade de se conceber algo diferente Mas uma vez que todas as idéias distintas são separáveis é evidente 1 1 5 Tratado da natureza humana que não pode haver tal impossibilidade Quando passamos de uma impressão presente à idéia de um objeto qualquer teria sido possível separar a idéia da impressão substituindoa por qualquer outra idéia 2 É apenas pela EXPERIÊNCIA portanto que podemos inferir a existência de um objeto da existência de outro A natureza da experiên cia é a seguinte Lembramonos de ter tido exemplos freqüentes da existência de objetos de uma certa espécie e também nos lembramos que os indivíduos de uma outra espécie de objetos sempre acompa nharam os primeiros existindo em uma ordem regular de contigüida de e sucessão em relação a eles Assim lembramonos de ter visto aque la espécie de objetos que denominamos chama e de ter sentido aquela espécie de sensação que denominamos calor Recordamonos igual mente de sua conjunção constante em todos os casos passados Sem mais cerimônias chamamos à primeira de causa e à segunda de efei to e inferimos a existência de uma da existência da outra Em todos os casos com base nos quais constatamos a conjunção entre causas e efeitos particulares tanto a causa como o efeito foram percebidos pelos sentidos e são recordados Mas em todos os casos em que ra ciocinamos a seu respeito apenas um é percebido ou lembrado en quanto o outro é suprido em conformidade com nossa experiência passada 3 Assim conforme avançamos descobrimos sem querer uma nova relação entre a causa e o efeito quando menos esperávamos estando inteiramente envolvidos em outro assunto Tal relação é a CONJUNÇÃO CONSTANTE Contigüidade e sucessão não são suficien tes para nos fazer declarar que dois objetos são causa e efeito a não ser que percebamos que essas duas relações se mantêm em vários casos Podemos ver agora a vantagem de ter abandonado o exame direto dessa relação com o intuito de descobrir a natureza daquela conexão necessária que constitui uma parte tão essencial dela Desse modo podemos ter esperanças de chegar finalmente ao objetivo que propusemos embora para falar a verdade essa recémdescoberta relação de uma conjunção constante pareça nos fazer avançar muito 1 1 6 Livro 1 Parte 3 Seção 6 pouco em nosso caminho Pois ela não implica nada mais que isto objetos semelhantes têm se mostrado sempre em relações semelhan tes de contigüidade e sucessão E parece evidente ao menos à pri meira vista que por esse meio jamais descobriremos uma idéia nova podemos simplesmente multiplicar mas não acrescentar novos ob jetos à nossa mente Podese pensar que aquilo que não aprendemos com um objeto não poderemos nunca aprender com uma centena de objetos do mesmo tipo e perfeitamente semelhantes em todas as cir cunstâncias Assim como nossos sentidos nos mostram um exem plo de dois corpos ou movimentos ou qualidades em determinadas relações de sucessão e contigüidade assim também nossa memória nos apresenta apenas uma multiplicidade de casos em que sempre encontramos corpos movimentos ou qualidades semelhantes em relações semelhantes Da mera repetição de uma impressão passa da mesmo ao infinito jamais surgirá uma nova idéia original tal como a de uma conexão necessária um grande número de impres sões não tem neste caso um efeito maior que se nos confinássemos a apenas uma Esse raciocínio parece correto e óbvio entretanto seria tolice perder tão cedo as esperanças e assim continuaremos seguindo o fio de nosso discurso Tendo visto que após a descoberta da con junção constante entre dois objetos quaisquer nós sempre fazemos uma inferência de um a outro examinaremos agora a natureza des sa inferência e da transição da impressão à idéia Talvez acabemos descobrindo que em vez de a inferência depender da conexão neces sária é a conexão necessária que depende da inferência 4 Tendo já visto que a transição que fazemos de uma impressão presente à memória ou aos sentidos para a idéia de um objeto que denominamos causa ou efeito está fundada na experiência passada e em nossa lembrança de sua conjunção constante a próxima questão é a experiência produz a idéia por meio do entendimento ou da imagi nação É a razão que nos determina a fazer a inferência ou uma cer ta associação e relação de percepções Se fosse a razão ela o faria com base no princípio de que os casos de que não tivemos experiência devem Tratado da natureza humana se assemelhar aos casos de que tivemos experiência e de que o curso da na tureza continua sempre uniformemente o mesmo A fim de esclarecer essa questão portanto passemos ao exame de todos os argumentos que podem supostamente fundamentar essa proposição E como tais ar gumentos devem ser derivados quer do conhecimento quer da probabi lidade consideremos cada um desses graus de evidência para ver se podem nos fornecer alguma conclusão legítima dessa natureza 5 Nosso método anterior de raciocínio nos convencerá facilmente de que não pode haver nenhum argumento demonstrativo para pro var que os casos de que não tivemos experiência se assemelham àqueles de que tivemos experiência Podemos ao menos conceber uma mudança no curso da natureza o que é prova suficiente de que tal mudan ça não é absolutamente impossível Ser capaz de formar uma idéia clara de alguma coisa é um argumento inegável a favor da possibili dade dessa coisa e constitui por si só uma refutação de qualquer pretensa demonstração em contrário 6 Quanto à probabilidade como não se aplica às relações de idéias consideradas enquanto tais mas apenas às relações de objetos ela deve sob certos aspectos estar fundada nas impressões de nossa memória e sentidos e sob outros em nossas idéias Se não houves se alguma impressão misturada a nossos raciocínios prováveis a con clusão seria inteiramente quimérica E se não houvesse idéias mis turadas a ação da mente ao observar a relação seria propriamente falando uma sensação e não um raciocínio Portanto é necessário que em todos os raciocínios prováveis haja alguma coisa presente à mente quer seja vista ou lembrada e que dessa coisa infiramos algo a ela conectado que não é nem visto nem lembrado 7 A única conexão ou relação de objetos capaz de nos levar para além das impressões imediatas de nossa memória e sentidos é a de causa e efeito e isso porque é a única sobre a qual podemos fundar uma inferência legítima de um objeto a outro A idéia de causa e efei to é derivada da experiência que nos informa que tais objetos particula res em todos os casos passados estiveram em conjunção constante 1 1 8 Livro 1 Parte 3 Seção 6 um com o outro E como se supõe que um objeto similar a um deles está imediatamente presente em sua impressão presumimos a par tir disso a existência de um objeto similar ao que habitualmente o acompanha De acordo com essa explicação do que se passa expli cação que creio ser inquestionável em todos os seus pontos a pro babilidade se funda na suposição de uma semelhança entre os obje tos de que tivemos experiência e aqueles de que não tivemos É impossível portanto que essa suposição possa surgir da probabili dade O mesmo princípio não pode ser ao mesmo tempo causa e efeito de outro e essa é talvez a única proposição intuitiva ou demonstra tivamente certa acerca dessa relação 8 Se alguém pensa poder eludir esse argumento afirmando que to das as conclusões a respeito de causas e efeitos são construídas com base em um raciocínio sólido sem sequer determinar se esse racio cínio deriva da demonstração ou da probabilidade a única coisa que posso fazer é pedir que nos apresente esse raciocínio para que seja submetido a nosso exame Talvez se diga que após a experiência da conjunção constante de certos objetos nós raciocinamos da seguin te maneira Sempre se viu que tal objeto produzia um outro É impos sível que ele tivesse esse efeito se não fosse dotado de um poder de produção O poder implica necessariamente o efeito e portanto existe um fundamento legítimo para se tirar uma conclusão da existência de um objeto para a daquele que comumente o acompanha A produ ção passada implica um poder o poder implica uma nova produção e é essa nova produção que inferimos do poder e da produção passada 9 Sermeia muito fácil mostrar a fraqueza desse raciocínio se de sejasse utilizar aqui as observações que fiz há pouco a saber que a idéia de produção é a mesma que a de causação e que nenhuma exis tência implica de maneira certa e demonstrativa um poder em outro objeto ou então se fosse apropriado antecipar o que terei ocasião de observar adiante a respeito da idéia que formamos do poder e da eficá cia Mas como tal procedimento pode parecer ou enfraquecer meu sis tema por apoiar uma de suas partes em outra ou gerar uma confusão 1 1 9 Tratado da natureza humana em meu raciocínio tentarei sustentar a presente afirmação sem esse recurso 10 Admitamos pois por um momento que a produção de um ob jeto por outro em um caso qualquer implica um poder e que esse poder está conectado com seu efeito Ora uma vez que já se provou que o poder não repousa nas qualidades sensíveis da causa e como não há nada presente a nós além das qualidades sensíveis pergunto por que em outros casos presumis que exista o mesmo poder com base apenas no aparecimento dessas qualidades Vosso recurso à ex periência passada não serve de nada neste caso podendo no máxi mo provar que aquele mesmo objeto que produziu um outro era na quele mesmo instante dotado de tal poder Jamais poderá provar porém que o mesmo poder deve permanecer no mesmo objeto ou coleção de qualidades sensíveis e menos ainda que um poder se melhante ocorre sempre em conjunção com qualidades sensíveis semelhantes Se se disser que temos experiência de que o mesmo poder continua unido ao mesmo objeto e de que objetos semelhan tes são dotados de poderes semelhantes eu recolocaria minha qµes tão por que partindo dessa experiência formamos uma conclusão que ultra passa os casos passados de que tivemos experiência Se vossa resposta a essa questão for semelhante à anterior ela suscitará uma nova ques tão do mesmo tipo e assim ao infinito o que prova claramente que o raciocínio não possuía um fundamento legítimo 1 1 Assim não apenas nossa razão nos falha na descoberta da cone xão última entre causas e efeitos mas mesmo após a experiência ter nos informado de sua conjunção constante é impossível nos conven cermos pela razão de que deveríamos estender essa experiência para além dos casos particulares que pudemos observar Nós supomos mas nunca conseguimos provar que deve haver uma semelhança en tre os objetos de que tivemos experiência e os que estão além do al cance de nossas descobertas 12 Já observamos a existência de certas relações que nos fazem pas sar de um objeto a outro mesmo sem haver uma razão que nos deter 1 2 0 Livro 1 Parte 3 Seção 6 mine a fazer essa transição Podemos estabelecer como regra geral que sempre que a mente constante e uniformemente faz uma tran sição sem nenhuma razão ela está sendo influenciada por essas re lações Ora tal é exatamente o caso presente A razão jamais pode nos mostrar a conexão entre dois objetos mesmo com a ajuda da ex periência e da observação de sua conjunção constante em todos os casos passados Portanto quando a mente passa da idéia ou impres são de um objeto à idéia de outro objeto ou seja à crença neste ela não está sendo determinada pela razão mas por certos princípios que associam as idéias desses objetos produzindo sua união na ima ginação Se as idéias não fossem mais unidas na fantasia que os objetos parecem ser no entendimento nunca poderíamos realizar uma inferência das causas aos efeitos nem depositar nossa crença em qualquer questão de fato A inferência portanto depende uni camente da união das idéias 13 Quanto aos princípios de união entre as idéias eu os reduzi a três princípios gerais e afirmei que a idéia ou impressão de um obje to introduz naturalmente a idéia de qualquer outro objeto que seja semelhante contíguo ou conectado com o primeiro Admito que es ses princípios não são nem causas infalíveis nem as únicas causas de uma união entre idéias Não são causas infalíveis pois podemos fi xar nossa atenção durante algum tempo em um só objeto sem olhar para mais nada além dele Não são as únicas causas pois é evidente que o pensamento apresenta um movimento muito irregular ao per correr seus objetos podendo saltar dos céus à terra de um extremo ao outro da criação sem método ou ordem certa Mas embora admi ta essa fraqueza nessas três relações bem como essa irregularidade na imaginação afirmo que os únicos princípios gerais que associam idéias são a semelhança a contigüidade e a causalidade 14 É verdade que existe um princípio de união entre idéias que à primeira vista pode ser considerado diferente desses mas veremos que no fundo ele depende da mesma origem Quando a experiência mostra que todos os indivíduos de uma espécie de objetos estão 1 2 1 Tratado da natureza humana constantemente unidos com os indivíduos de outra espécie o apare cimento de um novo indivíduo pertencente a uma das duas espécies leva naturalmente o pensamento àquele que usualmente o acompa nha Assim uma vez que tal idéia particular é comumente vinculada a tal palavra particular a mera audição dessa palavra basta para pro duzir a idéia correspondente será quase impossível à mente por mais que se esforce impedir essa transição Nesse caso não é absoluta mente necessário que ao ouvir esse som particular nós reflitamos sobre uma experiência passada e consideremos que idéia esteve comumente conectada ao som A imaginação por si mesma supre o lugar dessa reflexão e está tão acostumada a passar da palavra à idéia que não deixa transcorrer um só momento entre a audição de uma e a concepção da outra 15 Embora eu reconheça que esse é um verdadeiro princípio de as sociação entre idéias afirmo porém que ele é exatamente o mesmo que vigora para as idéias de causa e efeito e que constitui uma parte essencial de todos os nossos raciocínios baseados nessa relação A única noção que temos de causa e efeito é a de certos objetos que existiram sempre conjuntamente e que em todos os casos passados mostraramse inseparáveis Não podemos penetrar na razão da con junção Apenas observamos o próprio fato e vemos sempre que em conseqüência de sua conjunção constante os objetos adquirem uma união na imaginação Quando a impressão de um deles se torna pre sente a nós formamos imediatamente uma idéia daquele que comumente o acompanha em conseqüência disso podemos estabe lecer como parte da definição de uma opinião ou crença que esta é uma idéia relacionada ou associada com uma impressão presente 16 Assim embora a causalidade seja uma relação filosófica por im plicar contigüidade sucessão e conjunção constante é apenas en quanto ela é uma relação natural produzindo uma união entre nos sas idéias que somos capazes de raciocinar ou fazer qualquer inferência a partir dela 1 22 Livro 1 Parte 3 Seção 7 Seção 7 Da natureza da idéia ou crença A idéia de um objeto é uma parte essencial da crença que nele depositamos mas não é tudo Concebemos muitas coisas em que não acreditamos Por isso para descobrir de maneira mais completa a na tureza da crença ou as qualidades das idéias a que damos nosso as sentimento pesemos as seguintes considerações É evidente que todos os raciocínios feitos a partir de causas ou efeitos terminam em conclusões a respeito de questões de fato isto é a respeito da existência de objetos ou suas qualidades É também evidente que a idéia de existência não é nada diferente da idéia de um objeto Quando após ter simplesmente concebido alguma coisa nós em seguida a concebemos como existente na realidade não acres centamos nada a nossa primeira idéia e tampouco a alteramos As sim quando afirmamos que Deus existe simplesmente formamos a idéia desse ser tal como nos é representado a existência que a ele atribuímos não é concebida mediante uma idéia particular que jun taríamos à idéia de suas outras qualidades e a qual pudéssemos no vamente separar e distinguir destas últimas Mas vou mais longe ain da não satifeito em afirmar que a concepção da existência de um objeto não acrescenta nada à sua simples concepção sustento ainda que a crença nessa existência não junta novas idéias àquelas que compõem a idéia do objeto Quando penso em Deus quando penso nele como existente e quando creio que ele existe minha idéia dele não aumenta nem diminui Mas como é certo que há uma grande di ferença entre a simples concepção da existência de um objeto e a cren ça nesta e como tal diferença não repousa nas partes ou na compo sição da idéia que concebemos seguese que ela deve estar na maneira como a concebemos Suponhamos que haja uma pessoa diante de mim enunciando proposições com as quais não concordo que César morreu em seu lei to que a prata é mais fusível que o chumbo ou que o mercúrio é mais pesado 1 2 3 Tratado da natureza humana que o ouro É evidente que não obstante minha incredulidade enten do claramente o que essa pessoa quer dizer e formo as mesmas idéias que ela Minha imaginação é dotada dos mesmos poderes que a sua e é impossível que ela conceba qualquer idéia que eu não possa con ceber ou que junte idéias que eu também não possa juntar Pergun to portanto em que consiste a diferença entre crer e não crer em uma proposição A resposta é fácil quando se trata de proposições provadas por intuição ou por demonstração Nesse caso a pessoa que manifesta seu assentimento não apenas concebe as idéias de acordo com a proposição mas é necessariamente determinada a concebêlas dessa maneira particular seja imediatamente seja pela interposição de outras idéias Tudo que é absurdo é ininteligível é impossível para a imaginação conceber algo contrário a uma demonstração Mas nos raciocínios causais e concernentes a questões de fato essa necessida de absoluta não pode ocorrer e a imaginação é livre para conceber ambos os lados da questão Por isso volto a perguntar em que consiste a dife rença entre a incredulidade e a crença já que em ambos os casos é igualmente possível e imprescindível conceber a idéia 4 Não basta responder que uma pessoa que não dá seu assentimen to a uma proposição que emitis após ter concebido o objeto da mes ma maneira que vós imediatamente depois o concebe de maneira dife rente formando dele idéias diferentes Essa resposta é insatisfatória não por conter uma falsidade mas por não revelar toda a verdade Devese reconhecer que em todos os casos em que discordamos de alguém nós concebemos ambos os lados da questão mas como só podemos crer em um deles seguese evidentemente que a crença deve produzir alguma diferença entre a concepção a que damos nosso as sentimento e aquela de que discordamos Podemos misturar unir separar embaralhar e alterar nossas idéias de centenas de modos di ferentes Mas até que apareça um princípio que fixe uma dessas dife rentes situações não temos realmente nenhuma opinião E esse prin cípio uma vez que claramente não acrescenta nada a nossas idéias precedentes pode apenas mudar a maneira como as concebemos 1 24 Livro 1 Parte 3 Seção 7 As percepções da mente são todas de dois tipos a saber impres sões e idéias que só se distinguem por seus diferentes graus de for ça e vividez Nossas idéias são copiadas de nossas impressões repre sentandoas em todas as suas partes Se quisermos alterar de algum modo a idéia de um objeto particular a única coisa que podemos fa zer é aumentar ou diminuir sua força e vividez Se produzirmos nela qualquer outra mudança ela passará a representar um objeto ou im pressão diferente O mesmo se dá no caso das cores Uma tonalida de particular de uma cor pode adquirir um novo grau de vividez ou brilho sem que haja nenhuma outra variação Se produzirmos qual quer outra variação porém não teremos mais a mesma tonalidade ou cor Sendo assim como a crença não faz senão variar a maneira como concebemos um objeto ela só pode conceder a nossas idéias uma força e vividez adicionais Portanto uma opinião ou crença pode ser definida mais precisamente como UMA IDÉIA VÍVIDA RELACIONA DA OU ASSOCIADA COM UMA IMPRESSÃO PRESENTE 6 Ver Apêndice p675 6 Aproveitemos essa ocasião para observar um erro bastante apreciável que de tanto ser ensinado nas escolas tornouse uma espécie de máxima estabelecida sendo universal mente aceito por todos os lógicos Esse erro consiste na divisão usual dos atos do entendimento em concepçãojuízo e raciocínio e em suas respectivas definições A concepção é definida como a simples consideração de uma ou mais idéias o juízo como a separação ou a união de diferentes idéias o raciocínio como a separação ou a união de diferentes idéias pela interposição de outras que mostram a relação que aquelas mantêm entre si Mas essas distinções e definições são falhas em vários pontos importantes Em primei ro lugar está longe de ser verdade que em todos os juízos que formamos nós unimos duas idéias diferentes pois na proposição Deus existe ou mesmo em qualquer outra que diga respeito à existência a idéia de existência não é uma idéia distinta que unimos à idéia do objeto e que seria capaz de formar por essa união uma idéia composta Em segundo lugar assim como podemos formar uma proposição que contenha apenas uma idéia podemos também exercer nossa razão sem empregar mais de duas idéias e sem recorrer a uma terceira que sirva de termo médio entre elas Inferimos imediatamente uma causa de seu efeito e essa inferência é não apenas uma verdadeira espécie de racio cínio como o mais forte de todos e mais convincente do que aqueles em que interpo mos outra idéia para conectar os dois extremos O que podemos afirmar em geral a respeito desses três atos do entendimento é que examinados de um ponto de vista apro priado todos eles se reduzem ao primeiro não sendo senão formas particulares de conce bermos nossos objetos Quer consideremos um único objeto ou vários quer nos de moremos sobre esses objetos ou passemos a outros e qualquer que seja a forma ou ordem em que os consideremos o ato da mente não excede uma simples concepção a 1 2 5 Tratado da natureza humana 6 Eis aqui o cerne dos argumentos que nos levam a essa conclu são Sempre que inferimos a existência de um objeto da existência de outros deve haver algum objeto presente à memória ou aos senti dos que sirva de fundamento a nosso raciocínio já que a mente não pode seguir com suas inferências ao infinito A razão jamais pode nos convencer de que a existência de um objeto qualquer implica a de outro assim quando passamos da impressão de um à idéia de ou tro ou à crença nele não estamos sendo determinados pela razão mas pelo costume ou um princípio de associação Mas a crença é algo mais que uma simples idéia É uma maneira particular de formar uma idéia E como a mesma idéia só pode ser alterada por uma alte ração em seus graus de força e vividez seguese de tudo o que foi dito que a crença é uma idéia vívida produzida por uma relação com uma impressão presente conforme à definição precedente 7 Essa operação da mente que gera a crença em um fato parece ter sido até hoje um dos maiores mistérios da filosofia embora nin guém tenha sequer suspeitado de que havia alguma dificuldade em sua explicação De minha parte devo confessar que vejo aqui uma dificuldade considerável e mesmo quando penso compreender per feitamente o assunto não encontro as palavras adequadas para expressar o que quero dizer Por uma indução que me parece bastan te evidente concluo que uma opinião ou crença não é senão uma idéia que difere de uma ficção não na natureza ou na ordem de suas par tes mas sim na maneira como é concebida Mas quando pretendo explicar o que é essa maneira não consigo encontrar nenhuma pala vra plenamente satisfatória sendo por isso obrigado a apelar para aquilo que cada um sente a fim de lhe dar uma noção perfeita dessa operação da mente Uma idéia que recebe o assentimento é sentida única diferença apreciável se dá quando juntamos uma crença à concepção e estamos persuadidos da verdade daquilo que concebemos Esse ato mental nunca foi explicado por nenhum filósofo Por isso sintome livre para propor minha hipótese a seu respeito a crença é somente a concepção forte e firme de uma idéia aproximandose em grande medida de uma impressão imediata 1 2 6 Livro 1 Parte 3 Seção 7 de maneira diferente ífeels different de uma idéia fictícia apresenta da apenas pela fantasia É essa maneira diferente de sentir this different feeling que tento explicar denominandoa uma força vividez solidez firmeza ou estabilidade superior Essa variedade de termos que pode parecer tão pouco filosófica busca apenas exprimir aquele ato mental que torna as realidades mais presentes a nós que as ficções e faz que tenham um peso maior no pensamento bem como uma in fluência superior sobre as paixões e a imaginação Contanto que con cordemos acerca dos fatos é desnecessário discutir sobre os termos A imaginação tem o controle de todas as suas idéias podendo juntá las misturálas e alterálas de todos os modos possíveis Ela pode con ceber os objetos com todas as circunstâncias de tempo e espaço Pode por assim dizer apresentálos a nossos olhos em suas cores verda deiras exatamente como devem ter existido Mas como é impossí vel que essa faculdade possa jamais por si só alcançar a crença é evidente que esta não consiste na natureza ou na ordem de nossas idéias mas na maneira como as concebemos e como são sentidas pela mente Confesso que é impossível explicar perfeitamente essa sensa ção ífeeling ou maneira de se conceber Podemos empregar palavras que expressem algo próximo a isso Mas seu nome verdadeiro e apro priado é crença termo que todos compreendem suficientemente na vida comum E na filosofia não podemos ir além da afirmação de que a crença é algo sentido pela mente que permite distinguir as idéias do juízo das ficções da imaginação A crença dá a essas idéias mais força e influência faz que pareçam mais importantes fixaas na mente e as torna os princípios reguladores de todas as nossas ações Essa definição também irá se mostrar inteiramente conforme à sensação ífeeling e à experiência de cada um de nós Nada é mais evidente que o fato de que as idéias a que damos nosso assentimento são mais fortes firmes e cheias de vida que os vagos devaneios de um sonhador Se uma pessoa sentase para ler um livro como se fosse um romance e outra como se ele fosse uma história verdadeira é 1 2 7 Tratado da natureza humana claro que elas recebem as mesmas idéias na mesma ordem e a cre dulidade de uma e a incredulidade da outra não as impedem de atri buir exatamente o mesmo sentido a seu autor As palavras deste pro duzem as mesmas idéias em ambas mas seu testemunho não tem sobre elas a mesma influência A segunda tem uma concepção mais viva de todos os incidentes entra mais profundamente nos proble mas dos personagens representa para si mesma suas ações caráter amizades e inimizades chega até a formar uma noção de seus tra ços aparência e modos Ao passo que a primeira como não dá crédi to ao testemunho do autor concebe todos esses detalhes de maneira mais fraca e lânguida e não fosse pelo estilo e habilidade da compo sição não conseguiria extrair da obra quase nenhum prazer Seção 8 Das causas da crença 1 Tendo assim explicado a natureza da crença e mostrado que con siste em uma idéia vívida relacionada com uma impressão presente exa minemos agora de que princípios ela deriva e o que confere vivi dez à idéia 2 Gostaria de estabelecer como uma máxima geral da ciência da na tureza humana que quando uma impressão se torna presente a nós ela não apenas conduz a mente às idéias com que está relacionada mas também comunicalhes parte de sua força e vividez Todas as operações da mente dependem em grande medida da disposição em que esta se encontra ao realizálas e conforme os espíritos animais estejam mais ou me nos estimulados e a atenção mais ou menos concentrada a ação terá sempre mais ou menos vigor e vividez Assim quando se apresen According as the spirits are more or less elevated Hume utiliza indiferentemente spirits no plural e animal spirits para se referir aos espiritos animais Neste e em alguns outros casos pe à p387 é possível que ele esteja se referindo de maneira mais vaga àquilo que poderíamos chamar de o estado de ânimo de uma pessoa como nas expres sões to be in high spirits ou to be in low spirits Cf Oxford English Dictionary e nota de D F e M J Norton e esta ocorrência op cit p455 Os dois sentidos entretanto estão estreitamente relacionados Vejase a outra ocorrência do termo mais adiante nes te mesmo parágrafo NT 1 28 Livro 1 Parte 3 Seção 8 ta um objeto que esperta e aviva o pensamento toda ação a que a men te se aplica será mais forte e vívida enquanto durar tal disposição Ora é evidente que a continuidade da disposição depende inteiramen te dos objetos para os quais a mente se volta Um objeto novo dá na turalmente uma nova direção aos espíritos alterando a disposição da mente Ao contrário quando a mente se fixa de maneira constante no mesmo objeto ou quando passa fácil e imperceptivelmente por obje tos relacionados a disposição tem uma duração muito mais longa Ocorre assim que quando a mente é estimulada por uma impressão presente ela passa a formar uma idéia mais viva dos objetos relaciona dos em virtude de uma transição natural da disposição de um a outro A mudança de objetos é tão fácil que a mente quase não se dá conta dela aplicandose em conceber as idéias relacionadas com toda a força e vividez que adquiriu da impressão presente 3 Se podemos nos convencer da realidade desse fenômeno simples mente considerando a natureza da relação e a facilidade de transição que lhe é essencial então muito bem Mas confesso que para provar um princípio tão importante confio sobretudo na experiência O pri meiro experimento a que recorreremos para obter tal prova é o se guinte podemos observar que ao nos ser apresentado o retrato de um amigo ausente a idéia que temos dele se aviva de forma evidente pela semelhança e que todas as paixões que essa idéia ocasiona quer de alegria quer de tristeza adquirem nova força e vigor Concorrem para a produção desse efeito uma relação e uma impressão presente Se o quadro não mostra nenhuma semelhança com esse amigo ou se não pretendia retratálo não chega sequer a conduzir nosso pen samento a ele E quando além da pessoa do amigo também seu re trato está ausente embora a mente possa passar do pensamento de um ao de outro ela sente sua idéia antes ser enfraquecida que aviva da por essa transição Temos prazer em ver o retrato de um amigo quando colocado à nossa frente mas quando retirado preferimos pensar em nosso amigo diretamente e não por meio de seu reflexo em uma imagem igualmente distante e obscura 1 29 Tratado da natureza humana 4 As cerimônias da religião católica romana podem ser considera das como experimentos da mesma natureza Quando criticados os devotos dessa estranha superstição costumam justificar toda aquela sua pantomima alegando que esses movimentos posturas e ações exteriores lhes são benéficos por revitalizar sua devoção e estimular seu fervor os quais de outro modo se dirigidos inteiramente para objetos distantes e imateriáis acabariam por se apagar Figuramos os objetos de nossa fé em emblemas e imagens sensíveis dizem eles e assim pela presença imediata desses emblemas tornamos tais obje tos mais presentes a nós do que seria possível por uma mera visão e contemplação intelectuais Objetos sensíveis exercem sempre uma influência maior sobre a fantasia que qualquer outro tipo de obje to e transmitem essa influência facilmente às idéias com que es tão relacionados e às quais se assemelham Dessas práticas e desse raciocínio inferirei apenas que o efeito da semelhança ao avivar as idéias é muito comum e como em todos os casos uma semelhança e uma impressão presente devem concorrer temos à nossa disposi ção uma abundância de experimentos para provar a realidade do prin cípio precedente 5 Podemos reforçar esses experimentos por meio de outros de um tipo diferente considerando os efeitos da contigüidade além dos da semelhança É certo que a distância diminui a força de qualquer idéia e que ao nos aproximarmos de um objeto este mesmo que não se mostre a nossos sentidos age sobre a mente com uma influência que imita a de uma impressão imediata Pensar em um objeto rapidamente conduz a mente ao que lhe é contíguo mas apenas a presença real de um objeto o faz com uma vividez superior Quando estou a algu mas milhas de casa tudo que se relaciona com ela me toca mais de perto do que quando estou a duzentas léguas Mesmo a essa distân cia porém o ato de refletir sobre alguma coisa próxima de meus amigos e família produz naturalmente uma idéia deles Mas neste úl timo caso ambos os objetos da mente são idéias e por isso apesar de haver uma transição fácil entre elas essa transição sozinha não é 1 3 0 Livro 1 Parte 3 Seção 8 capaz de conferir a nenhuma das duas uma vividez superior por fal ta de uma impressão imediata 6 Não há dúvida de que a causalidade tem a mesma influência que as outras duas relações de semelhança e contigüidade Os supersti ciosos têm grande estima por relíquias de santos e beatos e a razão disso é a mesma que os leva a buscar emblemas e imagens ou seja para intensificar sua devoção e formar uma concepção mais íntima e forte daquelas vidas exemplares que tanto desejam imitar Ora é evi dente que uma das melhores relíquias que um devoto poderia conse guir seria algo produzido pelas mãos de um santo e se as roupas e apetrechos deste podem ser considerados como relíquias é por terem estado algum dia à sua disposição tendo sido tocados e afetados por ele e nesse sentido devem ser considerados como uma espécie de efeitos as imperfect effects conectados a ele por meio de uma cadeia di conseqüências mais curta que aquelas que nos levam a conhecer a realidade de sua existência Esse fenômeno prova de maneira clara que uma impressão presente juntamente com uma relação de causalidade pode avivar qualquer idéia e em conseqüência disso produzir crença ou assentimento conforme a definição precedente dessa noção 7 Mas por que procurar outros argumentos para provar que uma impressão presente junto com uma relação ou transição da fanta sia pode avivar uma idéia quando o exemplo mesmo de nossos racio cínios de causa e efeito é suficiente para esse propósito É certo que devemos ter uma idéia de toda questão de fato em que acreditamos É certo que essa idéia surge somente de uma relação com uma im pressão presente É certo que a crença não acrescenta nada à idéia mas apenas transforma nossa maneira de a conceber tornandoa mais forte e vívida A presente conclusão a respeito da influência da rela ção é a conseqüência imediata de todos esses passos e cada passo me parece seguro e infalível As únicas coisas que entram nessa ope ração da mente são uma impressão presente uma idéia vívida e uma Ver Apêndice p668 1 3 1 Tratado da natureza humana relação ou associação na fantasia entre a impressão e a idéia de for ma que não pode haver nem suspeita de erro 8 Para esclarecer de maneira mais completa todo esse tema consideremolo como uma questão de filosofia da natureza que deve ser determinada pela experiência e observação Suponhamos que haja diante de mim um objeto do qual extraio uma certa conclu são formando idéias em que se diz que acredito ou a que dou meu assentimento É evidente que aqui se pode pensar que o objeto pre sente a meus sentidos e aquele cuja existência infiro pelo raciocínio influenciam um ao outro por seus poderes ou qualidades particula res Entretanto como o fenômeno da crença que ora examinamos é meramente interno esses poderes e qualidades sendo inteiramente desconhecidos não podem ter nenhuma participação em sua pro dução A impressão presente é que deve ser considerada a causa ver dadeira e real da idéia bem como da crença que a acompanha De vemos portanto tentar descobrir por meio de experimentos as qualidades particulares que a tornam capaz de produzir um efeito tão extraordinário 9 Primeiramente pois observo que a impressão presente não tem esse efeito em virtude de seu próprio poder e eficácia e quando con siderada isoladamente como uma percepção singular limitada ao mo mento presente Constato que uma impressão da qual não sou ca paz de tirar nenhuma conclusão quando de sua primeira aparição pode mais tarde tornarse o fundamento da crença uma vez que eu tenha tido experiência de suas conseqüências usuais Em cada caso é preciso que tenhamos observado a mesma impressão em exemplos passados e que essa impressão tenha ocorrido em conjunção cons tante com alguma outra impressão Isso se confirma por tantos ex perimentos que não admite a menor dúvida 10 De uma segunda observação concluo que a crença que acompa nha a impressão presente e é produzida por um certo número de im pressões e conjunções passadas surge imediatamente sem nenhu ma operação nova da razão ou imaginação Posso estar certo disso 1 32 Livro 1 Parte 3 Seção 8 porque jamais tenho consciência de uma operação assim e não en contro nada em que ela pudesse estar fundada Ora como chama mos de COSTUME a tudo aquilo que procede de uma repetição passa da sem nenhum novo raciocínio ou conclusão podemos estabelecer como uma verdade certa que toda a crença que se segue a uma im pressão presente é derivada exclusivamente dessa origem Quando estamos acostumados a ver duas impressões em conjunção o apa recimento ou a idéia de uma nos leva imediatamente à idéia da outra 11 Estando plenamente satisfeito quanto a isso farei uma terceira série de experimentos a fim de descobrir se além da transição habi tual alguma coisa mais é requerida para a produção desse fenômeno da crença Substituo assim a primeira impressão por uma idéia e observo que embora a transição habitual para a idéia correlata ainda permaneça não há na realidade nenhuma crença ou persuasão Uma impressão presente portanto é absolutamente necessária para toda essa operação Quando em seguida comparo uma impressão com uma idéia e vejo que sua única diferença está em seus graus de força e vividez concluo de tudo isso que a crença é uma concepção mais vívida e intensa de uma idéia procedente de sua relação com uma impressão presente 12 Assim todo raciocínio provável não é senão uma espécie de sen sação Não é somente na poesia e na música que devemos seguir nos so gosto e sentimento mas também na filosofia Quando estou con vencido de um princípio qualquer é apenas uma idéia que me atinge com mais força quando dou preferência a um conjunto de argumen tos sobre outro não faço mais que decidir partindo daquilo que sin to from my feeling sobre a superioridade de sua influência Os ob jetos não possuem entre si nenhuma conexão que se possa descobrir e nenhum outro princípio senão o costume operando sobre a imagi nação permitenos fazer uma inferência da aparição de um à exis tência de outro 13 Vale a pena observar aqui que a experiência passada da qual de pendem todos os nossos juízos a respeito de causas e efeitos pode 1 33 Tratado da natureza humana atuar em nossa mente de maneira tão insensível que passa desperce bida podendo mesmo em certa medida sernos desconhecida Se uma pessoa interrompe sua viagem ao encontrar um rio no caminho é porque prevê as conseqüências de seguir adiante e seu conheci mento dessas conseqüências é transmitido pela experiência passa da que lhe informa sobre determinadas conjunções de causas e efei tos Mas será possível pensar que nesse momento ela se põe a refletir sobre alguma experiência passada e a recordar casos que viu ou de que ouviu falar a fim de descobrir os efeitos da água sobre o corpo animal Certamente não não é assim que procede seu raciocínio A idéia de afundar está tão intimamente conectada com a de água e a idéia de se afogar com a de afundar que a mente faz a transição sem o auxílio da memória O costume age antes que tenhamos tempo de refletir Os objetos parecem de tal modo inseparáveis que não aguar damos um só momento para passar de um ao outro Mas como essa transição procede da experiência e não de alguma conexão anterior entre as idéias temos necessariamente de reconhecer que a experiên cia pode produzir uma crença e um juízo de causas e efeitos por uma operação secreta e sem que pensemos nela uma vez sequer Isso eli mina qualquer pretexto se ainda restar algum para afirmar que é pelo raciocínio que a mente se convence do princípio de que os casos de que não tivemos experiência devem necessariamente se assemelhar àqueles de que tivemos Pois vimos aqui que o entendimento ou imaginação é capaz de fazer inferências partindo da experiência passada sem refletir acer ca dela e mais ainda sem formar um princípio a seu respeito ou ra ciocinar com base nesse princípio 14 Podemos observar em geral que em todas as conjunções mais firmes e uniformes de causas e efeitos como as de gravidade choque impulse solidez etc a mente nunca se volta expressamente para a consideração de experiências passadas Mas em outras associações de objetos mais raras e inusitadas ela pode auxiliar o costume e a transição de idéias por meio dessa reflexão Em alguns casos aliás vemos a refle xão produzir a crença sem o costume ou mais propriamente falando 1 34 Livro 1 Parte 3 Seção 8 vemos a reflexão produzir o costume de maneira oblíqua e artificial Explicome É certo que não só na filosofia mas mesmo na vida corrente podemos obter o conhecimento de uma causa particular com base em apenas um experimento contanto que este seja feito criteriosamente e após uma cuidadosa exclusão de todas as circuns tâncias estranhas e supérfluas Ora uma vez que após um único ex perimento dessa espécie a mente quando do aparecimento da causa ou do efeito é capaz de inferir a existência de seu correlato e uma vez que um hábito nunca pode ser adquirido por apenas uma ocor rência podese pensar que neste caso não se deve considerar a cren ça como efeito do costume Tal dificuldade desaparecerá se conside rarmos que embora estejamos aqui supondo ter tido àpenas uma experiência de um efeito particular tivemos milhões para nos con vencer do princípio de que objetos semelhantes em circunstâncias seme lhantes produzirão sempre efeitos semelhantes E como esse princípio foi estabelecido com base em um costume suficiente ele confere evidên cia e firmeza a qualquer opinião a que possa se aplicar A conexão das idéias não se torna habitual após uma única experiência mas essa conexão está compreendida sob um outro princípio que é habitual o que nos traz de volta à nossa hipótese Em todos os casos transfe rimos nossa experiência a ocorrências de que não tivemos experiên cia expressa ou tacitamente direta ou indiretamente 15 Não devo concluir este tema sem observar que é muito difícil fa lar das operações da mente de modo perfeitamente apropriado e exato pois a linguagem corrente raramente faz distinções muito sutis en tre elas referindose em geral pelo mesmo termo a todas as que pos suem uma grande semelhança E como essa é uma fonte quase ine vitável de obscuridade e confusão no autor pode freqüentemente gerar dúvidas e objeções no leitor com as quais ele de outro modo nunca haveria sonhado Assim minha posição geral que uma opinião ou crença não é senão uma idéia forte e vívida derivada de uma impressão pre sente a ela relacionada é passível da seguinte objeção em razão de uma 1 3 5 Tratado da natureza humana pequena ambigüidade nas palavras forte e vívida Podese dizer que não apenas uma impressão pode originar um raciocínio mas uma idéia também pode ter o mesmo efeito sobretudo se levarmos em conta meu princípio de que todas as nossas idéias são derivadas de im pressões correspondentes Pois suponhase que eu forme agora uma idéia de cuja impressão correspondente me esqueci Sou capaz de concluir dessa idéia que uma tal impressão algum dia existiu e como essa con clusão é acompanhada de crença podese perguntar de onde derivam as qualidades da força e da vividez que constituem essa crença Ao que respondo imediatamente da idéia presente Porque como essa idéia não é aqui considerada a representação de um objeto ausente mas sim uma real percepção na mente da qual estamos intimamente cons cientes ela deve ser capaz de conferir a tudo que esteja relacionado com ela a mesma qualidade quer a chamemos de firmeza solidez força ou vividez com que a mente reflete sobre ela e se assegura de sua existência presente A idéia ocupa aqui o lugar de uma impres são e no que diz respeito a nosso propósito presente é exatamente igual a ela 16 Segundo esses mesmos princípios não há nada de surpreendente no se falar da lembrança de uma idéia isto é da idéia de uma idéia e de sua força e vividez superior à das vagas concepções da imagina ção Ao pensar em nossos pensamentos passados não apenas figu ramos os objetos em que pensávamos mas também concebemos a ação da mente na meditação aquele certo jenesaisquoi impossível de ser definido ou descrito mas que cada um de nós entende suficien temente Quando a memória proporciona uma idéia disto e a representa como passada é fácil conceber por que essa idéia pode ter mais vigor e firmeza do que quando pensamos em um pensamento passado do qual não temos nenhuma lembrança 17 Depois disso qualquer um entenderá como podemos formar a idéia de uma impressão e de uma idéia e como podemos crer na existência de uma impressão e de uma idéia 13 6 Tratado da natureza humana fazer nenhuma inferência de um objeto a outro exceto quando estão conectados por essa relação podemos concluir que há algum erro nesse raciocínio e que é esse erro que nos leva a tais dificuldades 3 Essa é a objeção consideremos agora sua solução É evidente que tudo que está presente à memória por atingir a mente com uma vivi dez semelhante à de uma impressão presente deve assumir uma im portância considerável em todas as operações da mente sobressain do facilmente às meras ficções da imaginação Dessas impressões ou idéias da memória formamos uma espécie de sistema que compreen de tudo o que nos lembramos ter estado presente a nossa percepção interna ou a nossos sentidos e a cada elemento particular desse sis tema juntamente com as impressões presentes costumamos cha mar de uma realidade Mas a mente não pára aqui Ao constatar que esse sistema de percepções está conectado com um outro sistema pelo costume ou se quisermos pela relação de causa e efeito ela passa a considerar as idéias deste sistema E sentindo que está de certo modo necessariamente determinada a visar essas idéias em particular e que o costume ou relação que a determina não admite a menor alteração forma com elas um novo sistema igualmente agraciado com o título de realidades O primeiro sistema é objeto da memória e dos sentidos o segundo do juízo 4 É este último princípio que povoa o mundo trazendo a nosso conhecimento aquelas existências que por afastadas no tempo e no espaço encontramse fora do alcance dos sentidos e da memória Por meio dele eu pinto o mundo em minha imaginação fixando minha atenção em qualquer parte que desejar Formo uma idéia de ROMA cidade que não vejo nem recordo mas que está conectada com impressões que me lembro ter obtido em conversas e em livros de viajantes e historiadores Essa idéia de Roma situoa em um certo lugar sobre a idéia de um objeto que chamo de globo terrestre Jun to a ela a concepção de um governo religião e costumes particula res Olho para trás e considero o momento de sua fundação suas diversas revoluções vitórias e infortúnios Tudo isso e tudo mais 1 3 8 Livro 1 Parte 3 Seção 9 em que acredito não são senão idéias entretanto por sua força e ordem inflexível derivadas do costume e da relação de causa e efei to distinguemse das outras idéias que são meramente frutos da imaginação 5 Quanto à influência da contigüidade e da semelhança podemos observar que se o objeto contíguo e semelhante estiver compreen dido nesse sistema de realidades não há dúvida de que essas duas relações irão auxiliar a de causa e efeito fixando mais fortemente na imaginação a idéia relacionada Logo desenvolverei esse ponto En quanto isso levo minha observação um passo adiante e afirmo que mesmo quando apenas fantasiamos o objeto relacionado a relação serve para avivar a idéia e ampliar sua influência Um poeta sem dú vida será capaz de fazer uma descrição mais viva dos Campos Elíseos se estimular sua imaginação pela visão de um belo prado ou jardim em outro momento pode também por meio de sua fantasia colo carse nesse lugar fabuloso avivando assim sua imaginação por meio dessa contigüidade simulada O texto da NNOPT corrige object para objects por julgarem seus editores que o substantivo relevante aqui se refere aos objetos relacionados à idéia de Roma e não à própria idéia de Roma Discordo dessa solução 1 nesse parágrafo Hume está iniciando um novo raciocínio O exemplo de Roma vinha mostrar como incluímos no segundo sistema de realidades aquelas idéias relacionadas às idéias da memória ou às impressões dos sentidos por meio da relação de causa e efeito Nesse novo parágrafo ele está tratan do das outras duas relações de contigüidade e semelhança Para ilustrálas ele nos dará um outro exemplo a saber do poeta que vai para um jardim real para melhor imaginar os Campos Elíseos 2 de todo modo os objetos relacionados à idéia de Roma já se encon tram inseridos dentro do primeiro sistema de realidades é a realidade do segundo tipo atribuída à própria idéia de Roma que cabe explicar 3 finalmente notese a frase de Hume logo antes do exemplo do poeta Enquanto isso afirmo que mesmo quando apenas fantasiamos o objeto relacionado NT Com um sentido que se situa no ponto de interseção entre inventar forjar fingir simular imaginar fantasiar e assumir algo hipoteticamente o verbo to feign não possui um equivalente ideal em português Traduzio algumas vezes por simular imaginar e pela expressão criarproduzir a ficção de na maior parte das ocorrências entretanto empreguei a palavra fantasiar Em um único caso p54 7 utilizei o adjetivo hipotético para feigned Por outro lado como Hume utiliza indiferentemente os subs tantivos imagination imaginação e fancy fantasia e como o verbo to imagine também é usado como sinônimo de to fancy traduzi ambos os verbos por imaginar cf p2556 NT 1 3 9 Tratado da natureza humana 6 Mas embora não se possa negar por completo a ação da seme lhança e contigüidade sobre a fantasia observemos que quando iso ladas sua influência é muito fraca e incerta Assim como é preciso a relação de causa e efeito para nos persuadir da existência real de algo assim também tal persuasão é necessária para dar força às outras relações Pois mesmo se quando da aparição de uma impressão não apenas fantasiamos um outro objeto mas além disso arbitrariamente e para nosso simples prazer atribuímos a ele uma relação particular com a impressão é pequeno o efeito que tal relação pode ter sobre a mente E quando essa mesma impressão retorna não há nenhuma razão que nos faça colocar o mesmo objeto na mesma relação com ela A mente não tem absolutamente nenhuma necessidade de fan tasiar objetos semelhantes e contíguos e se o faz tampouco tem ne cessidade de se restringir sempre aos mesmos objetos sem nenhu ma diferença ou variação De fato há tão pouca razão fundamentando tal ficção que nada a não ser o puro capricho pode determinar a mente a formála E como esse princípio é oscilante e incerto é impossível que ele possa jamais operar com um grau considerável de força e Ons tância A mente prevê e antecipa a mudança e desde o primeiro ins tante sente como são imprecisas suas ações e como é fraco o domí nio que exerce sobre seus objetos Tal imperfeição bastante sensível em cada caso singular aumenta ainda mais pela experiência e observa ção quando comparamos os diversos casos de que nos lembramos e formamos uma regra geral contra a atribuição de qualquer certeza a esses lampejos momentâneos que surgem na imaginação em con seqüência de uma semelhança e contigüidade fantasiadas 7 A relação de causa e efeito tem todas as vantagens opostas Os objetos que apresenta são fixos e inalteráveis As impressões da me mória nunca se alteram consideravelmente e cada impressão traz con sigo uma idéia precisa que toma seu lugar na imaginação como algo sólido e real certo e invariável O pensamento vêse sempre determi nado a passar da impressão à idéia e dessa impressão particular àquela idéia particular sem escolha ou hesitação 1 40 Livro 1 Parte 3 Seção 9 8 Não satisfeito em afastar essa objeção porém tentarei extrair dela uma prova da presente doutrina Contigüidade e semelhança exer cem um efeito muito inferior ao da causalidade mas ainda assim exercem algum efeito aumentando a convicção das opiniões e a vividez das concepções Se pudermos provar essa afirmação em vários novos casos além daqueles que já observamos teremos um argumen to bastante considerável a favor da tese de que a crença não é senão uma idéia vívida relacionada a uma impressão presente 9 Comecemos pela contigüidade Observouse tanto entre os maometanos como entre os cristãos que os peregrinos que estiveram em MECA ou na TERRA SANTA tornamse para sempre crentes mais fiéis e zelosos que aqueles que nunca tiveram tal oportunidade Um homem cuja memória apresenta uma imagem viva do Mar Vermelho do deserto de jerusalém e da Galiléia jamais pode duvidar dos aconte cimentos miraculosos relatados por Moisés ou pelos Evangelistas A idéia vívida dos lugares passa por uma transição fácil aos fatos que se supõem terem sido relacionados a eles por contigüidade e ao au mentar a vividez da concepção aumenta também a crença A lembran ça desses campos e rios tem sobre o vulgo a mesma influência que um novo argumento e pelas mesmas causas 10 Podemos fazer uma observação similar a respeito da semelhança Vimos que a inferência que fazemos de um objeto presente à sua causa ou efeito ausente nunca está fundada em qualidades que ob servamos nesse objeto considerado em si mesmo Em outras pala vras é impossível determinar senão pela experiência o que há de resultar de um fenômeno qualquer ou o que o precedeu No entan to embora isso seja tão evidente em si mesmo que nos pareceu não necessitar de prova alguns filósofos imaginaram que existe uma causa manifesta da comunicação do movimento e que qualquer pes soa sensata poderia imediatamente inferir o movimento de um corpo partindo do impacto de outro sem recorrer à observação passada Mas é fácil provar que essa opinião é falsa Se tal inferência pudesse ser feita simplesmente tomando por base as idéias de corpo movimento 1 4 1 Tratado da natureza humana e impacto ela deveria constituir uma demonstração e implicar a ab soluta impossibilidade de qualquer suposição contrária Assim todo efeito distinto da comunicação de movimento implicaria uma contra dição formal e seria impossível não somente que ele existisse como também que fosse concebido Mas podemos rapidamente nos con vencer do contrário formando uma idéia clara e consistente do movi mento de um corpo em direção a outro e de seu repouso imediata mente após o contato ou então de seu retorno pela mesma linha por onde veio ou de sua aniquilação ou de um movimento circular ou elíptico e em suma de um número infinito de outras mudanças que podemos supor que ele sofra Todas essas suposições são consisten tes e naturais A razão por que imaginamos que a comunicação de mo vimento é mais consistente e natural não apenas que os efeitos impli cados em tais suposições mas também que qualquer outro efeito natural fundase na relação de semelhança entre a causa e o efeito que neste caso está unida à experiência ligando os objetos entre si da maneira mais estreita e íntima a ponto de nos fazer imaginar que são absolutamente inseparáveis A semelhança portanto tem uma influên cia igual ou análoga à da experiência E como o único efeito imediato da experiência é associar nossas idéias entre si seguese que toda crença resulta da associação de idéias conforme a minha hipótese 11 Todos os tratados de óptica admitem que o olho vê sempre o mes mo número de pontos físicos e que a imagem que se apresenta aos sentidos de um homem quando este se encontra no topo de uma montanha não é maior que quando ele está confinado no mais es treito pátio ou aposento É somente pela experiência que ele infere a grandeza do objeto com base em certas qualidades peculiares da ima gem e isso que é uma inferência do juízo ele confunde com uma sensação como costuma ocorrer em outras ocasiões Ora é eviden te que neste caso a inferência do juízo é muito mais vívida que aquela que é comum em nossos raciocínios correntes Um homem forma uma concepção mais vívida da vasta extensão do oceano pela imagem que recebe do olho quando está no alto de um promontório do que 1 42 Livro 1 Parte 3 Seção 9 simplesmente pelo barulho das ondas Extrai um prazer mais sensí vel de sua grandeza o que prova a presença de uma idéia mais vívida e confunde seu juízo com uma sensação o que é mais uma prova disso Como a inferência é igualmente certa e imediata em ambos os casos porém essa vividez superior de nossa concepção em um caso só pode proceder do fato de que ao fazermos uma inferência basea dos na visão existe além da conjunção habitual uma semelhança entre a imagem e o objeto inferido e essa semelhança fortalece a relação transmitindo a vividez da impressão para a idéia relacionada com um movimento mais fácil e natural 12 Não há fraqueza mais universal e manifesta na natureza huma na que aquilo que comumente chamamos de CREDULIDADE ou seja uma fé demasiadamente fácil no testemunho alheio Essa fraqueza também se explica de modo muito natural pela influência da seme lhança Quando admitimos uma questão de fato baseados no teste munho dos homens nossa fé tem exatamente a mesma origem que nossas inferências de causas a efeitos e de efeitos a causas Somente nossa experiência dos princípios que governam a natureza humana pode nos assegurar da veracidade dos homens Mas embora a expe riência seja o verdadeiro critério deste bem como de todos os outros juízos raramente nos guiamos inteiramente por ela Possuímos uma notável propensão a crer em tudo que nos é relatado mesmo no caso de aparições encantamentos e prodígios por mais contrários que sejam à experiência e à observação diárias As palavras ou discursos dos outros têm uma estreita conexão com certas idéias existentes em suas mentes e essas idéias também têm uma conexão com os fatos ou objetos que representam Esta última conexão é em geral muito superestimada e induz nosso assentimento além do que seria justi ficável pela experiência o que só pode proceder da semelhança en tre as idéias e os fatos Outros efeitos indicam suas causas apenas de maneira oblíqua mas o testemunho humano o faz diretamente devendo ser considerado não só um efeito mas igualmente uma ima gem Não é de admirar pois que nos precipitemos tanto fazendo 1 43 Tratado da natureza humana inferências com base em tal testemunho e que em nossos juízos a seu respeito deixemonos guiar pela experiência em menor medida que nos juízos acerca de qualquer outro assunto 13 Assim como a semelhança quando conjugada com a causalida de fortalece nossos raciocínios assim também a ausência de seme lhança em um grau muito elevado é capaz de os destruir quase in teiramente Um exemplo notável disso é o descuido e a apatia universal dos homens diante de uma existência póstuma Em relação a esse assunto eles se mostram tão obstinadamente incrédulos como se mostram cegamente crédulos em outras ocasiões De fato nada for nece matéria tão ampla para a admiração dos estudiosos ou para o pesar dos piedosos que a observação da negligência da grande maio ria dos homens quanto à sua condição vindoura Com razão muitos teólogos eminentes não hesitaram em afirmar que embora o vulgo não possua princípios formais de negação da fé ele de fato é infiel em seu coração não possuindo nada semelhante ao que podemos de nominar de crença na duração eterna de sua alma De um lado con sideremos a importância da eternidade que os teólogos mostraram com tanta eloqüência e observemos que mesmo se tais discursos contêm um pouco de exagero como em todas as questões de retóri ca neste caso há que se admitir que as mais fortes figuras retóricas são infinitamente inferiores ao tema em pauta De outro lado consi deremos a prodigiosa tranqüilidade dos homens acerca disso Pergunto pois se as pessoas realmente crêem naquilo que lhes é inculcado e que pretendem professar A resposta é obviamente negativa Como a crença é um ato da mente decorrente do costume não é de se estranhar que a falta de semelhança destrua aquilo que o costume estabeleceu diminuindo a força da idéia tanto quanto este último princípio a au menta Uma vida póstuma é algo tão afastado de nossa compreen são e é tão obscura nossa idéia do modo como existiremos após a dis solução do corpo que todas as razões que podemos inventar por mais fortes que sejam em si mesmas e por mais reforçadas pela educação jamais são capazes de superar a dificuldade encontrada por nossas 1 44 Livro 1 Parte 3 Seção 9 imaginações morosas conferindo uma autoridade e força suficien tes à idéia Tal incredulidade devese à fraqueza da idéia que forma mos sobre nossa condição futura o que atribuo antes à falta de se melhança desta com a vida presente do que à sua grande distância de nós Pois observo que todos os homens se preocupam com o que pode acontecer após sua morte contanto que isso diga respeito a este mun do são poucos os que em qualquer período de sua vida são indife rentes a seu nome sua família seus amigos e seu país 14 De fato a falta de semelhança neste caso destrói tão completa mente a crença que à parte aqueles poucos que após refletir friamen te sobre a importância do assunto tiveram o cuidado de imprimir em sua mente por uma repetida meditação os argumentos a favor de uma existência póstuma dificilmente alguém acreditaria na imorta lidade da alma com base em um juízo verdadeiro e bem estabelecido comparável ao que é derivado do testemunho de viajantes e historia dores Isso aparece de modo bastante evidente sempre que os homens têm a oportunidade de comparar os prazeres e as dores as recompen sas e as punições desta vida com os de uma vida futura mesmo que a questão não diga respeito a eles mesmos e nenhuma paixão violenta esteja perturbando seu julgamento Os católicos romanos formam cer tamente a seita mais zelosa de todo o mundo cristão e entretanto constatamos que quase todos os membros mais sensíveis dessa co munhão censuram a Conspiração da Pólvora e o massacre de São Bartolo meu considerandoos cruéis e bárbaros embora tenham sido planeja dos ou executados contra aquelas mesmas pessoas que sem qualquer escrúpulo eles condenam a castigos eternos e infinitos Tudo que podemos dizer para desculpar tal incoerência é que eles não crêem realmente naquilo que afirmam a respeito de uma existência póstu ma Aliás a melhor prova disso é essa própria incoerência 15 A isso podemos acrescentar uma observação Em questões de religião os homens têm prazer em sentir medo e os pregadores mais populares são os que despertam as paixões mais lúgubres e sombrias Nos afazeres cotidianos quando estamos mergulhados na materia 1 45 Tratado da natureza humana lidade sensível dos assuntos tratados nada pode ser mais desagra dável que o medo e o terror Somente nos espetáculos dramáticos e nos sermões religiosos estes podem nos dar prazer Aqui a imagina ção repousa indolentemente sobre a idéia e a paixão suavizada pela falta de crença no tema tem apenas o agradável efeito de dar ânimo à mente e prender sua atenção 16 A presente hipótese receberá uma confirmação adicional se exa minarmos os efeitos de outros tipos de costume bem como de ou tras relações Para compreender isso devemos considerar que o cos tume a que atribuo toda crença e raciocínio possui duas maneiras diferentes de atuar sobre a mente e revigorar uma idéia Supondo que durante toda a experiência passada tenhamos visto que dois objetos estiveram sempre em conjunção é evidente que quando do apareci mento de um desses objetos em uma impressão devemos por cos tume fazer uma transição fácil para a idéia daquele objeto que co mumente o acompanha E por meio da impressão presente e da transição fácil devemos conceber essa idéia de uma maneira mais forte e vívida que a maneira como concebemos qualquer das imagens vagas e oscilantes da fantasia Mas suponhamos agora que uma mera idéia isolada sem nada dessa preparação extremamente meticulosa e quase artificial apareça com freqüência na mente Essa idéia deve gradualmente adquirir força e facilidade e por sua forte influência como também pela facilidade com que é introduzida distinguese de toda idéia nova e inusitada Este é o único ponto em que esses dois tipos de costumes concordam E se ficar claro que seus efeitos so bre o juízo são similares e proporcionais poderemos concluir com segurança que a explicação precedente dessa faculdade é satisfatória Ora como duvidar dessa concordância em sua influência sobre o juízo após considerarmos a natureza e os efeitos da EDUCAÇÃO 17 Tão profundas são as raízes criadas por todas essas opiniões e noções das coisas a que nos acostumamos desde a infância que nos é quase impossível erradicálas mesmo com todos os poderes da ra zão e da experiência E a influência desse hábito não apenas se aproxi 1 46 Livro 1 Parte 3 Seção 9 ma daquela oriunda da união constante e inseparável de causas e efeitos mas também em muitas ocasiões prevalece sobre ela Em tal caso não devemos nos contentar em dizer que a vividez da idéia produz a crença devemos sustentar que elas são numericamente idên ticas A repetição freqüente de uma idéia fixaa na imaginação mas nunca poderia por si só produzir uma crença se pela constituição original de nossa natureza este ato da mente estivesse vinculado so mente a um raciocínio e a uma comparação de idéias O costume pode nos levar a uma falsa comparação de idéias esse é o maior efeito que se lhe pode conceber Mas é certo que nunca poderia ocupar o lugar dessa comparação nem produzir um ato da mente que coubesse naturalmente a tal princípio Alguém que teve uma perna ou um braço amputado continua durante muito tempo tentando usálos Após a morte de uma pes soa é comum sua família e sobretudo os criados observarem que quase não conseguem acreditar que ela morreu imaginam que ain da está em seu quarto ou em algum outro lugar onde costumavam encontrála Muitas vezes conversando sobre uma pessoa famosa ouvi alguém que não a conhecia dizer Nunca vi tal pessoa mas quase consigo imaginar que a conheço de tanto que ouço falar nela Todos esses são exemplos análogos Se analisado de maneira adequada este argumento da educação irá se mostrar bastante convincente tanto mais que está fundado em um dos fenômenos mais comuns que podemos encontrar Estou per suadido de que se examinarmos as opiniões que predominam entre os homens veremos que mais da metade delas se deve à educação e que os princípios abraçados desse modo implícito superam os resultantes do raciocínio abstrato ou da experiência Assim como os mentirosos de tanto repetirem suas mentiras acabam se lembrando delas como fatos assim também o juízo ou antes a imaginação por meios seme lhantes pode ter idéias impressas tão fortemente em si e concebêlas com tal clareza que essas idéias podem operar sobre a mente da mes ma maneira que aquelas que se apresentam pelos sentidos memória 1 4 7 Tratado da natureza humana ou razão Mas como a educação é uma causa artificial e não natural e como suas máximas são freqüentemente contrárias à razão e até a si mesmas em diferentes momentos e lugares ela nunca é reconhe cida pelos filósofos Na realidade entretanto ela é construída quase sobre o mesmo fundamento que o de nossa experiência ou de nos sos raciocínios de causas e efeitos ou seja o costume e a repetição7 Seção 1 O Da influência da crença 1 Embora a educação seja repudiada pela filosofia por ser consi derada uma base falaciosa de assentimento a qualquer opinião ela entretanto prevalece no mundo e é por sua causa que todos os siste mas por mais convincentes que sejam os argumentos sobre os quais se fundam tendem de início a ser rejeitados como novos e insólitos Talvez seja esse o destino do que aqui expus a respeito da crença e de nossos raciocínios sobre causas e efeitos e embora as provas que apresentei me pareçam perfeitamente conclusivas não espero ganhar muitos prosélitos para minha opinião Dificilmente os homens irão se convencer um dia de que efeitos de tal conseqüência podem emanar de princípios em aparência tão insignificantes e que a maior parte de nossos raciocínios juntamente com todas as nossas ações e paixões Acréscimo cf a edição NNOPT cujos editores esclarecem cf David F Norton Mary Norton op cit que para abrir espaço para a inserção de uma nota ampliando seu uso de imaginação Hume abreviou o texto de três parágrafos Assim a OPT restaura a parte do original que não se tornou redundante pela inserção da nota NT 7 Podemos observar em geral que como nosso assentimento aos raciocínios prováveis está sempre fundado na vividez das idéias ele se assemelha a muitos daqueles caprichos e preconceitos rejeitados sob a acusação ignominiosa de serem frutos da imaginação Essa expressão mostra que a palavra imaginação é comumente usada em dois sentidos di ferentes E embora nada seja mais contrário à verdadeira filosofia que essa imprecisão fui obrigado a incorrer nela freqüentemente nos raciocínios a seguir Quando oponho a imaginação à memória refirome à faculdade pela qual formamos nossas idéias mais fracas Quando a oponho à razão tenho em mente a mesma faculdade excluindo apenas nossos raciocínios demonstrativos e prováveis Quando não a oponho a nenhuma das duas é indiferente se a tomamos no sentido mais amplo ou no mais restrito ou ao menos o contexto será suficiente para explicar seu significado 1 48 Livro 1 Parte 3 Seção 1 0 podem ser derivados simplesmente do costume e do hábito Para afas tar essa objeção anteciparei aqui um pouco daquilo que considera remos de modo mais apropriado adiante quando tratarmos das pai xões e do sentido do belo 2 A natureza implantou na mente humana uma percepção do bem e do mal ou em outras palavras da dor e do prazer que é a principal fonte e princípio motor de todas as suas ações Mas dor e prazer têm duas maneiras de aparecer na mente cada uma com efeitos bem di ferentes Podem se dar como impressões que se apresentam à sen sação feeling e experiência real ou simplesmente como idéias como ocorre agora que os menciono Ora é evidente que a influência dessas impressões e dessas idéias sobre nossas ações está longe de ser igual As impressões sempre ativam a mente no mais alto grau mas nem toda idéia tem esse efeito A natureza agiu com prudência neste caso e parece ter cuidadosamente evitado os inconvenientes dos dois ex tremos Se apenas as impressões influenciassem a vontade estaría mos em todos os momentos de nossa vida sujeitos às maiores cala midades porque mesmo que prevíssemos a aproximação dessas calamidades a natureza não nos teria dotado de nenhum princípio de ação capaz de nos fazer evitálas Por outro lado se todas as idéias influenciassem nossas ações nossa condição não melhoraria mui to É tal a instabilidade e a atividade do pensamento que imagens de todas as coisas sobretudo de bens e males estão sempre a errar pela mente e se esta fosse movida por cada vã concepção desse tipo ja mais gozaria de um momento sequer de paz e tranqüilidade 3 Por isso a natureza escolheu um meiotermo não conferiu a toda idéia de bem e mal o poder de ativar a vontade mas tampouco reti roulhes por completo essa influência Embora ficções vãs não tenham Além do caso mais comum dos sentidos externos também quando a palavra sense se refere a sentimentos e juízos morais ou estéticos traduzia por sentido Algumas ve zes entretanto pareceume mais adequado empregar os termos sendo p405 sentimento p310 4279 e 538 e noção p404 e 420 nestes dois últimos casos porém acrescentei então o termo em inglês sense NT 1 49 Tratado da natureza humana nenhuma eficácia a experiência nos mostra que as idéias dos obje tos em cuja existência presente ou futura acreditamos produzem em menor grau o mesmo efeito que as impressões imediatamente pre sentes aos sentidos e à percepção O efeito da crença portanto é al çar uma simples idéia a um nível de igualdade com nossas impres sões conferindolhe uma influência semelhante sobre as paixões E ela só pode ter tal efeito fazendo a idéia se aproximar de uma impres são em sua força e vividez Pois como a diferença nos graus de força constitui toda a diferença original entre uma impressão e uma idéia ela deve também conseqüentemente ser a fonte de todas as diferen ças entre os efeitos dessas percepções e sua eliminação total ou par cial deve ser a causa de qualquer nova semelhança que venham a adqui rir Sempre que pudermos fazer uma idéia se aproximar das impressões no que se refere à força e vividez ela também as imitará em sua in fluência sobre a mente e viceversa quando imita essa influência como no caso presente isso deve proceder de sua aproximação em força e vividez Portanto como a crença faz com que uma idéia imite os efeitos das impressões ela deve fazer que se assemelhe a elas nes sas qualidades não sendo senão uma concepção mais vívida e intensa de uma idéia Isso pode servir pois tanto como um argumento adicional a favor do presente sistema quanto para nos dar uma noção da ma neira pela qual nossos raciocínios causais são capazes de agir sobre a vontade e as paixões 4 Assim como a crença é um requisito quase indispensável para despertar nossas paixões também as paixões são por sua vez mui to favoráveis à crença Por esse motivo não apenas os fatos que pro porcionam emoções agradáveis mas com freqüência também os que provocam dor tornamse mais facilmente objetos de fé e convicção Um covarde que se amedronta facilmente acredita sem pestanejar em qualquer um que lhe fale de um perigo Uma pessoa de disposi ção triste e melancólica é bastante crédula em relação a tudo que alimente sua paixão dominante Quando aparece um objeto capaz de afetála ele dá o alarme e imediatamente desperta um certo grau 1 50 Livro 1 Parte 3 Seção 1 0 de sua paixão correspondente sobretudo no caso das pessoas natu ralmente inclinadas a essa paixão Tal emoção passa para a imagina ção por uma transição fácil e ao se difundir por nossa idéia do obje to que causa o afeto levanos a formar essa idéia com uma força e vividez maiores e conseqüentemente a assentir a ela de acordo com o sistema precedente A admiração e a surpresa têm o mesmo efeito que as outras paixões assim observamos que charlatães e aventu reiros graças às suas pretensões grandiosas ganham a fé das pes soas comuns com mais facilidade do que se se mantivessem dentro dos limites da moderação O espanto inicial que naturalmente acom panha seus relatos fantásticos se espalha por toda a alma e vivifica e anima a idéia a tal ponto que acaba por tornála semelhante às inferências que extraímos da experiência Esse é um mistério com que devemos estar já um pouco familiarizados e em que teremos ain da ocasião de penetrar no decorrer deste tratado 5 Após essa explicação da influência da crença sobre as paixões encontraremos menor dificuldade em explicar seus efeitos sobre a imaginação por extraordinários que possam parecer É certo que não conseguimos extrair prazer de nenhuma narrativa se nosso juízo não concorda com as imagens apresentadas à nossa fantasia A con versa com pessoas que adquiriram o hábito de mentir mesmo em questões de pouca monta jamais nos dá satisfação isso porque as idéias que essas pessoas nos apresentam não sendo acompanhadas de crença tampouco produzem qualquer impressão sobre nossa men te Até os poetas embora mentirosos por profissão buscam sempre dar um ar de verdade a suas ficções e quando se descuidam inteira mente disso suas obras por mais engenhosas não são capazes de proporcionar muito prazer Em suma podemos observar que mes mo quando as idéias não têm nenhuma influência sobre a vontade e as paixões ainda se requer a verdade e a realidade para tornálas agra dáveis à imaginação 6 Se compararmos porém todos os fenômenos que ocorrem nes se domínio descobriremos que a verdade por mais necessária que possa parecer a toda obra de gênio não tem outro efeito senão 1 5 1 Tratado da natureza humana proporcionar uma fácil recepção para as idéias fazendo que a mente aquiesça a elas com satisfação ou ao menos sem relutância Ora pode mos admitir sem dificuldade que esse efeito é resultante daquela soli dez e força que segundo meu sistema acompanham todas as idéias estabelecidas mediante raciocínios causais seguese portanto que toda a influência da crença sobre a fantasia pode ser explicada por meio desse sistema Assim podemos observar que sempre que tal influência surge de outros princípios que não a verdade ou realida de esses outros princípios desempenham o mesmo papel que esta e satisfazem igualmente a imaginação Os poetas criaram o que cha mam de sistema poético das coisas e embora nem eles mesmos nem seus leitores creiam nesse sistema ele costuma ser considerado um fundamento suficiente para qualquer ficção Habituamonos tanto aos nomes Marte Júpiter e Vênus que assim como a educação fixa uma opinião a constante repetição dessas idéias faz que elas penetrem na mente com facilidade impondose à fantasia sem influenciar o juízo De maneira semelhante os autores trágicos sempre tomam sua fá bula ou ao menos o nome dos protagonistas de alguma passagem famosa da história E fazemno não para enganar os espectadores pois confessam francamente que não se atêm à verdade de forma inviolá vel mas sim para proporcionar aos acontecimentos extraordinários que representam uma recepção mais fácil na imaginação Mas essa precaução não é necessária no caso dos poetas cômicos cujos per sonagens e incidentes por serem mais familiares dispensam tais ce rimônias e são concebidos com mais facilidade mesmo sendo à sim ples vista reconhecidos como fictícios e puros produtos da fantasia 7 Tal mistura de verdade e falsidade nas fabulações dos poetas trá gicos não apenas serve a nosso propósito presente por mostrar que a imaginação pode ser satisfeita sem qualquer crença ou certeza ab soluta mas também vista de outro ângulo pode ser considerada uma fortíssima confirmação de nosso sistema É evidente que os poetas fazem uso desse artifício de extrair da história o nome de seus per sonagens bem como os episódios principais de seus poemas para 1 52 Livro 1 Parte 3 Seção 1 0 que o conjunto da obra seja mais facilmente recebido causando uma impressão mais profunda sobre a fantasia e os afetos Os diversos incidentes da peça adquirem uma espécie de relação por estarem uni dos em um poema ou encenação e se algum desses incidentes for objeto de crença concederá força e vividez a todos os outros com que esteja relacionado A vividez da primeira concepção espalhase pelas relações e é transmitida como se através de dutos ou canais a toda idéia que tenha alguma comunicação com a primeira É verdade que tal coisa nunca poderia constituir uma certeza perfeita porque a união entre as idéias é de certo modo acidental Mas sua influência pode chegar tão perto disso que é capaz de nos convencer de que ambas têm a mesma origem A crença deve aprazer à imaginação mediante a força e vividez que a acompanha já que toda idéia que possui força e vividez se mostra agradável a essa faculdade Para confirmar isso podemos observar que é mútua a colabora ção entre juízo e fantasia bem como entre juízo e paixão e não so mente a crença dá vigor à imaginação mas uma imaginação vigoro sa e forte é dentre todos os dons o mais apropriado para produzir crença e autoridade É difícil recusar nosso assentimento àquilo que é retratado com todas as cores da eloqüência E a vividez produzida pela fantasia é em muitos casos maior que a resultante do costume e da experiência Somos arrebatados pela viva imaginação daquele que lemos ou ouvimos e este último por sua vez é freqüentemente víti ma de seu próprio entusiasmo e genialidade Cabe observar que assim como uma imaginação vivaz muito amiúde degenera em loucura ou insensatez e guardalhes uma grande semelhança em suas operações assim também estas influenciam o juízo da mesma maneira produzindo crença exatamente pelos mes mos princípios Quando a imaginação em virtude de alguma fermen tação extraordinária do sangue e dos espíritos animais adquire uma vivacidade grande a ponto de desordenar todos os seus poderes e fa culdades não há como distinguir entre a verdade e a falsidade Toda vã ficção ou idéia tendo a mesma influência que as impressões da memória ou as conclusões do juízo é recebida em pé de igualdade 1 53 Tratado da natureza humana com estas e age com igual força sobre as paixões Agora não há mais necessidade de uma impressão presente e uma transição habitual para avivar nossas idéias Qualquer quimera do cérebro é tão viva e inten sa quanto as inferências que antes honrávamos com o nome de con clusões acerca de questões de fato às vezes tão viva e intensa quanto as próprias impressões presentes dos sentidos 10 Observemos que a poesia possui esse mesmo efeito em grau menor A poesia e a loucura têm em comum o fato de que a vividez que conferem às idéias não é derivada das situações ou conexões par ticulares dos objetos dessas idéias mas do humor e disposição da pes soa naquele momento Porém por maior que seja a intensidade atin gida pela vividez é evidente que na poesia ela nunca tem a mesma sensação feeling que a vividez que surge na mente ao raciocinarmos mesmo quando esse raciocínio se faz com base no grau mais baixo de probabilidade A mente distingue facilmente entre os dois tipos de vividez e qualquer que seja a emoção conferida aos espíritos ani mais pelo entusiasmo poético tratase sempre de um mero simula cro de crença ou persuasão O que ocorre com a idéia ocorre tam bém com as paixões por ela ocasionadas Não há paixão da mente humana que não possa surgir da poesia Mas ao mesmo tempo as sensações feelings das paixões são muito diferentes quando desper tadas por ficções poéticas e quando nascem da crença e da realidade Uma paixão que na vida real é desagradável pode proporcionar um grande deleite numa tragédia ou num poema épico Neste último caso ela não pesa tanto sobre nós é sentida como algo menos firme e sólido e seu único efeito é estimular agradavelmente os espíritos animais e despertar a atenção A diferença nas paixões é uma clara prova da Conforme as instruções de Hume no Apêndice a edição NNOPT inseriu neste ponto os três parágrafos seguintes o que também fizemos Com essa inserção entretanto embo ra Hume não se tenha dado conta disso criouse uma redundância no texto pois a pri meira frase inserida é igual à que inicia o parágrafo seguinte Isso levou os editores da OPT a simplesmente excluir este último parágrafo considerando que todo ele haviase tornado redundante cf David F Norton Mary Norton op cit Essa conclusão me parece um pouco apressada e por isso mantivemos o último parágrafo conforme a edição SBN Isso faz com que esta seção tenha um parágrafo a mais que a da NNOPT NT 1 54 Livro 1 Parte 3 Seção 1 0 existência de uma diferença semelhante nas idéias que originam as paixões Quando a vividez surge de uma conjunção habitual com uma impressão presente mesmo que aparentemente a imaginação possa não ser tão afetada há sempre algo mais imperativo e real em suas ações que no calor da poesia e da eloqüência A força de nossas ações men tais não deve neste caso como em nenhum outro ser medida pela agita ção aparente da mente Uma descrição poética pode ter um efeito mais sensível sobre a fantasia que uma narrativa histórica Pode reunir um maior número daquelas circunstâncias que formam uma imagem ou quadro completo Pode parecer dispor diante de nós o objeto em co res mais vivas Mas ainda assim as idéias que apresenta são sentidas de maneira diferente que aquelas que surgem da memória e do juízo Há algo fraco e imperfeito em meio a toda a aparente veemência de pensamento e sentimento que acompanha as ficções da poesia 1 1 Mais tarde teremos ocasião de observar tanto as semelhanças como as diferenças entre um entusiasmo poético e uma convicção séria Enquanto isso não posso deixar de notar que a grande dife rença em sua sensação feeling procede em certa medida da reflexão e das regras gerais Observamos que o vigor na concepção que as fic ções recebem da poesia e da eloqüência é uma circunstância mera mente acidental de que toda idéia é suscetível e que tais ficções não se conectam com nada real Essa observação faz que apenas nos en treguemos temporariamente por assim dizer à ficção Mas a idéia é sentida de modo muito diferente das convicções permanentemente estabelecidas que se fundam na memória e no costume Ficções e convicções são um pouco do mesmo gênero mas aquelas são mui to inferiores a estas tanto em suas causas como em seus efeitos 12 Uma reflexão semelhante sobre as regras gerais impede que au mentemos nossa crença a cada vez que cresce a força e a vividez de From the eternal established perswasions A NNOPT corrige eternal para externai e seus editores nos dão a seguinte justificativa David F Norton Mary Norton op cit It may seem unlikely that Hume meant to speak of those beliefs that derive from memory and custom in contrast to the fictions of poetry as externai persuasions but it is even less Iikely that he meant to speak of eternal persuasions He makes the remark in question 1 55 Tratado da natureza humana nossas idéias Quando uma opinião não comporta dúvida ou qual quer probabilidade oposta atribuímos a ela uma total convicção em bora a falta de semelhança ou contigüidade possa tornar sua força inferior à de outras opiniões É assim que o entendimento corrige as aparências sensíveis fazendonos imaginar que um objeto a uma dis tância de vinte pés pareça aos olhos tão grande quanto um outro ob jeto do mesmo tamanho a uma distância de dez pés 13 Observemos que a poesia possui esse mesmo efeito em um grau menor com a única diferença de que a menor reflexão dissipa as ilusões da poesia recolocando os objetos na perspectiva adequada No entanto é certo que no calor do entusiasmo poético o poeta chega a simular uma crença e mesmo uma espécie de visão de seus obje tos E se há o menor argumento que possa apoiar sua crença nada contribui mais para uma total convicção que o fulgor das figuras e imagens poéticas cujo efeito se exerce sobre o próprio poeta bem como sobre seus leitores Seção 1 1 Da probabilidade de chances 1 Para conferir a esse sistema toda sua força e evidência porém devemos afastar nosso olhar dele por um momento e considerar suas in the midst of a discussion that contrasts what he calls loose fictions chimeras of the brain and the ideas of poetry with those beliefs that arise from experience ln this context a contrast between internal and external beliefs makes good Humean sense while a contrast between internal and eternal beliefs whatever they might be does not Moreover although it is clear that Hume supposes ali perceptions are in the most fundamental sense internai at 1 42 7 he distinguishes between externai and internai impressions De nossa parte como nenhuma das alternativas nos parece plenamente satisfatória e como por outro lado não parece inteiramente improvável que Hume tenha usado a palavra eternal de maneira um pouco imprecisa para contrastar o caráter duradouro das convicções fundadas na memória e no costume com o caráter passageiro de nossa entrega à poesia utilizamos o termo permanentemente que preserva esse contraste sem ter o mesmo peso do adjetivo eternas NT Of the probability of chances Em inglês a palavra chance pode significar tanto aca so como chance e foi portanto ora de uma maneira ora de outra que a traduzi con 1 5 6 Livro 1 Parte 3 Seção 1 1 conseqüências explicando pelos mesmos princípios algumas ou tras espécies de raciocínio derivadas da mesma origem 2 Os filósofos que dividiram a razão humana em conhecimento e pro babilidade e que definiram o primeiro como evidência oriunda da com paração de idéias vêemse obrigados a incluir todos os nossos argu mentos baseados em causas ou efeitos dentro do nome geral de probabilidade Mas embora cada qual seja livre para empregar seus termos no sentido que desejar foi assim que na parte precedente deste discurso eu mesmo adotei tal modo de expressão o certo é que na linguagem corrente não hesitamos em afirmar que muitos argumentos causais excedem a probabilidade podendo ser aceitos como uma espécie superior de evidência Se alguém dissesse que é apenas provável que o sol nasça amanhã ou que todos os homens devem morrer pareceria ridículo no entanto é evidente que a única certeza que temos acerca desses fatos é a que a experiência nos pro porciona Por essa razão a fim de preservar o significado comum das palavras e ao mesmo tempo marcar os diversos graus de evidência talvez seja mais conveniente distinguir a razão humana em três clas ses conforme proceda com base no conhecimento em provas ou em probabilidades Entendo por conhecimento a certeza resultante da com paração de idéias Por provas os argumentos derivados da relação de causa e efeito e que estão inteiramente livres de dúvidas e incerteza Por probabilidade a evidência que ainda se faz acompanhar de incer teza É esta última espécie de raciocínio que examinarei a seguir 3 A probabilidade ou raciocínio por conjetura pode ser dividida em dois tipos a saber a que se funda no acaso e a resultante de causas Exa minemos cada uma delas por ordem forme me pareceu ser exigido pelo contexto Entretanto os dois sentidos devem perma necer próximos e por isso até mesmo essa distinção ficará inexata se não entendermos chance e chances como significando primeiramente o simples evento definido a priori a simples possibilidade de um resultado e não aquilo que resultará da soma de chances ou eventos iguais ou seja a probabilidade de chances propriamente dita Como meras possibilidades as chances remetem ao acaso e à indiferença quando se juntam e formam uma probabilidade elas produzem crença Apenas duas vezes no contexto da análise da probabilidade Hume utiliza ainda o termo hazard traduzio por chance no primeiro caso e por azar no segundo acrescentando o termo em inglês hazard NT 1 5 7 Tratado da natureza humana 4 A idéia de causa e efeito é derivada da experiência que ao nos apresentar certos objetos em conjunção constante habituanos a tal ponto a considerálos nessa relação que só com uma sensível violên cia somos capazes de concebêlos em uma relação diferente Por outro lado como o acaso em si mesmo não é nada de real e propriamente falando é somente a negação de uma causa sua influência sobre a mente é contrária à da causalidade Faz parte de sua essência deixar a imaginação inteiramente indiferente para considerar a existência ou a inexistência daquele objeto que é visto como contingente Uma causa traça o caminho para nosso pensamento e de certo modo nos força a considerar objetos determinados em relações determinadas Tudo que o acaso pode fazer é destruir tal determinação do pensa mento deixando a mente em seu estado original de indiferença a que na ausência de uma causa ela retorna instantaneamente 5 Portanto como uma total indiferença é essencial ao acaso é im possível que uma chance seja superior a outra a menos que seja com posta de um número superior de chances iguais Porque se afirmar mos que uma chance pode ser superior a outra de um modo diferente deveremos ao mesmo tempo afirmar que existe alguma coisa que lhe dá essa superioridade e determina o resultado a se inclinar mais para aquele lado que para outro Em outras palavras teríamos de admitir a existência de uma causa destruindo assim a suposição prévia de acaso Uma indiferença perfeita e total é essencial ao acaso e uma indiferença total jamais pode ser em si mesma superior ou inferior a outra Essa verdade não é peculiar a meu sistema ao contrário é ad mitida por todo aquele que faz cálculos sobre chances 6 É de se notar que embora acaso e causalidade sejam diretamen te contrários é impossível concebermos a combinação de chances requerida para tornar uma chance hazard superior a outra sem su por uma mistura de causas entre as chances e a conjunção de uma necessidade em alguns pontos particulares com uma total indiferen Ver nossa nota à p 1 60 NT 1 58 Livro 1 Parte 3 Seção 1 1 ça em outros Ali onde nada limita as chances todas as noções que a fantasia mais extravagante é capaz de formar estão em pé de igualda de E não pode haver nenhuma circunstância que dê a uma dessas noções uma vantagem sobre as outras Assim a menos que admita mos a existência de causas que façam os dados cair preservar sua forma ao cair e repousar sobre apenas um de seus lados não podere mos fazer nenhum cálculo sobre as leis do azar hazard Mas se su pusermos a operação dessas causas e se supusermos igualmente que todo o resto é indiferente e determinado pelo acaso obteremos facil mente a noção de uma combinação superior de chances Um dado contendo quatro faces marcadas com um certo número de pontos e apenas duas faces com um outro número nos fornece um exemplo claro e simples dessa superioridade A mente é aqui limitada pelas causas a considerar um número determinado e qualidades precisas de eventos ao mesmo tempo é indeterminada em sua escolha de um evento particular dentre todos 7 Já avançamos três passos portanto em nosso raciocínio afirma mos que o acaso é meramente a negação de uma causa e produz uma total indiferença na mente que uma negação de uma causa e uma in diferença total nunca podem ser superiores a outras e que para fun damentar um raciocínio é preciso haver sempre uma mistura de causas entre as chances Consideremos a seguir que efeito pode ter sobre a mente uma combinação superior de chances e de que maneira ela influencia nosso juízo e opinião Podemos aqui repetir os mesmos argumentos que empregamos em nosso exame da cren ça decorrente de causas e podemos provar da mesma maneira que não é nem por demonstração nem por probabilidade que um número superior de chances produz nosso assentimento De fato é evidente que pela comparação de meras idéias jamais seremos capazes de descobrir nada importante a esse respeito sendo impos sível provar com certeza que o resultado de um evento tenha de favo recer o lado em que há um número superior de chances Supor alguma certeza neste caso seria subverter o que já estabelecemos a propó 1 59 Tratado da natureza humana sito da oposição de chances e de sua perfeita equivalência e ausência de diferença 8 Se alguém dissesse que embora em uma oposição de chances seja impossível determinar com certeza qual será o resultado do even to podemos declarar com certeza que é mais verossímil e provável que seja aquele que conta com um número superior de chances e não aquele onde existe um número inferior se alguém dissesse isso eu perguntaria o que quer dizer aqui com verossimilhança e probabili dade A verossimilhança e probabilidade de chances consiste em um número superior de chances iguais conseqüentemente quando di zemos que é mais provável que o evento tenha o resultado superior que o inferior não fazemos mais que afirmar que ali onde há um nú mero superior de chances há de fato um número superior e onde há um número inferior há um número inferior proposições idên ticas e irrelevantes A questão portanto é determinar de que modo um número superior de chances iguais age sobre a mente produzin do crença ou assentimento visto que não é nem mediante argumen tos produzidos por demonstração nem por probabilidade 9 Para esclarecer essa dificuldade suponhamos que uma pessoa pegue um dado construído de tal modo que quatro de suas faces são marcadas com um algarismo ou com um certo número de pontos e as duas outras com outro algarismo ou número de pontos e colo que o dado no copo com a intenção de o lançar É claro que ela deve concluir que um algarismo é mais provável que o outro e dará prefe rência àquele que está inscrito no maior número de faces Ela de cer ta forma acredita que esse algarismo irá cair voltado para cima mas ainda apresenta alguma hesitação e dúvida proporcional ao número de chances contrárias E conforme essas chances contrárias dimi Indifference Infelizmente o termo em português elimina a ambigüidade da palavra em inglês já que a ausência de diferença entre as chances tem como contrapartida uma indiferença por parte da mente que contempla as chances Nos diversos casos das páginas 1 589 preferi manter o termo indiferença porque ali sobretudo na primeira ocorrên cia pareceume que o aspecto mais importante da indifference era a ausência de deter minação da mente NT 1 60 nuem e a superioridade do outro lado aumenta sua crença adquire novos graus de estabilidade e certeza Como essa crença decorre de uma operação da mente sobre um objeto simples e definido que temos diante de nós será mais fácil descobrir e explicar sua natureza Bastanos contemplar um único dado para compreender uma das mais curiosas operações do entendimento O dado construído segundo a descrição acima apresenta três circunstâncias que merecem nossa atenção Em primeiro lugar certas causas como a gravidade a solidez uma forma cúbica etc que determinam que ele caia que preserve sua forma na queda e que uma de suas faces fique voltada para cima Em segundo lugar um certo número de faces que se supõem indiferentes Em terceiro lugar uma certa figura inscrita em cada face Essas três particularidades formam toda a natureza do dado no que diz respeito a nosso propósito presente e conseqüentemente são as únicas circunstâncias consideradas pela mente para formar um juízo acerca do resultado do lance Examinemos portanto gradativa e cuidadosamente qual deve ser a influência dessas circunstâncias sobre o pensamento e a imaginação Primeiramente já observamos que a mente é determinada pelo costume a passar de uma causa a seu efeito e quando um dos dois aparece é quase impossível que ela deixe de formar a idéia do outro Sua conjunção constante em casos passados produziu um tal hábito na mente que ela sempre os conjuga em seu pensamento inferindo a existência de um da existência daquele que normalmente o acompanha Quando considera o dado não mais sustentado pelo copo a mente não consegue sem uma violência imaginar que está suspenso no ar ao contrário põeno naturalmente sobre a mesa e o vê voltando uma de suas faces para cima Esse é o efeito das causas entremescladas requeridas para a formação de qualquer cálculo concernente a chances Em segundo lugar supõese que embora o dado esteja necessariamente determinado a cair e a virar para cima uma de suas faces não há nada que fixe uma face em particular sendo esta inteiramente determinada Tratado da natureza humana pelo acaso A natureza e a essência mesma do acaso é ser uma nega ção das causas e deixar a mente em uma completa indiferença entre os eventos que se supõem contingentes Quando portanto as cau sas determinam o pensamento a considerar o dado caindo e virando uma das faces para cima as chances apresentam todas essas faces como equivalentes fazendonos conceber cada uma delas uma após a outra como igualmente provável e possível A imaginação passa da causa o lance do dado ao efeito ou seja uma das seis faces se voltar para cima e sente uma espécie de impossibilidade tanto de parar no meio do caminho como de formar uma outra idéia qualquer Mas como essas seis faces são incompatíveis entre si e como o dado não pode cair com mais de uma face voltada ao mesmo tempo para cima esse prin cípio não nos leva a conceber todas elas como viradas para cima ao mesmo tempo o que consideramos impossível Tampouco nos dire ciona com total força para uma face em particular pois se assim o fizesse essa face seria considerada certa e inevitável Direcionanos antes para o conjunto das seis faces de forma a dividir sua força igualmente entre elas Concluímos em geral que alguma delas tem de resultar do lance percorremos todas em nossa mente a determi nação do pensamento é comum a todas mas a parcela da força que recai sobre uma não é maior que aquela correspondente a sua pro porção com o resto É dessa maneira que o impulso original e con seqüentemente a vividez do pensamento resultante das causas di videse e se fragmenta entre as chances com elas entrelaçadas 13 Já vimos a influência das duas primeiras qualidades do dado as causas e o número e a ausência de diferença entre as faces Aprendemos como elas dão um impulso ao pensamento dividindo esse impulso em tantas partes quantas faces houver Devemos agora considerar os efeitos do terceiro aspecto a saber as figuras inscritas em cada face É evidente que se várias faces têm inscrita a mesma figura elas de vem coincidir em sua influência sobre a mente unindo em uma única imagem ou idéia de uma figura todos os impulsos divididos e disper sos pelas diversas faces que têm essa figura inscrita Se a questão 1 62 Livro 1 Parte 3 Seção 12 fosse apenas saber que face sairá virada para cima diríamos que to das são perfeitamente equivalentes e nenhuma tem qualquer vanta gem sobre as outras Mas como a questão diz respeito à figura e como mais de uma face apresenta a mesma figura é evidente que os im pulsos correspondentes a essas faces devem se reunir naquela figu ra única tornandose mais fortes e imperativos em virtude dessa união No caso presente supõese que quatro faces têm inscrita a mesma figura e duas uma outra figura Os impulsos das primeiras são portanto superiores aos das duas últimas Mas como os even tos são contrários e como é impossível que as duas figuras se vol tem para cima também os impulsos se tornam contrários e o im pulso inferior destrói o superior na medida de sua força A vividez da idéia é sempre proporcional aos graus do impulso ou à tendência à transição e a crença é o mesmo que a vividez da idéia de acordo com a doutrina precedente Seção 1 2 Da probabilidade de causas O que eu disse acerca da probabilidade de chances não tem ou tro propósito senão auxiliarnos na explicação da probabilidade de causas pois os filósofos normalmente admitem que aquilo que o vul go chama de acaso não é senão uma causa secreta e oculta Essa espé cie de probabilidade portanto é o que devemos sobretudo examinar Há vários tipos de probabilidades de causas mas todos derivam da mesma origem a associação de idéias a uma impressão presente Como o hábito que produz a associação nasce da conjunção freqüente de objetos ele deve atingir sua perfeição gradativamente adquirindo mais força a cada caso observado O primeiro caso tem pouca ou ne nhuma força o segundo acrescenta alguma força ao primeiro o ter ceiro tornase ainda mais sensível e é assim a passos lentos que nos so juízo chega a uma perfeita certeza Antes de atingir tal grau de 1 63 Tratado da natureza humana perfeição porém passa por diversos graus inferiores e em todos eles deve ser considerado apenas uma suposição ou probabilidade Por tanto a gradação que vai de probabilidades a provas é em muitos casos insensível e a diferença entre esses tipos de evidência é mais facilmente percebida nos graus mais afastados que naqueles mais próximos ou contíguos 3 Vale observar neste ponto que embora a espécie de probabilida de aqui explicada seja por ordem a primeira e ocorra naturalmente antes que uma prova completa possa existir ninguém que já tenha atingido a maturidade ainda é capaz de reconhecêla É verdade que nada é mais comum que pessoas de grande conhecimento terem ob tido apenas uma experiência imperfeita de muitos eventos particula res o que naturalmente produz um hábito e uma transição apenas imperfeitos Mas devemos considerar que a mente tendo observado outras conexões de causas e efeitos confere nova força a seu racio cínio partindo dessa observação e assim é capaz de construir um ar gumento baseada em um único experimento se este for devidamen te preparado e examinado Quando vemos que alguma coisa se seguiu uma vez de um objeto concluímos que se seguirá dele para sempre E se tal máxima nem sempre é tida como uma base certa não é por falta de um número suficiente de experimentos mas porque freqüen temente encontramos exemplos do contrário o que nos leva à se gunda espécie de probabilidade em que existe uma contrariedade em nossa experiência e observação 4 Seria uma grande felicidade para os homens na conduta de sua vida e de suas ações se os mesmos objetos estivessem sempre juntos nada teríamos então a temer a não ser os erros de nosso próprio juízo e não haveria nenhuma razão para recear a incerteza da natureza Mas como uma observação freqüentemente se mostra contrária a outra e as causas e efeitos nem sempre se seguem na mesma ordem que mostraram em nossa experiência anterior somos obrigados a modi ficar nosso raciocínio de acordo com essa incerteza e a levar em con sideração a contrariedade dos acontecimentos A primeira pergunta 1 64 Livro 1 Parte 3 Seção 12 que se apresenta neste ponto diz respeito à natureza e às causas da contrariedade 5 O vulgo que toma as coisas segundo sua primeira aparência atri bui a incerteza dos acontecimentos a uma incerteza nas causas que faria com que mesmo sem encontrar nenhum obstáculo ou impedi mento a sua operação essas causas falhassem amiúde em sua in fluência habitual Mas os filósofos observam que quase todas as par tes da natureza contêm uma ampla variedade de causas e princípios que se ocultam em razão de seu caráter diminuto ou remoto e assim descobrem que é ao menos possível que a contrariedade de aconteci mentos proceda não de uma contingência na causa mas da opera ção secreta de causas contrárias Essa possibilidade se converte em certeza após observações adicionais quando percebem que se exa minada rigorosamente uma contrariedade de efeitos sempre deixa transparecer uma contrariedade de causas procedendo de sua mú tua obstrução e oposição A melhor razão que um camponês é capaz de dar para um relógio que parou de andar é dizer que às vezes ele não funciona direito Um relojoeiro ao contrário percebe facilmen te que a mesma força na mola ou no pêndulo exerce sempre a mes ma influência sobre as engrenagens se seu efeito habitual falha isso se deve talvez a um grão de poeira que interrompe todo o movimen to Pela observação de vários casos análogos os filósofos formam a máxima de que a conexão entre todas as causas e efeitos é igualmen te necessária e que sua aparente incerteza em alguns casos procede da oposição secreta de causas contrárias 6 Mas embora os filósofos e as pessoas comuns possam diferir em sua explicação sobre a contrariedade de acontecimentos as infe rências que extraem dessa contrariedade são do mesmo gênero e fundadas nos mesmos princípios Uma contrariedade de aconteci mentos no passado pode nos dar uma espécie de crença hesitante quanto ao futuro e isso de dois modos distintos Primeiramente pro duzindo um hábito e uma transição imperfeitos da impressão pre sente à idéia relacionada Quando a conjunção de dois objetos é fre 1 65 Tratado da natureza humana qüente mas não inteiramente constante a mente se vê determinada a passar de um objeto ao outro mas não com um hábito tão comple to como quando a união é ininterrupta e todos os exemplos que já encontramos são uniformes e da mesma espécie Descobrimos pela experiência comum em nossas ações como em nossos raciocínios que a perseverança constante em um certo curso de vida produz uma forte inclinação e tendência a continuar assim no futuro embora haja hábitos dotados de graus inferiores de força proporcionais aos graus inferiores de estabilidade e uniformidade em nossa conduta 7 Não há dúvida de que esse princípio às vezes se manifesta pro duzindo as inferências que extraímos de fenômenos contrários Es tou convencido porém de que um exame adequado mostrará não ser esse o princípio que mais comumente influencia a mente nessa espécie de raciocínio Quando seguimos apenas a determinação ha bitual da mente fazemos a transição sem refletir e sem deixar passar um só momento entre a visão do objeto e a crença naquele que sem pre vimos acompanhálo Como o costume não depende de uma de liberação ele opera imediatamente sem dar tempo à reflexão Mas em nossos raciocínios prováveis temos poucos exemplos dessa maneira de proceder menos ainda que naqueles que são derivados da conjunção ininterrupta dos objetos Na primeira espécie de racio cínio costumamos levar conscientemente em consideração a contra riedade dos acontecimentos passados comparamos os diferentes lados da contrariedade e pesamos com cuidado as experiências que temos de cada lado Podemos concluir daí que essa espécie de racio cínio não surge diretamente do hábito mas apenas de maneira oblí qua É isso que devemos agora tentar explicar 8 É evidente que quando um objeto se faz acompanhar de efeitos contrários nosso juízo se baseia apenas em nossa experiência pas sada e sempre consideramos possíveis os efeitos que observamos te rem se seguido desse objeto E assim como a experiência passada regu la nosso juízo sobre a possibilidade desses efeitos regula igualmente o juízo sobre sua probabilidade É sempre o efeito mais comum que 1 66 Livro 1 Parte 3 Seção 12 consideramos como o mais provável Há aqui portanto duas coisas a examinar as razões que nos determinam a fazer do passado um pa drão para o futuro e a maneira como extraímos um juízo único de uma contrariedade de acontecimentos passados 9 Podemos observar em primeiro lugar que a suposição de que o futuro se assemelha ao passado não está fundada em nenhum tipo de argumento sendo antes derivada inteiramente do hábito que nos de termina a esperar para o futuro a mesma seqüência de objetos a que nos acostumamos Esse hábito ou determinação de transferir o pas sado para o futuro é completo e perfeito conseqüentemente o pri meiro impulso da imaginação nessa espécie de raciocínio é dotado das mesmas qualidades 10 Mas em segundo lugar quando ao examinar experiências passa das vemos que são de natureza contrária essa determinação embo ra completa e perfeita nela mesma não nos apresenta um objeto fixo oferecendonos antes um número de imagens discordantes em uma certa ordem e proporção O primeiro impulso portanto fragmenta se e se difunde por todas essas imagens cada uma das quais recebe uma parcela igual daquela força e vividez derivada do impulso Qual quer um desses acontecimentos passados pode acontecer novamen te e julgamos que quando de fato acontecerem estarão misturados na mesma proporção que no passado 11 Se nossa intenção portanto for considerar as proporções dos acon tecimentos contrários em um grande número de casos as imagens apresentadas por nossa experiência passada devem permanecer em sua forma original e preservar suas proporções originais Suponhamos por exemplo que uma longa observação tenhame mostrado que de vinte navios que partem para o mar apenas dezenove retornam Supo nhamos que eu veja agora vinte navios deixando o cais Transfiro mi nha experiência passada para a futura e represento para mim mes mo dezenove desses navios retornando a salvo e um naufragando Quanto a isso não pode haver dificuldade Mas como freqüentemente percorremos essas diversas idéias de acontecimentos passados a fim 1 67 Tratado da natureza humana de formar um juízo acerca de um único acontecimento que parece incerto essa consideração tem de alterar a forma original de nossas idéias reunindo as imagens separadas que a experiência apresentou pois é a ela que referimos a determinação daquele acontecimento par ticular sobre o qual raciocinamos Por hipótese muitas dessas ima gens coincidem e um número superior coincide em um dos lados Essas imagens concordantes se unem tornando a idéia mais forte e viva não somente que uma mera ficção da imaginação mas tam bém que qualquer outra idéia sustentada por um número menor de experiências Cada nova experiência é como uma nova pincelada que confere às cores uma vividez adicional sem multiplicar nem am pliar a figura Essa operação da mente foi tão bem explicada quando tratamos da probabilidade de chances que não preciso aqui tentar tornála mais inteligível Cada experiência passada pode ser conside rada uma espécie de chance pois não temos certeza se o objeto exis tirá conforme a uma experiência ou a outra Por essa razão tudo que eu disse sobre a probabilidade de chances se aplica também aqui 12 Em resumo portanto experiências contrárias produzem uma crença imperfeita seja enfraquecendo o hábito seja dividindo e em seguida juntando em diferentes partes esse hábito perfeito que nos faz concluir em geral que os casos de que não tivemos experiência devem necessariamente se assemelhar aos casos de que tivemos 13 Para justificar ainda melhor essa explicação da segunda espécie de probabilidade em que raciocinamos consciente e refletidamente com base em uma contrariedade de experiências passadas proporei as seguintes considerações confiando que o ar de sutileza que as en volve não chocará ninguém O bom raciocínio ainda que sutil con serva quiçá sua força do mesmo modo que a matéria conserva sua solidez no ar no fogo e nos espíritos animais tanto quanto nas for mas mais grosseiras e sensíveis 14 Em primeiro lugar podemos observar que não há probabilidade tão grande que não admita uma possibilidade contrária caso contrá rio deixaria de ser uma probabilidade tornandose uma certeza Essa 1 68 Livro 1 Parte 3 Seção 12 probabilidade de causas de maior extensão que estamos agora exa minando depende de uma contrariedade de experiências e é eviden te que uma experiência no passado revela pelo menos uma possibili dade para o futuro Em segundo lugar as partes componentes dessa possibilidade e probabilidade são da mesma natureza e diferem apenas em número mas não em gênero Já observamos que cada chance singular é intei ramente igual às outras e que a única circunstância capaz de dar a um acontecimento contingente uma superioridade sobre outro é uma superioridade no número de chances De maneira semelhante como a incerteza das causas é descoberta pela experiência que nos apre senta uma visão de acontecimentos contrários é claro que quando transferimos o passado para o futuro o conhecido para o desconhe cido todas as experiências passadas têm o mesmo peso e somente um número superior delas pode fazer a balança pender para um dos lados Portanto a possibilidade que entra em todo raciocínio desse tipo é composta de partes da mesma natureza tanto entre si como em relação àquelas que compõem a probabilidade oposta Em terceiro lugar podemos estabelecer como uma máxima cer ta que em todos os fenômenos morais e naturais sempre que uma causa é constituída de um certo número de partes e o efeito aumenta ou diminui de acordo com a variação desse número tal efeito é pro priamente falando composto surgindo da união de diversos efeitos cada qual procedente de uma parte da causa Assim como o peso de um corpo aumenta ou diminui pelo aumento ou diminuição de suas partes concluímos que cada parte contém essa qualidade e contri bui para a gravidade do todo A ausência ou a presença de uma parte da causa é acompanhada da ausência ou da presença de uma parte proporcional do efeito Essa conexão ou conjunção constante prova de modo suficiente que uma parte é causa da outra Ora como a cren ça que depositamos em um acontecimento aumenta ou diminui de acordo com o número de chances ou experiências passadas ela deve ser considerada um efeito composto cujas partes surgem cada uma delas de um número proporcional de chances ou experiências 1 69 Tratado da natureza humana 17 Reunamos agora essas três observações e vejamos que conclusão podemos delas extrair Para cada probabilidade existe uma possibili dade oposta Essa possibilidade é composta de partes que são exata mente da mesma natureza que as da probabilidade e que conseqüen temente exercem a mesma influência sobre a mente e o entendimento A crença que acompanha a probabilidade é um efeito composto for mado pela concorrência de diversos efeitos cada um dos quais pro cede de uma parte da probabilidade Portanto como cada parte da probabilidade contribui para a produção da crença cada parte da pos sibilidade deve ter a mesma influência sobre o lado oposto já que a natureza dessas partes é exatamente a mesma A crença contrária que acompanha a possibilidade implica uma visão de um certo obje to como a probabilidade implica uma visão oposta Nesse aspecto par ticular esses dois graus de crença são semelhantes O único meio portanto pelo qual o número maior de partes componentes simila res em um dos lados pode exercer sua influência e prevalecer sobre o número menor no outro lado é produzindo uma imagem mais for te e vívida de seu objeto Cada parte apresenta uma visão particular e todas essas visões unindose produzem uma visão geral mais com pleta e mais distinta em virtude do maior número de causas ou prin cípios de que deriva 18 As partes componentes da probabilidade e da possibilidade sen do semelhantes em sua natureza devem produzir efeitos semelhan tes e a semelhança entre seus efeitos consiste em que cada um de les apresenta uma imagem de um objeto particular Mas embora essas partes sejam semelhantes em sua natureza são muito diferen tes em sua quantidade e número e essa diferença deve aparecer no efeito tanto quanto a similaridade Ora como a imagem que elas apre sentam é em ambos os casos plena e integral e como compreende o objeto em todas as suas partes é impossível que haja qualquer di ferença sob esse aspecto particular Nada pode distinguir esses efei tos a não ser uma vividez superior na probabilidade resultante da concorrência de um número superior de imagens 1 70 Livro 1 Parte 3 Seção 12 19 Eis agora quase o mesmo argumento colocado de outro ângulo Todos os nossos raciocínios concernentes à probabilidade de causas são fundados na transferência do passado ao futuro A transferência de uma experiência passada ao futuro é suficiente para nos dar uma visão do objeto quer essa experiência seja única ou esteja combina da com outras do mesmo tipo quer seja homogênea ou oposta a ou tras de um tipo contrário Supondose então que adquira ambas as qualidades de combinação e oposição ela nem por isso perde seu poder anterior de apresentar uma visão do objeto apenas concorda com algumas experiências dotadas de uma influência semelhante e se opõe a outras Uma questão portanto pode ser levantada a res peito da maneira como se dão essa concordância e oposição Quanto à concordância a única alternativa é entre estas duas hipóteses pri meira que a imagem do objeto ocasionada pela transferência de cada experiência passada conservase isolada e somente o número de ima gens se multiplica ou segunda que ela se funde com outras imagens similares e correspondentes dandolhes um grau superior de força e vividez Ora nossa experiência deixa evidente que a primeira hipó tese é errônea já que a crença que acompanha um raciocínio qual quer consiste em uma conclusão única e não em uma multiplicidade de conclusões similares que apenas distrairiam a mente e em mui tos casos seriam numerosas demais para serem compreendidas dis tintamente por uma mente finita A única opinião razoável que res ta portanto é que essas visões similares se fundem umas nas outras e unem suas forças de modo a produzir uma imagem mais forte e mais clara que a resultante de uma visão singular É desse modo que as experiências passadas concordam ao serem transferidas para um acontecimento futuro Quanto ao modo como se dá sua oposição é evidente que uma vez que as imagens contrárias são incompatíveis entre si e é impossível que o objeto exista ao mesmo tempo confor me a ambas sua influência se torna mutuamente destrutiva e a de terminação que a mente sofre em direção à imagem superior possui apenas a força que resta após a subtração da inferior 1 71 Tratado da natureza humana 20 Tenho consciência de quão abstruso todo esse raciocínio deve parecer aos leitores em geral que não estando acostumados a refle xões tão profundas a respeito das faculdades intelectuais da mente tenderão a rejeitar como quimérico tudo que destoe das noções comumente aceitas e dos princípios mais fáceis e óbvios da filosofia Não há dúvida de que é necessário algum esforço para penetrar nes ses raciocínios mas talvez um esforço bem pequeno já baste para se perceber a imperfeição de todas as hipóteses vulgares acerca desse tema e a fraca luz que a filosofia é capaz de lançar sobre especula ções tão sublimes e rebuscadas Se algum dia os homens se conven cerem plenamente destes dois princípios que não há nada em nenhum objeto considerado em si mesmo capaz de nos fornecer uma razão para extrair uma conclusão que o ultrapasse e que mesmo após a observação da conjunção freqüente ou constante entre objetos não temos nenhuma razão para fazer uma inferência a respeito de outro objeto além daqueles de que tivemos experiência se os homens digo algum dia se convencerem plenamente desses dois princípios isso os afastará a tal ponto de todos os sistemas comuns que não terão dificuldade em aceitar ne nhum outro ainda que pareça o mais extraordinário Vimos que es ses princípios são bastante convincentes mesmo em relação a nos sos raciocínios causais mais exatos e ouso afirmar que no que concerne aos raciocínios conjeturais ou prováveis eles adquirem um grau ainda maior de evidência 21 Em primeiro lugar é óbvio que em raciocínios desse tipo o ob jeto que se apresenta considerado nele mesmo não é o que nos dá uma razão para extrair uma conclusão a respeito de qualquer outro objeto ou acontecimento Porque como se supõe que este último ob jeto é incerto e como a incerteza procede de uma secreta contrariedade de causas no primeiro se alguma das causas estivesse nas qualidades conhecidas daquele objeto ela não seria mais secreta e tampouco nossa conclusão seria incerta 22 Mas em segundo lugar é igualmente óbvio nessa espécie de racio cínio que se a transferência do passado ao futuro fosse fundada me Livro 1 Parte 3 Seção 12 ramente em uma conclusão do entendimento nunca poderia ocasio nar uma crença ou certeza Quando transferimos experiências con trárias para o futuro não podemos senão repetir essas experiências contrárias com suas proporções particulares E isso não poderia pro duzir nenhuma certeza acerca de um acontecimento isolado sobre o qual raciocinamos a menos que a fantasia fundisse todas as imagens concordantes e delas extraísse uma única idéia ou imagem com uma intensidade e vividez proporcional ao número de experiências de que é derivada e à sua superioridade em relação às experiências antagô nicas Nossa experiência passada não apresenta nenhum objeto de terminado E como nossa crença mesmo fraca fixase em um objeto determinado é evidente que ela não surge unicamente da transferên cia do passado para o futuro mas de alguma operação da fantasia com ela conjugada Isso nos permite conceber de que maneira essa faculdade participa de todos os nossos raciocínios 23 Concluirei este tema com duas reflexões que talvez mereçam nos sa atenção A primeira podese explicar da seguinte maneira Quan do a mente forma um raciocínio a respeito de uma questão de fato apenas provável ela volta seu olhar para a experiência passada e trans ferindoa para o futuro defrontase com o mesmo número de visões contrárias de seu objeto aquelas que são do mesmo tipo se unem e se fundem em um único ato mental tornandoo mais forte e vívido Mas suponhamos que essa multiplicidade de visões ou vislumbres de um objeto não proceda da experiência mas sim de um ato volun tário da imaginação Neste caso tal efeito não se seguiria ou ao me nos não no mesmo grau Pois embora o costume e a educação pos sam produzir crença por meio de uma repetição como essa que não é derivada da experiência isso exige entretanto um longo período de tempo juntamente com uma repetição muito freqüente e não pro posital De maneira geral podemos afirmar que uma pessoa que8 8 Seções 9 e 10 desta parte Cf NNOPT Ver David F Norton Mary Norton op cit para uma divertida descrição da longa série de enganos envolvendo esta nota NT 1 73 Tratado da natureza humana voluntariamente repetisse uma idéia em sua mente mesmo que apoiada por uma experiência passada não estaria mais inclinada a crer na exis tência de seu objeto que se houvesse se contentado em considerála apenas uma vez Além do efeito da intencionalidade cada ato da mente por ser separado e independente tem uma influência separada e não junta sua força à de seus congêneres Não estando unidos por um objeto comum que os tivesse produzido esses atos não têm relação entre si e conseqüentemente não realizam nenhuma transição ou união de forças Compreenderemos melhor esse fenômeno adiante 24 Minha segunda reflexão baseiase nessas altas probabilidades acer ca das quais a mente é capaz de julgar e nas minúsculas diferenças que é capaz de observar entre elas Quando as chances ou experiên cias em um lado chegam a dez mil e as do outro lado a dez mil e um o juízo dá preferência a estas em razão de sua superioridade em bora a diferença seja tão insignificante que é claramente impossível para a mente percorrer cada visão particular e distinguir a vividez su perior da imagem resultante do número superior Temos um exemplo análogo no caso dos afetos De acordo com os princípios acima mencio nados é evidente que quando um objeto produz em nós uma paixão que varia conforme as diferentes quantidades do objeto a paixão não é propriamente falando uma emoção simples mas composta de um grande número de paixões mais fracas derivadas da visão de cada parte do objeto De outro modo seria impossível que a paixão aumentasse com o aumento dessas partes Assim um homem que deseja mil li bras tem na realidade mil ou mais desejos que ao se unirem pare cem formar uma só paixão Mas a composição se revela de maneira evidente a cada alteração do objeto pela preferência que esse homem dá ao número maior ainda que a diferença seja de apenas uma uni dade Entretanto nada pode ser mais certo que o fato de que uma diferença tão pequena seria indiscernível nas paixões e não poderia tornálas distinguíveis umas das outras Portanto a diferença em nossa conduta ao preferirmos o número maior não depende de nos sas paixões mas do hábito e de regras gerais Mediante uma multipli 1 74 Livro 1 Parte 3 Seção 1 2 cidade de exemplos descobrimos que quando os números são pre cisos e a diferença sensível o aumento do montante de uma quantia qualquer de dinheiro aumenta a paixão A mente é capaz de perce ber por uma sensação feeling imediata que três guinéus produzem uma paixão maior que dois guinéus isso ela transfere para números maiores em razão da semelhança e por uma regra geral confere a mil guinéus uma paixão mais forte que aquela que confere a nove centos e noventa e nove Explicaremos essas regras gerais a seguir Mas além dessas duas espécies de probabilidade derivadas de uma experiência imperfeita e de causas contrárias há uma terceira re sultante da ANALOGIA que difere daquelas em alguns pontos impor tantes Segundo a hipótese acima explicada todos os tipos de racio cínios que partem de causas ou efeitos estão fundados em duas circunstâncias particulares a conjunção constante entre dois obje tos em toda a experiência passada e a semelhança entre um deles e um objeto presente O efeito dessas duas circunstâncias é que o ob jeto presente revigora e aviva a imaginação e a semelhança junta mente com a união constante transmite essa força e vividez à idéia relacionada e assim se diz que esta última recebe nossa crença ou assentimento Mas se enfraquecermos seja a união seja a semelhan ça enfraqueceremos o princípio de transição e em conseqüência disso a crença dele derivada A vividez da primeira impressão não pode ser integralmente transmitida à idéia relacionada se a conjun ção de seus objetos não é constante ou se a impressão presente não se assemelha perfeitamente a nenhuma daquelas cuja união estamos acostumados a observar Nas probabilidades de chances e de causas acima explicadas o que diminui é a constância da união na proba bilidade derivada da analogia é apenas a semelhança que é afeta da Sem algum grau de semelhança bem como de união é impossível haver qualquer raciocínio Mas como essa semelhança admite vários graus diferentes o raciocínio se torna proporcionalmente mais ou menos firme e certo Uma experiência perde parte de sua força quando transferida para casos que não são exatamente semelhantes mas en 1 75 Tratado da natureza humana quanto restar alguma semelhança é evidente que ela ainda pode con servar força suficiente para fundamentar uma probabilidade Seção 1 3 Da probabilidade não filosófica 1 Todos esses tipos de probabilidade são admitidos pelos filósofos e reconhecidos como fundamentos válidos de crença e opinião Mas há outros tipos que apesar de derivados dos mesmos princípios não tiveram a sorte de obter igual aprovação O primeiro tipo de probabili dade que se encontra nessa situação pode ser explicado da seguinte maneira Como mostramos anteriormente a diminuição da união bem como da semelhança diminui a facilidade da transição enfraquecendo assim a evidência Ora podemos observar que a mesma diminuição da evidência decorre também de uma diminuição da impressão e do obscurecimento das cores com que aparece à memória ou aos senti dos O argumento que fundamos sobre qualquer fato de que nos lem bramos será mais ou menos convincente conforme o fato seja re cente ou remoto Mas a diferença entre esses graus de evidência não é aceita pelos filósofos como sólida e legítima pois se assim o fos se um argumento deveria ter hoje uma força diferente da que terá daqui a um mês Entretanto apesar da oposição da filosofia é certo que tal circunstância exerce uma influência considerável sobre o en tendimento transformando secretamente a autoridade do mesmo ar gumento segundo os diferentes momentos em que ele nos é propos to Uma maior força e vividez na impressão transmite naturalmente uma força e vividez maior à idéia relacionada E é dos graus de força e vividez que depende a crença de acordo com o sistema precedente 2 Existe uma segunda diferença que podemos freqüentemente ob servar em nossos graus de crença e certeza e que nunca deixa de ocorrer embora rejeitada pelos filósofos Uma experiência recente e ainda fresca na memória nos afeta mais que outra que já esteja meio apagada exercendo uma influência superior sobre o juízo e sobre as 1 76 Livro 1 Parte 3 Seção 13 paixões Uma impressão vívida produz uma maior certeza que uma impressão fraca porque tem mais força original para comunicar à idéia relacionada que assim adquire uma força e vividez maior Uma observação recente tem um efeito semelhante pois o costume e a tran sição são ali mais completos preservando melhor a força original quando ela é comunicada Assim um bêbado que viu seu companhei ro morrer por excesso de bebida fica durante algum tempo abalado com o ocorrido temendo que um acidente semelhante lhe aconteça mas como a memória do acidente gradualmente se deteriora sua se gurança anterior retorna e o perigo parece menos certo e real 3 Como terceiro exemplo desse tipo acrescento que embora nos sos raciocínios por provas sejam consideravelmente diferentes dos raciocínios por probabilidades eles com freqüência se degradam in sensivelmente até se transformarem nestes últimos e isso pelo sim ples fato de haver um grande número de argumentos conectados É certo que quando se faz uma inferência imediatamente a partir de um objeto sem qualquer causa ou efeito intermediário a convicção é muito mais forte e a persuasão mais vívida do que quando a imagi nação é conduzida por uma longa cadeia de argumentos conectados por mais infalível que se considere a conexão entre cada elo e o seguin te A vividez de todas as idéias deriva da impressão original pela tran sição habitual da imaginação E é evidente que essa vividez deve de cair gradativamente conforme a distância perdendo um pouco a cada transição Às vezes essa distância tem uma influência até maior que aquela que teriam experiências contrárias Um homem pode extrair uma convicção mais vívida de um raciocínio provável que seja próximo e imediato do que de uma longa cadeia de conseqüências mesmo que todas as suas partes sejam corretas e conclusivas É raro aliás que ra ciocínios deste último tipo produzam alguma convicção É preciso possuir uma imaginação muito forte e firme para preservar até o fim uma evidência que percorre tantas etapas Mas talvez não seja fora de propósito observar aqui um fenôme no muito curioso que este tema nos sugere É evidente que não há 1 77 Tratado da natureza humana um só ponto da história antiga sobre o qual possamos ter alguma certeza se não passarmos ao longo de muitos milhões de causas e efeitos por uma cadeia de argumentos de uma extensão quase imen surável Para que o conhecimento do fato tenha chegado aos primei ros historiadores ele antes tem de ter sido transmitido de boca em boca numerosas vezes e uma vez posto por escrito cada nova cópia se torna um novo objeto cuja conexão com o anterior só é conhecida por experiência e observação Por conseguinte é bem possível que o raciocínio anterior leve à conclusão de que a evidência de toda a his tória antiga deve agora estar perdida ou ao menos irá se perder com o tempo conforme a cadeia de causas cresça e se alongue Entretan to como parece contrário ao bom senso pensar que se a república das letras e a arte da imprensa continuarem no mesmo passo que hoje nossa posteridade mesmo que só após mil gerações talvez tenha dú vidas se existiu realmente um homem como Júlio César isso pode ser considerado uma objeção ao presente sistema Se a crença consistis se somente em uma certa vividez transmitida de uma impressão ori ginal ela se degeneraria ao longo da transição devendo finalmente se extinguir por completo E viceversa se a crença em algumas oca siões não é passível de tal extinção ela deve ser alguma coisa dife rente da vividez 5 Antes de responder a tal objeção observarei que foi deste tema que se extraiu um argumento célebre contra a religião cristã mas com a diferença de que ali se supunha que a conexão entre cada elo da cadeia no testemunho humano não excedia a probabilidade es tando sujeita a um certo grau de dúvida e incerteza De fato devese reconhecer que a se considerar a questão dessa maneira que entre tanto não é correta não há história ou tradição que não deva aca bar por perder toda sua força e evidência Cada nova probabilidade Traduzo common sense ora como bom senso ora como senso comum Apenas na página 597 a expressão the common sense and judgement of mankind será traduzida como o bom senso e o senso comum dos homens NT John Craig Theologire christianre principia mathematica Londres 1 699 NT 1 78 Livro 1 Parte 3 Seção 1 3 diminui a convicção original e por maior que se suponha tal convic ção é impossível que ela possa subsistir a essas diminuições reitera das Isso geralmente é verdade porém mais tarde veremos9 que exis te uma exceção notável de amplas conseqüências para o presente tema do entendimento 6 Enquanto isso respondamos à objeção anterior baseada na su posição de que a evidência histórica equivale inicialmente a uma prova completa Consideremos que embora sejam inúmeros os elos que conectam um fato original à impressão presente que fundamenta a crença eles são todos do mesmo tipo dependendo da fidelidade de tipógrafos e copistas Uma edição passa a outra esta a uma terceira e assim por diante até chegarmos ao volume que ora examinamos Não há variação nessas etapas Quando conhecemos uma delas co nhecemos todas e após cumprirmos a primeira não hesitamos em cumprir as outras Só essa circunstância é capaz de preservar a evi dência da história e é ela que perpetuará a memória dos tempos pre sentes para a mais remota posteridade Se toda a longa cadeia de cau sas e efeitos que conecta um evento passado qualquer a um livro de história fosse composta por partes diferentes entre si as quais a mente tivesse de conceber distintamente seria impossível preservarmos até o fim qualquer crença ou evidência Mas como a maioria dessas pro vas é perfeitamente semelhante a mente passa com facilidade ao longo delas salta sem esforço de uma parte a outra e forma apenas uma noção confusa e geral de cada elo Desse modo uma longa cadeia de argumentos diminui muito menos a vividez original do que o faria uma cadeia bem mais curta mas composta de partes diferentes en tre si cada uma das quais exigindo um exame distinto 7 Uma quarta espécie de probabilidade não filosófica é derivada de regras gerais que apressadamente formamos para nós mesmos e que são a fonte daquilo que denominamos propriamente PRECON CEITO Os irlandeses não podem ter espiritualidade os franceses não 9 Parte 4 Seção 1 1 79 Tratado da natureza humana podem ter consistência por isso ainda que a conversa de um irlan dês seja claramente muito agradável e a de um francês bastante ju diciosa é tal nosso preconceito contra eles que dizemos contra todo bom senso e razão que o primeiro tem que ser estúpido e o segundo leviano A natureza humana está muito sujeita a esse tipo de erro e talvez esta nação tanto quanto qualquer outra 8 Caso alguém me perguntasse por que os homens formam regras gerais e permitem que elas influenciem seu julgamento mesmo con tra a observação e experiência presente eu responderia que em mi nha opinião isso se deve aos mesmos princípios de que dependem todos os juízos sobre causas e efeitos Nossos juízos sobre causas e efeitos são derivados do hábito e da experiência Quando nos acos tumamos a ver um objeto unido a outro nossa imaginação passa do primeiro ao segundo por uma transição natural que precede a refle xão e que não pode ser evitada por ela Ora é da natureza do costu me não somente operar com plena força quando os objetos que se apresentam são exatamente iguais àqueles com que nos havíamos acostumado mas também operar em um grau menor quando des cobrimos objetos similares Embora o hábito perca parte de sua for ça a cada diferença é raro que ele seja completamente destruído quan do circunstâncias importantes permanecem iguais Um homem que contraiu o hábito de comer frutas consumindo pêras ou pêssegos irá se satisfazer com melões quando não conseguir encontrar sua fruta predileta do mesmo modo um homem que se tornou alcoólatra be bendo vinhos tintos será atraído com uma violência quase igual pelo vinho branco se lhe mostrarmos uma garrafa deste Foi por esse prin cípio que expliquei aquela espécie de probabilidade derivada da ana logia em que transferimos nossa experiência de casos passados a objetos semelhantes mas não exatamente iguais aos objetos de que tivemos experiência À proporção que se reduz a semelhança a pro An Irishman cannot have wit and a Frenchman cannot have solidity Para evitar mal entendidos quase sempre traduzi wit como espirituosidade reservando o termo espírito para os casos que me pareceram suficientemente claros NT 1 80 Livro 1 Parte 3 Seção 13 habilidade diminui mas conservará sempre alguma força enquanto restar algum traço da semelhança 9 Podemos ampliar essa observação e ressaltar que embora o cos tume seja o fundamento de todos os nossos juízos às vezes seu efei to sobre a imaginação se opõe ao juízo produzindo uma contrarie dade em nossos sentimentos sobre o mesmo objeto Explicome Em quase todas as espécies de causas existe uma complexidade de cir cunstâncias algumas das quais são essenciais e outras supérfluas algumas são absolutamente necessárias à produção do efeito e ou tras estão apenas acidentalmente conjugadas com ele Ora podemos observar que quando essas circunstâncias supérfluas são numero sas e consideráveis ocorrendo em conjunção freqüente com as essen ciais elas exercem tal influência sobre a imaginação que mesmo na ausência das circunstâncias essenciais levamnos à concepção do efeito usual dando a essa concepção uma força e vividez que a torna superior às meras ficções da fantasia Podemos corrigir essa propen são mediante uma reflexão sobre a natureza dessas circunstâncias mas ainda nesse caso é certamente o costume que sai na frente im primindo a inclinação à imaginação 10 Para ilustrar esse tema por meio de um exemplo familiar consi deremos o caso de um homem que se encontra dentro de uma gaiola de ferro pendente de uma alta torre Ao olhar para o precipício em baixo dele esse homem não pode se impedir de tremer embora sai ba que está perfeitamente seguro e que não cairá pois tem experiên cia de que o ferro que o sustenta é sólido e as idéias da queda dos ferimentos e da morte derivam somente do costume e da experiên cia O mesmo costume ultrapassa os casos de que se origina e a que corresponde perfeitamente e influencia as idéias de objetos que são semelhantes em alguns aspectos mas que não se enquadram preci samente na mesma regra As circunstâncias da altura e da queda têm tal impacto sobre esse homem que sua influência não pode ser des Montaigne Essais IIXII Apologie de Raimond Sebond ed Thibaudet p578 NT 1 8 1 Tratado da natureza humana truída pelas circunstâncias contrárias da sustentação e da solidez que entretanto deveriam dar a ele uma perfeita segurança A imaginação se deixa levar por seu objeto e desperta uma paixão proporcional a este A paixão incide novamente sobre a imaginação e aviva a idéia Essa idéia vívida exerce uma nova influência sobre a paixão aumen tando sua força e violência Dessa maneira a fantasia e os afetos sus tentandose mutuamente fazem que todo o conjunto tenha uma gran de influência sobre ele 1 1 Mas para que buscar outros exemplos quando o presente tema das probabilidades não filosóficas nos oferece um tão evidente na opo sição entre juízo e imaginação decorrente desses efeitos do costume De acordo com meu sistema todo raciocínio é apenas efeito do cos tume e o único efeito do costume é avivar a imaginação produzindo em nós uma concepção forte de um determinado objeto Podese por tanto concluir que nosso juízo e nossa imaginação nunca podem ser contrários e que a ação do costume sobre esta última faculdade é incapaz de fazêla oporse à primeira A única forma de se eliminar essa dificuldade é admitir a influência de regras gerais Mais adian te 10 observaremos algumas regras gerais pelas quais devemos regu lar nosso juízo sobre causas e efeitos Essas regras se formam segun do a natureza de nosso entendimento e conforme nossa experiência da operação deste nos juízos que formamos acerca dos objetos Gra ças a elas aprendemos a distinguir as circunstâncias acidentais das causas eficientes Quando descobrimos que um efeito pode ser pro duzido sem a concorrência de alguma circunstância particular con cluímos que essa circunstância não faz parte da causa eficiente por mais freqüente que seja sua conjunção com ela Mas como essa con junção freqüente necessariamente faz com que tal circunstância te nha um efeito sobre a imaginação apesar da conclusão oposta de corrente das regras gerais a oposição desses dois princípios produz uma contrariedade em nossos pensamentos fazendonos atribuir 10 Seção 15 1 82 Livro 1 Parte 3 Seção 1 3 uma das inferências a nosso juízo e a outra a nossa imaginação A regra geral é atribuída ao juízo por ser mais extensa e constante a exceção à imaginação por ser mais caprichosa e incerta 12 Assim nossas regras gerais se opõem de certo modo umas às outras Quando aparece um objeto semelhante a uma causa quanto a circunstâncias muito consideráveis a imaginação naturalmente nos leva a uma concepção vívida do efeito habitual embora o objeto seja diferente da causa quanto às circunstâncias mais importantes e efica zes Eis a primeira influência das regras gerais Mas quando passa mos em revista esse ato da mente e o comparamos às operações mais gerais e autênticas do entendimento descobrimos que ele possui uma natureza irregular e que destrói os princípios mais bem estabeleci dos do raciocínio razão pela qual o rejeitamos Essa é uma segunda influência das regras gerais e implica a condenação da primeira Ora uma ora a outra prevalece conforme a disposição e o caráter da pes soa O vulgo costuma se guiar pela primeira e os homens avisados pela segunda Enquanto isso os céticos podem ter o prazer de ob servar aqui uma nova e notável contradição de nossa razão vendo toda a filosofia prestes a ser destruída por um princípio da natureza humana e ser salva em seguida por uma nova direção desse mes mo princípio Seguir regras gerais é uma espécie de probabilidade mui to pouco filosófica Entretanto apenas se as seguimos podemos corri gir a esta e a todas as outras probabilidades não filosóficas 13 Como temos exemplos em que as regras gerais agem sobre a ima ginação de maneira contrária ao juízo não devemos nos surpreen der por vermos crescer seus efeitos quando conjugados com esta última faculdade nem por observarmos que assim essas regras con ferem às idéias que nos apresentam uma força superior à que acom panha qualquer outra idéia Todos sabem que existe uma maneira indi reta de se insinuar um elogio ou uma condenação bem menos ofensiva que a lisonja ou censura abertas a uma pessoa Embora possamos co municar nossos sentimentos por meio dessas insinuações dissimu ladas e fazer com que sejam conhecidos com a mesma certeza que 1 83 Tratado da natureza humana se os revelássemos abertamente é certo que sua influência não será tão forte e poderosa Aquele que me fustiga com sátiras veladas não suscita em mim uma indignação tão grande quanto se me dissesse diretamente que sou um imbecil presunçoso embora eu entenda o que quer dizer exatamente como se o dissesse Essa diferença deve ser atribuída à influência das regras gerais 14 Quer uma pessoa me insulte abertamente quer insinue soler temente seu desprezo não é de imediato que percebo seu sentimen to ou opinião só me torno sensível a estes por meio de signos isto é por seus efeitos A única diferença entre esses dois casos consiste portanto em que quando revela francamente seus sentimentos essa pessoa faz uso de signos gerais e universais e quando os sugere dissi muladamente emprega signos mais singulares e menos comuns O efeito dessa circunstância é que a imaginação ao passar da impres são presente à idéia ausente realiza a transição com maior facilidade e conseqüentemente concebe o objeto com uma força maior no caso em que a conexão é comum e universal do que naquele em que essa conexão é mais rara e particular Assim podemos observar que quan do declaramos abertamente nossos sentimentos dizse que tiramos a máscara ao passo que quando apenas insinuamos disfarçadamente nossas opiniões dizse que as velamos A diferença entre uma idéia produzida por uma conexão geral e a originada em uma conexão par ticular se compara aqui à diferença entre uma impressão e uma idéia Essa diferença na imaginação tem um efeito correspondente sobre as paixões e esse efeito se amplia graças a outra circunstância Uma insinuação velada de raiva ou desprezo mostra que ainda temos al guma consideração pela pessoa visada e evitamos atacála diretamen te Isso torna uma sátira velada menos desagradável mas o princípio de que depende é o mesmo Pois se uma idéia não fosse mais fraca quando apenas insinuada nunca consideraríamos um maior sinal de respeito agir dessa maneira de preferência à outra 15 Às vezes a grosseria é menos desagradável que a sátira sutil por que proporcionandonos uma boa razão para condenar e desprezar 1 84 Livro 1 Parte 3 Seção 1 3 a pessoa que nos atacou de certa forma nos vinga do insulto no mo mento mesmo em que este foi cometido Mas também esse fenôme no depende do mesmo princípio Afinal por que condenamos toda linguagem grosseira e insultuosa senão porque a consideramos con trária à boa educação e ao respeito humano E por que é contrária a estes senão por ofender mais que uma crítica delicada As regras da boa educação condenam tudo que seja abertamente ofensivo e cause um sensível malestar e embaraço àqueles com quem falamos Uma vez estabelecidas essas regras a linguagem insultuosa passa a ser universalmente condenada e dói menos pois sua rudeza e incivili dade tornam desprezível quem a empregou Ela se torna menos de sagradável apenas porque originalmente o é mais e é mais desagra dável porque permite uma inferência por regras gerais e comuns que são palpáveis e inegáveis 16 A essa explicação das diferentes influências da lisonja ou crítica aberta e velada acrescentarei a consideração de um fenômeno aná logo Há vários preceitos relativos à honra tanto de homens como de mulheres cuja violação o mundo jamais perdoa quando aberta e franca mas tende a deixar passar quando as aparências são salvas e a transgressão é secreta e velada Mesmo aqueles que sabem com cer teza que a falta foi cometida perdoamna mais facilmente quando as provas parecem em certa medida oblíquas e equívocas do que quando são diretas e inegáveis A mesma idéia está presente nos dois casos e para falar corretamente é aceita da mesma forma pelo juízo mas sua influência é diferente em razão da maneira diferente como se apresenta 17 Ora se compararmos as violações abertas e veladas aos códigos de honra veremos que a diferença entre os dois casos consiste em que no primeiro o signo do qual inferimos a ação condenável é úni co sendo suficiente para sozinho fundamentar nosso raciocínio e julgamento no segundo ao contrário os signos são numerosos e são pouco ou nada decisivos quando se apresentam isolados e sem a companhia de muitas circunstâncias minúsculas e quase impercep tíveis A verdade é que qualquer raciocínio é sempre tão mais con 1 85 Tratado da natureza humana vincente quanto mais simples e unificado se mostra ao olhar e quanto menos esforço exige da imaginação para reunir todas as suas partes e passar delas para a idéia correlata que forma a conclusão O traba lho do pensamento perturba o progresso regular dos sentimentos como observaremos em breve1 1 A idéia não nos toca com a mesma vividez conseqüentemente não tem tanta influência sobre as paixões e a imaginação 18 Podemos justificar com base nos mesmos princípios estas ob servações do CARDEAL DE RETZ que há muitas coisas sobre as quais o mundo deseja ser iludido e que é mais fácil se desculpar uma pessoa por agir do que por falar de maneira contrária ao decoro de sua profissão e cará ter Uma falta expressa em palavras costuma ser mais franca e dis tinta que uma falta manifesta nas ações pois estas admitem várias desculpas e atenuantes e não revelam tão claramente as intenções e opiniões do agente 19 Assim levandose em conta tudo o que foi dito vemos que to dos os tipos de opiniões ou juízos que não chegam a formar um co nhecimento derivam exclusivamente da força e vividez da percepção e que essas qualidades constituem na mente aquilo que denomina mos CRENÇA na existência de um objeto Essa força e essa vividez são mais manifestas na memória por isso nossa confiança na vera cidade dessa faculdade é a maior que se possa imaginar igualando se em muitos aspectos à certeza de uma demonstração O grau se guinte dessas qualidades é o que deriva da relação de causa e efeito e também é bastante elevado sobretudo quando a experiência mos tra que a conjunção é perfeitamente constante e quando o objeto que se apresenta a nós se assemelha exatamente àqueles de que tivemos experiência Abaixo desse grau de evidência há porém muitos ou tros que exercem uma influência sobre as paixões e a imaginação proporcionalmente ao grau de força e vividez que comunicam à idéia 1 1 Parte 4 Seção 1 Cardinal de Retz 16131679 O trecho citado encontrase em Mémoires du Cardinal de Retz 3 NT 1 86 Livro 1 Parte 3 Seção 1 3 É por hábito que fazemos a transição da causa ao efeito e é de algu ma impressão presente que retiramos a vividez que transmitimos para a idéia correlata Mas quando o número de casos observados não é suficiente para produzir um hábito forte ou quando esses casos são contrários uns aos outros ou a semelhança não é exata ou a im pressão presente é fraca e obscura ou a experiência foi em certa me dida apagada da memória ou a conexão depende de uma longa ca deia de objetos ou a inferência deriva de regras gerais e não obstante não é conforme a elas em todos esses casos a evidência diminui em virtude da diminuição da força e intensidade da idéia Tal é portanto a natureza do juízo e da probabilidade O que confere autoridade a esse sistema é sobretudo além dos argumentos indubitáveis em que se fundam todas as suas partes a concordância entre essas partes e a necessidade de cada uma para explicar as outras A crença que acompanha nossa memória tem a mesma natureza que a derivada de nossos juízos Não há nenhuma diferença entre o juízo resultante de uma conexão constante e uni forme de causas e efeitos e o que depende de uma conexão descon tínua e incerta De fato é evidente que sempre que a mente precisa tomar alguma decisão com base em experiências contrárias ela de início se vê internamente dividida inclinandose um pouco para cada lado em proporção ao número de experiências vistas ou recordadas Esse combate finalmente se decide em favor do lado em que obser vamos o maior número dessas experiências mas a força de sua evi dência sofre um decréscimo correspondente ao número de experiên cias contrárias Cada possibilidade de que se compõe a probabilidade age separadamente sobre a imaginação e é o conjunto mais amplo de possibilidades que finalmente prevalece com uma força proporcio nal à sua superioridade Todos esses fenômenos levam diretamente ao sistema anterior É impossível que qualquer outro sistema forne ça uma explicação satisfatória e consistente desses fenômenos Se não considerarmos esses juízos como efeitos do costume sobre a ima ginação mergulharemos em perpétuas contradições e absurdos 1 8 7 Tratado da natureza humana Seção 1 4 Da idéia de conexão necessária 1 Tendo assim explicado a maneira como em nossos raciocínios ultra passamos nossas impressões imediatas e concluímos que tais causas particulares têm de ter tais efeitos particulares devemos agora voltar sobre nossos passos para examinar a questão12 que primeiro levantamos e que dei xamos de lado ao longo de nosso caminho em que consiste nossa idéia de necessidade quando dizemos que dois objetos estão necessariamente conectados um com o outro Sobre este ponto repito o que tive ocasião de observar diversas vezes Se afirmamos que realmente temos uma idéia de necessidade então devemos encontrar alguma impressão que a origine porque não temos nenhuma idéia que não seja derivada de uma impressão Para isso considero em que objetos comumente se supõe que existe necessidade e como vejo que esta é sempre atribuí da a causas e efeitos dirijo meu olhar para dois objetos que suposta mente mantêm tal relação entre si examinandoos em todas as situa ções em que podem se encontrar Imediatamente percebo que eles são contíguos no tempo e no espaço e que o objeto que chamamos de causa antecede o que chamamos de efeito Em nenhum caso isolado sou capaz de ir além disso sendome impossível descobrir uma ter ceira relação entre esses objetos Por essa razão amplio minha visão para abarcar vários casos de objetos semelhantes que existem sem pre em relações semelhantes de contigüidade e sucessão À primeira vista isso parece servir muito pouco a meu objetivo A reflexão so bre diversos casos apenas repete os mesmos objetos e por isso nunca pode gerar uma nova idéia Contudo levando adiante minha investi gação vejo que a repetição não é igual em todos os aspectos mas pro duz uma nova impressão e desse modo produz também a idéia que estou examinando Pois após uma repetição freqüente descubro que quando um dos objetos aparece o costume determina a mente a 12 Seção 2 1 88 Livro 1 Parte 3 Seção 1 4 considerar aquele que usualmente o acompanha e a considerálo de um modo mais intenso em virtude de sua relação com o primeiro ob jeto Portanto é essa impressão ou determinação que me fornece a idéia de necessidade 2 Não tenho dúvida de que tais conclusões serão aceitas imedia tamente e sem nenhuma dificuldade por serem deduções evidentes de princípios que já estabelecemos e que empregamos várias vezes em nossos raciocínios Essa evidência tanto dos primeiros princípios como das deduções pode nos conduzir despercebidamente para a con clusão fazendonos imaginar que ela não contém nada de extraordi nário ou digno de nossa curiosidade Mas embora tal inadvertência possa facilitar a aceitação desse raciocínio fará também que seja mais facilmente esquecido Por essa razão creio que devo advertir que aca bo de examinar uma das questões mais sublimes da filosofia a sa ber a questão concernente ao poder e à eficácia das causas e a qual pare ce ser objeto de tamanho interesse por parte de todas as ciências Essa advertência naturalmente despertará a atenção do leitor e o fará solicitar uma explicação mais completa de minha doutrina bem como dos argumentos em que está fundada Esse pedido é tão razoável que não posso me recusar a atendêlo sobretudo por ter esperança de que esses princípios quanto mais forem examinados mais força e evidência irão adquirir 3 Nenhuma questão por sua importância e dificuldade causou mais discussões entre os filósofos antigos e modernos que esta refe rente à eficácia das causas ou seja à qualidade que faz com que sejam seguidas por seus efeitos Mas pareceme que antes de entrar nessas discussões não teria sido mal se eles houvessem examinado que idéia temos dessa eficácia a qual é o objeto da controvérsia É especialmente isso que vejo faltar em seus raciocínios e que buscarei aqui remediar 4 Começo observando que os termos eficácia ação poder força energia necessidade conexão e qualidade produtiva são quase sinôni mos e por isso é absurdo empregar qualquer um deles para definir o resto Com essa observação rejeitamos de uma só vez todas as 1 89 Tratado da natureza humana definições comuns que os filósofos dão para poder e eficácia Em vez de procurar a idéia nessas definições devemos procurála nas impressões de que originalmente deriva Se for uma idéia composta deverá resultar de impressões compostas Se for simples de impres sões simples 5 Creio que a explicação mais geral e mais popular dessa questão é dizer que 13 vendo pela experiência que existem diversas produções novas na matéria tais como os movimentos e as variações dos corpos e concluindo que tem de haver em algum lugar um poder capaz de as produzir chegamos finalmente por esse raciocínio à idéia de poder e eficácia Mas para nos convencermos de que essa explicação é mais popular que filosófica basta refletirmos sobre dois princípios bastante óbvios Primeiro que a razão por si só jamais pode gerar uma idéia original e segundo que a razão enquanto distinta da experiência ja mais pode nos fazer concluir que uma causa ou qualidade produtiva é absolutamente necessária para todo começo de existência Ambas as considerações já foram suficientemente explicadas e por isso não insistiremos sobre elas agora 6 Apenas inferirei que como a razão jamais pode dar origem à idéia de eficácia tal idéia tem que ser derivada da experiência e de alguns exemplos particulares dessa eficácia que penetram na mente pelos canais comuns da sensação ou da reflexão As idéias sempre repre sentam seus objetos ou impressões e reciprocamente para dar ori gem a uma idéia sempre é necessário um objeto Portanto se alega mos possuir uma idéia legítima dessa eficácia devemos apresentar algum exemplo em que a eficácia se mostre à mente de forma clara e em que suas operações sejam evidentes à nossa consciência ou sen sação Se nos negarmos a isso estaremos reconhecendo que a idéia é impossível e imaginária Pois o princípio das idéias inatas o único que poderia nos livrar desse dilema já foi refutado e agora é quase 13 Ver Sr Locke capítulo sobre o poder An Essay concerning human understanding 221 NT 1 90 Livro 1 Parte 3 Seção 1 4 universalmente rejeitado no mundo erudito Nossa tarefa presente portanto deve ser encontrar alguma produção natural em que a ope ração e a eficácia de uma causa possam ser claramente concebidas e compreendidas pela mente sem risco de obscuridade ou engano Nesta pesquisa sentimonos muito pouco encorajados pela pro digiosa diversidade de opiniões emitidas pelos filósofos que alegaram explicar a força e energia secreta das causas14 Alguns afirmam que os corpos agem por sua forma substancial outros que agem por seus acidentes ou qualidades muitos por sua matéria e forma alguns ain da por sua forma e acidentes e outros por certas virtudes e faculda des distintas de tudo isso Ademais todas essas opiniões se mistu ram e se transformam de mil maneiras diferentes o que nos dá um forte motivo para suspeitar que nenhuma delas possui qualquer so lidez ou evidência e que a suposição de que haveria uma eficácia em alguma das qualidades conhecidas da matéria é inteiramente infun dada Essa suspeita fica mais forte quando consideramos que esses princípios formas substanciais acidentes e faculdades não consti tuem na realidade nenhuma das propriedades conhecidas dos cor pos sendo antes completamente ininteligíveis e inexplicáveis Por que é evidente que os filósofos jamais teriam recorrido a princípios tão obscuros e incertos se houvessem encontrado princípios claros e inteligíveis que pudessem têlos satisfeito sobretudo numa ques tão como esta que deve ser objeto do mais simples entendimento senão dos sentidos De tudo isso podemos concluir que é impossí vel mostrar em um só exemplo que seja o princípio em que se situa a força e o poder ativo de uma causa e que o entendimento mais refinado e o mais comum se vêem igualmente perdidos a esse res peito Se alguém pensa que cabe refutar tal asserção não precisa se dar ao trabalho de inventar longos raciocínios basta que nos mostre o exemplo de uma causa em que possamos descobrir o poder ou 14 Ver Padre Malebranche Livro VI Parte 2 Capítulo 3 e os esclarecimentos correspondentes La Recherche de la vérité XVm Éclaircissement NT 1 9 1 Tratado da natureza humana princípio operador Vemonos com freqüência obrigados a fazer uso desse tipo de desafio por ser praticamente o único meio de provar uma negação em filosofia 8 O fraco sucesso obtido por todas as tentativas de determinar esse poder finalmente obrigou os filósofos a concluir que a força e eficá cia última da natureza nos é inteiramente desconhecida e que é em vão que a buscamos nas qualidades conhecidas da matéria Sobre essa conclusão os filósofos são praticamente unânimes apenas quanto à inferência que dela extraem é que descobrem diferenças entre suas opiniões De fato alguns deles em particular os cartesianos havendo estabelecido como um princípio que possuímos um perfeito conhe cimento da essência da matéria inferiram muito naturalmente que esta não tem nenhuma eficácia e é impossível que por si só comu nique movimento ou produza qualquer dos efeitos que a ela atribuí mos Como a essência da matéria consiste na extensão e como a ex tensão não implica um movimento em ato mas apenas a mobilidade concluem que a energia que produz o movimento não pode estar na extensão 9 Essa conclusão levaos a uma outra que vêem como absoluta mente inevitável A matéria dizem eles é em si mesma inteiramente inativa e desprovida de qualquer poder pelo qual pudesse produzir conti nuar ou comunicar movimento Mas como esses efeitos são evidentes para nossos sentidos e como o poder que os produz tem de estar em algum lugar ele deve residir em DEUS esse ser divino que contém em sua natureza toda excelência e perfeição Deus portanto é o primei ro motor do universo e não apenas criou a matéria e deu a ela seu im pulso original mas também por um exercício contínuo de sua onipo tência sustenta sua existência conferindolhe sucessivamente todos os movimentos configurações e qualidades de que é dotada 10 Tal opinião é certamente muito curiosa e bem merece nossa aten ção mas se refletirmos por um momento sobre o motivo que nos levou a atentar para ela perceberemos que seria supérfluo examinála 1 92 Livro 1 Parte 3 Seção 1 4 aqui Estabelecemos como um princípio que como todas as idéias são derivadas de impressões ou seja de percepções anteriores é impos sível que tenhamos qualquer idéia de poder e eficácia a menos que se possa mostrar algum caso em que se perceba esse poder em exercício Ora como casos assim jamais podem ser descobertos nos corpos os cartesianos com base em seu princípio das idéias inatas recorreram a um espírito ou àivindade suprema a quem consideram como o único ser ativo no universo e como a causa imediata de toda alteração na ma téria Mas uma vez aceito que o princípio das idéias inatas é falso se guese que a suposição de uma divindade de nada nos serve para dar conta daquela idéia de poder ativo que em vão procuramos em todos os objetos que se apresentam a nossos sentidos ou de que estamos internamente conscientes em nossa própria mente Pois se toda idéia é derivada de uma impressão a idéia de Deus procede da mesma ori gem e se nenhuma impressão de sensação ou de reflexão implica uma força ou eficácia é igualmente impossível descobrir ou sequer imagi nar um tal princípio ativo em Deus Como esses filósofos portanto concluíram que a matéria não pode ser dotada de nenhum princípio eficiente porque é impossível descobrir nela um tal princípio o mes mo raciocínio deveria determinar que o excluíssem do ser supremo Ou se consideram tal opinião absurda e ímpia como realmente o é direi como podem evitála concluindo desde o início que não possuem uma idéia adequada de poder ou eficácia em nenhum objeto pois nem no corpo nem no espírito nem nas naturezas superiores nem nas in feriores serão capazes de descobrir um só exemplo desse poder A mesma conclusão se segue inevitavelmente da hipótese dos que sustentam a eficácia das causas segundas e atribuem à matéria um poder e energia derivados mas reais Como admitem que essa ener gia não se encontra em nenhuma das qualidades conhecidas da maté ria permanece a dificuldade a respeito da origem de sua idéia Se real mente temos uma idéia de poder podemos atribuir poder a uma qualidade desconhecida Mas como é impossível que essa idéia seja de rivada de tal qualidade e como não há nada nas qualidades conhecidas 1 93 Tratado da natureza humana que a possa produzir seguese que estamos enganando a nós mesmos quando imaginamos possuir urna idéia dessa espécie da maneira corno normalmente a entendemos Todas as idéias são derivadas de impressões e as representam Jamais ternos nenhuma impressão que contenha poder ou eficácia Portanto jamais ternos nenhuma idéia de poder 12 Alguns afirmaram que sentimos urna energia ou poder em nossa própria mente e que tendo assim adquirido a idéia de poder trans ferimos essa qualidade à matéria na qual não somos capazes de des cobrila imediatamente Os movimentos de nosso corpo assim corno os pensamentos e sentimentos de nossa mente dizem obedecem à vontade não precisamos ir além disso para obter urna noção corre ta de força ou poder Mas para nos convencermos de quão falacioso é esse raciocínio basta considerarmos que como a vontade é aqui tida corno urna causa ela não tem com seu efeito uma conexão mais manifesta que aquela que qualquer causa material tem com seu pró prio efeito Longe de se perceber a conexão entre um ato de volição e um movimento do corpo o que se vê é que nenhum efeito é mais inexplicável dados os poderes e a essência do pensamento e da ma téria Tampouco o domínio da vontade sobre nossa mente é mais in teligível Aqui o efeito é distinguível e separável da causa e não po deria ser previsto sem a experiência de sua conjunção constante Ternos o comando de nossa mente até um certo grau mas além des te perdemos todo domínio sobre ela E sem consultarmos a experiên cia é evidentemente impossível fixar qualquer limite preciso para nossa autoridade Em suma as ações da mente são sob esse aspecto iguais às da matéria Tudo que percebemos é sua conjunção cons tante e nosso raciocínio jamais pode ir além disso Nenhuma impres são interna possui uma energia evidente não mais que os objetos externos Portanto já que os filósofos admitem que a matéria age por meio de urna força desconhecida em vão esperaríamos chegar a uma idéia de força consultando nossa própria mente Ver nota de Hume à p671 1 94 Livro 1 Parte 3 Seção 1 4 13 Estabelecemos como um princípio certo que as idéias gerais ou abstratas não são senão idéias individuais vistas de um certo ângu lo e que ao refletirmos sobre um objeto é tão impossível excluir de nosso pensamento todos os graus particulares de quantidade e qualidade quanto o é excluílos da natureza real das coisas Se pos suímos portanto uma idéia de poder em geral também temos que ser capazes de conceber alguma espécie particular desse poder E como o poder não pode subsistir por si só sendo sempre conside rado um atributo de algum ser ou existência devemos ser capazes de situar esse poder em algum ser particular e de conceber esse ser como dotado de uma força e energia reais que fazem com que tal efeito particular resulte necessariamente de sua operação Devemos conceber distinta e particularmente a conexão entre a causa e o efeito devemos ser capazes de afirmar pela simples observação de um de les que deve ser seguido ou precedido pelo outro Essa é a maneira correta de se conceber um poder particular em um corpo particular E como uma idéia geral é impossível sem uma idéia individual é certo que quando esta última é impossível a primeira jamais poderá exis tir Ora nada é mais evidente que o fato de que a mente humana não é capaz de formar uma tal idéia de dois objetos de modo a conceber uma conexão entre eles ou a compreender distintamente o poder ou eficácia que os une Tal conexão equivaleria a uma demonstração e implicaria a absoluta impossibilidade de que um objeto não se seguis se ou fosse concebido como não se seguindo de outro e esse tipo de conexão já foi rejeitado em todos os casos Se alguém tem uma opinião contrária e pensa que adquiriu uma noção de poder em al gum objeto particular peçolhe que me aponte esse objeto Mas até que eu encontre tal pessoa e não tenho nenhuma esperança de que isso venha a acontecer não posso deixar de concluir que visto ja mais sermos capazes de conceber distintamente como é possível que um poder particular resida em um objeto particular estamos enga nando a nós mesmos quando imaginamos ser capazes de formar uma tal idéia geral 1 95 Tratado da natureza humana 14 Assim de tudo o que foi dito podemos inferir que quando fala mos de um ser qualquer seja de natureza superior seja inferior e dizemos que possui um poder ou força proporcional a um certo efei to quando falamos de uma conexão necessária entre objetos e su pomos que essa conexão depende de uma eficácia ou energia de que algum desses objetos seria dotado na verdade nenhuma dessas expressões assim aplicadas possui um sentido distinto ao em pregálas estamos apenas utilizando palavras comuns sem ter ne nhuma idéia clara e determinada Mas como o mais provável nesse caso é não que essas expressões nunca tenham tido nenhum sen tido e sim que elas tenham perdido seu sentido verdadeiro por te rem sido erroneamente aplicadas convém fazer um novo exame desse tema para ver se podemos descobrir a natureza e a origem das idéias que a elas vinculamos 15 Suponhamos que se apresentem a nós dois objetos dos quais um é a causa e o outro o efeito É claro que pela simples observação de um ou de ambos os objetos jamais perceberemos o laço pelo qual estão unidos nem seremos capazes de afirmar com certeza que há uma conexão entre eles Portanto não é partindo de um exemplo sin gular que chegamos à idéia de causa e efeito de uma conexão neces sária de poder de força de energia e de eficácia Se jamais víssemos nada além de conjunções particulares de objetos inteiramente dife rentes uns dos outros jamais seríamos capazes de formar tais idéias 16 Mais ainda Supondose que observemos diversos exemplos em que os mesmos objetos estão sempre em conjunção uns com os ou tros imediatamente conceberemos uma conexão entre eles e come çaremos a fazer uma inferência de um ao outro Essa multiplicidade de casos semelhantes constitui portanto a essência mesma do poder ou conexão sendo a fonte de que nasce sua idéia Portanto para com preendermos tal idéia temos de considerar essa multiplicidade Isso é tudo que peço para encontrar a solução dessa dificuldade que há tanto nos vem aturdindo Eis meu raciocínio A repetição de casos perfeitamente similares não pode nunca por si só gerar uma idéia 1 96 Livro 1 Parte 3 Seção 14 original que seja diferente da que se encontra em um caso particular como já observei e como se segue de modo evidente de nosso prin cípio fundamental que todas as idéias são copiadas de impressões Por tanto uma vez que a idéia de poder é uma nova idéia original que não se encontra em nenhum caso singular e que não obstante sur ge da repetição de diversos casos seguese que a repetição por si só não tem esse efeito devendo antes revelar ou produzir alguma coisa nova que seja a fonte dessa idéia Se a repetição não revelasse nem produzisse nada de novo ela poderia multiplicar nossas idéias mas estas não sofreriam nenhum acréscimo em relação ao que são quando da observação de um caso isolado Por isso qualquer acréscimo como a idéia de poder ou de conexão oriundo da multiplicidade de casos similares é copiado de determinados efeitos da multiplicidade e será compreendido perfeitamente quando compreendermos esses efeitos Se encontrarmos alguma coisa nova revelada ou produzida pela re petição é aí que devemos situar o poder não devemos nunca procurá lo em outro objeto 17 Mas é evidente em primeiro lugar que a repetição de objetos se melhantes em relações semelhantes de sucessão e contigüidade não revela nada de novo nesses objetos pois como já provamos 15 não podemos extrair dessa repetição nenhuma inferência nem tomála como objeto de nossos raciocínios sejam eles demonstrativos se jam prováveis Mais ainda supondose que pudéssemos fazer uma inferência isso não teria nenhuma importância neste caso pois ne nhum tipo de raciocínio pode originar uma idéia nova como essa idéia de poder ao contrário sempre que raciocinamos temos de possuir previamente idéias claras que possam ser os objetos de nosso raciocí nio A concepção sempre precede o entendimento quando ela é obscura ele é incerto e quando ela está ausente ele tampouco pode existir 18 Em segundo lugar é certo que essa repetição de objetos simila res em situações similares não produz nada nem nesses objetos nem 15 Seção 6 1 9 7 Tratado da natureza humana nos corpos externos Pois concordarseá imediatamente que os di versos casos da conjunção de causas e efeitos semelhantes são em si mesmos inteiramente independentes e que a comunicação de movi mento que vejo agora resultar do choque de duas bolas de bilhar é totalmente distinta daquela que vi resultar de um impulso semelhante há um ano Esses impulsos não exercem nenhuma influência uns sobre os outros São inteiramente separados pelo tempo e pelo espa ço e um poderia ter existido e comunicado movimento mesmo que o outro nunca tivesse existido 19 Portanto nada de novo é revelado ou produzido em nenhum ob jeto por sua conjunção constante com outro ou pela semelhança ininterrupta de suas relações de sucessão e contigüidade Mas é des sa semelhança que provêm as idéias de necessidade poder e eficácia Tais idéias portanto não representam nada que pertença ou possa vir a pertencer aos objetos que estão em conjunção constante Este argumento se mostrará absolutamente irrefutável seja qual for a pers pectiva pela qual o examinemos Casos similares continuam sendo a fonte inicial de nossa idéia de poder ou necessidade mas ao mesmo tempo sua similaridade não faz com que tenham nenhuma influên cia uns sobre os outros ou sobre objetos externos Portanto deve mos buscar a origem dessa idéia em algum outro canto 20 Embora os diversos casos semelhantes que originam a idéia de po der não se influenciem mutuamente e jamais possam produzir no ob jeto uma nova qualidade que pudesse ser o modelo dessa idéia a obser vação dessa semelhança produz uma nova impressão na mente e é essa impressão que é seu modelo real Após termos observado a semelhan ça em um número suficiente de casos sentimos de imediato uma de terminação da mente a passar de um objeto àquele que usualmente o acompanha e a concebêlo mais intensamente em função dessa rela ção Tal determinação é o único efeito da semelhança e portanto deve ser o mesmo que o poder ou a eficácia cuja idéia é derivada da seme lhança Os diversos casos de conjunções semelhantes nos conduzem à noção de poder e necessidade Esses casos são em si mesmos total mente distintos uns dos outros e não têm nenhuma união a não ser 1 98 Livro 1 Parte 3 Seção 1 4 na mente que os observa e que reúne suas idéias A necessidade por tanto é o efeito dessa observação e é apenas uma impressão interna da mente uma determinação a levar nossos pensamentos de um obje to a outro Se não a considerarmos desse modo nunca poderemos ter dela a mais distante noção nem seremos capazes de atribuíla seja aos objetos externos seja aos internos ao espírito ou ao corpo às causas ou aos efeitos 21 A conexão necessária entre causas e efeitos é o fundamento de nossa inferência daquelas a estes ou reciprocamente O fundamen to de nossa inferência é a transição resultante da união habitual A conexão necessária e a transição são portanto a mesma coisa 22 A idéia de necessidade surge de alguma impressão Nenhuma im pressão transmitida por nossos sentidos é capaz de gerar tal idéia Ela deve portanto ser derivada de alguma impressão interna ou seja de uma impressão de reflexão A única impressão interna com algu ma relação com aquilo de que estamos tratando é a propensão pro duzida pelo costume a passar de um objeto à idéia daquele que o acompanha usualmente Essa é portanto a essência da necessida de Em suma a necessidade é algo que existe na mente e não nos objetos E jamais poderemos formar a menor idéia dela se a conside rarmos uma qualidade dos corpos Ou bem não temos nenhuma idéia de necessidade ou então a necessidade não é senão a determinação do pensamento a passar das causas aos efeitos e dos efeitos às causas de acordo com a experiência de sua união 23 Assim como a necessidade que faz com que dois multiplicado por dois seja igual a quatro ou que a soma dos três ângulos de um triângulo seja igual a dois retos encontrase unicamente no ato do entendimen to pelo qual consideramos e comparamos essas idéias assim também a necessidade ou poder que une causas e efeitos está na determinação da mente a passar daquelas a estes ou reciprocamente A eficácia ou energia das causas não se situa nem nas próprias causas nem em Deus nem na concorrência desses dois princípios Pertence inteiramente à alma que considera a união de dois ou mais objetos em todos os 1 99 Tratado da natureza humana casos passados É aqui que se encontra o poder real das causas jun tamente com sua conexão e necessidade 24 Reconheço que de todos os paradoxos que já apresentei ou que terei ocasião de apresentar no decorrer deste tratado este é o mais radical e somente a força de uma prova e de um raciocínio sólidos po dem me dar esperanças de que um dia será aceito superando os pre conceitos inveterados da humanidade Antes de admitirmos essa doutrina quantas vezes não devemos repetir para nós mesmos que a mera visão de dois objetos ou ações quaisquer mesmo relacio nados jamais pode nos dar a idéia de um poder ou de uma conexão entre eles que essa idéia nasce da repetição de sua união que a repe tição não revela nem causa nada nos objetos influenciando apenas a mente mediante a transição habitual por ela produzida que essa transição habitual é portanto a mesma coisa que o poder e a ne cessidade os quais conseqüentemente são qualidades das percep ções e não dos objetos e são sentidos internamente pela alma em lugar de percebidos externamente nos corpos O espanto costuma acompanhar tudo que é extraordinário e esse espanto se transfor ma imediatamente no mais alto grau de admiração ou desprezo con forme aprovemos ou desaprovemos o objeto Tenho um grande re ceio de que embora o raciocínio anterior me pareça o mais conciso e decisivo que se possa imaginar os leitores em geral vejam prevale cer a inclinação da mente que lhes dará uma predisposição contra a presente doutrina 25 Essa inclinação contrária se explica facilmente É comum obser varmos que a mente tem uma grande propensão a se espalhar pelos objetos externos ligando a eles todas as impressões internas que eles ocasionam e as quais sempre aparecem ao mesmo tempo que esses objetos se manifestam aos sentidos Assim como observamos que certos sons e odores sempre acompanham determinados objetos visí veis naturalmente imaginamos uma conjunção também espacial entre os objetos e as qualidades embora essas qualidades sejam de uma natureza que não admite tal conjunção e na realidade não existam 2 00 Livro 1 Parte 3 Seção 14 em nenhum lugar Falaremos mais sobre esse assunto adiante16 Por ora basta notar que a mesma propensão é a razão por que supomos que a necessidade e o poder se encontram nos objetos que observa mos e não na mente que os observa muito embora não nos seja possível formar a menor idéia dessa qualidade quando não a toma mos como a determinação da mente a passar da idéia de um objeto à idéia daquele que o acompanha usualmente Mas embora essa seja a única explicação razoável que se pode fornecer da necessidade a noção contrária está tão enraizada na men te em razão dos princípios acima mencionados que não duvido que muitos tratarão minhas idéias como extravagantes e ridículas O quê A eficácia das causas está na determinação da mente Como se as causas não operassem de modo inteiramente independente da men te e não fossem continuar sua operação mesmo que não existisse nenhuma mente para as contemplar ou para raciocinar a seu respei to O pensamento pode bem depender das causas para sua operação mas não as causas do pensamento Isso é inverter a ordem da natu reza tomando como secundário o que na realidade é primário Para cada operação existe um poder proporcional e esse poder tem de estar situado no corpo que opera Se retiramos o poder de uma causa te mos de atribuílo a outra Mas retirálo de todas as causas e atribuí lo a um ser que não está de modo algum relacionado com a causa ou com o efeito senão porque os percebe é um absurdo grosseiro con trário aos princípios mais seguros da razão humana A tais argumentos só posso responder que este caso se parece muito com o de um cego que pretendesse encontrar um grande nú mero de absurdos na suposição de que a cor escarlate não é igual ao som de um trompete ou de que a luz não é igual à solidez Se real mente não temos nenhuma idéia de um poder ou eficácia em nenhum objeto nem de uma conexão real entre causas e efeitos de pouco ser virá provar que uma eficácia é necessária em todas as operações Não 16 Parte 4 Seção 5 2 0 1 Tratado da natureza humana compreendemos o sentido de nossas próprias palavras ao falar as sim Sem o saber confundimos idéias que são inteiramente distintas De fato estou pronto a admitir que pode haver várias qualidades tanto nos objetos materiais como nos imateriais que desconhecemos com pletamente e se queremos chamálas de poder ou eficácia isso pouco importa para o mundo Mas quando em vez de nos referirmos a es sas qualidades desconhecidas fazemos que os termos poder e eficá cia signifiquem alguma coisa de que temos uma idéia clara mas é in compatível com os objetos aos quais a aplicamos a obscuridade e o erro começam a se impor e somos desencaminhados por uma fal sa filosofia É o que ocorre quando transferimos a determinação do pensamento para os objetos externos e supomos que existe entre estes uma conexão real e inteligível pois essa é uma qualidade que só pode pertencer à mente que os considera 28 Quanto à afirmação de que as operações da natureza são inde pendentes de nosso pensamento e raciocínio eu o admito Foi assim que observei que os objetos mantêm entre si relações de contigüidade e sucessão que podemos observar vários exemplos de objetos seme lhantes com relações semelhantes e que tudo isso independe das ope rações do entendimento e as antecede Quando vamos além disso porém atribuindo um poder ou conexão necessária a esses objetos afirmo que devemos extrair tal idéia daquilo que sentimos internamente quando os contemplamos já que isso é algo que nunca poderíamos observar neles E estou tão convencido disso que estou disposto a tomar meu raciocínio presente como um exemplo do que acabo de dizer em virtude de uma sutileza que não será difícil compreender 29 Quando um objeto se apresenta a nós ele imediatamente traz à mente uma idéia vívida daquele objeto que geralmente o acompanha e essa determinação da mente forma a conexão necessária entre es ses objetos Mas quando deslocamos o ponto de vista dos objetos para as percepções a impressão deve ser considerada a causa e a idéia ví vida o efeito e sua conexão necessária é essa nova determinação que sentimos a passar da idéia de um à do outro O princípio unificador 2 02 Livro 1 Parte 3 Seção 1 4 de nossas percepções internas é tão ininteligível quanto o dos obje tos externos e nos é conhecido exclusivamente pela experiência Ora a natureza e os efeitos da experiência já foram suficientemente exa minados e explicados Ela jamais nos deixa entrever a estrutura in terna ou o princípio de operação dos objetos mas apenas acostuma a mente a passar de um objeto ao outro 30 Este é o momento de reunir as diferentes partes deste raciocínio e com elas compor uma definição exata da relação de causa e efeito tema da presente investigação A ordem que adotamos examinando primeiro nossa inferência baseada na relação para depois explicar a própria relação seria indesculpável se tivesse sido possível seguir um método diferente Mas como a natureza da relação depende em tão grande medida da natureza da inferência vimonos obrigados a pro ceder dessa maneira aparentemente às avessas empregando os ter mos antes de sermos capazes de definilos com exatidão ou de deter minar seu sentido Corrigiremos agora essa falta apresentando uma definição precisa de causa e efeito 3 1 Podemos dar duas definições dessa relação que diferem apenas por apresentarem aspectos diferentes do mesmo objeto fazendo com que o consideremos seja como uma relação filosófica seja como uma relação natural como uma comparação entre duas idéias ou como uma associação entre elas Podemos definir uma CAUSA como Um objeto anterior e contíguo a outro tal que todos os objetos semelhan tes ao primeiro mantêm relações semelhantes de anterioridade e con tigüidade com os objetos semelhantes ao último Se tal definição for considerada deficiente porque extraída de objetos estranhos à causa podemos substituíla por esta outra Uma CAUSA é um objeto ante rior e contíguo a outro e unido a ele de tal forma que a idéia de um determina a mente a formar a idéia do outro e a impressão de um a formar uma idéia mais vívida do outro Se também essa definição for rejeitada pela mesma razão o único remédio que vejo é que as pessoas que se mostrarem tão exigentes a substituam por uma definição mais exata De minha parte devo confessar que sou incapaz de realizar tal 203 Tratado da natureza humana coisa Quando examino com a maior precisão possível objetos comumente denominados causas e efeitos o que vejo se considero um caso isolado é que um objeto é anterior e contíguo ao outro e se amplio minha visão para compreender vários casos constato tãoso mente que objetos semelhantes estão sempre situados em relações semelhantes de sucessão e contigüidade Novamente quando con sidero a influência dessa conjunção constante percebo que tal rela ção nunca pode ser objeto de raciocínio e nunca pode operar sobre a mente senão por meio do costume que determina a imaginação a fazer uma transição da idéia de um objeto à daquele outro que o acompa nha usualmente e da impressão de um a uma idéia mais vívida do outro Por mais extraordinárias que possam parecer essas afirmações creio que é inútil me dar ao trabalho de realizar mais investigações ou raciocínios sobre esse assunto ao contrário apoiarmeei nelas como se em máximas já estabelecidas 32 Antes de deixarmos este tema devemos apenas extrair dele al guns corolários que nos permitirão eliminar vários preconceitos e er ros populares que têm tido grande prevalência na filosofia Em pri meiro lugar aprendemos com a doutrina precedente que todas as causas são da mesma espécie e em particular que é infundada a dis tinção por vezes estabelecida entre causas eficientes e causas sine qua non ou entre causas eficientes e causas formais materiais exempla res e finais Porque como nossa idéia de eficiência é derivada da con junção constante entre dois objetos sempre que se observa tal conjun ção a causa é eficiente quando não se a observa não pode haver nenhum tipo de causa Pela mesma razão devemos rejeitar a distin ção entre causa e ocasião se por ela se entende que esses termos sig nificam coisas essencialmente diferentes Se naquilo que chamamos ocasião estiver implicada uma conjunção constante essa ocasião será uma causa real Se não estiver não será absolutamente uma relação e não pode originar nenhum argumento ou raciocínio 33 Em segundo lugar o mesmo raciocínio nos fará concluir que exis te apenas uma espécie de necessidade assim como existe apenas uma 2 04 Livro 1 Parte 3 Seção 1 4 espécie de causa e que a distinção comum entre necessidade moral e física não possui fundamento na natureza Isso fica claro pela expli cação anterior da necessidade É a conjunção constante dos objetos juntamente com a determinação da mente que constitui uma neces sidade física e a exclusão destas é o mesmo que o acaso Como os objetos têm de estar ou não em conjunção e como a mente tem de ser ou não determinada a passar de um objeto a outro é impossível admitir um meiotermo entre o acaso e a necessidade absoluta Se enfraquecermos essa conjunção e determinação não estaremos al terando a natureza da necessidade Pois mesmo na operação dos cor pos há diferentes graus de constância e de força sem que isso pro duza uma espécie diferente dessa relação 34 A distinção que com freqüência fazemos entre o poder e seu exer cício é igualmente infundada 35 Em terceiro lugar talvez agora sejamos capazes de superar intei ramente aquela aversão tão natural ao raciocínio anterior por meio do qual tentamos provar que a necessidade de haver uma causa para todo começo de existência não se funda em nenhum argumento nem demonstrativo nem intuitivo Tal opinião não causará estranheza após as definições já apresentadas Se definirmos uma causa como um ob jeto anterior e contíguo a outro e tal que todos os objetos semelhantes ao primeiro mantêm relações semelhantes de anterioridade e contigüidade com os objetos semelhantes ao último poderemos facilmente conceber que não existe uma necessidade absoluta ou metafísica de que todo co meço de existência seja acompanhado de tal objeto Se definirmos uma causa como um objeto anterior e contíguo a outro e unido a ele de tal f arma na imaginação que a idéia de um determina a mente a f armar a idéia do outro e a impressão de um a formar uma idéia mais vívida do outro teremos ainda menos dificuldade em concordar com essa opinião Uma tal influência sobre a mente é em si mesma inteiramente ex traordinária e incompreensível e apenas pela experiência e observa ção podemos estar certos de sua realidade 205 Tratado da natureza humana 36 Acrescentarei como um quarto corolário que jamais teremos qualquer razão para acreditar na existência de um objeto se não pu dermos formar uma idéia dele Pois como todos os nossos raciocínios concernentes à existência são derivados da causalidade e como to dos os nossos raciocínios concernentes à causalidade são derivados da conjunção que experimentamos entre os objetos e não de algum raciocínio ou reflexão a mesma experiência deve nos dar uma noção desses objetos e afastar qualquer mistério de nossas conclusões Isso é tão evidente que dificilmente teria merecido nossa atenção se não fosse para nos prevenirmos contra certas objeções desse tipo que podem ser levantadas contra meus raciocínios ulteriores acerca da matéria e da substância Não preciso observar que não se requer aqui um conhecimento completo do objeto mas apenas das qualidades desse objeto que acreditamos existir Seção 1 5 Regras para se julgar sobre causas e efeitos 1 De acordo com a doutrina precedente não existe um só objeto que por um mero exame e sem consultar a experiência possamos determinar ser com certeza a causa de algum outro e não há um só objeto que possamos determinar desse mesmo modo não ser a cau sa de outro Qualquer coisa pode produzir qualquer coisa Criação aniquilação movimento razão volição todas essas coisas podem surgir umas das outras ou de qualquer outro objeto que possamos imaginar Isso não parecerá estranho se compararmos dois princípios acima explicados que a conjunção constante entre objetos determina sua causalidade e que 17 propriamente falando nenhum objeto é contrário a outro senão a existência e a nãoexistência Quando os objetos não são contrários nada os impede de ter essa conjunção constante de que depende inteiramente a relação de causa e efeito 17 Parte 1 Seção 5 206 Livro 1 Parte 3 Seção 1 5 2 Como portanto todos os objetos podem se tornar causas ou efei tos uns dos outros talvez seja apropriado fixar algumas regras ge rais que nos permitam saber quando eles realmente o são 3 1 A causa e o efeito têm de ser contíguos no espaço e no tempo 4 2 A causa tem de ser anterior ao efeito 5 3 Tem de haver uma união constante entre a causa e o efeito É sobretudo essa qualidade que constitui a relação 6 4 A mesma causa sempre produz o mesmo efeito e o mesmo efeito jamais surge senão da mesma causa Esse princípio nós deriva mos da experiência e é a fonte da maior parte de nossos raciocínios filosóficos Quando mediante um experimento claro descobrimos as causas ou os efeitos de um fenômeno imediatamente estendemos nossa observação a todos os fenômenos do mesmo tipo sem espe rar por sua repetição constante da qual derivamos a primeira idéia dessa relação 7 5 Há um outro princípio que depende do anterior quando di versos objetos diferentes produzem o mesmo efeito isso deve se dar por meio de alguma qualidade que descobrimos ser comum a todos eles Pois uma vez que efeitos semelhantes implicam causas seme lhantes devemos sempre atribuir a causalidade àquela circunstân cia em que descobrimos a semelhança 8 6 O princípio seguinte se fundamenta na mesma razão A dife rença entre os efeitos de dois objetos semelhantes deve proceder da particularidade pela qual eles diferem Pois como causas semelhan tes sempre produzem efeitos semelhantes quando em um caso qual quer ocorre algo que não esperávamos devemos concluir que tal ir regularidade procede de alguma diferença entre as causas 9 7 Quando um objeto aumenta ou diminui com o aumento ou a diminuição de sua causa deve ser visto como um efeito composto derivado da união dos diversos efeitos diferentes resultantes das di versas partes diferentes da causa Estáse supondo aqui que a ausên cia ou a presença de uma parte da causa é sempre acompanhada da ausência ou da presença de uma parte proporcional do efeito Uma 2 0 7 Tratado da natureza humana tal conjunção constante prova suficientemente que uma parte é a cau sa da outra Devemos entretanto ter o cuidado de não extrair essa conclusão de uns poucos experimentos Um certo grau de calor nos dá prazer se diminuirmos esse calor o prazer diminui mas daí não se segue que se o aumentarmos além de um certo grau o prazer tam bém aumentará pois constatamos que ele se transforma em dor 10 8 A oitava e última regra que notarei é que um objeto que exis te durante algum tempo em toda a sua perfeição sem produzir um efeito não será a única causa desse efeito requerendo o auxílio de algum outro princípio que possa promover sua influência e operação Porque como efeitos semelhantes necessariamente se seguem de causas semelhantes e num momento e lugar contíguos sua separa ção durante um período mostra que essas causas não são completas 11 Eis toda a LÓGICA que penso dever empregar em meu raciocínio E talvez sequer ela fosse muito necessária pois poderia ter sido su prida pelos princípios naturais de nosso entendimento Nossas sumidades escolásticas e nossos lógicos não mostram em seus racio cínios habilidosos tanta superioridade em relação ao mero vulgo que passássemos a querer imitálos apresentando um longo sistema de regras e preceitos para a direção de nosso juízo filosófico Todas as regras dessa natureza são muito fáceis de inventar mas extremamente difí ceis de aplicar A própria filosofia experimental que parece mais na tural e simples que qualquer outra requer um esforço extremo do juízo humano Na natureza todo fenômeno é composto e modifica do por tantas circunstâncias diferentes que para chegarmos ao pon to decisivo devemos separar dele cuidadosamente tudo o que é su pérfluo e investigar por meio de novos experimentos se cada circunstância particular do primeiro experimento lhe era essencial Esses novos experimentos são passíveis de uma discussão do mes mo tipo de modo que precisamos da máxima constância para perse verar em nossa investigação e da maior sagacidade para escolher o caminho correto dentre tantos que se apresentam Se isso ocorre até na filosofia da natureza quanto mais na filosofia moral em que existe 2 08 Livro 1 Parte 3 Seção 1 6 uma complicação muito maior de circunstâncias e em que as opi niões e sentimentos essenciais a qualquer ação da mente são tão im plícitos e obscuros que freqüentemente escapam à nossa mais rigo rosa atenção permanecendo não apenas inexplicáveis em suas causas mas até mesmo desconhecidos em sua existência Tenho grande receio de que o medíocre sucesso de minhas investigações acabe por emprestar a essa observação antes um ar de pedido de des culpas que de vanglória 12 Se há algo capaz de me dar alguma segurança a este respeito será ampliar ao máximo a esfera de meus experimentos Por essa razão talvez seja conveniente examinar agora a faculdade de raciocínio dos animais comparandoa com a das criaturas humanas Seção 1 6 Da razão dos animais l Quase tão ridículo quanto negar uma verdade evidente é realizar um grande esforço para defendêla E nenhuma verdade me parece mais evidente que a de que os animais são dotados de pensamento e razão assim como os homens Os argumentos neste caso são tão óbvios que não escapam nem aos mais estúpidos e ignorantes 2 Temos consciência de que nós mesmos ao adaptar os meios aos fins somos guiados pela razão e por um propósito e não é irrefleti damente nem por acaso que realizamos ações que tendem à nossa autopreservação a obter prazer e evitar a dor Quando portanto ve mos milhões de exemplos de outras criaturas realizando ações se melhantes e direcionandoas para fins semelhantes todos os nos sos princípios de razão e probabilidade nos levam com uma força invencível a crer na existência de uma causa semelhante Em minha opinião é desnecessário ilustrar esse argumento pela enumeração de casos particulares A mínima atenção nos fornecerá mais exem plos do que precisamos A semelhança entre as ações dos animais e as dos homens é tão completa quanto a esse aspecto que já a pri 209 Tratado da natureza humana meira ação do primeiro animal que escolhermos nos fornecerá um argumento incontestável da presente doutrina 3 Essa doutrina é tão útil quanto óbvia e nos fornece uma espécie de pedra de toque com a qual podemos pôr à prova todos os sistemas desse gênero de filosofia É com base na semelhança entre as ações externas dos animais e as por nós mesmos realizadas que julgamos que também suas ações internas se assemelham às nossas E o mes mo princípio de raciocínio levado um pouco adiante nos fará con cluir que como nossas ações internas se assemelham umas às ou tras as causas de que elas derivam também têm de ser semelhantes Portanto quando apresentamos uma hipótese para explicar uma operação mental comum aos homens e aos animais devemos po der aplicar a mesma hipótese a ambos Qualquer hipótese verdadeira sobreviverá a esse teste e arriscome a afirmar que nenhuma hipóte se falsa jamais resistirá a ele O defeito comum a todos os sistemas apresentados pelos filósofos para explicar as ações da mente é que supõem um pensamento tão sutil e refinado que não apenas ultra passam a capacidade dos simples animais mas até das crianças e pessoas comuns de nossa própria espécie que não obstante são suscetíveis das mesmas emoções e afetos que as pessoas de maior genialidade e inteligência Tal sutileza é uma prova clara da falsidade de um sistema enquanto a simplicidade ao contrário é uma prova de sua verdade 4 Sendo assim submetamos nosso presente sistema sobre a natu reza do entendimento a essa prova decisiva e vejamos se ele pode dar conta tanto dos raciocínios dos animais como dos da espécie humana 5 Devemos fazer aqui uma distinção entre as ações dos animais que são de uma natureza ordinária e parecem estar no mesmo ní vel que suas habilidades comuns e os exemplos mais extraordiná rios de sagacidade que os animais por vezes mostram quando agem com vistas à sua autopreservação e à propagação de sua espécie Um cão que evita o fogo e os precipícios que se afasta de estranhos e trata seu dono carinhosamente nos dá um exemplo do primeiro tipo de 2 1 0 Livro 1 Parte 3 Seção 1 6 ação Um pássaro que escolhe com grande cuidado e precisão o lu gar e os materiais para seu ninho que choca seus ovos pelo tempo devido e na estação apropriada com a precaução de um químico que realiza a experiência mais delicada fornecenos um exemplo vivo do segundo 6 Quanto às ações do primeiro tipo afirmo que procedem de um raciocínio que em si mesmo não é diferente nem fundado em prin cípios diferentes dos que aparecem na natureza humana Em primeiro lugar é necessário que haja alguma impressão presente à sua me mória ou a seus sentidos capaz de fundamentar seu julgamento Do tom de voz o cão infere a raiva de seu dono e prevê seu próprio cas tigo De uma certa sensação que afeta seu olfato julga que sua presa não está muito distante dele 7 Em segundo lugar a inferência que faz partindo da impressão presente é construída sobre a experiência e sobre sua observação da conjunção de certos objetos em casos passados Se modificarmos essa experiência ele modificará seu raciocínio Assim se por várias vezes batermos no cachorro logo após um certo sinal ou movimen to e depois trocarmos esse sinal ou movimento ele extrairá sucessi vamente conclusões diferentes segundo sua experiência mais recente 8 Pois bem façase qualquer filósofo um esforço para explicar aque le ato da mente que chamamos de crença se conseguir dar uma ex plicação dos princípios de que esta se origina sem apelar para a in fluência do costume sobre a imaginação e se sua hipótese for aplicável igualmente aos animais e à espécie humana se conseguir fazer isso prometo esposar sua opinião Mas ao mesmo tempo como justa con trapartida peço que se meu sistema for o único capaz de responder a todas essas condições ele o aceite como inteiramente satisfatório e convincente Ora que meu sistema é o único capaz disso fica evidente sem a necessidade de quase nenhum raciocínio Os animais cer tamente nunca percebem nenhuma conexão real entre os objetos É pela experiência portanto que inferem uns dos outros São in capazes de mediante argumentos formar a conclusão geral de que 2 1 1 Tratado da natureza humana objetos que eles nunca experimentaram se assemelham àqueles de que já tiveram experiência Portanto é unicamente por meio do costume que a experiência opera sobre eles Tudo isso era suficien temente evidente a propósito do homem Mas quanto aos animais não pode haver a menor suspeita de engano o que deve ser visto como uma forte confirmação ou antes como uma prova invencível de meu sistema 9 Nada mostra melhor a força que o hábito exerce ao fazernos aceitar um fenômeno qualquer que o fato de os homens não se es pantarem com as operações de sua própria razão ao mesmo tempo em que admiram o instinto dos animais e têm dificuldade em explicá lo simplesmente porque não pode ser reduzido exatamente aos mes mos princípios Mas a se considerar devidamente a questão a razão não é senão um maravilhoso e ininteligível instinto de nossas almas que nos conduz por uma certa seqüência de idéias conferindolhes qualidades particulares em virtude de suas situações e relações par ticulares É verdade que tal instinto surge da observação e experiên cia passada mas quem poderá dar a razão última que explique por que deve ser a experiência e a observação passada e não a natureza por si mesma o que produz tal efeito A natureza certamente é ca paz de produzir tudo aquilo que pode surgir do hábito Ou antes o hábito não é senão um dos princípios da natureza e extrai toda a sua força dessa origem 2 1 2 Seção 1 Parte 4 Do ceticismo e outros sistemas filosóficos Do ceticismo quanto à razão Em todas as ciências demonstrativas as regras são certas e in falíveis mas quando as aplicamos nossas faculdades falíveis e incer tas têm uma grande tendência a delas se afastar e a cair em erro Por isso em todo raciocínio devemos conferir e controlar nosso primei ro juízo ou crença mediante um novo juízo e devemos ampliar nossa visão para abranger uma espécie de história de todos os casos em que nosso entendimento nos enganou comparandoos àqueles em que seu testemunho foi legítimo e verdadeiro Nossa razão deve ser conside rada uma espécie de causa cujo efeito natural é a verdade mas esse efeito pode ser freqüentemente impedido pela irrupção de outras cau sas e pela inconstância de nossos poderes mentais Desse modo todo conhecimento degenera em probabilidade e essa probabilidade é maior ou menor segundo nossa experiência da veracidade ou falsidade de nosso entendimento e segundo a simplicidade ou a complexidade da questão 2 1 3 Tratado da natureza humana 2 Nenhum algebrista ou matemático é tão versado em sua ciência a ponto de depositar plena confiança em urna verdade assim que a des cobre ou de considerála algo mais que urna mera probabilidade Sua confiança cresce toda vez que refaz as provas e cresce ainda mais com a aceitação dos amigos atingindo sua máxima perfeição pela aprova ção universal e pelos aplausos do mundo erudito Ora é evidente que esse aumento gradual da certeza não é senão a adição de novas pro babilidades e deriva da união constante de causas e efeitos de acor do com a experiência e a observação passada 3 Em cálculos longos ou importantes os comerciantes raramente confiam na certeza infalível dos números em vez disso produzem pela estrutura artificial dos registros contábeis urna probabilidade que ultrapassa aquela que deriva da habilidade e experiência do contador Pois esta por si só já constitui claramente um grau de probabilida de embora incerta e variável segundo o grau da experiência e a com plexidade do cálculo Ora corno ninguém sustentaria que nossa cer teza em um cálculo complexo excede a probabilidade posso afirmar com segurança que não há praticamente nenhuma proposição numé rica sobre a qual possamos ter urna certeza mais completa Porque di minuindose gradativamente os números é fácil reduzir a mais lon ga série de adições ao problema mais simples possível a adição de apenas dois números E de acordo com essa suposição veremos que é impraticável mostrar os limites precisos do conhecimento e da pro babilidade ou descobrir exatamente em que número aquele termina e esta começa Mas conhecimento e probabilidade têm naturezas tão contrárias e discordantes que não poderiam se transformar insensi velmente um no outro e isso porque não se dividem devendo antes estar inteiramente presentes ou inteiramente ausentes Adernais se urna só adição fosse certa todas seriam e conseqüentemente também a sorna inteira ou total a menos que o todo possa ser diferente do con junto de suas partes Eu quase ia dizendo que este raciocínio é certo mas pensando melhor vejo que ele também assim corno todos os outros raciocínios deve se reduzir e de conhecimento degenerar em probabilidade 2 1 4 Livro 1 Parte 4 Seção 1 4 Portanto como todo conhecimento se reduz a uma probabilida de acabando por adquirir a mesma natureza que essa evidência que empregamos na vida diária devemos agora examinar esta última es pécie de raciocínio para determinar seu fundamento 5 Em todo juízo que podemos formar acerca da probabilidade bem como do conhecimento devemos sempre corrigir o primeiro juízo re ferente à natureza do objeto por meio de um outro juízo referente à natureza do entendimento É certo que um homem inteligente e com uma longa experiência deveria ter e geralmente tem uma segurança maior acerca de suas opiniões do que um homem tolo e ignorante e que nossas opiniões possuem graus diferentes de autoridade peran te nós mesmos proporcionalmente aos graus de nossa razão e expe riência Tal autoridade jamais é completa sequer no homem mais in teligente e experiente pois até este deve ter consciência de muitos erros cometidos no passado e teme repetilos no futuro Surge aqui portanto uma nova espécie de probabilidade para corrigir e regular a primeira e para fixar seu critério e proporção corretos Assim como a demonstração está sujeita ao controle da probabilidade assim tam bém a probabilidade está sujeita a uma nova correção por um ato re flexivo da mente cujo objeto é a natureza de nosso entendimento bem como nosso raciocínio baseado na primeira probabilidade 6 Assim em toda probabilidade após termos descoberto além da incerteza original inerente ao objeto uma nova incerteza derivada da fraqueza da faculdade de julgar e após termos ajustado uma à outra essas duas incertezas nossa razão nos obriga a somar a elas uma nova dúvida derivada da possibilidade de erro em nossa estimativa da ver dade e da fidelidade de nossas faculdades Essa é uma dúvida que nos ocorre imediatamente e se quisermos seguir de modo estrito nossa razão não poderemos deixar de dar uma solução para ela Mas por es tar fundada unicamente na probabilidade essa solução mesmo favo rável a nosso juízo precedente deve enfraquecer ainda mais nossa primeira evidência sendo ela própria enfraquecida por uma quarta dúvida do mesmo tipo e assim ao infinito até que finalmente nada 2 1 5 Tratado da natureza humana reste da probabilidade original por maior que possamos supor que ela tenha sido e por menor que tenha sido a diminuição decorrente de cada nova incerteza Nenhum objeto finito pode subsistir a um decrés cimo repetido ao infinito e desse modo até a maior quantidade con cebível pela imaginação humana deve se reduzir a nada Por mais for te que seja nossa crença inicial ela infalivelmente perecerá ao passar por tantos novos exames cada um dos quais diminui um pouco sua força e vigor Quando reflito sobre a falibilidade natural de meu juízo confio menos em minhas opiniões do que quando considero apenas os objetos sobre os quais raciocino E quando vou ainda mais longe inspecionando minhas sucessivas estimativas acerca de minhas facul dades todas as regras da lógica determinam uma contínua diminui ção e finalmente uma total extinção da crença e da evidência 7 Se me perguntassem se concordo sinceramente com esse argu mento que pareço esforçarme tanto para estabelecer e se sou real mente um desses céticos que sustentam que tudo é incerto e que nosso juízo não possui nenhuma medida da verdade ou falsidade de nada res ponderia que essa questão é inteiramente supérflua e nem eu nem qualquer outra pessoa jamais esposou sincera e constantemente tal opinião A natureza por uma necessidade absoluta e incontrolável determinounos a julgar assim como a respirar e a sentir Não pode mos deixar de considerar certos objetos de um modo mais forte e pleno em virtude de sua conexão habitual com uma impressão presente como não podemos nos impedir de pensar enquanto estamos desper tos ou de enxergar os objetos circundantes quando voltamos nossos olhos para eles em plena luz do dia Quem quer que tenhase dado ao trabalho de refutar as cavilações desse ceticismo total na verdade de bateu sem antagonista e fez uso de argumentos na tentativa de esta belecer uma faculdade que a natureza já havia antes implantado em nossa mente tornandoa inevitável 8 Minha intenção portanto ao expor tão cuidadosamente os argu mentos dessa seita imaginária é apenas sensibilizar o leitor para a verdade de minha hipótese que nossos raciocínios acerca de causas e efeitos 2 1 6 Livro 1 Parte 4 Seção 1 derivam unicamente do costume e que a crença é mais propriamente um ato da parte sensitiva que da parte cogitativa de nossa natureza Provei aqui que exatamente os mesmos princípios que nos levam a formar uma conclusão sobre um assunto qualquer e a corrigir essa conclusão pela consideração de nossa inteligência e capacidade bem como da situa ção em que nossa mente se encontrava quando examinamos o assunto provei que esses mesmos princípios quando levados adiante e apli cados a cada novo juízo reflexivo devem diminuir continuamente a evidência original até reduzila a nada destruindo por completo toda crença e opinião Se a crença portanto fosse um simples ato do pen samento independente de uma maneira peculiar de concepção ou adição de uma força e vividez ela necessariamente destruiria a si mesma terminando sempre em uma total suspensão de juízo Mas a experiência será suficiente para convencer a quem quer que pense valer a pena pôr tudo isso à prova de que mesmo que não encontre nenhum erro nos argumentos anteriores continuará a crer a pensar e a raciocinar como de costume e por isso pode concluir com segu rança que seu raciocínio e sua crença são apenas uma sensação ou maneira peculiar de conceber que meras idéias e reflexões são inca pazes de destruir 9 Mas talvez alguém pergunte neste ponto como é possível mes mo segundo minha hipótese que esses argumentos acima explicados não produzam uma total suspensão de juízo e de que modo a mente pode conservar algum grau de certeza sobre um assunto qualquer Pois essas novas probabilidades que por sua repetição diminuem sem cessar a evidência original fundamentamse exatamente nos mesmos princípios sejam eles do pensamento ou da sensação que fundamen tam o primeiro juízo desse modo pode parecer inevitável que elas destruam a evidência tanto em um caso como em outro e pela opo sição quer de pensamentos quer de sensações contrárias reduzam a mente a uma total incerteza Suponho que alguém me coloca uma questão e que após repassar as impressões de minha memória e meus sentidos levando meus pensamentos dessas impressões aos 2 1 7 Tratado da natureza humana objetos que comumente se encontram em conjunção com elas sin to que concebo um dos lados de maneira mais forte e imperativa que o outro Essa concepção forte constitui minha primeira conclusão Su ponho que em seguida examino meu próprio juízo e observando pela experiência que ele é ora correto ora errôneo consideroo como sendo regulado por princípios ou causas contrárias algumas das quais levam à verdade e outras ao erro Ao contrapor essas causas contrá rias diminuo por uma nova probabilidade a certeza de minha primei ra conclusão Essa nova probabilidade está sujeita à mesma diminui ção que a precedente e assim por diante ao infinito Perguntase portanto como pode acontecer que com tudo isso conservemos um grau de crença suficiente para nosso propósito seja na filosofia seja na vida comum 10 Respondo que após a primeira e a segunda conclusões a ação da mente se torna forçada e pouco natural e as idéias fracas e obscuras e embora os princípios do juízo e a contraposição de causas opostas sejam iguais ao que eram no início sua influência sobre a imaginação e o vigor que emprestam ao pensamento ou dele retiram não são de forma alguma os mesmos Quando a mente não atinge seus objetos confortavelmente e com facilidade os mesmos princípios não exercem os mesmos efeitos que exercem no caso de uma concepção mais na tural das idéias e a imaginação tampouco tem uma sensação compa rável àquela que surge de seus juízos e opiniões correntes A atenção está tensionada a postura da mente é desconfortável e os espíritos animais tendo sido desviados de seu curso natural não têm seus mo vimentos governados pelas mesmas leis ao menos não no mesmo grau do que quando fluem por seus canais usuais 1 1 Se desejarmos exemplos similares não será muito difícil encontrá los O presente tema da metafísica nos fornece uma abundância de les O mesmo argumento que teria sido considerado convincente em um raciocínio concernente à história ou à política tem pouca ou ne nhuma influência nesses temas mais abstrusos mesmo que seja per feitamente compreendido Isso porque tal compreensão requer um estudo e um esforço do pensamento e esse esforço do pensamento 2 1 8 Livro 1 Parte 4 Seção 1 perturba a operação de nossos sentimentos de que a crença depende O mesmo se passa em outros domínios O esforço excessivo da ima ginação sempre impede o fluxo regular das paixões e sentimentos Um poeta trágico que representasse seus heróis como muito engenhosos e espirituosos em meio a seus infortúnios jamais conseguiria tocar as paixões Assim como as emoções da alma impedem qualquer racio cínio e reflexão sutil estas últimas ações da mente são igualmente prejudiciais às primeiras A mente como o corpo parece ser dotada de um grau preciso de força e atividade que quando empregado em uma ação tem de ser subtraído de todas as outras A verdade disso é mais evidente quando as ações são de naturezas bastante diferentes pois nesse caso não só a força da mente é desviada mas a disposi ção também é transformada o que nos torna incapazes de uma tran sição súbita de uma ação a outra e mais ainda incapazes de realizar ambas ao mesmo tempo Não é de admirar portanto que a convicção decorrente de um raciocínio sutil diminua proporcionalmente ao es forço realizado pela imaginação para penetrar o raciocínio e concebê lo em todas as suas partes A crença sendo uma concepção vívida ja mais pode ser completa se não estiver fundada em algo natural e fácil 12 Tal é a meu ver o verdadeiro estado da questão Não posso apro var esse modo apressado que alguns usam contra os céticos de rejei tar de uma só vez todos os seus argumentos sem submetêlos a uma investigação ou exame Se os raciocínios céticos são fortes dizem eles isso é uma prova de que a razão pode ter alguma força e autoridade se são fracos jamais podem ser suficientes para invalidar todas as con clusões de nosso entendimento Esse argumento não é correto pois os raciocínios céticos se pudessem existir sem ser destruídos por sua sutileza seriam sucessivamente fortes e fracos conforme as sucessi vas disposições da mente Primeiro a razão aparece no trono ditan do leis e impondo máximas com um poder e autoridade absolutos Seu inimigo portanto é obrigado a se abrigar sob sua proteção e em pregando argumentos racionais para provar a falibilidade e incompetên cia da razão produz como que uma carta patente assinada e selada 2 1 9 Tratado da natureza humana por esta Tal garantia de início possui uma autoridade proporcional à autoridade presente e imediata da razão da qual é derivada Mas como se supõe que é contraditória em relação à razão ela diminui de modo gradativo a força deste princípio regulador e sua própria força ao mesmo tempo até que finalmente por essa diminuição regular e precisa ambas desaparecem por completo As razões cética e dog mática são da mesma espécie embora contrárias em suas operações e tendências Desse modo quando a última é forte encontra na pri meira um inimigo com a mesma força e como suas forças de início eram iguais elas continuam iguais enquanto uma das duas subsis te A força que uma perde no combate é subtraída igualmente da an tagonista Felizmente a natureza quebra a força de todos os argumen tos céticos a tempo impedindoos de exercer qualquer influência considerável sobre o entendimento Se fôssemos confiar inteiramente em sua autodestruição teríamos de esperar até terem antes minado toda convicção e destruído inteiramente a razão humana Seção 2 Do ceticismo quanto aos sentidos 1 Assim o cético continua a raciocinar e a crer muito embora afir me ser incapaz de defender a razão pela razão E pela mesma regra deve dar seu assentimento ao princípio concernente à existência dos corpos embora não possa ter a pretensão de sustentar sua veracida de por meio de argumentos filosóficos A natureza não deixou isso à sua escolha sem dúvida avaliou que se tratava de uma questão dema siadamente importante para ser confiada a nossos raciocínios e espe culações incertos Podemos perfeitamente perguntar que causas nos in duzem a crer na existência dos corpos Mas é inútil perguntar se existem ou não corpos Esse é um ponto que devemos dar por suposto em todos os nossos raciocínios 2 O tema de nossa investigação presente portanto diz respeito às causas que nos induzem a crer na existência dos corpos Meus racio cínios acerca desse ponto terão início com uma distinção que à pri 220 Livro 1 Parte 4 Seção 2 meira vista pode parecer supérflua mas que contribuirá muito para a perfeita compreensão do que se segue Devemos examinar em se parado estas duas questões que são igualmente confundidas por que atribuímos uma existência CONTÍNUA aos objetos mesmo quando não estão presentes aos sentidos e por que supomos que possuem uma existência DISTINTA da mente e da percepção Com este último ponto refirome a sua situação bem como a suas relações a sua po sição externa bem como à independência de sua existência e operação As duas questões concernentes à existência contínua e distinta dos corpos estão estreitamente conectadas Porque se os objetos de nossos sentidos continuam a existir mesmo quando não são mais percebidos é claro que sua existência é independente e distinta da percepção e viceversa se sua existência é independente e distinta da percepção eles têm de continuar existindo mesmo quando não são percebidos A res posta a uma questão responde também à outra Porém para que pos samos descobrir mais facilmente os princípios da natureza humana de que deriva essa resposta conservaremos conosco a distinção e exami naremos se são os sentidos a razão ou a imaginação o que produz a opinião de uma existência contínua ou de uma existência distinta Essas são as únicas questões inteligíveis acerca do presente tema pois quanto à no ção de existência externa quando considerada como algo especificamen te diferente de nossas percepções 1 já mostramos seu absurdo Comecemos com os SENTIDOS É evidente que essas faculdades são incapazes de dar origem à noção da existência contínua de seus objetos quando estes não mais aparecem a elas Isso seria uma con tradição em termos seria supor que os sentidos continuam a operar mesmo após terem cessado qualquer tipo de operação Tais faculda des portanto se têm alguma influência neste caso devem produzir a noção de uma existência distinta não a de uma existência contínua e para isso devem apresentar suas impressões seja como imagens e re presentações seja como essas próprias existências distintas e externas 1 Parte 2 Seção 6 22 1 Tratado da natureza humana 4 Que nossos sentidos não oferecem suas impressões como ima gens de alguma coisa distinta ou seja independente e externa é evidente Pois tudo que eles nos transmitem é uma percepção singular e jamais nos dão a menor indicação de algo além dela Uma percepção singu lar nunca poderia produzir a idéia de uma dupla existência a não ser por meio de alguma inferência da razão ou da imaginação Quando a mente dirige sua visão para além daquilo que lhe aparece imedia tamente suas conclusões jamais podem ser levadas à conta dos sen tidos E certamente é isso que ela faz quando partindo de uma per cepção singular infere uma dupla existência e supõe entre essas existências as relações de semelhança e causalidade 5 Se nossos sentidos portanto sugerem alguma idéia de existên cias distintas devem apresentar as impressões como se fossem es sas próprias existências por uma espécie de falácia e ilusão Sobre isso podemos observar que todas as sensações são sentidas pela mente tais como realmente são e quando temos dúvidas se elas se apresentam como objetos distintos ou como meras impressões a di ficuldade não diz respeito a sua natureza mas a suas relações e situa ção Ora se os sentidos apresentassem nossas impressões como ex ternas e independentes de nós tanto os objetos como nós mesmos teríamos de ser evidentes para nossos sentidos de outro modo não poderíamos ser comparados por essas faculdades A dificuldade portanto está em saber até que ponto nós somos objetos de nossos sentidos 6 Certamente não há na filosofia questão mais abstrusa que aque la concernente à identidade e à natureza do princípio de união que constitui uma pessoa Longe de sermos capazes de resolver essa ques tão apenas por meio de nossos sentidos temos de recorrer à mais pro funda metafísica para encontrar para ela uma resposta satisfatória É evidente que na vida corrente essas idéias de eu e pessoa jamais são muito precisas ou determinadas Portanto é absurdo imaginar que os sentidos alguma vez sejam capazes de distinguir entre nós e os obje tos externos 222 Livro 1 Parte 4 Seção 2 7 Acrescentese a isso que todas as impressões externas e inter nas paixões afetos sensações dores e prazeres são originalmente equivalentes sejam quais forem as diferenças que possamos obser var entre elas todas aparecem em suas verdadeiras cores como im pressões ou percepções De fato se considerarmos corretamente a questão veremos que é quase impossível que fosse de outro modo É inconcebível que nossos sentidos fossem mais capazes de nos enga nar acerca da situação e das relações de nossas impressões que acer ca de sua natureza Porque como todas as ações e sensações da men te nos são conhecidas pela consciência elas devem necessariamente em todos os pormenores parecer o que são e ser o que parecem Como tudo que entra na mente é na realidade uma percepção é im possível que alguma coisa pareça diferente em sua sensação feeling Afirmar isso seria supor que poderíamos estar enganados mesmo sobre aquilo de que estamos mais intimamente conscientes 8 Mas para não perder tempo examinando se é possível que nos sos sentidos nos enganem representando nossas percepções como distintas de nós isto é como externas e independentes consideremos se eles realmente nos enganam e se esse erro procede de uma sensação imediata ou de alguma outra causa 9 Comecemos com a questão da existência externa Talvez se diga que deixando de lado a questão metafísica da identidade de uma subs tância pensante é evidente que nosso próprio corpo nos pertence e como várias impressões aparecem como exteriores ao corpo supo mos que também são exteriores a nós O papel em que ora escrevo está além de minha mão A mesa está além do papel As paredes do apo sento além da mesa E ao dirigir meu olhar para a janela percebo uma grande extensão de campos e edificações além de meu aposento De tudo isso poderseia inferir que não é preciso nenhuma outra facul dade além dos sentidos para nos convencer da existência externa dos corpos Mas para evitar tal inferência bastanos atentar para as três Corrigido segundo o Apêndice p675 223 Tratado da natureza humana considerações seguintes Primeiro que não é propriamente nosso cor po o que percebemos quando olhamos para nossos membros e par tes corporais mas certas impressões que entram pelos sentidos de modo que a atribuição de uma existência real e corpórea a essas im pressões ou a seus objetos é um ato da mente tão difícil de explicar quanto o que estamos agora examinando Segundo sons sabores e aromas embora costumem ser vistos pela mente como qualidades contínuas e independentes não parecem ter nenhuma existência na extensão e conseqüentemente não podem aparecer aos sentidos como situados fora do corpo A razão de lhes atribuirmos um lugar será considerada2 posteriormente Terceiro mesmo nossa visão não nos informa da distância ou exterioridade por assim dizer de manei ra imediata e sem um certo raciocínio e experiência como reconhe cem os filósofos mais razoáveis 1 O Quanto à independência de nossas percepções em relação a nós ela jamais pode ser objeto dos sentidos qualquer opinião que formemos a esse respeito deve ser derivada da experiência e observação E vere mos adiante que nossas conclusões baseadas na experiência estão lon ge de favorecer a doutrina da independência de nossas percepções En quanto isso podemos observar que ao falarmos de existências reais e distintas costumamos ter em vista mais sua independência do que sua situação espacial externa pensamos que um objeto tem uma rea lidade suficiente quando sua existência é ininterrupta e independente das transformações incessantes de que temos consciência em nós mesmos 1 1 Assim para resumir o que eu disse acerca dos sentidos eles não nos dão nenhuma noção de existência contínua porque não podem operar além do domínio em que realmente operam Tampouco produ zem a opinião de uma existência distinta porque não podem oferecê la à mente nem como representada nem como original Para oferecêla como representada teriam de apresentar tanto um objeto como uma 2 Seção 5 224 Livro 1 Parte 4 Seção 2 imagem Para fazêla aparecer como original teriam de transmitir uma falsidade a qual teria de estar nas relações e na situação Para isso te riam de ser capazes de comparar o objeto conosco e mesmo nesse caso não nos enganariam nem seria possível que nos enganassem Podemos portanto concluir com segurança que a opinião de uma existência contínua e de uma existência distinta nunca provém dos sentidos 1 2 Para confirmar tal conclusão observemos que os sentidos nos transmitem três tipos diferentes de impressões O primeiro tipo com preende as impressões da figura volume movimento e solidez dos corpos O segundo as de cores sabores aromas sons calor e frio O terceiro compreende as dores e os prazeres resultantes da aplica ção dos objetos a nossos corpos por exemplo quando uma lâmina corta nossa carne e coisas semelhantes Tanto os filósofos como o vulgo supõem que as impressões do primeiro tipo possuem uma exis tência distinta e contínua Somente o vulgo considera as do segundo da mesma maneira Tanto os filósofos como o vulgo novamente con sideram que as do terceiro tipo são meras percepções e conseqüen temente existências descontínuas e dependentes 1 3 Ora é evidente que qualquer que seja nossa opinião filosófica as cores os sons o calor e o frio tais como aparecem aos sentidos exis tem da mesma maneira que o movimento e a solidez e que a diferen ça que fazemos entre aquelas qualidades e estas últimas não surge da mera percepção É tão forte o preconceito a favor da existência dis tinta e contínua das primeiras qualidades que quando os filósofos modernos propõem a opinião contrária as pessoas imaginam que podem refutála com base quase exclusivamente naquilo que sentem e em sua experiência e que seus próprios sentidos contradizem essa filosofia É também evidente que as cores os sons etc estão origi nalmente em pé de igualdade com a dor resultante de uma lâmina que nos corta e o prazer produzido pelo calor de uma lareira e que a dife rença entre eles não se funda nem na percepção nem na razão mas na imaginação Pois como se reconhece que tanto aqueles como estes 225 Tratado da natureza humana são apenas percepções derivadas das configurações e movimentos par ticulares das partes do corpo em que poderia consistir sua diferença De tudo isso portanto podemos concluir que até onde os sentidos podem julgar todas as percepções são iguais em seu modo de existir 14 Observemos também neste caso dos sons e das cores que pode mos atribuir uma existência distinta e contínua aos objetos sem ja mais consultar a RAZÃO ou avaliar nossas opiniões por meio de prin cípios filosóficos De fato por mais convincentes que sejam os argumentos que os filósofos imaginam poder produzir para estabele cer a crença nos objetos independentes da mente é óbvio que tais ar gumentos são conhecidos por muito poucas pessoas e que não é por meio deles que crianças camponeses e a maior parte da humanidade são induzidos a atribuir objetos a algumas impressões e negálos a ou tras Por conseguinte vemos que todas as conclusões do vulgo a esse respeito são diretamente contrárias àquelas que são sustentadas pe los filósofos Pois a filosofia nos informa que tudo que aparece à mente não é senão percepção e possui uma existência descontínua e depen dente da mente o vulgo ao contrário confunde percepções e objetos atribuindo uma existência distinta e contínua às próprias coisas que sente ou vê Essa opinião portanto por ser inteiramente irracional tem que proceder de uma outra faculdade que não o entendimento Podemos acrescentar que enquanto tomamos nossas percepções e objetos como a mesma coisa jamais podemos inferir a existência des tes da existência daquelas e tampouco formar um argumento baseado na relação de causa e efeito a única capaz de nos assegurar a respeito de questões de fato E veremos em breve que mesmo após distinguir mos nossas percepções de nossos objetos ainda somos incapazes de raciocinar partindo da existência daquelas para a destes Em suma nossa razão não nos fornece nenhuma certeza sobre a existência dis tinta e contínua dos corpos e jamais poderia fazêlo sob nenhuma hipótese Tal opinião deve ser atribuída inteiramente à IMAGINAÇÃO que será agora o objeto de nossa investigação 226 Livro 1 Parte 4 Seção 2 Como todas as impressões são existências internas e perecíveis e aparecem como tais a noção de sua existência distinta e contínua tem de surgir da concorrência de algumas de suas qualidades com aquelas da imaginação e como essa noção não se estende a todas elas deve vir de certas qualidades peculiares a algumas impressões Portan to será fácil descobrir essas qualidades se compararmos as impressões a que atribuímos uma existência distinta e contínua com aquelas que vemos como internas e perecíveis Observemos portanto que não é nem pela involuntariedade de certas impressões como se costuma supor nem por sua força e vio lência superiores que atribuímos a elas a realidade e existência contí nua que recusamos a outras impressões voluntárias ou fracas Pois é evidente que nossas dores e prazeres nossas paixões e afetos que nunca supomos possuir uma existência fora de nossa percepção agem com uma violência maior e são tão involuntárias quanto as im pressões de figura e extensão cor e som que vemos como seres per manentes Supomos que o calor do fogo quando moderado existe no fogo mesmo mas a dor que esse fogo causa quando demasiada mente próximo consideramos que não possui um ser senão em nos sa percepção Uma vez rejeitadas essas opiniões comuns portanto devemos buscar alguma outra hipótese que nos permita descobrir as qualida des peculiares de nossas impressões em virtude das quais atribuímos a estas uma existência distinta e contínua Após um breve exame descobriremos que todos os objetos a que atribuímos uma existência contínua possuem uma constância peculiar que os distingue das impressões cuja existência depende de nossa percepção Essas montanhas casas e árvores que estão agora diante de meus olhos sempre me apareceram na mesma ordem e se as per co de vista ao fechar os olhos ou virar a cabeça logo depois vejo que retornam a mim sem a menor alteração Minha cama e minha mesa meus livros e papéis se apresentam da mesma maneira uniforme e não mudam quando interrompo meu ato de ver ou percebêlos Isso se 22 7 Tratado da natureza humana passa com todas as impressões cujos objetos supomos ter uma exis tência externa e não se passa com nenhuma outra impressão suave ou violenta voluntária ou involuntária 19 Tal constância entretanto não é tão perfeita a ponto de não ad mitir exceções bastante consideráveis Os corpos freqüentemente mudam sua posição e qualidades e após uma pequena ausência ou interrupção podem se tornar quase irreconhecíveis Mas observemos que mesmo com essas mudanças eles preservam uma coerência e mantêm uma dependência regular uns em relação aos outros Isso serve de fundamento a uma espécie de raciocínio causal produzindo a opinião de sua existência contínua Quando retorno a meu aposen to após dele me ausentar por uma hora não encontro o fogo de mi nha lareira na mesma situação em que o deixara mas afinal estou acostumado a ver em outros exemplos uma alteração semelhante produzirse em um intervalo de tempo semelhante esteja eu presen te ou ausente próximo ou distante Essa coerência em suas mudan ças portanto é uma das características dos objetos externos ao lado de sua constância 20 Tendo descoberto que a opinião da existência contínua dos corpos depende da COERÊNCIA e da CONSTÂNCIA de certas impressões passo agora a examinar de que maneira essas qualidades dão origem a uma opinião tão extraordinária Comecemos pela coerência Pode mos observar que embora as impressões internas que vemos como fugazes e perecíveis também possuam uma certa coerência ou regu laridade em suas aparições essa coerência ou regularidade é de natu reza diferente da que descobrimos nos corpos Constatamos pela ex periência que nossas paixões apresentam uma mútua conexão e dependência mas em nenhum caso para preservar a mesma depen dência e conexão de que tivemos experiência é necessário supor que elas tenham existido e operado quando não eram percebidas Não é o que ocorre com os objetos externos Estes requerem uma existência contínua sem o que perdem em grande medida a regularidade de sua operação Aqui estou sentado em meu quarto com o rosto voltado 228 Livro 1 Parte 4 Seção 2 para a lareira e todos os objetos que tocam meus sentidos estão con tidos dentro de algumas jardas a meu redor É certo que minha me mória me informa da existência de muitos objetos mas essa informa ção não se estende além de sua existência passada nem meus sentidos nem minha memória me fornecem qualquer testemunho da continua ção de seu ser Estando assim sentado portanto remoendo esses pen samentos ouço de repente um barulho como que de uma porta giran do sobre seus gonzos pouco depois vejo um mensageiro que vem em minha direção Isso dá ocasião a várias novas reflexões e raciocínios Primeiramente jamais observei que esse barulho pudesse proceder de alguma coisa que não fosse o movimento de uma porta e portanto concluo que o presente fenômeno contradiz toda a experiência pas sada a menos que a porta que me recordo ter estado no outro lado do quarto ainda exista Novamente sempre observei que o corpo humano possuía a qualidade que chamo de gravidade a qual o impede de subir no ar como este mensageiro teria de ter feito para chegar até meu quarto a menos que a escada de que me lembro não tenha sido aniqui lada por minha ausência Mas isso não é tudo Recebo uma carta e ao abrila percebo pela letra e pela assinatura ter sido enviada por um amigo que diz estar a duzentas léguas de distância É evidente que eu não poderia dar conta desse fenômeno de maneira conforme à minha experiência de outros casos sem desdobrar em minha mente todo o mar e o continente que nos separam e sem supor os efeitos e a exis tência contínua dos correios e barcas de acordo com minha memó ria e observação Considerados de um certo ângulo esses fenômenos do mensageiro e da carta constituem contradições em relação à ex periência corrente e podem ser vistos como objeções àquelas máximas que formamos sobre as conexões de causas e efeitos Estou acostu mado a ouvir tal som e a ver ao mesmo tempo tal objeto em movimento Neste caso particular não obtive essas duas percepções Essas obser vações são contrárias a não ser que eu suponha que a porta ainda per manece e que foi aberta sem que eu o percebesse E tal suposição a princípio inteiramente arbitrária e hipotética adquire força e evidên 229 Tratado da natureza humana eia por ser a única que me permite resolver essas contradições Não há quase nenhum momento em minha vida em que não se me apre sente um exemplo similar e em que eu não tenha a ocasião de supor a existência contínua de certos objetos a fim de conectar suas apari ções passadas e presentes produzindo entre elas uma união que a experiência passada me mostrou ser adequada a suas naturezas e cir cunstâncias particulares Aqui portanto sou levado a ver o mundo como algo real e duradouro que preserva sua existência mesmo quan do não mais presente à minha percepção 21 Essa conclusão baseada na coerência das aparições parece ter a mesma natureza que nossos raciocínios concernentes a causas e efei tos por ser derivada do costume e regulada pela experiência passada Ao examinála entretanto veremos que esses dois tipos de raciocínios são no fundo consideravelmente diferentes e que a inferência basea da na coerência só resulta do entendimento e do costume de maneira indireta e oblíqua Pois admitirseá sem dificuldade que como nada jamais está realmente presente à mente além de suas percepções é impossível não apenas adquirirmos um hábito de outra forma que não seja pela sucessão regular dessas percepções como também que qual quer hábito jamais exceda tal grau de regularidade Por conseguinte nenhum grau de regularidade em nossas percepções pode jamais ser vir de fundamento para inferirmos um grau maior de regularidade em alguns objetos que não percebemos isso suporia uma contradi ção a saber um hábito adquirido de algo que nunca esteve presen te à mente Ora é evidente que sempre que inferimos a existência contínua dos objetos dos sentidos partindo de sua coerência e da fre qüência de sua união é com o objetivo de atribuir aos objetos uma re gularidade maior que a observada em nossas meras percepções No tamos uma conexão entre dois tipos de objetos em suas aparições passadas aos sentidos mas não somos capazes de observar se essa conexão é perfeitamente constante já que ao simplesmente virarmos a cabeça ou fecharmos os olhos ela pode se interromper O que su pomos neste caso portanto senão que esses objetos mantêm sua 230 Livro 1 Parte 4 Seção 2 conexão usual apesar de sua aparente descontinuidade e que as apa rições irregulares são unidas por alguma coisa a que somos insensí veis Mas como todos os raciocínios sobre questões de fato surgem unicamente do costume e como o costume só pode resultar de per cepções repetidas a extensão do costume e do raciocínio para além das percepções nunca poderia ser um efeito direto e natural da repetição e da conexão constantes devendo antes surgir da cooperação de alguns outros princípios 22 Ao examinar o fundamento da matemática observei3 que a ima ginação quando envolvida em uma cadeia de pensamentos tende a dar continuidade a ela mesmo na falta de seu objeto e como uma ga lera posta em movimento pelos remos segue seu curso sem qualquer novo impulso Afirmei ser essa a razão pela qual após considerar di versos critérios aproximados de igualdade e corrigilos uns pelos ou tros passamos a imaginar para essa relação um critério tão correto e exato que não é passível do menor erro ou variação O mesmo prin cípio faz com que formemos facilmente essa opinião da existência con tínua dos corpos Os objetos já possuem uma certa coerência assim como aparecem a nossos sentidos mas essa coerência será muito maior e uniforme se supusermos que têm uma existência contínua e como a mente já vem observando uma uniformidade entre esses ob jetos ela continua naturalmente até tornar a uniformidade o mais completa possível A simples suposição de sua existência contínua basta para esse propósito dandonos a noção de uma regularidade muito maior entre os objetos do que aquela que vemos quando não olhamos para além de nossos sentidos 23 Por maior que seja a força que atribuamos a esse princípio porém temo que ele seja fraco demais para sustentar sozinho um edifício tão vasto como o da existência contínua de todos os corpos externos para explicar satisfatoriamente essa opinião deveremos juntar à coerência a constância de sua aparição Mas como a explicação desta última me 3 Parte 2 Seção 4 23 1 Tratado da natureza humana conduzirá a um domínio considerável de raciocínios muito profundos creio ser apropriado para evitar qualquer confusão fazer um peque no esboço ou resumo de meu sistema antes de expor suas partes em toda sua extensão Essa inferência com base na constância de nossas percepções como a inferência precedente baseada em sua coerência dá origem à opinião da existência contínua dos corpos que é anterior à de sua existência distinta e produz este último princípio 24 Quando nos habituamos a observar uma constância em certas impressões quando constatamos por exemplo que a percepção do sol ou do oceano retorna a nós após uma ausência ou aniquilação com partes semelhantes e numa ordem semelhante à de sua primei ra aparição temos uma tendência a não considerar essas percepções intermitentes como diferentes o que na verdade são mas ao con trário como numericamente idênticas em virtude de sua semelhan ça Mas como essa descontinuidade de sua existência é contrária à sua perfeita identidade e nos faz ver a primeira impressão como tendo sido aniquilada e a segunda como se fosse uma nova criação encontramo nos de certo modo perdidos e envolvidos em uma espécie de contra dição Para nos livrar dessa dificuldade disfarçamos a descontinuidade tanto quanto possível ou antes eliminamola inteiramente supondo que essas percepções intermitentes estão conectadas por uma exis tência real à qual somos insensíveis Tal suposição ou idéia de existên cia contínua adquire força e vividez pela memória dessas impressões fragmentadas e pela propensão que estas nos dão a supor que são uma mesma coisa Ora de acordo com o raciocínio anterior a essência mesma da crença consiste na força e vividez da concepção 25 Para justificar esse sistema há quatro coisas a fazer Primeira expli car o principium individuationis ou seja o princípio de identidade Segunda encontrar a razão pela qual a semelhança de nossas percep ções fragmentadas e descontínuas nos leva a atribuirlhes uma iden tidade Terceira explicar a propensão produzida por essa ilusão a unir essas aparições fragmentadas por meio de uma existência con 232 Livro 1 Parte 4 Seção 2 tínua Quarta e última explicar a força e vividez da concepção resul tante da propensão 26 Primeiramente quanto ao princípio de individuação podemos ob servar que a visão de um objeto não é suficiente para nos transmitir a idéia de identidade Pois na proposição um objeto é o mesmo que ele próprio se a idéia expressa pela palavra objeto não se distinguisse de modo algum da idéia significada por ele próprio nossas palavras na verdade não teriam sentido e a proposição não conteria um predicado e um sujeito os quais entretanto estão implicados na afirmação Um objeto isolado transmite a idéia de unidade não a de identidade 27 Por outro lado uma multiplicidade de objetos por mais semelhan tes que eles sejam jamais poderia transmitir tal idéia A mente decreta sempre que um não é o outro e consideraos como formando dois três ou qualquer número determinado de objetos com existências intei ramente distintas e independentes 28 Uma vez que tanto a pluralidade como a unidade são incompatí veis com a relação de identidade portanto esta deve estar em algo dis tinto daquelas Mas para falar a verdade à primeira vista isso parece inteiramente impossível Entre a unidade e a pluralidade não pode ha ver meiotermo como não pode haver meiotermo entre a existência e a nãoexistência Após supormos que um objeto existe devemos su por ou que um outro também existe nesse caso temos a idéia de pluralidade ou que não existe e nesse caso o primeiro objeto per manece como uma unidade 29 Para resolver essa dificuldade recorramos à idéia de tempo ou duração Já observei4 que o tempo em sentido estrito implica a su cessão e só podemos aplicar sua idéia a um objeto imutável graças a uma ficção da imaginação pela qual supomos que o objeto imutável participa das mudanças dos objetos coexistentes em particular de nossas percepções Tal ficção da imaginação ocorre quase sem exce ção É por meio dela que um objeto singular situado diante de nós e 4 Parte 2 Seção 5 233 Tratado da natureza humana observado durante um certo tempo sem que nele descubramos ne nhuma interrupção ou variação é capaz de nos dar uma noção de identidade Porque quando consideramos dois pontos quaisquer des se tempo podemos vêlos por duas perspectivas diferentes podemos por um lado considerar a ambos exatamente no mesmo instante nesse caso eles nos dão a idéia de número tanto por si mesmos como pelo objeto que deve ser multiplicado para ser concebido de uma só vez como existindo nesses dois pontos diferentes do tempo Por ou tro lado podemos fazer acompanhar a sucessão do tempo por uma su cessão semelhante de idéias concebendo primeiro um momento jun tamente com o objeto então existente e depois imaginando uma mudança no tempo sem qualquer variação ou interrupção no objeto e nesse caso eles nos dão a idéia de unidade Eis aqui portanto uma idéia que é um meiotermo entre a unidade e a pluralidade ou mais corretamente falando é uma coisa ou outra conforme a perspectiva pela qual a consideremos É a essa idéia que chamamos idéia de iden tidade Falando de maneira apropriada não podemos dizer que um ob jeto é o mesmo que ele próprio a menos que com isso queiramos di zer que o objeto existente em um momento é o mesmo que ele próprio existente em outro momento Dessa forma fazemos uma diferença en tre a idéia significada pela palavra objeto e a significada por ele próprio Os editores da NNOPT corrigiram unidade para identidade dizendo que o exercí cio de imaginar que a sucessão no tempo ocorreu sem uma sucessão ou mudança no objeto já é a idéia de identidade meiotermo entre a unidade e o número David F Norton Mary Norton op cit Embora eu concorde que existe aqui um problema creio que a troca de unidade para identidade não se faz sem perdas Pois parece evidente que Hume estava aqui querendo estabelecer um contraste entre as idéias de pluralidade e de unidade Há dois modos de considerarmos os dois pontos no tempo Um nos dá a idéia de pluralidade o outro a de unidade ou ao menos é o que nos leva a crer a lógica e a estrutura do trecho A idéia de identidade será um meiotermo entre as duas ou em outras palavras é uma ou outra conforme a perspectiva pela qual a conside remos meu grifo Certamente portanto a idéia em questão já é a de identidade mas é também tanto a de pluralidade como a de unidade Ora é relativamente simples enten der como obtemos a idéia de pluralidade pela comparação dos dois pontos mas cabe perguntar como exatamente obtemos a idéia de unidade ou seja qual é essa outra perspectiva na qual a idéia de identidade é também a de unidade NT 234 Livro 1 Parte 4 Seção 2 sem nos estender até a pluralidade e ao mesmo tempo sem nos res tringir a uma unidade estrita e absoluta 30 Assim o princípio de individuação não é senão a invariabilidade e a ininterruptibilidade de um objeto ao longo de uma suposta variação do tempo pela qual a mente pode acompanhálo nos diferentes perío dos de sua existência sem nenhuma quebra na visão e sem ser obri gada a formar a idéia de multiplicidade ou número 3 1 Passo agora a explicar a segunda parte de meu sistema mostrarei por que a constância de nossas percepções nos faz atribuirlhes uma perfeita identidade numérica mesmo havendo longos intervalos en tre suas aparições e mesmo que elas tenham apenas uma das quali dades essenciais da identidade a saber a invariabilidade Para evitar qualquer ambigüidade e confusão sobre esse ponto saliento que es tou aqui explicando as opiniões e crenças do vulgo a respeito da exis tência dos corpos e por isso tenho de me conformar inteiramente com seu modo de pensar e de se expressar Ora já observamos que embora os filósofos possam distinguir entre os objetos e as percepções dos sentidos supondoos coexistentes e semelhantes a generalida de dos homens não compreendem essa distinção como percebem ape nas um ser jamais poderiam concordar com a opinião de uma dupla existência e representação As próprias sensações que entram pelo olho ou ouvido são para eles os verdadeiros objetos e não lhes é fácil conceber que esta pluma ou este papel que são imediatamente perce bidos representam outros diferentes porém semelhantes a eles Por tanto para me ajustar às suas noções começarei supondo que há ape nas uma única existência a que chamarei indiferentemente objeto ou percepção conforme pareça mais adequado a meu propósito entenden do por ambos os termos aquilo que todo homem comum entende por um chapéu um sapato uma pedra ou qualquer outra impressão trans mitida por seus sentidos Não deixarei de advertir quando retornar a um modo mais filosófico de falar e pensar A formulação correta deveria ser de uma dupla existência isto é do objeto e da repre sentação NT 235 Tratado da natureza humana 32 Dando início portanto à questão acerca da origem de nosso erro e engano a respeito da identidade que ocorre quando a atribuímos a nossas percepções semelhantes apesar de sua descontinuidade devo recordar algo que já provei e expliquei5 Nada tende mais a nos fazer confundir duas idéias que a existência de uma relação entre elas a qual as associa na imaginação fazendo que esta passe com facilidade de uma à outra De todas as relações a de semelhança é a mais eficaz sob esse aspecto pois causa não somente uma associação de idéias mas também de disposições levandonos a conceber uma idéia por um ato ou operação da mente similar ao ato pelo qual concebemos a outra Observei que essa circunstância é de grande importância E podemos estabelecer como regra geral que todas as idéias que põem a mente na mesma disposição ou em disposições similares têm grande tendência a ser confundidas A mente passa facilmente de uma à outra e não per cebe a mudança a não ser por uma rigorosa atenção da qual em ge ral é inteiramente incapaz 33 Para aplicar essa máxima geral devemos em primeiro lugar exa minar a disposição da mente quando observa um objeto que preser va uma identidade perfeita e então encontrar algum outro objeto que seja confundido com o primeiro por causar uma disposição similar Quando fixamos nosso pensamento em um objeto e supomos que continua o mesmo durante algum tempo é evidente que estamos su pondo que a mudança se dá apenas no tempo e nunca nos empenha mos em produzir uma nova imagem ou idéia do objeto As faculdades da mente como que repousam esforçandose apenas o necessário para dar continuidade à idéia que já possuíamos anteriormente e a qual sub siste sem qualquer variação ou interrupção A passagem de um mo mento a outro quase não é sentida e tampouco se distingue por uma percepção ou idéia diferente que poderia exigir uma direção diferen te dos espíritos animais para ser concebida 5 Parte 2 Seção 5 236 Livro 1 Parte 4 Seção 2 34 Ora que outros objetos além dos idênticos são capazes quan do considerados pela mente de colocála na mesma disposição e de causar a mesma passagem ininterrupta da imaginação de uma idéia a outra Tal questão é da maior importância Pois se formos capazes de encontrar tais objetos poderemos concluir com certeza pelo princí pio anterior que eles são muito naturalmente confundidos com ob jetos idênticos sendo considerados como tais na maioria de nossos raciocínios Mas embora a questão seja muito importante ela não é muito difícil nem sujeita a dúvidas Pois imediatamente respondo que uma sucessão de objetos relacionados coloca a mente nessa disposi ção sendo considerada por meio do mesmo progresso suave e ininterrupto da imaginação que acompanha a visão de um mesmo objeto invariável A própria natureza e essência da relação é conectar nossas idéias entre si e quando do aparecimento de uma facilitar a transição para sua correlata A passagem entre idéias relacionadas é portanto tão suave e fácil que produz pouca alteração na mente pa recendose com a continuação da mesma ação E como a continuação da mesma ação é um efeito da contemplação contínua do mesmo ob jeto atribuímos a mesmidade sameness a toda sucessão de objetos relacionados O pensamento desliza ao longo da sucessão com a mes ma facilidade com que considera um objeto único por isso confunde a sucessão com a identidade 35 Posteriormente veremos vários exemplos dessa tendência da re lação a nos fazer atribuir uma identidade a objetos diferentes mas por enquanto iremos nos limitar ao presente tema Descobrimos pela experiência que existe uma tal constância em quase todas as impressões dos sentidos que sua interrupção não produz nelas nenhuma altera ção nem as impede de retornar iguais em aparência e situação ao que eram em sua primeira existência Examino a mobília contida em meu aposento fecho os olhos abroos logo depois e constato que as no vas percepções se assemelham perfeitamente àquelas que antes atin giam meus sentidos Essa semelhança é observada em milhares de casos e naturalmente conecta nossas idéias dessas percepções in 23 7 Tratado da natureza humana termitentes pela mais forte relação conduzindo a mente por uma tran sição fácil de uma a outra Uma transição ou passagem fácil da imagi nação ao longo das idéias dessas percepções diferentes e descontínuas é uma disposição mental quase igual àquela pela qual consideramos uma percepção constante e ininterrupta É muito natural portanto confundirmos as duas 6 36 As pessoas que mantêm tal opinião a respeito da identidade de nossas percepções semelhantes são em geral toda a parte não pen sante e não filosófica da humanidade isto é todos nós em um mo mento ou em outro e conseqüentemente aquelas que supõem que suas percepções são seus únicos objetos jamais pensando em uma dupla existência interna e externa representante e representada A própria imagem que está presente aos sentidos é para nós o corpo real e é a essas imagens descontínuas que atribuímos uma perfeita iden tidade Mas como a descontinuidade da aparição parece contrária à identidade levandonos naturalmente a ver essas percepções seme lhantes como diferentes umas das outras encontramonos aqui per didos sobre como reconciliar opiniões tão opostas A passagem sua ve da imaginação pelas idéias das percepções semelhantes faz que atribuamos a elas uma identidade perfeita A maneira descontínua de sua aparição nos faz considerálas seres semelhantes porém distin tos que aparecem a intervalos A perplexidade resultante dessa con tradição produz uma propensão a unir essas aparições fragmentadas mediante a ficção de uma existência contínua o que constitui a ter ceira parte da hipótese que propus explicar 6 Há que se reconhecer que tal raciocínio é um pouco abstruso e difícil de compreender mas notemos que essa mesma dificuldade podese converter em prova do raciocínio Podemos observar que há duas relações ambas de semelhança que contribuem para confundirmos a sucessão de nossas percepções descontínuas com um objeto idêntico A primeira é a semelhança entre as percepções a segunda a semelhança entre o ato pelo qual a mente examina uma sucessão de objetos semelhantes e aquele pelo qual examina um objeto idêntico Ora essas semelhanças tendemos a confundilas uma com a outra e é natural que o façamos de acordo com esse mesmo raciocínio Mas mantenhamolas distintas e não encontraremos dificuldade em conceber o argumento anterior 238 Livro 1 Parte 4 Seção 2 37 Nada é mais certo pela experiência que o fato de qualquer con tradição em relação aos sentimentos ou às paixões produzir um sen sível desconforto quer essa contradição proceda de fora quer de den tro da oposição de objetos externos ou do combate entre princípios internos Ao contrário tudo que se harmoniza com as propensões naturais e favorece externamente sua satisfação ou concorre interna mente com seus movimentos produz com certeza um prazer sensí vel Ora como existe aqui uma oposição entre a noção da identidade de percepções semelhantes e as interrupções em sua aparição a mente deve se sentir desconfortável nessa situação e naturalmente procu ra obter alívio do desconforto E uma vez que esse desconforto nasce da oposição entre dois princípios contrários o alívio deverá ser bus cado no sacrifício de um princípio em benefício do outro Mas como é a passagem suave de nosso pensamento ao longo de nossas percep ções semelhantes que nos leva a atribuir a elas uma identidade jamais poderíamos sem relutância abrir mão de tal opinião Temos portanto de nos voltar para o outro lado supomos que nossas percepções não são mais interrompidas que preservam uma existência contínua e in variável e que por isso são inteiramente idênticas Mas as interrup ções na aparição dessas percepções são aqui tão longas e freqüentes que é impossível desprezálas e como a aparição de uma percepção na mente e sua existência parecem à primeira vista exatamente a mesma coisa podese duvidar de que algum dia sejamos capazes de concor dar com uma contradição tão palpável e supor que uma percepção exista sem estar presente à mente Para esclarecer essa questão e des cobrir como a interrupção na aparição de uma percepção não implica necessariamente uma interrupção em sua existência será convenien te tocar em alguns princípios que mais tarde teremos ocasião de ex plicar de maneira mais completa 7 38 Podemos começar observando que a dificuldade neste caso não diz respeito à questão de fato a saber se a mente forma uma tal conclu 7 Seção 6 239 Tratado da natureza humana são acerca da existência contínua de suas percepções mas apenas à maneira como a conclusão é formada e aos princípios de que deriva É certo que quase toda a humanidade e até os próprios filósofos du rante a maior parte de suas vidas tomam suas percepções como seus únicos objetos e supõem que o próprio ser que está intimamente presente à mente é o corpo real ou existência material É também certo que supomos que essa mesma percepção ou objeto tem uma existên cia contínua e ininterrupta e que não é nem aniquilada por nossa au sência nem trazida à existência por nossa presença Quando não estamos em sua presença dizemos que ela ainda existe mas que não a sentimos que não a vemos Quando estamos presentes dizemos que a sentimos ou vemos Duas questões portanto podem surgir aqui Primeiro como podemos admitir que uma percepção esteja ausente da mente sem ser aniquilada Segundo de que maneira concebemos que um objeto se torna presente à mente sem a criação de uma nova percep ção ou imagem e o que queremos dizer com esse ver sentir e perceber 39 Quanto à primeira questão podemos observar que aquilo que cha mamos uma mente não é senão um feixe ou coleção de diferentes per cepções unidas por certas relações e as quais supomos embora fal samente serem dotadas de uma perfeita simplicidade e identidade Ora como toda percepção é distinguível das outras e pode ser consi derada como existindo separadamente seguese de modo evidente que não é absurdo separar da mente uma percepção particular qualquer isto é romper todas as suas relações com essa massa conectada de percepções que constituem um ser pensante 40 O mesmo raciocínio fornecenos uma resposta à segunda questão Se o nome percepção não torna absurda e contraditória essa separação de uma mente o nome objeto que representa exatamente a mesma coisa jamais poderia tornar impossível sua conjunção Os objetos ex ternos são vistos sentidos e se tornam presentes à mente isto é ad quirem uma tal relação com um feixe conectado de percepções que in fluenciam consideravelmente a estas aumentando seu número com reflexões e paixões presentes e abastecendo a memória de idéias O 240 Livro 1 Parte 4 Seção 2 mesmo ser contínuo e ininterrupto pode portanto estar ora presen te à mente ora ausente sem nenhuma mudança real ou essencial no próprio ser Uma interrupção na aparição aos sentidos não implica necessariamente uma interrupção na existência A suposição da exis tência contínua dos objetos ou percepções sensíveis não envolve con tradição Podemos facilmente ceder à nossa inclinação para tal supo sição Quando a exata semelhança de nossas percepções nos faz atribuir a elas uma identidade podemos eliminar a aparente descon tinuidade fantasiando um ser contínuo capaz de preencher esses in tervalos e preservar uma identidade perfeita e integral em nossas percepções 41 Entretanto como aqui nós não apenas fantasiamos mas também cremos nessa existência contínua a questão é de onde surge tal crença E essa questão nos leva à quarta parte deste sistema Já provamos que a crença em geral não consiste senão na vividez de uma idéia e que uma idéia pode adquirir tal vividez por sua relação com alguma impressão presente As impressões são naturalmente as percepções mais vívidas da mente e essa qualidade é parcialmente transmitida pela relação a toda idéia conectada A relação causa uma passagem suave da im pressão à idéia e produz até mesmo uma propensão para essa passa gem A mente resvala tão facilmente de uma percepção a outra que quase não percebe a mudança retendo na segunda uma parcela con siderável da vividez da primeira Ela é estimulada pela impressão ví vida e essa vividez é transmitida à idéia relacionada sem que haja uma grande diminuição nessa passagem em razão da transição suave e da propensão da imaginação 42 Suponhamos porém que essa propensão surja de outros princí pios que não o da relação é evidente que ela deverá ter o mesmo efei to transmitindo a vividez da impressão à idéia Ora esse é exatamente o caso presente Nossa memória nos apresenta um grande número de exemplos de percepções perfeitamente semelhantes entre si que re tornam a diferentes intervalos de tempo e após interrupções consi deráveis Essa semelhança nos dá uma propensão a considerar essas 241 Tratado da natureza humana percepções intermitentes como uma mesma coisa e também uma propensão a conectálas por uma existência contínua para justificar essa identidade e evitar a contradição em que a aparição descontínua dessas percepções parece necessariamente nos envolver Temos aqui portanto uma propensão a fantasiar a existência contínua de todos os objetos sensíveis e como essa propensão deriva de certas impressões vívidas da memória ela concede uma vividez a tal ficção ou em ou tras palavras levanos a acreditar na existência contínua dos corpos Se às vezes atribuímos uma existência contínua a objetos que nos são perfeitamente novos e de cuja constância e coerência não tivemos ne nhuma experiência é porque a maneira como eles se apresentam a nossos sentidos se assemelha à dos objetos constantes e coerentes e essa semelhança é uma fonte de raciocínio e analogia levandonos a atribuir as mesmas qualidades aos objetos similares 43 Acredito que um leitor inteligente terá menos dificuldade em acei tar esse sistema que em compreendêlo de maneira completa e distin ta e após uma pequena reflexão admitirá que cada uma de suas par tes traz consigo sua própria prova De fato é evidente que como o vulgo pressupõe que suas percepções são seus únicos objetos e ao mes mo tempo crê na existência contínua da matéria devemos explicar a origem desta crença em razão de tal pressuposição Ora segundo tal pressuposição é falsa a opinião de que qualquer um de nossos obje tos ou percepções seja numericamente idêntico após uma interrup ção Conseqüentemente a opinião de sua identidade jamais poderia surgir da razão devendo antes ser derivada da imaginação A imagi nação só se vê atraída a uma tal opinião em virtude da semelhança de certas percepções pois constatamos que as únicas percepções que ten demos a considerar as mesmas são as semelhantes Essa inclinação a atribuir identidade a nossas percepções semelhantes produz a ficção de uma existência contínua pois essa ficção assim como a identida de é na verdade falsa como reconhecem todos os filósofos e não tem outro efeito senão remediar a descontinuidade de nossas percepções única circunstância contrária a sua identidade Em último lugar essa 242 Livro 1 Parte 4 Seção 2 inclinação causa a crença por meio das impressões presentes da me mória pois é claro que sem a lembrança de sensações anteriores nun ca depositaríamos uma crença na existência contínua dos corpos As sim ao examinar todas essas partes vemos que cada uma delas é sustentada pelas provas mais fortes e que todas juntas formam um sistema consistente e perfeitamente convincente Uma forte propen são ou inclinação sozinha sem uma impressão presente às vezes já basta para causar uma crença ou opinião quanto mais quando auxi liada por essa circunstância 44 Embora a propensão natural da imaginação nos leve a atribuir uma existência contínua a esses objetos ou percepções sensíveis que vemos assemelharse uns aos outros em sua aparição descontínua um pou co de reflexão e filosofia basta contudo para nos fazer perceber a fa lácia dessa opinião Já observei que existe uma conexão íntima entre o princípio de uma existência contínua e o de uma existência distinta ou independente e que tão logo estabelecemos um deles o outro se segue como uma conseqüência necessária É a opinião da existência contí nua que ocorre primeiro e sem muito estudo ou reflexão traz consi go a outra sempre que a mente segue sua tendência primeira e mais natural Mas quando comparamos experimentos e raciocinamos um pouco acerca deles rapidamente percebemos que a doutrina da exis tência independente de nossas percepções sensíveis é contrária à mais clara experiência Isso nos faz retornar sobre nossos passos para per ceber o erro de atribuir uma existência contínua a nossas percepções e dá origem a muitas opiniões bastante curiosas que tentaremos aqui explicar 45 Primeiramente será conveniente examinar alguns dos experimen tos que nos convencem de que nossas percepções não possuem uma existência independente Quando pressionamos um olho com o dedo percebemos imediatamente que todos os objetos se duplicam e me tade deles se afasta de sua posição comum e natural Mas como não atribuímos uma existência contínua a ambas as percepções embora tenham a mesma natureza percebemos com clareza que todas as nos 243 Tratado da natureza humana sas percepções dependem de nossos órgãos e da disposição de nos sos nervos e espíritos animais Essa opinião é confirmada pelo apa rente aumento ou diminuição no tamanho dos objetos segundo sua distância pelas aparentes alterações em sua forma pelas mudanças em suas cores e outras qualidades ocasionadas por nossas doenças e indisposições e por um número infinito de outros experimentos do mesmo tipo Tudo isso nos ensina que nossas percepções sensíveis não possuem uma existência distinta ou independente 46 A conseqüência natural desse raciocínio deveria ser que nossas percepções não possuem nem uma existência contínua nem uma existência independente De fato os filósofos tanto adotaram essa opinião que alteraram seu sistema passando a distinguir como fa remos daqui em diante entre percepções e objetos Assim supõem que aquelas são descontínuas perecíveis e diferentes cada vez que retornam e que estes últimos são ininterruptos e preservam uma existência contínua e uma identidade Entretanto por mais filosófi co que esse novo sistema possa ser considerado afirmo que consti tui um mero paliativo com todas as dificuldades do sistema vulgar e mais algumas outras que lhe são peculiares Nenhum princípio seja do entendimento seja da fantasia levanos diretamente a adotar essa opinião da dupla existência das percepções e dos objetos só podemos chegar até ela passando pela hipótese comum da identidade e conti nuidade de nossas percepções descontínuas Se não estivéssemos antes persuadidos de que nossas percepções são nossos únicos ob jetos e que continuam existindo mesmo quando não mais aparecem aos sentidos nunca seríamos levados a pensar que nossas percep ções são diferentes de nossos objetos e somente estes preservam uma existência contínua Essa segunda hipótese não possui ori ginalmente nada que a recomende nem à razão nem à imaginação adquirindo toda sua influência sobre a imaginação pela primeira hipótese Tal proposição contém duas partes que procuraremos provar da maneira mais distinta e clara que o permitem esses temas abstrusos 244 Livro 1 Parte 4 Seção 2 4 7 Quanto à primeira parte da proposição que essa hipótese filosófica não possui originalmente nada que a recomende nem à razão nem à ima ginação podemos rapidamente nos convencer dela no que concerne à razão pelas seguintes reflexões As únicas existências de que estamos certos são as percepções que por estarem imediatamente presentes a nós pela consciência exigem nosso mais forte assenti mento sendo o primeiro fundamento de todas as nossas conclusões Só podemos inferir a existência de uma coisa a partir de outra por meio da relação de causa e efeito que mostra que há uma conexão entre elas e que a existência de uma depende da existência da outra A idéia dessa relação é derivada da experiência passada pela qual descobrimos que dois seres possuem uma conjunção constante estando sempre presentes ao mesmo tempo à mente Mas como os únicos seres que jamais estão presentes à mente são as percepções seguese que po demos observar uma conjunção ou uma relação de causa e efeito en tre diferentes percepções mas nunca podemos observála entre per cepções e objetos Portanto é impossível que da existência ou de qualquer qualidade das percepções possamos jamais formar uma con clusão concernente à existência dos objetos e que jamais possamos satisfazer nossa razão acerca desse ponto 48 É igualmente certo que esse sistema filosófico não possui nada que o recomende à imaginação e que esta faculdade nunca teria por si mesma e por sua tendência original chegado a um tal princípio Reconheço que será um pouco difícil provar essa afirmação de um modo que convença plenamente o leitor porque ela implica uma ne gação e em muitos casos as negações não admitem uma prova posi tiva Se alguém se desse ao trabalho de examinar o problema e inven tasse um sistema para dar conta da origem direta dessa opinião na imaginação seríamos capazes de estudando tal sistema enunciar um juízo certo sobre o assunto presente Admitamos que nossas percepções são fragmentadas e descontínuas e mesmo semelhantes são diferen tes uma das outras Se alguma pessoa com base nessa suposição mos trar por que a fantasia direta e imediatamente passa a crer em uma 245 Tratado da natureza humana outra existência semelhante a essas percepções em sua natureza mas contínua ininterrupta e idêntica se fizer isso de um modo con vincente prometo renunciar a minha opinião presente Por enquan to não posso deixar de concluir pelo próprio caráter abstrato e difí cil da suposição inicial que este não é um tema próprio para ser trabalhado pela fantasia Quem quiser explicar a origem da opinião co mum a respeito da existência contínua e distinta dos corpos deve to mar a mente em sua situação comum procedendo com base na suposi ção de que nossas percepções são nossos únicos objetos e continuam a existir mesmo quando não são mais percebidas Embora falsa essa opinião é a mais natural de todas e a única que consegue se impor ori ginalmente à fantasia 49 Quanto à segunda parte da proposição que o sistema filosófico ad quire toda sua influência sobre a imaginação pelo sistema vulgar podemos observar que essa é uma conseqüência natural e inevitável da conclu são anterior de que ele não possui originalmente nada que o recomende nem para a razão nem para a imaginação Porque como o sistema filosófico segundo nos mostra a experiência domina muitas mentes em parti cular a daqueles que refletem por pouco que seja sobre esse assun to ele deve extrair toda sua autoridade do sistema vulgar uma vez que originalmente não possui autoridade própria A seguir explica remos de que modo esses dois sistemas se conectam embora sejam diretamente contrários 50 A imaginação percorre naturalmente esta cadeia de pensamentos nossas percepções são nossos únicos objetos percepções semelhan tes são uma mesma coisa ainda que sua aparição seja fragmentada ou interrompida essa interrupção aparente é contrária à sua identida de a interrupção conseqüentemente não se estende além da aparên Texto corrigido segundo a edição Norton Norton que diz however broken or interrupted in their appearance A edição SelbyBiggeNidditch punha however broken or uninterrupted in their appearance o que me parece sem sentido sobretudo pelo que diz a frase seguinte e porque a menção à ausência de interrupção é supérflua para o raciocínio NT 246 Livro 1 Parte 4 Seção 2 eia e a percepção ou objeto na realidade continua a existir mesmo quando longe de nossa presença portanto nossas percepções sensí veis possuem uma existência contínua e ininterrupta Mas uma peque na reflexão mostra que nossas percepções possuem uma existência dependente destruindo assim essa conclusão de que sua existência é contínua por isso seria natural esperar que rejeitássemos por com pleto a opinião de que existe na natureza alguma coisa como uma exis tência contínua preservada mesmo quando não aparece mais aos sen tidos Entretanto não é isso o que ocorre Os filósofos estão tão longe de rejeitar a opinião de uma existência contínua por terem rejeitado a da independência e continuidade de nossas percepções sensíveis que embora todas as escolas concordem com esta última posição a primeira que é de certa forma sua conseqüência necessária tem sido peculiar a uns poucos céticos extravagantes e estes afinal sustentam tal opinião apenas verbalmente e jamais foram capazes de acreditar nela com toda sinceridade 51 Há uma grande diferença entre as opiniões que formamos após uma reflexão serena e profunda e as que abraçamos por uma espécie de instinto ou impulso natural em virtude de sua adequação e con formidade com a mente Se essas opiniões se tornam contrárias não é difícil prever qual terá a precedência Enquanto nossa atenção está voltada para o assunto em questão o sistema filosófico e refletido pode prevalecer mas assim que relaxamos nossos pensamentos a nature za se revela trazendonos de volta à nossa primeira opinião Mais ain da a influência da natureza é tal que é capaz de deter nosso avanço mesmo no decorrer das reflexões mais profundas impedindonos de tirar todas as conseqüências de um sistema filosófico Assim embo ra percebamos claramente a dependência e a descontinuidade de nos sas percepções não vamos adiante e jamais rejeitamos por esse mo tivo a noção de uma existência independente e contínua Essa opinião cria raízes tão profundas na imaginação que é impossível erradicála e nem a mais forçada convicção metafísica da dependência de nossas percepções será suficiente para tal propósito 247 Tratado da natureza humana 52 Embora nossos princípios naturais e evidentes prevaleçam aqui sobre nossas reflexões mais cuidadosas é certo contudo que deve haver alguma luta e oposição ao menos enquanto essas reflexões mantêm alguma força ou vividez Para eliminar nosso desconforto acerca desse ponto fabricamos uma nova hipótese que parece com preender ambos os princípios da razão e da imaginação Tratase da hipótese filosófica da dupla existência das percepções e dos objetos que satisfaz nossa razão ao admitir que nossas percepções dependen tes são descontínuas e diferentes e ao mesmo tempo é agradável para a imaginação por atribuir uma existência contínua a outra coisa a que chamamos objetos Esse sistema filosófico portanto é o fruto mons truoso de dois princípios contrários que são abraçados ao mesmo tem po pela mente um não sendo capaz de destruir o outro A imagina ção nos diz que nossas percepções semelhantes têm uma existência contínua e ininterrupta e que não são aniquiladas quando estão au sentes A reflexão nos diz que mesmo nossas percepções semelhan tes são diferentes umas das outras e possuem uma existência des contínua A contradição entre essas opiniões nós a eludimos por meio de uma nova ficção conforme tanto à hipótese da reflexão quanto à da fantasia atribuindo essas qualidades contrárias a existências dife rentes a descontinuidade às percepções e a continuidade aos objetos A natureza é obstinada e não abandona o campo de batalha mesmo que vigorosamente atacada pela razão ao mesmo tempo a razão é tão clara sobre esse ponto que é impossível disfarçála Incapazes de reconciliar essas duas inimigas procuramos tanto quanto possível amenizar nos so desconforto dando sucessivamente a cada uma aquilo que ela pede e criando a ficção de uma dupla existência em que cada uma possa encontrar algo que contenha todas as condições desejadas Se estivés semos inteiramente convencidos de que nossas percepções semelhan tes são contínuas idênticas e independentes nunca formaríamos a opinião de uma dupla existência pois ficaríamos satisfeitos com nos sa primeira suposição sem precisar buscar nada além dela Nova mente se estivéssemos inteiramente convencidos de que nossas per 248 Livro 1 Parte 4 Seção 2 cepções são dependentes descontínuas e diferentes estaríamos igualmente pouco inclinados a abraçar a opinião de uma dupla exis tência pois nesse caso perceberíamos claramente o erro de nossa primeira suposição de uma existência contínua e nunca mais a leva ríamos em consideração Portanto essa opinião surge da situação in termediária da mente ou seja da adesão a esses princípios contrá rios de tal forma que nos vemos levados a buscar um pretexto que justifique nossa aceitação de ambos Felizmente acabamos encon trando esse pretexto no sistema de uma dupla existência 53 Outra vantagem desse sistema filosófico é sua similaridade em re lação ao sistema vulgar Isso nos permite comprazer momentaneamen te à nossa razão quando ela se torna inquieta e inoportuna mas a seu menor descuido ou desatençã podemos com facilidade retomar nos sas noções vulgares e naturais De fato vemos que os filósofos não des prezam essa vantagem tão logo deixam seu gabinete de estudos mis turamse ao resto da humanidade em suas opiniões desacreditadas de que nossas percepções são nossos únicos objetos e continuam idên tica e ininterruptamente as mesmas ao longo de todas as suas apari ções descontínuas 54 Há outras particularidades desse sistema em que podemos obser var de maneira bastante evidente sua dependência em relação à fan tasia Dentre elas examinarei as duas seguintes Primeiramente supo mos que os objetos externos se assemelham às percepções internas Já mostrei que a relação de causa e efeito nunca nos permitiria fazer uma inferência legítima da existência ou das qualidades de nossas percepções para a existência de objetos externos e contínuos Acres centarei que mesmo que permitisse tal inferência nunca teríamos razão para inferir que nossos objetos se assemelham a nossas per cepções Essa opinião portanto não é derivada senão da qualidade da fantasia que explicamos anteriormente ou seja que ela toma todas as suas idéias de algumas percepções anteriores Jamais podemos conce ber nada além de percepções e portanto temos de fazer tudo se as semelhar a elas 249 Tratado da natureza humana 55 Em segundo lugar assim como supomos que nossos objetos em geral se assemelham a nossas percepções assim também damos por suposto que cada objeto particular se assemelha à percepção por ele causada A relação de causa e efeito nos determina a acrescentar a ela a de semelhança ou seja como as idéias dessas existências já estão unidas na fantasia pela primeira relação nós naturalmente acrescentamos a segunda para completar a união Possuímos uma forte propensão a completar toda união entre idéias somando novas relações às primeiramente observadas como teremos ocasião de no tar em breve 8 56 Tendo assim explicado todos os sistemas tanto populares como filosóficos a respeito das existências externas não posso deixar de dar vazão a um certo sentimento que surge quando torno a examinar tais sistemas Iniciei este tema com a premissa de que deveríamos ter uma fé implícita em nossos sentidos e que essa é a conclusão que extrairia da totalidade de meu raciocínio Mas para ser franco sin tome neste momento possuído pelo sentimento contrário Estou mais inclinado a não ter fé alguma em meus sentidos ou antes imagina ção do que a depositar neles uma tal confiança implícita Não con sigo conceber como qualidades tão triviais da fantasia conduzidas por essas falsas suposições podem jamais nos levar a um sistema só lido e racional A coerência e a constância de nossas percepções é que produzem a opinião de sua existência contínua embora essas qua lidades das percepções não tenham nenhuma conexão perceptível com tal existência A constância de nossas percepções tem o efeito mais considerável e entretanto se faz acompanhar das maiores di ficuldades É uma grande ilusão supor que nossas percepções seme lhantes possuem uma identidade numérica e é essa ilusão que nos leva à opinião de que essas percepções são ininterruptas e existem mesmo quando não estão mais presentes aos sentidos Isso é o que ocorre com nosso sistema popular Quanto ao filosófico ele é pas 8 Seção 5 250 Livro 1 Parte 4 Seção 2 sível das mesmas dificuldades e além disso é sobrecarregado com o absurdo de a um só tempo negar e corrpborar a suposição vulgar Os filósofos negam que nossas percepções semelhantes sejam inin terruptas e numericamente idênticas entretanto têm tamanha pro pensão a crer que o sejam que inventam de modo arbitrário um no vo conjunto de percepções a que atribuem essas qualidades Digo um novo conjunto de percepções pois podemos perfeitamente su por em geral mas é impossível concebermos distintamente que os objetos tenham uma natureza que não seja exatamente a mesma que a das percepções O que poderíamos esperar portanto dessa confusão de opiniões infundadas e extraordinárias senão erro e a falsidade E como poderíamos justificar perante nós mesmos qualquer crença que nelas depositemos 57 Essa dúvida cética tanto em relação à razão como aos sentidos é uma doença que jamais pode ser radicalmente curada voltando sem pre a nos atormentar por mais que a afastemos e por mais que às ve zes pareçamos estar inteiramente livres dela É impossível com base em qualquer sistema defender seja nosso entendimento seja nossos sentidos Apenas os deixamos mais vulneráveis quando tentamos justificálos dessa maneira Como a dúvida cética nasce naturalmen te de uma reflexão profunda e intensa sobre esses assuntos ela cres ce quanto mais longe levamos nossas reflexões sejam estas confor mes ou opostas a ela Apenas o descuido e a desatenção podem nos trazer algum remédio Por essa razão confio inteiramente neles e estou seguro de que qualquer que seja a opinião do leitor neste mo mento presente daqui a uma hora estará convencido de que existe tanto um mundo externo como um interno Guiandome por essa cer teza pretendo examinar alguns sistemas gerais antigos e modernos que foram propostos a respeito de ambos os mundos antes de pas sar a uma investigação mais detalhada sobre nossas impressões Tal vez vejamos no final que esse tema não está muito distante de nos so propósito presente 251 Tratado da natureza humana Seção 3 Da filosofia antiga 1 Diversos moralistas recomendaram como um excelente método para conhecermos nossos próprios corações e avaliarmos nosso pro gresso na virtude que recordemos nossos sonhos pela manhã exami nandoos com o mesmo rigor com que examinaríamos nossas ações mais sérias e deliberadas Nosso caráter é sempre o mesmo dizem eles e aparece melhor lá onde o artifício o medo e a dissimulação não têm lugar e onde os homens não podem ser hipócritas consigo mes mos ou com os outros A generosidade ou a baixeza de nosso caráter nossa brandura ou crueldade nossa coragem ou pusilanimidade in fluenciam as ficções da imaginação com a liberdade mais irrestrita revelandose em suas cores mais brilhantes De maneira semelhante estou convencido de que muitas descobertas úteis podem ser feitas com base em uma crítica das ficções da filosofia antiga referentes a substâncias formas substanciais acidentes e qualidades ocultas que por mais irracionais e caprichosas possuem uma conexão íntima com os princípios da natureza humana 2 Os filósofos mais judiciosos admitem que nossas idéias dos cor pos não são mais que coleções formadas pela mente das idéias das diversas qualidades sensíveis distintas que compõem os objetos e que constatamos possuírem uma união constante umas com as outras Mas embora tais qualidades possam ser em si mesmas inteiramente distintas o certo é que costumamos considerar o composto que for mam como UMA coisa que continua a MESMA ao longo de alterações bastante consideráveis A reconhecida composição é evidentemente contrária a essa suposta simplicidade e a alteração à identidade Por isso talvez valha a pena considerar as causas que fazem com que quase sem exceção caiamos em contradições tão evidentes bem como os meios pelos quais tentamos ocultálas 3 É evidente que como as idéias das diversas qualidades distintas e sucessivas dos objetos são unidas por uma relação muito estreita a 252 Livro 1 Parte 4 Seção 3 mente ao percorrer a sucessão deverá ser levada de uma parte a ou tra por uma transição fácil e não perceberá a mudança mais que se estivesse contemplando o mesmo objeto imutável Essa transição fá cil é o efeito ou antes a essência da relação e como a imaginação toma imediatamente uma idéia por outra quando sua influência sobre a mente é similar assim acontece que qualquer sucessão de qualidades relacionadas é logo considerada como um único objeto contínuo existindo sem qualquer variação O curso suave e ininterrupto do pen samento sendo semelhante nos dois casos facilmente engana a men te e nos faz atribuir uma identidade à sucessão cambiante de qua lidades conectadas 4 Porém quando alteramos nosso modo de considerar a sucessão e em vez de acompanhála gradativamente ao longo dos pontos su cessivos do tempo contemplamos de uma só vez dois períodos dis tintos de sua duração comparando as diferentes condições das qua lidades sucessivas nesse caso as variações que eram imperceptíveis quando se davam de modo gradativo mostramse importantes e pa recem destruir por completo a identidade Surge assim uma espécie de contrariedade em nosso modo de pensar decorrente dos diferentes pontos de vista a partir dos quais examinamos o objeto bem como da proximidade ou do afastamento entre os instantes temporais que com paramos Quando seguimos gradativamente um objeto em suas suces sivas mudanças o progresso suave do pensamento nos faz atribuir uma identidade à sucessão porque é mediante um ato mental similar que contemplamos um objeto imutável Quando comparamos sua si tuação após uma mudança considerável o progresso do pensamento se quebra e conseqüentemente apresentasenos a idéia de diversi dade Para resolver essas contradições a imaginação tende a fantasiar algo desconhecido e invisível que supõe continuar o mesmo ao lon go dessas variações A esse algo ininteligível ela dá o nome de substân cia ou matéria primeira e original 5 Sustentamos uma noção similar a respeito da simplicidade das subs tâncias e por causas semelhantes Suponhamos que se nos apresente 253 Tratado da natureza humana um objeto perfeitamente simples e indivisível junto com um outro cujas partes coexistentes são conectadas por uma forte relação Nesse caso é evidente que as ações da mente ao considerar os dois objetos não são muito diferentes A imaginação concebe o objeto simples de uma só vez com facilidade por um esforço único de pensamento sem mudança ou variação A conexão entre as partes no objeto com posto tem quase o mesmo efeito e une internamente o objeto de tal maneira que a fantasia não sente a transição ao passar de uma parte a outra Assim a cor o sabor a forma a solidez e outras qualidades combinadas em um pêssego ou melão são concebidas como forman do uma coisa e isso em virtude de sua estreita relação que as faz afetar o pensamento como se o objeto não possuísse nenhuma composi ção Mas a mente não pára aqui Sempre que observa o objeto de ou tra perspectiva constata que essas qualidades são todas diferentes distinguíveis e separáveis entre si E essa perspectiva por destruir suas noções primeiras e mais naturais obriga a imaginação a fantasiar um algo desconhecido uma substância e matéria original como princí pio de união ou coesão entre essas qualidades capaz de dar ao ob jeto composto o direito de ser chamado de uma coisa apesar de sua diversidade e composição 6 A filosofia peripatética afirma que a matéria original é perfeitamen te homogênea em todos os corpos e considera que o fogo a água a terra e o ar em virtude de suas mudanças e transformações graduais uns nos outros são exatamente da mesma substância Ao mesmo tem po confere a cada uma dessas espécies de objetos uma forma substan cial distinta que supõe ser a fonte de todas aquelas diferentes quali dades que eles possuem e um novo fundamento de simplicidade e identidade para cada espécie particular Tudo depende de nossa manei ra de ver os objetos Quando acompanhamos as mudanças insensí veis dos corpos supomos que todos têm a mesma substância ou es sência Quando consideramos suas diferenças sensíveis atribuímos a cada um deles uma diferença substancial e essencial E para satisfa zer a esses nossos dois modos de considerar os objetos supomos que 254 Livro 1 Parte 4 Seção 3 todos os corpos possuem ao mesmo tempo uma substância e uma forma substancial 7 A noção de acidente é uma conseqüência inevitável desse modo de pensar a respeito de substâncias e formas substanciais Não podemos nos impedir de considerar cores sons sabores formas e outras proprie dades dos corpos como existências incapazes de subsistir separadamen te e que requerem um sujeito de inerência que as sustente e suporte Pois sempre que descobrimos alguma dessas qualidades sensíveis tam bém imaginamos pelas razões acima mencionadas a existência de uma substância e o mesmo hábito que nos faz inferir uma conexão entre causa e efeito levanos aqui a inferir que todas as qualidades dependem da substância desconhecida O costume de imaginar uma dependên cia tem o mesmo efeito que teria o costume de observála Mas essa ficção é tão irracional quanto as anteriores Como toda qualidade é uma coisa distinta pode ser concebida existindo separadamente e pode existir separadamente não apenas de todas as outras qualidades mas também dessa quimera ininteligível que é a substância 8 Porém esses filósofos levam ainda mais longe suas ficções quando falam de qualidades ocultas supondo ao mesmo tempo uma substância que sustenta e que eles não compreendem e um acidente sustentado do qual têm uma idéia igualmente imperfeita Todo o sistema portan to é completamente incompreensível e não obstante deriva de princí pios tão naturais quanto qualquer um dos acima explicados 9 Refletindo sobre este tema podemos observar uma gradação en tre três opiniões que se sucedem à medida que aqueles que as formam adquirem novos graus de razão e conhecimento Essas opiniões são as do vulgo da falsa filosofia e da verdadeira filosofia Ao examiná las veremos que a verdadeira filosofia se aproxima mais dos sentimen tos do vulgo que daqueles de um conhecimento equivocado É natu ral que os homens em seu modo comum e descuidado de pensar imaginem perceber uma conexão entre os objetos que constataram estar constantemente unidos e como o costume tornou difícil sepa rar as idéias eles tendem a imaginar que essa separação é em si mes 255 Tratado da natureza humana ma impossível e absurda Mas os filósofos que abstraem os efeitos do costume e comparam as idéias dos objetos percebem imediatamen te a falsidade dessas concepções vulgares descobrindo que não existe nenhuma conexão conhecida entre os objetos Cada objeto diferente lhes parece inteiramente distinto e separado e percebem que não é partindo de uma visão de sua natureza e qualidades que inferimos um objeto de outro mas apenas quando em diversos casos observamos que apresentaram uma conjunção constante No entanto tais filóso fos em vez de extrair dessa observação uma inferência legítima e con cluir que não possuímos nenhuma idéia de um poder ou princípio de ação separados da mente e pertencentes às causas buscam freqüen temente as qualidades em que esse princípio de ação consiste e ficam descontentes com todos os sistemas que sua razão lhes sugere para explicála Possuem suficiente perspicácia para se livrar do erro vulgar de que existiria uma conexão natural e perceptível entre as diversas qua lidades sensíveis e as ações da matéria mas não suficiente para se abs ter de procurar tal conexão na matéria ou nas causas Caso houvessem chegado à conclusão correta teriam retornado à situação do vulgo con siderando todas estas perquirições com descaso e indiferença No pre sente momento parecem estar em uma situação bastante lamentável da qual os poetas nos forneceram uma vaga noção em suas descrições das punições de Sísifo e de Tântalo Pois será possível imaginar tormen to maior que a busca voraz de algo que para sempre nos escapa e sua busca lá onde é impossível que possa vir a existir 10 A natureza parece ter guardado contudo uma espécie de justiça e compensação em todas as coisas e não se descuidou dos filósofos mais que do resto da criação ao contrário reservoulhes um conso lo em meio a todas as suas decepções e aflições Tal consolo consiste especialmente na invenção por parte dos filósofos das palavras f acui dade e qualidade oculta De fato após utilizarmos com freqüência ter mos realmente significativos e inteligíveis é comum omitirmos a idéia que pretendíamos exprimir por meio deles conservando apenas o costu me que nos permite evocar essa idéia a nosso belprazer por isso tam 256 Livro 1 Parte 4 Seção 4 bém é natural que após o uso freqüente de termos inteiramente ininteligíveis e sem significado imaginemos que eles se equiparam aos precedentes e que possuem um sentido secreto que poderíamos des cobrir por reflexão A semelhança de sua aparência engana a mente como é usual fazendonos imaginar uma perfeita semelhança e con formidade Desse modo esses filósofos se reconfortam e finalmente atingem graças a uma ilusão a mesma indiferença que as pessoas co muns adquirem por sua estupidez e os verdadeiros filósofos por seu ceticismo moderado Para isso basta que digam de qualquer fenôme no que os embarace que este deriva de uma faculdade ou de uma qua lidade oculta e acabamse todas as disputas e investigações sobre o assunto 1 1 Mas dentre todos os casos que nos mostram que os peripatéticos se deixam guiar por qualquer vã propensão da imaginação nenhum é mais digno de nota que suas simpatias antipatias e horror ao vácuo A natureza humana possui uma notável inclinação a atribuir aos obje tos externos as mesmas emoções que observa em si própria e a en xergar em todo lugar aquelas idéias que lhe estão mais presentes É verdade que essa inclinação se elimina por uma pequena reflexão e só persiste nas crianças nos poetas e nos filósofos antigos Nas crian ças aparece por exemplo em seu desejo de bater nas pedras que as ferem nos poetas na facilidade com que personificam todas as coi sas e nos filósofos antigos nessas ficções da simpatia e da antipatia Devemos perdoar as crianças porque têm pouca idade os poetas porque admitem seguir sem reservas as sugestões de sua fantasia Mas que desculpa encontraremos para justificar nossos filósofos em uma fraqueza tão evidente Seção 4 Da filosofia moderna 1 Podese aqui objetar que como a imaginação segundo eu mesmo admito é o juiz último de todos os sistemas filosóficos eu estaria sen 257 Tratado da natureza humana do injusto ao condenar os filósofos antigos por fazerem uso daquela faculdade e por se deixarem guiar inteiramente por ela em seus racio cínios Para me justificar devo fazer uma distinção na imaginação entre os princípios permanentes irresistíveis e universais tais como a transição costumeira das causas aos efeitos e dos efeitos às causas e os princípios variáveis fracos e irregulares como os que acabo de mencionar Os primeiros são o fundamento de todos os nossos pensamentos e ações de tal forma que se eliminados a natureza hu mana imediatamente pereceria e desapareceria Os últimos não são nem inevitáveis à humanidade nem necessários ou sequer úteis para a condução da vida ao contrário observase que só têm lugar em men tes fracas e como se opõem aos outros princípios do costume e do raciocínio podem facilmente ser anulados por um contraste e oposi ção adequados Por essa razão os primeiros são aceitos pela filosofia e os últimos rejeitados A pessoa que conclui que há alguém por per to quando ouve no escuro uma voz articulada raciocina de maneira correta e natural embora tal conclusão derive apenas do costume que fixa e dá mais vida à idéia de uma criatura humana em virtude de sua conjunção usual com a impressão presente Mas a pessoa que sem saber por que é atormentada pelo temor de espectros na escuridão desta também podemos dizer talvez que está raciocinando e racio cinando de uma maneira natural mas neste caso deve ser no mesmo sentido em que dizemos que uma doença é natural porque deriva de causas naturais apesar de ser contrária à saúde que é a situação mais agradável e mais natural do homem 2 As opiniões dos filósofos antigos suas ficções da substância e dos acidentes e seus raciocínios acerca de formas substanciais e qualida des ocultas são como os espectros na escuridão e derivam de princí pios que embora comuns não são nem universais nem inevitáveis na natureza humana A filosofia moderna pretende estar inteiramente li vre desse defeito e resultar exclusivamente dos princípios sólidos permanentes e consistentes da imaginação Devemos agora investigar qual o fundamento de tal pretensão 258 Livro 1 Parte 4 Seção 4 3 O princípio fundamental dessa filosofia é a opinião a respeito das cores sons sabores aromas calor e frio os quais afirma serem ape nas impressões na mente derivadas da operação dos objetos externos e sem qualquer semelhança com as qualidades dos objetos Ao exa minar essa opinião vejo que apenas uma das razões comumente apre sentadas para justificála é satisfatória a saber aquela que se baseia nas variações sofridas por essas impressões mesmo quando o objeto externo aparentemente continua o mesmo Tais variações depen dem de diversas circunstâncias Das diferentes condições de nossa saúde um homem doente sente um sabor desagradável na carne que antes lhe agradava mais Das diferentes compleições e constituições dos homens aquilo que para um parece amargo é doce para outro Da diferença em sua situação e posição externa as cores refletidas pelas nuvens mudam de acordo com a distância dessas nuvens e de acordo com o ângulo que formam com o olho e o corpo luminoso O fogo também comunica a sensação de prazer a uma certa distância e de dor a uma outra Exemplos dessa espécie são muito numerosos e freqüentes 4 A conclusão deles extraída é igualmente a mais satisfatória que se pode imaginar É certo que quando diferentes impressões do mesmo sentido surgem de um objeto nem todas elas podem ter uma quali dade semelhante existente no objeto Porque como o mesmo objeto não pode ser dotado simultaneamente de diferentes qualidades refe rentes ao mesmo sentido e como a mesma qualidade não pode se as semelhar a impressões inteiramente diferentes seguese evidente mente que muitas de nossas impressões não possuem um modelo ou arquétipo externo Ora de efeitos semelhantes presumimos causas semelhantes Admitese que muitas impressões de cor som etc não são mais que existências internas e resultam de causas que de ne nhum modo se assemelham a elas Essas impressões em sua apa rência não são nem um pouco diferentes das outras impressões de cor som etc Concluímos portanto que todas elas têm uma origem semelhante 259 Tratado da natureza humana 5 Uma vez admitido esse princípio todas as outras doutrinas des sa filosofia parecem se seguir facilmente Pois ao retirar sons cores calor e outras qualidades sensíveis da classe de existências contínuas e independentes ficamos reduzidos apenas às chamadas qualidades primárias como as únicas qualidades reais e de que temos uma noção adequada Essas qualidades primárias são a extensão e a solidez com suas diferentes combinações e modificações forma movimento gra vidade e coesão A geração o crescimento o envelhecimento e a cor rupção dos animais e vegetais são tãosomente mudanças na forma e no movimento o mesmo se aplica às operações de todos os corpos uns sobre os outros do fogo da luz da água do ar da terra e de todos os elementos e poderes da natureza Uma forma e um movimento pro duzem outra forma e outro movimento E não resta no universo ma terial nenhum outro princípio ativo ou passivo do qual possamos for mar a idéia mais distante 6 Acredito que se poderiam levantar muitas objeções a esse siste ma No momento porém irei me limitar a apenas uma que conside ro decisiva Afirmo que por meio desse sistema em vez de explicar mos as operações dos objetos externos acabamos aniquilando por completo todos esses objetos e ficamos reduzidos às opiniões que o ceticismo mais extravagante mantém a seu respeito Se cores sons sabores e aromas são somente percepções nada que possamos con ceber possui uma existência real contínua e independente sequer o movimento a extensão e a solidez que são as qualidades primárias em que mais se insiste 7 Comecemos com o exame do movimento É evidente que essa é uma qualidade que não pode de modo algum ser concebida isolada mente sem referência a algum outro objeto A idéia de movimento supõe necessariamente a de um corpo que se move Ora o que é nossa idéia do corpo que se move sem a qual o movimento é incompreen sível Ela deve se reduzir à idéia de extensão ou de solidez conseqüen temente a realidade do movimento depende da realidade dessas ou tras qualidades 260 Livro 1 Parte 4 Seção 4 8 Provei que essa opinião universalmente reconhecida quando se trata do movimento é também verdadeira no que diz respeito à exten são e mostrei que é impossível conceber esta última senão como com posta de partes dotadas de cor ou solidez A idéia de extensão é uma idéia composta mas como não é composta de um número infinito de partes ou idéias inferiores ela tem que afinal se resolver em partes per feitamente simples e indivisíveis Essas partes simples e indivisíveis não sendo idéias de extensão teriam que ser nãoentidades a menos que as concebamos como sendo coloridas ou sólidas A cor está ex cluída de qualquer existência real A realidade de nossa idéia de exten são portanto depende da realidade da idéia de solidez e a primeira não poderá ser legítima se esta última for quimérica Por isso voltemos nos sa atenção para o exame da idéia de solidez 9 A idéia de solidez é a de dois objetos que mesmo impelidos por uma força extrema não conseguem penetrar um no outro manten do ao contrário uma existência separada e distinta A solidez portan to é inteiramente incompreensível de maneira isolada sem a concep ção de alguns corpos sólidos que conservam essa existência separada e distinta Ora que idéia temos desses corpos As idéias de cores sons e outras qualidades secundárias estão excluídas A idéia de mo vimento depende da de extensão e a idéia de extensão da de solidez É impossível portanto que a idéia de solidez possa depender de qual quer uma das duas Isso seria andar em círculos e fazer uma idéia de pender de outra ao mesmo tempo que esta última depende da pri meira Nossa filosofia moderna assim não nos deixa com nenhuma idéia legítima ou satisfatória de solidez e conseqüentemente tam pouco de matéria 10 Todo aquele que compreender esse argumento irá considerálo inteiramente conclusivo mas como ele pode parecer abstruso e intrincado para a generalidade dos leitores peço que me perdoem por tentar tornálo mais evidente exprimindoo de outra maneira Para formar uma idéia de solidez temos de conceber dois corpos pressio nando um ao outro sem se penetrar é impossível chegar a essa idéia 261 Tratado da natureza humana se nos limitamos a um só objeto e mais ainda se não concebemos nenhum Duas nãoentidades não podem se excluir reciprocamente de seus lugares porque não ocupam lugar algum nem podem ser do tadas de nenhuma qualidade Agora pergunto que idéia formamos desses corpos ou objetos a que atribuímos solidez Dizer que os con cebemos meramente como sólidos seria uma regressão ao infinito Afirmar que os representamos como extensos seria reduzir tudo a uma idéia falsa ou então cair em um círculo A extensão tem que necessa riamente ser considerada quer como colorida o que é uma idéia fal sa quer como sólida o que nos traz de volta à primeira questão Po demos fazer a mesma observação a respeito da mobilidade e da forma e de tudo o que foi dito devemos concluir que com a exclusão das cores sons calor e frio da classe de existências externas não sobra nada que possa nos dar uma idéia legítima e consistente de corpo 1 1 Acrescentese a isso que para falar corretamente a solidez ou impenetrabilidade não é senão uma impossibilidade de aniquilação como já observamos9 Por essa razão é ainda mais necessário que formemos alguma idéia distinta daquele objeto cuja aniquilação su pomos impossível Uma impossibilidade de aniquilação não pode existir e jamais podemos conceber que exista por si mesma ela re quer necessariamente algum objeto ou existência real a que possa ser atribuída Ora ainda permanece a dificuldade sobre como formar uma idéia desse objeto ou existência sem recorrer às qualidades secundá rias e sensíveis 12 Tampouco devemos esquecer nesta ocasião nosso método cos tumeiro de examinar as idéias ou seja considerar as impressões de que elas derivam A filosofia moderna afirma que as impressões que penetram pela visão audição olfato ou paladar não se assemelham a nenhum objeto e conseqüentemente a idéia de solidez que se supõe real jamais poderia ser derivada de nenhum desses sentidos Resta o tato portanto como o único sentido capaz de transmitir a impressão 9 Parte 2 Seção 4 262 Livro 1 Parte 4 Seção 4 que dá origem à idéia de solidez e de fato imaginamos naturalmen te que sentimos a solidez dos corpos e precisamos apenas tocar um objeto para perceber essa qualidade Mas esse modo de pensar é mais popular que filosófico como o mostrarão as seguintes reflexões 13 Primeiramente é fácil observar que embora os corpos sejam sen tidos por meio de sua solidez a sensação do tato é algo bem diferente da solidez e não há a menor semelhança entre os dois Um homem com paralisia em uma das mãos adquire uma idéia tão perfeita de im penetrabilidade quando observa essa mão ser sustentada pela mesa como nas ocasiões em que sente a mesma mesa com a outra mão Um objeto que pressiona um de nossos membros encontra uma resistên cia e essa resistência pelo movimento que ocasiona nos nervos e es píritos animais transmite uma certa sensação à mente mas daí não se segue que a sensação o movimento e a resistência sejam de algum modo semelhantes 14 Em segundo lugar as impressões do tato são impressões simples exceto quando consideradas quanto a sua extensão o que não tem per tinência para nosso propósito presente Dessa simplicidade infiro que elas não representam nem a solidez nem qualquer objeto real Pois suponhamos dois casos o de um homem que pressiona com a mão uma pedra ou outro corpo sólido e o de duas pedras que pressionam uma à outra Todos admitirão imediatamente que esses dois casos não são semelhantes sob todos os aspectos pois no primeiro existe em con junção com a solidez um tato ou sensação que não aparece no se gundo Portanto para tornar esses dois casos semelhantes seria preci so eliminar alguma parte da impressão que o homem sente através de sua mão ou órgão da sensação mas como isso é impossível por se tratar de uma impressão simples somos obrigados a eliminar a impressão inteira o que prova que esta não possui nenhum arquétipo ou modelo nos objetos externos Podemos acrescentar ainda que a solidez supõe necessariamente dois corpos juntamente com a contigüidade e o choque e como isso constitui um objeto composto ela jamais po deria ser representada por uma impressão simples Sem mencionar 263 Tratado da natureza humana que embora a solidez continue sempre invariavelmente a mesma as impressões do tato mudam para nós a cada momento o que é uma prova clara de que estas últimas não são representações da primeira 15 Assim há uma oposição direta e total entre nossa razão e nossos sentidos ou mais propriamente falando entre as conclusões que for mamos a partir da causa e efeito e as que nos persuadem da existên cia contínua e independente dos corpos Quando raciocinamos a par tir da causa e efeito concluímos que nem a cor nem o som nem o sabor nem o aroma têm uma existência contínua e independente Quando excluímos essas qualidades sensíveis não resta nada no uni verso que possua tal existência Seção 5 Da imaterialidade da alma 1 Tendo encontrado tantas contradições e dificuldades em todos os sistemas concernentes aos objetos externos bem como na idéia de matéria que imaginávamos ser tão clara e precisa é natural esperar mos encontrar dificuldades e contradições ainda maiores nas hipóte ses acerca de nossas percepções internas e da natureza da mente que tendemos a imaginar muito mais obscuras e incertas Mas quanto a isso estamos enganados O mundo intelectual embora envolto em infinitas obscuridades não é embaraçado por nenhuma dessas con tradições que descobrimos no mundo natural Aquilo que conhecemos a seu respeito concorda consigo mesmo e aquilo que desconhecemos temos de nos conformar em deixar como está 2 É verdade que certos filósofos prometem diminuir nossa ignorân cia mas receio que se prestássemos ouvidos a eles arriscarnosía mos a cair em contradições das quais o assunto em si mesmo está isento Refirome aos filósofos que constroem raciocínios meticulo sos para mostrar que nossas percepções seriam inerentes a uma 264 Livro 1 Parte 4 Seção 5 substância material ou a uma substância imaterial Para pôr um termo nessas infindáveis cavilações de ambos os lados o melhor método que conheço é perguntar a tais filósofos em poucas palavras o que querem dizer com substância e inerência Apenas após terem respondido a essa questão e só então será razoável entrar seriamente na discussão 3 Vimos que era impossível responder a essa questão no caso da matéria e dos corpos Mas o caso da mente além de enfrentar as mes mas dificuldades é ainda sobrecarregado por outras peculiares a esse tema Como toda idéia é derivada de uma impressão precedente se tivéssemos uma idéia da substância de nossas mentes teríamos que ter dela também uma impressão o que é muito difícil senão impos sível de se conceber Pois como poderia uma impressão representar uma substância senão assemelhandose a ela E como poderia uma impressão se assemelhar a uma substância já que segundo essa filo sofia ela não é uma substância e não possui nenhuma das qualida des ou características peculiares de uma substância 4 Mas deixando de lado a questão sobre o que pode e o que não pode ser e substituindoa por esta outra o que realmente existe gostaria que aqueles filósofos que afirmam que possuímos uma idéia da substân cia de nossas mentes nos apontassem a impressão que produz essa idéia e que nos dissessem distintamente como tal impressão opera e de que objeto deriva É ela uma impressão de sensação ou de refle xão É agradável dolorosa ou indiferente Acompanhanos em todos os momentos ou só aparece a intervalos Se a intervalos em que momentos sobretudo aparece e que causas a produzem 5 Se em vez de responder a essas questões alguém quisesse esca par da dificuldade dizendo que uma substância se define como algu ma coisa que existe por si mesma e que essa definição deveria nos satis fazer se alguém o dissesse eu observaria que essa definição convém a tudo que se possa conceber e por isso nunca serviria para distinguir substância de acidente ou a alma de suas percepções Meu raciocínio é o seguinte Tudo que é concebido claramente pode existir e tudo que é concebido claramente de determinada maneira pode existir dessa 265 Tratado da natureza humana mesma maneira Esse é um princípio que já admitimos Mais ainda tudo que é diferente é distinguível e tudo que é distinguível é sepa rável pela imaginação Esse é outro princípio Desses dois princípios concluo que uma vez que todas as nossas percepções são diferentes umas das outras e de tudo mais no universo também elas são distin tas e separáveis e podem ser consideradas existindo separadamente e podem de fato existir separadamente sem necessitar de nada mais para sustentar sua existência São portanto substâncias até onde a definição acima explica o que é uma substância 6 Assim nem considerando a origem das idéias nem por meio de uma definição somos capazes de chegar a uma noção satisfatória de subs tância Isso me parece uma razão suficiente para abandonarmos por completo a discussão acerca da materialidade ou imaterialidade da alma e me faz condenar inteiramente a própria questão Não possuí mos idéia perfeita de nada senão de percepções Uma substância é absolutamente diferente de uma percepção Portanto não possuímos nenhuma idéia de uma substância A inerência a alguma coisa é su postamente necessária para sustentar a existência de nossas percep ções Nada parece necessário para sustentar a existência de uma per cepção Portanto não possuímos idéia alguma de inerência Como seria possível então responder à questão se as percepções são inerentes a uma substância material ou imaterial quando nem mesmo compreen demos o sentido da questão 7 Há um argumento comumente empregado a favor da imateriali dade da alma que me parece notável Tudo que é extenso é composto de partes e tudo que é composto de partes é divisível senão na reali dade ao menos na imaginação Mas é impossível haver uma conjunção entre uma coisa divisível e um pensamento ou uma percepção que é um ser inteiramente inseparável e indivisível Pois supondo que houvesse tal conjunção o pensamento indivisível existiria à esquerda ou à direita desse corpo extenso e divisível Na superfície ou no meio Atrás ou na frente dele Se o pensamento existir em conjunção com a extensão ele tem de estar em algum lugar dentro de suas dimensões Se existir den 266 Livro 1 Parte 4 Seção 5 tro de suas dimensões tem de estar ou numa parte em particular e então essa parte em particular é indivisível e a percepção existe em con junção apenas com ela não com a extensão ou se o pensamento está em todas as partes ele também tem de ser extenso separável e divisí vel tal como o corpo o que é inteiramente absurdo e contraditório Pois quem poderia conceber uma paixão com uma jarda de comprimento um pé de largura e uma polegada de espessura O pensamento e a ex tensão portanto são qualidades absolutamente incompatíveis e jamais poderiam se incorporar juntas em um objeto único 8 Esse argumento não afeta a questão concernente à substância da alma mas apenas aquela concernente à sua conjunção local com a ma téria Por isso talvez não seja fora de propósito considerar quais ob jetos em geral são ou não suscetíveis de uma conjunção local Essa é uma questão curiosa e pode nos levar a algumas descobertas de gran de importância 9 A primeira noção de espaço e extensão é derivada exclusivamen te dos sentidos da visão e do tato Apenas as coisas coloridas ou tan gíveis possuem partes dispostas de maneira a transmitir tal idéia Quando diminuímos ou aumentamos um sabor não o fazemos da mesma maneira pela qual diminuímos ou aumentamos um objeto vi sível E quando diversos sons atingem nossa audição ao mesmo tem po somente o costume e a reflexão nos fazem formar uma idéia dos graus de distância e contigüidade dos corpos de que esses sons deri vam Tudo aquilo cuja existência ocupa um lugar tem de ser ou bem extenso ou bem um ponto matemático sem partes nem composição Aquilo que é extenso tem de ter uma forma particular como por exem plo quadrada redonda triangular e nenhuma dessas convém a um de sejo nem aliás a qualquer impressão ou idéia exceto as desses dois sentidos acima mencionados Tampouco se deve considerar um dese jo embora indivisível como um ponto matemático Pois nesse caso seria possível pela adição de outros formar dois três quatro desejos dispostos de tal maneira que tivessem um comprimento uma largu ra e uma espessura determinados o que evidentemente é absurdo 267 Tratado da natureza humana 10 Assim não será surpreendente se eu enunciar uma máxima que é condenada por diversos metafísicos e considerada contrária aos prin cípios mais certos da razão humana Essa máxima é que um objeto pode existir sem entretanto estar em nenhum lugar e afirmo que não apenas isso é possível mas que a maior parte dos seres existem e têm de existir dessa maneira Podese dizer que um objeto não está em nenhum lu gar quando suas partes não estão situadas umas em relação às outras de modo a formar uma figura ou uma quantidade nem o todo está situado em relação a outros corpos de modo a responder a nossas noções de contigüidade ou distância Ora é evidente que é esse o caso de todas as nossas percepções e objetos exceto os da visão e do tato Uma reflexão moral não pode estar situada à direita ou à esquerda de uma paixão e um aroma ou um som não pode ter uma forma circular ou quadrada Esses objetos e percepções longe de demandarem um lu gar particular são absolutamente incompatíveis com qualquer lugar e nem a imaginação é capaz de lhos atribuir Quanto a se dizer que é ab surdo supor que não estão em nenhum lugar podemos observar que se as paixões e sentimentos aparecessem à percepção como tendo um lugar particular a idéia de extensão poderia ser derivada deles tanto quanto da visão e do tato o que contradiz o que já estabelecemos E se aparecem como não tendo nenhum lugar particular é possível que existam da mesma maneira já que tudo que concebemos é possível 1 1 Não será necessário provar agora que essas percepções simples e que não existem em nenhum lugar são incapazes de ter uma conjun ção espacial com a matéria ou com os corpos extensos e divisíveis pois só é possível fundar uma relação10 sobre uma qualidade comum Talvez valha mais a pena observar que essa questão da conjunção lo cal dos objetos não ocorre somente nos debates metafísicos a respeito Como o sentido do verbo appear me parece aqui mais discutível reproduzo a seguir o trecho em inglês if the passions and sentiments appear to the perception to have any particular place the idea of extension might be derived from them If they appear not to have any particular place they may possibly exist in the sarne manner Cf também nossa nota à p75 acima NT 10 Parte 1 Seção 5 268 Livro 1 Parte 4 Seção 5 da natureza da alma até mesmo na vida comum temos a todo momen to ocasião de observála Assim supondo que vejamos um figo sobre uma das extremidades de uma mesa e uma azeitona sobre a outra é evidente que ao formarmos as idéias complexas dessas substâncias uma das mais óbvias é a de seus diferentes sabores e é igualmente evidente que incorporamos e juntamos essas qualidades àquelas que são coloridas e tangíveis Supomos que o sabor amargo de uma e o doce da outra estão no próprio corpo visível e que estão separados um do outro por todo o comprimento da mesa Essa é uma ilusão tão notável e tão natural que talvez seja apropriado considerar os princípi os de que resulta 12 Embora um objeto extenso não possa ter uma conjunção espacial com outro objeto que existe sem lugar ou extensão os dois são sus cetíveis de muitas outras relações Assim o sabor e o aroma de uma fruta são inseparáveis de suas outras qualidades de cor e tangibilidade E não importa qual dessas qualidades é a causa ou o efeito o certo é que são sempre coexistentes e não são apenas coexistentes em ge ral mas também contemporâneas em seu aparecimento na mente É pela aplicação do corpo extenso a nossos sentidos que percebemos seu sabor e aroma particulares Portanto essas relações entre o objeto extenso e a qualidade que existe sem possuir um lugar particular a saber as relações de causalidade e contigüidade no momento de sua apari ção devem ter tal influência sobre a mente que quando um deles apa rece ela imediatamente dirige seu pensamento para a concepção do outro Mas isso não é tudo Nós não apenas dirigimos nosso pensa mento de um ao outro em virtude de sua relação mas além disso ten tamos lhes atribuir uma nova relação a de uma conjunção espacial para tornar a transição mais fácil e natural Porque a natureza humana apre senta essa qualidade que terei ocasião de observar com freqüência e que explicarei de maneira mais completa em seu devido lugar quando determinados objetos estão unidos por uma relação qualquer temos uma forte propensão a acrescentar a eles uma nova relação a fim de completar a união Quando ordenamos os corpos sempre colocamos 269 Tratado da natureza humana aqueles que são semelhantes em contigüidade uns com os outros ou ao menos em pontos de vista equivalentes Ora por que o faríamos senão porque sentimos uma satisfação em juntar a relação de conti güidade à de semelhança ou a semelhança de situação à de qualida des Já observamos11 os efeitos dessa propensão na semelhança que tão prontamente supomos existir entre impressões particulares e suas causas externas Mas seu efeito mais evidente se mostra no exemplo presente em que partindo de relações de causalidade e de contigüi dade temporal entre dois objetos fantasiamos também a de uma con junção no espaço com o propósito de fortalecer a conexão 13 No entanto quaisquer que sejam as noções confusas que possa mos formar de uma união espacial entre um corpo extenso como um figo e seu sabor particular é certo que após uma reflexão observa remos nessa união algo inteiramente ininteligível e contraditório Pois se fizéssemos a nós mesmos esta pergunta óbvia a saber se o sabor que concebemos como estando contido dentro do perímetro do corpo está em todas as partes desse corpo ou em apenas uma logo nos sen tiríamos perdidos e perceberíamos ser impossível encontrar uma res posta satisfatória Não podemos responder que está apenas em uma parte pois a experiência nos convence de que todas as partes têm o mesmo sabor Tampouco podemos responder que existe em todas as partes pois nesse caso teríamos de supor que possui figura e exten são o que é absurdo e incompreensível Vemonos aqui portanto in fluenciados por dois princípios diretamente contrários a saber a incli nação de nossa fantasia que nos determina a incorporar o sabor no objeto extenso e nossa razão que nos mostra a impossibilidade de tal união Divididos entre esses princípios opostos não renunciamos nem a um nem ao outro em vez disso envolvemos o assunto em tal confu são e obscuridade que não mais percebemos a oposição Supomos que o sabor existe dentro do perímetro do corpo mas de maneira a preen 1 1 Finai da Seção 2 270 Livro 1 Parte 4 Seção 5 cher o todo sem ser extenso e que existe inteiro em cada parte sem se dividir Em resumo em nosso modo mais familiar de pensar utili zamos aquele princípio escolástico que nos parece tão chocante quan do apresentado cruamente totum in tato totum in qualibet parte que é o mesmo que dizer que uma coisa está num certo lugar e en tretanto não está lá 14 Todo esse absurdo decorre do fato de tentarmos conceder um lu gar a algo que é inteiramente incapaz de ocupar um lugar e essa ten tativa por sua vez decorre de nossa inclinação para completar uma união fundada na causalidade e na contigüidade temporal atribuin do aos objetos uma conjunção no espaço Mas se a razão alguma vez tiver força suficiente para superar o preconceito é certo que ela deve prevalecer neste caso Pois só temos uma escolha ou supor que alguns seres existem sem estar em nenhum lugar ou supor que eles possuem figura e extensão ou ainda que quando se incorporam em objetos extensos o todo está no todo e o todo está em cada parte O absurdo das duas últimas suposições é uma prova suficiente da veracidade da primeira E não há uma quarta alternativa Pois quanto à suposição de que esses seres existem ao modo dos pontos matemáticos ela se re duz à segunda opinião supõe que diversas paixões podem estar dis postas de maneira a formar uma figura circular e que um certo nú mero de aromas em conjunção com um certo número de sons podem formar um corpo de doze polegadas cúbicas algo cuja mera menção soa ridícula 15 Segundo esse modo de ver as coisas não podemos deixar de con denar os materialistas que juntam todo pensamento com a extensão Entretanto um pouco de reflexão nos dará uma razão equivalente para condenar seus antagonistas que juntam todo pensamento com uma substância simples e indivisível A filosofia mais comum nos informa que a mente não pode conhecer nenhum objeto externo de maneira imediata sem a interposição de uma imagem ou percepção Aquela O todo está no todo e o todo está em cada parte NT 2 71 Tratado da natureza humana mesa que neste exato momento aparece diante de mim é apenas uma percepção e todas as suas qualidades são qualidades de uma percep ção Ora a mais evidente dentre todas essas qualidades é a extensão A percepção se compõe de partes Essas partes estão situadas de modo a nos fornecer a noção de distância e contigüidade de comprimento largura e espessura O limite dessas três dimensões é o que chama mos de figura Essa figura é móvel separável e divisível Mobilidade e separabilidade são as propriedades distintivas dos objetos externos E para acabar de vez com todas as disputas a idéia mesma de exten são é copiada tãosó de uma impressão e em conseqüência disso tem de corresponder perfeitamente a ela Dizer que a idéia de extensão cor responde a alguma coisa é dizer que ela é extensa 1 6 Agora o livrepensador j á pode também triunfar Tendo visto que há impressões e idéias realmente extensas ele pode perguntar a seus antagonistas como é possível que um sujeito simples e indivisível e uma percepção extensa se incorporem Todos os argumentos utiliza dos pelos teólogos podem agora se voltar contra estes O sujeito indivisível ou se quiserem a substância imaterial está à esquerda ou à direita da percepção Está nesta parte em particular ou naquela outra Estará em todas as partes sem ser extenso Ou estará inteiro em cada uma das partes sem abandonar as restantes É impossível dar a essas perguntas uma resposta que não seja ela própria absurda e que não explique ao mesmo tempo a união de nossas percepções indi visíveis com uma substância extensa 17 Isso nos dá a oportunidade de considerar novamente a questão acerca da substância da alma Embora eu tenha condenado essa ques tão como absolutamente ininteligível não posso deixar de propor mais algumas reflexões a esse respeito Afirmo que a doutrina da ima terialidade simplicidade e indivisibilidade de uma substância pensan te é um verdadeiro ateísmo e serve para justificar todos aqueles sen timentos pelos quais Spinoza é tão universalmente malvisto Espero tirar pelo menos um proveito desse assunto quando perceberem que Livro 1 Parte 4 Seção 5 seus arrazoados podem facilmente se voltar contra eles meus adversá rios não terão mais nenhum pretexto para difamar a presente doutrina 1 8 O princípio fundamental do ateísmo de Spinoza é a doutrina da simplicidade do universo e a unidade daquela substância a que ele supõe que tanto o pensamento como a matéria são inerentes Há ape nas uma substância no mundo diz ele e essa substância é perfeita mente simples e indivisível existindo em todos os lugares sem ne nhuma presença local Tudo que descobrimos externamente pela sensação tudo que sentimos internamente pela reflexão tudo isso não passa de modificações desse ser único simples e necessariamente existente e não possui existência separada ou distinta Todas as pai xões da alma todas as configurações da matéria por mais diferentes e diversas são inerentes à mesma substância preservando em si mes mas seus caracteres distintivos sem comunicálos àquele sujeito a que são inerentes O mesmo substratum se posso me exprimir assim sus tenta as mais diferentes modificações sem conter nenhuma diferen ça dentro de si mesmo e altera essas modificações sem sofrer qual quer alteração Nem o tempo nem o lugar nem toda a diversidade da natureza são capazes de produzir qualquer composição ou mudança em sua perfeita simplicidade e identidade 19 Acredito que essa breve exposição dos princípios desse famoso ateu serão suficientes para nosso propósito presente e que mesmo sem penetrar mais profundamente nessas regiões sombrias e obscuras serei capaz de mostrar que essa hipótese abominável é quase igual à da imaterialidade da alma que se fez tão popular Para tornar isso evidente lembremos12 que como toda idéia é derivada de uma percepção anterior é impossível que nossa idéia de uma percepção possa representar algo especificamente diferente daquilo que é re presentado pela idéia de um objeto ou existência externa Qualquer diferença que possamos supor entre elas é incompreensível para nós somos obrigados a conceber um objeto externo seja como uma mera 12 Parte 2 Seção 6 2 73 Tratado da natureza humana relação sem um correlato seja como a mesma coisa que uma percep ção ou impressão 20 A conseqüência que disso extrairei pode à primeira vista pare cer um mero sofisma mas o menor exame bastará para mostrar que é consistente e satisfatória Digo então que como podemos supor mas nunca conceber uma diferença específica entre um objeto e uma im pressão jamais poderemos saber com certeza se as conclusões que formamos a respeito da conexão ou incompatibilidade entre impres sões pode ser aplicada aos objetos em contrapartida qualquer que seja a conclusão que a esse respeito formemos acerca dos objetos ela será com toda certeza aplicável às impressões A razão disso não é difícil de se entender Como se supõe que um objeto é diferente de uma im pressão não podemos ter certeza de que a circunstância sobre a qual fundamos nosso raciocínio é comum a ambos supondo que formemos esse raciocínio partindo da impressão Ou seja é sempre possível que o objeto seja diferente da impressão quanto a essa circunstância par ticular Mas quando formamos nosso raciocínio com base primeira mente no objeto não há dúvida de que esse mesmo raciocínio deve se estender à impressão Isso porque a qualidade do objeto sobre a qual fundamos o argumento tem de ser ao menos concebida pela mente e não poderia ser concebida se não fosse comum a uma impressão já que não temos nenhuma idéia que não seja derivada dessa origem Assim podemos estabelecer como uma máxima certa que nenhum princípio jamais nos permitiria descobrir uma conexão ou incompa tibilidade entre objetos que não se estendesse também às impressões a menos que realizemos uma espécie irregular13 de raciocínio par tindo da experiência A proposição inversa entretanto pode não ser igualmente verdadeira a saber que todas as relações que podemos descobrir entre as impressões são comuns aos objetos 21 Apliquemos essa máxima ao caso presente Apresentamse dois sistemas diferentes de seres aos quais estou supondo ser necessário 13 Tal como o da Seção 2 baseado na coerência de nossas percepções 274 Livro 1 Parte 4 Seção 5 atribuir uma substância ou base de inerência Observo primeiro o universo dos objetos ou corpos o Sol a Lua e as estrelas a Terra os mares plantas animais homens navios casas e outras produções da arte ou da natureza Aqui aparece Spinoza dizendome que todas es sas coisas são apenas modificações cujo sujeito de inerência é simples sem composição e indivisível Em seguida considero o outro sistema de seres o universo do pensamento ou seja minhas impressões e idéias Ali observo um outro Sol uma outra Lua outras estrelas ou tra Terra e outros mares cobertos e habitados por plantas e animais cidades casas montanhas rios e em suma todas as coisas que pos so descobrir ou conceber no primeiro sistema Quando pergunto so bre essas coisas os teólogos se apresentam e me dizem que elas tam bém são modificações e modificações de uma substância única simples sem composição e indivisível E imediatamente sou ensur decido por centenas de vozes que tratam a primeira hipótese com execração e desprezo e a segunda com aplauso e veneração Dirijo minha atenção para essas hipóteses para descobrir qual a razão de ta manha parcialidade e vejo que ambas têm o mesmo defeito são ininteligíveis e até onde podemos compreendêlas são tão semelhan tes que é impossível descobrir em uma qualquer absurdo que não se aplique também à outra Todas as idéias que temos de uma qualida de em um objeto coincidem com uma qualidade em uma impressão e podem representála isso porque todas as nossas idéias são deriva das de nossas impressões Portanto jamais podemos encontrar uma incompatibilidade entre um objeto extenso enquanto modificação e uma essência simples e sem composição enquanto sua substância a menos que essa incompatibilidade tenha lugar igualmente entre a per cepção ou impressão desse objeto extenso e a mesma essência sem composição Toda idéia de uma qualidade de um objeto passa através de uma impressão e portanto toda relação perceptível seja de conexão seja de incompatibilidade tem de ser comum a objetos e impressões 22 Esse argumento considerado de maneira geral parece evidente e isento de qualquer dúvida e contradição Entretanto para tornálo 2 75 Tratado da natureza humana mais claro e compreensível examinemolo detalhadamente e vejamos se todos os absurdos que foram encontrados no sistema de Spinoza não podem ser encontrados também no dos teólogos14 23 Em primeiro lugar afirmouse contra Spinoza conforme à maneira escolástica de falar mais que de pensar que um modo por não ser uma existência distinta ou separada tem de ser exatamente o mesmo que sua substância e que em conseqüência disso a extensão do univer so deve ser de certa forma identificada com essa essência simples e sem composição a que o universo supostamente é inerente Mas isso podese dizer é absolutamente impossível e inconcebível a menos que a substância indivisível se expanda até corresponder à extensão ou que a extensão se contraia até se ajustar à substância indivisível Esse argumento parece correto até onde podemos compreendêlo E é claro que basta trocar os termos para aplicar o mesmo argumento a nossas percepções extensas e à essência simples da alma Pois as idéias dos objetos e as percepções são iguais sob to dos os aspectos apenas acompanhadas da suposição de uma diferen ça desconhecida e incompreensível 24 Em segundo lugar afirmouse que não temos nenhuma idéia de substância que não seja aplicável também à matéria ou nenhuma idéia de uma substância distinta que não seja aplicável a cada porção dis tinta de matéria A matéria portanto não é um modo mas uma subs tância e cada parte da matéria é não um modo distinto mas uma substância distinta Já provei que não possuímos uma idéia perfeita de substância mas que se a tomarmos como alguma coisa que pode exis tir por si mesma é evidente que cada percepção seria uma substância e cada parte distinta de uma percepção uma substância distinta Con seqüentemente as duas hipóteses enfrentam as mesmas dificuldades sob esse aspecto 25 Em terceiro lugar contra o sistema de uma substância simples no universo objetouse que essa substância sendo o suporte ou substrato 14 Ver o dicionário de Bayle artigo sobre Spinoza 2 76 Livro 1 Parte 4 Seção 5 de todas as coisas tem de ser exatamente no mesmo instante mo dificada em formas contrárias e incompatíveis As formas redonda e quadrada são incompatíveis na mesma substância ao mesmo tempo Como é possível então que a mesma substância possa simultanea mente ser modificada naquela mesa quadrada e nesta redonda Faço a mesma pergunta a respeito das impressões dessas mesas e cons tato que a resposta é igualmente insatisfatória nos dois casos 26 Parece portanto que para qualquer lado que nos voltemos encon tramos as mesmas dificuldades e não conseguimos avançar um só pas so no estabelecimento da simplicidade e da imaterialidade da alma sem preparar o terreno para um ateísmo perigoso e irreparável O mesmo aconteceria se em vez de chamar o pensamento de uma modificação da alma atribuíssemos a ele o nome mais antigo porém mais em voga de ação Por ação entendemos quase o mesmo que aquilo que se costuma chamar de modo abstrato ou seja alguma coisa que pro priamente falando não é nem distinguível nem separável de sua subs tância sendo concebida apenas por uma distinção de razão ou uma abstração Mas nada se ganha com essa substituição do termo modi ficação pelo termo ação Assim não nos livramos de uma dificuldade sequer o que ficará claro pelas duas reflexões seguintes 27 Em primeiro lugar observo que a palavra ação de acordo com essa explicação nunca poderia ser aplicada corretamente a uma percep ção sendo derivada de uma mente ou substância pensante Nossas per cepções são todas realmente diferentes separáveis e distinguíveis umas das outras e de tudo o mais que possamos imaginar e portanto é impossível conceber como elas poderiam ser a ação ou o modo abstra to de uma substância O exemplo do movimento que costuma ser utili zado para se mostrar de que maneira a percepção enquanto ação depen de de sua substância confunde mais que nos instrui O movimento ao que parece não acarreta nenhuma mudança real ou essencial nos corpos apenas alterando sua relação com outros objetos Mas entre uma pessoa que passeia de manhã pelo jardim com uma companhia agradável e uma pessoa à tarde presa em um calabouço e cheia de 277 Tratado da natureza humana terror desespero e ressentimento parece haver uma diferença radi cal e de um tipo bem distinto da que se produz em um corpo em vir tude de uma mudança de posição Assim como da distinção e sepa rabilidade das idéias dos objetos externos concluímos que esses objetos têm uma existência separada uns dos outros assim também quando tomamos essas próprias idéias como nossos objetos devemos extrair a mesma conclusão a respeito delas de acordo com o raciocí nio anterior Ao menos devese reconhecer que como não temos ne nhuma idéia da substância da alma é impossível dizer como ela pode admitir tais diferenças e mesmo contrariedades em suas percepções sem sofrer uma mudança fundamental conseqüentemente nunca poderemos dizer em que sentido as percepções são ações dessa subs tância Portanto o emprego da palavra ação em lugar de modificação quando não se faz acompanhar de nenhum sentido adicional não acrescenta nada a nosso conhecimento e não traz nenhum proveito para a doutrina da imaterialidade da alma 28 Em segundo lugar acrescento que se traz algum proveito para essa causa deve trazer igual proveito para a causa do ateísmo Pois será que nossos teólogos pretendem monopolizar a palavra ação e será que os ateus não podem também dela se apossar afirmando que as plan tas animais homens etc não são mais que ações particulares de uma única substância simples e universal que se exerce por uma necessi dade cega e absoluta Direis que isso é inteiramente absurdo Reco nheço que é ininteligível mas ao mesmo tempo afirmo em conformi dade com os princípios anteriormente mencionados que é impossível descobrir na suposição de que os diversos objetos da natureza são ações de uma única substância simples qualquer absurdo que não se aplique também a uma suposição semelhante acerca das impressões e idéias 29 Dessas hipóteses sobre a substância e a conjunção local de nossas per cepções podemos passar a uma outra que é mais inteligível que a pri meira e mais importante que a segunda a saber a hipótese sobre a cau sa de nossas percepções Costumase dizer nas escolas que a matéria 278 Livro 1 Parte 4 Seção 5 e o movimento por mais que se transformem são sempre matéria e movimento e produzem apenas uma diferença na posição e situação dos objetos Podeis dividir um corpo tantas vezes quantas quiserdes ele ainda será um corpo Podeis atribuir a ele qualquer figura o resul tado será sempre uma figura ou relação entre as partes Podeis movê lo de todas as maneiras encontrareis sempre um movimento ou mu dança de relação É absurdo imaginar que o movimento circular por exemplo seja unicamente um movimento circular ao passo que o movimento em outra direção como o elíptico seja também uma pai xão ou uma reflexão moral que o choque de duas partículas esféricas possa se tornar uma sensação de dor e que o encontro de duas partí culas triangulares produza um prazer Ora como esses diferentes choques transformações e combinações são as únicas mudanças de que a matéria é suscetível e como nunca poderiam nos proporcionar uma idéia de pensamento ou percepção concluise que é impossível que o pensamento possa ser causado pela matéria 30 Poucos foram capazes de resistir à aparente evidência desse argu mento entretanto nada no mundo é mais fácil que refutálo Basta nos refletir sobre o que já provamos detalhadamente a saber que ja mais somos sensíveis a nenhuma conexão entre causas e efeitos e que é apenas por nossa experiência de sua conjunção constante que pode mos alcançar um conhecimento dessa relação Ora como todos os objetos que não são contrários são suscetíveis de uma conjunção constante e como nenhum objeto real é contrário a outro 15 inferi des ses princípios que considerandose a questão a priori qualquer coisa pode produzir qualquer coisa e que jamais descobriremos uma razão pela qual um objeto qualquer pode ou não ser a causa de outro por maior ou menor que seja a semelhança entre eles Isso evidentemente destrói o raciocínio anterior a respeito da causa do pensamento ou da percepção Pois embora pareça não haver qualquer tipo de conexão entre movimento e pensamento o que se passa aqui é o mesmo que com to 15 Parte 3 Seção 1 5 2 79 Tratado da natureza humana das as outras causas e efeitos Colocai em uma das extremidades de uma alavanca um corpo pesando uma libra e na outra um outro cor po de mesmo peso nunca encontrareis nesses corpos nenhum prin cípio de movimento que dependa mais de suas distâncias em relação ao centro que do pensamento e da percepção Se pretendeis portan to provar a priori que uma tal posição dos corpos nunca poderá cau sar um pensamento porque de qualquer lado que a consideremos teremos somente uma posição de corpos deveis concluir pelo mes mo raciocínio que nunca poderá produzir movimento pois não existe uma conexão mais aparente em um caso que no outro No entanto esta última conclusão é evidentemente contrária à experi ência mais ainda é possível termos uma experiência semelhante nas operações da mente em que percebamos uma conjunção constan te entre pensamento e movimento Por isso vosso raciocínio é um tanto precipitado quando concluís considerando simplesmente as idéias que é impossível que o movimento jamais possa produzir o pensamento ou que uma posição diferente das partes possa dar ori gem a uma paixão ou reflexão diferente Melhor ainda não é apenas possível que tenhamos tal experiência é certo que a temos Pois todos podem perceber que as diferentes disposições de seus corpos mudam seus pensamentos e sentimentos E se acaso se disser que isso depende da união da alma e do corpo responderei que devemos separar a ques tão acerca da substância da mente daquela acerca da causa de seu pen samento Limitandonos a esta última questão descobrimos pela com paração entre suas idéias que pensamento e movimento são duas coisas diferentes e pela experiência que estão constantemente uni dos Sendo estas as únicas circunstâncias que entram na idéia de cau sa e efeito quando aplicada às operações da matéria podemos concluir com certeza que o movimento pode e de fato é a causa do pensamento e da percepção 3 1 Parece que nos resta assim uma única alternativa ou afirmar que uma coisa só pode ser causa de outra quando a mente é capaz de per ceber a conexão em sua idéia desses objetos ou sustentar que todos 280 Livro 1 Parte 4 Seção 5 os objetos que encontramos em conjunção constante devem por esse motivo ser considerados causas e efeitos Se escolhermos a primei ra possibilidade as conseqüências serão as seguintes Primeiramente na realidade afirmamos que não existe no universo algo como uma causa ou princípio produtivo nem mesmo Deus já que nossa idéia desse ser supremo é derivada de impressões particulares nenhuma das quais contém qualquer eficácia nem parece ter conexão com ne nhuma outra existência Quanto à objeção de que a conexão entre a idéia de um ser infinitamente poderoso e a de um efeito qualquer que seja objeto de sua vontade any effect which he wills é necessária e ine vitável respondo que não temos nenhuma idéia de um ser dotado de qualquer poder quanto menos de um ser dotado de poder infinito Se quisermos mudar nosso modo de falar porém o que podemos fazer é definir o poder pela conexão e então ao dizer que a idéia de um ser infinitamente poderoso está conectada com a de todo efeito que seja objeto de sua vontade na realidade não estamos fazendo mais que afir mar que um ser cuja volição está conectada com todo efeito está co nectado com todo efeito o que é uma proposição tautológica que não nos revela nada sobre a natureza desse poder ou conexão Mas em se gundo lugar supor que Deus seja o grande princípio eficaz que supre a deficiência de todas as causas nos levaria às mais crassas impiedades e absurdos Porque a razão que nos leva a recorrer a ele nas operações naturais e a afirmar que a matéria por si mesma não é capaz de co municar movimento ou de produzir pensamento é a inexistência de uma conexão aparente entre esses objetos e por essa mesma razão devemos reconhecer que Deus é o autor de todas as nossas volições e percepções já que elas tampouco possuem uma conexão aparente nem umas com as outras nem com a suposta mas desconhecida substância da alma Sabemos que diversos filósofos16 sustentaram esse poder ativo do ser supremo no que se refere a todas as ações da mente exceto a volição ou antes uma parte insignificante da volição 16 Como o Padre Malebranche e outros cartesianos 281 Tratado da natureza humana embora seja fácil perceber que essa exceção é uma mera desculpa para evitar as perigosas conseqüências dessa doutrina Se só aquilo que tem um poder aparente é ativo em nenhum caso o pensamento pode ser mais ativo que a matéria e se essa inatividade nos obriga a recor rer a uma divindade o ser supremo é a verdadeira causa de todas as nossas ações tanto as más como as boas as viciosas como as virtuosas 32 Assim ficamos necessariamente reduzidos à outra possibilidade que todos os objetos que encontramos em conjunção constante de vem apenas por esse motivo ser vistos como causas e efeitos Ora como todos os objetos que não são contrários são suscetíveis de uma conjunção constante e como nenhum objeto real é contrário a ou tro seguese que tanto quanto podemos determinar pelas meras idéias qualquer coisa pode ser a causa ou o efeito de qualquer coisa o que evidentemente dá a vantagem aos materialistas sobre seus an tagonistas 33 De tudo o que foi dito eis a conclusão final a questão acerca da substância da alma é absolutamente ininteligível Nem todas as nos sas percepções são suscetíveis de uma união local com o que é extenso ou com o que é inextenso pois algumas delas são extensas e outras inextensas E como a conjunção constante entre os objetos constitui a essência mesma da causa e efeito a matéria e o movimento podem em muitas ocasiões ser considerados as causas do pensamento até onde podemos ter alguma noção dessa relação 34 Tratase certamente de uma espécie de desonra para a filosofia cuja autoridade soberana deveria ser universalmente reconhecida obrigála a estar sempre pedindo desculpas por suas conclusões e se justificando perante todas as artes e ciências particulares que possam se sentir ofendidas por ela Isso nos faz pensar em um rei acusado de alta traição contra seus súditos Existe apenas uma ocasião em que a filosofia considera ser necessário e mesmo honroso justificarse quando a religião parece ter sido ofendida por menos que seja pois os direitos da religião são tão caros à filosofia quanto os seus próprios e de fato são os mesmos Portanto se alguém imagina que os argu 282 Livro 1 Parte 4 Seção 6 mentos anteriores representam algum perigo para a religião espe ro que a justificativa a seguir desfaça suas apreensões 35 A mente humana é incapaz de conceber um fundamento para qualquer conclusão a priori sobre as operações ou sobre a duração de um objeto Podemos imaginar acerca de qualquer objeto que ele se torna inteiramente inativo ou que é aniquilado em um instante E tratase de um princípio evidente que tudo que podemos imaginar é pos sível Ora isso é tão verdadeiro no que diz respeito à matéria quan to no que diz respeito ao espírito a uma substância extensa e com posta quanto a uma substância simples e inextensa Em ambos os casos os argumentos metafísicos a favor da imortalidade da alma são igualmente inconclusivos e em ambos os casos os argumentos mo rais e os derivados da analogia com fatos naturais são igualmente for tes e convincentes Se portanto minha filosofia não acrescenta nada aos argumentos favoráveis à religião tenho ao menos a satisfação de pensar que não lhes retira nada e que tudo permanece precisamen te como antes Seção 6 Da identidade pessoal 1 Há filósofos que imaginam estarmos em todos os momentos in timamente conscientes daquilo que denominamos nosso EU our SELF que sentimos sua existência e a continuidade de sua existên cia e que estamos certos de sua perfeita identidade e simplicidade com uma evidência que ultrapassa a de uma demonstração A sensa ção mais forte a paixão mais violenta dizem eles ao invés de nos dis trair dessa visão fixamna de maneira ainda mais intensa e por meio da dor ou do prazer que produzem levamnos a considerar a influência que exercem sobre o eu Tentar fornecer uma prova desse eu seria en fraquecer sua evidência pois nenhuma prova poderia ser derivada de um fato de que estamos tão intimamente conscientes e não há nada de que possamos estar certos se duvidarmos disso 283 Tratado da natureza humana 2 Lamentavelmente todas essas asserções positivas contradizem essa própria experiência que é invocada a seu favor e não possuímos nenhuma idéia de eu da maneira aqui descrita Pois de que impressão poderia ser derivada essa idéia É impossível responder a essa pergun ta sem produzir uma contradição e um absurdo manifestos e entre tanto se queremos que a idéia de eu seja clara e inteligível precisa mos necessariamente encontrar uma resposta para ela Toda idéia real deve sempre ser originada de uma impressão Mas o eu ou pessoa não é uma impressão e sim aquilo a que nossas diversas impressões e idéias supostamente se referem Se alguma impressão dá origem à idéia de eu essa impressão tem de continuar invariavelmente a mesma ao longo de todo o curso de nossas vidas pois é dessa maneira que o eu supostamente existe Mas não há qualquer impressão constante e in variável Dor e prazer tristeza e alegria paixões e sensações sucedem se umas às outras e nunca existem todas ao mesmo tempo Portan to a idéia de eu não pode ser derivada de nenhuma dessas impressões ou de nenhuma outra Conseqüentemente não existe tal idéia 3 Além disso segundo essa hipótese o que deve acontecer com todas as nossas percepções particulares Afinal elas são todas dife rentes distinguíveis e separáveis entre si podem ser consideradas separadamente e podem existir separadamente sem necessitar de algo que sustente sua existência De que maneira portanto perten ceriam ao eu e como estariam conectadas com ele De minha parte quando penetro mais intimamente naquilo que denomino meu eu sem pre deparo com uma ou outra percepção particular de calor ou frio luz ou sombra amor ou ódio dor ou prazer Nunca apreendo a mim mesmo em momento algum sem uma percepção e nunca consigo ob servar nada que não seja uma percepção Quando minhas percepções são suprimidas por algum tempo como ocorre no sono profundo du rante todo esse tempo fico insensível a mim mesmo e podese dizer ver dadeiramente que não existo E se a morte suprimisse todas as minhas percepções se após a dissolução de meu corpo eu não pudesse mais pensar sentir ver amar ou odiar eu estaria inteiramente aniquilado 284 Livro 1 Parte 4 Seção 6 pois não posso conceber o que mais seria preciso para fazer de mim um perfeito nada Se após uma reflexão séria e livre de preconceitos ainda houver alguém que pense possuir uma noção diferente de si mesmo confesso que não posso mais raciocinar com ele Posso ape nas concederlhe que talvez esteja certo tanto quanto eu e que somos essencialmente diferentes quanto a esse aspecto particular Talvez ele perceba alguma coisa simples e contínua que denomina seu eu mas estou certo de que não existe tal princípio em mim 4 À parte alguns metafísicos dessa espécie porém arriscome a afirmar que os demais homens não são senão um feixe ou uma cole ção de diferentes percepções que se sucedem umas às outras com uma rapidez inconcebível e estão em perpétuo fluxo e movimento Nossos olhos não podem girar em suas órbitas sem fazer variar nos sas percepções Nosso pensamento é ainda mais variável que nossa visão e todos os outros sentidos e faculdades contribuem para essa variação Não há um só poder na alma que se mantenha inalteravel mente o mesmo talvez sequer por um instante A mente é uma espé cie de teatro onde diversas percepções fazem sucessivamente sua aparição passam repassam esvaemse e se misturam em uma infi nita variedade de posições e situações Nela não existe propriamente falando nem simplicidade em um momento nem identidade ao longo de momentos diferentes embora possamos ter uma propensão na tural a imaginar essa simplicidade e identidade Mas a comparação com o teatro não nos deve enganar A mente é constituída unicamente pelas percepções sucessivas e não temos a menor noção do lugar em que essas cenas são representadas ou do material de que esse lugar é composto 5 O que é então que nos dá uma propensão tão forte a atribuir uma identidade a essas percepções sucessivas e a supor que possuímos uma existência invariável e ininterrupta durante todo o decorrer de nossas vidas Para responder a essa questão devemos distinguir a identidade pessoal enquanto diz respeito a nosso pensamento e ima ginação e enquanto diz respeito a nossas paixões ou ao interesse que 285 Tratado da natureza humana temos por nós mesmos A primeira é nosso tema presente e para compreendêla perfeitamente teremos de nos aprofundar bastante e explicar aquela identidade que atribuímos às plantas e animais pois há uma grande analogia entre esta e a identidade de um eu ou pessoa 6 Possuímos uma idéia distinta de um objeto que permanece inva riável e ininterrupto ao longo de uma suposta variação de tempo e a essa idéia denominamos identidade ou mesmidade Possuímos também uma idéia distinta de diversos objetos diferentes existindo em suces são e conectados entre si por uma relação estreita e essa idéia propor ciona para um olhar preciso uma noção tão perfeita de diversidade como se não houvesse nenhuma relação entre os objetos Mas embora essas idéias de identidade e de uma sucessão de objetos relacionados sejam em si mesmas totalmente distintas e até contrárias é certo que em nosso modo comum de pensar geralmente as confundimos A ação da imaginação pela qual consideramos o objeto ininterrupto e invariá vel e a ação pela qual refletimos sobre a sucessão de objetos relacio nados são sentidas de maneira quase igual are almost the sarne to the feeling não sendo preciso um esforço de pensamento muito maior neste último caso que no primeiro A relação facilita a transição da mente de um objeto ao outro e torna essa passagem tão suave como se contemplássemos um único objeto contínuo Tal semelhança é a causa de nossa confusão e erro fazendonos trocar a noção de obje tos relacionados pela de identidade Embora em um momento possa mos ver a sucessão relacionada como variável ou descontínua no momento seguinte certamente iremos atribuir a ela uma identidade perfeita considerandoa como invariável e ininterrupta Nossa pro pensão para esse erro é tão forte em virtude da semelhança já mencio nada que o cometemos antes de nos darmos conta disso E mesmo que nos corrijamos incessantemente pela reflexão retornando assim a um modo mais exato de pensar não conseguimos sustentar nossa filosofia por muito tempo nem libertar a imaginação dessa inclinação Nosso último recurso é ceder a esta última e afirmar ousadamente que esses diferentes objetos relacionados são de fato a mesma coisa não 286 Livro 1 Parte 4 Seção 6 obstante sua descontinuidade e variação Para justificar perante nós mesmos tal absurdo freqüentemente imaginamos algum princípio novo e ininteligível que conecte os objetos impedindo sua desconti nuidade ou variação É assim que criamos a ficção da existência con tínua das percepções de nossos sentidos com o propósito de eliminar a descontinuidade e chegamos à noção de uma alma um eu e uma subs tância para encobrir a variação Mas podemos observar além disso que mesmo quando não criamos tal ficção nossa propensão a confun dir a identidade com a relação é tão forte que tendemos a imaginar17 alguma coisa desconhecida e misteriosa conectando as partes além da relação Penso ser este o caso da identidade que atribuímos às plantas e animais E mesmo quando isso não ocorre ainda sentimos uma propensão a confundir essas idéias embora não consigamos nos convencer inteiramente quanto a esse ponto por não encontrar mos alguma coisa invariável e ininterrupta que justifique nossa no ção de identidade Assim a controvérsia em torno da identidade não é uma mera disputa de palavras Quando atribuímos identidade em um sentido impróprio a objetos variáveis e intermitentes nosso erro não se limita à maneira pela qual nos exprimimos ao contrário comumente se faz acompanhar de uma ficção seja de alguma coisa invariável e inin terrupta seja de algo misterioso e inexplicável ou ao menos de uma propensão para tais ficções Para provar essa hipótese de um modo que satisfaça a qualquer investigador imparcial bastanos mostrar partin do da experiência e observação diárias que os únicos objetos variáveis e descontínuos que supomos continuar os mesmos são os que consis tem em uma sucessão de partes conectadas por semelhança contigüi dade ou causalidade Porque como é evidente que uma tal sucessão 1 7 Se o leitor quiser saber como um grande gênio tanto quanto o mero vulgo é capaz de se deixar influenciar por esses princípios aparentemente triviais da imaginação pode ler os raciocínios de Lord Shaftesbury acerca do princípio unificador do universo e da identidade das plantas e animais Cf seu Moralists ou Philosophical rhapsody The Moralists a philoso phical rhapsody 1709 NT 287 Tratado da natureza humana corresponde a nossa noção de diversidade só pode ser por engano que lhe atribuímos uma identidade e como a relação das partes que nos leva a esse erro é na realidade apenas uma qualidade que produz uma associação de idéias e uma transição fácil da imaginação de uma idéia a outra esse erro só pode decorrer da semelhança entre esse ato da mente e aquele pelo qual contemplamos um único objeto contínuo Nossa principal tarefa portanto deve ser provar que todos os objetos a que atribuímos identidade sem ter observado sua invariabilidade e ininterruptibilidade são constituídos por uma sucessão de objetos relacionados 8 Para isso suponhamos diante de nós uma massa de matéria cujas partes são contíguas e conectadas É claro que iremos atribuir uma perfeita identidade a essa massa contanto que todas as suas par tes continuem ininterrupta e invariavelmente as mesmas apesar de qualquer movimento ou mudança de lugar que possamos observar no todo ou em alguma de suas partes Suponhamos porém que uma parte muito pequena ou insignificante seja adicionada à massa ou dela subtraída A rigor isso destrói por completo a identidade do todo entretanto como nunca pensamos de maneira tão precisa sempre que encontramos uma alteração tão insignificante não hesitamos em afirmar que a massa de matéria é a mesma A passagem do pensa mento do objeto antes da mudança para o objeto depois da mudan ça é tão suave e fácil que quase não percebemos a transição e ten demos a imaginar que se trata apenas do exame contínuo de um mesmo objeto 9 Esse experimento apresenta uma circunstância bastante interes sante embora a alteração de uma parte considerável de uma massa de matéria destrua a identidade do todo devemos medir a grandeza da parte não de maneira absoluta mas proporcionalmente ao todo A adi ção ou a subtração de uma montanha não seriam suficientes para pro duzir uma diversidade em um planeta mas a alteração de apenas al gumas polegadas poderia destruir a identidade de alguns corpos Será impossível explicar isso se não refletirmos que os objetos agem sobre 288 Livro 1 Parte 4 Seção 6 a mente e quebram ou interrompem a continuidade de suas ações não segundo sua grandeza real mas segundo suas proporções recíprocas Por isso como essa interrupção faz que um objeto deixe de parecer o mesmo é o progresso ininterrupto do pensamento que deve consti tuir a identidade imperfeita 10 Podemos confirmar essa afirmação por meio de um outro fenôme no A alteração de uma parte considerável de um corpo destrói sua identidade mas é de se notar que quando a alteração se produz de forma gradual e insensível nossa tendência a atribuir a ela esse mesmo efeito é menor É claro que a razão disso só pode ser o fato de que a mente ao acompanhar as mudanças sucessivas do corpo sente uma facilidade em passar da consideração de sua condição em um momento para a observação de sua condição em outro momento por isso em nenhum instante em particular percebe uma interrupção em suas ações É em decorrência dessa percepção contínua que a mente atri bui ao objeto uma existência contínua e uma identidade 1 1 Contudo por mais que tomemos a precaução de introduzir as mu danças de modo gradual fazendoas proporcionais ao todo o certo é que quando finalmente observamos que essas mudanças se tornaram consideráveis hesitamos em atribuir identidade a objetos tão diferen tes Outro artifício no entanto permitenos induzir a imaginação a avançar mais um passo produzir uma referência das partes umas às outras e uma combinação tendo em vista algum fim ou propósito co mum Um navio que teve uma parte considerável alterada por suces sivos consertos ainda é considerado o mesmo a diferença do material não nos impede de atribuir a ele uma identidade O fim comum para o qual as partes conspiram permanece o mesmo ao longo de todas as suas variações permitindo à imaginação realizar uma transição fácil de uma situação do corpo a outra 12 Mas isso é ainda mais notável quando a esse fim comum acrescen tamos uma simpatia entre as partes e supomos que elas mantêm en tre si a relação recíproca de causa e efeito em todas as suas ações e operações Esse é o caso de todos os animais e vegetais cujas diver 289 Tratado da natureza humana sas partes não apenas se referem a um propósito geral mas também apresentam uma mútua dependência ou conexão O efeito de uma re lação tão forte é que embora todos tenhamos de admitir que em pou cos anos tanto os vegetais como os animais sofrem uma total trans formação continuamos atribuindo a eles uma identidade ainda que sua forma tamanho e substância se alterem inteiramente Um carva lho que de uma pequena planta cresce até se transformar em uma grande árvore é sempre o mesmo carvalho embora nenhuma de suas partículas materiais nem a forma de suas partes continuem as mes mas Uma criança tornase um homem e ora engorda ora emagre ce sem sofrer nenhuma mudança em sua identidade 13 Consideremos também estes dois fenômenos notáveis em seu gê nero O primeiro é que embora comumente sejamos capazes de dis tinguir de forma bastante precisa entre a identidade numérica e a es pecífica algumas vezes as confundimos utilizando uma em lugar da outra em nossos pensamentos e raciocínios Assim um homem que ouve um barulho que pára e recomeça diversas vezes diz tratarse sem pre do mesmo barulho mas é evidente que os sons têm apenas uma semelhança ou identidade específica e a única coisa numericamente idêntica é a causa que os produziu De maneira análoga podese di zer sem nenhuma impropriedade de linguagem que tal igreja que antes era feita de tijolos foi destruída e que a paróquia reconstruiu a mesma igreja em pedra de cantaria seguindo a arquitetura moder na Aqui nem a forma nem o material são os mesmos e não há nada que seja comum aos dois objetos a não ser sua relação com os habi tantes da paróquia mas isso é suficiente para nos fazer dizer que es ses objetos são uma mesma coisa Observemos entretanto que em casos como esses o primeiro objeto é de algum modo aniquilado an tes que o segundo passe a existir dessa forma em nenhum momen to se nos apresenta a idéia de diferença e multiplicidade e por isso temos menos escrúpulos em dizer que são a mesma coisa 14 Em segundo lugar notemos que em uma sucessão de objetos re lacionados a preservação da identidade de certa forma exige que a 290 Livro 1 Parte 4 Seção 6 alteração das partes não seja repentina nem completa entretanto quando os objetos são mutáveis e inconstantes por sua própria natu reza admitimos uma transição mais súbita que aquela que de outro modo seria condizente com essa relação Assim como a natureza de um rio consiste no movimento e na mudança das partes embora em menos de vinte e quatro horas estas estejam totalmente alteradas isso não impede que o rio continue o mesmo durante várias gerações Aquilo que é natural e essencial a algo é de certo modo esperado e aqui lo que é esperado causa menos impressão e parece menos importante que aquilo que é insólito e extraordinário Uma mudança considerável do primeiro tipo parece realmente menor para a imaginação que a mais ínfima alteração do segundo tipo e por quebrar menos a continuida de do pensamento tem menor influência na destruição da identidade 1 5 Passemos agora à explicação da natureza da identidade pessoal que se tornou uma questão tão importante na filosofia especialmente nos últimos anos na Inglaterra onde se estudam as ciências mais abstrusas com um ardor e aplicação peculiares É evidente que aqui devemos dar continuidade ao mesmo método de raciocínio que nos permitiu expli car com tanto sucesso a identidade de plantas animais navios casas e todas as produções compostas e mutáveis da arte ou da natureza A identidade que atribuímos à mente humana é apenas fictícia e de um tipo semelhante à que atribuímos a vegetais e corpos animais Não pode portanto ter uma origem diferente devendo ao contrário pro ceder de uma operação semelhante da imaginação sobre objetos semelhantes 1 6 Porém caso esse argumento não convença o leitor embora em minha opinião seja inteiramente decisivo sugiro que considere o seguinte raciocínio que é ainda mais próximo e imediato É evidente que a identidade que atribuímos à mente humana por mais perfeita que possamos imaginála não é capaz de fundir as diversas percepções di ferentes em uma só fazendoas perder os caracteres distintivos e dife renciais que lhes são essenciais Continua sendo verdade que cada per cepção distinta que entra na composição da mente é uma existência 291 Tratado da natureza humana distinta e é diferente distinguível e separável de todas as demais per cepções contemporâneas ou sucessivas Mas apesar dessa distinção e separabilidade supomos que todo o curso de percepções está uni do pela identidade Por isso é natural que surja uma questão acerca dessa relação de identidade ela é algo que realmente vincula nossas diversas percepções ou apenas associa suas idéias na imaginação Em outras palavras quando fazemos uma afirmação sobre a identidade de uma pessoa observamos algum vínculo real entre suas percepções ou apenas sentimos um vínculo entre as idéias que formamos dessas per cepções Será fácil responder a essa questão se nos recordarmos do que já provamos detalhadamente a saber que o entendimento nun ca observa uma conexão real entre objetos e mesmo a união de cau sa e efeito quando rigorosamente examinada reduzse a uma asso ciação habitual de idéias Pois daí se segue evidentemente que a identidade não é alguma coisa que pertença realmente a essas diferen tes percepções e que as una umas às outras é apenas uma qualidade que lhes atribuímos quando refletimos sobre elas em virtude da união de suas idéias na imaginação Ora as únicas qualidades que podem dar às idéias uma união na imaginação são as três relações antes mencio nadas Essas relações são os princípios de união do mundo ideal e sem elas todo objeto distinto é separável pela mente pode ser considerado separadamente e não parece ter mais conexão com nenhum outro ob jeto do que se ambos estivessem separados pela maior diferença e dis tância Portanto é de uma ou mais dentre essas três relações de seme lhança contigüidade e causalidade que a identidade depende E como a essência mesma dessas relações é produzir uma transição fácil entre idéias seguese que nossas noções de identidade pessoal decorrem integralmente do progresso suave e ininterrupto do pensamento ao longo de uma cadeia de idéias conectadas de acordo com os princípios acima explicados 17 A única questão que resta portanto é saber que relações produ zem esse progresso ininterrupto de nosso pensamento quando con sideramos a existência sucessiva de uma mente ou pessoa pensante 292 Livro 1 Parte 4 Seção 6 E aqui é evidente que devemos nos limitar à semelhança e à causali dade deixando de lado a contigüidade que tem pouca ou nenhuma influência neste caso 18 Comecemos pela semelhança Suponhamos que pudéssemos ver claramente o íntimo de outrem e assim observar aquela sucessão de percepções que constitui sua mente ou princípio pensante suponha mos também que essa pessoa preserve sempre a memória de uma parte considerável das percepções passadas é evidente que nada con tribuiria mais para produzir uma relação nessa sucessão em meio a todas as suas variações Pois o que é a memória senão a faculdade pela qual despertamos as imagens de percepções passadas E como uma imagem necessariamente se assemelha a seu objeto a freqüente in serção dessas percepções semelhantes na cadeia de pensamento não deve conduzir a imaginação mais facilmente de um elo a outro fazendo o todo se parecer com a continuação de um objeto único Por esse as pecto portanto a memória não apenas revela a identidade mas tam bém contribui para sua produção ao produzir a relação de semelhança entre as percepções Isso ocorre quer consideremos a nós mesmos quer aos outros 19 Quanto à causalidade podemos observar que a verdadeira idéia de uma mente humana é a de um sistema de diferentes percepções ou di ferentes existências encadeadas pela relação de causa e efeito e que produzem destroem influenciam e modificamse umas às outras Nossas impressões originam suas idéias correspondentes e essas idéias por sua vez produzem outras impressões Um pensamento expulsa outro pensamento e arrasta consigo um terceiro que o exclui por sua vez Por esse aspecto a melhor comparação que eu poderia fazer da alma é com uma república ou comunidade a republic or commonwealth cujos diversos membros estão unidos por laços recíprocos de governo e subordinação gerando outras pessoas que propagam a mesma repú blica pela transformação incessante de suas partes E assim como a mesma república individual pode mudai não só seus membros mas também suas leis e constituições assim também a mesma pessoa pode 293 Tratado da natureza humana variar seu caráter e disposição bem como suas impressões e idéias sem perder sua identidade Por mais mudanças que sofra suas di versas partes estarão sempre conectadas pela relação de causalida de Vista dessa forma nossa identidade referente às paixões serve para corroborar aquela referente à imaginação ao fazer que nossas percepções distantes influenciem umas às outras e ao produzir em nós um interesse presente por nossas dores ou prazeres passados ou futuros 20 Como apenas a memória nos faz conhecer a continuidade e a ex tensão dessa sucessão de percepções devemos considerála sobretu do por essa razão como a fonte da identidade pessoal Se não tivés semos memória jamais teríamos nenhuma noção de causalidade e tampouco por conseguinte da cadeia de causas e efeitos que consti tui nosso eu ou pessoa Mas uma vez tendo adquirido da memória essa noção de causalidade podemos estender a mesma cadeia de cau sas e conseqüentemente a identidade de nossas pessoas para além de nossa memória e assim podemos fazêla abarcar tempos circuns tâncias e ações de que nos esquecemos inteiramente mas que em geral supomos terem existido Pois são muito poucas as ações pas sadas de que temos alguma memória Quem pode me dizer por exem plo quais foram seus pensamentos e ações nos dias 1 de janeiro de 1715 1 1 de março de 1719 e 3 de agosto de 1 733 Ou será que apenas por terse esquecido inteiramente dos incidentes ocorridos nesses dias afirmará que o eu presente não é a mesma pessoa que o eu da quele tempo destruindo assim todas as noções mais bem estabele cidas de identidade pessoal Desse ponto de vista portanto a memória não tanto produz mas revela a identidade pessoal ao nos mostrar a re lação de causa e efeito existente entre nossas diferentes percepções Cabe àqueles que afirmam que a memória produz integralmente nossa identidade pessoal explicar por que podemos estender desse modo nossa identidade para além de nossa memória 21 O conjunto dessa doutrina levanos a uma conclusão de grande importância para o presente tema a saber que todas as questões refi 294 Livro 1 Parte 4 Seção 6 nadas e sutis acerca da identidade pessoal nunca poderão ser resolvidas devendo ser vistas como dificuldades antes gramaticais que filosófi cas A identidade depende das relações entre as idéias e essas relações produzem a identidade por meio da transição fácil que ocasionam Mas como as relações e a facilidade da transição podem diminuir gradativa e insensivelmente não possuímos um critério exato que nos permita resolver qualquer controvérsia sobre o momento em que adquirem ou perdem o direito ao nome de identidade Todas as controvérsias acerca da identidade de objetos conectados são meramente verbais exceto enquanto a relação entre as partes gera alguma ficção ou algum prin cípio imaginário de união como já observamos 22 Aquilo que eu disse a respeito da origem e da incerteza de nossa noção de identidade enquanto aplicada à mente humana podese es tender com pequena ou nenhuma variação à noção de simplicidade Um objeto cujas diferentes partes coexistentes estão ligadas por uma re lação estreita atua sobre a imaginação quase da mesma maneira que um objeto perfeitamente simples e indivisível e não requer para ser concebido um esforço muito maior de pensamento Com base nes sa similaridade de operação atribuímos a ele uma simplicidade e fan tasiamos a existência de um princípio de união como suporte dessa simplicidade e centro de todas as diferentes partes e qualidades do objeto 23 Terminamos assim nosso exame dos diversos sistemas filosófi cos tanto sobre o mundo intelectual como sobre o da natureza A maneira heterogênea como raciocinamos nos levou a diversos tópicos que ou ilustram e confirmam alguma parte anterior deste discurso ou preparam o caminho para nossas próximas opiniões Tendo expli cado de forma completa a natureza de nosso juízo e entendimento é hora de retornar a um exame mais rigoroso de nosso tema e de dar continuidade à anatomia precisa da natureza humana Corrigido segundo o Apêndice p675 295 Tratado da natureza humana Seção 7 Conclusão deste livro 1 Antes de me lançar nessas imensas profundezas da filosofia que jazem diante de mim porém sintome inclinado a parar por um mo mento em meu posto presente a fim de ponderar sobre a viagem que ora empreendo e que sem dúvida requer o máximo de arte e aplica ção para ser conduzida a um termo feliz Sintome como um homem que após encalhar em vários bancos de areia e escapar por muito pouco do naufrágio ao navegar por um pequeno esteiro ainda tem a temeridade de fazerse ao mar na mesma embarcação avariada e mal tratada pelas intempéries levando sua ambição a tal ponto que pen sa em cruzar o globo terrestre sob circunstâncias tão desfavoráveis A memória de meus erros e perplexidades passados me faz desconfiar do futuro A condição desoladora a fraqueza e a desordem das facul dades que sou obrigado a empregar em minhas investigações aumen tam minhas apreensões E a impossibilidade de melhorar ou corrigir essas faculdades me reduz quase ao desespero fazendome preferir perecer sobre o rochedo estéril em que ora me encontro a me aventu rar por esse ilimitado oceano que se perde na imensidão Essa súbita visão do perigo a que estou exposto me enche de melancolia e como costumamos ceder a esta paixão mais que a todas as outras não posso me impedir de alimentar meu desespero com todas essas reflexões desalentadoras que o presente tema me proporciona em tamanha abundância 2 Em um primeiro momento sintome assustado e confuso com a solidão desesperadora em que me encontro dentro de minha filoso fia imaginome como um monstro estranho e rude que por incapaz de se misturar e se unir à sociedade foi expulso de todo relaciona mento com os outros homens e largado em total abandono e descon solo De bom grado aproximarmeia da multidão à procura de abri go e calor mas não consigo convencer a mim mesmo a me juntar a ela com tal deformidade Clamo a outros para que se juntem a mim 296 Livro 1 Parte 4 Seção 7 para formarmos um grupo à parte mas ninguém me dá ouvidos To dos mantêm distância temendo a tempestade que se abate sobre mim de todos os lados Expusme à inimizade de todos os metafísicos ló gicos matemáticos e mesmo teólogos como me espantar então com os insultos que devo sofrer Declarei que desaprovo seus sistemas como me surpreender se expressarem seu ódio a meu próprio siste ma e a minha pessoa Quando olho em redor prevejo por todos os lados disputas contradições ira calúnia e difamação Quando volto meu olhar para dentro de mim mesmo não encontro senão dúvida e ignorância O mundo inteiro unese contra mim e me contradiz mas minha fraqueza é tal que sinto todas as minhas opiniões se desagre garem e desmoronarem por si mesmas quando não suportadas pela aprovação alheia Cada passo que dou é com hesitação e a cada nova reflexão temo encontrar um erro e um absurdo em meu raciocínio 3 Pois com que confiança poderia eu me aventurar em empresas tão audaciosas quando além das inúmeras deficiências que me são pe culiares encontro tantas outras comuns à natureza humana Como posso estar seguro de que ao abandonar todas as opiniões estabe lecidas estou seguindo a verdade E por meio de que critério a distin guirei mesmo que a sorte finalmente me leve até ela Após o mais cuidadoso e exato de meus raciocínios ainda sou incapaz de dizer por que deveria assentir a ele sinto apenas uma forte propensão a consi derar fortemente os objetos segundo o ponto de vista em que me apa recem A experiência é um princípio que me instrui sobre as diversas conjunções de objetos no passado O hábito é um outro princípio que me determina a esperar o mesmo para o futuro e ambos atuando conjuntamente sobre a imaginação levamme a formar certas idéias de uma maneira mais intensa e vívida que outras que não se fazem acompanhar das mesmas vantagens Sem essa qualidade pela qual a mente aviva algumas idéias mais do que outras qualidade que aparen temente é tão insignificante e tão pouco fundada na razão nunca po deríamos dar nosso assentimento a nenhum argumento nem levar nosso olhar para além daqueles poucos objetos presentes a nossos 297 Tratado da natureza humana sentidos E mesmo a esses objetos nunca poderíamos atribuir nenhu ma existência senão a que depende de nossos sentidos e teríamos de incluílos integralmente dentro dessa sucessão de percepções que constitui nosso eu ou pessoa Mais ainda mesmo em relação a essa sucessão apenas poderíamos admitir as percepções imediatamen te presentes a nossa consciência as imagens vívidas que a memó ria nos apresenta nunca poderiam ser aceitas como retratos verda deiros de percepções passadas A memória os sentidos e o entendimento são todos portanto fundados na imaginação ou na vividez de nossas idéias 4 Não é de admirar que um princípio tão inconstante e falacioso nos leve ao erro quando seguido cegamente como deve ser em todas as suas variações É esse princípio que nos faz raciocinar partindo de cau sas e efeitos e é esse mesmo princípio que nos convence da existên cia contínua dos objetos externos quando ausentes dos sentidos Mas embora essas duas operações sejam igualmente naturais e necessárias à mente humana em algumas circunstâncias elas são18 diretamente contrárias énos impossível raciocinar de maneira correta e regular a partir de causas e efeitos e ao mesmo tempo acreditar na existência contínua da matéria Como portanto conciliaremos tais princípios Qual deles preferiremos Ou se não elegermos nenhum dos dois mas em vez disso dermos nosso assentimento a cada um sucessiva mente como é comum entre filósofos com que confiança poderemos depois reivindicar esse glorioso título tendo de modo consciente abra çado uma contradição manifesta 5 Essa19 contradição seria mais perdoável se fosse compensada por algum grau de solidez e convicção nas outras partes de nosso raciocí nio O que ocorre porém é exatamente o oposto Quando investiga mos os primeiros princípios do entendimento humano vemonos conduzidos a opiniões que parecem ridicularizar todo nosso esforço e trabalho passados e desencorajar nossas investigações futuras Nada 1 8 Seção 4 p264 19 Parte 3 Seção 14 298 Livro 1 Parte 4 Seção 7 é mais meticulosamente investigado pela mente humana que as cau sas de todos os fenômenos E não nos contentamos em saber as cau sas imediatas prosseguimos nossa busca até chegarmos ao princípio original e último Não queremos parar antes de conhecer na causa a energia que a faz agir sobre seu efeito o laço que os conecta e a quali dade eficaz de que esse laço depende Essa é nossa meta em todos os nossos estudos e reflexões E como devemos ficar desapontados quando descobrimos que essa conexão laço ou energia se encontra unicamente dentro de nós mesmos e não é mais que a determina ção da mente adquirida pelo costume que nos leva a fazer uma tran sição de um objeto àquele que usualmente o acompanha e da im pressão de um à idéia vívida do outro Tal descoberta não apenas desfaz toda esperança de algum dia alcançarmos uma perfeita convic ção mas chega a impedir nossos próprios desejos pois parece que ao dizer que desejamos conhecer o princípio operador último enquan to algo que residiria no objeto externo ou estamos nos contradizendo ou dizemos coisas sem sentido 6 Essa deficiência de nossas idéias é verdade não se percebe na vida comum não nos damos conta de que nas conjunções mais usuais de causa e efeito somos tão ignorantes sobre o princípio último que une a causa e o efeito quanto nas mais insólitas e extraordinárias Mas isso procede de uma mera ilusão da imaginação Ora a questão é até que ponto devemos ceder a essas ilusões Essa é uma questão muito di fícil e nos reduz a um dilema muito perigoso como quer que o solucionemos Porque se assentimos a todas as triviais sugestões da fantasia estas além de serem freqüentemente contrárias umas às outras levamnos a tais erros absurdos e obscuridades que acaba mos envergonhados de nossa credulidade Nada é mais perigoso para a razão que os vôos da imaginação a maior causa de erro entre os fi lósofos Os homens dotados de uma fantasia vivaz podem sob esse aspecto ser comparados àqueles anjos que a Escritura representa co brindo os olhos com suas asas Já vimos tantos exemplos disso que podemos nos poupar o trabalho de insistir mais sobre esse assunto 299 Tratado da natureza humana 7 Por outro lado se a consideração desses exemplos nos fizesse to mar a resolução de rejeitar todas as triviais sugestões da fantasia e se guir o entendimento isto é as propriedades mais gerais e estabelecidas da imaginação mesmo essa resolução se rigorosamente posta em prática seria perigosa e levaria às consequências mais fatais Pois já mostrei2 que o entendimento quando age sozinho e de acordo com seus princípios mais gerais destróise a si mesmo sem deixar subsistir o menor grau de evidência em nenhuma proposição seja na filosofia seja na vida comum O único meio de nos salvarmos desse ceticismo total é por meio dessa singular e aparentemente trivial propriedade da fantasia pela qual acedemos com dificuldade às visões remotas das coisas não sendo capazes de ter delas uma impressão tão sensível quanto aquela que temos das visões mais fáceis e naturais Estabele ceremos então como uma máxima geral que nunca se deve aceitar nenhum raciocínio sutil ou mais elaborado Consideremse bem as conseqüências de um tal princípio Desse modo acabaríamos de vez com toda ciência e filosofia procedendo com base em uma única qua lidade da imaginação teríamos de abraçar todas elas por uma paridade da razão E estaríamos expressamente incorrendo em uma contradi ção pois essa máxima tem de ser construída sobre o raciocínio ante rior que devemos admitir é bastante sutil e metafísico Que partido tomaremos portanto em meio a tais dificuldades Se adotarmos esse princípio e condenarmos todos os raciocínios sutis cairemos nos ab surdos mais manifestos Se o rejeitarmos em favor desses raciocínios arruinaremos por completo o entendimento humano Não nos resta escolha portanto senão entre uma falsa razão e razão nenhuma De minha parte não sei o que se deve fazer neste caso Posso apenas ob servar o que se costuma fazer ou seja que raramente ou nunca se pensa nessa dificuldade e mesmo quando ela já esteve alguma vez presente à mente é rapidamente esquecida deixando atrás de si ape nas uma leve impressão Reflexões muito sutis exercem pouca ou 20 Seção 1 p21 5ss 300 Livro 1 Parte 4 Seção 7 nenhuma influência sobre nós entretanto não estabelecemos e não podemos estabelecer como uma regra que não deveriam exercer ne nhuma influência o que implicaria uma contradição manifesta 8 Mas que foi que eu disse Que as reflexões muito sutis e me tafísicas exercem pouca ou nenhuma influência sobre nós Dificilmen te poderia deixar de me retratar e de condenar essa minha opinião com base em meu sentimento feeling e experiência presente A visão in tensa dessas variadas contradições e imperfeições da razão humana me afetou de tal maneira e inflamou minha mente a tal ponto que estou prestes a rejeitar toda crença e raciocínio e não consigo considerar uma só opinião como mais provável ou verossímil que as outras Onde estou o que sou De que causas derivo minha existência e a que con dição retornarei De quem o favor deverei cortejar a ira de quem devo temer Que seres me cercam Sobre quem exerço influência e quem exerce influência sobre mim Todas essas questões me confundem e começo a me imaginar na condição mais deplorável envolvido pela mais profunda escuridão e inteiramente privado do uso de meus membros e faculdades 9 Felizmente ocorre que sendo a razão incapaz de dissipar essas nu vens a própria natureza o faz e me cura dessa melancolia e delírio fi losóficos tornando mais branda essa inclinação da mente ou então fornecendome alguma distração e alguma impressão sensível mais vívida que apagam todas essas quimeras Janto jogo uma partida de gamão converso e me alegro com meus amigos após três ou quatro horas de diversão quando quero retomar essas especulações elas me parecem tão frias forçadas e ridículas que não me sinto mais disposto a leválas adiante 10 Encontrome aqui portanto absoluta e necessariamente deter minado a viver a falar e a agir como as outras pessoas nos assuntos da vida corrente Mas embora minha propensão natural e o curso de meus espíritos animais e de minhas paixões me deixem reduzido a esta crença indolente nas máximas gerais do mundo ainda sinto tantos resquícios de minha disposição anterior que estou pronto a lançar ao 301 Tratado da natureza humana fogo todos os meus livros e papéis e resolvo que nunca mais renun ciarei aos prazeres da vida em benefício do raciocínio e da filosofia Pois são esses meus sentimentos quando dominado como agora por esse humor irritadiço Posso ou antes tenho de ceder à corrente da natureza submetendome aos sentidos e ao entendimento e nessa cega submissão mostro ainda mais perfeitamente minha disposição e princípios céticos Mas seguirseá daí que devo lutar contra a cor rente da natureza que me conduz à indolência e ao prazer Que devo me isolar em alguma medida do comércio e da sociedade dos outros homens que me é tão agradável E tenho de torturar meu cérebro com sutilezas e sofisticarias no momento mesmo em que não sou capaz de me convencer da razoabilidade de uma aplicação tão peno sa nem tenho qualquer perspectiva tolerável de por seu intermédio chegar à verdade e à certeza Que obrigação tenho de fazer um tão mau uso de meu tempo E a que fim isso pode servir seja em prol da hu manidade seja em meu próprio interesse Não se tenho de ser insen sato como certamente o são todos aqueles que raciocinam ou crêem em alguma coisa que ao menos meus desatinos sejam naturais e agra dáveis Quando lutar contra minha inclinação terei uma boa razão para justificar minha resistência e não serei mais levado a vagar em meio a tão lúgubres solidões e atravessar mares tão bravios quanto os que até agora tenho encontrado 1 1 São esses os meus sentimentos de melancolia e indolência E na verdade devo confessar que a filosofia nada tem a opor a eles já que espera obter uma vitória mais pelo retorno de uma disposição séria e bemhumorada que pela força da razão e da convicção Em todos os incidentes da vida devemos sempre preservar nosso ceticismo Se acreditamos que o fogo aquece ou que a água refresca é somente por que é muito penoso pensar de outra maneira Mais ainda se somos filósofos deveria ser somente com base em princípios céticos e por sentirmos uma inclinação a assim empregar nossa vida Quando a ra zão é vívida e se combina com alguma propensão deve receber o assen timento Quando não o é não pode ter nenhum direito de atuar sobre nós 302 Livro 1 Parte 4 Seção 7 12 Assim no momento em que cansado de diversões e de compa nhia entregome a devaneios em meu aposento ou enquanto passeio solitário pela margem de um rio sinto minha mente inteiramente vol tada para si mesma e minha atenção se inclina naturalmente para aque les temas sobre os quais encontrei tantas discussões no decorrer de minhas leituras e conversas Não posso deixar de sentir curiosidade sobre os princípios morais do bem e do mal a natureza e o fundamento do governo e a causa das diversas paixões e inclinações que me mo vem e governam Sintome desconfortável ao pensar que aprovo um objeto e desaprovo um outro que chamo alguma coisa de bela e ou tra de feia que tomo decisões acerca da verdade e da falsidade da razão e da insensatez sem saber com base em que princípios o faço Preo cupome com a condição do mundo erudito envolto em uma ignorân cia tão deplorável acerca de todos esses pontos Sinto crescer em mim a ambição de contribuir para a instrução da humanidade e de con quistar um nome por minhas invenções e descobertas Tais senti mentos brotam naturalmente em minha disposição presente e se eu tentasse erradicálos dedicandome a qualquer outra tarefa ou di vertimento sinto que perderia no âmbito do prazer e esta é a origem de minha filosofia 13 Mesmo supondo contudo que essa curiosidade e ambição não me transportassem a especulações para além da esfera da vida comum o que necessariamente aconteceria é que minha própria fraqueza me le varia a tais investigações A superstição é certamente muito mais audaz em seus sistemas e hipóteses que a filosofia enquanto esta se contenta em atribuir novas causas e princípios aos fenômenos que aparecem no mundo visível aquela abre um mundo só seu apresentan donos cenas seres e objetos inteiramente novos Portanto como é quase impossível para a mente humana permanecer como a dos ani mais dentro desse estreito círculo de objetos que formam o tema das conversas e ações cotidianas o que temos a fazer é apenas deliberar sobre a escolha de nosso guia e dar nossa preferência àquele que é mais seguro e agradável Quanto a isso ouso recomendar a filosofia e não 303 Tratado da natureza humana hesito em escolhêla em lugar de à superstição de qualquer gênero ou nome Pois como a superstição surge de modo natural e fácil com base nas opiniões populares da humanidade apoderase da mente com mais força sendo com freqüência capaz de perturbar a conduta de nossas vidas e ações A filosofia ao contrário se legítima só pode nos oferecer sentimentos brandos e moderados e se falsa e extrava gante suas opiniões são objetos de uma mera especulação fria e ge ral e raramente chegam a interromper o curso de nossas propensões naturais Os CÍNICOS formam um exemplo extraordinário de filóso fos pois partindo de raciocínios puramente filosóficos cometeram extravagâncias de conduta tão grandes quanto as de qualquer MON GE ou DERVIXE que já tenha passado por este mundo Mas falando de maneira geral os erros da religião são perigosos os da filosofia ape nas ridículos 14 Estou ciente de que esses dois casos de força e fraqueza da men te não abarcam toda a humanidade e que particularmente na Ingla terra existem muitos cavalheiros honestos sempre ocupados com seus afazeres domésticos ou divertindose em recreações comuns e que por isso mesmo nunca levaram seus pensamentos muito além dos objetos que todos os dias apresentamse a seus sentidos E de fato não pretendo transformar pessoas como essas em filósofos não espero que se associem a estas pesquisas ou que prestem ouvidos a estas descobertas Fazem bem em se manter em sua situação presente Em vez de refinar tais pessoas tornandoas em filósofos seria muito melhor se pudéssemos comunicar a nossos fundadores de sistemas uma parcela dessa mistura bruta e terrena ingrediente que costuma lhes fazer tanta falta e que serviria para temperar aquelas partículas incandescentes de que eles se compõem Enquanto uma imaginação ardorosa for admissível em filosofia e enquanto se aceitar que hipó teses possam ser abraçadas meramente por especiosas e agradáveis jamais poderemos ter princípios firmes ou sentimentos adequados à prática e à experiência comuns Mas se algum dia essas hipóteses forem eliminadas poderemos então ter esperanças de estabelecer 304 Livro 1 Parte 4 Seção 7 um sistema ou um conjunto de opiniões que se não verdadeiras pois isso talvez seria esperar demais sejam ao menos satisfatórias para a mente humana e resistam à prova do exame mais crítico Os muitos sistemas quiméricos que sucessivamente emergiram e declinaram entre os homens não devem nos fazer perder as esperanças de alcan çar esse objetivo devemos considerar como foi breve o período em que essas questões foram tema de investigação e raciocínio Dois mil anos com interrupções tão longas e sob tão fortes desencorajamentos são um período pequeno para permitir um aperfeiçoamento tolerável das ciências e talvez estejamos ainda em uma época muito inicial do mun do para descobrir qualquer princípio que suporte o exame da poste ridade mais tardia De minha parte só espero poder contribuir um pouco para o avanço do conhecimento dando uma nova direção a al guns aspectos das especulações dos filósofos e apontando a estes de maneira mais distinta os únicos assuntos em que podem esperar ob ter certeza e convicção A Natureza Humana é a única ciência do ho mem entretanto até aqui tem sido a mais negligenciada A mim basta trazêla um pouco mais para a atualidade e a esperança de consegui lo serve para me recompor daquela melancolia e para resgatar meu hu mor daquela indolência que por vezes me dominam Se o leitor se en contra na mesma disposição favorável que me acompanhe em minhas especulações futuras Se não que siga sua inclinação e aguar de o retorno da aplicação e do bom humor A conduta de um homem que estuda filosofia desse modo descuidado é mais verdadeiramente cética que a daquele que mesmo sentindo dentro de si uma inclinação para esse estudo está a tal ponto soterrado por dúvidas e reservas que o rejeita inteiramente O verdadeiro cético desconfiará tanto de suas dúvidas filosóficas quanto de sua convicção filosófica e jamais em virtude de nenhuma delas recusará qualquer satisfação inocente que se ofereça 1 5 E não devemos apenas nos entregar em geral à nossa inclinação nas pesquisas filosóficas mais elaboradas apesar de nossos princípios céticos mas também ceder à propensão que nos inclina a ser confiantes 305 e seguros acerca de pontos particulares segundo a perspectiva como os examinemos naquele instante particular É mais fácil impedir todo exame e investigação que refrear uma inclinação tão natural e nos guardar daquela certeza que surge sempre que examinamos um objeto de maneira exata e completa Numa ocasião como essa tendemos a esquecer não apenas nosso ceticismo mas nossa modéstia também e empregamos expressões como é evidente é certo é inegável que uma devida consideração pelo público deveria talvez impedir A exemplo de outros também eu posso ter cometido essa falta mas faço aqui uma ressalva contra qualquer objeção que se possa apresentar a isso declaro que foi a visão presente do objeto que me forçou a usar tais expressões e que elas não refletem um espírito dogmático nem uma imagem presunçosa de meu próprio juízo sentimentos que sei não serem apropriados a ninguém muito menos a um cético Tratado da natureza humana Uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais Rara temporum felicitas ubi sentire quce velis quce sentias dicere licet Tacitus Livro 2 Das paixões Tácito Histórias 11 Rara felicidade de uma época em que se pode pensar o que se quer e dizer o que se pensa NT Seção 1 Divisão do tema Parte 1 Do orgulho e da humildade 1 Assim como todas as percepções da mente podem ser divididas em impressões e idéias assim também as impressões admitem uma outra divisão em originais e secundárias Essa divisão das impressões é a mes ma1 que utilizei anteriormente quando as distingui em impressões de sensação e de reflexão Impressões originais ou de sensação são as que surgem na alma sem nenhuma percepção anterior pela constituição do corpo pelos espíritos animais ou pela aplicação dos objetos sobre os órgãos externos As impressões secundárias ou reflexivas são as que procedem de algumas dessas impressões originais seja imedia tamente seja pela interposição de suas idéias Do primeiro tipo são todas as impressões dos sentidos e todas as dores e os prazeres cor porais do segundo as paixões e outras emoções semelhantes Livro 1 Parte 1 Seção 2 Reflective No livro 1 Hume utilizara exclusivamente o termo impressões de reflexão impressions of reflexion Vejase por exemplo 1 1 2 p32 NT 309 Tratado da natureza humana 2 É certo que a mente em suas percepções tem de começar de al gum lugar e uma vez que as impressões precedem suas idéias corres pondentes é preciso que algumas impressões apareçam na alma sem que nada as introduza Mas essas impressões dependem de causas naturais e físicas e seu exame me afastaria muito de meu tema pre sente levandome até as ciências da anatomia e filosofia da natureza Por essa razão limitarmeei aqui àquelas outras impressões que de nominei secundárias e reflexivas por surgirem das impressões origi nais ou de suas idéias Dores e prazeres físicos são fontes de muitas paixões seja quando sentidos seja quando considerados pela mente mas surgem na alma ou no corpo como se preferir originalmente sem nenhum pensamento ou percepção precedente Uma crise de gota produz uma longa série de paixões como pesar esperança medo mas não deriva imediatamente de nenhum afeto ou idéia 3 As impressões reflexivas podem ser divididas em dois tipos as cal mas e as violentas Do primeiro tipo são o sentimento sense do belo e do feio nas ações composições artísticas e objetos externos Do segun do são as paixões de amor e ódio pesar e alegria orgulho e humilda de Essa divisão está longe de ser exata O enlevo poético e musical atinge com freqüência grandes alturas enquanto aquelas outras im pressões chamadas propriamente de paixões podem se atenuar até se transformarem em emoções tão suaves que passam de alguma manei ra despercebidas Em geral porém as paixões são mais violentas que as emoções resultantes da beleza e da deformidade e por isso essas impressões têm sido comumente distinguidas umas das outras Como o tema da mente humana é copioso e variado tirarei partido aqui dessa divisão vulgar e cômoda para proceder de maneira mais ordenada Embora humildade para nós refirase antes a uma qualidade que a uma paixão não pude encontrar um termo melhor para traduzir a palavra humility Mesmo essa solu ção entretanto é problemática De fato causa estranheza ler como à página 323 que A sensação da humildade é desagradável como a do orgulho é agradável Por outro lado a vantagem dessa escolha é que a humildade como a humility é também considerada uma virtude por aquelas pessoas que estão acostumadas ao estilo das escolas e do púlpi to cf p33 12 NT 3 1 0 Livro 2 Parte 1 Seção 2 Tendo já dito tudo que pensei ser necessário dizer a respeito de nos sas idéias explicarei agora essas emoções violentas ou paixões sua na tureza origem causas e efeitos 4 Quando examinamos o conjunto das paixões ocorrenos dividi las em diretas e indiretas Por paixões diretas entendo as que surgem imediatamente do bem ou do mal da dor ou do prazer Por indiretas as que procedem dos mesmos princípios mas pela conjunção de ou tras qualidades Não posso agora justificar ou explicar essa distinção de maneira mais completa Posso apenas observar de modo geral que incluo entre as paixões indiretas o orgulho a humildade a ambição a vaidade o amor o ódio a inveja a piedade a malevolência a gene rosidade juntamente com as que delas dependem E entre as paixões diretas o desejo a aversão a tristeza a alegria a esperança o medo o desespero e a confiança Começarei pelas primeiras Seção 2 Do orgulho e da humildade seus objetos e suas causas 1 As paixões do ORGULHO e da HUMILDADE são impressões sim ples e uniformes e por isso não importa quantas palavras utilizemos é impossível fornecer uma definição precisa delas ou aliás de qual quer outra paixão O máximo que podemos almejar é descrevêlas enumerando as circunstâncias que as acompanham Mas como essas palavras orgulho e humildade são de uso geral e como as impressões que representam são as mais comuns cada qual por si mesmo será capaz de formar delas uma idéia correta sem perigo de se enganar Por essa razão para não perder tempo com preliminares passarei imedia tamente ao exame dessas paixões 2 É evidente que o orgulho e a humildade embora diretamente con trários têm o mesmo OBJETO Esse objeto é o eu ou seja aquela su cessão de idéias e impressões relacionadas de que temos uma memó ria e consciência íntima É aqui que se fixa nosso olhar sempre que somos movidos por uma dessas paixões Conforme nossa idéia de nós 3 1 1 Tratado da natureza humana mesmos seja mais ou menos favorável sentimos um desses afetos opostos sendo exaltados pelo orgulho ou abatidos pela humildade Qualquer outro objeto apreendido pela mente será sempre conside rado em sua relação conosco de outro modo jamais poderia excitar essas paixões ou sequer produzir nelas o menor aumento ou diminui ção Quando o eu não é levado em consideração não há lugar nem para o orgulho nem para a humildade 3 Embora essa sucessão conectada de percepções a que denomina mos o eu seja sempre o objeto dessas duas paixões é impossível po rém que seja também sua CAUSA e que por si só baste para as des pertar Pois como essas paixões são diretamente contrárias e têm o mesmo objeto em comum se esse objeto fosse também sua causa nunca poderia produzir um grau de uma das paixões sem ao mesmo tempo despertar um grau igual da outra e essa oposição e contrarie dade destruiria a ambas É impossível que um homem seja ao mesmo tempo orgulhoso e humilde e caso tenha uma razão diferente para cada uma dessas paixões como ocorre com freqüência ou estas se dão alternadamente ou se coincidem uma aniquila a outra na medida de sua força e apenas o que resta da paixão superior continua a atuar sobre a mente Mas no caso de que estamos tratando nenhuma das duas paixões poderia se tornar superior pois se supusermos que o que as despertou foi exclusivamente a visão de nós mesmos como essa visão é perfeitamente indiferente em relação a uma e à outra pai xão deve produzir exatamente o mesmo grau de ambas ou em ou tras palavras não pode produzir nenhuma Despertar uma paixão e ao mesmo tempo suscitar uma porção equivalente de sua antagonista é desfazer imediatamente o que se havia feito acabando por deixar a mente em total calma e indiferença 4 Temos de fazer uma distinção portanto entre a causa e o objeto dessas paixões entre a idéia que as excita e aquela a que dirigem seu olhar quando excitadas Orgulho e humildade uma vez despertados imediatamente levam nossa atenção para nós mesmos considerando 3 1 2 Livro 2 Parte 1 Seção 2 nos seu objeto último e final Contudo é preciso algo mais para des pertar essas paixões alguma coisa que seja peculiar a uma delas e que não produza as duas exatamente no mesmo grau A primeira idéia que se apresenta à mente é a da causa ou princípio produtivo Essa idéia des perta a paixão a ela conectada e essa paixão quando despertada di rige nosso olhar para uma outra idéia que é a idéia do eu Temos aqui portanto uma paixão situada entre duas idéias das quais uma a pro duz e a outra é produzida por ela A primeira idéia portanto represen ta a causa e a segunda o objeto da paixão 5 Comecemos com as causas do orgulho e da humildade Podemos observar que sua propriedade mais evidente e notável é a grande va riedade de sujeitos em que podem estar localizadas Toda qualidade mental de valor seja da imaginação do juízo da memória ou do tem peramento espírito bomsenso erudição coragem justiça integri dade todas são causas de orgulho e seus opostos de humildade E não é apenas a mente que é contemplada por essas paixões mas tam bém o corpo Um homem pode se orgulhar de sua beleza força agi lidade boa aparência talento para a dança equitação esgrima e de sua destreza em qualquer ocupação ou atividade manual Mas isso não é tudo As paixões vão ainda mais longe compreendendo qualquer ob jeto que tenha conosco a menor aliança ou relação Nosso país famí lia filhos parentes riquezas casas jardins cavalos cães roupas tudo isso pode se tornar causa de orgulho ou de humildade 6 O exame dessas causas nos mostra que é necessário fazer uma nova distinção nas causas da paixão a saber entre a qualidade operante e o sujeito em que essa qualidade está situada Por exemplo um homem se envaidece com uma bela casa que lhe pertence ou que ele próprio construiu e projetou Aqui o objeto da paixão é ele mesmo e a causa é a bela casa e essa causa por sua vez podese subdividir em duas par tes a qualidade que atua sobre a paixão e o sujeito a que tal qualida de é inerente A qualidade é a beleza e o sujeito é a casa considerada como sua propriedade ou criação Ambas as partes são essenciais e 3 1 3 Tratado da natureza humana a distinção não é vã nem quimérica A beleza considerada simples mente como tal nunca produziria orgulho ou vaidade a menos que situada em algo relacionado a nós e a mais forte relação por si só sem a beleza ou algo que a substitua tampouco exerceria qualquer influência sobre essa paixão Portanto como esses dois elementos podem ser facilmente separados e como é necessária sua conjunção para que a paixão se produza devemos considerálos partes componentes da causa e devemos imprimir em nossa mente uma idéia exata dessa distinção Seção 3 De onde derivam esses objetos e causas 1 Tendo já observado uma diferença entre o objeto das paixões e sua causa e tendo distinguido na causa entre a qualidade que opera sobre as paixões e o sujeito a que ela é inerente passaremos agora a exami nar o que determina cada um desses a ser o que é ou seja o que de signa para esses afetos um tal objeto qualidade e sujeito particulares Desse modo compreenderemos perfeitamente a origem do orgulho e da humildade 2 Em primeiro lugar é evidente que a propriedade que determina que essas paixões tenham como objeto o eu não é somente natural mas também original Dada a constância e a estabilidade de suas operações ninguém pode duvidar que essa propriedade seja natural O objeto do orgulho e da humildade é sempre o eu e quando essas paixões con templam algo além deste elas o fazem tendo sempre em vista a nós mesmos nenhuma pessoa ou objeto poderia exercer influência sobre nós se não fosse assim 3 Que isso procede de uma qualidade original ou impulso primário ficará igualmente evidente se considerarmos que tal é a característi ca distintiva dessas paixões Se a natureza não houvesse conferido à mente algumas propriedades originais esta jamais poderia ter qualida 3 1 4 Livro 2 Parte 1 Seção 3 des secundárias pois nesse caso não teria nenhum fundamento para a ação e jamais poderia começar a se exercer Ora essas qualidades que devemos considerar como originais são as mais inseparáveis da alma e não podem ser reduzidas a outras E assim é a qualidade que determina o objeto do orgulho e da humildade 4 Talvez possamos ampliar essa questão e perguntar se as causas que produzem a paixão são tão naturais quanto o objeto a que ela se diri ge e se toda essa imensa variedade se deve ao capricho ou decorre da constituição da mente Será fácil desfazer essa dúvida se dirigirmos nosso olhar para a natureza humana e considerarmos que em todas as nações e épocas são sempre os mesmos objetos que dão origem ao orgulho e à humildade mesmo no caso de um desconhecido podemos saber de maneira bastante aproximada o que aumentará ou diminui rá essas suas paixões Qualquer variação nesse ponto procede unica mente de uma diferença no temperamento e caráter dos homens e além do mais é bem insignificante Como imaginar que a natureza humana permanecendo a mesma os homens poderiam algum dia se tornar inteiramente indiferentes ao poder riqueza beleza ou mérito pessoais e seu orgulho e vaidade não fossem afetados por essas vantagens 5 Mas embora as causas do orgulho e da humildade sejam clara mente naturais veremos ao examinálas que não são originais e seria inteiramente impossível que cada uma delas se adaptasse a essas pai xões por um dispositivo particular e pela constituição primária da na tureza Além de seu número prodigioso muitas delas são efeitos da arte surgindo em parte do trabalho em parte do capricho e em parte da sorte dos homens O trabalho produz casas móveis e roupas O ca pricho determina suas espécies e qualidades particulares E a sorte freqüentemente contribui para tudo isso revelando os efeitos que resultam das diferentes misturas e combinações dos corpos Portan to é absurdo imaginar que cada uma dessas causas tenha sido prevista e providenciada pela natureza e que cada nova produção da arte que 3 1 5 Tratado da natureza humana causa orgulho ou humildade em vez de se adaptar à paixão partici pando de alguma qualidade geral que já opere naturalmente sobre a mente seja ela própria objeto de um princípio original até então ocul to na alma e revelado afinal apenas por acidente Assim o primeiro artesão que concebeu uma bela escrivaninha teria produzido orgulho naquele que se tornou seu proprietário mas por princípios diferen tes dos que fizeram o mesmo homem orgulhoso de possuir belas ca deiras ou mesas Ora isso parece obviamente ridículo e devemos con cluir que não é verdade que cada causa de orgulho e humildade se adapte a essas paixões por uma qualidade original distinta ao contrá rio existe uma ou mais circunstâncias comuns a todas elas das quais depende sua eficácia 6 Além disso constatamos que no curso da natureza embora os efeitos sejam muitos os princípios de que essas causas derivam são comumente poucos e simples um filósofo natural que recorresse a uma qualidade diferente para explicar cada operação diferente daria mostras de inabilidade Quão mais verdadeiro isso deve ser no que concerne à mente humana que sendo um objeto tão limitado pode com razão ser considerada incapaz de conter esse monstruoso amon toado de princípios que seriam necessários para despertar as paixões do orgulho e da humildade se cada causa distinta fosse ajustada à paixão mediante um conjunto distinto de princípios 7 Aqui portanto a filosofia moral está na mesma situação em que estava a filosofia da natureza em relação à astronomia antes do tem po de Copérnico Os antigos embora cientes da máxima de que a natu reza não faz nada em vão conceberam sistemas celestes tão complica dos que acabaram parecendo incompatíveis com a verdadeira filosofia dando lugar a algo mais simples e natural Inventar sem escrúpulos um novo princípio para cada novo fenômeno em vez de adaptálo ao Aqui como um pouco adiante ver nota seguinte a NNOPT corrigiu paixão para paixões porque The context indicates that Hume is here discussing two passions pride and humility and hence the plural form is required cf David F Norton Mary J Norton op cit Talvez mas penso que não necessariamente pois Hume pode estar se referindo à adaptação da causa ou objeto a um a só paixão ou orgulho ou humildade NT Cf nota anterior NT 3 1 6 Livro 2 Parte 1 Seção 4 princípio antigo sobrecarregar nossas hipóteses com tamanha varie dade são provas certas de que nenhum desses princípios é o legíti mo e que tudo que desejamos é um grande número de falsidades para encobrir nossa ignorância da verdade Seção 4 Das relações de impressões e de idéias 1 Estabelecemos assim duas verdades sem encontrar nenhum obstáculo ou dificuldade é a partir de princípios naturais que essas di versas causas excitam o orgulho e a humildade e não é por um princípio diferente que cada causa diferente se ajusta a sua paixão Passaremos agora a investigar como podemos reduzir esses princípios a um nú mero menor encontrando alguma coisa comum a todas essas causas de que dependa sua influência 2 Devemos para isso refletir sobre certas propriedades da nature za humana que embora tenham uma influência poderosa sobre todas as operações tanto do entendimento como das paixões não são mui to enfatizadas pelos filósofos A primeira é a associação de idéias que tantas vezes observei e expliquei É impossível à mente fixarse firme za sobre uma única idéia durante um tempo considerável nem o maior esforço lhe permitiria alcançar tal constância Nossos pensamentos porém por mais variáveis que possam ser não são inteiramente des providos de regras e de método em suas mudanças A regra segundo a qual procedem consiste em passar de um objeto àquele que lhe é semelhante ou contíguo ou que é produzido por ele Quando uma idéia está presente à imaginação qualquer outra idéia unida à primeira por essas relações seguea naturalmente e penetra com mais facilidade em virtude dessa introdução 3 A segunda propriedade que observarei na mente humana é uma as sociação parecida de impressões Todas as impressões semelhantes se conectam entre si e tão logo uma delas surge as demais imediatamente a seguem A tristeza e o desapontamento dão origem à raiva a raiva à 3 1 7 Tratado da natureza humana inveja a inveja à malevolência e a malevolência novamente à tristeza até que o círculo se complete Do mesmo modo nosso humor quando exaltado pela alegria entregase naturalmente ao amor à generosida de à piedade à coragem ao orgulho e a outros afetos semelhantes É difícil para a mente quando movida por uma paixão limitarse a essa paixão sem mudança ou variação alguma A natureza humana é de masiadamente inconstante para admitir tal regularidade A muta bilidade lhe é essencial E o que poderia ser mais natural que mudar para afetos ou emoções que condizem com o humor e se harmonizam com o conjunto de paixões então prevalecentes É evidente portan to que existe uma atração ou associação entre as impressões assim como entre as idéias embora com a importante diferença que as idéias se associam por semelhança contigüidade e causalidade e as impres sões apenas por semelhança 4 Em terceiro lugar observemos que essas duas espécies de associa ção se apóiam e favorecem uma à outra e a transição se realiza mais facilmente quando elas coincidem no mesmo objeto Assim um ho mem cujo humor foi fortemente perturbado e abalado por alguma ofensa é capaz de encontrar uma centena de motivos de descontenta mento impaciência medo e outras paixões desagradáveis sobretu do se puder descobrir esses motivos na pessoa que causou sua primei ra paixão ou em algo próximo a ela Os princípios que favorecem a transição entre as idéias concorrem aqui com os que agem sobre as paixões e unindose em uma única ação os dois conferem à mente um duplo impulso A nova paixão portanto deve surgir com uma vio lência proporcionalmente maior e a transição até ela deve se tornar igualmente mais fácil e natural 5 Aproveito a ocasião para citar a autoridade de um elegante escri tor que se exprime da seguinte maneira Como a fantasia se delei ta com tudo que é grande estranho ou belo e tanto mais se satisfaz quanto mais dessas perfeições encontra no mesmo objeto ela é capaz Joseph Addison 1 6721719 Spectator n412 NT 3 1 8 Livro 2 Parte 1 Seção 5 também de receber uma nova satisfação pela ajuda de um outro sen tido Assim um som contínuo como o canto dos pássaros ou uma queda d água desperta a todo instante a mente do espectador tornan doo mais atento às diversas belezas do lugar em que se encontra Se surge um doce aroma ou perfume ele eleva os prazeres da imagina ção fazendo até as cores e o verde da paisagem parecerem mais agra dáveis pois as idéias desses dois sentidos reforçamse mutuamente e juntas são mais agradáveis que quando penetram separadas na mente como as diferentes cores de um quadro quando bem situadas real çam umas às outras e ganham uma beleza adicional em virtude de sua situação favorável Nesse fenômeno podemos observar a associação tanto de impressões como de idéias bem como o auxílio mútuo en tre elas Seção 5 Da influência dessas relações sobre o orgulho e a humildade 1 Agora que já estabelecemos esses princípios com base em uma ex periência inquestionável passo a investigar como iremos aplicálos para isso farei uma reflexão acerca de todas as causas de orgulho e de humildade sejam elas vistas como as qualidades operantes ou como os sujeitos em que essas qualidades estão localizadas Ao examinar essas qualidades constato de imediato que muitas delas concorrem na produção da sensação de dor e de prazer independentemente desses afetos que procuro aqui explicar Assim a beleza de nosso corpo por si só e por sua aparência mesma dá prazer além de orgulho e sua feiúra produz dor além de humildade Um banquete suntuoso nos de leita e um banquete grosseiro nos desagrada Aquilo que descubro ser verdadeiro em alguns casos suponho que o seja em todos por isso dou por suposto neste momento sem mais provas que toda causa de or gulho por suas qualidades peculiares produz um prazer à parte e toda causa de humildade um malestar 3 1 9 Tratado da natureza humana 2 Por outro lado considerando os sujeitos a que essas qualidades se ligam faço uma nova suposição que também parece provável por se apoiar em exemplos numerosos e evidentes esses sujeitos são ou bem partes de nós mesmos ou alguma coisa estreitamente relacionada conosco Assim as boas e más qualidades de nossas ações e manei ras constituem virtudes e vícios determinando nosso caráter pessoal a coisa que mais fortemente atua sobre essas paixões De modo seme lhante é a beleza ou a fealdade de nosso corpo casas equipagem ou mobiliário que nos torna vaidosos ou humildes As mesmas qualida des quando transferidas a sujeitos que não têm relação conosco não influenciam em nada nenhum dos dois afetos 3 Supus assim de alguma maneira a existência de duas proprieda des das causas desses afetos a saber que as qualidades produzem uma dor ou um prazer separados e que os sujeitos em que se encontram es sas qualidades têm uma relação com o eu Agora passo a examinar as próprias paixões com o propósito de nelas encontrar algo que cor responda às propriedades que supus existirem em suas causas Primei ramente vejo que o objeto peculiar do orgulho e da humildade é determi nado por um instinto original e natural e é absolutamente impossível dada a constituição primitiva da mente que essas paixões jamais vi sem a algo além do eu ou seja da pessoa individual de cujas ações e sentimentos cada um de nós está intimamente consciente É aqui que nossa atenção termina sempre por se fixar quando somos movidos por uma das duas paixões nessa situação da mente nunca podemos perder de vista tal objeto Não pretendo dar uma razão para isso ao contrário considero essa direção peculiar do pensamento como uma qualidade original 4 A segunda qualidade que descubro nessas paixões e que também considero uma qualidade original são suas sensações ou seja as emoções peculiares que elas despertam na alma e que constituem seu próprio ser e essência Assim o orgulho é uma sensação prazerosa e a humildade uma sensação dolorosa retirandose o prazer e a dor não há na realidade nem orgulho nem humildade Aquilo mesmo que 320 Livro 2 Parte 1 Seção 5 sentimos nos convence disso e é vão raciocinar ou discutir aqui so bre o que ultrapassa os limites do que sentimos 5 Comparo portanto essas duas propriedades estabelecidas das pai xões a saber seu objeto que é o eu e sua sensação que é prazerosa ou dolorosa com as duas propriedades supostas das causas sua re lação com o eu e sua tendência a produzir dor ou prazer independen temente da paixão e imediatamente descubro que se considerar es sas duas suposições como sendo corretas o verdadeiro sistema se impõe a mim com uma evidência irresistível A causa que suscita a paixão está relacionada com o objeto que a natureza atribuiu à paixão a sensação que a causa produz separadamente está relacionada com a sensação da paixão Dessa dupla relação de idéias e impressões é que deriva a paixão Uma idéia convertese facilmente em sua idéia correlata e uma impressão naquela outra impressão que se assemelha e corresponde a ela Quão mais fácil não deve ser tal transição quan do esses movimentos se auxiliam um ao outro e quando a mente re cebe um duplo impulso das relações de suas impressões e idéias 6 Para compreendermos melhor isso temos de admitir que a natu reza conferiu aos órgãos da mente humana uma certa disposição própria para produzir uma impressão ou emoção peculiar que chamamos de orgulho a essa emoção atribuiu uma certa idéia a idéia de eu que se produz infalivelmente Esse dispositivo da natureza é fácil de se con ceber Temos vários exemplos de tal estado de coisas Os nervos do nariz e do palato são dispostos de maneira a transmitir à mente em determinadas circunstâncias sensações peculiares As sensações de fome e de desejo carnal sempre produzem em nós a idéia dos objetos peculiares que convêm a cada apetite Essas duas circunstâncias se unem no orgulho Os órgãos estão dispostos de maneira a produzir a paixão e a paixão uma vez produzida naturalmente produz uma de terminada idéia Nada disso precisa ser provado É evidente que jamais possuiríamos tal paixão se não houvesse uma disposição da mente apropriada para ela e é igualmente evidente que a paixão sempre di 321 Tratado da natureza humana rige nosso olhar para nós mesmos fazendonos pensar em nossas próprias qualidades e particularidades 7 Tendo compreendido perfeitamente esse ponto podemos agora perguntar se a natureza produz a paixão imediatamente por si mesma ou se precisa da cooperação de outras causas Pois observemos que sob esse as pecto particular sua conduta é diferente nas diferentes paixões e sen sações Para produzir um gosto qualquer o palato tem de ser excita do por um objeto externo a fome ao contrário nasce internamente sem o concurso de nenhum objeto externo Entretanto seja qual for o caso das outras paixões e impressões o orgulho certamente requer o auxílio de algum objeto estranho e os órgãos que o produzem não exercem como o coração e as artérias um movimento interno origi nal Pois em primeiro lugar a experiência cotidiana nos convence de que o orgulho requer determinadas causas para ser excitado e elan guesce quando não é sustentado por alguma excelência no caráter nos dons corporais vestimentas equipagem ou fortuna Em segundo lu gar é evidente gue se surgisse imediatamente da natureza o orgulho seria permanente pois seu objeto é sempre o mesmo e não existe uma disposição corporal que seja peculiar ao orgulho como no caso da sede e da fome Em terceiro lugar a situação da humildade é exata mente a mesma que a do orgulho por isso segundo essa suposição deve ou ser permanente também ou destruir a paixão contrária des de o primeiro instante de modo que nenhuma das duas poderia jamais aparecer Em suma podemos ficar satisfeitos com a conclusão ante rior que o orgulho tem de ter uma causa assim como um objeto e um não tem influência sem o outro 8 A única dificuldade portanto é descobrir essa causa e determi nar o que move inicialmente o orgulho acionando os órgãos natural mente aptos a produzir essa emoção Ao consultar a experiência com o intuito de resolver essa dificuldade descubro imediatamente uma centena de causas diferentes que produzem orgulho e ao examinar essas causas suponho algo que desde o início percebo ser provável a saber que todas coincidem em duas circunstâncias produzem por si 322 Livro 2 Parte 1 Seção 5 sós uma impressão aliada à paixão e encontramse em um sujeito aliado ao objeto da paixão Quando em seguida considero a nature za da relação e seus efeitos sobre as paixões e sobre as idéias não pos so mais ter dúvida baseado nessas suposições de que é o mesmo prin cípio que origina o orgulho e confere movimento a esses órgãos que naturalmente dispostos de forma a produzir esse afeto requerem ape nas um primeiro impulso para iniciar sua ação Qualquer coisa que proporcione uma sensação prazerosa e esteja relacionada ao eu des perta a paixão do orgulho que também é agradável e tem o eu como objeto 9 Tudo que eu disse acerca do orgulho é igualmente verdade em re lação à humildade A sensação da humildade é desagradável como a do orgulho é agradável por essa razão a sensação separada que de riva das causas deve ser invertida enquanto a relação com o eu per manece a mesma Embora o orgulho e a humildade sejam diretamente contrários em seus efeitos e em suas sensações eles possuem o mes mo objeto de forma que basta trocar a relação de impressões sem fazer nenhuma alteração na de idéias Assim constatamos que uma bela casa que nos pertence produz orgulho e a mesma casa ainda pertencendo a nós produz humildade quando por um acidente sua beleza se transforma em fealdade e com isso a sensação de prazer que correspondia ao orgulho é transformada em dor relacionada à humil dade A dupla relação entre as idéias e as impressões subsiste em am bos os casos e produz uma transição fácil de uma emoção à outra 1 O Em uma palavra a natureza conferiu uma espécie de atração a cer tas impressões e idéias pela qual uma delas ao aparecer introduz na turalmente sua correlata Se essas duas atrações ou associações de impressões e idéias concorrem no mesmo objeto elas se auxiliam mu tuamente e a transição dos afetos e da imaginação se faz com menos esforço e mais facilidade Quando uma idéia produz uma impressão relacionada a uma outra impressão conectada por sua vez com uma Ver nossa nota à p3 10 NT 323 Tratado da natureza humana idéia relacionada à primeira idéia essas duas impressões devem de al gum modo ser inseparáveis e em nenhum caso uma delas pode vir desacompanhada da outra É dessa maneira que se determinam as causas particulares do orgulho e da humildade A qualidade que ope ra sobre a paixão produz separadamente uma impressão semelhante a ela o sujeito a que essa qualidade se liga relacionase ao eu objeto da paixão Não é de admirar que a causa como um todo sendo cons tituída de uma qualidade e de um sujeito origine tão inevitavelmen te a paixão 1 1 Para ilustrar essa hipótese podemos comparála àquela pela qual expliquei a crença que acompanha nossos juízos baseados na causa lidade Observei que em todos os juízos desse gênero há sempre uma impressão presente e uma idéia relacionada e a impressão presente confere uma vividez à fantasia e a relação transmite essa vividez por uma transição fácil à idéia relacionada Sem a impressão presente a atenção não se fixa e os espíritos animais não são excitados Sem a relação essa atenção permanece em seu primeiro objeto sem mais conseqüências Há evidentemente uma grande analogia entre essa hipótese e nossa hipótese presente de uma impressão e uma idéia que se transfundem para uma outra impressão e idéia por meio de sua dupla relação E devemos admitir que tal analogia é uma prova nada desprezível de ambas as hipóteses Seção 6 Limitações desse sistema 1 Antes de seguir adiante nesse tema e de fazer um exame de cada causa particular de orgulho e humildade porém convém estabelecer algumas limitações ao sistema geral de que todos os objetos agradáveis relacionados a nós por uma associação de idéias e de impressões produzem or gulho e os objetos desagradáveis humildade Essas limitações resultam da natureza mesma do assunto 324 Livro 2 Parte 1 Seção 6 2 1 Suponhamos que um objeto agradável adquira uma relação com o eu a primeira paixão a aparecer então é a alegria e essa paixão se manifesta por ocasião de uma relação menos forte que a necessária para suscitar o orgulho e a vanglória Podemos sentir alegria por estar mos presentes em um banquete quando nossos sentidos se regalam com todo tipo de iguarias mas somente o anfitrião do banquete sen te além da mesma alegria a paixão adicional da autoaclamação e da vaidade É verdade que algumas vezes os homens se gabam pelo mero fato de terem estado presentes a uma grande festa e mesmo apoia dos em uma relação tão pequena convertem seu prazer em orgulho Entretanto há que se admitir que em geral a alegria nasce de uma relação menos importante que a vaidade e muitas coisas alheias de mais para produzir orgulho são não obstante capazes de nos dar um deleite e prazer A razão dessa diferença podese explicar da seguinte maneira Uma relação é necessária no caso da alegria para aproximar o objeto de nós e assim fazer que ele nos dê alguma satisfação Isso é algo comum às duas paixões no caso do orgulho porém a relação é necessária ainda para produzir uma transição de uma paixão à ou tra e assim converter a satisfação em vaidade Por ter uma dupla ta refa a realizar essa relação tem de ser dotada de uma redobrada força e energia A isso podemos acrescentar que nos casos em que os ob jetos agradáveis não mantêm uma relação muito estreita conosco eles comumente a mantêm com alguma outra pessoa e esta última relação não apenas supera mas até diminui e às vezes chega a des truir a primeira como veremos posteriormente2 3 Eis portanto a primeira limitação que devemos fazer à nossa po sição geral de que tudo que tem alguma relação conosco e produz prazer ou dor produz igualmente orgulho ou humildade É preciso haver não apenas uma relação mas uma relação estreita e mais estreita que aquela ne cessária para a alegria 2 Parte 2 Seção 4 325 Tratado da natureza humana 4 2 A segunda limitação é que o objeto agradável ou desagradável seja não apenas estreitamente relacionado mas também peculiar a nós ou ao menos comum a nós e a algumas poucas pessoas Podemos observar que a natureza humana possui esta qualidade que procura remos explicar mais adiante a saber que tudo que se apresenta com freqüência tudo com que há muito nos acostumamos perde seu va lor aos nossos olhos e em pouco tempo é desprezado e negligencia do De modo semelhante julgamos os objetos mais por comparação com outros que por seu mérito real e intrínseco e quando não somos capazes de realçar seu valor por esse contraste tendemos a negligen ciar até mesmo o que existe neles de essencialmente bom Essas qua lidades da mente têm um efeito tanto sobre a alegria como sobre o orgulho e é de se notar que os bens que são comuns a toda a huma nidade e que o costume tornou familiares a nós dãonos pouca sa tisfação embora sejam às vezes mais excelentes que aqueles a que atribuímos um valor mais alto em virtude de sua singularidade Mas embora essa circunstância atue sobre as duas paixões sua influência é bem maior no caso da vaidade Alegramonos com inúmeros bens que por muito freqüentes não nos dão orgulho A saúde quando retorna após uma longa ausência proporcionanos uma satisfação bastante sensível mas raramente é vista como motivo de vaidade por que a compartilhamos com um número muito amplo de pessoas 5 Penso que a razão pela qual o orgulho é tão mais exigente sob esse aspecto que a alegria é a seguinte Para suscitar o orgulho temos sem pre de contemplar dois objetos a causa ou seja o objeto que produz prazer e o eu que é o verdadeiro objeto da paixão Mas a alegria só necessita de um objeto para ser produzida a saber aquele que dá pra zer e embora esse objeto tenha de ter alguma relação com o eu esta só é requerida para tornálo agradável pois o eu não é propriamente falando o objeto dessa paixão Portanto como o orgulho tem por assim dizer dois objetos aos quais dirige nosso olhar seguese que quando nenhum dos dois possui qualquer singularidade a paixão deve 326 Livro 2 Parte 1 Seção 6 se tornar mais fraca que aquela que tem apenas um objeto Quando nos comparamos com os outros o que fazemos a todo momento ve mos que não nos distinguimos em nada e quando comparamos o objeto que possuímos descobrimos a mesma infeliz circunstância Com duas comparações tão desvantajosas a paixão se vê inteiramente destruída 6 3 A terceira limitação é que o objeto prazeroso ou doloroso deve ser facilmente discernível e evidente e isso não apenas para nós mas também para os outros Essa circunstância como as duas anteriores exerce uma influência tanto sobre a alegria como sobre o orgulho Imaginamonos mais felizes além de mais virtuosos ou belos quan do parecemos assim para os outros porém gostamos mais ainda de ostentar nossas virtudes que nossos prazeres Isso se deve a causas que tentarei explicar posteriormente 7 4 A quarta limitação resulta da inconstância da causa dessas paixões e da curta duração de sua conexão conosco Aquilo que é ca sual e inconstante nos dá pouca alegria e menos orgulho Não fica mos muito satisfeitos com a própria coisa e menos ainda tendemos a sentir novos graus de autosatisfação por sua causa Prevemos e an tecipamos sua mudança por meio de nossa imaginação o que nos tor na pouco satisfeitos com ela Comparamola conosco com nossa exis tência mais duradoura e isso faz sua inconstância parecer ainda maior Parece ridículo inferir uma excelência em nós com base em um obje to que tem uma duração tão mais curta e nos acompanha durante uma parte tão breve de nossa existência É fácil compreender por que essa causa não age com a mesma força na alegria que no orgulho é que a idéia do eu não é tão essencial à primeira quanto a esta última paixão 8 5 Posso acrescentar como uma quinta limitação ou antes alar gamento deste sistema que as regras gerais têm grande influência sobre o orgulho e a humildade bem como sobre todas as outras pai xões É com base nelas que formamos uma opinião das diferentes po sições sociais dos homens de acordo com seu poder ou riqueza e não mudamos essa opinião em virtude de peculiaridades da saúde ou do 32 7 Tratado da natureza humana temperamento das pessoas mesmo que essas peculiaridades possam impedilas de desfrutar plenamente de suas posses Isso se explica pelos mesmos princípios que explicaram a influência das regras ge rais sobre o entendimento O costume facilmente nos leva a ultra passar os justos limites em nossas paixões assim como em nossos raciocínios 9 Não é descabido observar nesta ocasião que a influência das re gras e máximas gerais sobre as paixões contribui muito para facilitar os efeitos de todos os princípios que explicaremos no decorrer deste tratado É evidente que se uma pessoa adulta e de natureza igual à nossa fosse subitamente transportada para nosso mundo ela ficaria bastante confusa com todos os objetos e não descobriria facilmente que grau de amor ou ódio orgulho ou humildade ou qualquer outra paixão deveria atribuir a eles As paixões freqüentemente variam por causa de princípios insignificantes e estes nem sempre atuam com uma regularidade perfeita sobretudo na primeira tentativa Mas o cos tume e a prática tornam claros todos esses princípios determinando o valor correto de cada coisa o que certamente contribui para a fácil produção dessas paixões e para nos guiar mediante máximas gerais estabelecidas acerca das proporções que devemos guardar ao prefe rir um objeto a outro Essa observação pode ser útil para afastar difi culdades que venham a surgir a respeito de determinadas causas que a seguir atribuirei a algumas paixões particulares e as quais poderiam ser consideradas demasiadamente sutis para operarem da forma tão universal e certa como o fazem 10 Concluirei este tema com uma reflexão derivada dessas cinco li mitações as pessoas mais orgulhosas e que aos olhos do mundo têm mais razões para seu orgulho nem sempre são as mais felizes e as mais humildes nem sempre são as mais infelizes como este sistema poderia nos levar a imaginar em um primeiro momento Um mal pode ser real ainda que sua causa não tenha relação conosco pode ser real sem nos ser peculiar pode ser real sem transparecer aos outros pode ser real sem ser constante e pode ser real sem cair sob regras gerais 328 Livro 2 Parte 1 Seção 7 Males como esses não deixarão de nos tornar infelizes embora tenham pouca tendência a diminuir nosso orgulho E talvez descubramos que os males mais reais e mais palpáveis da vida são dessa natureza Seção 7 Do vício e da virtude 1 Tendo em mente essas limitações passemos ao exame das cau sas do orgulho e da humildade e vejamos se podemos descobrir em todos os casos a dupla relação que lhes permite agir sobre nossas paixões Se descobrirmos que todas essas causas estão relacionadas ao eu e produzem um prazer ou desprazer separados dessa paixão não restará nenhuma reserva quanto ao presente sistema Esforçar nosemos principalmente para provar este último ponto já que o pri meiro é de certa forma autoevidente 2 Comecemos com o VÍCIO e a VIRTUDE que são as causas mais ób vias dessas paixões Seria inteiramente alheio a meu propósito presen te entrar na controvérsia que nos últimos anos vem despertando tanto a curiosidade do público se essas distinções morais se fundam em princípios naturais e originais ou se nascem do interesse e da educação Reservo o exa me dessa questão para o próximo livro por ora tentarei mostrar que meu sistema se sustenta em qualquer das duas hipóteses o que cons titui uma forte prova de sua solidez 3 De fato mesmo admitindo que a moralidade não tem fundamento na natureza devese reconhecer que o vício e a virtude seja por inte resse próprio seja pelos preconceitos da educação produzem em nós uma dor e um prazer reais e podemos notar que esse ponto é vigo rosamente sustentado pelos defensores dessa hipótese Toda paixão hábito ou traço de caráter dizem eles que tenda a nos trazer algum benefício ou prejuízo proporciona respectivamente um contentamen to ou um malestar e é daí que surge a aprovação ou a desaprovação Sempre ganhamos com a liberalidade dos outros mas corremos pe 329 Tratado da natureza humana rigo de perder por sua avareza a coragem nos protege mas a covar dia nos deixa expostos a qualquer ataque a justiça é a sustentação da sociedade mas a injustiça se não controlada rapidamente traria sua ruína a humildade nos enaltece mas o orgulho nos humilha Por es sas razões as primeiras qualidades são consideradas virtudes e as últimas vícios Ora como aqui ainda se continua admitindo que existe um contentamento ou um malestar acompanhando todos os tipos de mérito ou demérito isso é suficiente para meu propósito 4 Vou mais adiante contudo e observo que não apenas essa hipó tese moral concorda com meu presente sistema mas também o reco nhecimento de que aquela é correta constitui uma prova absoluta e irresistível deste último Pois se toda moralidade se funda na dor ou no prazer gerados pela perspectiva de algum prejuízo ou vantagem que possam resultar de nosso próprio caráter ou do caráter alheio todos os efeitos da moralidade têm de ser derivados da mesma dor ou pra zer entre eles as paixões do orgulho e da humildade A essência mesma da virtude segundo essa hipótese é produzir prazer e a do vício é causar dor Para suscitar orgulho ou humildade a virtude e o vício devem fazer parte de nosso caráter Ora que outra prova pode mos desejar para a dupla relação de impressões e de idéias 5 O mesmo argumento irrefutável pode ser extraído da opinião da queles que sustentam que a moralidade é algo real essencial e fundado na natureza A hipótese mais provável já proposta para explicar a dis tinção entre vício e virtude bem como a origem dos direitos e das obri gações morais é que por uma constituição primitiva da natureza certos caracteres e paixões só de vistos e contemplados produzem um des prazer e outros de maneira semelhante suscitam um prazer O despra zer e a satisfação não são apenas inseparáveis do vício e da virtude constituem sua própria natureza e essência Aprovar um caráter é sen tir um contentamento original diante dele Desaproválo é sentir um desprazer A dor e o prazer portanto sendo as causas originais do ví cio e da virtude devem ser também as causas de todos os seus efei tos e conseqüentemente do orgulho e da humildade que acompa nham de maneira inevitável essa distinção 330 Livro 2 Parte 1 Seção 7 6 Supondose no entanto que essa hipótese da filosofia moral seja considerada falsa ainda assim é evidente que a dor e o prazer se não são as causas do vício e da virtude são ao menos inseparáveis destes A mera consideração de um caráter generoso e nobre nos proporcio na uma satisfação e quando ele se apresenta a nós ainda que apenas em um poema ou romance nunca deixa de nos encantar e agradar Em contrapartida a crueldade e a traição nos desagradam por sua própria natureza é impossível aceitar essas qualidades estejam elas em nós mesmos ou em outros Assim a primeira hipótese moral é uma pro va inegável do sistema anterior e a segunda no pior dos casos con corda com ele 7 Porém o orgulho e a humildade não nascem somente daquelas qualidades da mente que segundo os sistemas vulgares de ética con sideramse partes do dever moral mas também de qualquer outra que tenha uma conexão com o prazer e o desprazer Nada gratifica tanto nossa vaidade quanto nosso talento de agradar aos outros pelo fato de termos um espírito agudo bom humor ou qualquer outro dom e nada nos provoca maior humilhação que o fracasso em qualquer tentativa dessa natureza Ninguém jamais foi capaz de dizer em que consiste o a espirituosidade nem de mostrar por que se deve denominar assim um de terminado sistema de pensamento e não outro Somente o gosto per mitenos tomar alguma decisão a esse respeito não possuímos ne nhum outro critério com base no qual possamos formar um juízo desse gênero Ora o que é esse gosto de que o verdadeiro e o falso espírito extraem sua existência e sem o qual nenhum pensamento tem direito a um ou outro desses nomes Evidentemente não é nada mais que uma sensação de prazer suscitada pelo verdadeiro espírito e de des prazer pelo falso sem que sejamos capazes de dar as razões desse pra zer ou desprazer O poder de gerar essas sensações opostas é portanto a essência mesma do verdadeiro e do falso espírito e conseqüente mente a causa do orgulho e da humildade que deles derivam 8 Algumas pessoas talvez acostumadas ao estilo das escolas e do púlpito nunca consideraram a natureza humana por outra perspec 331 Tratado da natureza humana tiva que não a delas próprias e por isso podem se surpreender por me ouvirem dizer que a virtude suscita o orgulho coisa que vêem corno um vício e que o vício produz a humildade que aprenderam a consi derar urna virtude Mas para não ficar discutindo acerca de palavras noto que entendo por orgulho aquela impressão agradável que surge na mente quando a visão de nossa virtude beleza riqueza ou poder nos faz ficar satisfeitos com nós mesmos e que com humildade re firome à impressão oposta É evidente que a primeira impressão nem sempre é um vício nem a última é sempre urna virtude Mesmo a mais rígida moral permite que sintamos prazer ao refletir sobre urna ação generosa e nenhuma considera que seja urna virtude sentir remorsos inúteis quando pensamos em ações vis e baixas que cometemos no passado Examinemos portanto essas impressões consideradas em si mesmas e investiguemos suas causas quer estejam localizadas na mente ou no corpo sem nos preocupar neste momento com o mérito ou a censura que as podem acompanhar Seção 8 Da beleza e da deformidade 1 Quer consideremos o corpo urna parte de nós mesmos quer con cordemos com aqueles filósofos que o vêem corno algo externo de vemos admitir que ele está conectado conosco de maneira estreita o bastante para formar urna daquelas duas relações que afirmei serem necessárias para causar orgulho e humildade Portanto sempre que pudermos encontrar a outra relação de impressões junto a essa re lação de idéias podemos esperar com segurança urna ou outra dessas paixões conforme a impressão seja agradável ou desagradável Ora a beleza de todos os tipos nos proporciona um deleite e urna satisfa ção peculiares assim corno a deformidade produz um desprazer qual quer que seja o sujeito em que esteja situada e quer seja observada em um objeto animado ou inanimado Se a beleza ou a deformidade 332 Livro 2 Parte 1 Seção 8 portanto estiver situada em nosso próprio corpo esse prazer ou esse malestar deve se converter em orgulho ou em humildade já que este caso contém todas as circunstâncias requeridas para produzir uma perfeita transição de impressões e idéias Essas sensações opostas estão relacionadas com as paixões opostas A beleza ou a deformida de têm uma relação estreita com o eu objeto de ambas as paixões Não é de admirar portanto que nossa própria beleza se torne um objeto de orgulho e nossa deformidade um objeto de humildade 2 Mas esse efeito das qualidades pessoais e corpóreas além de ser uma prova do presente sistema por mostrar que neste caso as paixões não surgiriam sem a presença de todas as circunstâncias que afirmei serem necessárias pode servir como um argumento mais forte e con vincente Se analisarmos as hipóteses já concebidas pela filosofia ou pela razão comum para explicar a diferença entre a beleza e a defor midade veremos que todas se reduzem a esta que a beleza é uma or denação e estrutura tal das partes que pela constituição primitiva de nossa natureza pelo costume ou ainda pelo capricho é capaz de dar prazer e satisfação à alma Esse é o caráter distintivo da beleza cons tituindo toda a diferença entre ela e a deformidade cuja tendência natural é produzir desprazer O prazer e o desprazer portanto não são apenas os concomitantes necessários da beleza e da deformidade mas constituem sua essência mesma De fato se considerarmos que uma grande parte da beleza que admiramos nos animais ou em outros ob jetos deriva da idéia de conveniência e utilidade não hesitaremos em concordar com essa opinião Em certo animal é bela a forma que pro duz força em outro aquela que indica agilidade A ordem e o conforto de um palácio não são menos essenciais a sua beleza que sua mera forma e aparência De maneira semelhante as regras da arquitetura exigem que o alto de uma pilastra seja mais estreito que sua base e isso porque tal forma nos transmite a idéia de segurança que é agra dável ao passo que a forma contrária nos dá apreensão e medo que é desagradável De inúmeros exemplos desse gênero bem como da consideração do fato de que a beleza como a espirituosidade não 333 Tratado da natureza humana pode ser definida sendo ao contrário discernida apenas por meio de um gosto ou sensação podemos concluir que a beleza não é mais que uma forma que produz prazer enquanto a deformidade é uma estrutura de partes que transmite desprazer e uma vez que o poder de produzir prazer e desprazer constitui assim a essência da beleza e da deformi dade todos os efeitos dessas qualidades devem ser derivados dessa sen sação entre eles o orgulho e a humildade que são seus efeitos mais comuns e notáveis 3 Considero esse argumento correto e decisivo Para conferir uma maior autoridade ao presente raciocínio porém suponhamos por um momento que seja falso e vejamos o que se segue Se o poder de pro duzir prazer e dor não constitui a essência da beleza e da deformida de ao menos é certo que essas sensações são inseparáveis dessas qua lidades sendo difícil até mesmo considerálas separadamente Ora a única coisa comum à beleza natural e à moral que são ambas cau sas de orgulho é esse poder de produzir prazer e como um efeito comum supõe sempre uma causa comum é claro que o prazer deve nos dois casos ser a causa real e influente da paixão Mais ainda a única coisa originalmente diferente entre a beleza de nossos corpos e a beleza dos objetos externos e estranhos a nós é que a primeira tem uma relação estreita conosco o que não ocorre com a segunda Essa diferença original portanto deve ser a causa de todas as suas demais diferenças entre elas a diferente influência que cada uma exerce sobre a paixão do orgulho que é despertado pela beleza de nosso cor po mas não é sequer minimamente afetado pela beleza dos objetos externos e estranhos a nós Reunindo portanto essas duas conclu sões constatamos que juntas elas formam o sistema precedente a saber que o prazer como impressão relacionada ou semelhante pro duz orgulho por uma transição natural quando localizado em um ob jeto relacionado e seu contrário produz humildade Esse sistema pa rece portanto suficientemente confirmado pela experiência embora ainda não tenhamos esgotado todos os nossos argumentos 334 Livro 2 Parte 1 Seção 8 4 Não é apenas a beleza do corpo que produz orgulho mas também sua força e vigor A força é um tipo de poder e por isso o desejo de so bressair em força deve ser considerado uma espécie inferior de ambi ção Por essa razão tal fenômeno será explicado de maneira suficien te quando tratarmos dessa paixão s Quanto a todos os outros dons corporais podemos observar em ge ral que tudo que há em nós de útil belo ou surpreendente é objeto de orgulho e seus contrários de humildade Ora é evidente que todas as coisas úteis belas ou surpreendentes concordam pelo fato de produzi rem um prazer separado e por nada mais O prazer portanto juntamen te com a relação com o eu há que ser a causa dessa paixão 6 Embora seja questionável se a beleza não é alguma coisa real e di ferente do poder de produzir prazer não pode haver dúvida de que sendo a surpresa apenas um prazer resultante da novidade ela não é rigorosamente falando uma qualidade de um objeto mas simples mente uma paixão ou impressão da alma Portanto deve ser dessa impressão que nasce o orgulho por uma transição natural E nasce de maneira tão natural que não há nada em nós ou pertencente a nós que produza surpresa e não desperte ao mesmo tempo essa outra paixão Assim por exemplo vangloriamonos das aventuras surpreendentes que vivemos de ter conseguido escapar delas e dos perigos a que es tivemos expostos Tal é a origem do hábito comum de mentir pois al guns homens sem nenhum interesse e por mera vaidade desfilam um grande número de eventos extraordinários que são ou bem ficções de seu cérebro ou então se verdadeiros não têm nenhuma conexão com eles Sua fértil capacidade inventiva abasteceos de uma grande varie dade de aventuras e quando lhes falta esse talento eles se apropriam das aventuras alheias a fim de satisfazer sua própria vaidade 7 Nesse fenômeno estão como que contidos dois experimentos curio sos que se comparados segundo as conhecidas regras para se julgar sobre causas e efeitos em anatomia filosofia da natureza e outras ciên cias fornecerão um argumento inegável a favor da influência das duplas 335 Tratado da natureza humana relações acima mencionadas Por um desses experimentos desco brimos que um objeto produz orgulho simplesmente pela interpo sição do prazer isso porque na realidade a qualidade pela qual pro duz orgulho é simplesmente o poder de produzir prazer Pelo outro experimento descobrimos que o prazer produz orgulho por uma transição ao longo de idéias relacionadas pois quando rompemos essa relação imediatamente destruímos a paixão Uma aventura sur preendente em que estivemos envolvidos tem relação conosco e des se modo produz orgulho Mas as aventuras alheias embora possam causar prazer nunca excitam aquela paixão justamente pela falta dessa relação de idéias Que outra prova se pode desejar para o pre sente sistema 8 Esse sistema concernente a nosso corpo comporta apenas uma ob jeção embora nada seja mais agradável que a saúde e nada mais dolo roso que a doença os homens comumente não se orgulham daquela nem se humilham por esta Isso se explica facilmente se considerar mos a segunda e a quarta limitações propostas a nosso sistema geral Observamos que nenhum objeto jamais produzirá orgulho ou humil dade se não tiver algo que seja peculiar a nós além disso toda causa des sas paixões precisa ter um certo grau de constância e ser razoavelmen te proporcional à duração de nosso eu que é seu objeto Ora como a saúde e a doença variam incessantemente em todos os homens e como ninguém se encontra somente ou certamente em uma das duas situa ções essas bênçãos e desgraças acidentais são em certo sentido sepa radas de nós e nunca as consideramos como conectadas com nosso ser e existência Que essa explicação é correta fica claro pelo fato de que sempre que uma doença de qualquer espécie está tão enraizada em nossa constituição que não temos mais esperanças de uma recupera ção a partir desse momento ela se torna um objeto de humildade como é evidente nos anciãos a quem nada humilha mais que a consi deração de sua idade e de suas enfermidades Esforçamse tanto quan to possível em esconder sua cegueira e surdez seu reumatismo e gota 336 Livro 2 Parte 1 Seção 9 e só com muita relutância e malestar confessam que sofrem dessas doenças E embora os jovens não se envergonhem de cada dor de ca beça ou resfriado que tenham nenhum assunto é mais apropriado para abater o orgulho humano e para nos dar uma opinião desfavo rável de nossa natureza que esse ou seja o fato de estarmos em to dos os momento de nossa vida sujeitos a tais enfermidades Isso prova suficientemente que a dor física e a doença são em si mesmas cau sas próprias da humildade embora o costume de avaliar todas as coi sas mais por comparação que por seu mérito e valor intrínsecos faça nos passar por cima de desgraças a que constatamos que todos estão sujeitos e nos leve a formar uma idéia de nosso mérito e caráter in dependentemente delas 9 Envergonhamonos das doenças que afetam os outros e que lhes são ou perigosas ou desagradáveis Da epilepsia porque causa horror a todos que a presenciam da sarna porque é infecciosa da escrófula porque costuma passar aos descendentes Os homens sempre levam em conta os sentimentos alheios quando julgam a si mesmos Isso ficou evidente em alguns dos raciocínios precedentes e ficará ainda mais evi dente adiante quando for explicado de maneira mais completa Seção 9 Das vantagens e desvantagens externas 1 Embora o orgulho e a humildade tenham como causas naturais e mais imediatas os atributos de nossa mente e corpo isto é do eu a ex periência nos mostra que há porém muitos outros objetos que produ zem esses afetos e que sua causa primária se vê em alguma medida obscurecida e perdida em meio à multiplicidade de causas estranhas e extrínsecas Casas jardins equipagem são motivos de vaidade além do mérito e de realizações pessoais E embora essas vantagens externas sejam em si mesmas bastante distantes do pensamento da 337 Tratado da natureza humana pessoa elas influenciam consideravelmente até mesmo uma paixão que se dirige a esta como a seu objeto último Isso acontece quando os objetos externos adquirem conosco uma relação particular sendo associados e conectados a nós Um belo peixe no oceano um animal no deserto qualquer coisa que não nos pertença nem tenha relação conosco não tem como influenciar a vaidade não importa quais sejam suas qualidades ou o grau de surpresa e admiração que possa natural mente ocasionar Para tocar o orgulho o objeto tem que estar associa do a nós de alguma forma Sua idéia de algum modo tem que depen der da idéia de nós mesmos e a transição de uma à outra tem que ser fácil e natural 2 Mas notemos que embora a relação de semelhança aja sobre a men te da mesma maneira que a de contigüidade e de causalidade isto é conduzindonos de uma idéia a outra ela raramente serve de funda mento para o orgulho ou a humildade Se somos semelhantes a uma pessoa por algum traço valioso de seu caráter devemos possuir em algum grau essa qualidade que nos torna semelhantes e quando to mamos essa qualidade como base para algum grau de vaidade sem pre preferimos considerála diretamente em nós mesmos e não por meio de seu reflexo na outra pessoa Desse modo embora uma seme lhança possa ocasionalmente produzir essa paixão ao sugerir uma idéia mais vantajosa de nós mesmos é nesta que nosso olhar acaba sempre se fixando e é nesta que a paixão encontra sua causa última e final 3 De fato há casos em que as pessoas se mostram envaidecidas por se assemelharem a um grande homem em sua aparência forma físi ca jeito ou outros pequenos detalhes que não contribuem em nada para sua reputação mas devese reconhecer que tal fato não tem gran de alcance nem grandes conseqüências no que diz respeito a esses From thought of a person em lugar de from thought or a person cf SBN seguindo sugestão dos editores da NNOPT cf David F Norton Mary Norton op cit Hume is contrasting as causes of pride and humility the qualities of the self with externai advantages Given this context and the singular to that a esta of the concluding clause we conclude that of is the correct reading NT 338 Livro 2 Parte 1 Seção 9 afetos A tal vaidade atribuo a seguinte razão Só podemos envaidecer nos por nos assemelharmos a uma pessoa em detalhes insignifican tes se ela for dotada de qualidades muito notáveis que nos causem res peito e veneração A rigor essas qualidades é que causam nossa vaidade mediante sua relação conosco Ora de que maneira se dá essa relação Essas qualidades são partes da pessoa que valorizamos e conseqüentemente estão conectadas com esses outros detalhes insig nificantes que também se supõem serem partes dela Esses detalhes estão conectados com as qualidades semelhantes que se encontram em nós e essas nossas qualidades sendo partes de nós estão conec tadas com o todo formase assim uma cadeia de vários elos entre nós e as qualidades excelentes da pessoa com quem nos parecemos No entanto esse grande número de relações deve enfraquecer a conexão além disso é evidente que o contraste deve fazer que a mente ao pas sar das qualidades notáveis às sem importância perceba melhor a in significância destas últimas e sinta certa vergonha pela comparação e pela semelhança 4 Basta portanto que haja uma relação de contigüidade ou de cau salidade entre a causa e o objeto do orgulho ou da humildade para que se originem essas paixões e essas relações não são mais que qualida des pelas quais a imaginação é conduzida de uma idéia à outra Con sideremos agora que efeitos elas podem ter sobre a mente e por que se tornam tão importantes para a produção dessas paixões É evi dente que a associação de idéias age de maneira tão silenciosa e im perceptível que quase não a sentimos descobrindoa antes por seus efeitos que por uma sensação feeling ou percepção imediata Ela não produz nenhuma emoção e não gera nenhuma nova impressão de espécie alguma apenas modificando aquelas idéias antes presentes na mente e que podem ser relembradas quando preciso Desse raciocí nio bem como de uma experiência indubitável podemos concluir que uma associação de idéias embora necessária não é suficiente para sozinha despertar uma paixão 339 Tratado da natureza humana 5 Portanto é evidente que quando a mente sente a paixão de or gulho ou de humildade diante do aparecimento de um objeto relacio nado existe além da relação ou transição do pensamento uma emo ção ou impressão original produzida por algum outro princípio A questão é saber se a emoção que é primeiramente produzida já é a pró pria paixão ou alguma outra impressão a ela relacionada Não demo raremos a encontrar a solução dessa questão Além de todas as outras evidências tão abundantes nesse assunto fica evidente que a relação de idéias que a experiência mostra ser uma circunstância tão impor tante para a produção da paixão seria inteiramente supérflua se não viesse reforçar uma relação de afetos facilitando a transição de uma impressão a outra Se a natureza produzisse imediatamente a paixão do orgulho ou da humildade esta paixão estaria completa em si mes ma sem precisar ser aumentada ou acrescida por nenhum outro afe to Mas supondose que a primeira emoção esteja apenas relacionada com o orgulho ou a humildade é fácil conceber para que pode servir a relação de objetos e como as duas associações diferentes de impres sões e de idéias unindo suas forças podem se auxiliar mutuamente em suas operações Isso não é apenas fácil de se conceber arrisco me mesmo a afirmar que é a única maneira de concebermos essa questão Uma transição fácil de idéias que por si só não causa ne nhuma emoção nunca poderia ser necessária ou sequer útil às pai xões se não favorecesse a transição entre algumas impressões rela cionadas Isto para não mencionarmos o fato de que o mesmo objeto causa um grau maior ou menor de orgulho proporcionalmente não só ao aumento ou à diminuição de suas qualidades mas também à distância ou à proximidade da relação o que constitui uma clara evidência de que existe uma transição de afetos juntamente com a re lação de idéias já que toda mudança na relação produz uma mudança proporcional na paixão Assim uma parte do sistema anterior concernente à relação de idéias é uma prova suficiente da outra par te concernente à relação de impressões e ela própria está fundada de maneira tão evidente na experiência que seria perda de tempo ten tar fornecer provas adicionais 340 Livro 2 Parte 1 Seção 9 6 Isso ficará ainda mais evidente por meio de exemplos Os homens vangloriamse da beleza de seu país de seu condado de sua paróquia Aqui a idéia de beleza produz claramente um prazer Esse prazer está relacionado ao orgulho O objeto ou causa desse prazer está por hi pótese relacionado ao eu ou seja ao objeto do orgulho Por essa du pla relação de impressões e de idéias realizase uma transição entre uma impressão e outra 7 Os homens também se vangloriam da amenidade do clima em que nasceram da fertilidade de seu solo natal da excelência dos vinhos das frutas ou dos outros alimentos nele produzidos da suavidade ou da força de sua língua materna além de outras particularidades des se tipo Esses objetos se referem claramente aos prazeres dos senti dos sendo originalmente considerados agradáveis ao tato ao paladar ou à audição Como poderiam então se tornar objetos de orgulho a não ser por meio da transição acima explicada 8 Há aqueles que manifestam uma vaidade de tipo oposto e são da dos a depreciar seu próprio país comparandoo com outros países que visitaram Tais pessoas acham que quando estão em sua terra cer cadas por seus conterrâneos a forte relação entre elas e sua nação é compartilhada com tantos outros que de certa forma se perde para elas ao passo que sua remota relação com um país estrangeiro for mada pelo fato de o terem visto e de nele terem vivido fica fortalecida quando consideram como são poucos os que fizeram a mesma coisa Por essa razão sempre admiram a beleza a utilidade e a raridade da quilo que há no estrangeiro em comparação com o que têm em seu próprio país 9 E como podemos nos envaidecer de um país clima ou qualquer objeto inanimado que tenha alguma relação conosco não é de admirar que nos envaideçamos das qualidades daqueles que estão conectados conosco por consangüinidade ou amizade De acordo com isso vemos que precisamente as mesmas qualidades que em nós causam orgulho produzem o mesmo afeto em menor grau quando aparecem em pes soas relacionadas a nós Os orgulhosos exibem cuidadosamente a 341 Tratado da natureza humana beleza a destreza o mérito a reputação e as honrarias de seus pa rentes como algumas das mais importantes fontes de sua vaidade 10 Assim como nos orgulhamos de nossas riquezas assim também para satisfazer nossa vaidade desejamos que todos que têm alguma conexão conosco também sejam ricos e envergonhamonos se algum de nossos amigos ou parentes for pobre ou de condição inferior Por essa razão afastamos os pobres de nós tanto quanto possível Embo ra não possamos evitar a pobreza de alguns parentes colaterais distan tes nossos antepassados são considerados nossos parentes mais pró ximos de modo que nós todos nos damos ares de ser de boa família e de descender de uma longa sucessão de ancestrais ricos e honrados 1 1 Observei várias vezes que as pessoas que se gabam da antiguidade de suas famílias ficam contentes quando podem acrescentar a essa an tiguidade o fato de seus ancestrais terem sido sem interrupção e ao longo de várias gerações proprietários da mesma porção de terra e de sua família nunca terse desfeito de suas posses nem terse mudado para outros condados ou províncias Observei também que elas têm um motivo adicional de vaidade quando podem se gabar do fato de essas posses terem sido transmitidas por uma linha de descendência exclusivamente masculina e de os títulos e a fortuna jamais terem passado pelas mãos de uma mulher Vamos tentar explicar esses fe nômenos pelo sistema anterior 12 É evidente que quando uma pessoa se gaba da antiguidade de sua família os motivos de sua vaidade não são simplesmente o longo tem po e o grande número de ancestrais mas também sua riqueza e repu tação que supostamente refletem sobre ela um lustre em virtude de sua relação com eles Essa pessoa considera primeiro esses objetos que a afetam de um modo agradável então pela relação entre pais e filhos voltase para si mesma e se vê enaltecida pela paixão do orgu lho por meio da dupla relação de impressões e idéias Portanto como a paixão depende dessas relações tudo que fortalece uma dessas re lações deve aumentar também a paixão e tudo que enfraquece as rela ções deve diminuíla Ora é certo que a identidade das posses reforça 342 Livro 2 Parte 1 Seção 9 a relação de idéias resultante da consangüinidade e do parentesco conduzindo a fantasia com mais facilidade de uma geração a outra dos ancestrais mais remotos à sua posteridade isto é àqueles que são ao mesmo tempo seus herdeiros e seus descendentes Em virtude dessa facilidade a impressão é transmitida mais íntegra e excita um grau superior de orgulho e vaidade 13 O mesmo acontece com a transmissão de títulos e fortunas por meio de uma sucessão masculina sem passar por mulheres Uma qua lidade da natureza humana que consideraremos mais adiante 3 é que a imaginação naturalmente se volta para tudo que é importante e sig nificativo e quando se apresentam dois objetos um pequeno e um grande ela em geral se afasta do primeiro e se concentra inteiramente no segundo Na sociedade matrimonial o sexo masculino tem prima zia sobre o feminino e por isso é o marido quem primeiro chama nossa atenção e quer o consideremos diretamente ou cheguemos a ele ape nas após passar por objetos relacionados o pensamento se detém so bre ele com maior satisfação e chega até ele com maior facilidade que até sua consorte É fácil ver que essa propriedade deve fortalecer a re lação da criança com o pai e enfraquecer sua relação com a mãe Pois como toda relação é somente uma propensão a passar de uma idéia a outra tudo que fortalece a propensão fortalece a relação e uma vez que temos uma propensão mais forte a passar da idéia dos filhos à idéia do pai que da mesma idéia à da mãe devemos considerar a primeira relação mais próxima e mais significativa Essa é a razão por que os filhos costumam levar o nome do pai e são considerados como tendo tido um berço mais ou menos nobre segundo a família deste Mesmo que a mãe seja dotada de um espírito e um talento superiores aos do pai como muitas vezes acontece a regra geral prevalece apesar da ex ceção conforme a doutrina exposta E mesmo que a superioridade em determinada qualidade seja tão grande ou que outras razões tenham tal efeito a ponto de fazer que os filhos representem antes a família da 3 Parte 2 Seção 2 343 Tratado da natureza humana mãe que a do pai a regra geral ainda conserva uma tal eficácia que en fraquece a relação criando uma espécie de ruptura na linha de ances trais A imaginação não a percorre com facilidade sendo incapaz de transferir a honra e a reputação dos ancestrais aos descendentes de mes mo nome e família tão rapidamente como quando a transição se dá em conformidade com as regras gerais passando de pai para filho ou de irmão para irmão Seção 1 O Da propriedade e da riqueza 1 Porém a relação considerada mais estreita e dentre todas a que mais comumente produz a paixão do orgulho é a de propriedade Não poderei explicar completamente essa relação antes de tratar da justi ça e das outras virtudes morais Neste momento basta observar que a propriedade pode ser definida como aquele tipo de relação entre uma pessoa e um objeto que permite a essa pessoa mas proíbe a todas as outras o livre uso e posse desse objeto sem violação das leis da justiça e da equidade moral Se for verdade portanto que a justiça é uma virtude com uma influência natural e original sobre a mente humana a propriedade pode ser vista como uma espécie particular de causalidade quer consi deremos a liberdade que ela dá ao proprietário de agir como bem qui ser sobre o objeto quer os benefícios que ele extrai desse objeto O mesmo ocorrerá se a justiça de acordo com o sistema de certos filó sofos for considerada uma virtude artificial e não natural Pois nes se caso a honra o costume e o direito civil ocupariam o lugar da cons ciência moral natural natural conscience e produziriam em um certo grau os mesmos efeitos Seja como for o certo é que a menção da pro priedade leva naturalmente nosso pensamento ao proprietário e a do proprietário à propriedade Isso prova que existe uma perfeita relação de idéias o que é suficiente para nosso propósito presente Uma rela ção de idéias juntamente com a de impressões sempre produz uma transição de afetos e portanto sempre que um prazer ou uma dor 344 Livro 2 Parte 1 Seção 1 0 resulta de um objeto conectado conosco pela propriedade podemos estar certos de que ou o orgulho ou a humildade resultarão dessa con junção de relações se o sistema anterior for consistente e satisfatório E se ele é de fato satisfatório ou não é fácil sabêlo pelo exame mais superficial da vida humana 2 Tudo que um vaidoso possui é do bom e do melhor A seu ver suas casas equipagem móveis roupas cavalos e cães sobressaem a todos os outros e sempre que algum desses objetos apresenta a menor su perioridade observamos que ele logo extrai daí um novo motivo de orgulho e vaidade A se acreditar no que diz seu vinho tem um sabor mais delicado que qualquer outro sua cozinha é mais requintada sua mesa mais bem posta seus criados mais eficientes o ar em que vive mais saudável o solo que cultiva é mais fértil seus frutos amadure cem mais cedo e mais perfeitamente tal coisa é notável por sua novi dade tal outra por sua antiguidade isto é obra de um artista famo so aquilo já pertenceu a um certo príncipe ou grande homem Em suma todos os objetos úteis belos ou surpreendentes ou que têm alguma relação com esses podem por meio da propriedade desper tar aquela paixão Ora todos esses objetos concordam pelo fato de dar prazer e por nada mais Apenas isso lhes é comum e portanto tem de ser a qualidade que produz a paixão que é seu efeito comum Como cada novo exemplo é um novo argumento e como os exemplos são aqui incontáveis ouso afirmar que praticamente nenhum sistema foi provado de modo tão completo pela experiência quanto este que propus 3 Se a propriedade de alguma coisa que dá prazer por sua utilida de beleza ou novidade produz também orgulho por uma dupla rela ção de impressões e idéias não devemos nos surpreender pelo fato de que o poder de adquirir essa propriedade tenha o mesmo efeito Ora a riqueza deve ser considerada o poder de adquirir a proprieda de daquilo que nos apraz e é somente enquanto tal que ela exerce in fluência sobre as paixões Em muitas ocasiões os títulos financeiros podem ser considerados uma riqueza porque dão o poder de adquirir 345 Tratado da natureza humana dinheiro e o dinheiro é urna riqueza não por ser um metal dotado de certas qualidades por exemplo solidez peso e fusibilidade mas por ter urna relação com os prazeres e as comodidades da vida Uma vez aceito isso aliás tratase de algo por si mesmo bastante eviden te podemos extrair daí um dos argumentos mais fortes que já em preguei para provar a influência das duplas relações sobre o orgulho e a humildade 4 Ao tratarmos do entendimento observamos que a distinção que às vezes se faz entre um poder e seu exercício é inteiramente inútil e não devemos pensar que o homem ou qualquer outro ser possua uma ca pacidade a menos que esta seja exercida e posta em ação Entretan to embora isso seja rigorosamente verdade segundo um modo pre ciso e filosófico de pensar essa certamente não é a filosofia de nossas paixões de fato muitas coisas atuam sobre elas por meio da idéia e da suposição de um poder independentemente de seu exercício efe tivo Ficamos satisfeitos quando adquirimos a capacidade de propor cionar um prazer e não gostamos quando outra pessoa adquire um poder de provocar dor A experiência mostra isso de maneira eviden te mas para darmos uma explicação correta desse fato e para com preendermos essa satisfação e esse desprazer devemos pesar as se guintes reflexões 5 É evidente que o erro de distinguir o poder de seu exercício não se deve inteiramente à doutrina escolástica do livrearbítrio na ver dade esta não tem muito espaço na vida comum exercendo pouca influência sobre nosso modo vulgar e popular de pensar Segundo essa doutrina os motivos não nos privam de nosso livrearbítrio nem retiram nosso poder de realizar ou de nos abster de realizar uma ação Mas de acordo com as noções comuns um homem não possui ne nhum poder se motivos muito importantes se colocam entre ele e a satisfação de seus desejos obrigandoo a se abster daquilo que que ria realizar Não penso estar em poder de meu inimigo quando o vejo passar por mim na rua com uma espada na algibeira enquanto eu não carrego nenhuma arma Sei que o medo do juiz é uma coibição tão forte 346 Livro 2 Parte 1 Seção 1 O quanto o ferro e que estou tão seguro como se ele estivesse acor rentado ou aprisionado Mas quando uma pessoa adquire sobre mim uma autoridade tal que não somente não há obstáculos externos às suas ações mas além disso ela pode me punir ou me recompensar como quiser sem medo de ser ela própria punida por isso nesse caso atribuolhe um total poder e me considero seu súdito ou vassalo 6 Ora se compararmos estes dois casos a saber o de uma pessoa que tem motivos muito fortes de interesse ou segurança para se abs ter de uma determinada ação e o de outra pessoa que não se encon tra sob tal obrigação veremos conforme a filosofia exposta no livro anterior que a única diferença conhecida entre eles está em que no primeiro concluímos com base na experiência passada que a pessoa jamais irá realizar aquela ação e no segundo que ela possível ou pro vavelmente irá realizála Nada é mais flutuante e inconstante que a vontade do homem como podemos observar em muitas ocasiões e apenas a existência de motivos muito fortes pode nos dar uma certe za absoluta quando nos pronunciamos acerca de uma de suas ações futuras Quando vemos que uma pessoa está livre de tais motivos supomos que existe a possibilidade tanto de ela agir como de se abs ter e embora em geral possamos concluir que ela se acha determi nada por motivos e causas isso não elimina a incerteza de nosso juízo acerca dessas causas e tampouco a influência dessa incerteza sobre as paixões Portanto uma vez que atribuímos o poder de realizar uma ação a todo aquele que não tenha um motivo muito poderoso para se abster dela e o negamos àqueles que têm tal motivo é com razão que se pode concluir que o poder sempre se refere a seu exercício seja este real ou provável e que consideramos que uma pessoa é dotada de uma determinada capacidade quando constatamos pela experiência pas sada que é provável ou ao menos possível que ela a exerça De fato como nossas paixões sempre consideram a existência real dos obje tos e como sempre julgamos acerca dessa realidade com base em ca sos passados nada pode ser mais verossímil por si só e sem a necessi dade de um raciocínio adicional que o fato de o poder consistir na 347 Tratado da natureza humana possibilidade ou probabilidade de uma ação tal como fica manifesto pela experiência e pela prática da vida 7 Ora é evidente que sempre que uma pessoa está em uma tal si tuação em relação a mim que não há nenhum motivo muito poderoso que a impeça de me prejudicar sendo portanto incerto se ela irá ou não me prejudicar sintome desconfortável com essa situação e preo cupome sensivelmente sempre que considero essa possibilidade ou probabilidade As paixões não são afetadas apenas pelos acontecimen tos certos e infalíveis mas também em menor grau por aqueles que são possíveis e contingentes E mesmo que eu jamais venha de fato a ser prejudicado e acabe descobrindo que filosoficamente falando a pes soa nunca teve o poder de me prejudicar já que não o exerceu isso não impede meu malestar em decorrência da incerteza anterior As pai xões agradáveis podem operar neste caso assim como as desagradá veis produzindo um prazer quando percebo que um bem se torna pos sível ou provável pela possibilidade ou probabilidade de que outra pessoa mo proporcione se forem removidos os fortes motivos que podem ter anteriormente impedido que ela o fizesse 8 Mas podemos observar ainda que essa satisfação aumenta quan do um certo bem é tão próximo que está em nosso próprio poder tomá lo ou ignorálo e quando não há nenhum impedimento físico ou ne nhum motivo muito forte impedindo que dele desfrutemos Como todos os homens desejam o prazer nada pode ser mais provável que sua existência quando não há obstáculos externos à sua produção e quando os homens não temem seguir suas inclinações Nesse caso sua imaginação antecipa facilmente a satisfação transmitindo a mesma alegria que transmitiria se estivessem persuadidos de sua existência real e efetiva 9 Isso não é suficiente porém para explicar a satisfação que acom panha a riqueza Um avaro tem prazer com seu dinheiro isto é com o poder que este lhe dá de obter todos os prazeres e as comodidades da vida mesmo sabendo que durante quarenta anos esteve de posse 348 Livro 2 Parte 1 Seção 1 0 de suas riquezas sem delas ter jamais usufruído e portanto não pos sa concluir por nenhuma espécie de raciocínio que a existência real desses prazeres está mais próxima que se fosse inteiramente privado de todas as suas posses Embora não possa formar uma tal conclusão por meio de um raciocínio acerca da maior proximidade do prazer é certo que ele imagina que esse prazer está mais próximo sempre que todos os obstáculos externos são eliminados juntamente com os mo tivos mais poderosos de interesse e de segurança que a ele se opõem Para uma explicação mais satisfatória desse ponto devo remeter o lei tor à minha análise da vontade em que4 tratarei da falsa sensação de liberdade que nos faz imaginar que podemos realizar qualquer coisa que não seja muito perigosa ou destrutiva Sempre que uma outra pes soa não esteja sob uma forte obrigação de interesse que a afaste de al gum prazer julgamos por experiência que esse prazer irá existir e essa pessoa provavelmente o obterá Mas quando nós mesmos estamos nessa situação julgamos por uma ilusão da fantasia que o prazer é ain da mais próximo e imediato A vontade parece se mover facilmente em todas as direções projetando uma sombra ou imagem de si pró pria até mesmo onde não se estabeleceu Em virtude dessa imagem o contentamento parece ficar mais próximo de nós e nos dá uma sa tisfação tão viva como se fosse inteiramente certo e inevitável 10 Agora será fácil tirar uma conclusão de todo esse raciocínio e pro var que quando a riqueza produz orgulho ou vaidade naqueles que a possuem o que nunca deixa de fazer isso se dá apenas por uma du pla relação de impressões e idéias A essência mesma da riqueza con siste no poder de proporcionar os prazeres e as comodidades da vida A essência desse poder consiste na probabilidade de seu exercício e em nos fazer antecipar por um raciocínio verdadeiro ou falso a existência real do prazer Tal antecipação do prazer é nela mesma um prazer considerável e como sua causa é algum bem ou propriedade de que 4 Parte 3 Seção 2 349 Tratado da natureza humana desfrutamos e que por isso tem uma relação conosco vemos aqui cla ramente todos os elementos do sistema anterior desenharemse dian te de nós com plena exatidão e distinção 1 1 A mesma razão que faz que a riqueza cause prazer e orgulho e a pobreza suscite o desprazer e a humildade deve fazer que o poder pro duza aquelas emoções e a escravidão estas últimas O poder ou a au toridade sobre outrem tornanos capazes de satisfazer todos os nos sos desejos já a escravidão ao nos sujeitar à vontade alheia deixanos expostos a milhares de privações e humilhações 12 Cabe aqui observar que a vaidade do poder bem como a vergonha da escravidão cresce muito quando consideramos as pessoas sobre as quais exercemos nossa autoridade ou que a exercem sobre nós Caso se pudesse fabricar estátuas dotadas de um mecanismo tão admirável que fossem capazes de se mover e agir ao comando da vontade é evi dente que sua posse daria prazer e orgulho mas não no mesmo grau que quando a mesma autoridade se exerce sobre criaturas sensíveis e racionais cuja condição comparada à nossa faz que esta pareça mais agradável e honrosa A comparação é sempre um modo seguro de au mentar nossa estima por alguma coisa Um homem rico sente melhor a felicidade de sua condição quando a opõe à de um mendigo Mas o poder possui ainda uma vantagem peculiar decorrente do contraste que de certa maneira se nos apresenta entre nós e a pessoa que coman damos A comparação é evidente e natural a imaginação a encontra no próprio objeto a passagem do pensamento à sua concepção é suave e fácil e essa circunstância tem um efeito considerável ao aumentar sua influência como ficará manifesto mais adiante quando examinar mos a natureza da malevolência e da inveja Seção 1 1 Do amor à boa reputação 1 Além dessas causas originais do orgulho e da humildade porém existe uma causa secundária com igual influência sobre os afetos 350 Livro 2 Parte 1 Seção 1 1 as opiniões alheias Nossa reputação nosso caráter nosso bom nome são considerações de grande peso e importância e mesmo as outras causas de orgulho a virtude a beleza e a riqueza têm pouca influên cia quando não amparadas pelas opiniões e sentimentos alheios Para dar conta desse fenômeno será necessário fazer um pequeno desvio e explicar primeiramente a natureza da simpatia 2 Não há na natureza humana qualidade mais notável tanto em si mesma como por suas conseqüências que nossa propensão a simpa tizar com os outros e a receber por comunicação suas inclinações e sentimentos por mais diferentes ou até contrários aos nossos Isso é evidente não apenas nas crianças que aceitam sem pestanejar qual quer opinião que lhes seja proposta mas também em homens de gran de discernimento e inteligência que têm muita dificuldade em seguir sua própria razão ou inclinação quando esta se opõe à de seus amigos ou companheiros do diaadia É a esse princípio que devemos atribuir a grande uniformidade observável no temperamento e no modo de pensar das pessoas de uma mesma nação é muito mais provável que essa semelhança resulte da simpatia que de uma influência do solo ou do clima os quais mesmo que continuem invariavelmente iguais são incapazes de manter o caráter de uma nação igual por todo um sécu lo Um homem afável rapidamente assume o humor de seu grupo de amigos e até os mais orgulhosos e mais intratáveis vêemse impreg nados pelas cores de seus conterrâneos e conhecidos Uma expressão alegre inspira uma sensível satisfação e serenidade a minha mente ao passo que uma expressão raivosa ou triste causame um súbito desa lento Ódio ressentimento apreço amor coragem alegria e melan colia todas essas paixões eu as sinto mais por comunicação que por meu próprio temperamento e disposição natural Um fenômeno tão notável merece nossa atenção e deve ser investigado até descobrirmos seus primeiros princípios 3 Quando um afeto se transmite por simpatia nós a princípio o co nhecemos apenas por seus efeitos e pelos signos externos presentes na expressão do rosto ou nas palavras e que dele nos fornecem uma 351 Tratado da natureza humana idéia Essa idéia imediatamente se converte em uma impressão adqui rindo um tal grau de força e vividez que acaba por se transformar na própria paixão produzindo uma emoção equivalente a qualquer afe to original Por mais instantânea que possa ser essa transformação da idéia em uma impressão ela procede de certas considerações e refle xões que não escaparão ao exame rigoroso do filósofo embora pos sam escapar à pessoa mesma 4 É evidente que a idéia ou antes a impressão de nós mesmos está sempre presente em nosso íntimo e que nossa consciência nos pro porciona uma concepção tão viva de nossa própria pessoa que é im possível imaginar algo que a supere quanto a esse aspecto Qualquer objeto que esteja relacionado conosco portanto deve ser concebido com uma vividez de concepção semelhante de acordo com os princí pios anteriores e mesmo que essa relação não seja tão forte quanto a de causalidade ainda assim ela deve ter uma influência considerá vel A semelhança e a contigüidade não são relações desprezíveis so bretudo quando por uma inferência de causa e efeito e pela observa ção de signos externos somos informados da existência real do objeto semelhante ou contíguo 5 Ora é óbvio que a natureza preservou uma grande semelhança entre todas as criaturas humanas e qualquer paixão ou princípio que observemos nas outras pessoas podem encontrar em algum grau um paralelo em nós mesmos O que se passa com a trama da mente é o mesmo que ocorre com o corpo Embora as partes possam diferir em sua forma ou tamanho sua estrutura e composição são em geral as mesmas Uma notável semelhança mantémse em meio a toda sua diversidade e essa semelhança deve contribuir muito para nos fazer penetrar nos sentimentos alheios abraçandoos com facilidade e pra zer Assim segundo constatamos sempre que além da semelhan ça geral de nossas naturezas existe alguma similaridade peculiar em nossas maneiras caráter país ou linguagem isso facilita a simpatia Quanto mais forte for a relação entre nós e um objeto mais facilmente a imaginação realizará a transição e transmitirá à idéia relacionada a 352 Livro 2 Parte 1 Seção 1 1 vividez daquela concepção com que formamos a idéia de nossa própria pessoa 6 Mas a semelhança não é a única relação que tem esse efeito ao contrário ela é reforçada por outras relações que podem acompanhá la Os sentimentos das outras pessoas têm pouca influência quando elas estão muito afastadas de nós pois a relação de contigüidade é necessária para que eles se comuniquem integralmente As relações de consangüinidade sendo uma espécie de causalidade podem às vezes contribuir para o mesmo efeito como também a convivência que opera do mesmo modo que a educação e o costume como vere mos melhor posteriormente 5 Todas essas relações quando unidas levam a impressão ou consciência de nossa própria pessoa à idéia dos sentimentos ou paixões das outras pessoas fazendo com que os con cebamos da maneira mais forte e vívida 7 No início deste tratado observamos que todas as idéias são tira das de impressões e que essas duas espécies de percepções diferem apenas nos graus de força e vividez com que atingem a alma As par tes componentes das idéias e impressões são exatamente semelhantes A maneira e a ordem como aparecem podem ser as mesmas Os dife rentes graus de sua força e vividez são portanto a única particulari dade que as distingue E como essa diferença pode ser eliminada em certa medida pela existência de uma relação entre as impressões e as idéias não é de espantar que a idéia de um sentimento ou paixão possa desse modo ser avivada a ponto de se tornar o próprio sentimento ou paixão A idéia vívida de um objeto sempre se aproxima de sua impres são e certamente podemos sentir malestar e dor pela mera força da imaginação e até mesmo tornar real uma doença de tanto pensar nela Isso é mais notável porém nas opiniões e nos afetos e é sobretudo ali que uma idéia vívida se converte em uma impressão Nossos afe tos dependem de nós mesmos e das operações internas da mente mais que qualquer outra impressão é por essa razão que surgem mais na 5 Parte 2 Seção 4 353 Tratado da natureza humana turalmente da imaginação e das idéias vívidas que deles formemos Tal é a natureza e a causa da simpatia e é desse modo que penetramos tão profundamente nas opiniões e sentimentos alheios sempre que os descobrimos 8 O mais notável de tudo isso é que esses fenômenos confirmam fortemente o sistema anterior concernente ao entendimento e por conseguinte também o sistema presente concernente às paixões já que os dois são análogos De fato é evidente que quando simpatiza mos com as paixões e sentimentos alheios de início esses movimen tos aparecem em nossa mente como meras idéias e nós os concebe mos como pertencendo a uma outra pessoa assim como concebemos qualquer outro fato Também é evidente que as idéias dos afetos alheios se convertem nas próprias impressões que elas representam e que as paixões nascem em conformidade com as imagens que delas forma mos Tudo isso é objeto da mais clara experiência e não depende de ne nhuma hipótese da filosofia A esta ciência só cabe explicar os fenô menos embora ao mesmo tempo devamos reconhecer que estes são em si mesmos tão claros que temos poucas ocasiões de empregála Pois para além da relação de causa e efeito que nos convence da rea lidade da paixão com que simpatizamos precisamos das relações de semelhança e contigüidade para sentir a simpatia em sua plenitude E como essas relações podem converter inteiramente uma idéia em uma impressão transmitindo a vividez desta para aquela de maneira tão perfeita que nada se perde na transição podemos facilmente conceber como a relação de causa e efeito pode sozinha servir para fortalecer e avivar uma idéia Na simpatia existe uma conversão evidente de uma idéia em uma impressão Essa conversão resulta da relação dos objetos conosco Nosso eu está sempre intimamente presente a nós Compa remos todas essas circunstâncias e veremos que a simpatia cor responde exatamente às operações de nosso entendimento e contém mesmo algo de mais surpreendente e extraordinário 9 Agora é o momento de desviar nosso olhar dessas considerações gerais sobre a simpatia para sua influência sobre o orgulho e a humil 354 Livro 2 Parte 1 Seção 1 1 dade nos casos em que essas paixões surgem do elogio e da censura da boa e da má reputação Podemos observar que sempre que uma pessoa é elogiada por possuir determinada qualidade tal qualidade se real produz por si mesma um orgulho nessa pessoa Os elogios giram em torno de seu poder riqueza família ou virtude e tudo isso é mo tivo de vaidade como já examinamos e explicamos É certo pois que se uma pessoa se considerasse sob a mesma perspectiva sob a qual aparece a seu admirador obteria primeiramente um prazer separado e depois orgulho ou autosatisfação de acordo com a hipótese acima Ora nada é mais natural que abraçarmos neste ponto as opiniões dos outros tanto pela simpatia que torna todos seus sentimentos intima mente presentes a nós como pelo raciocínio que nos faz considerar seu julgamento uma espécie de argumento em favor daquilo que afir mam Esses dois princípios da autoridade e da simpatia influenciam quase todas as nossas opiniões mas têm uma influência especial quando julgamos acerca de nosso próprio valor e caráter Tais julga mentos sempre se fazem acompanhar de uma paixão6 e nada é mais propício a perturbar nosso entendimento e a nos precipitar em toda sorte de opiniões mesmo as mais irracionais que sua conexão com a paixão já que esta se difunde pela imaginação dando uma força adi cional a toda idéia relacionada A isso podemos acrescentar que como temos consciência de ser bastante parciais para conosco ficamos par ticularmente satisfeitos com tudo que confirma a boa opinião que te mos de nós mesmos e ofendemonos facilmente com tudo que se opõe a ela 10 Tudo isso parece bastante provável em teoria mas para conferir plena certeza a este raciocínio devemos examinar os fenômenos das paixões e ver se estão de acordo com ele 1 1 Entre esses fenômenos existe um que podemos considerar bastante favorável a nossa tese presente a saber que embora a boa fama seja em geral agradável obtemos uma satisfação muito maior da aprova 6 Livro 1 Parte 3 Seção 10 355 Tratado da natureza humana ção daqueles que nós mesmos estimamos e aprovamos do que daque les que odiamos e desprezamos Da mesma maneira o que nos des gosta é sobretudo o desprezo das pessoas a cujo julgamento damos algum valor ao passo que a opinião do resto da humanidade nos é em grande medida indiferente Mas se fosse algum instinto original que produzisse na mente o desejo da boa fama e a aversão pela má fama a boa e a má fama nos influenciariam indistintamente e toda opinião conforme fosse favorável ou desfavorável excitaria igualmente esse desejo ou aversão O julgamento de um tolo é o julgamento de outrem tanto quanto o de um sábio o é e só é inferior a este em sua influên cia sobre nosso próprio julgamento 12 E não apenas agradanos mais a aprovação de um sábio que a de um tolo mas obtemos uma satisfação adicional do primeiro quando ela resulta de uma longa familiaridade e intimidade Isso se explica da mesma maneira 13 Os elogios dos outros nunca nos dão muito prazer se não coinci dem com nossa própria opinião e se não nos exaltam sobretudo por aquelas qualidades pelas quais nos distinguimos Um simples sol dado pouco valoriza o atributo da eloqüência um civil o atributo da coragem um bispo o do humor e um comerciante o da erudição Qualquer que seja o apreço de um homem por uma qualidade consi derada abstratamente quando tem consciência de que não a possui nem a opinião favorável do mundo inteiro a esse respeito lhe dará muito prazer porque jamais será capaz de influenciar sua própria opinião 14 Nada é mais comum que homens de boa família mas de poucos recursos deixarem os amigos e o país natal preferindo buscar entre estranhos os meios de sua subsistência em trabalhos humildes e su balternos ao invés de permanecer entre aqueles que estão familiari zados com sua linhagem e educação Seremos desconhecidos dizem no lugar aonde iremos Ninguém suspeitará de que família viemos Estaremos longe de todos os nossos amigos e conhecidos e desse modo nossa pobreza e inferioridade nos serão mais fáceis de suportar Ao 356 Livro 2 Parte 1 Seção 1 1 examinar tais sentimentos vejo que fornecem muitos argumentos bastante convincentes em apoio à minha tese presente 1 5 E m primeiro lugar deles podemos inferir que o desprazer que surge quando somos desprezados depende da simpatia e a simpatia depende da relação dos objetos a nós Pois sentimonos mal sobretu do quando desprezados por pessoas que estão relacionadas conosco tanto por consangüinidade como por uma contigüidade no espaço Assim procuramos diminuir essa simpatia e esse malestar desfazen do essas relações e colocandonos em contigüidade com estranhos ao mesmo tempo que nos distanciamos de nossos parentes 1 6 Em segundo lugar podemos concluir que as relações são neces sárias à simpatia não absolutamente isto é quando consideradas sim plesmente como relações mas por influírem na conversão de nossas idéias dos sentimentos dos outros nesses próprios sentimentos me diante a associação entre a idéia que temos de suas pessoas e a da nos sa própria Pois aqui tanto a relação de parentesco quanto a de conti güidade subsistem mas como não estão unidas nas mesmas pessoas contribuem para a simpatia apenas em menor grau 17 Em terceiro lugar essa circunstância mesma da diminuição da simpatia pela separação de parentes e amigos merece nossa atenção Suponhamos que eu me encontre em uma condição humilde em meio a estrangeiros e conseqüentemente seja tratado com desconside ração apesar disso sintome mais confortável nessa situação do que quando era todos os dias exposto ao desprezo de meus familiares e compatriotas Sofro aqui um duplo desprezo de meus parentes e dos que me cercam mas aqueles estão ausentes e estes me são estranhos E embora esse duplo desprezo seja fortalecido pelas duas relações de parentesco e de contigüidade como as pessoas que estão conectadas comigo por uma e por outra relação não são as mesmas a diferença entre essas duas idéias separa as impressões resultantes do desprezo impedindoas de se unir O desprezo de meus vizinhos tem uma cer ta influência e também o de meus parentes Mas essas influências são distintas e nunca se unem como ocorria quando o desprezo procedia 357 Tratado da natureza humana de pessoas que eram ao mesmo tempo meus vizinhos e meus paren tes Esse fenômeno é análogo ao sistema do orgulho e da humildade anteriormente exposto e qual pode parecer tão extraordinário ao en tendimento comum 18 Em quarto lugar uma pessoa nessa situação naturalmente escon de as condições de seu nascimento daqueles entre os quais vive e sen tese muito mal se alguém suspeita que ela pertence a uma família de condições muito superiores no que se refere à riqueza e a seu modo de vida Tudo neste mundo é julgado por comparação O que é uma imensa fortuna para um cavalheiro particular é esmola para um prín cipe Um camponês considerariaseia feliz se possuísse o mesmo que para um cavalheiro não compraria sequer suas necessidades básicas Quando um homem está habituado a um modo de vida mais refina do ou acredita ter direito a tal por nascimento e posição social tudo que é inferior lhe desagrada e até envergonha e é com o maior empe nho que esconde suas pretensões a uma melhor sorte Neste caso ele conhece seu próprio infortúnio mas como aqueles com quem vive o ig noram essa reflexão e essa comparação desagradável lhe são sugeridas apenas por seus pensamentos e não por simpatia com os demais o que deve contribuir muito para seu bemestar e satisfação 19 Se houver objeções a esta hipótese de que o prazer que obtemos com o elogio surge de uma comunicação de sentimentos seu exame nos mostra rá que quando devidamente consideradas elas servem antes para confirmála A popularidade pode ser agradável até mesmo para um homem que despreza as pessoas comuns mas isso ocorre porque o grande número dessas pessoas confere a sua opinião um peso e auto ridade adicionais Os plagiadores deliciamse com elogios que têm consciência de não merecer mas estão construindo castelos no ar sua imaginação brinca com suas próprias ficções e se esforça para torná las firmes e estáveis por uma simpatia com os sentimentos alheios Os orgulhosos são os que mais se abatem quando desprezados mesmo que não concordem imediatamente com o motivo desse desprezo mas isso se deve à oposição entre sua paixão natural e a que recebem 358 Livro 2 Parte 1 Seção 12 por simpatia De maneira semelhante um amante apaixonado fica muito ofendido quando censuramos e condenamos seu amor mas é evidente que nossa oposição não pode ter nenhum efeito se não tiver influência sobre ele e se ele não tiver uma simpatia conosco Se nos despreza ou se perceber que estamos brincando nada que lhe diga mos terá qualquer efeito sobre ele Seção 1 2 Do orgulho e da humildade dos animais 1 Assim seja qual for a perspectiva pela qual examinemos esse as sunto podemos observar que as causas do orgulho e da humildade satisfazem exatamente a nossa hipótese nada pode despertar essas paixões a menos que esteja relacionado conosco e além disso pro duza um prazer ou dor independentes dessa paixão Provamos não apenas que uma tendência a produzir prazer ou dor é comum a todas as causas do orgulho ou da humildade mas também que essa é a úni ca coisa comum a elas e conseqüentemente é a qualidade pela qual operam Provamos além disso que as causas mais importantes des sas paixões não são na realidade senão o poder de produzir sensações agradáveis ou desagradáveis e portanto todos os seus efeitos entre eles o orgulho e a humildade derivam exclusivamente dessa origem Princípios tão simples e naturais fundados em provas tão sólidas não podem deixar de ser aceitos pelos filósofos a menos que me tenha es capado alguma objeção 2 Os anatomistas costumam acrescentar a suas observações e ex perimentos sobre o corpo humano os que eles realizam sobre os ani mais e da concordância entre esses experimentos derivam um argu mento adicional em favor de uma hipótese particular qualquer De fato é certo que nos casos em que a estrutura das partes é a mesma nos animais e nos homens e em que a operação dessas partes também é a mesma as causas dessa operação não podem ser diferentes isso 359 Tratado da natureza humana nos permite concluir sem hesitar que tudo aquilo que descobrimos ser verdadeiro a propósito de uma espécie é certo também para a outra Assim embora seja correto presumir que a mistura dos humores e a composição das partículas seja um pouco diferente nos homens e nos animais e que portanto nem sempre os experimentos que fazemos sobre os efeitos de certos medicamentos em um caso se aplicam ao ou tro entretanto como a estrutura das veias e dos músculos a consti tuição e a localização do coração dos pulmões do estômago do fíga do e de outras partes são iguais ou quase iguais em todos os animais a mesma hipótese que explica o movimento muscular a progressão do quilo e a circulação do sangue em uma espécie deve ser aplicável também às outras Assim conforme essa hipótese concorde ou não com os experimentos que fizermos em uma espécie qualquer teremos uma prova de sua verdade ou falsidade Apliquemos pois este mé todo de investigação que se tem mostrado tão correto e útil nos racio cínios sobre o corpo à nossa anatomia da mente e vejamos que des cobertas nos permite fazer 3 Para isso temos primeiramente que mostrar a correspondência entre as paixões nos homens e nos animais e em seguida comparar as causas que produzem essas paixões 4 É claro que em quase todas as espécies de criaturas mas sobre tudo nas mais nobres há muitas e evidentes marcas de orgulho e hu mildade O próprio porte e o andar de um cisne um peru ou um pa vão mostram a altiva idéia que têm de si mesmos e seu desprezo para com os outros Isso é ainda mais notável porque nestas duas últimas espécies de animais o orgulho sempre acompanha a beleza e só apa rece no macho A vaidade e a emulação dos rouxinóis em seu canto tem sido observada com freqüência e também a do cavalo em sua ra pidez dos cães de caça em sua sagacidade e olfato do touro e do galo em sua força e de todos os outros animais em suas excelências pró prias Acrescentese a isso que todas as espécies que se aproximam do homem com tal freqüência que chegam a adquirir com ele uma fa miliaridade mostram um evidente orgulho por sua aprovação e com 360 Livro 2 Parte 1 Seção 12 prazemse com seus elogios e carinhos independentemente de qualquer outra consideração E não é o carinho de todos sem distinção que lhes provoca essa vaidade mas especialmente o das pessoas que conhe cem e amam exatamente como ocorre quando essa paixão é desperta da no homem Todas essas são provas evidentes de que o orgulho e a humildade não são paixões meramente humanas estendendose antes por todo o reino animal 5 As causas dessas paixões também são muito semelhantes nos ani mais e em nós ressalvando naturalmente nosso conhecimento e in teligência superiores Assim os animais têm pouco ou nenhum sen tido de virtude ou de vício perdem rapidamente de vista as relações de consangüinidade e são incapazes de estabelecer as do direito e de propriedade Por essa razão as causas de seu orgulho e humildade têm de estar exclusivamente em seu corpo e nunca em sua mente ou nos objetos externos Mas no que diz respeito ao corpo as qualidades que causam orgulho no animal são as mesmas que na espécie humana ou seja essa paixão se funda sempre na beleza força rapidez ou em al guma outra qualidade útil ou agradável 6 A próxima questão é saber se uma vez que essas paixões são as mesmas e surgem das mesmas causas em toda a criação a maneira pela qual as causas operam também é a mesma De acordo com todas as re gras da analogia é correto esperar que isso se dê e se ao fazermos um teste descobrirmos que a explicação que utilizamos para dar conta des ses fenômenos em uma espécie não se aplica às outras podemos pre sumir que essa explicação embora atraente é na verdade infundada 7 Para resolver essa questão consideremos que existe evidentemente a mesma relação de idéias e derivada das mesmas causas na mente dos animais e dos homens Um cachorro que escondeu um osso com fre qüência esquece o lugar onde o escondeu mas quando o trazemos a esse lugar seu pensamento passa facilmente àquilo que havia escon dido pela contigüidade que produz uma relação entre as idéias As sim também quando foi duramente castigado em um determinado local tremerá ao se aproximar dali mesmo que não descubra nenhum 361 Tratado da natureza humana sinal de perigo imediato Os efeitos da semelhança não são tão notá veis mas como essa relação constitui um ingrediente importante da causalidade da qual todos os animais mostram uma apreciação tão evidente podemos concluir que as três relações de semelhança con tigüidade e causalidade operam da mesma maneira sobre os animais e sobre as criaturas humanas 8 Há também exemplos da relação de impressões suficientes para nos convencer de que existe uma união entre certos afetos nas espé cies inferiores de criaturas tanto quanto nas superiores e que sua mente é freqüentemente conduzida ao longo de uma série de emoções interconectadas Um cachorro quando tomado pela alegria tornase naturalmente amoroso e afável seja para com seu dono seja para com o sexo oposto De modo semelhante quando cheio de dor e tristeza ele se torna bravo e irritadiço e à menor oportunidade a paixão que de início era de tristeza convertese em raiva 9 Assim todos os princípios internos necessários para produzir em nós o orgulho ou a humildade são comuns a todas as criaturas e como as causas que despertam essas paixões são também as mesmas po demos legitimamente concluir que essas causas operam da mesma maneira em todo o reino animal Minha hipótese é tão simples e su põe tão pouca reflexão e juízo que pode ser aplicada a todas as cria turas sensíveis isso não apenas deve ser considerado uma prova con vincente de sua veracidade mas ainda e tenho plena confiança disso servirá como objeção contra qualquer outro sistema 362 Seção 1 Parte 2 Do amor e do ódio Dos objetos e das causas do amor e do ódio 1 É absolutamente impossível definir o amor e o ódio porque essas paixões produzem apenas uma impressão simples e não comportam nenhuma mistura ou composição Seria igualmente inútil tentar descrevêlas tomando por base sua natureza origem causas e obje tos porque esses são justamente os temas de nossa investigação pre sente e porque essas paixões por si mesmas já são suficientemente conhecidas por nosso sentimento feeling e experiência comuns Já havíamos observado isso a respeito do orgulho e da humildade ago ra o estamos repetindo a propósito do amor e do ódio De fato é tão grande a semelhança entre esses dois pares de paixões que seremos obrigados a começar por uma espécie de resumo de nossos raciocínios concernentes às primeiras a fim de explicar estas últimas 2 Enquanto o objeto imediato do orgulho e da humildade é o eu ou seja aquela pessoa idêntica de cujos pensamentos ações e sensações 363 Tratado da natureza humana somos intimamente conscientes o objeto do amor e do ódio é algu ma outra pessoa de cujos pensamentos ações e sensações não te rnos consciência Isso fica bastante evidente pela experiência Nosso amor e ódio sempre se dirigem a algum ser sensível exterior a nós quando falamos em amor a si próprio não o fazemos em sentido es trito pois a sensação que essa paixão produz não tem nada em co mum com aquela terna emoção despertada por um amigo ou pela mulher amada O mesmo ocorre com o ódio Podemos nos sentir hu milhados por nossas próprias faltas e loucuras mas só sentimos raiva ou ódio quando prejudicados por outrem 3 Mas embora o objeto do amor e do ódio seja sempre alguma ou tra pessoa é claro que rigorosamente falando esse objeto não é a causa dessas paixões e tampouco por si só é suficiente para despertá las Pois urna vez que o amor e o ódio são diretamente contrários em sua sensação e têm em comum o mesmo objeto se esse objeto fosse também sua causa ele produziria essas paixões opostas no mesmo grau e assim desde o primeiro instante elas se destruiriam mutua mente e nenhuma das duas jamais poderia aparecer Portanto tem de haver alguma causa diferente do objeto 4 Se considerarmos as causas do amor e do ódio veremos que são bastante diversificadas e que não têm muito em comum urnas com as outras A virtude o conhecimento a espirituosidade o bom senso e o bom temperamento de urna pessoa produzem amor e apreço e as qualidades contrárias produzem ódio e desprezo As mesmas pai xões nascem de dotes físicos corno beleza força rapidez destreza e seus contrários e também das vantagens e desvantagens externas corno família posses roupas país e clima Cada um desses objetos por suas diferentes qualidades pode produzir amor e apreço ou ódio e desprezo 5 Do exame dessas causas podemos derivar urna nova distinção entre a qualidade operante e o sujeito em que essa qualidade se encon tra Um príncipe que possui um palácio magnífico obtém o apreço de seu povo por este motivo primeiro pela beleza do palácio e segundo 364 Livro 2 Parte 2 Seção 1 pela relação de propriedade que os conecta A supressão de qualquer um desses fatores destrói a paixão o que é uma prova evidente de que a causa é composta 6 Seria entediante refazer a propósito das paixões do amor e do ódio todas as observações que fizemos a respeito do orgulho e da humildade e que são igualmente aplicáveis aos dois pares de paixões Basta notar em geral que o objeto do amor e do ódio é evidentemente alguma pessoa pensante e a sensação da primeira paixão é sempre agradável ao passo que a da segunda é desagradável Podemos também supor com alguma pretensão de probabilidade que a causa de ambas as paixões está sempre relacionada com um ser pensante e que a causa da primeira produz separadamente um prazer e a da segunda um malestar 7 A primeira suposição que a causa do amor e do ódio para pro duzir essas paixões tem de estar relacionada com uma pessoa ou ser pensante é não apenas provável mas evidente demais para ser con testada A virtude e o vício quando considerados em abstrato a be leza e a fealdade quando residem em objetos inanimados a pobreza e a riqueza quando atributos de uma terceira pessoa não excitam grau algum de amor ou de ódio de apreço ou de desprezo por aqueles que não têm nenhuma relação com tais coisas Uma pessoa olha pela ja nela e me vê passando na rua atrás de mim vê um belo palácio que não tem nada a ver comigo Creio que ninguém irá afirmar que essa pessoa terá por mim o mesmo respeito que teria se fosse eu o dono do palácio 8 Mas que essas paixões precisem de uma relação de impressões isso não é algo tão imediatamente evidente porque na transição uma impressão se confunde a tal ponto com a outra que elas se tornam de certa forma indistinguíveis Mas como no caso do orgulho e da humildade pudemos facilmente fazer tal separação e provar que toda causa dessas paixões produz uma dor ou um prazer separados eu poderia seguir aqui o mesmo método e com o mesmo sucesso exa minando cada causa particular de amor e de ódio Entretanto tenho pressa em fornecer uma prova completa e decisiva desses sistemas e 3 65 Tratado da natureza humana por esse motivo adiarei esse exame por um momento Enquanto isso tentarei converter à minha tese presente todos os meus raciocínios concernentes ao orgulho e à humildade por meio de um argumento fundado sobre uma experiência inquestionável 9 Poucas pessoas estando satisfeitas com seu próprio caráter ta lento ou fortuna não desejarão se exibir ao mundo e ganhar o amor e a aprovação da humanidade Ora é evidente que exatamente as mes mas qualidades e circunstâncias que causam orgulho ou autoestima causam também vaidade ou o desejo de uma boa reputação e que sempre exibimos aos outros as peculiaridades com as quais nós pró prios estamos mais satisfeitos Mas se o amor e o apreço não fossem produzidos pelas mesmas qualidades que o orgulho conforme es sas qualidades estejam relacionadas conosco ou com os outros esse modo de proceder seria inteiramente absurdo pois os homens não poderiam esperar encontrar uma correspondência entre seus próprios sentimentos e os de todas as outras pessoas É verdade que poucos são capazes de construir sistemas exatos sobre as paixões ou refletir acerca de sua natureza geral e suas semelhanças Mas mesmo sem esse avanço na filosofia não estamos sujeitos a muitos erros quanto a este ponto pois somos suficientemente guiados pela experiência corrente bem como por uma espécie de présensação que nos permite saber o que se passa com os outros com base no que sentimos ime diatamente em nós mesmos Portanto como as mesmas qualidades que produzem orgulho ou humildade causam amor ou ódio todos os argumentos que utilizamos para provar que as causas daquelas paixões geram uma dor ou um prazer independentes da paixão po derão ser aplicados com igual evidência às causas destas últimas Seção 2 Experimentos que confirmam este sistema 1 Após considerar devidamente esses argumentos ninguém he sitará em concordar com a conclusão que deles extraí a respeito da 366 Livro 2 Parte 2 Seção 2 transição entre impressões e idéias relacionadas sobretudo por se tratar de um princípio em si mesmo tão fácil e natural Mas para que possamos isentar este sistema de qualquer dúvida tanto em relação ao amor e ao ódio como em relação ao orgulho e à humilda de convém fazer alguns novos experimentos acerca de todas essas paixões e ao mesmo tempo recordar algumas das observações antes esboçadas 2 Para realizar tais experimentos suponhamos que eu esteja na companhia de uma pessoa por quem anteriormente não nutria ne nhum sentimento de amizade ou inimizade Tenho neste caso dian te de mim o objeto natural e último dessas quatro paixões Eu mes mo sou o objeto próprio do orgulho ou da humildade e a outra pessoa do amor ou do ódio 3 Examinemos agora atentamente a natureza dessas paixões e sua situação recíproca É evidente que temos aqui quatro afetos dispos tos como em um quadrado de forma que ao mesmo tempo que es tão conectados mantêm entre si uma distância regular As paixões de orgulho e humildade bem como as de amor e ódio conectamse pela identidade de seu objeto que no caso do primeiro par de pai xões é o eu e no do segundo alguma outra pessoa Essas duas li nhas de comunicação ou conexão formam dois lados opostos do qua drado Mais ainda orgulho e amor são paixões agradáveis ódio e humildade desagradáveis Essa similitude de sensação entre o orgu lho e o amor e entre a humildade e o ódio constitui uma nova cone xão e podemos considerar que ela forma os dois outros lados do qua drado Em resumo o orgulho está conectado com a humildade e o amor com o ódio por meio de seus objetos ou idéias e o orgulho está conectado com o amor e a humildade com o ódio por meio de suas sensações ou impressões 4 Digo então que nada poderá produzir uma dessas paixões se não mantiver com ela uma dupla relação uma relação de idéias com o objeto da paixão e de sensação com a própria paixão É isso que te mos de provar por meio de nossos experimentos 367 Tratado da natureza humana 5 Primeiro experimento Para proceder da forma mais ordenada pos sível nesses experimentos suponhamos primeiramente que estan do eu na situação acima mencionada isto é na companhia de algu ma outra pessoa apresentese a nós um objeto sem nenhuma relação de impressões ou de idéias com nenhuma dessas paixões Suponha mos por exemplo que nós dois estejamos olhando para uma pedra qualquer ou outro objeto corriqueiro que não pertence a nenhum de nós e que não causa por si mesmo nenhuma emoção ou seja nenhuma dor ou prazer independentes É evidente que tal objeto não produzirá nenhuma dessas quatro paixões Façamos um teste com cada uma delas sucessivamente Apliquemolo ao amor ao ódio à humildade e ao orgulho nenhum deles é despertado sequer no mí nimo grau imaginável Troquemos de objeto tantas vezes quantas de sejarmos contanto que escolhamos sempre um que não tenha ne nhuma dessas duas relações Repitamos o experimento em todas as disposições de que a mente é capaz Nenhum objeto em meio à imensa variedade da natureza e em nenhuma disposição irá produzir qual quer paixão sem essas relações 6 Segundo experimento Já que um objeto que careça dessas duas relações nunca poderá produzir uma paixão vamos conferir a ele ape nas uma dessas relações e observar o que acontece Suponhamos assim que eu olhe para uma pedra ou para algum objeto corriqueiro que pertença a mim ou a meu companheiro e adquira desse modo uma relação de idéias com o objeto das paixões É claro que conside randose a questão a priori não é razoável esperar nenhum tipo de emoção Pois a relação de idéias além de operar de forma secreta e calma sobre a mente confere a esta um impulso equivalente em di reção às paixões opostas de orgulho e de humildade de amor e de ódio conforme o objeto pertença a nós ou a outrem e essa oposição entre as paixões deve destruílas deixando a mente completamente livre de qualquer afeto ou emoção Esse raciocínio a priori se confir ma pela experiência Nenhum objeto trivial ou comum que não cau se nem dor nem prazer independentes da paixão jamais será capaz 368 Livro 2 Parte 2 Seção 2 por sua relação de propriedade conosco ou com os outros ou por qualquer outra relação de produzir os afetos do orgulho ou da hu mildade do amor ou do ódio 7 Terceiro experimento É evidente portanto que uma relação de idéias não é capaz de sozinha gerar esses afetos Suprimamos agora essa relação e em seu lugar coloquemos uma relação de impressões apresentando um objeto que seja agradável ou desagradável mas que não tenha nenhuma relação conosco ou com nosso companheiro e observemos as conseqüências Considerandose a questão primei ramente a priori como no experimento anterior podemos concluir que o objeto terá uma conexão pequena mas incerta com essas pai xões É verdade que além de essa relação não ser fria e imperceptí vel ela não tem o inconveniente da relação de idéias nos dirige com a mesma força para duas paixões contrárias as quais por sua oposi ção destroemse mutuamente Mas se considerarmos por outro lado que essa transição da sensação ao afeto não é auxiliada por nenhum princípio que produza uma transição de idéias e que ao contrário embora uma das impressões seja facilmente transfundida para a ou tra a troca dos objetos é supostamente contrária a todos os princípios que causam uma transição desse tipo podemos inferir daí que aqui lo que está conectado com uma paixão apenas por uma relação de impressões nunca poderá ser uma causa firme ou duradoura dessa paixão Comparando esses argumentos nossa razão concluiria por analogia que um objeto que produz prazer ou desprazer mas que não tem nenhuma conexão conosco ou com os outros pode impri mir uma tal direção a nossa disposição que a faça inclinarse natu ralmente para o orgulho ou para o amor para a humildade ou para o ódio e buscar outros objetos sobre os quais por uma dupla relação possa fundar esses afetos mas um objeto que tenha apenas uma des sas relações ainda que seja a mais favorável nunca poderá gerar uma paixão constante e firme 8 Felizmente constatamos que todo esse raciocínio é exatamente conforme à experiência e aos fenômenos das paixões Suponhamos 369 Tratado da natureza humana que eu estivesse viajando com um companheiro por um país em que nós dois fôssemos completos desconhecidos é evidente que se a paisagem fosse bela a estrada agradável e as estalagens confortáveis isso talvez me pusesse num alegre estado de espírito tanto em rela ção a mim mesmo quanto a meu companheiro de viagem Mas como estamos supondo que esse país não tem nenhuma relação nem comi go nem com meu amigo ele nunca poderia ser causa imediata de or gulho ou de amor e portanto se eu não fundamentar a paixão em algum outro objeto que mantenha com um de nós uma relação mais estreita minhas emoções deverão ser consideradas antes como trans bordamentos de uma disposição nobre ou generosa que como uma paixão estabelecida O mesmo acontece quando o objeto produz um malestar 9 Quarto experimento Havendo descoberto que se um objeto não tem nenhuma relação de idéias ou impressões ou se tem apenas uma relação nunca poderá causar orgulho ou humildade nem amor ou ódio a razão por si só pode nos convencer sem mais experimentos que tudo que possua uma dupla relação deve necessariamente desper tar essas paixões pois é evidente que elas têm de ter alguma causa Mas para deixar o menor espaço possível para dúvidas vamos refazer nossos experimentos e ver se o que acontece nesse caso corresponde às nossas expectativas Escolho um objeto como por exemplo a virtude que causa uma satisfação separada A esse objeto atribuo uma rela ção com o eu e constato que essa situação gera imediatamente uma paixão Mas que paixão Precisamente a do orgulho com que esse objeto mantém uma dupla relação Sua idéia está relacionada à do eu objeto da paixão e a sensação que causa se assemelha à sensação da paixão Para assegurarme de que não estou enganado acerca deste experimento suprimo primeiro uma relação e depois a outra e vejo que cada supressão destrói a paixão deixando a mente inteira mente indiferente Mas não me contento com isso e faço um novo teste em vez de suprimir a relação apenas a substituo por outra de um tipo diferente Suponho que a virtude pertence a meu companhei 3 70 Livro 2 Parte 2 Seção 2 ro e não a mim e observo o que se segue dessa alteração Percebo imediatamente que os afetos mudam de direção afastandose do orgulho em que existe apenas uma relação de impressões e vol tandose para o lado do amor a que são atraídos por uma dupla re lação de impressões e idéias Se repetir o mesmo experimento tro cando novamente a relação de idéias reconduzo os afetos de volta ao orgulho e se o repetir ainda mais uma vez novamente os dirijo para o amor ou afeição Plenamente convencido da influência des sa relação experimento os efeitos da outra troco a virtude pelo ví cio e assim converto a impressão agradável decorrente da primeira em uma impressão desagradável procedente deste último O efeito ainda corresponde à expectativa Quando reside em outra pessoa o vício desperta por meio de sua dupla relação a paixão do ódio em lugar do amor que pela mesma razão decorre da virtude Continu ando o experimento mudo novamente a relação de idéias e suponho que o vício pertence a mim O que acontece O de costume uma trans formação subseqüente da paixão de ódio em humildade Essa hu mildade eu converto em orgulho alterando novamente a impressão e constato que afinal completei o círculo e que por meio dessas tro cas trouxe a paixão de volta à mesma situação em que a encontrei pela primeira vez 10 Mas para tornar esse ponto ainda mais certo altero o objeto em vez do vício e da virtude faço o teste com a beleza e a fealdade a rique za e a pobreza o poder e a servidão Se formos trocando suas relações cada um desses objetos percorre o círculo das paixões da mesma maneira E seja qual for a ordem em que procedamos do orgulho ao amor ao ódio e à humildade ou da humildade ao ódio ao amor e ao orgulho o experimento se mantém inalterado É verdade que em algumas ocasiões o apreço e o desprezo surgem em lugar do amor e do ódio mas tratase no fundo das mesmas paixões apenas diver sificadas por algumas causas que explicaremos posteriormente 1 1 Quinto experimento Para conferir maior autoridade a esses ex perimentos alteremos a situação tanto quanto possível apresentando 3 71 Tratado da natureza humana as paixões e os objetos em todas as diferentes posições de que são suscetíveis Suponhamos além das relações já mencionadas que a pessoa com a qual realizo todos esses experimentos esteja estreita mente conectada a mim por consangüinidade ou amizade Suponha mos que seja meu filho ou irmão ou que esteja unida a mim por uma longa familiaridade Suponhamos em seguida que a causa da paixão adquira uma dupla relação de impressões e de idéias com essa pessoa Vejamos quais os efeitos dessas complicadas atrações e relações 12 Antes de considerarmos quais são de fato esses efeitos determi nemos quais deveriam ser de acordo com minha hipótese É claro que conforme a impressão seja agradável ou desagradável terá de ser de amor ou ódio a paixão dirigida à pessoa conectada com a causa da impressão por meio dessa dupla relação que afirmei esse tempo todo ser necessária A virtude de um irmão deve me fazer amálo e seu vício ou má reputação despertará a paixão contrária Mas a se julgar apenas pelo estado de coisas eu não deveria esperar que os afetos se detivessem aí e nunca se transfundissem em outras impressões Já que aqui existe uma pessoa que por meio de uma dupla relação é objeto de minha paixão o mesmo raciocínio me leva a pensar que a paixão irá mais adiante A pessoa segundo nossa suposição tem co migo uma relação de idéias a paixão da qual ela é objeto sendo agra dável ou desagradável tem uma relação de impressões com o orgu lho ou a humildade É evidente então que uma dessas paixões tem de resultar do amor ou ódio 13 Esse é o raciocínio que formo em conformidade com minha hi pótese e fico feliz ao descobrir quando o ponho à prova que tudo se dá exatamente como eu esperava A virtude ou o vício de um filho ou irmão não só despertam amor ou ódio mas por uma nova transição decorrente de causas similares geram orgulho ou humildade Nada nos causa maior vaidade que o fato de nossos parentes possuírem alguma qualidade notável ao contrário nada nos humilha mais que seu vício ou descrédito Essa exata conformidade da experiência com 3 72 Livro 2 Parte 2 Seção 2 nosso raciocínio é uma prova convincente da solidez da hipótese com base na qual raciocinamos 14 Sexto experimento Essa evidência será ainda maior se inverter mos o experimento conservando as mesmas relações mas começando com uma paixão diferente Suponhamos que em vez da virtude ou vício de um filho ou irmão que causa primeiramente amor ou ódio e em seguida orgulho ou humildade atribuamos a nós mesmos essas duas qualidades boa e má que não teriam nenhuma conexão imediata com a pessoa relacionada a nós A experiência nos mostra que em virtude dessa mudança de situação toda a cadeia se quebra e a mente não é mais conduzida de uma paixão à outra como no exem plo anterior Nunca amamos ou odiamos um filho ou irmão pela vir tude ou vício que discernimos em nós mesmos mas é evidente que essas mesmas qualidades quando neles situadas produzem em nós um orgulho ou humildade bastante sensíveis À primeira vista pode se pensar que isso é contrário à minha hipótese pois as relações de impressões e idéias são em ambos os casos precisamente iguais Or gulho e humildade são impressões relacionadas ao amor e ao ódio Eu mesmo tenho uma relação com a pessoa Portanto como causas semelhantes têm de produzir efeitos semelhantes seria de esperar que uma transição perfeita surgisse da dupla relação como em to dos os outros casos Podemos facilmente resolver essa dificuldade pelas seguintes reflexões 15 É evidente que como estamos em todos os momentos intima mente conscientes de nós mesmos de nossos sentimentos e paixões as idéias destes devem nos tocar com maior vividez que as idéias dos sentimentos e paixões de qualquer outra pessoa Mas tudo que nos toca com vividez e aparece sob uma luz forte e plena como que se impõe a nossa consideração fazendose presente à mente à menor sugestão e à mais leve relação Pela mesma razão uma vez presente prende a aten ção impedindoa de se desviar para outros objetos por mais forte que seja a relação destes com nosso primeiro objeto A imaginação passa fa cilmente das idéias obscuras às vívidas mas tem dificuldade em passar 373 Tratado da natureza humana das vívidas às obscuras No primeiro caso a relação é auxiliada por um outro princípio no segundo é contrariada por ele 16 Ora observei que essas duas faculdades da mente a imaginação e as paixões auxiliamse mutuamente em suas operações quando suas propensões são similares e quando agem sobre o mesmo objeto A mente sempre apresenta uma propensão a passar de uma paixão a qualquer outra que esteja relacionada com ela e essa propensão é favorecida quando o objeto de uma das paixões tem uma relação com o objeto da outra Os dois impulsos coincidem tornando toda a tran sição mais suave e fácil Mas se acontecesse à relação de idéias que mesmo continuando estritamente a mesma não mais causasse uma transição da imaginação é evidente que sua influência sobre as pai xões também teria de cessar já que depende inteiramente dessa tran sição É por essa razão que o orgulho ou a humildade não se transfor mam em amor ou ódio com a mesma facilidade com que estas últimas paixões se transformam nas primeiras Se um homem é meu irmão eu também sou seu irmão Mas embora as relações sejam recípro cas elas têm efeitos muito diferentes sobre a imaginação A passa gem é suave e livre quando se faz da consideração de uma pessoa re lacionada conosco à de nossa própria pessoa de quem estamos a todo momento conscientes Mas uma vez os afetos tendo sido dirigidos a nós a fantasia não passa com a mesma facilidade deste objeto para outra pessoa por mais estreita que seja sua relação conosco Essa tran sição fácil ou difícil da imaginação atua sobre as paixões facilitando ou retardando sua transição e isso constitui uma clara prova de que essas duas faculdades paixões e imaginação são interconectadas e que as relações de idéias exercem uma influência sobre os afetos Inumeráveis experimentos provam essa afirmação Além disso cons tatamos aqui que mesmo quando a relação permanece se alguma circunstância particular a impede de exercer sobre a fantasia seu efeito usual ou seja de produzir uma associação ou transição de idéias fica também impedido seu efeito usual sobre as paixões que é conduzir nos de uma à outra 3 74 Livro 2 Parte 2 Seção 2 17 Talvez alguns vejam uma contradição entre esse fenômeno e o da simpatia em que a mente passa facilmente da idéia de nós mesmos à de qualquer outro objeto relacionado conosco Mas essa dificuldade desaparecerá se considerarmos que na simpatia nossa própria pessoa não é objeto de nenhuma paixão e não há nada que fixe nossa atenção sobre nós mesmos como ocorre no caso presente em que por supo sição somos movidos pelo orgulho ou pela humildade Nosso eu sem a percepção de outros objetos na realidade não é nada Por essa razão devemos voltar nosso olhar para os objetos externos e é natural que consideremos com maior atenção aqueles que nos são contíguos ou semelhantes Mas quando o eu é objeto de alguma paixão não é na tural deixar de considerálo até que a paixão se esgote caso em que a dupla relação de impressões e idéias não pode mais operar 1 8 Sétimo experimento Para testar mais uma vez todo esse raciocínio façamos um novo experimento Como já vimos os efeitos das relações de paixões e idéias suponhamos agora uma identidade de paixões jun tamente com uma relação de idéias e examinemos os efeitos dessa nova situação É evidente que temos toda razão de esperar aqui uma transi ção das paixões de um objeto ao outro pois estamos supondo que a relação de idéias continua e uma identidade de impressões tem de pro duzir uma conexão mais forte que a mais perfeita semelhança que se possa imaginar Se portanto uma dupla relação de impressões e idéias é capaz de produzir uma transição de uma à outra quanto mais uma identidade de impressões juntamente com uma relação de idéias Cons tatamos assim que quando amamos ou odiamos uma pessoa as pai xões raramente se mantêm em seus limites iniciais ao contrário es tendemse em direção aos objetos contíguos incluindo os amigos e parentes daquele que amamos ou odiamos Nada é mais natural que sentir afeição por alguém apenas em virtude de nossa amizade por seu Sobretudo nesta seção e mais adiante na Seção 7 da Parte 3 pareceme mais natural ler contiguous como próximo e não como contíguo Entretanto em razão da impor tância da contigüidade em Hume como um dos princípios de associação procurei sem pre que possível manter a tradução mais literal NT 3 75 Tratado da natureza humana irmão sem examinar mais a fundo seu próprio caráter Uma desaven ça com uma pessoa nos faz odiar toda a sua família mesmo que esta seja inteiramente inocente da razão de nosso desagrado Exemplos desse tipo encontramse em toda parte 19 Há apenas uma dificuldade neste experimento que teremos de resolver antes de passarmos adiante É evidente que embora todas as paixões passem facilmente de um objeto a outro a ele relacionado essa transição se faz com mais facilidade quando o objeto mais im portante se apresenta primeiro sendo seguido pelo menos importante do que quando essa ordem é invertida e o menos importante prece de o primeiro Assim é mais natural amarmos o filho por causa do pai que o pai por causa do filho o criado por causa do senhor que o senhor por causa do criado o súdito por causa do príncipe que o prín cipe por causa do súdito De maneira semelhante é mais fácil con trairmos um ódio por toda uma família quando nossa primeira desa vença foi com seu chefe do que quando foi um filho um criado ou algum outro membro inferior quem nos ofendeu Em suma para nossas paixões como para outros objetos é mais fácil descer que subir 20 Para compreendermos em que consiste a dificuldade de explicar esse fenômeno devemos considerar que precisamente a mesma ra zão que determina a imaginação a passar dos objetos distantes aos contíguos com mais facilidade que dos contíguos aos distantes tam bém faz com que ela mude mais facilmente do menor para o maior que do maior para o menor Aquilo que tem maior influência se nota mais e aquilo que se nota mais se apresenta mais prontamente à ima ginação Qualquer que seja o assunto temos uma tendência maior a negligenciar aquilo que é trivial do que aquilo que parece mais impor tante sobretudo se este último precede aquele e atrai primeiro nossa atenção Assim por exemplo se acidentalmente somos levados a consi derar os satélites de Júpiter nossa fantasia se vê naturalmente determi nada a formar a idéia desse planeta mas se pensarmos primeiro no planeta principal é mais natural negligenciarmos os que o acompa nham A menção das províncias de um império conduz nosso pensa 3 76 Livro 2 Parte 2 Seção 2 mento ao centro deste mas a fantasia não retorna com a mesma fa cilidade para a consideração das províncias A idéia do criado nos faz pensar em seu amo a do súdito leva nossa visão até o príncipe Mas a mesma relação não tem igual influência para nos trazer de volta Esse é o fundamento da acusação de Cornélia a seus filhos de que de veriam se envergonhar por ela ser mais conhecida como filha de Cipião que como mãe dos Gracos Em outras palavras Cornélia exortavaos a se tornar tão ilustres e famosos quanto seu avô pois senão a ima ginação do povo ao partir dela que ocupava uma posição intermediá ria e igualmente relacionada ao pai e aos filhos sempre se desviaria destes designandoa pelo nome daquele que era mais importante e digno de consideração Sobre o mesmo princípio baseiase o costu me comum de dar às esposas o nome de seus maridos em vez de aos maridos o nome de suas esposas como também a formalidade de dar precedência àqueles que honramos e respeitamos Poderíamos en contrar muitos outros exemplos para confirmar esse princípio se ele já não fosse suficientemente evidente 21 Ora como a fantasia encontra a mesma facilidade para passar do menor ao maior que do distante ao contíguo por que essa transição fácil entre idéias não auxilia a transição das paixões no primeiro caso assim como no segundo As virtudes de um amigo ou irmão produ zem primeiro amor e depois orgulho porque nesse caso a imaginação passa do distante ao contíguo de acordo com sua inclinação Nossas próprias virtudes não produzem primeiro orgulho e então amor por um amigo ou irmão porque a passagem nesse caso seria do contíguo ao distante contrariando a propensão da imaginação Mas o amor ou o ódio por um inferior não causa prontamente uma paixão pelo superior embora essa seja a propensão natural da imaginação ao passo que o amor ou ódio por um superior causa uma paixão pelo inferior contrariamente à sua propensão Em resumo a mesma facilidade de transição não atua da mesma maneira em relação ao superior e ao inferior que em relação ao contíguo e ao distante Esses dois fenômenos parecem contraditó rios e requerem alguma atenção para serem conciliados 3 77 Tratado da natureza humana 22 Como a transição de idéias aqui se faz em direção contrária à da tendência natural da imaginação essa faculdade deve ser sobrepujada por algum princípio mais forte de outro tipo e como nada jamais está presente à mente senão impressões e idéias esse princípio deve es tar necessariamente nas impressões Ora já observamos que as im pressões ou paixões só se conectam por sua semelhança e quando duas paixões põem a mente na mesma disposição ou em disposições similares ela passa muito naturalmente de uma à outra e ao contrá rio uma incompatibilidade entre as disposições produz uma dificul dade na transição das paixões Notemos porém que essa incompa tibilidade pode nascer de uma diferença de graus assim como de espécie experimentamos a mesma dificuldade em passar subitamente de um pequeno grau de amor a um pequeno grau de ódio quanto em passar de um pequeno a um alto grau de apenas um desses afetos Quando um homem está calmo ou apenas moderadamente agitado ele é tão diferente sob todos os aspectos daquilo que é quando aba lado por uma paixão violenta que não poderia haver duas pessoas mais dessemelhantes e não é fácil passar de um extremo ao outro sem um intervalo considerável entre os dois 23 A dificuldade não é menor se é que não é ainda maior em passar da paixão forte à fraca que da fraca à forte contanto que uma das pai xões ao aparecer destrua a outra e as duas não existam ao mesmo tempo Mas o caso é inteiramente diferente quando as paixões se unem e atuam ao mesmo tempo na mente A adição de uma paixão fraca a uma forte não provoca uma mudança tão considerável na disposição quanto a adição de uma paixão forte a uma fraca por essa razão existe uma conexão mais estreita do grau maior ao menor que do menor ao maior 24 O grau de uma paixão depende da natureza de seu objeto um afeto dirigido a uma pessoa que é importante para nós ocupa e se apodera da mente muito mais que um afeto cujo objeto seja uma pessoa que consideramos menos importante Mostrase aqui portanto a con tradição entre as propensões da imaginação e da paixão Quando diri 3 78 Livro 2 Parte 2 Seção 2 gimos nosso pensamento para um objeto grande e outro pequeno a imaginação encontra uma facilidade maior em passar do pequeno ao grande que do grande ao pequeno mas os afetos encontram uma maior dificuldade E como estes últimos constituem um princípio mais poderoso que a imaginação não é de admirar que prevaleçam sobre ela puxando a mente em sua direção Apesar da dificuldade de pas sar da idéia do que é grande para a do que é pequeno uma paixão dirigida ao primeiro sempre produz uma paixão similar pelo segun do quando o grande e o pequeno estão relacionados A idéia do criado conduz nosso pensamento mais rapidamente à do senhor mas o ódio ou o amor pelo senhor produz com mais facilidade raiva ou benevo lência em relação ao criado Neste caso a paixão mais forte tem a precedência e como a adição da mais fraca não provoca uma mudança considerável na disposição a passagem entre elas se torna desse modo mais fácil e natural 25 No experimento anterior vimos que quando uma relação de idéias por uma circunstância particular qualquer deixa de produzir seu efeito usual de facilitar a transição de idéias ela também deixa de atuar sobre as paixões Assim também neste experimento encon tramos a mesma propriedade nas impressões Dois graus diferentes da mesma paixão certamente estão relacionados mas se o menor se apresentar primeiro terá pouca ou nenhuma tendência a introduzir o maior isso porque a adição do maior ao menor produz uma altera ção mais sensível em nosso humor que a adição do menor ao maior Esses fenômenos quando corretamente examinados constituem pro vas convincentes da presente hipótese 26 Poderemos confirmar essas provas se considerarmos a maneira pela qual a mente resolve a contradição que observei existir entre as pai xões e a imaginação A fantasia passa com mais facilidade do menor ao maior que do maior ao menor mas é mais fácil uma paixão violenta produzir uma fraca que uma paixão fraca produzir uma violenta Nes sa oposição a paixão acaba prevalecendo sobre a imaginação mas nor malmente ela o faz condescendendo com esta e buscando uma outra 3 79 Tratado da natureza humana qualidade que possa contrabalançar esse princípio de que resulta a oposição Quando amamos o pai ou o chefe de uma família quase não pensamos em seus filhos ou criados Mas quando estes se encontram em nossa presença ou quando está em nosso poder ajudálos neste caso a proximidade ou contigüidade aumenta sua magnitude ou ao menos suprime a oposição da fantasia à transição dos afetos Se a ima ginação encontra dificuldade em passar do maior ao menor encontra uma facilidade equivalente em passar do distante ao contíguo o que equilibra as coisas deixando livre o caminho de uma paixão à outra 27 Oitavo experimento Já observei que a transição do amor ou ódio ao orgulho ou humildade é mais fácil que a do orgulho ou humilda de ao amor ou ódio e a dificuldade que a imaginação encontra ao passar do contíguo ao distante explica por que não temos quase ne nhum exemplo desta última transição de afetos Entretanto tenho de abrir uma exceção a saber quando a própria causa do orgulho e da humildade se encontra em outra pessoa Pois aqui a imaginação é compelida a considerar a pessoa e não lhe é possível confinar sua visão em nós mesmos Assim nada produz mais facilmente ternura e afei ção por uma pessoa que sua aprovação de nossa conduta e caráter em contrapartida nada nos inspira maior ódio do que sua censura ou desprezo É evidente que aqui a paixão original é o orgulho ou a hu mildade cujo objeto é o eu e essa paixão se transforma em amor ou ódio cujo objeto é alguma outra pessoa não obstante a regra que já estabeleci a saber que a imaginação passa com dificuldade do contíguo ao distante Mas a transição neste caso não se faz apenas em virtude da relação entre nós e a pessoa e sim porque essa mesma pessoa é a verdadeira causa de nossa primeira paixão e em conseqüência disso está intimamente conectada com esta É sua aprovação que produz orgulho e sua desaprovação humildade Não é de espantar portan to que a imaginação retorne a essa causa acompanhada das paixões relacionadas do amor e do ódio Isso não é uma contradição mas uma exceção à regra e uma exceção que resulta da mesma razão que a pró pria regra 380 Livro 2 Parte 2 Seção 3 28 Uma tal exceção é portanto antes uma confirmação da regra De fato se considerarmos os oito experimentos que acabo de expor veremos que o mesmo princípio aparece em todos eles e é por meio de uma transição resultante de uma dupla relação de impressões e idéias que se produzem o orgulho e a humildade o amor e o ódio Um objeto sem1 relação ou2 com apenas uma relação nunca produz nenhuma dessas paixões e constatamos3 que a paixão sempre varia em conformidade com a relação Além disso podemos observar que quando a relação por alguma circunstância particular não tem seu efeito usual de produzir uma transição de4 idéias ou de impressões ela deixa de atuar sobre as paixões não produzindo nem orgulho nem amor nem humildade nem ódio Constatamos que essa regra se man tém 5 mesmo quando o que ocorre parece contrariála Assim freqüen temente temos a experiência de uma relação que não produz nenhum efeito ao examinála porém descobrimos que isso se deve a algu ma circunstância particular que impede a transição e por outro lado nos casos em que essa circunstância embora presente não impede a transição descobrimos que isso se deve à presença de alguma outra circunstância que a contrabalança Desse modo não apenas as varia ções se reduzem ao princípio geral mas também as variações dessas variações Seção 3 Solução das dificuldades 1 Após tantas provas inegáveis extraídas da experiência e da ob servação diárias parece supérfluo examinar agora uma por uma todas as causas do amor e do ódio Por esse motivo utilizarei o res 1 Primeiro experimento 2 Segundo e terceiro experimentos 3 Quarto experimento 4 Sexto experimento 5 Sétimo e oitavo experimentos 381 Tratado da natureza humana tante desta parte para em primeiro lugar eliminar algumas dificulda des concernentes às causas particulares dessas paixões e em segun do lugar examinar os afetos compostos resultantes da mistura do amor e do ódio com outras emoções 2 Nada é mais evidente que o fato de que as pessoas obtêm nossa afeição ou se expõem à nossa má vontade na proporção direta do pra zer ou desprazer que delas recebemos e que as paixões mantêm exa tamente o mesmo ritmo que as sensações em todas as suas mudan ças e variações Aquele que encontra uma maneira de se tornar útil ou agradável a nós seja por meio de seus serviços sua beleza ou sua adulação pode estar certo de que terá nossa afeição Ao contrário aquele que nos prejudica ou desagrada sempre despertará nossa raiva ou ódio Quando nossa nação está em guerra com outra detestamos todos os membros desta última acusandoos de cruéis pérfidos in justos e violentos a nós e a nossos aliados porém consideramos sem pre justos moderados e dementes Se o general de nossos inimigos consegue leválos à vitória dificilmente reconhecemos nele um ca ráter ou traços humanos É um feiticeiro tem parte com o demônio como se dizia de Oliver Cromwell e do Duque de Luxemburgo é san guinário tem prazer em matar e destruir Mas se a vitória é nossa então nosso comandante tem todas as qualidades opostas é um modelo de virtude bem como de coragem e boa conduta A sua trai ção chamamos estratégia sua crueldade é um mal inseparável da guer ra Em suma procuramos atenuar cada uma de suas faltas ou então dignificála dandolhe o nome da virtude que dela se aproxima É evidente que o mesmo método de pensamento está presente em toda a vida comum 3 Alguns acrescentam uma outra condição afirmam que não ape nas a outra pessoa deve produzir em nós uma dor ou um prazer mas deve produzilos conscientemente com um propósito e uma intenção particulares Um homem que nos fere e prejudica aciden talmente não se torna nosso inimigo só por essa razão e tampouco pensamos estar obrigados por laços de gratidão a alguém que nos 382 Livro 2 Parte 2 Seção 3 presta um serviço da mesma maneira É pela intenção que julgamos as ações conforme seja boa ou má as ações se tornam causas de amor ou de ódio 4 Aqui devemos porém fazer uma distinção Se a qualidade que nos agrada ou desagrada em alguém for constante e inerente a sua pessoa e caráter causará amor ou ódio independentemente da inten ção se não for assim serão necessários um conhecimento e uma in tenção para dar origem a essas paixões Uma pessoa cuja feiúra ou insensatez nos é desagradável se torna objeto de nossa aversão em bora seja evidente que ela não tem a menor intenção de nos descon tentar por essas qualidades Mas se o desagrado não provém de uma qualidade e sim de uma ação que se produz e é aniquilada em um instante ele precisa ser derivado de uma premeditação e de um pro pósito particular para produzir alguma relação e uma conexão forte o suficiente entre essa ação e a pessoa Não basta que a ação derive da pessoa e tenha nela sua causa imediata e seu autor Tal relação por si só é demasiadamente fraca e inconstante para ser o fundamento des sas paixões Não alcança a parte sensível e pensante e tampouco pro cede de algo duradouro na pessoa não deixa nada atrás de si esvaise em um instante e é como se não houvesse existido Por outro lado uma intenção mostra certas qualidades que permanecendo após a rea lização da ação conectam essa ação com a pessoa e facilitam a tran sição de idéias de uma à outra Não podemos pensar nessa pessoa sem refletir sobre essas qualidades a menos que o arrependimento e uma mudança de vida tenham produzido uma alteração a esse respeito mas nesse caso também a paixão se altera Esta é uma razão por tanto que explica por que é preciso uma intenção para excitar o amor ou o ódio 5 Mas devemos ainda considerar que uma intenção além de forta lecer a relação de idéias é freqüentemente necessária para produzir uma relação de impressões e para gerar prazer e desprazer Pois obser vemos que a principal parte de um agravo é o desprezo e o ódio que revela na pessoa que nos prejudica o simples dano sem isso nos dá 383 Tratado da natureza humana um desprazer menos sensível De maneira semelhante um benefício é agradável sobretudo porque satisfaz nossa vaidade e é uma prova da afeição e do apreço da pessoa que o realiza A supressão da inten ção suprime a humilhação em um caso e a vaidade no outro e é claro deve causar uma diminuição considerável nas paixões do amor e do ódio 6 Admito que a supressão da intenção diminui o grau das relações de impressões e de idéias mas não é capaz de suprimilas inteiramen te Mas então pergunto se a supressão da intenção é capaz de suprimir inteiramente as paixões do amor e do ódio Estou seguro de que a experiência nos informa do contrário nada é mais certo que o fato de que os homens com freqüência se encolerizam violentamente por so frerem danos que eles próprios reconhecem serem inteiramente involuntários e acidentais É verdade que essa emoção não pode du rar por muito tempo mas é suficiente para mostrar que existe uma conexão natural entre o desprazer e a raiva e que a relação de impres sões pode operar partindo de uma relação de idéias bem fraca No entanto assim que a violência da impressão se ameniza um pouco a deficiência da relação começa a se fazer sentir com mais intensidade e como esses danos casuais e involuntários não dizem respeito de forma alguma ao caráter de uma pessoa raramente mantemos uma inimizade duradoura por causa disso 7 Para ilustrar essa doutrina mediante um caso análogo podemos observar que não é apenas o desprazer que resulta acidentalmente de outra pessoa que tem pouca força para excitar nossa paixão mas tam bém o que resulta de uma necessidade e um dever reconhecidos Se alguém tem realmente a intenção de nos prejudicar mas não por ódio ou má vontade e sim por um desejo de justiça e eqüidade essa pes soa não desperta nossa cólera se formos um pouco razoáveis e en tretanto ela é não apenas a causa mas a causa consciente de nossos sofrimentos Examinemos rapidamente esse fenômeno 8 Em primeiro lugar é evidente que essa circunstância não é deci siva pois embora seja capaz de diminuir as paixões raramente pode 384 Livro 2 Parte 2 Seção 4 suprimilas por completo São poucos os criminosos que não sen tem rancor por quem os acusou ou pelo juiz que os condenou mes mo estando conscientes de que seu castigo foi merecido Do mesmo modo costumamos considerar nosso adversário em uma questão ju dicial e nosso concorrente na disputa por algum cargo como nossos inimigos embora se pensarmos um pouco devamos reconhecer que seus motivos são tão justificáveis quanto os nossos 9 Além disso consideremos que quando sofremos algum mal por parte de uma pessoa tendemos a imaginar que ela é criminosa e é com extrema dificuldade que admitimos sua justiça e inocência Isso é uma prova clara de que independentemente da opinião de que houve iniqüidade qualquer dano ou desprazer tem uma tendência natural a despertar nosso ódio e de que só posteriormente buscamos razões para justificar e fundamentar a paixão Neste caso a idéia do dano não produz a paixão mas se origina dela 10 E não é de estranhar que a paixão produza a opinião de que hou ve um dano pois de outro modo ela sofreria uma diminuição consi derável coisa que todas as paixões evitam tanto quanto possível A supressão do dano pode suprimir a raiva sem que isso prove que a raiva deriva apenas do dano O mal que sofremos e a justiça são dois objetos contrários dos quais o primeiro tem uma tendência a produ zir ódio e o segundo amor E é de acordo com seus diferentes graus e com a índole particular de nosso pensamento que um ou outro pre valece despertando sua paixão própria Seção 4 Do amor pelos parentes e amigos 1 Agora que já explicamos por que diversas ações que causam um prazer ou um desprazer reais não despertam nenhum grau ou des pertam apenas um pequeno grau das paixões do amor ou do ódio por Parentes e amigos por relations NT 385 Tratado da natureza humana seus agentes é preciso mostrar em que consiste o prazer ou o des prazer de muitos objetos que pela experiência vemos produzir es sas paixões 2 De acordo com o sistema anterior para produzir amor ou ódio é preciso haver sempre entre a causa e o efeito uma dupla relação de impressões e de idéias Embora isso seja universalmente verdadeiro porém é de notar que a paixão do amor pode ser excitada por apenas uma relação de um tipo diferente a saber a relação entre nós e o obje to ou mais propriamente falando que essa relação sempre se faz acompanhar pelas outras duas Qualquer pessoa que esteja unida a nós por meio de alguma conexão pode ter certeza de que receberá uma parcela de nosso amor proporcional ao grau da conexão sem que pre cisemos saber quais são suas outras qualidades Assim a relação de consangüinidade produz no caso do amor dos pais pelos filhos o laço mais forte de que a mente é capaz e produz um grau cada vez menor do mesmo afeto conforme a relação vai diminuindo E não é apenas a consangüinidade que tem esse efeito mas qualquer outra relação sem exceção Amamos nossos conterrâneos nossos vizinhos aque les que exercem o mesmo ofício ou profissão que nós e até os que têm o mesmo nome Todas essas relações são consideradas como constituindo vínculos e dão direito a uma parte de nossa afeição 3 Há um outro fenômeno análogo a esse a familiaridade sem ne nhum tipo de parentesco também gera amor e afeição Quando nos acostumamos e adquirimos uma intimidade com uma pessoa mes mo que essa convivência não nos tenha revelado nela nenhuma qua lidade de valor não podemos deixar de preferila a outras pessoas de cujo mérito superior estamos plenamente convencidos mas que são estranhas a nós Esses dois fenômenos os efeitos do parentesco e da familiaridade esclarecemse mutuamente e ambos podem ser expli cados pelo mesmo princípio 4 Aqueles que se comprazem em lançar invectivas contra a nature za humana observaram que o homem é inteiramente incapaz de se bastar a si mesmo e se desfizermos todos os laços que mantém com 386 Livro 2 Parte 2 Seção 4 os objetos externos ele imediatamente mergulhará na mais profun da melancolia e desespero É por isso dizem eles que estamos con tinuamente à procura de diversão seja no jogo na caça ou nos negó cios por meio dessas atividades tentamos esquecer de nós mesmos e resgatar nossos espíritos animais daquele torpor em que caem quando não são mantidos por alguma emoção enérgica e vivaz Es tou de acordo com esse modo de pensar pois reconheço que a mente é insuficiente para entreter a si mesma e por isso busca naturalmen te objetos estranhos que possam produzir uma sensação vivaz e agi tar seus espíritos animais Quando um desses objetos aparece a mente desperta como que de um sonho o sangue flui mais veloz o coração se exalta e o homem como um todo adquire um vigor de que é inca paz em seus momentos de solidão e calma Por isso a companhia alheia é naturalmente tão prazerosa por apresentar o mais vívido de todos os objetos um ser racional e pensante como nós que nos comunica todas as ações de sua mente confianos seus sentimentos e afetos mais íntimos e permite que vislumbremos no momento mesmo em que se produzem todas as emoções causadas por um objeto Toda idéia vívi da é agradável mas sobretudo a de uma paixão pois uma tal idéia se torna uma espécie de paixão conferindo à mente uma agitação mais sensível que a resultante de qualquer outra imagem ou concepção 5 Uma vez admitido isso todo o resto é fácil Pois assim como a companhia de estranhos nos é agradável pelo curto período em que aviva nosso pensamento assim também a companhia de nossos pa rentes e amigos deve ser particularmente agradável porque tem esse mesmo efeito em um grau ainda maior possuindo uma influência mais duradoura Tudo que se relaciona conosco é concebido de ma neira vívida em virtude da fácil transição de nós ao objeto relaciona do Também o costume ou familiaridade facilita a entrada de qualquer objeto e fortalece sua concepção O primeiro caso é análogo a nossos raciocínios por causa e efeito o segundo à educação Ora como a Aqui e na frase seguinte spirits Ver nossa nota à p 128 NT 387 Tratado da natureza humana única coincidência entre o raciocínio e a educação é o fato de ambos produzirem uma idéia vívida e forte de um objeto esse também é o único ponto comum ao parentesco e à familiaridade devendo ser por tanto a qualidade em virtude da qual ambos exercem uma influên cia e que é responsável pela produção de todos os seus efeitos comuns E visto que o amor ou afeição é um desses efeitos essa paixão tem de ser derivada da força e vividez da concepção Tal concepção é particu larmente agradável e nos faz sentir uma consideração afetuosa por tudo que a produz quando é objeto adequado de ternura e benevolência 6 É evidente que as pessoas se associam de acordo com seus tem peramentos e disposições particulares os homens de temperamento alegre naturalmente amam as pessoas alegres os de temperamento sé rio sentem afeição pelas pessoas sérias Isso acontece não somente quando percebem essa semelhança entre eles e os outros mas tam bém pelo curso natural de sua disposição e por uma certa simpatia que sempre nasce entre temperamentos similares Quando os homens percebem a semelhança ela atua como uma relação isto é produ zindo uma conexão de idéias Quando não a percebem ela age por meio de algum outro princípio e se este princípio for similar ao primei ro teremos de ver nele uma confirmação do raciocínio anterior 7 A idéia de nosso eu está sempre intimamente presente a nós e transmite um sensível grau de vividez à idéia de qualquer objeto com que estejamos relacionados Essa idéia vívida se transforma gradual mente em uma impressão real pois esses dois tipos de percepção são em grande medida iguais diferindo apenas em seus graus de for ça e vividez Mas essa transformação deve se produzir ainda com mais facilidade pelo fato de nosso temperamento natural nos tornar pro pensos à mesma impressão que observamos nas outras pessoas fa zendo que essa impressão surja à menor ocasião Nesse caso a se melhança converte a idéia em uma impressão não apenas por meio da relação transferindo a vividez original para a idéia relacionada mas também por apresentar um material que se incendeia à menor fagu lha E como nos dois casos a semelhança gera amor ou afeição pode 388 Livro 2 Parte 2 Seção 4 mos aprender com isso que uma simpatia com os demais só é agra dável por proporcionar uma emoção aos espíritos animais uma vez que uma simpatia fácil e emoções correspondentes são as únicas coi sas comuns ao parentesco à familiaridade e à semelhança 8 A forte propensão dos homens ao orgulho pode ser vista como um fenômeno similar Após termos vivido durante um bom tem po em determinada cidade de que inicialmente não gostávamos é comum acontecer que conforme vamos convivendo com os objetos e adquirimos uma familiaridade ainda que apenas com suas ruas e prédios a aversão gradativamente diminui até se transformar na paixão oposta A mente encontra satisfação e conforto na visão de ob jetos a que está acostumada e naturalmente os prefere a outros que conhece menos embora estes possam ter mais valor em si próprios A mesma qualidade da mente nos faz ter uma boa opinião de nós mesmos e de todos os objetos que nos pertencem Estes nos apare cem com mais intensidade que todos os outros são mais agradáveis e conseqüentemente mais adequados para se tornar objetos de or gulho e vaidade 9 Já que estamos tratando da afeição que sentimos por nossos ami gos e parentes não será fora de propósito observar alguns fenôme nos bastante curiosos que a acompanham Em nossa vida corrente notamos freqüentemente que os filhos consideram que a relação com sua mãe se enfraquece bastante quando ela se casa uma segunda vez e não a vêem mais com os mesmos olhos com que a veriam se conti nuasse em sua situação de viuvez Isso não ocorre apenas quando o se gundo casamento lhes causou algum inconveniente ou quando o novo marido é muito inferior a ela ocorre mesmo sem nenhuma conside ração desse tipo simplesmente porque sua mãe se tornou parte de outra família O mesmo se dá com o segundo casamento de um pai mas em grau bem menor os laços de sangue certamente não se afrou xam tanto neste caso quanto no caso do casamento de uma mãe Es ses dois fenômenos já são notáveis por si mesmos porém mais ain da quando comparados um com o outro 389 Tratado da natureza humana 10 Para que se produza uma relação perfeita entre dois objetos é preciso não apenas que a imaginação seja conduzida de um ao outro por semelhança contigüidade ou causalidade mas também que ela retorne do segundo ao primeiro com o mesmo conforto e facilidade À primeira vista isso pode parecer uma conseqüência necessária e inevitável Se um objeto é semelhante a outro este último tem de ser necessariamente semelhante ao primeiro Se um objeto é causa de outro o segundo é seu efeito O mesmo vale para a contigüidade Portanto como a relação é sempre recíproca podemos pensar que a volta da imaginação do segundo termo ao primeiro tem de ser sem pre tão natural quanto sua passagem do primeiro ao segundo Mas um exame mais completo nos mostrará facilmente que estamos er rados Pois supondose que o segundo objeto além de sua relação recíproca com o primeiro mantenha também uma forte relação com um terceiro neste caso embora a relação permaneça a mesma o pen samento após passar do primeiro objeto ao segundo não retorna com a mesma facilidade ao invés disso segue rapidamente para o tercei ro objeto por meio da nova relação que se apresenta e que dá um novo impulso à imaginação Essa nova relação portanto enfraquece o laço entre o primeiro e o segundo objetos Por sua própria natureza a fan tasia é instável e inconstante e considera que a relação entre dois objetos é mais forte quando o movimento nos dois sentidos é igual mente fácil do que quando ele só é fácil em apenas um dos sentidos O duplo movimento é uma espécie de duplo vínculo ligando os obje tos da maneira mais estreita e íntima 1 1 O segundo casamento de uma mãe não quebra a relação entre ela e seu filho e essa relação é suficiente para transportar a imaginação do filho de si mesmo até ela com o maior conforto e facilidade Mas ao chegar a esse ponto a imaginação encontra seu objeto cercado por tantas outras relações todas elas disputando sua atenção que fica sem saber qual deve preferir e a que novo objeto se dirigir Os laços de interesse e dever ligam minha mãe a uma outra família impedindo que a fantasia retorne dela a mim o que entretanto é necessário para 390 Livro 2 Parte 2 Seção 5 manter a união O pensamento não tem mais aquela oscilação neces sária para deixálo perfeitamente à vontade e satisfazer sua inclinação à mudança Ele vai com facilidade mas volta com dificuldade e por causa dessa obstrução considera a relação muito mais fraca do que seria se a passagem fosse fácil e desimpedida nos dois sentidos 12 Agora para explicar por que esse efeito não se dá com a mesma intensidade por ocasião do segundo casamento de um pai podemos refletir sobre algo que já provamos a saber que embora a imagina ção passe facilmente da visão de um objeto menos importante para a de um mais importante ela não volta do segundo ao primeiro com a mesma facilidade Quando minha imaginação vai de mim a meu pai ela não passa tão imediatamente dele a sua segunda esposa nem o considera como fazendo parte de uma família diferente mas sim como continuando o chefe da família de que eu mesmo faço parte Sua su perioridade impede a transição fácil do pensamento dele para sua consorte mas ainda mantém a passagem aberta para que retorne até mim pela mesma relação entre pai e filho A figura de meu pai não é encoberta pela nova relação que ele adquiriu por isso o duplo movi mento ou a oscilação do pensamento é ainda fácil e natural E como a fantasia ainda pode dar vazão a sua inconstância o laço entre pai e filho preserva sua plena força e influência 13 Uma mãe não pensa que o vínculo com seu filho fica enfraqueci do só porque o compartilha com seu marido e um filho tampouco pensa isso de seu vínculo com seus pais por compartilhálos com um irmão O terceiro objeto está aqui relacionado ao primeiro tanto quan to ao segundo desse modo a imaginação vai e vem de um ao outro com a maior facilidade Seção 5 De nossa estima pelos ricos e poderosos 1 Nada possui maior tendência a produzir nosso apreço por uma pessoa que seu poder e riqueza ou a produzir nosso desprezo que 391 Tratado da natureza humana sua pobreza ou inferioridade E uma vez que apreço e desprezo devem ser considerados espécies de amor e de ódio convém explicar agora esses fenômenos 2 Ocorre aqui felizmente que a maior dificuldade não é descobrir um princípio capaz de produzir tal efeito mas escolher entre diver sos princípios que se apresentam o fundamental e predominante A satisfação que experimentamos com a riqueza alheia e o apreço que sentimos por seu proprietário podem ser atribuídos a três causas di ferentes Em primeiro lugar aos objetos possuídos como casas jar dins e carruagens os quais sendo agradáveis em si mesmos produ zem necessariamente um sentimento de prazer em todos que os consideram ou examinam Em segundo lugar à expectativa de obter vantagens dos ricos e poderosos compartilhando de seus bens Em terceiro lugar à simpatia que nos faz participar da satisfação de todos que estão próximos de nós Todos esses princípios podem concorrer para a produção do presente fenômeno A questão é a qual deles de vemos sobretudo atribuílo 3 O primeiro princípio ou seja a reflexão acerca de objetos agra dáveis tem certamente uma influência maior do que poderíamos imaginar à primeira vista Raramente pensamos no que é belo ou feio agradável ou desagradável sem sentir uma emoção de prazer ou desprazer e embora essas sensações não apareçam com muita fre qüência no modo indolente como usualmente pensamos é fácil desco brilas na leitura ou na conversação As pessoas espirituosas sempre dirigem a conversa para assuntos que sejam agradáveis à imaginação e os poetas nunca apresentam objetos de natureza diferente dessa O Sr Philips colheu a sidra como tema de um excelente poema A cer veja não teria sido tão apropriada já que não é tão agradável nem ao paladar nem aos olhos Mas ele certamente teria preferido o vinho se seu país natal lhe houvesse proporcionado esse tão agradável li cor Podemos concluir daí que tudo que é agradável aos sentidos agrada John Philips 1 676 1 708 Hume se refere a seu poema didático Cyder NT 392 Livro 2 Parte 2 Seção 5 também em alguma medida à fantasia transmitindo ao pensamen to uma imagem daquela satisfação que produz quando realmente aplicado aos órgãos do corpo 4 Mas embora essas razões possam nos levar a incluir esse requin te da imaginação entre as causas do respeito que mostramos pelos ri cos e poderosos há muitas outras razões que podem nos impedir de vêlo como a única ou principal causa Pois como as idéias de prazer só podem nos influenciar por meio de sua vividez que as aproxima das impressões é mais natural que tenham essa influência as idéias favorecidas pelo maior número de circunstâncias e que por isso têm uma tendência natural a se tornar fortes e vívidas como é o caso de nossas idéias das paixões e sensações de qualquer criatura humana Toda criatura humana se assemelha a nós e por isso leva vantagem sobre qualquer outro objeto em sua operação sobre a imaginação 5 Além disso se considerarmos a natureza dessa faculdade e a forte influência que todas as relações exercem sobre ela poderemos fa cilmente nos convencer de que embora as idéias das amenidades de que desfrutam os ricos como vinhos músicas ou jardins pos sam se tornar vívidas e agradáveis a fantasia não se limita a elas dirigindo seu olhar também para os objetos relacionados particular mente para quem os possui O mais natural é que a idéia ou ima gem prazerosa produza neste caso uma paixão pela pessoa mediante sua relação com o objeto desse modo é inevitável que essa pessoa entre na concepção original por ser objeto da paixão derivada Mas se ela entra na concepção original e se consideramos que usufrui des ses objetos agradáveis então é a simpatia que é propriamente a cau sa do afeto e portanto o terceiro princípio é mais poderoso e univer sal que o primeiro 6 Acrescentese a isso que a riqueza e o poder por si sós ainda que não sejam empregados causam naturalmente estima e respeito por conseguinte essas paixões não surgem da idéia de objetos belos ou agradáveis É verdade que o dinheiro implica uma espécie de repre sentação desses objetos porque nos dá o poder de obtêlos e por 393 Tratado da natureza humana essa razão podese considerálo apropriado para transmitir essas ima gens agradáveis capazes de gerar a paixão Mas como tal perspectiva é muito distante é mais natural que tomemos um objeto contíguo a saber a satisfação que esse poder proporciona à pessoa que o possui Ficaremos mais convencidos disso se considerarmos que a riqueza só representa os bens da vida em virtude da vontade de quem dela faz uso e portanto implica por sua própria natureza uma idéia da pessoa não podendo ser considerada sem uma espécie de simpatia para com suas sensações e prazeres 7 Podemos confirmar o que acabamos de dizer por uma reflexão que alguns talvez considerem demasiadamente sutil e refinada Já ob servei que o poder quando distinto de seu exercício ou não tem ne nhum sentido ou não passa de uma possibilidade ou probabilidade de existência pela qual um determinado objeto se torna mais próxi mo da realidade produzindo uma influência sensível sobre a mente Observei também que por uma ilusão da fantasia essa proximidade da realidade parece muito maior quando somos nós que possuímos o poder e não uma outra pessoa No primeiro caso os objetos pare cem tocar a fronteira mesma da realidade transmitindonos quase a mesma satisfação que sentiríamos se de fato os possuíssemos Afirmo agora que quando estimamos uma pessoa por sua riqueza devemos entrar nesse sentimento do proprietário e que sem essa simpatia a idéia dos objetos agradáveis que a riqueza lhe dá o poder de produzir teria apenas uma fraca influência sobre nós Um homem avaro é res peitado por seu dinheiro embora não tenha praticamente nenhum poder ou seja embora não haja praticamente nenhuma probabilidade ou sequer possibilidade de que venha a empregar seu dinheiro para adquirir os prazeres e as comodidades da vida Apenas para ele esse poder parece perfeito e íntegro devemos portanto receber seus senti mentos por simpatia antes que possamos ter uma idéia forte e intensa desses prazeres ou estimálo por causa deles 8 Vimos assim que o primeiro princípio a idéia agradável dos objetos de que a riqueza nos permite desfrutar reduzse em grande medida ao ter 394 Livro 2 Parte 2 Seção 5 ceiro transformandose em urna simpatia pela pessoa que estimamos ou amamos Examinemos agora o segundo princípio a saber a agradá vel expectativa de obter alguma vantagem e vejamos que força podemos rigorosamente atribuir a ele 9 É evidente que embora a riqueza e a autoridade indubitavelmente proporcionem à pessoa que os possui um poder de nos beneficiar esse poder não deve ser considerado corno equivalente ao poder que essa pessoa tem de agradar a si mesma e satisfazer a seus próprios apeti tes No segundo caso o amor a si próprio aproxima muito o poder de seu exercício mas para que se produza um efeito similar no primei ro caso ternos de supor a conjunção da riqueza com a amizade e a boa vontade Sem essa circunstância é difícil conceber em que pode mos fundamentar nossa esperança de tirar vantagem da riqueza dos outros embora não haja dúvida de que nós naturalmente estimamos e respeitamos os ricos antes mesmo de descobrir neles urna tal dis posição favorável para conosco 10 Mas isso não é tudo Observo também que respeitamos os ricos e poderosos não apenas quando não mostram nenhuma inclinação para nos favorecer mas ainda quando estamos tão fora da esfera de sua atuação que sequer podemos supor que eles tenham esse poder Os prisioneiros de guerra são sempre tratados com um respeito con dizente com sua condição e a riqueza certamente tem um grande pa pel na determinação da condição de urna pessoa Se o nascimento e a posição social também contribuem para essa determinação isso nos fornece mais um argumento do mesmo tipo Pois o que é isso que cha mamos de um homem bemnascido senão alguém que descende de urna longa linhagem de ancestrais ricos e poderosos que ganha nossa estima em virtude de sua relação com pessoas a quem estimamos Seus ancestrais portanto mesmo estando mortos são respeitados em alguma medida graças a sua riqueza e conseqüentemente sem que esperemos nada deles 1 1 Não precisamos porém ir buscar tão longe nos prisioneiros de guerra e nos mortos os exemplos desse apreço desinteressado pela 395 Tratado da natureza humana riqueza observemos com um pouco de atenção os fenômenos que ocorrem conosco na vida corrente e no comércio humano Quando um homem dotado de razoável fortuna está em companhia de estra nhos trataos naturalmente com diferentes graus de respeito e defe rência conforme seja informado de suas diferentes fortunas e condi ções financeiras no entanto é impossível que pretenda obter e talvez sequer aceitasse da parte deles qualquer benefício Um viajante en contra ou não uma boa recepção e é tratado com mais ou menos cor tesia conforme sua comitiva e equipagem transmitam a imagem de um homem abastado ou humilde Em suma as diferentes posições sociais dos homens são em grande parte reguladas pela riqueza e isso no que diz respeito tanto aos superiores como aos inferiores aos estranhos como aos conhecidos 12 Existe é verdade uma resposta a esses argumentos extraída da influência das regras gerais Podese afirmar que acostumados a espe rar auxílio e proteção dos ricos e poderosos e a estimálos por esse motivo estendemos os mesmos sentimentos a pessoas que se asse melham a eles por sua fortuna mas de quem jamais podemos espe rar obter nenhum benefício A regra geral prevalece e por imprimir uma inclinação à imaginação arrasta consigo a paixão como se seu objeto próprio existisse e fosse real 13 Mas esse princípio não tem lugar aqui o que ficará evidente se considerarmos que para estabelecer uma regra geral e estendêla para além de seus limites apropriados é preciso haver uma certa unifor midade em nossa experiência e que o número de casos conformes à regra seja muito superior ao número de casos contrários Ora o que ocorre aqui é muito diferente Entre uma centena de homens de consideração e fortuna que encontro talvez não haja um sequer de quem eu possa esperar alguma vantagem de forma que é impossível que qualquer costume prevaleça no caso presente 14 De tudo o que foi dito concluímos que não resta nada que possa produzir em nós uma estima pelo poder e riqueza e um desprezo pela inferioridade e pobreza exceto o princípio da simpatia por meio do 396 Livro 2 Parte 2 Seção 5 qual penetramos nos sentimentos de ricos e pobres e compartilha mos seu prazer e desprazer A riqueza dá uma satisfação a seu proprietário e essa satisfação é transmitida ao observador pela ima ginação que produz uma idéia semelhante à impressão original em força e vividez Essa idéia ou impressão agradável está conectada com o amor que é uma paixão agradável E procede de um ser pensante e consciente que é o objeto mesmo do amor A paixão nasce dessa relação de impressões e dessa identidade de idéias de acordo com minha hipótese 1 5 O melhor meio de nos convencermos dessa opinião é examinar o conjunto do universo e observar a força da simpatia em todo o reino animal e a facilidade com que os sentimentos se comunicam de um ser pensante a outro Em todas as criaturas não predadoras e que não são agitadas por paixões violentas manifestase um notável desejo de companhia que faz com que se associem umas às outras sem que possam pretender tirar qualquer proveito dessa união Isso é ainda mais visível no homem que é dentre todas as criaturas do universo a que tem o desejo mais ardente de sociedade e está preparada para ela pelo maior número de circunstâncias favoráveis Somos incapa zes de formar um desejo sequer que não se refira à sociedade A com pleta solidão é talvez a maior punição que podemos sofrer Todo pra zer elanguesce quando gozado sem companhia e toda dor se torna mais cruel e intolerável Quaisquer que sejam as outras paixões que possam nos mover orgulho ambição avareza curiosidade vingança ou luxúria a alma ou princípio que anima a todas elas é a simpatia não teriam força alguma se fizéssemos inteira abstração dos pensamen tos e sentimentos alheios Ainda que todos os poderes e os elementos da natureza se unam para servir e obedecer a um só homem ainda que o sol nasça e se ponha a seu comando que os rios e mares se movam conforme a sua vontade e a terra forneça espontaneamente tudo que lhe possa ser útil ou agradável ainda assim ele será infe liz enquanto não lhe dermos ao menos uma pessoa com quem pos sa dividir sua felicidade e de cuja estima e amizade possa gozar 397 Tratado da natureza humana 1 6 Essa conclusão extraída de uma visão geral da natureza huma na pode ser confirmada por meio de exemplos particulares em que a força da simpatia é bastante notável A maior parte dos diferentes ti pos de beleza tem essa origem Mesmo que nosso primeiro objeto seja um simples pedaço de matéria inanimada e insensível raramente nos limitamos a ele ao contrário dirigimos nosso olhar também para sua influência sobre as criaturas sensíveis e racionais Um homem que nos mostra uma casa ou um edifício toma um cuidado especial entre outras coisas em salientar a comodidade dos aposentos as vantagens de sua localização e o pequeno espaço ocupado pelas escadas ante salas e corredores e de fato é evidente que a beleza consiste sobre tudo nesses detalhes A observação da comodidade dános prazer pois a comodidade é um tipo de beleza Mas de que maneira nos dá pra zer Certamente nosso interesse pessoal não entra em consideração neste caso e como essa é uma beleza de interesse e não de forma por assim dizer deve ser por mera comunicação que ela nos agrada e por simpatizarmos com o proprietário da moradia Entramos em seu interesse pela força da imaginação e sentimos a mesma satisfação que esses objetos naturalmente nele ocasionam 1 7 Essa observação se estende a mesas cadeiras escrivaninhas la reiras carruagens selas arados e a todo produto da indústria hu mana pois é uma regra universal que sua beleza deriva sobretudo de sua utilidade e adequação ao propósito a que se destinam Mas essa é uma vantagem que diz respeito apenas ao proprietário e somente pela simpatia pode interessar ao espectador 1 8 É evidente que nada torna um campo mais agradável que sua ferti lidade e poucas vantagens de ordem ornamental ou de localização serão equiparáveis a essa beleza O que ocorre com o campo ocorre tam bém com as árvores e as plantas particulares que nele crescem Uma planície invadida pelo tojo e pela giesta pode bem ser em si mesma tão bela quanto uma colina coberta de parreiras e oliveiras mas ela assim não parecerá a quem estiver familiarizado com o valor de cada uma dessas plantas Entretanto essa beleza se origina meramente da 398 Livro 2 Parte 2 Seção 5 imaginação sem fundamento naquilo que aparece aos sentidos A fertilidade e o valor referemse claramente ao uso e este à riqueza ao gozo e à abundância e mesmo que não tenhamos esperança de usufruir destes entramos neles por meio da vivacidade da fantasia partilhandoos em certo grau com o proprietário 19 Não há na arte da pintura regra mais razoável que a do equilíbrio das figuras e de sua localização da maneira mais exata possível em seus centros de gravidade próprios Uma figura mal equilibrada é desagradável porque transmite as idéias de sua queda ferimento e dor as quais se tornam dolorosas quando adquirem por simpatia algum grau de força e vividez 20 Acrescentese a isso que a parte principal da beleza de uma pes soa é um ar de saúde e vigor e uma formação tal dos membros que prometa força e atividade Essa idéia de beleza não pode ser explicada por outra coisa senão pela simpatia 21 Podemos observar em geral que as mentes dos homens são como espelhos umas das outras não apenas porque cada uma refle te as emoções das demais mas também porque as paixões sentimen tos e opiniões podem se irradiar e reverberar várias vezes deterio randose gradual e insensivelmente Assim o prazer que um homem rico obtém com seus bens projetado sobre o observador causa nes te prazer e apreço estes sentimentos por sua vez sendo objetos de percepção e simpatia aumentam o prazer do proprietário e sendo mais uma vez refletidos tornamse um novo fundamento de prazer e apreço no observador Há certamente uma satisfação original na ri queza derivada do poder que nos proporciona de desfrutar de todos os prazeres da vida e como essa é sua natureza mesma e sua essência deve ser a fonte primeira de todas as paixões que dela resultam Dentre essas paixões uma das mais consideráveis é a do amor ou apreço por parte dos demais que procede portanto de uma simpatia com os prazeres do proprietário Mas o proprietário tem ainda uma satisfa ção secundária com a riqueza resultante do amor e do apreço que adquire por meio dela e essa satisfação não passa de um segundo re 399 Tratado da natureza humana flexo daquele prazer original que procedia dele mesmo Essa satisfa ção ou vaidade secundária se torna um dos principais atrativos da ri queza sendo a razão fundamental por que a desejamos para nós mes mos ou a apreciamos nos outros Temos aqui portanto uma terceira reverberação do prazer original depois disso fica difícil distinguir entre imagens e reflexos em virtude de sua palidez e confusão Seção 6 Da benevolência e da raiva 1 As idéias podemse comparar à extensão e à solidez da matéria e as impressões especialmente as reflexivas às cores sabores odores e outras qualidades sensíveis As idéias nunca admitem uma união total ao contrário são dotadas de uma espécie de impenetrabilidade que faz com que se excluam mutuamente de modo que só são ca pazes de formar um composto por meio de sua conjunção e não por sua mistura As impressões e as paixões por sua vez são suscetí veis de uma união completa como as cores podem se misturar tão perfeitamente que cada uma delas desaparece e apenas contribui para modificar a impressão uniforme resultante do conjunto Alguns dos fenômenos mais curiosos da mente humana decorrem dessa proprie dade das paixões 2 Ao examinar os ingredientes capazes de se unir ao amor e ao ódio começo a me dar conta de uma vicissitude a que estão sujeitos to dos os sistemas filosóficos que o mundo já conheceu Quando explicamos as operações da natureza mediante uma hipótese parti cular é comum descobrirmos que em meio a um certo número de experimentos que se enquadram perfeitamente dentro dos princí pios que tentamos estabelecer há sempre um fenômeno mais obs tinado que não se dobra tão facilmente a nosso propósito Não deve mos nos surpreender que isso aconteça na filosofia da natureza A 400 Livro 2 Parte 2 Seção 6 essência e a composição dos corpos externos é tão obscura que em nossos raciocínios ou antes conjeturas a seu respeito envolvemo nos necessariamente em contradições e absurdos Mas como as per cepções da mente são perfeitamente conhecidas e como tomei todo o cuidado imaginável ao formar conclusões a seu respeito sempre esperei me manter livre das contradições que acompanham todos os outros sistemas Assim sendo a dificuldade que ora tenho em vista não é de modo algum contrária a meu sistema constitui apenas um pequeno afastamento daquela simplicidade que até aqui constituiu sua principal força e beleza 3 As paixões do amor e do ódio são sempre seguidas pela benevo lência e pela raiva ou antes ocorrem sempre em conjunção com es tas últimas É sobretudo essa conjunção que distingue tais afetos do orgulho e da humildade Pois o orgulho e a humildade são puras emoções da alma não são acompanhados de nenhum desejo e não nos impelem imediatamente à ação O amor e o ódio ao contrário não se completam em si mesmos não se detêm naquela emoção que produzem mas levam a mente a algo além dela O amor é sempre seguido por um desejo da felicidade da pessoa amada e uma aversão por sua infelicidade e o ódio produz um desejo da infelicidade e uma aversão pela felicidade da pessoa odiada Uma diferença tão notável entre esses dois pares de paixões de orgulho e humildade e de amor e ódio que não obstante se correspondem mutuamente em tantos outros aspectos merece nossa atenção 4 A conjunção desse desejo e aversão com o amor e o ódio pode ser explicada por duas hipóteses diferentes A primeira é que amor e ódio não têm apenas uma causa que os excita a saber o prazer e a dor e um objeto a que se dirigem a saber uma pessoa ou ser pensante têm também um fim que buscam atingir ou seja a felicidade ou infelici dade da pessoa amada ou odiada e a mistura de todas essas conside rações forma uma única paixão De acordo com esse sistema o amor não é senão um desejo da felicidade de outra pessoa e o ódio um desejo de sua infelicidade O desejo e a aversão constituem a própria 401 Tratado da natureza humana natureza do amor e do ódio Não são apenas inseparáveis destes mas a mesma coisa 5 Ora é evidente que isso contradiz a experiência É certo que nunca amamos uma pessoa sem desejar sua felicidade e nunca a odiamos sem querer sua infelicidade entretanto esses desejos só surgem quando a imaginação nos apresenta as idéias da felicidade ou infelicidade de nosso amigo ou inimigo não sendo absolutamente essenciais ao amor e ao ódio São os sentimentos mais evidentes e naturais desses afe tos mas não os únicos As paixões podem se expressar de uma cen tena de maneiras diferentes e podem subsistir por um período de tempo considerável sem pensarmos na felicidade ou na infelici dade de seus objetos isso prova claramente que esses desejos não são a mesma coisa que o amor ou o ódio e não constituem uma parte essencial destes 6 Podemos inferir portanto que a benevolência e a raiva são pai xões diferentes do amor e do ódio e só aparecem em conjunção com estes em virtude da constituição original da mente Assim corno a na tureza concedeu ao corpo certos apetites e inclinações que ela au menta diminui ou muda de acordo com a situação dos fluidos e dos sólidos procedeu da mesma maneira em relação à mente Conforme estejamos possuídos pelo amor ou pelo ódio o desejo corresponden te da felicidade ou da infelicidade da pessoa que é objeto dessas pai xões surge na mente e varia a cada variação dessas paixões opostas Essa ordem das coisas considerada abstratamente não é necessária O amor e o ódio poderiam não ser acompanhados de nenhum desejo desse tipo ou sua conexão particular poderia ser inteiramente inver tida Se a natureza assim o quisesse o amor poderia ter o mesmo efeito que o ódio e o ódio o mesmo efeito que o amor Não vejo nenhuma contradição em supor que um desejo de produzir a infelicidade fosse vinculado ao amor e um desejo de produzir a felicidade fosse vin culado ao ódio Se as sensações da paixão e do desejo fossem opos tas a natureza poderia ter alterado a sensação sem alterar a tendên cia do desejo tornandoos assim compatíveis 402 Livro 2 Parte 2 Seção 7 Seção 7 Da compaixão 1 Embora o desejo da felicidade ou infelicidade daqueles que ama mos ou odiamos seja um instinto arbitrário e original implantado em nossa natureza vemos no entanto que em muitas ocasiões ele pode ser imitado e surgir de princípios secundários A piedade é uma preo cupação com a infelicidade alheia e a malevolência um júbilo diante da mesma infelicidade sem que nenhuma amizade ou inimizade oca sione essa preocupação ou esse júbilo Temos pena até mesmo de es tranhos que nos são absolutamente indiferentes e quando nossa má vontade para com outrem procede de algum dano ou ofensa que so fremos não se trata propriamente de malevolência mas sim de dese jo de vingança Se examinarmos porém esses afetos da piedade e da malevolência veremos que são secundários e derivam de afetos ori ginais modificados por alguma inclinação particular do pensamento e imaginação 2 É fácil explicar a paixão da piedade com base no raciocínio anterior concernente à simpatia Temos uma idéia viva de tudo que tem rela ção conosco Todas as criaturas humanas estão relacionadas conosco pela semelhança Portanto suas existências seus interesses suas pai xões suas dores e prazeres devem nos tocar vivamente produzindo em nós uma emoção similar à original pois uma idéia vívida se con verte facilmente em uma impressão Se isso é verdade em geral quanto mais no que diz respeito à aflição e à tristeza que exercem uma in fluência mais forte e duradoura que qualquer prazer ou satisfação 3 O espectador de uma tragédia atravessa uma longa cadeia de af e tos de pesar terror indignação e outros que o poeta representa em seus personagens Como muitas tragédias têm um final feliz e como toda boa tragédia deve conter alguns reveses de fortuna o especta dor deve simpatizar com todas essas mudanças experimentando não só uma alegria fictícia mas todas as outras paixões Portanto a me 403 Tratado da natureza humana nos que se afirme que cada paixão distinta é comunicada por uma qualidade original distinta e não é derivada do princípio geral da sim patia acima explicado devese reconhecer que todas surgem desse princípio Abrir exceção para uma em particular seria muito pouco razoável Pois como todas estão primeiro presentes na mente de uma pessoa e depois aparecem na mente de outra pessoa e como sempre aparecem do mesmo modo isto é primeiro como idéia e depois como impressão a transição tem de derivar do mesmo princípio Ao menos estou seguro de que essa maneira de raciocinar seria considerada cor reta tanto na filosofia da natureza como na vida corrente 4 Acrescentese a isso que a piedade depende em grande parte da contigüidade e mesmo da visão direta do objeto o que prova que ela deriva da imaginação Isso sem mencionar que mulheres e crianças são mais dadas à piedade porque são preponderantemente guiadas por essa faculdade A mesma fragilidade que as faz desmaiar à sim ples visão de uma espada desembainhada ainda que esta se encontre nas mãos de seu melhor amigo faz que se compadeçam enormemente daqueles que passam por algum desgosto ou aflição Os filósofos que derivam essa paixão de não sei que sutis reflexões sobre a instabili dade do destino e sobre o fato de estarmos sujeitos aos mesmos infor túnios que observamos nos demais descobrirão que essa observação os contradiz assim como muitas outras que poderíamos facilmente apresentar 5 Falta apenas chamar a atenção para um fenômeno bastante inte ressante que ocorre com essa paixão às vezes a paixão comunicada por simpatia adquire força pela fraqueza da paixão original e pode até mesmo surgir por uma transição com base em afetos que não exis tem Assim por exemplo quando uma pessoa recebe um cargo de honra ou herda uma grande fortuna alegramonos tão mais com sua prosperidade quanto menos noção sense ela parece ter da mesma e quanto maior for a equanimidade e a indiferença com que a desfruta De maneira semelhante lastimamos o homem a quem os infortúnios não conseguem abater em virtude de sua resignação e se essa virtude 404 Livro 2 Parte 2 Seção 7 chega ao ponto de suprimir inteiramente todo sofrimento all sense of uneasiness ela aumenta ainda mais nossa compaixão Quando uma pes soa de mérito se vê atingida pelo que se costuma considerar uma grande desgraça formamos uma noção de sua condição e levando nossa fan tasia da causa até seu efeito usual concebemos primeiramente uma idéia vívida de seu pesar e em seguida sentimos sua impressão desprezando completamente a grandeza de espírito que põe essa pessoa acima de tais emoções ou considerando essa virtude apenas o suficiente para aumentar nossa admiração amor e ternura por ela A experiência nos mostra que um tal grau de paixão ocorre usual mente em conjunção com um tal infortúnio e mesmo que haja uma exceção no caso presente a imaginação se vê afetada pela regra geral fazendonos conceber uma idéia vívida da paixão ou antes fazen donos sentir a própria paixão exatamente como se a pessoa esti vesse de fato sendo movida por ela Pelos mesmos princípios enrubescemos pela conduta daqueles que se comportam de manei ra tola diante de nós mesmo que não mostrem nenhum senso de vergonha nem pareçam ter consciência de sua estupidez Tudo isso resulta da simpatia mas de uma simpatia parcial que vê apenas um lado de seus objetos sem considerar o outro que tem um efeito con trário e que destruiria inteiramente aquela emoção resultante da pri meira aparência 6 Temos também casos em que uma indiferença e insensibilidade diante do infortúnio aumenta nossa preocupação por aquele que o pa dece mesmo que tal indiferença não proceda de uma virtude ou mag nanimidade O fato de um assassinato ser cometido contra pessoas que se encontravam adormecidas e sentindose em plena segurança é considerado um agravante de modo semelhante os historiadores observam que um príncipe infante mantido prisioneiro nas mãos de seus inimigos será tão mais digno de compaixão quanto menos cons ciência tiver de sua infeliz condição Como nós de nosso lado co nhecemos a situação lamentável em que a pessoa se encontra isso nos dá uma idéia vívida e uma sensação de tristeza que é a paixão que geral 405 Tratado da natureza humana mente acompanha tal situação e essa idéia se torna ainda mais viva e a sensação mais violenta pelo contraste com a segurança e a indife rença exibidas pela própria pessoa Um contraste seja de que tipo for nunca deixa de afetar a imaginação sobretudo quando apresentado pelo próprio objeto e a piedade depende inteiramente da imaginação 6 Seção 8 Da malevolência e da inveja 1 Devemos agora explicar a paixão da malevolência cujos efeitos imi tam os do ódio como os da piedade imitam os do amor e que nos proporciona um contentamento diante do sofrimento e da infelicidade dos demais sem que tenhamos sofrido qualquer ofensa ou dano de sua parte 2 Os homens são tão pouco governados pela razão em seus senti mentos e opiniões que julgam os objetos mais por comparação que por seu mérito e valor intrínsecos Quando a mente considera um de terminado grau de perfeição ou está acostumada a ele tudo aquilo que não atinge esse grau ainda que de fato seja digno de apreço terá sobre as paixões o mesmo efeito que se fosse defeituoso e mau Essa é uma qualidade original da alma similar à que experimentamos to dos os dias em nosso corpo Se um homem aquecer uma mão e esfriar a outra a mesma água lhe parecerá simultaneamente fria e quente segundo as diferentes disposições de seus órgãos Um baixo grau de uma qualidade qualquer sucedendose a um grau mais alto dá a 6 Para evitar qualquer ambigüidade devo observar que quando oponho a imaginação à me mória refirome em geral à faculdade que apresenta nossas idéias mais fracas Em todos os outros casos e particularmente quando a oponho ao entendimento entendo por imagi nação a mesma faculdade excluíndo nossos raciocínios demonstrativos e prováveis Esta nota estava contida na edição original do Tratado Hume posteriormente a ampliou reco mendando que fosse retirada deste local e reinserida no final de 139 cf David F Norton Mary Norton op cit e o texto da NNOPT p5 1 5 Embora a edição de SBN tenha entendido que deveria manter esta nota a verdade é que a outra mais longa parece têla tornado redundante exceto pelo uso ali da palavra razão onde aqui está entendimen to NT 406 Livro 2 Parte 2 Seção 8 sensação de ser inferior ao que realmente é chegando por vezes a produzir a sensação da qualidade oposta Uma leve dor que sobre vém a uma dor violenta parece não ser nada ou antes tornase um prazer ao contrário uma dor violenta sucedendo a uma dor suave é duplamente penosa e desconfortável 3 Ninguém pode duvidar disso no que diz respeito a nossas pai xões e sensações Mas pode surgir alguma dificuldade no caso de nossas idéias e objetos Quando ao ser comparado com outros um objeto aumenta ou diminui para o olho ou para a imaginação a ima gem e a idéia do objeto continuam as mesmas e ocupam a mesma extensão na retina e no cérebro ou órgão da percepção Os olhos re fratam os raios de luz e os nervos óticos conduzem as imagens ao cé rebro da mesma maneira quer o objeto precedente tenha sido gran de ou pequeno e a imaginação tampouco altera as dimensões de seu objeto em virtude de sua comparação com outros A questão portanto é saber como partindo da mesma impressão e da mesma idéia pode mos formar juízos tão diferentes a respeito do mesmo objeto ora ad mirando seu tamanho ora desdenhando de sua pequenez Essa varia ção em nossos juízos deve certamente proceder de uma variação em alguma percepção mas como a variação não está na impressão ime diata ou na idéia do objeto ela tem de estar em alguma outra impres são que o acompanha 4 Para explicar essa questão mencionarei brevemente dois princí pios dos quais um será mais bem explicado no decorrer deste tratado e o outro já foi considerado Creio que se pode estabelecer seguramente como uma máxima geral que todo objeto que se apresenta aos sen tidos e toda imagem que se forma na fantasia são acompanhados de alguma emoção ou movimento proporcional dos espíritos animais e por mais que o costume nos torne insensíveis a essa sensação e nos faça confundila com o objeto ou com a idéia será fácil separálos e distinguilos por meio de experimentos cuidadosos e precisos Para citar apenas os casos da extensão e do número é evidente que qual quer objeto muito grande como por exemplo o oceano uma extensa 407 Tratado da natureza humana planície uma vasta cadeia de montanhas uma imensa floresta ou qualquer coleção muito numerosa de objetos como um exército uma frota ou uma multidão desperta na mente uma sensível emoção e que a admiração que nasce com a aparição de tais objetos é um dos prazeres mais intensos que a natureza humana é capaz de experimen tar Ora como essa admiração aumenta ou diminui com o aumento ou a diminuição dos objetos podemos concluir de acordo com os prin cípios anteriores7 que ela é um efeito composto procedente da con junção de diversos efeitos cada um dos quais decorre de uma parte da causa Portanto cada parte da extensão bem como cada unidade numérica quando concebida pela mente vem acompanhada de uma emoção separada Essa emoção nem sempre é agradável entretanto por sua conjunção com outras e porque agita os espíritos animais no grau adequado contribui para produzir a admiração que é sempre agradável Se admitimos isso no que diz respeito à extensão e ao nú mero não poderemos ter dificuldade quanto à virtude e ao vício à inteligência e à estupidez à riqueza e à pobreza à felicidade e à infe licidade e a outros objetos dessa espécie que são sempre acompa nhados de uma evidente emoção 5 O segundo princípio que assinalarei é o de nossa adesão a regras gerais que tão poderosa influência exerce sobre as ações e o entendi mento e é capaz de se impor aos próprios sentidos Quando vemos pela experiência que um objeto está sempre acompanhado de outro todas as vezes em que o primeiro aparece ainda que tenha sofrido transformações importantes apressamonos naturalmente a conce ber o segundo e a formar dele uma idéia tão viva e forte como se houvéssemos inferido sua existência mediante a conclusão mais le gítima e autêntica de nosso entendimento Nada pode desfazer essa ilusão nem mesmo nossos sentidos os quais em vez de corrigir esse falso juízo são freqüentemente pervertidos por ele e parecem mes mo autorizar seus erros 7 Livro 1 Parte 3 Seção 15 408 Livro 2 Parte 2 Seção 8 6 A conclusão que extrairei desses dois princípios assim como da influência da comparação que mencionei anteriormente é bastante breve e decisiva Todo objeto se faz acompanhar de alguma emoção proporcional a ele um objeto grande de uma emoção grande e um objeto pequeno de uma emoção pequena Portanto um objeto grande que sucede a um pequeno faz com que uma grande emoção suceda a uma pequena Ora uma grande emoção sucedendo a uma pequena tornase ainda maior ultrapassando sua proporção usual Mas como costuma haver um grau determinado de emoção acompanhando cada magnitude de um objeto quando a emoção aumenta imaginamos naturalmente que o objeto também aumentou O efeito leva nossa atenção para sua causa usual ou seja passamos de um determinado grau de emoção para uma determinada magnitude do objeto e não consideramos que a comparação pode mudar a emoção sem mudar nada no objeto Aqueles que estão familiarizados com a parte me tafísica da óptica e sabem como transferimos aos sentidos os juízos e conclusões do entendimento compreenderão facilmente toda essa operação 7 Mas deixando de lado essa nova descoberta de que eiste uma impressão acompanhando secretamente cada idéia temos de admi tir ao menos o princípio do qual surgiu tal descoberta que os objetos pa recem maiores ou menores pela comparação com outros Temos tantos exem plos disso que é impossível duvidar de sua veracidade Ora é desse princípio que derivo as paixões da malevolência e da inveja 8 É evidente que devemos obter uma satisfação ou um desprazer maior ou menor ao refletir sobre nossa própria condição e sobre as circunstâncias que nos cercam conforme estas pareçam mais ou menos felizes ou infelizes e proporcionalmente aos graus de rique za poder mérito e reputação que pensamos possuir Ora como rara mente julgamos os objetos por seu valor intrínseco como ao con trário as noções que deles formamos resultam de uma comparação com outros objetos seguese que avaliamos nossa própria felicida de ou infelicidade segundo observemos uma porção maior ou menor 409 Tratado da natureza humana de felicidade ou de infelicidade nos demais e é em conseqüência disso que sentimos dor ou prazer A infelicidade de outrem nos dá uma idéia mais viva de nossa própria felicidade e sua felicidade de nossa infeli cidade A primeira portanto produz satisfação e a última desprazer 9 Eis aqui portanto uma espécie de piedade às avessas caracteri zada pelo surgimento no observador de sensações contrárias às ex perimentadas pela pessoa que ele considera Podemos observar em geral que em qualquer tipo de comparação o primeiro objeto sem pre nos faz obter do segundo com o qual é comparado uma sensa ção contrária à que surge quando ele próprio é considerado direta e imediatamente Um objeto pequeno faz um grande parecer ainda maior Um objeto grande faz um pequeno parecer menor A feiúra em si mesma produz desprazer mas nos faz obter um novo prazer por seu contraste com um objeto belo cuja beleza ela aumenta ao contrário a beleza que por si mesma produz prazer faz com que ex perimentemos uma dor maior por seu contraste com algo feio cuja deformidade ela aumenta O mesmo deve se passar portanto com a felicidade e a infelicidade A observação direta do prazer de outrem naturalmente nos dá prazer e em conseqüência disso produz dor quando esse prazer é comparado com o nosso A dor alheia consi derada em si mesma é dolorosa para nós mas aumenta a idéia de nossa própria felicidade dandonos prazer 1 O Não é de se estranhar que possamos experimentar uma sensação inversa partindo da felicidade e da infelicidade dos demais Pois ve mos que a mesma comparação pode nos proporcionar uma espécie de malevolência contra nós mesmos fazendo que nos alegremos com nossas dores e nos entristeçamos com nossos prazeres Assim quando estamos satisfeitos com nossa situação presente a lembrança de dores passadas é agradável em contrapartida nossos prazeres passados nos provocam um malestar quando no presente não temos nada equi valente Uma vez que a comparação é do mesmo tipo que aquela que fazemos quando refletimos sobre os sentimentos alheios ela deve vir acompanhada dos mesmos efeitos 4 1 0 Livro 2 Parte 2 Seção 8 1 1 Mais ainda Uma pessoa pode estender essa malevolência contra si mesma também à sua sorte presente chegando ao ponto de pro positadamente buscar a aflição e aumentar suas dores e tristezas Isso pode ocorrer em duas ocasiões Primeira quando do sofrimento e in fortúnio de um amigo ou ente querido Segunda quando sente remor sos por um crime de que é culpada É do princípio de comparação que surgem esses dois apetites irregulares pelo mal Uma pessoa que se entrega a um prazer enquanto seu amigo passa por momentos de afli ção sente a dor de seu amigo nela refletida ainda mais sensivelmente pela comparação com seu próprio prazer original É verdade que esse contraste também deveria avivar o prazer presente Mas como aqui supostamente a tristeza é a paixão predominante qualquer adição passa para o seu lado é engolida por ela sem influenciar em nada o afeto contrário O mesmo se passa com as penitências que os ho mens infligem a si mesmos por seus pecados e erros passados Quan do um criminoso pensa na punição que merece a idéia de tal punição é ampliada pela comparação com seu conforto e satisfação presen tes o que o força de alguma maneira a procurar o desconforto a fim de evitar um contraste tão desagradável 12 Esse raciocínio explica também a origem da inveja além da male volência A única diferença entre essas paixões é que a inveja é des pertada por uma satisfação presente por parte de outrem a qual por comparação diminui nossa idéia de nossa própria satisfação ao pas so que a malevolência é o desejo não provocado de causar mal a al guém a fim de extrair um prazer da comparação A satisfação que é objeto de inveja é em geral superior à nossa A superioridade do ou tro parece naturalmente nos obscurecer apresentandonos uma com paração desagradável Mesmo que haja inferioridade porém deseja mos uma distância maior que possa aumentar ainda mais a idéia de nós mesmos Quando essa distância diminui a comparação é menos vantajosa para nós e conseqüentemente nos dá menos prazer sen do até mesmo desagradável É daí que surge aquela espécie de inveja que os homens sentem quando percebem que seus inferiores deles 41 1 Tratado da natureza humana se aproximam ou com eles se emparelham na perseguição da glória ou da felicidade Um homem que se compara com seu inferior extrai um prazer dessa comparação e quando a inferioridade decresce pela elevação do inferior aquilo que deveria ter sido apenas uma diminui ção do prazer se torna uma verdadeira dor em virtude de uma nova comparação com sua condição anterior 13 Vale observar a respeito dessa inveja que decorre de uma superio ridade nos demais que não é a grande desproporção entre nós e a outra pessoa que a produz mas ao contrário nossa proximidade Um sol dado raso não sente de seu general a mesma inveja que sente de seu sargento ou cabo um escritor ilustre não encontra tanta inveja por parte de reles escrevinhadores de encomenda quanto de autores de nível semelhante ao seu Podese pensar é verdade que quanto maior a desproporção maior deverá ser o desconforto resultante da com paração Mas podemos considerar por outro lado que uma grande desproporção corta a relação e nos impede de comparar a nós mes mos com aquilo que está distante de nós ou ao menos diminui os efeitos da comparação A semelhança e a proximidade sempre pro duzem uma relação de idéias e quando esses laços são destruídos por mais que outros acidentes possam reunir as duas idéias como elas não possuem um vínculo ou qualidade que as conecte na imagi nação é impossível que permaneçam unidas por muito tempo ou que exerçam uma influência considerável uma sobre a outra 14 Ao considerar a natureza da ambição observei que os poderosos extraem um duplo prazer da autoridade quando comparam sua pró pria condição com a de seus servos e que essa comparação tem uma dupla influência porque é natural e proposta pelo próprio objeto Quando ao realizar uma comparação a fantasia não passa facilmen te de um objeto ao outro a ação da mente em grande parte se inter rompe e a fantasia para considerar o segundo objeto tem de reco meçar como se fosse do zero Nesse caso a impressão que acompanha todo objeto não parece maior por suceder a uma impressão menor do mesmo tipo ao contrário essas duas impressões são distintas e 412 Livro 2 Parte 2 Seção 8 produzem efeitos distintos sem comunicação entre si A falta de rela ção nas idéias quebra a relação das impressões e tal separação impe de sua operação e influência mútuas 1 5 Para confirmar isso podemos observar que a proximidade nos graus de mérito não é suficiente para despertar a inveja devendo ser auxiliada por outras relações Um poeta não é dado a invejar um filó sofo ou sequer um poeta de outro gênero ou de um país ou época diferentes Todas essas diferenças impedem ou enfraquecem a com paração e conseqüentemente a paixão 1 6 Essa também é a razão por que os objetos só parecem maiores ou menores quando comparados a outros da mesma espécie Aos nossos olhos uma montanha não aumenta nem diminui um cavalo mas quando vemos um cavalo flamengo junto de um galês um parece maior e o outro menor que quando vistos separadamente 1 7 Tal princípio permitenos explicar ainda aquela observação dos historiadores de que numa guerra civil um partido sempre prefere assumir o risco de apelar para um inimigo estrangeiro a ter de se sub meter a seus concidadãos Guicciardini aplica essa observação às guer ras da Itália onde as relações entre os diferentes estados não são propriamente falando senão relações de nome língua e contigüidade No entanto mesmo essas relações quando conjugadas com a superio ridade tornam a comparação mais natural e por isso também mais penosa fazendo que os homens busquem alguma outra superiori dade que não seja acompanhada de nenhuma relação e que assim influencie menos sensivelmente a imaginação A mente rapidamente percebe suas diversas vantagens e desvantagens e vendo que sua situação é mais desconfortável nos casos em que a superioridade se dá em conjunção com outras relações procura se tranqüilizar ao máxi mo separandoas e quebrando aquela associação de idéias que torna a comparação tão mais natural e eficaz Quando não é capaz de quebrar a associação sente um desejo mais forte de suprimir a superioridade Francesco Guicciardini 14831 540 Istoria dItalia 34 NT 4 1 3 Tratado da natureza humana É por essa razão que os viajantes costumam ser tão pródigos em seus elogios aos chineses e persas ao passo que depreciam as nações vizi nhas capazes de rivalizar com seu país natal 18 Esses exemplos extraídos da história e da experiência cotidiana são ricos e interessantes Mas podemos encontrar exemplos análo gos e igualmente notáveis nas artes Se acaso um autor escrevesse um tratado do qual uma parte fosse séria e profunda e a outra leve e en graçada todos condenariam uma mistura tão estranha e o acusariam de desprezar todas as regras da arte e da crítica Essas regras da arte se fundam nas qualidades da natureza humana e a qualidade da na tureza humana que requer que toda obra possua uma coerência é o que torna a mente incapaz de passar muito rapidamente de uma pai xão e disposição a outras muito diferentes Entretanto isso não nos faz censurar o Sr Prior por reunir seus dois poemas Alma e Solomon em um mesmo volume embora esse admirável poeta tenha sido igual mente bemsucedido na alegria do primeiro e na melancolia do se gundo Mesmo que uma pessoa lesse cuidadosamente essas duas composições uma em seguida à outra sentiria pouca ou nenhuma dificuldade em trocar de paixão E por quê Porque considera essas duas obras inteiramente diferentes e essa ruptura entre as idéias in terrompe o progresso dos afetos impedindo que um influencie e con tradiga o outro 1 9 Um quadro que unisse um motivo heróico e outro burlesco seria monstruoso no entanto não hesitamos nem temos nenhuma difi culdade em colocar dois quadros de gêneros tão diferentes no mes mo aposento e até perto um do outro 20 Em resumo duas idéias nunca poderão afetar uma à outra seja por comparação seja pelas paixões que produzem separadamente a menos que estejam unidas por alguma relação capaz de causar uma transição fácil entre as duas idéias e conseqüentemente entre as emo ções ou impressões que as acompanham e capaz de preservar uma das Matthew Prior 1 6641 721 Poeta e diplomata inglês As obras que Hume cita são Ama or the progress of the mind e Solomon ar the vanity of the world em Poems on severa occasions NT 4 1 4 Livro 2 Parte 2 Seção 9 impressões na passagem da imaginação ao objeto da outra Esse prin cípio é bastante notável porque é análogo ao que observamos tanto a respeito do entendimento quanto das paixões Suponhamos que se apresentem a mim dois objetos que não estão conectados por nenhum tipo de relação Suponhamos que cada um desses objetos separada mente produza uma paixão e que essas duas paixões sejam contrá rias uma à outra Descobrimos pela experiência que a falta de rela ção nos objetos ou nas idéias impede a natural contrariedade das paixões e a interrupção da transição do pensamento afasta os afetos uns dos outros impedindo sua oposição O mesmo se passa também com a comparação e com base nesses dois fenômenos podemos con cluir com segurança que a relação de idéias deve auxiliar a transição entre as impressões já que sua simples ausência é capaz de impedi la e de separar coisas que naturalmente deveriam ter atuado uma sobre a outra Quando a ausência de um objeto ou qualidade supri me um efeito usual ou natural podemos concluir com certeza que sua presença contribui para a produção do efeito Seção 9 Da mistura da benevolência e da raiva com a compaixão e a malevolência Procuramos explicar assim a piedade e a malevolência Esses dois afetos surgem da imaginação de acordo com a perspectiva pela qual ela considera seu objeto Quando nossa fantasia considera diretamente os sentimentos alheios e penetra profundamente neles tornanos sensíveis a todas as paixões que observa particularmente ao pesar e à tristeza Ao contrário quando comparamos os sentimentos alheios aos nossos temos uma sensação diretamente oposta à original a sa ber sentimos uma alegria pela tristeza dos demais e uma tristeza por sua alegria Mas estes são apenas os primeiros fundamentos dos afe tos da piedade e da malevolência Em seguida outras paixões se mistu 41 5 Tratado da natureza humana ram a eles Existe sempre uma mistura de amor ou de ternura com a piedade e de ódio ou de raiva com a malevolência Devo reconhecer que essa mistura parece à primeira vista contradizer meu sistema Pois como a piedade é um desconforto e a malevolência uma alegria derivados da infelicidade alheia a piedade deveria naturalmente como em todos os outros casos produzir ódio e a malevolência amor Ten tarei solucionar essa contradição da seguinte maneira 2 Para causar uma transição das paixões é preciso uma dupla rela ção de impressões e de idéias pois uma só relação não basta para produzir esse efeito Para que possamos compreender plenamente a força dessa dupla relação no entanto devemos considerar que não é apenas a sensação presente a dor ou o prazer momentâneos que determinam o caráter de uma paixão mas sim a totalidade de sua inclinação ou tendência do início ao fim Uma impressão pode estar relacionada com outra não somente quando suas sensações são se melhantes como supusemos ao longo de todos os casos anteriores mas também quando seus impulsos ou direções são similares e cor respondentes Isso não pode ocorrer no caso do orgulho e da humil dade porque estas são apenas puras sensações sem direção nem ten dência à ação Só devemos buscar exemplos dessa relação peculiar de impressões portanto naqueles afetos que são acompanhados de um certo apetite ou desejo como as paixões do amor e do ódio 3 A benevolência ou apetite que acompanha o amor é um desejo da felicidade da pessoa amada e uma aversão por sua infelicidade assim como a raiva ou apetite que acompanha o ódio é um desejo da infelicidade da pessoa odiada e uma aversão por sua felicidade Portanto o desejo da felicidade de outrem e a aversão por sua infeli cidade são similares à benevolência e o desejo de sua infelicidade e a aversão por sua felicidade são correspondentes à raiva Ora a pieda de é um desejo da felicidade de outrem e uma aversão por sua infeli cidade e a malevolência é o apetite contrário A piedade portanto está relacionada à benevolência e a malevolência à raiva E como já constatamos que a benevolência está conectada com o amor por uma 4 1 6 Livro 2 Parte 2 Seção 9 qualidade natural e original e a raiva com o ódio concluímos que é por essa cadeia que as paixões da piedade e da malevolência se co nectam com o amor e o ódio 4 Essa hipótese está suficientemente fundamentada na experiência Quando uma pessoa por algum motivo toma a resolução de realizar uma ação ela naturalmente se lança em direção a todos os outros mo tivos ou considerações que possam fortalecer essa resolução conferin dolhe assim autoridade e influência sobre a mente Para reforçar nosso propósito buscamos motivos extraídos do interesse da honra ou do dever Não é de espantar portanto que a piedade e a benevolência ou que a malevolência e a raiva que são os mesmos desejos vindos de prin cípios diferentes misturemse a ponto de se tornar indistinguíveis Quanto à conexão entre a benevolência e o amor ou entre a raiva e o ódio como é original e primária não admite dificuldade 5 Podemos acrescentar a esse um outro experimento a saber que a benevolência e a raiva e conseqüentemente o amor e o ódio sur gem quando nossa felicidade ou infelicidade dependem de algum modo da felicidade ou da infelicidade de outra pessoa sem necessi dade de outra relação Estou certo de que a singularidade desse expe rimento parecerá uma boa justificativa para que nos detenhamos por um momento a examinálo 6 Suponhamos que duas pessoas de mesma profissão procurem em prego em uma cidade que não tem capacidade de absorver a ambas é claro que o sucesso de uma é inteiramente incompatível com o da outra e tudo que é do interesse de uma é contrário ao de sua rival e viceversa Suponhamos em seguida que dois comerciantes embo ra vivendo em partes diferentes do mundo formem uma sociedade nesse caso todos os ganhos e perdas de um se convertem imediata mente em ganhos e perdas para seu parceiro e a sorte de ambos é necessariamente a mesma Ora é evidente que no primeiro caso a contrariedade de interesses sempre produz o ódio ao passo que no segundo a união dos interesses gera o amor Vejamos a que princípios podemos atribuir essas paixões 41 7 Tratado da natureza humana 7 É claro que elas não resultam da dupla relação de impressões e idéias se considerarmos apenas a sensação presente Tomemos por exemplo o primeiro caso da rivalidade O prazer e a vantagem de um adversário são necessariamente desvantajosos e dolorosos para mim entretanto para contrabalançar sua dor e desvantagem me causam prazer e me favorecem e caso ele fracasse posso extrair daí um grau superior de satisfação Da mesma maneira o sucesso de um parcei ro me alegra mas seus infortúnios me afligem na mesma propor ção e é fácil imaginar que em muitos casos este último sentimen to possa preponderar Mas quer a sorte de um rival ou parceiro seja boa quer seja má sempre odeio o primeiro e amo o segundo 8 Esse amor que sinto por meu parceiro não pode proceder da re lação ou conexão entre nós como ocorre no caso de meu amor por um irmão ou compatriota Um rival guarda comigo uma relação qua se tão estreita quanto um parceiro pois assim como o prazer deste último me causa prazer e sua dor me causa dor assim também o pra zer do primeiro me causa dor e sua dor me causa prazer Portanto a conexão de causa e efeito é a mesma nos dois casos E se em um de les a causa e o efeito têm também a relação de semelhança no outro têm a de contrariedade que sendo também uma espécie de seme lhança deixa tudo equilibrado 9 Assim a única explicação que podemos dar para esse fenômeno é derivada do princípio acima mencionado de uma direção paralela dos afetos Nossa preocupação com nosso próprio interesse nos dá um prazer pelo prazer e uma dor pela dor de um parceiro do mesmo modo que pela simpatia sentimos uma sensação correspondente às que aparecem em qualquer pessoa que esteja em nossa presença Por ou tro lado a mesma preocupação com nosso interesse nos faz sentir dor pelo prazer e prazer pela dor de um rival e em suma a mesma con trariedade de sentimentos que surge da comparação e da malevolência Portanto como uma direção paralela dos afetos procedente do interes se pode gerar benevolência ou raiva não é de admirar que a mesma 4 1 8 Livro 2 Parte 2 Seção 9 direção paralela resultante da simpatia e da comparação tenha o mes mo efeito 10 Podemos observar em geral que é impossível fazer o bem a ou tras pessoas por qualquer motivo que seja sem sentir por elas uma ponta de ternura e afeição assim como quando prejudicamos alguém causamos ódio não apenas na pessoa que é prejudicada mas em nós mesmos Esses fenômenos sem dúvida podem ser parcialmente ex plicados por outros princípios 1 1 Surge aqui porém uma objeção importante que precisaremos examinar antes de passar adiante Procurei provar que o poder e a ri queza ou a pobreza e a inferioridade que geram amor e ódio sem pro duzir um prazer ou desprazer originais atuam sobre nós por meio de uma sensação secundária derivada de uma simpatia com a dor e com a satisfação que produzem na própria pessoa Da simpatia com seu prazer nasce o amor e com seu desprazer o ódio Mas uma máxima que acabei de estabelecer e a qual é absolutamente necessária para explicar os fenômenos da piedade e da malevolência diz que não é a sensação presente a dor e o prazer momentâneos o que determina o caráter de uma paixão mas sim a inclinação ou tendência geral dessa paixão do começo ao fim Por essa razão a piedade ou seja uma simpatia com a dor produz amor porque nos dá um interesse pela sorte dos outros boa ou má produzindo em nós uma sensação se cundária correspondente à primária e assim tem a mesma influên cia que o amor e a benevolência Se essa regra vale em um caso por tanto por que não prevalece em todos e por que a simpatia com o desprazer algumas vezes produz uma paixão além da boa vontade e da ternura Acaso convém a um filósofo alterar seu modo de racioci nar saltando de um princípio a seu contrário de acordo com o fenô meno particular que deseja explicar 12 Mencionei duas causas diferentes das quais pode resultar uma transição entre as paixões uma dupla relação de idéias e de impres sões e o que é semelhante uma conformidade entre a tendência e direção de dois desejos quaisquer derivados de princípios diferentes 4 1 9 Tratado da natureza humana Afirmo agora que quando a simpatia com o desprazer é fraca ela produz ódio ou desprezo pela primeira causa quando é forte pro duz amor ou ternura pela segunda Essa é a solução da dificuldade acima mencionada que parece tão premente E esse princípio está fun dado em argumentos tão evidentes que teríamos de estabelecêlo mes mo que não fosse necessário para a explicação de nenhum fenômeno 13 É certo que a simpatia nem sempre se limita ao momento pre sente Freqüentemente sentimos por comunicação dores e prazeres alheios que ainda não existem mas que antecipamos pela força da imaginação Suponhamos que eu visse uma pessoa inteiramente des conhecida dormindo sobre a relva correndo perigo de ser pisoteada por cavalos eu imediatamente correria para ajudála e ao fazêlo estaria sendo movido pelo mesmo princípio da simpatia que faz com que me preocupe com a aflição presente de um desconhecido A sim ples menção disso é suficiente Como a simpatia não é senão uma idéia vívida convertida em uma impressão é evidente que ao consi derar a situação futura possível ou provável de uma pessoa qualquer podemos entrar nessa situação mediante uma concepção tão viva que chegamos a fazer dela nosso próprio interesse desse modo tornamo nos sensíveis a dores e prazeres que não nos pertencem nem têm uma existência real no instante presente 14 Mas embora possamos estar pensando no futuro ao simpatizar com alguém a extensão de nossa simpatia depende em grande par te da noção sense que temos de sua situação presente Já é preciso um grande esforço de imaginação para formar mesmo dos sentimen tos presentes das outras pessoas idéias tão vivas que cheguemos a sentir nós próprios esses sentimentos mas estender essa simpatia ao futuro sem a ajuda de alguma circunstância no presente que nos to que de maneira vívida sernosia impossível Quando a infelicidade presente de uma pessoa exerce uma forte influência sobre mim a vividez da concepção não se limita apenas a seu objeto imediato ao contrário espalha sua influência por todas as idéias relacionadas pro porcionandome uma noção vívida de todas as circunstâncias que en 420 Livro 2 Parte 2 Seção 9 volvem essa pessoa sejam passadas presentes ou futuras possíveis prováveis ou certas Por meio dessa noção vívida interessome por essas circunstâncias participo delas e sinto em meu peito um movi mento simpático conforme a tudo que imagino se passar no seu Se diminuo a vividez da primeira concepção diminuo também a das idéias relacionadas como ocorre com os canos que não podem transpor tar mais água que aquela que brota da fonte Com essa diminuição destruo a perspectiva futura necessária para que eu me interesse com pletamente pela sorte alheia Posso sentir a impressão presente mas não levo minha simpatia adiante e em nenhum momento transmito a força da primeira concepção para minhas idéias dos objetos relacio nados Se for a infelicidade do outro o que se me apresenta dessa maneira tão fraca eu a recebo por comunicação e sou afetado por todas as paixões relacionadas a ela mas como não me interesso tan to a ponto de me preocupar igualmente com a boa e a má sorte dessa pessoa nunca sinto a simpatia extensa e tampouco as paixões com ela relacionadas 1 5 Agora para saber que paixões têm relação com esses diferentes tipos de simpatia devemos considerar que a benevolência é um pra zer original derivado do prazer da pessoa amada e uma dor proce dente de sua dor dessa correspondência entre as impressões surge um desejo subseqüente de seu prazer e uma aversão por sua dor Por tanto para fazer que uma paixão tenha uma direção paralela à da be nevolência precisamos sentir essas duplas impressões corresponden tes às da pessoa que consideramos uma impressão apenas seria insuficiente para esse propósito Quando simpatizamos somente com uma impressão e esta é dolorosa essa simpatia se relaciona com a raiva e o ódio em virtude do desprazer que nos transmite Mas como o caráter extenso ou restrito da simpatia depende da força da primeira simpatia seguese que a paixão do amor ou do ódio depende do mes mo princípio Uma impressão forte quando comunicada imprime uma dupla tendência às paixões a qual se relaciona com a benevo lência e o amor pela similaridade de suas direções por mais dolorosa 42 1 Tratado da natureza humana que possa ter sido a primeira impressão Uma impressão fraca e doloro sa relacionase com a raiva e o ódio pela semelhança de suas sensações Portanto a benevolência surge de um alto grau de infelicidade ou de qualquer grau com que simpatizemos fortemente o ódio ou desprezo surge de um baixo grau ou de um grau com que simpatizemos pouco o que vem a ser o princípio que eu pretendia provar e explicar 1 6 Não é apenas a razão que nos permite confiar nesse princípio mas também a experiência Um determinado grau de pobreza produz des prezo mas um grau a mais causa compaixão e benevolência Pode mos dar pouco valor a um camponês ou a um criado mas quando a infelicidade de um mendigo parece muito grande ou é retratada em cores muito vivas simpatizamos com ele em suas aflições e senti mos em nosso coração sinais evidentes de piedade e benevolência O mesmo objeto causa paixões contrárias segundo seus diferentes graus As paixões portanto devem depender de princípios que atuam nesses graus precisos de acordo com minha hipótese O aumento da simpatia tem evidentemente o mesmo efeito que o aumento da in felicidade 1 7 Uma região árida e desolada sempre parece repulsiva e desagra dável e comumente nos inspira desprezo por seus habitantes Entre tanto tal repulsa procede em grande parte de uma simpatia com os habitantes como já observamos só que de uma simpatia fraca que não vai além da sensação imediata que é desagradável A visão de uma cidade em cinzas traz sentimentos benevolentes porque entra mos tão profundamente nos interesses de seus infelizes habitantes que desejamos sua prosperidade ao mesmo tempo que sentimos sua adversidade 18 Mas embora a força da impressão geralmente produza piedade e benevolência é certo que se for levada longe demais deixa de ter esse efeito Talvez valha a pena examinar esse ponto Quando o desprazer é ele mesmo pequeno ou quando está longe de nós não prende a imaginação sendo incapaz de transmitir uma igual preocupação com o bem futuro e contingente que com o mal presente e real Quando 422 Livro 2 Parte 2 Seção 9 adquire mais força ficamos tão preocupados com os interesses da pessoa que nos tornamos sensíveis tanto a sua boa como a sua má sorte e dessa simpatia completa nascem a piedade e a benevolên cia Mas é fácil imaginar que quando o mal presente nos toca com uma força maior que a usual ele pode absorver inteiramente nossa atenção impedindo aquela dupla simpatia acima mencionada Assim por exemplo vemos que todas as pessoas mas sobretudo as mulhe res tendem a se enternecer com criminosos que vão para o cadafalso e logo imaginam que eles são extraordinariamente belos e bemapes soados entretanto quem presencia a cruel execução do suplício não sente essas emoções suaves ao contrário enchese de horror e não tem nem tempo para moderar essa sensação desagradável por meio de uma simpatia oposta 19 Mas o exemplo que mais claramente confirma minha hipótese é aquele em que ao mudar de objeto separamos a dupla simpatia até mesmo de um grau mediano da paixão e nesse caso vemos que a piedade ao invés de produzir o amor e a ternura como de costume engendra sempre o afeto contrário Quando observamos uma pessoa que sofre uma adversidade somos afetados pela piedade e pelo amor mas o autor dessa adversidade se torna objeto de nosso ódio mais profundo e é tão mais detestado quanto maior for nossa compaixão Ora por que razão deveria a mesma paixão da piedade produzir amor pela pessoa que sofre a adversidade e ódio pela pessoa que a causou senão porque neste último caso o autor mantém uma relação ape nas com a adversidade ao passo que ao considerar aquele que a pa dece olhamos para todos os lados e desejamos seu bemestar além de sentir sua aflição 20 Antes de terminar este tema observarei apenas que esse fenô meno da dupla simpatia e de sua tendência para produzir amor pode contribuir para a produção daquela afeição que naturalmente senti mos por nossos parentes e amigos O costume e a relação de paren tesco fazemnos entrar profundamente nos sentimentos das pessoas e seja qual for a sorte que imaginemos que lhes caiba ela se torna 423 Tratado da natureza humana presente a nós pela imaginação agindo como se fosse originalmente nossa Alegramonos com seus prazeres e entristecemonos com suas aflições pela mera força da simpatia Nada que lhes interesse nos é indiferente e como essa correspondência de sentimentos acom panha naturalmente o amor ela produz facilmente esse afeto Seção 1 O Do respeito e do desprezo 1 Resta agora explicar as paixões do respeito e do desprezo juntamente com o afeto amoroso com isso teremos compreendido todas as pai xões que contêm alguma mistura de amor ou de ódio Comecemos com o respeito e o desprezo 2 Ao considerar as qualidades e as particularidades das outras pes soas podemos vêlas como são em si mesmas ou comparálas com nossas próprias qualidades e particularidades ou ainda podemos conjugar essas duas maneiras de as considerar Do primeiro ponto de vista as boas qualidades alheias produzem amor do segundo humil dade e do terceiro respeito que é uma mistura dessas duas paixões Suas más qualidades do mesmo modo causam ódio orgulho ou des prezo segundo a perspectiva pela qual as examinemos 3 Que há um pouco de orgulho no desprezo e de humildade no res peito é algo que julgo tão evidente pela própria aparência ou sensa ção feeling dessas paixões que não há necessidade de provas E não é menos evidente que essa mistura resulta de uma comparação tácita entre nós e a pessoa que desprezamos ou respeitamos O mesmo homem pode causar respeito amor ou desprezo por sua condição e seus talentos conforme a pessoa que o considera passe de seu inferior para seu igual ou superior Ao mudar o ponto de vista mesmo que o objeto permaneça o mesmo sua proporção conosco se altera com pletamente e é isso que causa a alteração nas paixões Essas paixões portanto surgem por observarmos a proporção ou seja surgem por uma comparação 424 Livro 2 Parte 2 Seção 1 0 4 Já notei que a mente tem uma propensão muito mais forte para o orgulho que para a humildade e procurei estabelecer a causa desse fenômeno partindo dos princípios da natureza humana Quer se aceite ou não meu raciocínio o fenômeno está fora de dúvida e se manifes ta em diversos casos Por exemplo é ele a razão de haver uma porção muito maior de orgulho no desprezo que de humildade no respeito e também de nos sentirmos mais enaltecidos pela visão de alguém que está abaixo de nós que humilhados pela presença de alguém que está acima de nós O desprezo ou desdém está tão impregnado de orgulho que raramente se pode discernir nele outras paixões ao passo que no apreço ou respeito o amor é um ingrediente de mais peso que a humildade A paixão da vaidade é tão pronta que desperta à me nor chamada a humildade ao contrário requer um impulso mais forte para se exercer 5 Mas alguém poderia aqui perguntar de forma bastante razoável por que essa mistura só ocorre em alguns casos não aparecendo em todas as ocasiões Todos os objetos que causam amor quando situados em outra pessoa tornamse causas de orgulho quando transferidos para nós conseqüentemente quando pertencem a outros e são ape nas comparados aos que nos pertencem deveriam ser causa de hu mildade assim como de amor Da mesma forma toda qualidade que produz ódio quando diretamente considerada deveria sempre gerar orgulho por comparação e pela mistura dessas paixões do ódio e do orgulho deveria despertar desprezo ou desdém A dificuldade por tanto é saber por que alguns objetos algumas vezes causam amor ou ódio puros e nem sempre produzem as paixões mistas do respeito e do desprezo 6 Até aqui supus que as paixões do amor e do orgulho como tam bém as da humildade e do ódio são similares em suas sensações e que como que as duas primeiras são sempre agradáveis enquanto as últimas são penosas Embora isso seja universalmente verdadeiro con tudo podese observar que tanto as duas paixões agradáveis como as duas penosas apresentam algumas diferenças e mesmo contrariedades 425 Tratado da natureza humana que as distinguem Nada revigora e exalta a mente tanto quanto o orgulho e a vaidade ao mesmo tempo o amor ou a ternura antes a enfraquecem e debilitam Observase a mesma diferença entre as pai xões desagradáveis A raiva e o ódio conferem mais força a todos os nossos pensamentos e ações enquanto a humildade e a vergonha nos deprimem e desencorajam Será preciso formar uma idéia distinta des sas qualidades das paixões Lembremos que o orgulho e o ódio for talecem a alma e o amor e a humildade a enfraquecem 7 Seguese daí que embora a conformidade entre o amor e o orgu lho pelo caráter agradável de suas sensações faça que essas duas pai xões sejam despertadas pelos mesmos objetos essa outra contrarie dade é a razão pela qual elas são excitadas em graus muito diferentes A inteligência e a erudição são objetos prazerosos e eminentes sendo ade quados ao orgulho e à vaidade por essas duas características mas só têm relação com o amor pelo prazer que produzem A ignorância e a parvoíce são desagradáveis e desprezíveis o que lhes dá de maneira se melhante uma dupla conexão com a humildade e uma conexão única com o ódio Podemos portanto ter como certo que embora o mes mo objeto sempre produza amor e orgulho ou humildade e ódio se gundo suas diferentes situações ele raramente produz as duas pri meiras ou as duas últimas paixões na mesma proporção 8 É neste ponto que devemos procurar uma solução para a dificul dade antes mencionada por que certos objetos algumas vezes pro duzem amor ou ódio puros e nem sempre produzem respeito ou desprezo pela mistura de humildade ou orgulho Nenhuma qualidade alheia gera humildade por comparação a menos que produza orgulho caso se situe em nós e viceversa nenhum objeto desperta orgulho por comparação a menos que produza humildade se observado diretamente em nós Isto é evidente a sensação que os objetos produzem por com paração é sempre diretamente contrária à sua sensação original Su ponhamos portanto que se nos apresente um objeto particularmente apto a produzir amor mas não perfeitamente adequado para produ zir orgulho Esse objeto por pertencer a outra pessoa origina direta 426 Livro 2 Parte 2 Seção 1 O mente um alto grau de amor mas por comparação gera apenas um fraco grau de humildade em conseqüência disso esta última paixão quase não se faz sentir dentro do composto sendo incapaz de trans formar o amor em respeito Tal é o caso da boa índole do bom hu mor da docilidade da generosidade da beleza e de muitas outras qualidades que têm uma aptidão peculiar para produzir amor pelos demais mas não a mesma tendência para despertar orgulho em nós mesmos Por essa razão a visão dessas qualidades quando perten cem a outra pessoa produz amor puro com apenas uma leve mistu ra de humildade e respeito É fácil estender o mesmo raciocínio às paixões opostas 9 Antes de passarmos a outro assunto cabe explicar um fenôme no um tanto curioso por que comumente nos mantemos distantes daqueles que desprezamos e não permitimos que nossos inferiores cheguem muito perto de nós sequer no sentido espacial Já notamos que quase todos os tipos de idéias são acompanhados de alguma emoção inclusive as de número e de extensão e mais ainda as dos objetos considerados importantes para a vida e que por isso pren dem nossa atenção Não podemos ficar inteiramente indiferentes ao observar um homem rico ou pobre sempre sentimos ao menos uma ponta de respeito no primeiro caso e de desprezo no segundo Es sas duas paixões são contrárias mas só sentiremos essa contrarieda de se os objetos estiverem relacionados de alguma maneira de outro modo os afetos ficam totalmente separados e distintos sem jamais se encontrar Ora sempre que as pessoas se aproximam umas das ou tras a relação se estabelece e essa é a razão por que em geral senti mos um desconforto ao ver objetos tão desproporcionais como um homem rico e um homem pobre um nobre e um criado nessa situa ção de contigüidade 10 Esse desconforto comum a todos que observam tal situação deve ser ainda mais sensível para o superior pois a aproximação do inferior é vista como falta de educação e mostra que este não é sensível à desproporção nem é afetado por ela O sentimento sense da superio 42 7 Tratado da natureza humana ridade de um homem gera em todos os outros uma inclinação a se manter distantes dele e a redobrar os sinais de respeito e reverência caso se vejam obrigados a se aproximar quando não observam essa conduta isso prova que não se dão conta da superioridade do outro É por isso também que uma diferença grande nos graus de uma qua lidade qualquer é denominada distância tratase de uma metáfora co mum que por mais trivial que possa parecer fundamentase em prin cípios naturais da imaginação Uma grande diferença inclinanos a produzir uma distância as idéias de distância e diferença estão por tanto conectadas e idéias conectadas são facilmente tomadas uma pela outra Essa é em geral a origem da metáfora como teremos oca sião de observar posteriormente Seção 1 1 Da paixão amorosa ou amor entre os sexos 1 De todas as paixões compostas resultantes da mistura do amor e do ódio com outros afetos a que mais merece nossa atenção é o amor entre os sexos e isso tanto por sua força e violência como pelos curio sos princípios filosóficos em favor dos quais nos fornece um argu mento incontestável É claro que esse afeto em seu estado mais na tural deriva da conjunção de três impressões ou paixões diferentes a sensação agradável resultante da beleza o apetite carnal pela gera ção e uma afeição generosa ou benevolência O modo como a beleza origina a ternura pode ser explicado com base no raciocínio anterior A questão é saber como ela excita o apetite carnal 2 O apetite de geração quando se dá em um grau limitado é evi dentemente de uma espécie agradável e tem forte conexão com to das as emoções agradáveis Alegria júbilo vaidade e ternura todas incentivam esse desejo assim como a música a dança o vinho e a boa mesa Em contrapartida a tristeza a melancolia a pobreza e a humildade o destroem Graças a essa sua qualidade é fácil conceber por que esse desejo está conectado com o sentimento sense do belo 428 Livro 2 Parte 2 Seção 1 1 3 Há porém outro princípio que contribui para o mesmo efeito Observei que a direção paralela dos desejos constitui uma verdadeira relação e tanto quanto a semelhança de suas sensações produz uma conexão entre eles Para compreendermos plenamente o alcance dessa relação devemos considerar que qualquer desejo principal pode ser acompanhado de desejos subordinados e conectados com ele e se outros desejos têm uma direção paralela à desses desejos subordina dos isso os torna relacionados também ao desejo principal Assim a fome pode freqüentemente ser considerada uma inclinação primária da alma e o desejo de se acercar do alimento uma inclinação secun dária já que é absolutamente necessário para satisfazer àquele apetite Portanto se um objeto por meio de qualidades próprias produz em nós uma inclinação a nos aproximarmos de um prato de comida ele naturalmente aumenta nosso apetite ao contrário tudo que nos incli na a afastar de nós os alimentos contraria a fome diminuindo assim nossa inclinação em direção a eles Ora a beleza tem claramente o primeiro tipo de efeito e a fealdade o segundo E é por essa razão que aquela nos dá um apetite mais aguçado por nossos alimentos enquan to esta última é suficiente para provocar nossa repugnância diante do prato mais saboroso já inventado pela arte culinária Tudo isso se aplica facilmente ao apetite de geração 4 Dessas duas relações a saber a semelhança e um desejo parale lo resulta uma tal conexão entre o sentimento sense do belo o ape tite carnal e a benevolência que estes se tornam de certo modo inseparáveis E constatamos pela experiência que não faz diferença qual deles surge primeiro pois é quase certo que qualquer um esta rá acompanhado dos afetos relacionados Um homem cheio de dese jo sente ao menos uma afeição momentânea por aquela que é objeto desse desejo e ao mesmo tempo a imagina mais bela que de costume mas há também muitos que começam sentindo afeição e apreço pelo talento e mérito da pessoa passando destas às outras paixões O gê nero mais comum de amor é porém aquele que surge inicialmente da beleza e em seguida se difunde em afeição e apetite carnal A afei 429 Tratado da natureza humana ção ou apreço e o apetite de geração são paixões distantes demais para se unirem facilmente Aquela é talvez a paixão mais refinada da alma esta a mais grosseira e vulgar O amor pela beleza situase exatamente no meio das duas participando da natureza de ambas E é justamente por isso que é tão apropriado para produzir a ambas 5 Essa explicação do amor não é própria de meu sistema é inevitá vel em qualquer hipótese Os três afetos que compõem essa paixão são evidentemente diversos e cada um tem seu objeto distinto É cer to portanto que somente por meio de sua relação podem produzir uns aos outros Mas a mera relação das paixões ainda não é suficien te Também é necessária uma relação de idéias A beleza de uma pes soa nunca nos inspira amor por outra pessoa o que é uma prova sen sível da dupla relação de impressões e idéias Esse exemplo é bastante evidente e tomandoo por base podemos formar um juízo sobre os demais 6 Visto de outro ângulo esse caso também pode servir para ilus trar algo que salientei acerca da origem do orgulho e da humildade do amor e do ódio Observei que embora o eu seja o objeto do pri meiro par de paixões e uma outra pessoa o objeto do segundo tais objetos sozinhos não podem ser as causas dessas paixões pois cada um está relacionado com dois afetos contrários os quais desde o primeiro instante teriam de se destruir mutuamente Eis portanto a situação da mente tal como já a descrevi Ela possui determinados órgãos naturalmente aptos a produzir uma paixão essa paixão quan do produzida naturalmente dirige a atenção para um determinado objeto Mas como isso não é suficiente para produzir a paixão é pre ciso haver alguma outra emoção que por uma dupla relação de im pressões e idéias possa acionar esses princípios conferindolhes o impulso inicial Essa situação é ainda mais notável no caso do apeti te de geração O sexo oposto não é somente o objeto mas também a causa do apetite Ou seja não apenas dirigimos nosso olhar para ele quando movidos por esse apetite basta pensar nele para excitar o 430 Livro 2 Parte 2 Seção 12 apetite Entretanto como essa causa perde sua força por ser muito freqüente precisa ser estimulada por um novo impulso e esse im pulso constatamos que surge da beleza da pessoa isto é de uma du pla relação de impressões e de idéias Uma vez que essa dupla rela ção é necessária nos casos em que o afeto tem tanto um objeto distinto como uma causa distinta ela o será ainda mais nos casos em que o afeto tem apenas um objeto distinto sem nenhuma causa de terminada Seção 1 2 Do amor e ódio dos animais 1 Mas passando das paixões do amor e do ódio bem como de suas misturas e combinações tais como aparecem nos homens para os mesmos afetos tais como se manifestam nos animais podemos ob servar não apenas que o amor e o ódio são comuns a todas as criatu ras sensíveis como também que suas causas acima explicadas têm uma natureza tão simples que se pode facilmente supor que operam nos meros animais Não é necessária nenhuma capacidade de refle xão ou penetração Tudo é guiado por mecanismos e princípios que não são peculiares nem aos homens nem a qualquer espécie animal A conclusão que extraímos dessas observações favorece claramente o sistema anterior 2 O amor dos animais não tem por objeto somente indivíduos da mesma espécie ao contrário estendese a quase todo ser sensível e pensante É natural que um cão ame mais a um homem que a um membro de sua própria espécie e é muito comum que em troca re ceba a mesma afeição 3 Como os animais são pouco suscetíveis dos prazeres ou das do res da imaginação só podem julgar os objetos pelo bem ou mal sensí vel que estes produzem e é a partir desse bem ou mal que devem regu lar sua afeição pelos objetos Vemos assim que conforme tratemos bem ou mal um animal qualquer produzimos seu amor ou ódio se o 43 1 Tratado da natureza humana alimentarmos e lhe dermos carinho rapidamente obteremos sua afei ção ao contrário se batermos nele e o maltratarmos certamente des pertaremos sua inimizade e rancor 4 Nos animais o amor não é causado pelo parentesco tanto quan to em nossa espécie porque seus pensamentos não são tão ágeis a ponto de descobrir essas relações a não ser em casos muito óbvios Entretanto é muito fácil notar que em certas ocasiões elas exercem uma influência considerável sobre eles Assim a familiaridade que tem o mesmo efeito que o parentesco gera sempre amor nos animais seja pelos homens seja por outros animais Pela mesma razão qual quer semelhança entre eles é fonte de afeição Um boi fechado no pasto com cavalos se reunirá naturalmente a estes em busca de companhia se posso me exprimir assim mas sempre que tiver escolha irá aban donálos para desfrutar da companhia de sua própria espécie 5 Nos animais como em nossa espécie a afeição dos pais pelos fi lhos procede de um instinto peculiar 6 É evidente que a simpatia ou comunicação das paixões ocorre entre os animais tanto quanto entre os homens Medo raiva coragem e outros afetos comunicamse freqüentemente de um animal a ou tro sem que eles tenham conhecimento da causa que produziu a pai xão original Também a tristeza é recebida por simpatia e tem quase as mesmas conseqüências e desperta as mesmas emoções que em nossa espécie Os uivos e lamentos de um cão produzem uma sensí vel inquietação em seus companheiros E é notável que embora quase todos os animais ao brincar empreguem a mesma parte do corpo que usam para lutar e ajam quase da mesma maneira o leão o tigre e o gato usam suas garras o boi seus chifres o cão seus dentes o cavalo seus cascos eles evitam cuidadosamente ferir seu compa nheiro mesmo sem temer sua reação Isso é uma prova evidente do sentido que os animais têm das dores e dos prazeres uns dos outros 7 Todo mundo já observou que os cães ficam muito mais anima dos quando caçam em matilhas que quando perseguem sua presa so zinhos e é evidente que isso só pode resultar da simpatia Os caça 432 Livro 2 Parte 2 Seção 12 dores também sabem perfeitamente que esse efeito ocorre em um grau maior e até em um grau demasiado quando duas matilhas es tranhas se encontram Talvez nos fosse difícil explicar esse fenôme no se não tivéssemos experiência de um fenômeno semelhante em nós mesmos 8 A inveja e a malevolência são paixões muito notáveis nos animais São talvez mais comuns que a piedade porque requerem um esfor ço menor de pensamento e imaginação 433 Seção 1 Parte 3 Da vontade e das paixões diretas Da liberdade e da necessidade 1 Passaremos agora a explicar as paixões diretas ou seja as impres sões que resultam imediatamente do bem ou do mal da dor ou do prazer Desse tipo são as paixões de desejo e aversão tristeza e alegria esperança e medo 2 Dentre todos os efeitos imediatos da dor e do prazer o mais no tável é a VONTADE Embora rigorosamente falando a vontade não se inclua entre as paixões a plena compreensão de sua natureza e pro priedades é necessária para explicar as paixões por isso iremos tomá la aqui como tema de nossa investigação Desejo observar que entendo por vontade simplesmente a impressão interna que sentimos e de que temos consciência quando deliberadamente geramos um novo movimento em nosso corpo ou uma nova percepção em nossa mente É impossível definir essa impressão e inútil descrevêla com mais detalhe exatamente como ocorria com as impressões de orgulho e humildade ou amor e ódio Por essa razão evitaremos todas aquelas definições e distinções com 435 Tratado da natureza humana que os filósofos costumam confundir mais que esclarecer esse tema Entraremos diretamente no assunto examinando uma questão que há muito vem sendo objeto de discussão e que ocorre tão natural mente quando se trata da vontade a questão acerca da liberdade e da necessidade 3 Todos reconhecem que as operações dos corpos externos são ne cessárias e que na comunicação de seu movimento e em sua atra ção e coesão mútuas não há nenhum traço de indiferença ou liber dade Todo objeto é determinado por um destino absoluto a um certo grau e uma certa direção de movimento sendo tão incapaz de se afas tar dessa linha precisa em que se move quanto de se transformar em um anjo um espírito ou qualquer substância superior Portanto as ações da matéria devem ser vistas como exemplos de ações necessá rias e tudo que por esse aspecto estiver na mesma situação que a matéria deverá ser admitido como necessário Para saber se é este o caso das ações da mente começaremos examinando a matéria e ana lisando qual o fundamento da idéia de uma necessidade em suas ope rações e por que concluímos que um corpo ou ação é a causa infalí vel de outro corpo ou ação 4 Já observei que não há um só caso em que a conexão última en tre os objetos pudesse ser descoberta por nossa razão ou por nossos sentidos e que somos incapazes de penetrar tão profundamente na essência e estrutura dos corpos a ponto de perceber o princípio de que depende sua influência mútua Só temos conhecimento de sua união constante e é dessa união constante que deriva a necessidade Se os objetos não possuíssem entre si uma conjunção uniforme e re gular jamais chegaríamos a uma idéia de causa e efeito e com tudo isso a necessidade contida nessa idéia não é mais que uma determi nação da mente a passar de um objeto àquele que comumente o acom panha e a inferir a existência de um da existência do outro Eis aqui portanto dois pontos que devemos considerar essenciais à necessi dade a união constante e a inferência da mente onde quer que os des cubramos teremos de admitir uma necessidade Ora como a única 436 Livro 2 Parte 3 Seção 1 necessidade existente nas ações da matéria é a que deriva dessas cir cunstâncias e como não é por meio de uma visão direta insight da essência dos corpos que descobrimos sua conexão a ausência dessa visão insight enquanto a união e a inferência se mantêm nunca em nenhum caso eliminará a necessidade É a observação da união que produz a inferência por essa razão poderíamos considerar que basta provar a existência de uma união constante nas ações da mente para estabelecer a inferência juntamente com a necessidade dessas ações Mas para conferir mais força a meu raciocínio examinarei separa damente esses pontos provarei em primeiro lugar pela experiên cia que nossas ações possuem uma união constante com nossos motivos temperamentos e com as circunstâncias que nos envolvem e em seguida considerarei as inferências que extraímos dessa união 5 Um exame ligeiro e geral do curso comum dos assuntos huma nos será suficiente para tal fim Como quer que examinemos esses assuntos esse princípio se confirma Quer consideremos os homens segundo suas diferenças de sexo idade governo condição ou méto do de educação podemos discernir a mesma uniformidade e regula ridade na operação dos princípios naturais Causas semelhantes sem pre produzem efeitos semelhantes do mesmo modo que na ação mútua dos elementos e poderes da natureza 6 Diferentes árvores produzem regularmente frutos de sabores di ferentes essa regularidade é reconhecida como exemplo de necessi dade e da existência de causas nos corpos externos Mas serão os produtos de Guienne e de Champagne mais regularmente diferentes que os sentimentos as ações e as paixões dos dois sexos dos quais um se distingue por sua força e maturidade e o outro por sua sutile za e suavidade 7 Serão as transformações de nosso corpo da infância à velhice mais regulares e certas que as de nossa mente e conduta E alguém que esperasse que uma criança de quatro anos de idade levantasse um peso de trezentas libras seria por acaso mais ridículo que alguém que es 43 7 Tratado da natureza humana perasse de uma criança da mesma idade um raciocínio filosófico ou uma ação prudente e bem planejada 8 Devemos certamente admitir que a coesão das partes da matéria decorre de princípios naturais e necessários por mais que tenhamos dificuldade em explicálos Ora por uma razão semelhante devemos admitir que a sociedade humana se funda em princípios semelhan tes e nossa razão neste último caso é ainda melhor que no primei ro porque não apenas observamos que os homens sempre buscam a sociedade mas além disso podemos explicar os princípios em que se funda essa propensão universal Pois será o ajuste de duas placas de mármore mais certo que a cópula de dois jovens selvagens de sexo oposto Será que essa cópula gera filhos mais uniformemente que gera um cuidado por parte dos pais com sua segurança e preservação E após os filhos terem alcançado a idade da razão graças ao cuidado dos pais serão os inconvenientes de sua separação mais certos que sua previsão desses inconvenientes e seu cuidado em evitálos por meio de uma forte união e associação 9 A pele os poros os músculos e os nervos de um trabalhador são diferentes daqueles de um homem de qualidade assim também seus sentimentos ações e maneiras As diferentes condições sociais influen ciam toda a constituição externa e interna e essas diferentes condi ções decorrem necessária porque uniformemente dos princípios ne cessários e uniformes da natureza humana Os homens não podem viver sem sociedade e não podem se associar sem governo O gover no cria distinções de propriedade e estabelece as diferentes classes de homens Isso produz a indústria o comércio manufaturas ações judiciais guerras ligas alianças travessias viagens cidades frotas de navios portos e todas as outras ações e objetos que causam uma tal diversidade e ao mesmo tempo mantêm uma tal uniformidade na vida humana 10 Se um viajante regressando de um país distante nos dissesse ter visto um clima a cinqüenta graus de latitude norte onde todas as frutas amadurecem e atingem seu pleno desenvolvimento no inver 438 Livro 2 Parte 3 Seção 1 no deteriorandose no verão do mesmo modo como na Inglaterra elas se produzem e se deterioram nas estações contrárias encontra ria poucas pessoas crédulas o bastante para acreditarem nele Incli nome a pensar que tampouco encontraria muito crédito um viajante que nos informasse da existência de pessoas exatamente com o mes mo caráter que as descritas na República de Platão ou então no Leviatã de Hobbes Existe um curso geral da natureza nas ações humanas as sim como nas operações do Sol e do clima Existem também caracteres peculiares a diferentes nações e a diferentes pessoas e outros que são comuns a toda a humanidade O conhecimento desses caracteres fun dase na observação da uniformidade das ações deles decorrentes e essa uniformidade constitui a própria essência da necessidade 1 1 Só posso imaginar um modo de eludir esse argumento negar aqui lo que o fundamenta ou seja a uniformidade das ações humanas Enquanto as ações tiverem uma união e conexão constante com a si tuação e o temperamento dos agentes nós de fato admitiremos a exis tência de uma necessidade por mais que em palavras nos recusemos a reconhecêla Mas talvez alguém encontre um pretexto para negar essa união e conexão regular Pois o que é mais caprichoso que as ações humanas O que é mais inconstante que os desejos do homem E que criatura se afasta mais não somente da boa razão mas de seu pró prio caráter e disposição Uma hora um instante é suficiente para fazêlo passar de um extremo ao outro e destruir aquilo que custou tanto esforço e trabalho para Construir A necessidade é regular e cer ta A conduta humana é irregular e incerta Esta portanto não proce de daquela 12 A isso respondo que ao julgar as ações humanas devemos pro ceder com base nas mesmas máximas que quando raciocinamos acerca dos objetos externos Quando dois fenômenos se apresentam em uma conjunção constante e invariável adquirem uma tal conexão na ima ginação que esta passa de um ao outro sem qualquer dúvida ou hesi tação Abaixo desse porém há diversos graus inferiores de evidên cia e probabilidade uma única contrariedade na experiência não 439 Tratado da natureza humana destrói inteiramente nosso raciocínio A mente pesa as experiências contrárias e subtraindo as inferiores das superiores procede segundo o grau de segurança ou evidência que resta Mesmo quando essas ex periências contrárias são exatamente equivalentes não suprimimos a noção de causas e de necessidade supomos que a contrariedade usual decorre da operação secreta de causas contrárias e concluímos que o acaso ou indiferença se deve a nosso conhecimento imperfeito e está apenas em nosso julgamento não nas próprias coisas as quais são igualmente necessárias em todos os casos ainda que não apare çam de maneira igualmente constante ou certa Nenhuma união pode ser mais constante e certa que a de algumas ações com determinados motivos e caracteres se em outros casos a união é incerta essa in certeza não é maior que a de algumas operações dos corpos Não po demos extrair do primeiro tipo de irregularidade uma conclusão que não se siga igualmente do outro 13 Costumase dizer que os loucos não têm liberdade A julgar por suas ações porém estas são menos regulares e constantes que as ações das pessoas lúcidas e conseqüentemente estão mais afastadas da ne cessidade Nosso modo de pensar sobre este ponto é portanto abso lutamente incoerente mas tratase de uma conseqüência natural des sas idéias confusas e da falta de definição dos termos que comumente empregamos em nossos raciocínios sobretudo neste assunto 14 Devemos mostrar agora que assim como a união entre os moti vos e as ações tem a mesma constância que a união entre quaisquer operações naturais assim também sua influência sobre o entendimen to é a mesma determinandonos a inferir a existência de uns da exis tência dos outros Se for assim não haverá nenhuma circunstância conhecida que faça parte da conexão e produção das ações da maté ria e não se encontre também em todas as operações da mente por conseguinte será um absurdo manifesto atribuir necessidade àque las e recusála a estas 15 Não há nenhum filósofo cujo juízo esteja tão preso a esse siste ma imaginário da liberdade que não reconheça a força da evidência mo 440 Livro 2 Parte 3 Seção 1 ral e não a tome como um fundamento razoável para suas ações tan to na especulação como na prática Ora a evidência moral não é mais que uma conclusão acerca das ações dos homens derivada da consi deração de seus motivos temperamentos e situações Assim quan do vemos certos caracteres e figuras traçados sobre o papel inferi mos que a pessoa que os produziu queria afirmar certos fatos a morte de César o sucesso de Augusto a crueldade de Nero e lembrandonos de muitos outros testemunhos coincidentes concluímos que um dia tais fatos realmente existiram e que tantas pessoas sem nenhum interesse nunca se uniriam para nos enganar sobretudo porque ao tentar fazêlo afirmando que esses fatos eram recentes e univer salmente conhecidos apenas se exporiam ao escárnio de todos os seus contemporâneos O mesmo tipo de raciocínio está presente na política na guerra no comércio na economia de fato está tão com pletamente entranhado na vida humana que é impossível agir ou sequer subsistir um só momento sem recorrer a ele O príncipe que impõe uma taxa a seus súditos espera sua aquiescência O general que co manda um exército conta com um certo grau de coragem O comer ciante confia na lealdade e na habilidade de seu gerente O homem que dá ordens para seu jantar não duvida da obediência de seus cria dos Em suma como nada nos interessa tanto quanto nossas próprias ações e as dos outros a maior parte de nossos raciocínios é empre gada em juízos a respeito delas Ora afirmo que quem raciocina des sa maneira crê ipso facto que os atos da vontade decorrem da necessi dade e se o nega não sabe o que diz 16 Considerados em si mesmos todos os objetos que chamamos de causas e efeitos são tão distintos e separados uns dos outros quanto de qualquer outra coisa na natureza jamais poderíamos nem sequer pelo exame mais rigoroso inferir a existência de um da existência do outro Somente pela experiência e observação de sua união constante somos capazes de fazer essa inferência e assim mesmo a inferência não passa de um efeito do costume sobre a imaginação Não devemos aqui nos contentar em dizer que a idéia de causa e efeito decorre de 441 Tratado da natureza humana objetos constantemente unidos temos de afirmar que ela é a mesma coisa que a idéia desses objetos e a conexão necessária não é descober ta por uma conclusão do entendimento sendo apenas uma percep ção da mente Portanto sempre que observamos a mesma união e sempre que a união age da mesma maneira sobre a crença e a opinião temos uma idéia de causas e de necessidade ainda que às vezes possa mos evitar essas expressões Em todos os casos passados que pudemos observar o movimento de um corpo é seguido por impacto do movi mento de outro corpo É impossível à mente penetrar além disso Dessa união constante ela forma a idéia de causa e efeito e por sua influên cia sente a necessidade Ora como há a mesma constância e a mesma influência naquilo que denominamos evidência moral não precisamos de mais nada O que resta só pode ser pura discussão verbal 1 7 De fato quando consideramos quão adequadamente as evidên cias naturais e morais se aglutinam formando uma cadeia única de ar gumentação não hesitaremos em admitir que têm a mesma natureza e derivam dos mesmos princípios O prisioneiro que não tem dinheiro ou influência descobre a impossibilidade de sua fuga tanto pela obs tinação do carcereiro quanto pelos muros e barras que o cercam e em todas as suas tentativas de alcançar a liberdade prefere trabalhar a pedra e o ferro destes à natureza inflexível daquele O mesmo pri sioneiro quando conduzido ao cadafalso prevê sua morte com igual certeza pela constância e fidelidade de seus sentinelas como pela ope ração do machado ou da roda Sua mente percorre uma certa seqüên cia de idéias a recusa dos soldados a consentir em sua fuga a ação do carrasco a separação da cabeça e do corpo o sangramento os movimentos convulsivos a morte Temos aqui uma cadeia em que se conectam causas naturais e ações voluntárias mas a mente não sente nenhuma diferença entre elas ao passar de um elo ao outro e não está menos certa do resultado futuro que se este estivesse co nectado com as impressões presentes da memória e dos sentidos por uma cadeia de causas aglutinadas por aquilo que costumamos chamar uma necessidade física A experiência da mesma união tem o mesmo 442 Livro 2 Parte 3 Seção 2 efeito sobre a mente quer os objetos unidos sejam motivos volições e ações quer sejam figuras e movimentos Podemos mudar os no mes das coisas mas sua natureza e sua operação sobre o entendimento nunca mudam 18 Ouso afirmar com toda segurança que ninguém há de tentar re futar esses raciocínios a menos que altere minhas definições e atri bua um sentido diferente aos termos causa efeito necessidade liberdade e acaso De acordo com minhas definições a necessidade é parte es sencial da causalidade conseqüentemente a liberdade ao suprimir a necessidade suprime também as causas e é o mesmo que o acaso Como normalmente se pensa que o acaso implica uma contradição ou ao menos que é diretamente contrário à experiência os mesmos argumentos podem sempre ser utilizados contra a liberdade ou livre arbítrio Se alguém alterar as definições não posso pretender argu mentar antes de conhecer o sentido que atribui a esses termos Seção 2 Continuação do mesmo tema 1 Creio que podemos dar três razões para a prevalência da doutri na da liberdade por mais absurda que ela possa ser em um sentido e ininteligível em outro Primeira razão Após termos realizado uma ação mesmo que reconheçamos ter sido influenciados por conside rações e motivos particulares é difícil persuadirmos a nós mesmos de que fomos governados pela necessidade e de que nos teria sido inteiramente impossível agir de forma diferente pois a idéia de ne cessidade parece implicar algo de força violência e constrangimento coisas de que não temos consciência ao agir Poucos são capazes de fazer uma distinção entre a liberdade de espontaneidade como é cha mada na escolástica e a liberdade de indiferença ou seja entre aquilo que se opõe à violência e aquilo que significa uma negação da neces sidade e das causas O primeiro sentido da palavra é o mais comum e uma vez que é somente essa espécie de liberdade que nos interessa 443 Tratado da natureza humana preservar nossos pensamentos têmse voltado sobretudo para ela confundindoa quase sempre com a outra 2 Em segundo 1 ugar há até mesmo uma falsa sensação ou experiência da liberdade de indiferença que é vista como um argumento em fa vor de sua existência real A necessidade de uma ação seja da maté ria seja da mente não é rigorosamente falando uma qualidade do agente mas sim de algum ser pensante ou inteligente que possa con siderar de fora a ação consistindo na determinação de seu pensamento a inferir a existência dessa ação a partir de objetos preexistentes Em contrapartida a liberdade ou o acaso não é senão a falta dessa deter minação e uma certa indefinição looseness que sentimos em passar ou não passar da idéia desses objetos à idéia da ação Pois bem pode mos observar que embora ao refletir sobre as ações humanas nós raramente sintamos uma tal indefinição ou indiferença é muito co mum acontecer que ao realizarmos nossas próprias ações sejamos sensíveis a algo semelhante E como todos os objetos relacionados ou semelhantes são facilmente tomados uns pelos outros isso tem sido utilizado como uma prova demonstrativa ou mesmo intuitiva da liberdade humana Sentimos que nossas ações na maioria das ve zes estão submetidas a nossa vontade e imaginamos sentir que a von tade ela mesma não está submetida a nada porque quando diante da negação disso vemonos incitados a pôlo à prova sentimos que nossa vontade se move facilmente em todas as direções produzindo uma imagem de si própria até mesmo ali onde não se estabeleceu Convencemonos de que essa imagem ou movimento fraco poderia terse completado na própria coisa porque se isso também for nega do descobrimos ao tentar uma segunda vez que este é realmente o caso Mas esse esforço é todo em vão Por mais caprichosas e irregu lares que sejam as ações que então pratiquemos como o desejo de mostrar nossa liberdade é seu único motivo nunca podemos nos liber tar das amarras da necessidade Podemos imaginar que sentimos uma liberdade dentro de nós mas um espectador comumente será capaz de inferir nossas ações de nossos motivos e de nosso caráter E mesmo 444 Livro 2 Parte 3 Seção 2 quando não pode fazêlo em geral conclui que o poderia caso esti vesse perfeitamente familiarizado com todas as circunstâncias de nossa situação e temperamento e com os mecanismos mais secretos de nossa constituição e disposição Ora tal é a essência mesma da necessidade conforme a doutrina anterior 3 Uma terceira razão por que a doutrina da liberdade é em geral mais bemaceita que a doutrina antagônica provém da religião que tem sido desnecessariamente envolvida nessa questão Em discussões filosófi cas não há método de raciocínio mais comum mas também mais con denável que tentar refutar uma hipótese a pretexto de suas conseqüên cias perigosas para a religião e a moral Quando uma opinião nos leva a absurdos é certamente falsa mas não é certo que uma opinião seja falsa porque tem conseqüências perigosas Argumentos como esse portanto deveriam ser rigorosamente evitados porque não ajudam em nada na descoberta da verdade servindo apenas para tornar odiosa a pessoa do adversário Faço essa observação de maneira geral sem pre tender tirar dela nenhuma vantagem Exponhome francamente a um exame desse tipo e ouso afirmar que a doutrina da necessidade se gundo minha explicação é não apenas inocente mas vantajosa para a religião e a moral 4 Defino a necessidade de duas maneiras de acordo com as duas definições de causa da qual ela é um componente essencial Situo a necessidade seja na união e conjunção constante de objetos seme lhantes seja na inferência da mente de um ao outro Ora em ambos os sentidos a necessidade tem sido universalmente embora tacita mente reconhecida nas escolas no púlpito e na vida comum como caracterizando a vontade do homem Ninguém jamais pretendeu ne gar que podemos fazer inferências concernentes às ações humanas e que tais inferências se fundam na experiência da união constante de ações semelhantes com motivos e circunstâncias semelhantes Só há duas maneiras de alguém discordar de mim ou recusandose a chamar a isso de necessidade mas enquanto compreendermos seu sentido a palavra assim espero não pode causar mal algum ou então afir 445 Tratado da natureza humana mando que há algo mais nas operações da matéria Ora se de fato é assim ou não isso não tem nenhuma relevância para a religião mes mo que seja importante para a filosofia da natureza Posso estar erra do ao afirmar que não temos idéia de nenhuma outra conexão nas ações dos corpos e ficaria contente de aprender um pouco mais so bre isso Mas tenho certeza de que não atribuo nada às ações da men te além do que se deve prontamente admitir Que ninguém portan to venha deturpar minhas palavras dizendo de maneira simplista que afirmo a necessidade das ações humanas e as coloco no mesmo pla no das operações da matéria insensível Não atribuo à vontade essa necessidade ininteligível que se supõe existir na matéria Ao contrá rio atribuo à matéria essa qualidade inteligível quer a chamemos ou não de necessidade que até a mais rígida ortodoxia reconhece ou deve reconhecer como existindo na vontade Portanto não estou alteran do nada nos sistemas estabelecidos no que diz respeito à vontade mas apenas no que se refere aos objetos materiais 5 E vou além Afirmo que essa espécie de necessidade é tão essen cial à religião e à moral que sua ausência acarretaria a total ruína de ambas e qualquer outra suposição destruiria por completo todas as leis divinas e humanas De fato como todas as leis humanas estão fun dadas em recompensas e punições admitese certamente como um princípio fundamental que esses motivos exercem uma influência sobre a mente produzindo boas ações e impedindo as más Podemos dar a essa influência o nome que bem entendermos mas como usual mente ela ocorre em conjunção com a ação o bom senso requer que a consideremos uma causa e a vejamos como um exemplo dessa ne cessidade que pretendo estabelecer 6 Esse raciocínio se mostra igualmente sólido quando aplicado às leis divinas enquanto se considerar Deus um legislador que supos tamente impõe punições e concede recompensas com o propósito de suscitar obediência Mas afirmo também que mesmo quando Deus não age na qualidade de magistrado quando o vemos como puro vin gador de crimes em virtude do caráter odioso e repulsivo destes seria 446 Livro 2 Parte 3 Seção 2 impossível sem a conexão necessária de causa e efeito nas ações hu manas não apenas que as punições infligidas fossem compatíveis com a justiça e a eqüidade moral mas também que algum ser sensato ja mais pensasse em infligilas O objeto constante e universal do ódio ou da raiva é uma pessoa uma criatura dotada de pensamento e cons ciência e quando uma ação criminosa ou nociva desperta essa pai xão ela o faz somente por sua relação ou conexão com essa pessoa De acordo com a doutrina da liberdade ou acaso porém tal conexão se reduz a nada e os homens são tão pouco responsáveis pelas ações planejadas e premeditadas quanto pelas mais casuais e acidentais As ações são por natureza temporárias e perecíveis e quando não pro cedem de alguma causa no caráter e na disposição do agente não se implantam firmemente nele nem podem redundar em sua honra quando boas ou descrédito quando más A ação em si mesma pode ser condenável pode ser contrária a todas as regras da moral e da reli gião mas a pessoa não é responsável por ela E como a ação não re sultou de nada duradouro ou constante na pessoa nem deixou atrás de si nada dessa natureza é impossível que por causa da ação a pes soa possa se tornar objeto de punição ou vingança Segundo a doutrina da liberdade portanto um homem continua tão puro e imaculado após ter cometido o mais terrível dos crimes como no momento de seu nas cimento suas ações não atingem em nada seu caráter pois não deri vam dele de modo que a perversidade das ações não pode ser usada como prova da depravação do caráter Somente segundo os princípios da necessidade alguém pode adquirir mérito ou demérito por suas ações por mais que a opinião comum se incline para a afirmação contrária Os homens entretanto são tão incoerentes consigo mesmos que embora afirmem com freqüência que a necessidade destrói intei ramente todo mérito e demérito perante a humanidade ou perante os poderes superiores continuam a raciocinar com base nesses mes mos princípios da necessidade em todos os seus juízos relativos a esse assunto As pessoas não são condenadas por aquelas más ações que praticam sem saber e casualmente sejam quais forem suas conseqüên 447 Tratado da natureza humana cias Por quê Porque as causas dessas ações são apenas momentâ neas e se esgotam nessas mesmas ações As pessoas são condenadas menos pelas más ações que praticam apressadamente e sem preme ditação que por aquelas que resultam de reflexão e deliberação Por que razão Porque a impetuosidade embora seja uma causa constante na mente opera apenas a intervalos e não contamina todo o caráter Mais ainda O arrependimento apaga por completo qualquer crime sobretu do se acompanhado de uma evidente reforma na vida e nos hábitos Como explicar isso Afirmando que as ações só tomam uma pessoa criminosa por serem provas da presença de paixões ou princípios criminosos na mente e quando por alguma alteração desses princípios deixam de ser provas legítimas deixam também de ser criminosas De acordo com a doutrina da liberdade ou acaso porém elas nunca chegaram a ser pro vas legítimas conseqüentemente nunca foram criminosas 8 Voltome agora portanto para meu adversário e peçolhe que libere seu próprio sistema dessas conseqüências odiosas antes de acu sar os outros Ou se preferir resolver essa questão junto aos filóso fos por meio de argumentos legítimos em vez de tentar convencer o povo pela retórica peçolhe que torne a considerar aquilo que apre sentei para provar que a liberdade e o acaso são sinônimos e tam bém o que eu disse a respeito da natureza da evidência moral e da regularidade das ações humanas Quando tiver examinado cuidado samente esses raciocínios sem dúvida alguma há de me conceder a vitória Portanto tendo provado que todas as ações da vontade têm causas particulares passo agora a explicar quais são essas causas e como elas operam Seção 3 Dos motivos que influenciam a vontade 1 Nada é mais comum na filosofia e mesmo na vida corrente que falar no combate entre a paixão e a razão dar preferência à razão e afirmar que os homens só são virtuosos quando se conformam a seus 448 Livro 2 Parte 3 Seção 3 preceitos Afirmase que toda criatura racional é obrigada a regular suas ações pela razão e se qualquer outro motivo ou princípio dispu ta a direção de sua conduta a pessoa deve se opor a ele até subjugálo por completo ou ao menos até tornálo conforme àquele princípio superior A maior parte da filosofia moral seja antiga ou moderna parece estar fundada nesse modo de pensar E não há campo mais vas to tanto para argumentos metafísicos como para declamações popu lares que essa suposta primazia da razão sobre a paixão A eternida de a invariabilidade e a origem divina da razão têm sido retratadas nas cores mais vantajosas a cegueira a inconstância e o caráter en ganoso da paixão foram salientados com o mesmo vigor Para mos trar a falácia de toda essa filosofia procurarei provar primeiramente que a razão sozinha não pode nunca ser motivo para uma ação da vontade e em segundo lugar que nunca poderia se opor à paixão na direção da vontade 2 O entendimento se exerce de dois modos diferentes conforme julgue por demonstração ou por probabilidade isto é conforme con sidere as relações abstratas entre nossas idéias ou as relações entre os objetos que só conhecemos pela experiência Acredito que dificil mente se afirmará que a primeira espécie de raciocínio pode ser sozi nha a causa de uma ação Como seu domínio próprio é o mundo das idéias e como a vontade sempre nos põe no mundo das realidades a demonstração e a volição parecem estar por esse motivo inteiramente separadas uma da outra É verdade que a matemática é útil nas opera ções mecânicas e a aritmética em quase todas as artes e profissões Mas não é por si mesmas que elas têm influência A mecânica é a arte de regular os movimentos dos corpos para alguma finalidade ou propó sito e a única razão de empregarmos a aritmética para determinar as proporções dos números é porque com ela podemos descobrir as pro porções da influência e operação destes O comerciante deseja conhe cer a soma total de suas contas com alguém E por quê Porque as sim poderá saber que soma ao pagar sua dívida e ir ao mercado terá os mesmos efeitos que todas as parcelas individuais tomadas em conjunto 449 Tratado da natureza humana O raciocínio abstrato ou demonstrativo portanto só influencia nos sas ações enquanto dirige nosso juízo sobre causas e efeitos Isso nos leva à segunda operação do entendimento 3 É evidente que quando temos a perspectiva de vir a sentir dor ou prazer por causa de um objeto sentimos em conseqüência disso uma emoção de aversão ou de propensão e somos levados a evitar ou a abraçar aquilo que nos proporcionará esse desprazer ou essa sa tisfação Também é evidente que tal emoção não se limita a isso ao contrário faz que olhemos para todos os lados abrangendo qualquer objeto que esteja conectado com o original pela relação de causa e efei to É aqui portanto que o raciocínio tem lugar ou seja para desco brir essa relação e conforme nossos raciocínios variam nossas ações sofrem uma variação subseqüente Mas é claro que neste caso o im pulso não decorre da razão sendo apenas dirigido por ela É a pers pectiva de dor ou prazer que gera a aversão ou propensão ao objeto e essas emoções se estendem àquilo que a razão e a experiência nos apontam como as causas e os efeitos desse objeto Nunca teríamos o menor interesse em saber que tais objetos são causas e tais outros são efeitos se tanto as causas como os efeitos nos fossem indiferen tes Quando os próprios objetos não nos afetam sua conexão jamais pode lhes dar uma influência e é claro que como a razão não é senão a descoberta dessa conexão não pode ser por meio dela que os obje tos são capazes de nos afetar 4 Uma vez que a razão sozinha não pode produzir nenhuma ação nem gerar uma volição infiro que essa mesma faculdade é igualmen te incapaz de impedir uma volição ou de disputar nossa preferência com qualquer paixão ou emoção Essa é uma conseqüência necessá ria A única possibilidade de a razão ter esse efeito de impedir a voli ção seria conferindo um impulso em direção contrária à de nossa pai xão e esse impulso se operasse isoladamente teria sido capaz de produzir a volição Nada pode se opor ao impulso da paixão ou retar dálo senão um impulso contrário e para que esse impulso contrá rio pudesse alguma vez resultar da razão esta última faculdade teria 450 Livro 2 Parte 3 Seção 3 de exercer uma influência original sobre a vontade e ser capaz de cau sar bem como de impedir qualquer ato volitivo Mas se a razão não possui uma influência original é impossível que possa fazer frente a um princípio com essa eficácia ou que possa manter a mente em sus penso por um instante sequer Vemos portanto que o princípio que se opõe a nossa paixão não pode ser o mesmo que a razão sendo as sim denominado apenas em um sentido impróprio Quando nos re ferimos ao combate entre paixão e razão não estamos falando de uma maneira filosófica e rigorosa A razão é e deve ser apenas a escrava das paixões e não pode aspirar a outra função além de servir e obede cer a elas Como essa opinião pode parecer um tanto extraordinária talvez seja apropriado confirmála por meio de outras considerações 5 Uma paixão é uma existência original ou se quisermos uma mo dificação de existência não contém nenhuma qualidade representa tiva que a torne cópia de outra existência ou modificação Quando tenho raiva estou realmente possuído por essa paixão e com essa emoção não tenho mais referência a um outro objeto do que quando estou com sede ou doente ou quando tenho mais de cinco pés de altura Portanto é impossível haver uma oposição ou contradição en tre essa paixão e a verdade ou a razão pois tal contradição consiste na discordância entre certas idéias consideradas como cópias e os objetos que elas representam 6 A princípio o que se pode pensar sobre esse ponto é que uma vez que nada pode ser contrário à verdade ou à razão exceto o que se refira a ela de alguma maneira e uma vez que somente os juízos de nosso entendimento o fazem devese seguir que as paixões só po dem ser contrárias à razão enquanto estiverem acompanhadas de al gum juízo ou opinião De acordo com esse princípio que é tão evi dente e natural um afeto só pode ser dito contrário à razão em dois sentidos Primeiro quando uma paixão como a esperança ou o medo Em toda esta seção traduzo unreasonable como contrário à razão Notese que Hum e utiliza esta última expressão contrary to reason diversas vezes neste mesmo parágrafo NT 451 Tratado da natureza humana a tristeza ou a alegria o desespero ou a confiança está fundada na suposição da existência de objetos que não existem realmente Segun do quando ao agirmos movidos por uma paixão escolhemos meios insuficientes para o fim pretendido e nos enganamos em nossos juízos de causas e efeitos Quando uma paixão não está fundada em falsas suposições nem escolhe meios insuficientes para sua finalidade o entendimento não pode nem justificála nem condenála Não é con trário à razão eu preferir a destruição do mundo inteiro a um arranhão em meu dedo Não é contrário à razão que eu escolha minha total destruição só para evitar o menor desconforto de um índio ou de uma pessoa que me é inteiramente desconhecida Tampouco é contrário à razão eu preferir aquilo que reconheço ser para mim um bem menor a um bem maior ou sentir uma afeição mais forte pelo primeiro que pelo segundo Um bem trivial pode graças a certas circunstâncias produzir um desejo superior ao que resulta do prazer mais intenso e valioso E não há nisto nada mais extraordinário que ver em mecâni ca um peso de uma libra suspender outro de cem libras pela vanta gem de sua situação Em suma uma paixão tem de ser acompanhada de algum juízo falso para ser contrária à razão e mesmo então não é propriamente a paixão que é contrária à razão mas o juízo 7 As conseqüências disso são evidentes Como uma paixão não pode nunca em nenhum sentido ser dita contrária à razão a não ser que esteja fundada em uma falsa suposição ou que escolha meios insufi cientes para o fim pretendido é impossível que razão e paixão pos sam se opor mutuamente ou disputar o controle da vontade e das ações Assim que percebemos a falsidade de uma suposição ou a in suficiência de certos meios nossas paixões cedem à nossa razão sem nenhuma oposição Posso desejar uma fruta que julgo possuir um sa bor excelente mas se me convencerem de meu engano meu desejo cessa Posso querer realizar certas ações como meio de obter um bem desejado mas como minha vontade de realizar essas ações é apenas secundária e se baseia na suposição de que elas são as causas do efeito pretendido logo que descubro a falsidade dessa suposição tais ações devem se tornar indiferentes para mim 452 Livro 2 Parte 3 Seção 3 8 É natural que as pessoas que não examinam os objetos com um olhar estritamente filosófico imaginem que se duas ações da men te não produzem sensações diferentes e não podem ser de imediato distinguidas pela sensação feeling e pela percepção elas são exata mente as mesmas O exercício da razão por exemplo não produz nenhuma emoção sensível e exceto nas indagações filosóficas mais sublimes ou nas frívolas sutilezas escolásticas quase nunca trans mite prazer ou desconforto É por isso que toda ação da mente que opera com a mesma calma e tranqüilidade é confundida com a ra zão por todos aqueles que julgam as coisas por seu primeiro aspec to e aparência Ora é certo que há determinadas tendências e dese jos calmos que embora sejam verdadeiras paixões produzem pouca emoção na mente sendo conhecidos mais por seus efeitos que pelo sentimento ou sensação imediata que produzem Esses desejos são de dois tipos ou bem são certos instintos originalmente implanta dos em nossas naturezas tais como a benevolência e o ressentimen to o amor à vida e a ternura pelas crianças ou então são o apetite geral pelo bem e a aversão ao mal considerados meramente enquan to tais Quando alguma dessas paixões é calma e não causa nenhu ma desordem na alma é facilmente confundida com as determina ções da razão e supomos que procede da mesma faculdade que a que julga sobre a verdade e a falsidade Supomos que sua natureza e seus princípios são os mesmos porque suas sensações não são evi dentemente diferentes 9 Além dessas paixões calmas que com freqüêmcoa determinam a vontade há certas emoções violentas da mesma espécie que também têm grande influência sobre essa faculdade Quando alguém me cau sa algum dano freqüentemente sinto uma paixão violenta de ressen timento que me faz desejar seu mal e punição independentemente de qualquer consideração de prazer e vantagem que eu possa obter com isso Quando sou diretamente ameaçado por um mal opressivo meus medos apreensões e aversões se intensificam produzindo uma emoção sensível 453 Tratado da natureza humana 1 O O erro comum dos metafísicos tem sido atribuir a direção da von tade exclusivamente a um desses princípios e supor que o outro não tem nenhuma influência Os homens com freqüência agem conscien temente contra seus próprios interesses por essa razão a perspecti va do maior bem possível nem sempre os influencia Os homens muitas vezes se contrapõem a uma paixão violenta ao perseguir seus interesses e objetivos não é apenas o desprazer presente portanto que os determina Observamos em geral que ambos os princípios atuam sobre a vontade e quando são contrários um dos dois pre valece segundo o caráter geral ou a disposição presente da pessoa O que se chama de firmeza de caráter strength of mind implica o predomínio das paixões calmas sobre as violentas mas é fácil ob servar que não há ninguém que possua essa virtude de forma tão constante que nunca em nenhuma ocasião ceda às solicitações da paixão e do desejo A essas variações de temperamento devese a grande dificuldade em se decidir acerca das ações e resoluções hu manas quando existe qualquer contrariedade de motivos e paixões Seção 4 Das causas das paixões violentas 1 Não há na filosofia objeto de especulação mais sutil que esse tema das diferentes causas e efeitos das paixões calmas e violentas É evi dente que as paixões não influenciam a vontade na mesma propor ção de sua violência ou da desordem que ocasionam no humor ao contrário uma vez que uma paixão se estabelece como um princípio de ação e se torna a inclinação predominante da alma ela comumente não produz mais nenhuma agitação sensível Como a repetição o costume e sua própria força fazem tudo se submeter a ela a paixão dirige as ações e a conduta sem essa oposição e essa emoção que tão naturalmente acompanham cada explosão momentânea de paixão Temos pois de diferenciar paixões calmas de paixões fracas e pai xões violentas de paixões fortes Apesar disso o certo é que se que 454 Livro 2 Parte 3 Seção 4 remos governar um homem e induzilo a praticar uma ação geralmen te a melhor estratégia é trabalhar as paixões violentas em vez das cal mas e dominálo antes por sua inclinação que por aquilo que vul garmente se chama sua razão Devemos dispor os objetos em situações que sejam apropriadas para aumentar a violência da paixão Pois ob servemos que tudo depende da situação do objeto e que qualquer va riação nesse ponto particular será capaz de transformar as paixões cal mas em violentas e viceversa Ambas as espécies de paixões perseguem o bem e evitam o mal e ambas aumentam ou diminuem com o aumento ou diminuição do bem ou do mal A diferença entre elas consiste em que o mesmo bem quando próximo causará uma paixão violenta e quando distante produzirá apenas uma paixão calma Como este assunto faz par te da presente questão concernente à vontade iremos aqui examinálo a fundo considerando algumas das circunstâncias e situações dos objetos que tornam uma paixão calma ou violenta 2 A natureza humana possui essa notável propriedade que qual quer emoção que acompanhe uma paixão se converte facilmente nes sa paixão ainda que suas naturezas sejam originalmente diferentes ou até contrárias É verdade que para se estabelecer uma união per feita entre as paixões é preciso sempre uma dupla relação de im pressões e de idéias uma só relação é insuficiente para esse fim Mas embora essa afirmação se confirme por uma experiência indubitável devemos entendêla com suas devidas limitações e considerar a dupla relação como necessária apenas para fazer com que uma paixão produza outra Quando duas paixões já foram produzidas separa damente por suas respectivas causas e estão ambas presentes na mente misturamse e se unem facilmente mesmo que mantenham entre si apenas uma relação e às vezes nenhuma A paixão predo minante absorve a inferior e a transforma em si própria Os espíritos animais uma vez despertados sofrem facilmente uma mudança em sua direção e é natural imaginar que essa mudança virá do afeto pre dominante A conexão entre duas paixões é em muitos aspectos mais estreita que a conexão entre uma paixão e a indiferença 455 Tratado da natureza humana 3 Quando um homem já está amando profundamente constatamos que as pequenas faltas e caprichos de sua amada os ciúmes e as brigas a que seu relacionamento está tão sujeito por mais desagradáveis que sejam e não obstante sua relação com a raiva e o ódio conferem uma força adicional à paixão predominante Um artifício comum entre os políticos quando querem fazer que alguém se interesse muito por algum fato sobre o qual desejam lhe informar é despertar primeiro sua curiosidade adiar ao máximo a satisfação dessa curiosidade e as sim aumentar sua ansiedade e impaciência ao extremo antes de lhe revelar todo o assunto Sabem que sua curiosidade o precipitará na paixão que pretendem despertar auxiliando o objeto em sua influên cia sobre a mente O soldado que avança para a guerra enchese na turalmente de coragem e confiança ao pensar em seus amigos e com panheiros de batalha e é tomado pelo medo e terror ao pensar no inimigo Portanto qualquer nova emoção que proceda daqueles na turalmente aumenta a coragem e a mesma emoção quando procede deste último aumenta o medo pela relação de idéias e pela conver são da emoção inferior na predominante É assim que na disciplina militar a homogeneidade e o esplendor de nossos uniformes a re gularidade de nossas evoluções e movimentos juntamente com toda a pompa e a majestade da guerra encorajam a nós e aos nossos alia dos mas os mesmos objetos em si próprios agradáveis e belos en chemnos de terror quando se encontram em nossos inimigos 4 Uma vez que as paixões apesar de independentes transformam se naturalmente umas nas outras quando estão presentes ao mes mo tempo seguese que quando o bem ou o mal estão situados de maneira a causar uma emoção particular além de sua paixão direta de desejo ou aversão esta última paixão deve adquirir mais força e violência 5 Isso acontece entre outros casos sempre que um objeto desper ta paixões contrárias Pois observase que a oposição entre duas pai xões causa comumente uma nova emoção nos espíritos animais pro duzindo mais desordem que o concurso de dois afetos de força igual 456 Livro 2 Parte 3 Seção 4 Essa nova emoção se converte facilmente na paixão predominante e eleva sua violência para além do grau que esta teria alcançado se não houvesse sofrido nenhuma oposição Assim nós naturalmente dese jamos o que é proibido e temos prazer em praticar ações simples mente por serem ilícitas A noção do dever quando oposta às paixões quase nunca é capaz de sobrepujálas e quando não o consegue ten de antes a aumentálas por produzir uma oposição em nossos moti vos e princípios 6 O mesmo efeito ocorre quer a oposição resulte de motivos in ternos quer de obstáculos externos A paixão comumente adquire nova força e violência nos dois casos O esforço que a mente realiza para superar o obstáculo excita os espíritos animais e aviva a paixão 7 A incerteza tem a mesma influência que a oposição A agitação do pensamento sua rápida passagem de uma perspectiva a outra a variedade das paixões que se sucedem segundo as diferentes perspec tivas tudo isso produz uma agitação na mente e se transfere para a paixão predominante 8 Em minha opinião a única causa natural que faz a segurança di minuir as paixões é que ela suprime a incerteza que as aumenta A mente quando entregue a si mesma imediatamente enlanguesce para preservar seu ardor tem de ser mantida a todo momento por um novo fluxo de paixão Pela mesma razão o desespero embora con trário à segurança tem uma influência semelhante 9 É certo que nada estimula mais poderosamente um afeto que ocul tar parte de seu objeto projetando uma espécie de sombra sobre ele a qual ao mesmo tempo em que mostra o bastante para nos predis por em favor do objeto deixa ainda algum trabalho para a imagina ção Além de a obscuridade estar sempre acompanhada por uma es pécie de incerteza o esforço que a fantasia realiza para completar a idéia eleva os espíritos animais conferindo uma força adicional à paixão 1 O Assim como o desespero e a segurança embora mutuamente con trários produzem os mesmos efeitos assim também se observa que 457 Tratado da natureza humana a ausência tem efeitos contrários e em diferentes circunstâncias aumenta ou diminui nossos afetos O Duque de La Rochefoucauld ob servou muito bem que a ausência destrói as paixões fracas mas au menta as fortes assim como o vento apaga uma vela mas atiça uma fogueira Uma longa ausência naturalmente enfraquece nossa idéia e diminui a paixão mas quando a idéia é forte e viva o bastante para sustentarse a si mesma o desprazer resultante da ausência aumenta a paixão dandolhe nova força e violência Seção 5 Dos efeitos do costume 1 Porém nada é mais propício a aumentar e a diminuir nossas pai xões a converter prazer em dor e dor em prazer que o costume e a re petição O costume tem dois efeitos originais sobre a mente confere a ela uma facilidade para realizar uma ação ou para conceber um objeto e posteriormente uma tendência ou inclinação a fazêlo Com base nes ses dois efeitos podemos explicar todos os outros por mais extraor dinários que sejam 2 Quando a alma se aplica na realização de uma ação ou na con cepção de um objeto a que não está acostumada há uma certa infle xibilidade por parte das faculdades e uma dificuldade dos espíritos animais em se mover em sua nova direção Como essa dificuldade excita os espíritos gera admiração surpresa e todas as emoções de correntes da novidade e ela própria é muito agradável como tudo que aviva a mente em um grau moderado Mas embora a surpresa seja agradável em si mesma ao produzir uma agitação nos espíritos não aumenta apenas nossos afetos agradáveis mas também os doloro sos de acordo com o princípio anterior de que toda emoção que precede ou acompanha uma paixão se converte facilmente nessa mesma paixão Por isso tudo que é novo nos afeta mais e nos proporciona mais prazer ou mais dor que aquilo que estritamente falando seria condizente La Rochefoucauld 16131680 Maximes 276 NT 458 Livro 2 Parte 3 Seção 5 com sua natureza Quando nos aparece reiteradamente a novidade se desgasta as paixões declinam a agitação dos espíritos animais tem fim e contemplamos os objetos com mais tranqüilidade 3 Gradativamente a repetição produz uma facilidade que é um outro princípio muito poderoso da mente humana e fonte infalível de prazer quando não ultrapassa um certo grau É de se notar que o prazer oriundo de uma facilidade moderada não tem a mesma ten dência que tem o prazer resultante da novidade de aumentar os afe tos dolorosos assim como os agradáveis O prazer da facilidade não consiste tanto em uma fermentação dos espíritos animais quanto em seu movimento ordenado o qual é por vezes tão poderoso que che ga a transformar a dor em prazer proporcionandonos com o decor rer do tempo um gosto por coisas que de início eram bastante amar gas e desagradáveis 4 Mais ainda assim como a facilidade converte a dor em prazer fre qüentemente converte também o prazer em dor a saber quando é grande demais e torna as ações mentais tão fracas e lânguidas que não são mais capazes de afetar e ocupar a mente De fato quase ne nhum objeto se torna desagradável pelo costume exceto os que se fazem naturalmente acompanhar de alguma emoção ou afeto que é destruído pela repetição demasiado freqüente Podemos contemplar repetidamente as nuvens o céu as árvores e as pedras sem jamais sentir nenhuma aversão Mas quando o belo sexo a música a boa mesa ou qualquer coisa que naturalmente deveria ser agradável se torna indiferente produz facilmente o afeto oposto 5 Entretanto o costume não cria apenas uma facilidade para realizar uma ação como também uma inclinação e tendência a realizála quan do essa ação não é inteiramente desagradável e não é incapaz de se tornar objeto de inclinação Essa é razão por que o costume au menta todos os hábitos ativos mas diminui os passivos como obser vou recentemente um eminente filósofo A facilidade retira parte da força dos hábitos passivos ao tornar o movimento dos espíritos ani Joseph Butler 1 6921 752 em Analogy of Religion I 52 NT 459 Tratado da natureza humana mais fraco e lânguido Mas como nos hábitos ativos os espíritos se mantêm suficientemente a si mesmos a tendência da mente lhes dá uma nova força inclinandoos mais fortemente à ação Seção 6 Da influência da imaginação sobre as paixões 1 É importante notar que a imaginação e os afetos mantêm entre si uma união estreita e nada que afeta aquela poderá ser inteiramente indiferente a estas Sempre que nossas idéias de bem ou de mal ad quirem uma nova vividez as paixões se tornam mais violentas e acom panham o passo da imaginação em todas as suas variações Não me pronunciarei quanto à questão de saber se isso se deve ao princípio acima mencionado que qualquer emoção concomitante se converte facil mente na predominante Para meu objetivo presente basta que tenha mos muitos exemplos que confirmem essa influência da imaginação sobre as paixões 2 A perspectiva de um prazer com que estejamos familiarizados nos afeta mais que qualquer outro que reconheçamos ser superior mas cuja natureza desconheçamos completamente Podemos formar uma idéia particular e determinada do primeiro mas concebemos este último apenas sob a noção geral de prazer e certamente quan to mais gerais e universais nossas idéias menos influência têm so bre a imaginação Uma idéia geral embora seja somente uma idéia particular considerada de um certo ângulo costuma ser mais obs cura porque nenhuma idéia particular pela qual representamos uma idéia geral é fixa ou determinada podendo ao contrário ser facil mente trocada por outras idéias particulares que servirão igualmen te para a representação 3 Há uma passagem famosa na história da Grécia que pode servir a nosso propósito presente Temístocles disse aos atenienses que havia con cebido um plano de enorme utilidade para o público mas que era impossível contarlhes qual era esse plano sem arruinar sua execução 460 Livro 2 Parte 3 Seção 6 já que seu sucesso dependia inteiramente do sigilo com que seria conduzido Os atenienses em vez de lhe dar total poder para agir como julgava adequado ordenaramlhe que comunicasse seu plano a Aristides em cuja discrição confiavam plenamente estando decididos a se submeter cegamente a sua opinião O plano de Temístocles era in cendiar em segredo toda a frota das repúblicas gregas que estava reu nida em um porto vizinho para com essa destruição dar aos atenienses o domínio soberano do mar Aristides voltou à assembléia e disselhes que nada poderia ser mais vantajoso que o plano de Temístocles mas que ao mesmo tempo nada poderia ser mais injusto Em vista disso o povo rejeitou unanimemente o projeto 4 Recentemente um famoso historiador1 expressou sua admiração por essa passagem da história antiga como uma das mais singulares já encontradas Aqui diz ele quem decide que o interesse nunca deveria pre valecer sobre a justiça não são os filósofos em suas escolas para os quais é fácil estabelecer as máximas mais sutis e sublimes da moral É todo um povo interessado na proposta que lhe é feita que a considera importante para o bem público mas que não obstante rejeitaa unanimemente sem hesitação ape nas porque é contrária à justiça De minha parte não vejo nada de tão extraordinário nessa maneira de proceder dos atenienses As mesmas razões que tornam tão fácil aos filósofos estabelecer essas máximas sublimes tendem em parte a diminuir o mérito de uma tal conduta naquele povo Os filósofos nunca hesitam entre o benefício e a ho nestidade porque suas decisões são gerais e nem suas paixões nem suas imaginações têm interesse pelos objetos No caso em questão a vantagem para os atenienses era imediata entretanto como era conhe cida apenas sob a noção geral de vantagem e não concebida por meio de uma idéia particular deve ter tido uma influência menos conside rável sobre sua imaginação e ter constituído uma tentação menos vio lenta que se estivessem a par de todas as circunstâncias envolvidas Monsieur Rollin Charles Rollin 16611741 Hume referese a seu livro Histoire Ancienne 62 13 NT 461 Tratado da natureza humana De outro modo injustos e violentos como os homens costumam ser é difícil conceber que um povo inteiro aderisse de maneira tão unâni me à justiça e rejeitasse qualquer vantagem considerável 5 Qualquer satisfação que tenhamos experimentado recentemen te e a qual ainda esteja fresca e nova na memória atua sobre a vontade com mais violência que aquela cujos traços estão enfraquecidos e quase apagados A que atribuir tal coisa senão ao fato de que a me mória no primeiro caso auxilia a fantasia dando uma força e um vi gor adicionais a suas concepções A imagem do prazer passado sen do forte e violenta confere essas qualidades à idéia do prazer futuro conectada a ela pela relação de semelhança 6 Um prazer condizente com o modo de vida que levamos excita mais nossos desejos e apetites que aquele que lhe é estranho Esse fenômeno pode ser explicado pelo mesmo princípio 7 Nada é mais propício a infundir uma paixão na mente que a elo qüência que representa os objetos nas cores mais fortes e vivas Po demos reconhecer por nós mesmos que um certo objeto é valioso e um outro odioso mas enquanto um orador não estimular nossa ima ginação reforçando essas idéias elas exercerão apenas uma fraca in fluência sobre a vontade ou sobre os afetos 8 Nem sempre no entanto a eloqüência é necessária A mera opi nião alheia sobretudo quando reforçada pela paixão fará com que uma idéia de bem ou de mal que de outro modo seria inteiramente negligenciada passe a ter uma influência sobre nós Isso se deve ao princípio da simpatia ou comunicação pois a simpatia como já ob servei não é senão a conversão de uma idéia em uma impressão pela força da imaginação 9 Notese que as paixões vívidas comumente acompanham uma imaginação vívida Sob esse aspecto entre outros a força da paixão depende tanto do temperamento da pessoa quanto da natureza ou si tuação do objeto 10 Já observei que a crença é somente uma idéia vívida relacionada com uma impressão presente Essa vividez é uma circunstância neces sária para despertar todas as nossas paixões tanto as calmas como 462 Livro 2 Parte 3 Seção 7 as violentas meras ficções da imaginação não exercem uma influên cia considerável sobre elas São fracas demais para cativar a mente ou para se fazer acompanhar de uma emoção Seção 7 Da contigüidade e da distância no espaço e no tempo 1 Existe uma razão fácil para explicar por que tudo que nos é con tíguo no espaço ou no tempo é concebido com uma força e vividez peculiar e supera qualquer outro objeto em sua influência sobre a ima ginação Nosso eu está intimamente presente a nós e tudo que é rela cionado ao eu deve partilhar dessa qualidade Mas quando um objeto está tão afastado que já perdeu a vantagem dessa relação talvez seja necessário um exame mais detalhado para entendermos por que se ele se afasta mais ainda sua idéia se torna ainda mais fraca e obscura 2 É evidente que a imaginação nunca pode se esquecer totalmente da localização de nossa existência no espaço e no tempo recebe in formações tão freqüentes desta pelas paixões e sentidos que por mais que volte sua atenção para objetos alheios e remotos a todo momen to se vê obrigada a pensar nos presentes Podese notar igualmente que ao conceber os objetos que consideramos reais e existentes nós os tomamos em sua ordem e situação próprias nunca saltamos de um objeto a outro que lhe seja distante sem percorrer ao menos su perficialmente todos os objetos interpostos entre eles Portanto quando pensamos em um objeto distante de nós somos obrigados não apenas para chegar primeiro até ele a passar por todo o espaço intermediário entre nós e o objeto como também a renovar nosso percurso a todo momento já que a todo momento somos chama dos a pensar novamente em nós mesmos e em nossa situação pre sente É fácil conceber que essa interrupção deve enfraquecer a idéia ao romper a ação da mente impedindo assim que a concepção seja tão intensa e contínua como nas ocasiões em que refletimos acerca de um objeto mais próximo Quanto menos passos são necessários para 463 Tratado da natureza humana chegar ao objeto e quanto mais suave o caminho até ele menos sen timos a diminuição da vivi dez mas esta ainda poderá ser mais ou me nos notada proporcionalmente aos graus de distância e dificuldade 3 Devemos pois considerar aqui dois tipos de objetos os contíguos e os remotos aqueles por meio de sua relação conosco aproximam se das impressões em força e vividez estes últimos em razão da inter rupção em nosso modo de concebêlos aparecem de maneira mais fra ca e imperfeita Esse é seu efeito sobre a imaginação E se meu raciocínio estiver correto devem ter um efeito proporcional sobre a von tade e as paixões Os objetos contíguos devem ter uma influência mui to superior à dos distantes e remotos Assim vemos na vida corrente que os homens se importam sobretudo com os objetos que não es tão tão afastados no espaço ou no tempo desfrutando o presente e deixando o que está longe aos cuidados do acaso e da sorte Se falar mos a uma pessoa sobre sua situação daqui a trinta anos ela não nos dará ouvidos Mas se lhe falarmos sobre o que está para acontecer amanhã ela prestará atenção Preocupamonos mais com um espe lho que se quebra em nosso lar do que com uma casa que se incen deia em um outro país a centenas de léguas de nós 4 Além disso embora tanto a distância no espaço quanto a no tempo tenham um efeito considerável sobre a imaginação e por meio desta também sobre a vontade e as paixões as conseqüências de um afasta mento no espaço são muito inferiores às de um afastamento no tempo Vinte anos constituem certamente uma distância de tempo bem cur ta em comparação com o que a história nos apresenta ou até mesmo com o que a memória de algumas pessoas lhes dá a conhecer mas duvido que mil léguas ou sequer a maior distância espacial que o glo bo terrestre pode admitir sejam capazes de enfraquecer tanto nossas idéias e diminuir tão consideravelmente nossas paixões Um comer ciante das Índias Ocidentais vos dirá que se preocupa com o que aconte Ver as considerações sobre a propriedade da manutenção dessa expressão ao invés de sua correção para Índias Orientais que entretanto pareceria a mais correta em David F Norton Mary J Norton op cit NT 464 Livro 2 Parte 3 Seção 7 ce na jamaica mas poucos estenderão seu olhar até um futuro tão distante a ponto de temer acidentes muitos remotos s A causa desse fenômeno deve estar evidentemente nas diferen tes propriedades do espaço e do tempo Sem precisar recorrer à metafísica qualquer um pode facilmente observar que o espaço ou extensão consiste em um certo número de partes coexistentes dis postas em uma certa ordem e capazes de estar presentes ao mesmo tempo à visão ou ao tato Ao contrário o tempo ou sucessão embo ra também seja constituído de partes nunca nos apresenta mais de uma ao mesmo tempo é impossível que duas partes do tempo coe xistam Essas qualidades dos objetos têm um efeito correspondente sobre a imaginação As partes da extensão sendo suscetíveis de uma união para os sentidos adquirem uma união também na fantasia e como o aparecimento de uma não exclui as outras a transição ou pas sagem do pensamento ao longo das partes contíguas se torna assim mais suave e fácil Em contrapartida a incompatibilidade das partes do tempo em sua existência real separaas na imaginação tornando mais difícil para esta faculdade acompanhar longas sucessões ou séries de eventos Cada parte deve aparecer só e isolada e não pode entrar regu larmente na fantasia sem banir a parte que se supõe imediatamente anterior Desse modo uma distância no tempo causa no pensamento uma interrupção maior que a mesma distância no espaço e em conse qüência disso enfraquece mais consideravelmente a idéia e por con seguinte também as paixões que dependem em grande medida da imaginação segundo meu sistema 6 Há outro fenômeno de natureza semelhante ao anterior a saber a mesma distância quando no futuro tem efeitos superiores aos que exerce quando no passado Essa diferença se explica facilmente no que diz respeito à vontade Como nenhuma de nossas ações pode alterar o passado não é estranho que este nunca determine a vontade Mas a The superior effects of the sarne distance in futurity above that in the past Comparese esta última à afirmação da página 4668 1 618 A small degree of distance in the past has therefore a greater effect in interrupting and weabening the conception than a much greater in the future Cf também p468 145 NT 465 Tratado da natureza humana questão ainda permanece no que diz respeito às paixões e merece ser examinada 7 Além da propensão a percorrer gradualmente os pontos do espa ço e do tempo nossa maneira de pensar tem outra peculiaridade que concorre para a produção desse fenômeno Sempre seguimos a su cessão do tempo ao ordenar nossas idéias e passamos mais facilmente da consideração de um objeto para aquele que ocorre imediatamente depois do que para aquele que o precedeu Um exemplo disso entre outros é a ordem que sempre se observa nas narrativas históricas Somente uma absoluta necessidade pode obrigar um historiador a quebrar a ordem do tempo em sua narrativa dando precedência a um acontecimento que na realidade era posterior a outro 8 Isso se aplicará facilmente à questão de que estamos tratando se refletirmos sobre algo que já observei antes que a situação da imagi nação é sempre a situação presente da pessoa e é dela que partimos para conceber um objeto distante Quando o objeto está no passado a progressão do pensamento do presente até ele é contrária à nature za pois passa de um ponto do tempo a um ponto anterior e deste a outro ponto anterior em oposição ao curso natural da sucessão Em contrapartida quando dirigimos nosso pensamento para um objeto futuro nossa fantasia flui conforme o fluxo do tempo chegando ao objeto por uma ordem que parece mais natural porque sempre pas sa de um ponto do tempo a outro imediatamente posterior Essa pro gressão fácil das idéias favorece a imaginação fazendoa conceber seu objeto de um modo mais forte e mais pleno que quando sofremos uma contínua oposição em nossa passagem e somos obrigados a superar as dificuldades decorrentes da propensão natural da fantasia Um pe queno grau de distância no passado tem portanto um efeito maior no interromper e enfraquecer a concepção que uma distância muito maior no futuro Desse seu efeito sobre a imaginação deriva sua in fluência sobre a vontade e as paixões 9 Há outra causa que contribui para o mesmo efeito e procede da mesma qualidade da fantasia que nos determina a acompanhar a su 466 Livro 2 Parte 3 Seção 8 cessão do tempo por uma sucessão similar de idéias Quando a par tir do instante presente consideramos dois pontos do tempo igual mente distantes no futuro e no passado é evidente que tomadas abs tratamente suas relações com o presente são quase iguais Assim como o futuro se tornará presente em algum momento assim também o passado foi presente uma vez Portanto se pudéssemos suprimir essa qualidade da imaginação uma distância igual no passado e no futuro teria uma influência similar Isso é verdade não apenas quando a fan tasia permanece fixa e do instante presente considera o futuro e o passado mas também quando muda sua situação colocandonos em diferentes períodos do tempo Pois assim como por um lado ao supor que existimos em um ponto do tempo interposto entre o instante pre sente e o objeto futuro vemos o objeto futuro se aproximar de nós e o passado retroceder tornandose mais distante assim também por outro lado ao supor que existimos em um ponto do tempo localizado entre o presente e o passado o passado se aproxima de nós e o futuro se torna mais distante Ora em virtude da propriedade da fantasia ante riormente mencionada escolhemos antes fixar nosso pensamento no ponto do tempo situado entre o presente e o futuro que no situado entre o presente e o passado Preferimos avançar a retardar nossa exis tência e seguindo o que parece ser a sucessão natural do tempo pro cedemos do passado ao presente e do presente ao futuro Desse modo concebemos o futuro aproximandose cada vez mais de nós e o passado se afastando Portanto uma distância igual no passado e no futuro não tem o mesmo efeito sobre a imaginação já que consideramos a pri meira como aumentando continuamente e a segunda diminuindo A fantasia antecipa o curso das coisas e considera o objeto na condi ção para a qual ele tende bem como na que é vista como presente Seção 8 Continuação do mesmo tema 1 Desse modo explicamos três fenômenos que parecem bastante notáveis por que a distância enfraquece a concepção e a paixão por 467 Tratado da natureza humana que a distância no tempo tem um efeito maior que a distância no espa ço e por que a distância no passado tem um efeito ainda maior que a distância no futuro Devemos agora examinar três fenômenos que parecem ser de alguma forma o reverso desses por que uma distân cia muito grande aumenta nossa estima e admiração por um objeto por que as aumenta mais quando ocorre no tempo que quando ocor re no espaço e por que quando ocorre no passado mais que no futu ro A curiosidade do assunto espero fará que o leitor me desculpe por me demorar um pouco sobre essas questões 2 Começando com o primeiro fenômeno ou seja por que uma gran de distância aumenta nossa estima e admiração por um objeto é evi dente que a mera visão e contemplação de uma grandeza seja ela sucessiva ou extensa alarga a alma dandolhe um sensível deleite e prazer Uma vasta planície o oceano a eternidade uma sucessão de várias épocas todos esses são objetos cativantes e superam todas as coisas por mais belas que sejam cuja beleza não se faça acompanhar de uma grandeza apropriada Ora quando um objeto muito distante se apresenta à imaginação pensamos naturalmente na distância en tre nós e desse modo concebendo algo grande e imponente obte mos a satisfação usual Mas como a fantasia passa facilmente de uma idéia a outra que esteja relacionada com ela e transfere à segunda todas as paixões despertadas pela primeira a admiração dirigida à distância se difunde naturalmente para o objeto distante Constata mos assim que não é necessário que o objeto esteja de fato distante de nós para causar nossa admiração basta que pela associação natu ral das idéias ele dirija nosso olhar para qualquer distância conside rável Um grande viajante ainda que no mesmo aposento que nós passará por uma pessoa extraordinária e uma medalha grega mesmo guardada em nossa estante de colecionador é sempre considerada uma valiosa curiosidade Nesses casos o objeto por uma transição natu ral conduz nosso olhar para a distância e a admiração decorrente dessa distância por outra transição natural retorna ao objeto 468 Livro 2 Parte 3 Seção 8 3 Mas embora toda grande distância produza uma admiração pelo objeto distante uma distância no tempo tem um efeito mais significa tivo que uma no espaço Inscrições e bustos antigos são mais valoriza dos que mesas de laca do Japão e sem mencionar os gregos e roma nos certamente vemos com mais veneração os antigos caldeus e egípcios que os chineses e persas modernos e despendemos mais esforço ten tando inutilmente esclarecer a história e a cronologia dos primeiros do que o que nos custaria para fazer uma viagem e obter informações seguras acerca do caráter dos conhecimentos e da forma de governo dos segundos Serei obrigado a fazer uma digressão para explicar esse fenômeno 4 Tratase de uma qualidade facilmente observável na natureza hu mana que qualquer oposição que não nos desencoraje e intimide in teiramente tem antes um efeito contrário inspirandonos uma gran deza e magnanimidade maior que a ordinária Ao reunir forças para superar a oposição revigoramos nossa alma dandolhe uma eleva ção que ela de outra forma nunca conheceria A complacência por tornar desnecessária nossa força deixanos insensíveis a ela mas a oposição a desperta e lhe dá uma utilidade 5 O inverso também é verdadeiro Não é apenas a oposição que alar ga a alma também a alma quando cheia de coragem e grandeza de um certo modo busca a oposição Spumantemque dari pecara inter inertia votis Optat aprum aut fulvum descendere monte leonem 6 Tudo que sustenta e preenche as paixões nos agrada ao contrá rio tudo que as enfraquece e debilita nos desagrada Como a oposi ção tem o primeiro efeito e a facilidade o segundo não é de admirar que a mente em certas disposições deseje a primeira e sinta aversão pela segunda E anela que um javardo surda espumante dentre o bando inerte ou que fulvo leão da ser ra desça Virgílio Eneida IV v 1 589 Tradução de António Feliciano de Castilho e Ma nuel Odorico Mendes São Paulo W M Jackson Inc 1964 NT 469 Tratado da natureza humana 7 Esses princípios têm um efeito tanto sobre a imaginação como sobre as paixões Para nos convencermos disso basta considerarmos a influência das altitudes e das profundidades sobre aquela faculdade Um lugar muito elevado comunica uma espécie de orgulho ou subli midade de imaginação dandonos uma fantasiosa superioridade so bre os que estão abaixo de nós e viceversa uma imaginação subli me e forte transmite a idéia de ascensão e elevação É por isso que de alguma maneira associamos a idéia de tudo que é bom com a de al tura e a do que é mau com a de baixeza Supomos que o céu está no alto e o inferno embaixo Um grande gênio é dito altivo e sublime Atque udam spernit humum fugiente penna Ao contrário uma inteligên cia vulgar e trivial é designada indiferentemente como baixa ou me díocre A prosperidade é denominada ascensão a adversidade que da Reis e príncipes são considerados no topo da escala humana ao passo que camponeses e trabalhadores dizse estão nas camadas mais baixas Essa nossa maneira de pensar e de nos expressar não é tão sem importância quanto pode parecer à primeira vista 8 É evidente tanto para o senso comum como para os filósofos que não há diferença natural ou essencial entre o alto e o baixo e que essa distinção resulta somente da gravitação da matéria a qual produz um movimento de cima para baixo Exatamente a mesma direção que nesta parte do globo é chamada de ascendente é denominada descen dente em nossos antípodas o que só pode resultar da tendência con trária dos corpos Ora é certo que a tendência dos corpos agindo conti nuamente sobre nossos sentidos deve produzir por costume uma tendência semelhante na fantasia e quando consideramos um obje to situado em um aclive a idéia de seu peso nos dá uma tendência a transportálo do lugar em que está situado ao lugar imediatamente abai xo e assim por diante até chegarmos ao chão que pára igualmente o Horácio Odes livro III ode II v234 O verso citado é o final de uma passagem assim traduzida A virtude abrindo o céu aos heróis dignos da imortalidade atirase com vôo rápido por veredas inacessíveis desprezando o comércio do vulgo e o lodo em que se atola Tradução de FranciscoAntonio Picot Librairieslmprimeries Réunies Paris 1 893 NT 470 Livro 2 Parte 3 Seção 8 corpo e nossa imaginação Por uma razão semelhante sentimos difi culdade em subir e é com relutância que passamos do inferior ao que está situado acima dele como se nossas idéias adquirissem de seus objetos uma espécie de gravidade Como prova disso não vemos que a característica de facilidade que é tão estudada na música e na poe sia chamase cadência da harmonia ou do verso ou seja que a idéia de facilidade nos comunica a de descida do mesmo modo que a descida produz uma facilidade 9 Portanto uma vez que a imaginação ao passar do baixo ao alto encontra uma oposição em suas qualidades e princípios internos e uma vez que a alma quando elevada pela alegria e pela coragem de certa forma busca a oposição abraçando com entusiasmo qualquer cena de pensamento ou de ação em que sua coragem encontre maté ria para se alimentar e se tornar útil seguese que tudo aquilo que ao tocar as paixões ou a imaginação revigora e aviva a alma transmi te naturalmente à fantasia essa inclinação a se elevar e a determina a ir contra o curso natural de seus pensamentos e concepções Tal pro gressão ascendente da imaginação concorda com a disposição presente da mente e a dificuldade ao invés de extinguir seu vigor e veemên cia tem o efeito contrário preservandoos e ampliandoos Virtude talento poder e riqueza são por essa razão associados com a altura e o sublime ao passo que pobreza servidão e insensatez são conju gadas com o declínio e a baixeza Se nosso caso fosse como o dos anjos para quem segundo Milton os representa a descida é adversa e não é possível cair sem esforço e coação essa ordem das coisas seria inteiramente invertida Vêse portanto que a própria natureza da ascensão e da queda é derivada da dificuldade e da propensão e conseqüentemen te todos os seus efeitos procedem dessa origem The fali or cadency Cf Norton Norton em sua nota à frase de Hume op cit p530 Musical or poetic compositions attain a sense of closure by ending on a note lower than those preceding This downward cadence is called a fali NT Paradise Lost 1667 II 1 02133 NT 471 Tratado da natureza humana 10 Tudo isso se aplica facilmente à questão presente ou seja por que uma distância considerável no tempo produz uma veneração maior pelos objetos distantes do que uma distância semelhante no espaço A imaginação movese com mais dificuldade ao passar de uma por ção do tempo a outra que ao transitar ao longo das partes do espaço isso porque o espaço ou extensão aparece unido a nossos sentidos enquanto o tempo ou sucessão é sempre entrecortado e dividido Essa dificuldade quando conjugada com uma pequena distância in terrompe e enfraquece a fantasia mas tem um efeito contrário quan do o afastamento é grande A mente elevada pela vastidão de seu objeto elevase ainda mais pela dificuldade da concepção e sendo obrigada a todo momento a renovar seus esforços para passar de uma parte a outra do tempo sente uma disposição mais vigorosa e subli me que ao percorrer as partes do espaço quando as idéias fluem com facilidade e conforto Nessa disposição a imaginação passa como de costume da consideração da distância à consideração dos objetos dis tantes e assim nos dá uma veneração proporcional por esses obje tos É por essa razão que todas as relíquias da Antiguidade são tão preciosas para nós e parecem mais valiosas que objetos trazidos das partes mais remotas do mundo 1 1 O terceiro fenômeno que assinalei irá confirmar integralmente o que foi dito Nem todo afastamento no tempo tem o efeito de pro duzir veneração e estima Não tendemos a imaginar que nossa pos teridade nos ultrapassará ou se igualará a nossos ancestrais Esse fe nômeno é ainda mais notável porque uma distância no futuro não enfraquece tanto nossas idéias quanto um igual afastamento no pas sado Embora um afastamento no passado quando muito grande au mente nossas paixões mais que um afastamento igual no futuro um pequeno afastamento favorece antes sua diminuição 12 Em nosso modo comum de pensar situamonos em uma espécie de posição intermediária entre o passado e o futuro e como nossa imaginação encontra uma espécie de dificuldade em voltar ao primeiro e uma facilidade em seguir o curso do segundo a dificuldade trans 472 Livro 2 Parte 3 Seção 8 mite a noção de ascensão e a facilidade a noção contrária Assim imaginamos que nossos ancestrais estão como se fosse acima de nós e nossa posteridade está abaixo Nossa fantasia não chega até aque les sem esforço mas alcança facilmente esta última Esse esforço en fraquece a concepção nos casos em que a distância é pequena mas amplia e eleva a imaginação quando esta se acompanha de um objeto correspondente por sua vez a facilidade auxilia a fantasia no caso de um pequeno afastamento mas retira parte de sua força quando ela contempla uma distância considerável 13 Antes de deixarmos este tema da vontade talvez não seja ina propriado resumir em poucas palavras tudo o que foi dito a seu res peito a fim de apresentar o conjunto mais distintamente ao leitor Aquilo que comumente entendemos por paixão é uma emoção vio lenta e sensível da mente que ocorre quando se apresenta um bem ou um mal ou qualquer objeto que pela formação original de nossas faculdades seja propício a despertar um apetite Com a palavra razão referimonos a afetos exatamente da mesma espécie que os anterio res mas que operam mais calmamente sem causar desordem no tem peramento essa tranqüilidade faz que nos enganemos a seu respei to vendoos exclusivamente como conclusões de nossas faculdades intelectuais Tanto as causas como os efeitos dessas paixões violentas e calmas são bastante variáveis dependendo em grande parte do temperamento e da disposição peculiar de cada indivíduo Falando de maneira geral as paixões violentas exercem uma influência mais poderosa sobre a vontade mas constatamos freqüentemente que as calmas quando corroboradas pela reflexão e auxiliadas pela resolu ção são capazes de controlálas em seus movimentos mais impetuo sos O que torna tudo isso mais incerto é que uma paixão calma pode facilmente se tornar violenta seja por uma mudança no humor da pessoa ou na situação e nas circunstâncias que envolvem o objeto seja por extrair força de uma paixão concomitante pelo costume ou por excitar a imaginação De tudo isso podemos concluir que é esse combate entre paixão e razão como é chamado que diversifica a vida 473 Tratado da natureza humana humana e torna os homens tão diferentes não apenas uns dos ou tros mas também de si mesmos em momentos diferentes A filoso fia pode explicar apenas alguns dos maiores e mais sensíveis eventos dessa guerra mas tem que abrir mão de todas as revoltas menores e mais delicadas por dependerem de princípios demasiadamente sutis e diminutos para sua compreensão Seção 9 Das paixões diretas 1 É fácil observar que as paixões tanto as diretas como as indiretas estão fundadas na dor e no prazer e para produzir um afeto de qual quer espécie basta apresentar um bem ou um mal A supressão da dor ou do prazer tem como conseqüência a imediata supressão do amor e do ódio do orgulho e da humildade do desejo e da aversão assim como da maior parte de nossas impressões reflexivas ou secundárias 2 As impressões que decorrem do bem e do mal de maneira mais natural e sem preparação são as paixões diretas de desejo e aversão tristeza e alegria esperança e medo juntamente com a volição A mente por um instinto original tende a se unir ao bem e a evitar o mal mesmo que os conceba meramente como idéias e os considere como existindo apenas em algum período futuro 3 Supondose porém que exista uma impressão imediata de pra zer ou dor e essa impressão seja decorrente de um objeto relacionado conosco ou com outrem isso não impede a propensão ou a aversão com suas conseqüentes emoções ao contrário combinandose com certos princípios latentes da mente humana desperta as novas im pressões de orgulho ou humildade amor ou ódio A propensão que nos une ao objeto ou dele nos separa continua a operar mas em con junção com as paixões indiretas que resultam de uma dupla relação de impressões e idéias 474 Livro 2 Parte 3 Seção 9 4 Por sua vez as paixões indiretas sendo sempre agradáveis ou de sagradáveis dão uma força adicional às paixões diretas e aumentam nosso desejo e aversão pelo objeto Assim uma vestimenta elegante produz prazer por sua beleza e esse prazer produz as paixões dire tas ou impressões de volição e desejo Além disso quando conside ramos essas roupas como pertencendo a nós a dupla relação nos transmite o sentimento de orgulho que é uma paixão indireta e o prazer que acompanha essa paixão reincide sobre os afetos diretos dando nova força a nosso desejo ou volição alegria ou esperança 5 Quando o bem é certo ou provável produz a ALEGRIA Quando é o mal que se encontra nessa situação surge a TRISTEZA ou o PESAR 6 Quando o bem ou o mal são incertos dão origem ao MEDO ou à ESPERANÇA segundo os graus de incerteza de um lado ou de outro 7 O DESEJO resulta do bem considerado simplesmente enquanto tal e a AVERSÃO deriva do mal A VONTADE se exerce quando ou o bem ou a ausência de mal podem ser alcançados por meio de uma ação da mente ou do corpo 8 Além do bem e do mal ou em outras palavras da dor e do pra zer as paixões diretas surgem freqüentemente de um impulso natu ral ou instinto inteiramente inexplicável Desse gênero é o desejo da punição de nossos inimigos e da felicidade de nossos amigos e tam bém a fome o desejo carnal e alguns outros apetites corpóreos Es sas paixões rigorosamente falando produzem o bem e o mal e não procedem deles como os outros afetos 9 Nenhum dos afetos diretos parece merecer nossa atenção espe cial exceto a esperança e o medo que tentaremos aqui explicar É evidente que exatamente o mesmo acontecimento que se fosse cer to produziria tristeza ou alegria dá origem ao medo ou à esperança quando apenas provável e incerto Portanto para entendermos a ra zão pela qual essa circunstância faz uma diferença tão considerável temos de refletir acerca do que já expus no livro anterior a respeito da natureza da probabilidade 475 Tratado da natureza humana 10 A probabilidade surge de uma oposição de chances ou causas con trárias que não permite que a mente se fixe em nenhum dos lados fazendo que ela seja jogada incessantemente de um ao outro ora de terminada a considerar um objeto como existindo ora o contrário A imaginação ou entendimento como se queira chamálo flutua entre as considerações opostas e embora possa freqüentemente se voltar mais para um lado que para outro élhe impossível permanecer em um deles em razão da oposição das causas ou chances O pró e o contra da questão prevalecem alternadamente e a mente ao consi derar o objeto em seus princípios opostos encontra tal contrarieda de que toda certeza e opinião estabelecida ficam destruídas 1 1 Suponhamos então que o objeto de cuja realidade temos dúvi das seja objeto quer de desejo quer de aversão é evidente que con forme a mente se volte para um lado ou para o outro deverá sentir uma impressão momentânea de alegria ou de tristeza Um objeto cuja existência desejamos nos dá satisfação quando pensamos nas causas que o produzem pela mesma razão desperta tristeza ou desconforto pela consideração oposta Desse modo assim como o entendimento em todas as questões prováveis dividese entre pontos de vista contrá rios assim também os afetos devem se dividir entre emoções opostas 12 Ora se considerarmos a mente humana veremos que no que diz respeito às paixões sua natureza não é a de um instrumento de so pro que quando percorridas suas notas perde imediatamente o som assim que cessa a respiração assemelhase antes a um instrumento de cordas em que após cada toque as vibrações continuam retendo algum som que se extingue gradual e insensivelmente A imagina ção é extremamente rápida e ágil mas as paixões são lentas e obsti nadas Por essa razão quando se apresenta um objeto que fornece uma variedade de visões para aquela e de emoções para estas embora a fantasia possa mudar suas visões com grande rapidez cada toque não produzirá uma nota clara e distinta de paixão ao contrário uma pai xão irá sempre se misturar e se confundir com a outra Conforme a probabilidade se incline para o bem ou para o mal a paixão de alegria 476 Livro 2 Parte 3 Seção 9 ou de tristeza predomina no composto Pois a natureza da probabili dade é dispor um número superior de visões ou chances de um lado ou o que é o mesmo um número superior de reincidências de uma paixão ou ainda já que as paixões dispersas são reunidas em uma só um grau superior dessa paixão Em outras palavras a tristeza e a ale gria misturandose em virtude das visões contrárias da imaginação produzem por sua união as paixões da esperança e do medo 13 Neste ponto podese levantar uma questão muito curiosa a pro pósito da contrariedade das paixões que é nosso tema presente Ob servase que quando os objetos das paixões contrárias se apresen tam simultaneamente além do aumento da paixão predominante que já foi explicado e que comumente surge quando de seu pri meiro choque ou embate às vezes acontece que as duas paixões se sucedem uma à outra a breves intervalos às vezes elas se destroem reciprocamente e nenhuma tem lugar e às vezes ambas perma necem unidas na mente Podese perguntar portanto por meio de que teoria explicamos essas variações e a que princípio geral se pode reduzilas 14 Quando as paixões contrárias provêm de objetos inteiramente di ferentes elas se dão alternadamente já que a falta de relação entre as idéias separa as impressões impedindo sua oposição Assim por exemplo quando um homem está aflito com a perda de uma causa judicial e alegre pelo nascimento de um filho a mente ao passar do objeto agradável ao desastroso por maior que seja a velocidade com que faça esse movimento dificilmente conseguirá moderar um afeto pelo outro e permanecer entre eles em um estado de indiferença 15 Essa situação de calma é alcançada com mais facilidade quando o mesmo acontecimento é de natureza mista contendo algo de adverso e algo de favorável em suas diferentes circunstâncias Pois nesse caso ambas as paixões misturandose por meio da relação tornamse mu tuamente destrutivas e deixam a mente em perfeita tranqüilidade 1 6 Mas suponhamos em terceiro lugar que o objeto não seja um com posto de bem e mal mas sim que seja considerado provável ou im 477 Tratado da natureza humana provável em um determinado grau Nesse caso afirmo que as pai xões contrárias estarão presentes ao mesmo tempo na alma e em vez de se destruírem e moderarem mutuamente subsistirão juntas pro duzindo com essa união uma terceira impressão ou afeto Paixões con trárias não são capazes de se destruir reciprocamente a menos que seus movimentos contrários coincidam exatamente e se oponham em sua direção bem como na sensação que produzem Esse confronto exato depende das relações das idéias de que essas paixões derivam e será mais ou menos perfeito conforme o grau da relação No caso da probabilidade as chances contrárias estão relacionadas enquanto determinam a existência ou inexistência do mesmo objeto Mas essa relação está longe de ser perfeita já que algumas das chances estão do lado da existência e outras do lado da inexistência que são obje tos inteiramente incompatíveis É impossível considerar as chances opostas e os eventos delas dependentes por meio de um único olhar firme a imaginação tem de passar alternadamente de uma à outra Cada visão da imaginação produz sua paixão própria que se extin gue gradativamente e é seguida de uma vibração sensível que perma nece após cada toque A incompatibilidade das visões impede as pai xões de se chocar em linha direta se posso me exprimir assim entretanto sua relação é suficiente para misturar suas emoções mais fracas É desse modo que a esperança e o medo surgem das diferen tes misturas dessas paixões opostas de tristeza e alegria e de sua união e conjunção imperfeita 17 Em suma paixões contrárias sucedemse uma à outra quando de correm de objetos diferentes destroemse mutuamente quando pro cedem de partes diferentes do mesmo objeto e subsistem juntas misturandose quando são derivadas das chances ou possibilidades contrárias e incompatíveis de que depende um objeto Podese ver claramente a influência das relações de idéias em todos esses casos Se os objetos das paixões contrárias são totalmente diferentes as pai xões são como dois licores opostos mantidos em garrafas diferentes sem nenhuma influência um sobre o outro Se os objetos estão inti mamente conectados as paixões são como um álcali e um ácido que 478 Livro 2 Parte 3 Seção 9 ao se misturarem destroemse um ao outro Se a relação é mais im perfeita e consiste em visões contraditórias do mesmo objeto as paixões são como óleo e vinagre que por mais que se misturem nun ca se unem e se incorporam perfeitamente 1 8 Como a hipótese concernente à esperança e ao medo traz consigo sua própria evidência seremos mais concisos em nossas provas Uns poucos argumentos fortes valem mais que muitos argumentos fracos 19 As paixões de medo e esperança podem surgir quando as chances são iguais dos dois lados e não se pode descobrir qualquer superio ridade de um sobre o outro Aliás nessa situação as paixões têm sua maior força já que é nela que a mente tem menos base de apoio sen do jogada de um lado para o outro com a maior incerteza Acrescentai um grau superior de probabilidade do lado da tristeza e imediata mente vereis a paixão se difundir por toda a composição tingindoa de medo Aumentai a probabilidade e dessa forma também a triste za e o medo prevalecerá mais e mais até se transformar de modo imperceptível em pura tristeza enquanto a alegria diminui continua mente Após obterdes essa situação diminuí a tristeza do mesmo modo como a aumentastes diminuindo a probabilidade de seu lado vereis a paixão se apagar aos poucos até se transformar insensi velmente em esperança esta por sua vez e do mesmo modo se trans forma pouco a pouco em alegria conforme aumentais essa parte do composto ao aumentar a probabilidade Não serão estas provas cla ras de que as paixões do medo e da esperança são misturas de triste za e alegria assim como em óptica a prova de que um raio de sol colorido que passa através de um prisma é uma composição de dois outros raios é obtida quando diminuís ou aumentais a quantidade de um deles e descobris que ele prevalece proporcionalmente mais ou menos na composição Estou certo de que nem a filosofia da nature za nem a filosofia moral admitem provas mais fortes 20 Há dois tipos de probabilidades quando o objeto em si mesmo é realmente incerto e a ser determinado pelo acaso ou quando embora o objeto já seja certo é incerto para nosso juízo que encontra um determinado número de provas de cada lado da questão Esses dois 479 Tratado da natureza humana tipos de probabilidades causam medo e esperança o que só pode ser devido à propriedade em que concordam a saber a incerteza e flu tuação que conferem à imaginação pela contrariedade de visões que é comum a ambas 21 É o bem ou mal provável que comumente produz esperança ou medo porque a probabilidade sendo um modo oscilante e inconstante de considerar um objeto causa naturalmente uma semelhante mis tura e incerteza das paixões Mas podemos observar que sempre que essa mistura pode ser produzida por outras causas as paixões do medo e da esperança surgem ainda que não haja probabilidade e isso deve se reconhecer é uma prova convincente da presente hipótese 22 Constatamos que um mal concebido meramente como possível al gumas vezes também produz medo sobretudo se for muito grande Um homem não pode pensar em dores e torturas extremas sem tre mer se corre o menor perigo de sofrêlas O pequeno grau da proba bilidade é compensado pela grandeza do mal de modo que a sensa ção é tão viva como se o mal fosse mais provável Um único vislumbre ou visão de um grande mal tem o mesmo efeito que vários vislum bres de um pequeno 23 Mas não são apenas males possíveis que causam medo até alguns reconhecidamente impossíveis o causam por exemplo quando treme mos à beira de um precipício mesmo sabendo que estamos em perfei ta segurança cabendo a nós a escolha entre avançar mais um passo ou não Isso se deve à presença imediata do mal que influencia a imaginação da mesma maneira que a certeza desse mal o faria mas que sendo confrontada pela reflexão sobre nossa segurança imedia tamente se retrai causando o mesmo tipo de paixão que quando se pro duzem paixões contrárias em virtude de uma contrariedade de chances 24 Males certos têm às vezes o mesmo efeito de produzir medo que males possíveis ou impossíveis Assim um homem em uma prisão segura e bem vigiada sem a menor possibilidade de escapar treme ao pensar no suplício a que está sentenciado Isso só ocorre quando o mal certo é terrível e abominável nesse caso a mente o rejeita conti 480 Livro 2 Parte 3 Seção 9 nuamente com horror ao mesmo tempo que ele pressiona continua mente o pensamento O mal é aqui firme e estabelecido mas a men te não pode suportar fixarse sobre ele dessa flutuação e incerteza surge uma paixão de aparência muito semelhante à do medo 25 O medo ou a esperança surgem no entanto não apenas quando o bem ou o mal são incertos quanto a sua existência mas também quan to a seu tipo Se uma pessoa recebesse de alguém de cuja veracidade não pode duvidar a notícia de que um de seus filhos foi subitamente morto é evidente que a paixão que esse evento ocasionaria não se estabeleceria como pura tristeza enquanto ela não obtivesse uma in formação certa de qual de seus filhos perdeu Neste caso há um mal certo mas seu tipo é incerto conseqüentemente o medo que senti mos nessa ocasião não tem qualquer mistura de alegria decorrendo unicamente da flutuação da fantasia entre seus objetos E embora todos os lados da questão produzam aqui a mesma paixão essa paixão não pode se estabelecer recebendo antes da imaginação um movimento trêmulo e instável assemelhandose em sua causa como em sua sen sação à mistura e ao combate entre tristeza e alegria 26 Com base nesses princípios podemos explicar um fenômeno das paixões que à primeira vista parece um tanto extraordinário a saber que a surpresa tende a se transformar em medo e que tudo que é ines perado nos amedronta A conclusão mais óbvia desse princípio é que a natureza humana é em geral pusilânime pois diante da súbita apa rição de um objeto concluímos imediatamente tratarse de um mal e sem esperar até podermos examinar se sua natureza é boa ou má somos logo tomados pelo medo Essa conclusão digo é a mais ób via mas um exame mais profundo nos mostrará que o fenômeno deve ser explicado de outro modo O caráter súbito e a estranheza de uma aparição causam naturalmente uma comoção na mente como todas as coisas para as quais não estamos preparados e a que não estamos acostumados Essa comoção por sua vez produz naturalmente uma curiosidade ou interesse que sendo muito violentos em virtude do forte e súbito impulso do objeto tornamse desconfortáveis asseme 481 Tratado da natureza humana lhandose em sua flutuação e incerteza à sensação do medo ou seja das paixões misturadas de tristeza e alegria Essa imagem do medo se converte naturalmente na coisa mesma causando em nós uma apreensão real pelo mal uma vez que a mente sempre forma seus juízos mais a partir de sua disposição presente do que da natureza de seus objetos 27 Assim todos os tipos de incerteza têm uma forte conexão com o medo mesmo que não causem uma oposição de paixões pelas visões e considerações opostas que nos apresentam Uma pessoa que dei xou seu amigo doente sentirá uma ansiedade maior que aquela que sentiria se estivesse ao seu lado ainda que talvez fosse incapaz não só de lhe prestar assistência mas também de julgar sobre o resulta do de sua doença Nesse caso embora o objeto principal da paixão a vida ou a morte de seu amigo seja igualmente incerto para ela quer esteja presente quer ausente há milhares de pequenas circunstâncias que envolvem a situação e a condição de seu amigo cujo conhecimento fixa a idéia impedindo aquela flutuação e incerteza tão estreitamen te ligadas ao medo É verdade que a incerteza é em um certo sentido tão estreitamente ligada à esperança quanto ao medo já que consti tui uma parte essencial também da composição daquela paixão mas a razão por que a mente não se inclina para esse lado é que a incerteza sozinha é desagradável e tem uma relação de impressões com as pai xões desagradáveis 28 É assim que nossa incerteza acerca de qualquer pequeno detalhe relacionado a uma pessoa aumenta nossa apreensão por sua morte ou infortúnio Horácio notou esse fenômeno Ut assidens implumibus pullus avis Serpentium allapsus timet Magis relictis non ut adsit auxili Latura plus presentibus Horácio Epodos livro I v 1 922 Assim a ave velando por seus filhotes implumes receia mais o ataque sorrateiro das serpentes quando se ausenta do ninho embora a sua presen ça de pouco lhes possa valer NT 482 Livro 2 Parte 3 Seção 9 29 Levando um pouco mais adiante porém esse princípio da cone xão do medo com a incerteza observarei que qualquer dúvida pro duz essa paixão mesmo que só nos apresente em todos os lados coisas boas e desejáveis Uma virgem em sua noite de núpcias enca minhase para o leito cheia de medos e apreensões embora não es pere senão prazer da mais alta espécie que há tanto desejava A novi dade e a magnitude do acontecimento a confusão de desejos e alegrias embaraçam a tal ponto a mente que esta não sabe em que paixão se fixar isso gera nos espíritos animais uma inquietude e ins tabilidade que sendo em alguma medida desconfortáveis degeneram muito naturalmente em medo 30 Continuamos constatando portanto que tudo que causa uma flu tuação ou mistura nas paixões juntamente com algum grau de des conforto sempre produz medo ou ao menos uma paixão tão seme lhante a ele que quase não se pode distinguilas 3 1 Limiteime aqui ao exame da esperança e do medo em sua situa ção mais simples e natural sem considerar todas as variações que podem sofrer com a mistura de diferentes considerações e reflexões Terror consternação espanto ansiedade e outras paixões desse gênero são apenas diferentes espécies e graus de medo É fácil imaginar como uma situação diferente do objeto ou um modo diferente de pensar pode mudar até mesmo a sensação de uma paixão e isso em geral pode explicar todas as subdivisões particulares dos outros afe tos além do medo O amor pode se mostrar em forma de ternura amizade intimidade apreço e benevolência e ter ainda muitas outras aparên cias no fundo todas são o mesmo afeto e decorrem das mesmas cau sas embora com pequenas variações não sendo necessário explicá las caso a caso É por essa razão que me limitei todo esse tempo à paixão principal 32 O mesmo cuidado em evitar a prolixidade me faz deixar de lado o exame da vontade e das paixões diretas tais como aparecem nos animais pois nada é mais evidente que o fato de que são da mesma natureza e despertadas pelas mesmas causas que nas criaturas hu 483 Tratado da natureza humana manas Deixarei essa observação aos cuidados do próprio leitor su gerindolhe que considere ao mesmo tempo a força adicional que isso confere ao presente sistema Seção 1 0 Da curiosidade ou o amor à verdade 1 Mas pareceme que fomos um pouco negligentes ao passar em revista tantas partes diferentes da mente humana e examinar tantas paixões sem levar uma só vez em consideração aquele amor à verdade que é a fonte originária de rodas as nossas investigações Será por tanto conveniente antes de abandonarmos este tema dedicar algu mas reflexões a essa paixão e mostrar sua origem na natureza humana Tratase de um afeto de um tipo tão peculiar que teria sido impossí vel considerálo em qualquer dos itens que examinamos sem risco de obscuridade e confusão 2 A verdade pode ser de dois tipos consistindo quer na descoberta das proporções das idéias consideradas enquanto tais quer na con formidade de nossas idéias dos objetos com a existência real destes É certo que a primeira espécie de verdade não é desejada meramente enquanto verdade e não é apenas a correção de nossas conclusões que nos dá prazer Pois essas conclusões são tão corretas se desco brimos a igualdade de dois corpos utilizando um compasso quanto se a conhecemos por meio de uma demonstração matemática Em bora no segundo caso as provas sejam demonstrativas e no primeiro apenas sensíveis a mente de maneira geral aquiesce com igual se gurança nos dois casos E em uma operação aritmética em que tan to a verdade quanto a certeza têm a mesma natureza que na mais com plexa equação algébrica o prazer é bastante insignificante quando não se transforma em dor Isso é uma prova evidente de que a satis fação que algumas vezes obtemos com a descoberta da verdade não procede dessa verdade considerada meramente enquanto tal mas so mente se dotada de certas qualidades 484 Livro 2 Parte 3 Seção 1 0 3 A primeira e mais importante circunstância requerida para tor nar a verdade agradável é a inteligência e a capacidade empregadas em sua invenção e descoberta Nunca valorizamos o que é fácil e ób vio e até o que é em si mesmo difícil se chegamos a conhecêlo sem dificuldade e sem um extremo esforço de pensamento ou juízo é pouco considerado Adoramos seguir as demonstrações dos matemá ticos mas obteríamos pouca satisfação de alguém que apenas nos informasse acerca das proporções de linhas e ângulos ainda que de positássemos a maior confiança em seu julgamento e em sua veraci dade De fato nesse caso basta ter ouvidos para aprender a verdade Não somos obrigados a concentrar nossa atenção ou a exercitar nos sa inteligência o que dentre todos os exercícios da mente é o mais prazeroso e agradável 4 Mas embora o exercício da inteligência seja a principal fonte da satisfação que extraímos das ciências duvido que seja por si só sufi ciente para nos dar um prazer considerável A verdade que descobri mos também tem de ter alguma importância É fácil multiplicar ao infinito problemas algébricos e é infindável a descoberta das propor ções das seções cônicas poucos matemáticos porém têm prazer nessas investigações preferindo dirigir seus pensamentos para coi sas mais úteis e importantes Ora a questão é de que maneira essa utilidade e importância agem sobre nós A dificuldade está em que muitos filósofos consumiram seu tempo destruíram sua saúde e des prezaram sua riqueza na busca de verdades que consideravam impor tantes e úteis para o mundo embora toda sua conduta e comporta mento deixasse claro que não eram dotados de qualquer espírito público e tampouco tinham preocupação alguma pelos interesses da humanidade Se estivessem convencidos de que suas descobertas eram irrelevantes perderiam por completo todo gosto por seus estudos muito embora suas conseqüências lhes fossem inteiramente indife rentes o que parece constituir uma contradição 5 Para resolver essa contradição temos de considerar que existem certos desejos e inclinações que não vão além da imaginação sendo 485 Tratado da natureza humana antes pálidas sombras e imagens de paixões que afetos reais Assim suponhamos um homem que examina as fortificações de uma cida de considera sua força e vantagens naturais ou adquiridas observa a disposição e o mecanismo dos baluartes trincheiras minas e ou tros dispositivos militares é claro que conforme estes se mostrem adequados para cumprir suas finalidades ele obterá um prazer e uma satisfação proporcionais Como esse prazer decorre da utilidade e não da forma dos objetos não pode consistir senão em uma simpatia com os habitantes em prol de cuja segurança toda essa arte foi emprega da entretanto é possível que esse homem por ser estrangeiro ou ini migo não sinta em seu coração nenhuma afeição por eles ou guar delhes mesmo um certo ódio 6 Podese objetar é verdade que uma simpatia tão remota é um fundamento muito frágil para uma paixão e tanto trabalho e aplica ção como os que freqüentemente observamos nos filósofos nunca poderiam ter uma origem tão insignificante Mas aqui volto ao que salientei há pouco a saber que o prazer do estudo consiste especial mente na ação da mente e no exercício da inteligência e do entendimento para descobrir ou compreender uma verdade Se é preciso que a verda de seja importante para que o prazer se complete não é porque essa importância traga uma adição considerável para nossa satisfação mas somente porque é em alguma medida necessária para fixar nossa atenção Quando estamos descuidados e desatentos essa mesma ação do entendimento não tem efeito sobre nós sendo incapaz de trans mitir a satisfação que transmite quando nos encontramos em outra disposição 7 Mas além da ação da mente que é o principal fundamento do prazer é também necessário um certo grau de sucesso na realização de nosso objetivo ou seja a descoberta da verdade que examinamos A esse respeito farei uma observação geral que poderá ser útil em muitas ocasiões quando a mente busca um fim com paixão mesmo que essa paixão não derive originalmente do fim mas apenas da ação e da busca adquirimos graças ao curso natural dos afetos um inte 486 Livro 2 Parte 3 Seção 1 O resse pelo próprio fim e sentimos um desconforto se nossa busca fracassa Isso se deve à relação e à direção paralela das paixões de que falamos anteriormente 8 Para ilustrar tudo isso por meio de um exemplo familiar obser varei que não pode haver duas paixões mais semelhantes que as da caça e da filosofia por maior que seja a desproporção que à primeira vista pareça existir entre elas É evidente que o prazer da caça consis te na ação da mente e do corpo no movimento na atenção na difi culdade e na incerteza Também é evidente que essas ações têm de ser acompanhadas de uma idéia de utilidade para ter um efeito sobre nós Um homem de enorme fortuna e o mais distante possível de qual quer avareza ainda que tenha prazer em caçar perdizes e faisões não sente satisfação alguma ao atirar em corvos e gralhas porque consi dera as duas primeiras aves próprias para a mesa e as outras duas inteiramente inúteis Aqui certamente a utilidade ou a importância por si mesmas não causam nenhuma paixão real sendo requeridas apenas para dar sustentação à imaginação e a mesma pessoa que des preza uma vantagem dez vezes maior em qualquer outro domínio tem prazer em trazer para casa meia dúzia de galinholas ou lavandeiras após ter gasto várias horas a caçálas Para completar o paralelo entre a caça e a filosofia observemos que embora em ambos os casos pos samos desprezar o fim mesmo de nossa ação concentramonos tanto nele no calor dessa ação que nos sentimos muito mal quando desa pontados e ficamos tristes se perdemos nossa presa ou se cometemos um erro em nosso raciocínio 9 Se quisermos um outro paralelo com esses afetos poderemos con siderar a paixão do jogo que proporciona um prazer pelos mesmos princípios que a caça e a filosofia Observouse que o prazer do jogo Similar na edição de SBN corrigido para familiar seguindo as razões dos editores da NNOPT cf David F Norton Mary J Norton op cit l no similar instance pre cedes the one Hume goes on to mention 2 assuming Hume did not mistakenly write similar when he meant familiar the compositor could easily enough have misread the manuscript and made the error 3 the comparison of hunting and philosophy had been made familiar by Eramus popular The Praise of Foi NT 487 Tratado da natureza humana não decorre apenas do interesse pois muitos abrem mão de um ganho certo por essa diversão Tampouco deriva apenas do jogo pois essas mesmas pessoas não sentem nenhuma satisfação quando não jogam por dinheiro Procede antes da união dessas duas causas embora sozinhas elas não tenham nenhum efeito Ocorre aqui o mesmo que em certos preparados químicos em que a mistura de dois líquidos incolores e transparentes produz um terceiro que é opaco e colorido 10 O interesse que temos por um jogo atrai nossa atenção sem o que não teríamos nenhum prazer nessa ou em qualquer outra ação Uma vez atraída a atenção a dificuldade a variedade e os súbitos re vezes da sorte fazem que nos interessemos ainda mais e é desse inte resse que resulta nossa satisfação A vida humana é uma cena tão en fadonha e os homens em geral são tão indolentes que tudo que os diverte ainda que por uma paixão mesclada com a dor no essencial lhes dá um prazer perceptível Esse prazer aumenta ainda mais nes te caso pela natureza dos objetos que sendo sensíveis e de âmbito limitado são concebidos com facilidade e agradam à imaginação 1 1 A mesma teoria que explica o amor à verdade na matemática e na álgebra podese estender à moral à política à filosofia da natureza e a outros estudos em que não consideramos as relações abstratas das idéias mas suas conexões reais e sua existência Mas além do amor pelo sa ber que se mostra nas ciências existe implantada na natureza huma na uma certa curiosidade que é uma paixão derivada de um princípio bem diferente Algumas pessoas têm um desejo insaciável de conhe cer as ações e os detalhes da vida de seus vizinhos mesmo que não tenham nenhum interesse nisso e mesmo que dependam inteiramen te dos outros para obter sua informação caso em que não há lugar para estudo ou aplicação Investiguemos a causa desse fenômeno 12 Já provamos suficientemente que a influência da crença é ao mes mo tempo avivar e fixar uma idéia na imaginação e impedir qual quer hesitação e incerteza a seu respeito Ambas as circunstâncias são favoráveis Mediante a vividez da idéia criamos um interesse por parte da fantasia e produzimos embora em menor grau o mesmo prazer 488 Livro 2 Parte 3 Seção 1 0 que surge de uma paixão moderada Assim como a vividez da idéia dá prazer assim também sua certeza impede o desconforto ao fixar na mente uma idéia em particular impedindoa de oscilar na escolha de seus objetos Tratase de uma qualidade da natureza humana que se manifesta em muitas ocasiões e é comum tanto à mente como ao corpo que uma mudança demasiadamente brusca e violenta nos é desagradável e mesmo objetos em si mesmos indiferentes produzem um malestar se alterados Como a natureza da dúvida é causar uma variação no pensamento e transportarnos subitamente de uma idéia a outra ela deve conseqüentemente ser ocasião de dor Essa dor ocorre sobretudo quando o interesse a relação ou a magnitude e a novidade de um acontecimento nos dão um interesse por ele Não é sobre qualquer questão de fato que temos curiosidade tampouco te mos curiosidade apenas sobre aquelas que são de nosso interesse co nhecer É suficiente que a idéia nos toque com tal força e nos concirna tão de perto que sua instabilidade e inconstância nos causem um des conforto Para um estrangeiro que chega pela primeira vez a uma ci dade pode ser totalmente indiferente conhecer a história e as aven turas de seus habitantes mas conforme vai se familiarizando com as pessoas e após viver algum tempo entre elas adquire a mesma curio sidade que os que ali nasceram Quando estamos lendo a história de uma nação podemos ter um grande desejo de esclarecer uma dúvida ou dificuldade que se apresente mas nos descuidamos dessas inves tigações quando as idéias desses acontecimentos se vêem em grande medida obliteradas 489 Tratado da natureza humana Uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais Durce semper virtutis amator Qucere quid est virtus et posce exemplar honestí Lucanus Livro 3 Da moral Com um Apêndice em que algumas passagens dos volumes precedentes são ilustradas e explicadas Lucano Farsália IX v562563 Tu que desde sempre foste amante da austera virtude pergunta em que consiste essa virtude indaga qual o modelo da honradez NT Advertência julgo conveniente informar ao público que embora este seja um terceiro volume do Tratado da natureza humana ele é de certo modo independente dos outros dois e não requer que o leitor considere todos os raciocínios abstra tos neles contidos Espero que o leitor comum possa compreendêlo sem pre cisar dedicar a ele uma atenção maior que aquela que se costuma conceder a qualquer livro que envolva algum raciocínio Observese apenas que conti nuo a empregar os termos impressões e idéias no mesmo sentido que an teriormente e que por impressões refirome às nossas percepções mais for tes tais como nossas sensações afetos e sentimentos e por idéias às percepções mais fracas ou cópias daquelas na memória e na imaginação 493 Seção 1 Parte 1 Da virtude e do vício em geral As distinções morais não são derivadas da razão 1 Todo raciocínio abstruso apresenta um mesmo inconveniente pode silenciar o antagonista sem convencêlo e para nos darmos conta de sua força precisamos dedicarlhe um estudo tão intenso quanto o que foi necessário para sua invenção Quando deixamos nosso gabi nete de estudos e nos envolvemos com os afazeres da vida corrente suas conclusões parecem se apagar como os fantasmas noturnos à chegada da manhã e é difícil mantermos até mesmo aquela convicção que havíamos adquirido com tanto esforço Isso é ainda mais mani festo no caso de longas cadeias de raciocínio em que temos de pre servar até o final a evidência das primeiras proposições e freqüen temente perdemos de vista todas as máximas mais bem estabelecidas da filosofia ou da vida corrente Entretanto ainda tenho a esperança de que o presente sistema filosófico ganhará nova força conforme vá avançando e que nossos raciocínios a respeito da moral irão corrobo rar o que foi dito a respeito do entendimento e das paixões A moral é 495 Tratado da natureza humana um tema que nos interessa mais que qualquer outro Imaginamos que a paz da sociedade está em jogo a cada decisão que tomamos a seu respeito e é evidente que essa preocupação deve fazer nossas especulações parecerem mais reais e sólidas do que quando o assunto nos é em boa parte indiferente Se algo nos afeta concluímos que não pode ser uma quimera e como nossa paixão se envolve em um lado ou em outro pensamos naturalmente que a questão está ao alcance da compreensão humana ao passo que em outros casos dessa natu reza tendemos a ter dúvidas a tal respeito Sem essa vantagem jamais teriame aventurado a escrever um terceiro volume de uma filosofia tão abstrusa em uma época em que a maioria dos homens parece concor dar em fazer da leitura uma diversão rejeitando tudo que requeira um grau considerável de atenção para ser compreendido 2 Já observamos que nada jamais está presente à mente senão suas percepções e todas as ações como ver ouvir julgar amar odiar e pen sar incluemse sob essa denominação Qualquer ação exercida pela mente pode ser compreendida sob o termo percepção conseqüentemen te esse termo não se aplica menos aos juízos pelos quais distingui mos entre o bem e o mal morais que a qualquer outra operação da mente Aprovar um caráter e condenar outro são apenas duas percep ções diferentes 3 Ora como as percepções se reduzem a dois tipos impressões e idéias essa distinção gera uma questão com que abriremos a presente in vestigação a respeito da moral Será por meio de nossas idéias ou impres sões que distinguimos entre o vício e a virtude e declaramos que uma ação é condenável ou louvável A resposta a essa questão dará imediatamente fim a todos os discursos vagos e grandiloqüentes atendonos a uma abordagem exata e precisa sobre o assunto presente 4 Aqueles sistemas que afirmam que a virtude não passa de uma conformidade com a razão que existe uma eterna adequação e ina dequação das coisas e esta é a mesma para todos os seres racionais que as consideram que os critérios imutáveis do que é certo e do que é errado impõem uma obrigação não apenas às criaturas humanas 496 Livro 3 Parte 1 Seção 1 mas também à própria Divindade todos esses sistemas concordam que a moralidade como a verdade é discernida meramente por meio das idéias de sua justaposição e comparação Portanto para julgar mos esses sistemas basta considerar se é possível pela simples ra zão distinguir entre o bem e o mal morais ou se é preciso a concor rência de outros princípios que nos capacitem a fazer essa distinção 5 Se a moralidade não tivesse naturalmente nenhuma influência so bre as paixões e as ações humanas seria inútil fazer tanto esforço para inculcála e nada seria mais vão que aquela profusão de regras e pre ceitos tão abundantes em todos os moralistas A filosofia comumente se divide em especulativa e prática Como a moral se inclui sempre nesta última divisão supõese que influencie nossas paixões e ações e vá além dos juízos calmos e impassíveis do entendimento Isso se con firma pela experiência corrente que nos informa que os homens são freqüentemente governados por seus deveres abstendose de deter minadas ações porque as julgam injustas e sendo impelidos a outras porque julgam tratarse de uma obrigação 6 Como a moral portanto tem uma influência sobre as ações e os afetos seguese que não pode ser derivada da razão porque a razão sozinha como já provamos nunca poderia ter tal influência A moral desperta paixões e produz ou impede ações A razão por si só é in teiramente impotente quanto a esse aspecto As regras da moral por tanto não são conclusões de nossa razão 7 Creio que ninguém irá negar a legitimidade dessa inferência e não há outra maneira de evitála senão negando o princípio que a fundamenta Enquanto se admitir que a razão não tem influência sobre nossas paixões ou ações será inútil afirmar que a moralidade é descoberta apenas por uma dedução racional Um princípio ativo nunca pode estar fundado em um princípio inativo e se a razão é em si mesma inativa terá de permanecer assim em todas as suas formas e aparências quer se exerça nos assuntos naturais ou nos morais quer considere os poderes dos corpos externos ou as ações dos seres racionais 497 Tratado da natureza humana 8 Seria enfadonho repetir agora todos os argumentos que empre guei para provar1 que a razão é inteiramente inerte jamais podendo impedir ou produzir qualquer ação ou afeto É fácil lembrar o que foi dito sobre esse assunto Retomarei aqui apenas um desses argu mentos e tentarei tornálo ainda mais concludente e mais aplicável ao tema presente 9 A razão é a descoberta da verdade ou da falsidade A verdade e a falsidade consistem no acordo e no desacordo seja quanto à relação real de idéias seja quanto à existência e aos fatos reais Portanto aquilo que não for suscetível desse acordo ou desacordo será incapaz de ser verdadeiro ou falso e nunca poderá ser objeto de nossa razão Ora é evidente que nossas paixões volições e ações são incapazes de tal acor do ou desacordo já que são fatos e realidades originais completos em si mesmos e não implicam nenhuma referência a outras paixões volições e ações É impossível portanto declarálas verdadeiras ou falsas contrárias ou conformes à razão 10 Esse argumento é duplamente vantajoso para nosso propósito presente Pois prova diretamente que as ações não extraem seu mérito de uma conformidade com a razão nem seu caráter censurável de uma contrariedade em relação a ela e prova a mesma verdade mais indire tamente ao nos mostrar que como a razão nunca pode impedir ou pro duzir imediatamente uma ação contradizendoa ou aprovandoa tampouco pode ser a fonte da distinção entre o bem e o mal morais os quais constatamos que têm tal influência As ações podem ser lou váveis ou condenáveis mas não podem ser racionais ou irracionais Louvável ou condenável portanto não é a mesma coisa que racional ou irracional O mérito e o demérito das ações freqüentemente contra dizem e às vezes controlam nossas propensões naturais Mas a ra zão não tem tal influência As distinções morais portanto não são frutos da razão A razão é totalmente inativa e nunca poderia ser a fonte de um princípio ativo como a consciência ou sentido moral Livro 2 Parte 3 Seção 3 498 Livro 3 Parte 1 Seção 1 1 1 Mas talvez se diga que embora nenhuma vontade ou ação possa contradizer imediatamente a razão tal contradição pode ser encontrada em alguns dos concomitantes da ação a saber em suas causas ou efei tos A ação pode causar um juízo ou pode ser obliquamente causada por um juízo quando este coincide com uma paixão em virtude disso por um abuso de linguagem que a filosofia dificilmente admitirá a mesma contrariedade pode ser atribuída à ação Cabe agora considerar até que ponto essa verdade ou falsidade pode ser a fonte da moral 12 Já observamos que a razão em sentido estrito e filosófico só pode influenciar nossa conduta de duas maneiras despertando uma pai xão ao nos informar sobre a existência de alguma coisa que é um ob jeto próprio dessa paixão ou descobrindo a conexão de causas e efei tos de modo a nos dar meios de exercer uma paixão qualquer Esses são os únicos tipos de juízos que podem acompanhar nossas ações ou que se pode dizer que as produzem de alguma maneira e é preci so reconhecer que esses juízos podem freqüentemente ser falsos e er rôneos Uma pessoa pode ser afetada por uma paixão ao supor que um objeto comporta dor ou prazer quando na verdade esse objeto não tem nenhuma tendência a produzir qualquer das duas sensações ou produz a sensação contrária à que ela imaginava Uma pessoa tam bém pode tomar medidas erradas para atingir um certo fim e assim por sua conduta descabida pode retardar em vez de favorecer a execu ção de um determinado projeto Podese pensar que esses juízos falsos afetam as paixões e as ações a eles conectadas e segundo um modo figurado e impróprio de falar podese mesmo dizer que eles as tornam contrárias à razão Mas ainda que se reconheça tal coisa é fácil obser var que esses erros estão longe de ser a fonte de toda imoralidade tan to mais que costumam ser muito inocentes não trazendo nenhuma espécie de culpabilidade à pessoa que teve o infortúnio de os come ter Não vão além de um erro de fato que em geral os moralistas não consideram um crime porque é inteiramente involuntário Quando me engano quanto ao poder que certos objetos teriam de produzir dor ou prazer ou se não conheço os meios adequados de satisfazer 499 Tratado da natureza humana meus desejos sou antes digno de pena que de censura Ninguém ja mais pode considerar tais erros um defeito em meu caráter moral Por exemplo se vejo ao longe uma fruta que na realidade é desagradável posso por um engano imaginar que é agradável e deliciosa Eis aqui um erro Escolho certos meios para alcançar essa fruta mas esses meios são inadequados para meu objetivo Eis aqui um segundo erro Mas não existe um terceiro erro possível em raciocínios concernentes a ações Pergunto portanto se um homem nessa situação e culpado desses dois erros deve ser visto como vicioso e criminoso por mais inevitáveis que esses erros possam ter sido Ou se é possível imaginar que tais erros são a fonte de toda a imoralidade 13 Talvez seja bom observar neste ponto que se as distinções mo rais fossem derivadas da verdade ou falsidade desses juízos elas te riam de ocorrer toda vez que os formássemos não haveria nenhuma diferença entre a questão dizer respeito a uma maçã ou a um reino ou entre o erro poder ou não ter sido evitado Como se está supondo que a própria essência da moralidade consiste em um acordo ou em um desacordo com a razão as outras circunstâncias seriam inteira mente arbitrárias jamais podendo conferir a uma ação o caráter de virtuosa ou viciosa ou privála desse caráter A isso podemos acres centar que como esse acordo ou desacordo não admite graus todas as virtudes e vícios seriam obviamente iguais 14 Se se afirmasse que embora um erro de fato não seja um crime um erro de direito freqüentemente o é e este último pode ser a fonte da imoralidade eu responderia que é impossível que um tal erro possa jamais ser a fonte original da imoralidade pois supõe a existência real de um certo e um errado isto é a existência real de uma distinção mo ral independente desses juízos Um erro de direito portanto pode se tornar uma espécie de imoralidade mas apenas secundária fundada em alguma outra imoralidade que lhe seja anterior 15 Quanto aos juízos que são efeitos de nossas ações e quando fal sos dão ocasião para que se declarem as ações contrárias à verdade e à razão podemos observar que nossas ações jamais causam nenhum juízo seja verdadeiro ou falso em nós mesmos e só têm tal efeito 500 Livro 3 Parte 1 Seção 1 nas outras pessoas Certamente há muitas ocasiões em que uma ação pode gerar falsas conclusões por parte dos outros assim se uma pessoa olhando pela janela vê um comportamento lascivo entre mim e a mulher de meu vizinho pode ingenuamente imaginar que esta é com certeza minha esposa Sob esse aspecto minha ação assemelhase um pouco a uma mentira ou falsidade com uma única mas importante diferença neste caso não estou realizando a ação com a intenção de gerar um falso juízo em outra pessoa mas unicamente para satisfa zer minha lascívia e paixão Entretanto ela causa acidentalmente um erro e um falso juízo e a falsidade de seus efeitos pode ser atribuída se falamos de uma maneira bizarramente figurada à própria ação Ainda assim não consigo ver nisso razão para se afirmar que a ten dência a causar um erro seja a fonte primeira ou princípio originá rio de toda a imoralidade 2 1 6 Em resumo portanto é impossível que a distinção entre o bem e o mal morais possa ser feita pela razão já que essa distinção influencia nossas ações coisa de que a razão por si só é incapaz A razão e o juízo 2 Poderseia pensar que essa prova é inteiramente supérflua se um autor recente que teve a sorte de ganhar alguma reputação William Wollaston 16591724 The Religion of Nature Delineated 1 39 N T não houvesse afirmado seriamente que uma tal falsidade é o fun damento de toda falta e deformidade moral Para descobrir a falácia dessa hipótese te mos apenas de considerar que uma ação só pode gerar uma falsa conclusão em virtude de uma obscuridade nos princípios naturais que faz com que uma causa seja secretamente interrompida em sua operação por causas contrárias tornando a conexão entre dois ob jetos incerta e variável Ora como uma incerteza e uma variedade semelhante nas causas têm lugar até mesmo nos objetos naturais produzindo um erro semelhante em nosso juízo se essa tendência a produzir o erro fosse a própria essência do vício e da imoralidade deverseia seguir daí que mesmo objetos inanimados poderiam ser viciosos e imorais 2 É inútil alegar que os objetos inanimados agem sem liberdade ou escolha Pois como a liberdade e a escolha não são necessárias para que uma ação produza em nós uma con clusão errônea não podem ser sob nenhum aspecto essenciais à moralidade E não me é fácil perceber como segundo esse sistema poderiam jamais ser levadas em consideração por ela Se a tendência a causar erro pudesse ser a origem da imoralidade essa tendência e a imoralidade seriam sempre inseparáveis 3 Acrescentese a isso que se eu tivesse tomado a precaução de fechar as janelas enquanto me entregava a tais liberdades com a esposa de meu vizinho não teria sido culpado de ne nhuma imoralidade isso porque minha ação sendo feita inteiramente às escondidas não te ria tido a menor tendência a produzir uma falsa conclusão 4 Pela mesma razão um ladrão que entrasse em uma casa por uma escada encostada à janela e tomasse todo cuidado imaginável para não fazer nenhum ruído não estaria de modo 501 Tratado da natureza humana podem é verdade ser a causa mediara de uma ação estimulando ou dirigindo uma paixão não pretendemos afirmar porém que um juízo dessa espécie seja acompanhado em sua verdade ou falsidade de vir tude ou de vício Quanto aos juízos causados por nossas ações eles são ainda menos capazes de conferir essas qualidades morais às ações que são suas causas 17 Mas para sermos mais precisos mostrando que a boa filosofia não pode defender a existência dessas eternas e imutáveis adequações e inadequações das coisas podemos avaliar as seguintes considerações 18 Se o pensamento e o entendimento sozinhos fossem capazes de fixar os limites do certo e do errado a qualidade de virtuoso ou vicio algum cometendo uma ação criminosa Porque ou não seria percebido ou se o fosse não poderia produzir um erro já que ninguém ao vêlo nessa situação iria tomálo por quem ele não é realmente 5 Bem sabemos que as pessoas estrábicas fazem os outros se enganarem facilmente pois imaginamos que estão cumprimentando ou falando com uma pessoa quando na verdade estão se dirigindo a outra Seriam elas então por essa razão imorais 6 Além disso podemos facilmente observar que em todos esses argumentos existe um evidente círculo vicioso Uma pessoa que se apossa dos bens de outra e os usa como se fossem seus de uma certa maneira declara que esses bens são seus e essa falsidade é a fonte da imoralidade da injustiça Mas serão a propriedade o direito ou a obrigação inte ligíveis sem uma moralidade antecedente 7 Um homem que mostra ingratidão por seu benfeitor está de certa maneira afirman do que jamais recebeu favores dele Mas de que maneira Será porque é seu dever ser gra to Mas isso supõe que exista anteriormente uma regra do dever e da moral Será porque a natureza humana é geralmente grata o que nos leva a concluir que um homem que causa algum dano nunca recebeu nenhum favor da pessoa a quem causou esse dano Mas a natureza humana não é geralmente tão grata a ponto de justificar tal conclusão E se o fosse será a exceção a uma regra geral sempre criminosa exclusivamente por ser uma exceção 8 O que talvez seja suficiente para destruir inteiramente esse sistema extravagante é que ele nos deixa com a mesma dificuldade tanto para explicar por que razão a verdade é vir tuosa e a falsidade viciosa quanto para dar conta do mérito ou da torpeza de qualquer outra ação Admitirei se assim o desejardes que toda imoralidade deriva dessa suposta falsidade na ação contanto que me forneçais uma razão plausível que explique por que tal falsidade é imoral Se considerardes corretamente a questão vereis que vos encontrais ante a mesma dificuldade inicial 9 Este último argumento é bastante concluente De fato se não houver um mérito ou torpeza evidentes vinculados a essa espécie de verdade ou falsidade ela nunca poderá influir em nossas ações Pois quem jamais pensou em se abster de uma ação só porque outras pessoas poderiam tirar dela falsas conclusões Ou quem jamais realizou uma ação ape nas para poder gerar conclusões verdadeiras 502 Livro 3 Parte 1 Seção 1 so teria de estar em algumas relações de objetos ou então ser uma questão de fato descoberta por nosso raciocínio Tratase de uma con seqüência evidente Como as operações do entendimento humano se dividem em dois tipos a comparação de idéias e a inferência de ques tões de fato se a virtude fosse descoberta pelo entendimento teria de ser objeto de uma dessas operações pois não há um terceiro tipo de operação do entendimento capaz de descobrila Certos filósofos pro pagaram persistentemente a opinião de que a moralidade é passível de demonstração E embora ninguém jamais tenha sido capaz de dar um único passo nessas demonstrações dáse por suposto que essa ciência pode alcançar uma certeza igual à da geometria ou da álgebra Segundo essa suposição o vício e a virtude devem consistir em cer tas relações já que todos admitem que nenhuma questão de fato é sus cetível de demonstração Comecemos portanto examinando essa hi pótese e tentemos se possível determinar as qualidades morais que há tanto têm sido objeto de nossas vãs investigações Designemos dis tintamente as relações que constituem a moralidade ou obrigação para sabermos em que consistem e de que maneira devemos julgálas 19 Se afirmardes que o vício e a virtude consistem em relações sus cetíveis de certeza e demonstração devereis vos limitar àquelas qua tro relações que admitem tal grau de evidência e nesse caso incor rereis em absurdos dos quais nunca vos conseguireis livrar Pois como fazeis a própria essência da moralidade repousar nas relações e como todas essas relações são aplicáveis não apenas a objetos irracionais mas também a objetos inanimados seguese que mesmo tais objetos deveriam ser suscetíveis de mérito e demérito Semelhança contrarie dade graus de qualidade e proporções de quantidade e número todas essas relações se aplicam com tanta propriedade à matéria quanto às nos sas ações paixões e volições É inquestionável portanto que a moralidade não se encontra em nenhuma dessas relações nem o sen tido da moralidade está em sua descoberta3 3 Como prova de quão confusa costuma ser nossa maneira de pensar acerca desse assunto podemos observar que aqueles que afirmam que a moralidade é demonstrável não dizem 503 Tratado da natureza humana 20 Caso se afirme que o sentido da moralidade consiste na desco berta de alguma relação distinta dessas e nossa enumeração não foi completa quando reduzimos todas as relações demonstrativas a quatro tipos diferentes não saberei o que responder enquanto alguém não tiver a bondade de me apontar essa nova relação É impossível refu tar um sistema que ainda não foi explicado Lutando assim no escuro damos golpes no ar e freqüentemente os acertamos onde o inimigo não está 21 Neste momento pois devo me contentar em exigir de quem quiser tentar esclarecer esse sistema as duas condições seguintes Primeiro como o bem e o mal morais se aplicam apenas às ações da mente e derivam de nossa situação quanto aos objetos externos as relações de que resultam essas distinções morais têm de se encon trar apenas entre ações internas e objetos externos e não podem ser aplicáveis nem a ações internas comparadas entre si nem a objetos externos quando opostos a outros objetos externos Porque como a moralidade supostamente acompanha certas relações se essas rela ções pudessem estar contidas nas ações internas consideradas isola damente seguirseia que poderíamos ser culpados de crimes em nós mesmos e independentemente de nossa situação quanto ao resto do universo de maneira semelhante se essas relações morais pudes sem ser aplicadas aos objetos externos seguirseia que mesmo obje tos inanimados seriam suscetíveis de beleza e deformidade morais Ora parece difícil imaginar que comparandose nossas paixões volições que ela está nas relações e que as relações são distinguíveis pela razão Dizem apenas que a razão pode descobrir que uma determinada ação em determinadas relações é virtuosa e tal outra é viciosa Dirseia que consideram suficiente introduzir a palavra Relação na proposição sem se preocupar em saber se ela vem ou não a propósito Mas eis aqui creio um claro argumento A razão demonstrativa descobre apenas relações No entanto essa mesma razão segundo essa hipótese descobre também o vício e a virtude Essas quali dades morais portanto têm de ser relações Quando condenamos uma ação em uma dada situação a totalidade do complexo objeto composto da ação e da situação tem de formar certas relações e é nisso que consiste a essência do vício Não há outro modo de se compreender essa hipótese Pois o que a razão descobre ao declarar que uma ação é viciosa Descobre uma relação ou uma questão de fato Essas perguntas são decisivas e não devem ser eludidas 504 Livro 3 Parte 1 Seção 1 e ações com os objetos externos possamos descobrir alguma rela ção que não pertença nem às paixões e volições nem a esses objetos externos comparados entre si 22 Será ainda mais difícil porém satisfazer à segunda condição requeri da para justificar esse sistema De acordo com os princípios daqueles que afirmam a existência de uma diferença abstrata e racional entre o bem e o mal morais e a existência de uma adequação e inadequação naturais das coisas não apenas se supõe que essas relações sendo eternas e imutáveis são as mesmas para todas as criaturas humanas que as consideram mas também que seus efeitos são necessariamen te os mesmos e concluise que elas não influenciam menos ou an tes influenciam mais a direção da vontade de Deus que o governo dos indivíduos racionais e virtuosos de nossa própria espécie Mas esses dois pontos são evidentemente distintos Uma coisa é conhe cer a virtude e outra conformar a vontade com ela Portanto para provar que os critérios do certo e do errado são leis eternas obrigató rias para toda mente racional não basta mostrar as relações que os fundamentam temos de mostrar também a conexão entre a relação e a vontade e temos de provar que essa conexão é tão necessária que deve ter lugar e exercer sua influência em toda mente bem intencio nada ainda que a diferença entre essas mentes seja sob outros as pectos imensa e até infinita Ora além de já termos provado que mes mo na natureza humana nenhuma relação sozinha pode produzir uma ação além disso digo mostramos ao tratar do entendimento que não existe nenhuma conexão de causa e efeito tal como se a compreen de ou seja que possa ser descoberta de outro modo que não seja pela experiência e da qual possamos pretender ter alguma certeza pela mera consideração dos objetos Todos os seres do universo conside rados em si mesmos aparecem como inteiramente desligados e in dependentes uns dos outros Apenas pela experiência conhecemos sua influência e conexão e essa influência não deveríamos jamais estendê la para além da experiência 23 Assim é impossível satisfazer à primeira condição exigida do sis tema que defende a existência de medidas eternas e racionais do cer 505 Tratado da natureza humana to e do errado porque é impossível mostrar as relações em que tal distinção poderia estar fundada E é igualmente impossível satisfa zer à segunda condição pois não podemos provar a priori que essas re lações se realmente existissem e fossem percebidas seriam univer salmente impositivas e obrigatórias 24 Mas para tornar essas reflexões gerais mais claras e convincen tes podemos ilustrálas por meio de alguns exemplos em que esse caráter de bem ou mal morais é mais universalmente reconhecido De todos os crimes que as criaturas humanas são capazes de come ter o mais terrível e antinatural é a ingratidão sobretudo quando é cometida contra os pais e quando se mistura aos crimes mais flagran tes que são a violência física e a morte Isso todos os homens reco nhecem tanto os filósofos como o povo apenas os filósofos levan tam a questão de saber se a culpabilidade e a depravação moral dessa ação podem ser descobertas por um raciocínio demonstrativo ou são sentidas por um sentido interno felt by an internai sense e por meio de algum sentimento ocasionado naturalmente pela reflexão sobre tal ação A solução dessa questão invalidará rapidamente a primeira opi nião se pudermos mostrar a existência das mesmas relações em ou tros objetos que não sejam acompanhados pela noção de alguma fal ta ou iniqüidade A razão ou ciência consiste apenas na comparação de idéias e na descoberta de suas relações Se as mesmas relações ti verem características diferentes devese seguir evidentemente que essas qualidades não são descobertas unicamente pela razão Por tanto para pôr tudo isso à prova escolhamos um objeto inanimado qualquer como um carvalho ou um olmo e suponhamos que ao deixar cair suas sementes ele produza logo abaixo de si um broto que crescendo gradativamente acaba por encobrir e destruir a árvo remãe Pergunto pois se neste caso falta alguma relação que pos sa ser descoberta no parricídio ou na ingratidão A primeira árvore não é a causa da existência da segunda e esta última a causa da des truição da primeira do mesmo modo que um filho quando mata seu pai Não basta responder que aqui falta uma escolha ou uma vontade 506 Livro 3 Parte 1 Seção 1 Pois no caso do parricídio a vontade não dá origem a nenhuma rela ção diferente sendo apenas a causa de que deriva a ação e conseqüen temente produz as mesmas relações que no caso do carvalho ou do olmo surgem de outros princípios É a vontade ou escolha que de termina um homem a matar seu pai e são as leis da matéria e do movimento que determinam um broto a destruir o carvalho que o gerou Aqui portanto as mesmas relações têm causas diferentes mas as relações ainda são as mesmas E como sua descoberta não se faz acompanhar de uma noção de imoralidade em ambos os casos se guese que tal noção não surge dessa descoberta 25 Mas para tomar um exemplo em que a semelhança é ainda maior eu gostaria de perguntar por que o incesto na espécie humana é um crime e por que a mesma ação e as mesmas relações quando ocor rem nos animais não apresentam a menor depravação ou deformi dade moral Se me responderem que essa ação é inocente nos animais porque estes não têm razão suficiente para descobrir sua torpeza mas que como o homem é dotado dessa faculdade a qual deveria restrin gilo a seu dever a mesma ação instantaneamente se torna criminosa para ele se isso me for respondido replicarei que há aqui evidente mente uma argumentação circular Pois antes que a razão possa per ceber essa torpeza a torpeza tem de existir por conseguinte ela é independente das decisões de nossa razão sendo mais propriamente seu objeto que seu efeito De acordo com esse sistema portanto todo animal dotado de sentido apetite e vontade isto é todo animal tem de ser suscetível exatamente das mesmas virtudes e vícios que nos levam a elogiar ou censurar as criaturas humanas Toda a diferença consiste em que nossa razão superior pode servir para descobrir o vício ou a virtude aumentando assim a censura ou o elogio Mas mesmo essa descoberta supõe uma existência separada dessas distinções morais existência essa que depende somente da vontade e do ape tite e que tanto em pensamento como na realidade é possível distin guir da razão Os animais entre si são suscetíveis das mesmas rela ções que a espécie humana e portanto também seriam capazes da 507 Tratado da natureza humana mesma moralidade se a essência da moralidade consistisse nessas relações O fato de não possuírem um grau suficiente de razão pode impedilos de perceber os deveres e obrigações da moral mas nun ca poderia impedir esses deveres de existir uma vez que para se rem percebidos eles têm de existir previamente A razão deve encontrálos mas não pode nunca produzilos Esse argumento me rece ser levado em conta pois em minha opinião é inteiramente decisivo 26 Esse raciocínio não prova apeas que a moralidade não consiste em relações que são objetos da ciência se devidamente examinado prova com igual certeza que ela não consiste em nenhuma questão de fato que possa ser descoberta pelo entendimento Esta é a segunda parte do argumento Se pudermos tornála evidente poderemos concluir que a moralidade não é um objeto da razão Mas haverá alguma difi culdade em se provar que o vício e a virtude não são questões de fato cuja existência possamos inferir pela razão Tomemos qualquer ação reconhecidamente viciosa o homicídio voluntário por exemplo Examinemola sob todos os pontos de vista e vejamos se podemos encontrar o fato ou a existência real que chamamos de vício Como quer que a tomemos encontraremos somente certas paixões motivos volições e pensamentos Não há nenhuma outra questão de fato neste caso O vício escapanos por completo enquanto consideramos o ob jeto Não o encontraremos até dirigirmos nossa reflexão para nosso próprio íntimo e darmos com um sentimento de desaprovação que se forma em nós contra essa ação Aqui há um fato mas ele é objeto de sentimento feeling não de razão Está em nós não no objeto Desse modo quando declaramos que uma ação ou caráter são vicio sos tudo que queremos dizer é que dada a constituição de nossa na tureza experimentamos uma sensação ou sentimento a feeling or sentiment de censura quando os contemplamos O vício e a virtude portanto podem ser comparados a sons cores calor e frio os quais segundo a filosofia moderna não são qualidades nos objetos mas percepções na mente E essa descoberta da moral como aquela da 508 Livro 3 Parte 1 Seção 2 física deve ser vista como um progresso considerável nas ciências especulativas embora exatamente como aquela tenha pouca ou ne nhuma influência na prática Nada pode ser mais real ou nos interes sar mais que nossos próprios sentimentos de prazer e desprazer e se estes forem favoráveis à virtude e desfavoráveis ao vício nada mais pode ser preciso para a regulação de nossa conduta e comportamento 27 Não posso deixar de acrescentar a esses raciocínios uma obser vação que talvez se mostre de alguma importância Em todo sistema de moral que até hoje encontrei sempre notei que o autor segue du rante algum tempo o modo comum de raciocinar estabelecendo a existência de Deus ou fazendo observações a respeito dos assuntos humanos quando de repente surpreendome ao ver que em vez das cópulas proposicionais usuais como é e não é não encontro uma só proposição que não esteja conectada a outra por um deve ou não deve Essa mudança é imperceptível porém da maior importância Pois como esse deve ou não deve expressa uma nova relação ou afirmação esta precisaria ser notada e explicada ao mesmo tempo seria preci so que se desse uma razão para algo que parece inteiramente incon cebível ou seja como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes Mas já que os autores não costumam usar essa precaução tomarei a liberdade de recomendála aos leitores es tou persuadido de que essa pequena atenção seria suficiente para sub verter todos os sistemas correntes de moralidade e nos faria ver que a distinção entre vício e virtude não está fundada meramente nas re lações dos objetos nem é percebida pela razão Seção 2 As distinções morais são derivadas de um sentido moral 1 Assim o curso de nossa argumentação levanos a concluir que uma vez que o vício e a virtude não podem ser descobertos unicamente pela razão ou comparação de idéias deve ser por meio de alguma im pressão ou sentimento por eles ocasionados que somos capazes de 509 Tratado da natureza humana estabelecer a diferença entre os dois Nossas decisões a respeito da retidão e da depravação morais são evidentemente percepções e como todas as percepções são ou impressões ou idéias a exclusão de umas é um argumento convincente em favor das outras A moralidade portan to é mais propriamente sentida que julgada embora essa sensação ou sentimento seja em geral tão brando e suave que tendemos a confun dilo com uma idéia de acordo com nosso costume corrente de con siderar tudo que é muito semelhante como se fosse uma só coisa 2 A próxima questão é qual a natureza dessas impressões e de que maneira atuam sobre nós Não podemos hesitar por muito tempo quanto à resposta devemos afirmar que a impressão derivada da vir tude é agradável e a procedente do vício é desagradável A cada instan te a experiência nos convence disso Não há espetáculo mais belo e formoso que uma ação nobre e generosa e nenhum gera em nós maior repulsa que uma ação cruel e traiçoeira Nenhum prazer se iguala à satisfação que obtemos com a companhia daqueles que amamos e es timamos mas a maior de todas as punições é sermos obrigados a pas sar o resto de nossas vidas com aqueles que odiamos ou despreza mos Mesmo uma peça de teatro ou um romance podem nos oferecer exemplos desse prazer que a virtude nos transmite bem como dessa dor que resulta do vício 3 Ora como as impressões distintivas que nos permitem conhe cer o bem e o mal morais não são senão dores e prazeres particulares seguese que em todas as investigações acerca dessas distinções morais bastará mostrar os princípios que nos fazem sentir uma sa tisfação ou um malestar ao considerar um certo caráter para nos con vencer por que esse caráter é louvável ou censurável Por que uma ação sentimento ou caráter é virtuoso ou vicioso Porque sua visão causa um prazer ou desprazer de um determinado tipo Portanto ao dar a razão desse prazer ou desprazer estamos explicando de manei ra suficiente o vício ou a virtude Ter o sentido da virtude é simples mente sentir uma satisfação de um determinado tipo pela contempla ção de um caráter O próprio sentimento feeling constitui nosso 5 1 0 Livro 3 Parte 1 Seção 2 elogio ou admiração Não vamos além disso nem investigamos a cau sa da satisfação Não inferimos que um caráter é virtuoso porque nos agrada ao sentirmos que nos agrada dessa maneira particular nós de fato sentimos que é virtuoso Ocorre aqui o mesmo que em nossos juízos acerca de todo tipo de beleza gostos e sensações Nossa apro vação está implícita no prazer imediato que estes nos transmitem 4 Como objeção ao sistema que estabelece critérios racionais e eter nos do certo e do errado afirmei que é impossível mostrar nas ações das criaturas racionais qualquer relação que não se encontre também nos objetos externos e por isso se a moralidade sempre acompanhas se essas relações também a matéria inanimada poderia se tornar vir tuosa ou viciosa De maneira semelhante podese agora objetar ao presente sistema que se a virtude e o vício são determinados pelo prazer e pela dor tais sensações devem sempre gerar essas qualida des conseqüentemente qualquer objeto animado ou inanimado racional ou irracional poderia se tornar moralmente bom ou mau contanto que pudesse despertar uma satisfação ou um desprazer Mas embora essa objeção pareça exatamente igual à anterior não tem de forma alguma a mesma força Em primeiro lugar é evidente que sob o termo prazer compreendemos sensações muito diferentes que não apresentam mais que uma distante semelhança umas com as outras suficiente apenas para fazer que sejam expressas pelo mesmo termo abstrato Uma boa composição musical e uma garrafa de um bom vi nho produzem igualmente um prazer mais ainda sua excelência é determinada unicamente pelo prazer Mas diremos por isso que o vi nho é harmonioso ou que a música é saborosa De maneira seme lhante tanto um objeto inanimado quanto o caráter ou os senti mentos de uma pessoa podem nos dar satisfação contudo como a satisfação é diferente isso nos impede de confundir nossos senti mentos relativos a cada um deles e nos faz atribuir a virtude à pes soa mas não ao objeto Além disso nem todo sentimento de prazer ou dor derivado de um caráter ou ação é do tipo peculiar que nos faz 5 1 1 Tratado da natureza humana louvar ou condenar As boas qualidades de um inimigo são penosas para nós mas ainda assim podem merecer nossa estima e respeito É somente quando um caráter é considerado em geral sem referência a nosso interesse particular que causa essa sensação ou sentimento em virtude do qual o denominamos moralmente bom ou mau É ver dade que temos naturalmente uma tendência a confundir e misturar os sentimentos devidos ao interesse e os devidos à moral Raramen te deixamos de pensar que um inimigo é vicioso e raramente somos capazes de distinguir entre sua oposição a nosso interesse e sua vila nia ou baixeza reais Isso não impede porém que esses sentimentos sejam distintos neles mesmos um homem dotado de serenidade e discernimento pode se proteger dessas ilusões Do mesmo modo embora seja correto que a voz melodiosa é apenas uma voz que nos dá naturalmente um tipo particular de prazer é difícil alguém se dar conta de que a voz de seu inimigo é agradável ou admitir sua musi calidade Mas uma pessoa de audição refinada e com autodomínio é capaz de separar esses sentimentos feelings e conferir seus elogios a quem os merece 5 Em segundo lugar podemos recordar o sistema das paixões ante riormente apresentado a fim de salientar uma diferença ainda mais considerável entre nossas dores e prazeres Orgulho e humildade amor e ódio são despertados quando se apresenta a nós alguma coisa que ao mesmo tempo mantém uma relação com o objeto da paixão e produz separadamente uma sensação relacionada à sensação da pai xão Ora a virtude e o vício acompanhamse dessas circunstâncias Devem necessariamente se situar em nós ou em outrem e excitar prazer ou desprazer devem portanto gerar uma dessas quatro pai xões o que os distingue claramente do prazer e da dor resultantes de objetos inanimados que freqüentemente não têm conosco nenhu ma relação Esse é talvez o efeito mais importante da virtude e do vício sobre a mente humana 6 Podese agora perguntar em geral a propósito dessa dor e desse prazer que distinguem o bem e o mal morais de que princípios derivam e como surgem na mente humana A isso respondo em primeiro lugar 512 Livro 3 Parte 1 Seção 2 que é absurdo imaginar que em cada caso particular esses sentimen tos se produzam por uma qualidade original e uma constituição primi tiva Pois como o número de nossos deveres é por assim dizer infinito é impossível que nossos instintos originais se estendam a cada um deles e desde nossa primeira infância imprimam na mente humana toda essa multiplicidade de preceitos contidos nos mais completos siste mas éticos Essa maneira de proceder não é conforme às máximas que usualmente conduzem a natureza onde uns poucos princípios pro duzem toda aquela variedade que observamos no universo e tudo é realizado da maneira mais fácil e simples É necessário portanto re duzir o número desses impulsos primários e encontrar alguns princí pios mais gerais que fundamentem todas as nossas noções morais 7 Em segundo lugar porém se acaso alguém perguntar se devemos procurar esses princípios na natureza ou se temos de buscar para eles alguma outra origem eu diria que nossa resposta a essa questão de pende da definição da palavra Natureza que vem a ser a mais ambí gua e equívoca que existe Se se opõe natureza a milagre não apenas a distinção entre vício e virtude é natural mas também qualquer acon tecimento que já tenha ocorrido no mundo excetuandose os milagres em que se fundamenta nossa religião Ao dizer portanto que os sentimen tos do vício e da virtude são naturais nesse sentido não estamos fa zendo nenhuma descoberta extraordinária 8 Mas natureza também pode se opor a raro e inabitual neste sentido da palavra que é o mais comum freqüentemente surgem discussões acerca do que é ou não natural e podese afirmar de maneira geral que não possuímos nenhum critério preciso que nos permita decidir essa questão O que é freqüente e o que é raro depende do número de casos que observamos e como esse número pode aumentar ou diminuir gradativamente é impossível fixar limites exatos entre os dois Sobre isso podemos apenas afirmar que se alguma vez houve algo que pudesse ser dito natural nesse sentido tal é certamente o caso dos sentimentos morais pois nunca houve no mundo uma só nação e nunca houve em nenhuma nação uma só pessoa que fosse 5 1 3 Tratado da natureza humana inteiramente desprovida desses sentimentos e nunca em caso algum tenha mostrado a menor aprovação ou reprovação de uma condu ta Tais sentimentos estão tão enraizados em nossa constituição e caráter que a menos que a mente humana esteja completamente transtornada pela doença ou loucura seria impossível extirpálos e destruílos 9 Mas também se pode opor natureza a artifício além de a raro e a inabitual e neste sentido podese questionar se as noções de virtu de são ou não naturais Esquecemos facilmente que os desígnios pro jetos e objetivos dos homens são princípios tão necessários em sua operação quanto o calor e o frio o úmido e o seco Em vez disso con sideramos que são livres e cabem exclusivamente a nós por isso é comum estabelecermos uma oposição entre eles e os demais princí pios da natureza Portanto se alguém me perguntar se o sentido da virtude é natural ou artificial penso que me seria impossível neste momento dar uma resposta precisa Talvez mais adiante vejamos que nosso sentido de algumas virtudes é artificial e o de outras natural A discussão dessa questão será mais apropriada quando entrarmos em uma descrição detalhada de cada vício e de cada virtude em particular 4 10 Enquanto isso talvez não seja fora de propósito observar com base nessas definições de natural e nãonatural que nada pode ser me nos filosófico que aqueles sistemas que afirmam que virtude é o que é natural e vício o mesmo que nãonatural Pois se tomarmos a pa lavra Natureza em seu primeiro sentido ou seja como oposta a mi lagres tanto o vício como a virtude são igualmente naturais e no se gundo sentido como oposta ao que é inabitual talvez vejamos que a virtude é o que há de menos natural Ao menos devese reconhecer que a virtude heróica sendo inabitual é tão pouco natural quanto a barbárie mais brutal Quanto ao terceiro sentido da palavra é certo que tanto o vício quanto a virtude são igualmente artificiais e estra 4 Na exposição a seguir natural também se opõe algumas vezes a civil e outras a moral A oposição sempre deixará claro o sentido em que o termo está sendo tomado 5 1 4 Livro 3 Parte 1 Seção 2 nhos à natureza Pois por mais que se questione se a noção do mé rito ou demérito de certas ações é natural ou artificial é evidente que as próprias ações são artificiais sendo realizadas com um certo pro pósito e intenção de outro modo nunca poderiam ser classificadas sob uma dessas denominações Em nenhum sentido portanto a dis tinção entre o natural e o nãonatural pode marcar as fronteiras en tre vício e virtude 1 1 Assim voltamos a nossa primeira posição ou seja que a virtude se distingue pelo prazer e o vício pela dor produzidos em nós pela mera visão ou contemplação de uma ação sentimento ou caráter Essa conclusão é muito conveniente pois nos reduz a esta simples ques tão por que uma ação ou sentimento quando são contemplados ou considera dos de uma forma geral produzem em nós uma certa satisfação ou desconforto É a resposta a essa questão que nos permitirá mostrar a origem da re tidão ou da depravação morais dessa ação ou sentimento sem pre cisar buscar relações e qualidades incompreensíveis que jamais exis tiram na natureza e nem sequer em nossa imaginação como objetos de uma concepção clara e distinta Orgulhome de ter realizado boa parte de meu propósito presente mediante a exposição de um estado da questão que me parece tão livre de ambigüidades e obscuridades 5 1 5 Seção 1 Parte 2 Da justiça e da injustiça justiça uma virtude natural ou artificial 1 Já aludi ao fato de que nosso sentido de virtude não é natural em todos os casos ao contrário existem algumas espécies de virtudes que produzem prazer e aprovação mediante um artifício ou invenção resultante das particularidades e necessidades da humanidade Afir mo agora que a justiça é uma virtude dessa espécie e procurarei de fender essa opinião por meio de um argumento curto mas espero convincente antes de examinar a natureza do artifício de que deriva o sentido dessa virtude 2 É evidente que quando elogiamos uma determinada ação consi deramos apenas os motivos que a produziram e tomamos a ação co mo signo ou indicador de certos princípios da mente e do caráter A realização externa não tem nenhum mérito Temos de olhar para o interior da pessoa para encontrar a qualidade moral Ora como não podemos fazêlo diretamente fixamos nossa atenção na ação como signo externo Mas a ação é considerada apenas um signo o objeto último de nosso elogio e aprovação é o motivo que a produziu 5 1 7 Tratado da natureza humana 3 Do mesmo modo sempre que exigimos que uma pessoa realize uma ação ou a censuramos por não realizála estamos supondo que alguém nessa situação deveria ser influenciado pelo motivo próprio dessa ação e consideramos vicioso que o tenha desconsiderado Se após investigarmos melhor a situação descobrimos que o motivo vir tuoso estava presente em seu coração embora sua operação tenha sido impedida por alguma circunstância que nos era desconhecida retira mos nossa censura e passamos a ter pela pessoa a mesma estima que teríamos se houvesse de fato realizado a ação que dela exigíamos 4 Vemos portanto que todas as ações virtuosas derivam seu méri to unicamente de motivos virtuosos sendo tidas apenas como sig nos desses motivos Desse princípio concluo que o primeiro motivo virtuoso que confere mérito a uma ação nunca pode ser uma consi deração pela virtude dessa ação devendo ser antes algum outro mo tivo ou princípio natural Supor que a mera consideração pela virtu de da ação possa ser o primeiro motivo que produziu a ação e a tornou virtuosa é um raciocínio circular Para que possamos ter tal conside ração a ação tem de ser realmente virtuosa e essa virtude tem de ser derivada de algum motivo virtuoso conseqüentemente o motivo vir tuoso precisa ser diferente da consideração pela virtude da ação É preciso um motivo virtuoso para que uma ação se torne virtuosa Uma ação tem de ser virtuosa para que possamos ter consideração por sua virtude Portanto algum motivo virtuoso tem de anteceder essa consideração 5 Isso não é mera sutileza metafísica está presente em todos os raciocínios de nossa vida corrente embora às vezes não consigamos exprimilo em uma linguagem filosófica tão distinta Censuramos um pai que negligencia seu filho E por quê Porque isso mostra uma fal ta de afeição natural que é dever de todo pai Se a afeição natural não fosse um dever o cuidado com os filhos tampouco o seria e seria impossível que tivéssemos em vista o dever ao darmos atenção a nossa Regard no contexto da moral foi traduzido ora como consideração ora como res peito NT 5 1 8 Livro 3 Parte 2 Seção 1 prole Nesse caso portanto todos os homens supõem que a ação possui um motivo diferente de um sentido do dever 6 Suponhamos um homem que pratica muitas boas ações alivia os sofredores reconforta os aflitos e leva sua bondade até os mais des conhecidos Nenhum caráter poderia ser mais amável e virtuoso Ve mos essas ações como provas de um grande sentimento humanitá rio Esse sentimento humanitário confere um mérito às ações O respeito pelo mérito é portanto uma consideração secundária deri vada do princípio antecedente do sentimento humanitário que é meritório e louvável 7 Em resumo podemos estabelecer como uma máxima indubitável que nenhuma ação pode ser virtuosa ou moralmente boa a menos que haja na natureza humana algum motivo que a produza distinto do sentido de sua moralidade 8 Mas será que o sentido da moralidade ou do dever não pode pro duzir uma ação sem qualquer outro motivo Respondo que sim mas que isso não constitui uma objeção à presente doutrina Quando um motivo ou princípio virtuoso é comum na natureza humana uma pessoa que sente seu coração desprovido desse motivo pode odiar a si mesma por essa razão e pode realizar a ação sem o motivo apenas por um certo sentido do dever com o intuito de adquirir pela prática esse princípio virtuoso ou ao menos para disfarçar para si mesma tanto quanto possível sua carência Um homem que não sente de fato nenhuma gratidão em seu íntimo pode apesar disso ter prazer em praticar certos atos de gratidão pensando desse modo ter realizado seu dever As ações inicialmente são consideradas somente como sig nos de motivos mas o que costuma ocorrer nesse caso e em todos os demais é que acabamos fixando nossa atenção apenas nos signos negligenciando em parte a coisa significada Entretanto embora possa haver ocasiões em que uma pessoa realiza uma ação simplesmente por uma consideração para com sua obrigação moral mesmo isso supõe que haja na natureza humana alguns princípios distintos ca pazes de produzir a ação e cuja beleza moral torne a ação meritória 5 1 9 Tratado da natureza humana 9 Agora apliquemos tudo isso ao caso presente Suponhamos que uma pessoa tenhame emprestado uma soma de dinheiro sob a con dição de que eu lhe restituísse essa soma em alguns dias suponha mos também que no fim do prazo combinado ela me peça o dinheiro de volta Pergunto que razão ou motivo tenho para devolverlhe o dinhei ro Dirseá talvez que meu respeito pela justiça e minha repulsa à vilania e à desonestidade são para mim razões suficientes se pos suo um mínimo de honestidade ou sentido do dever e da obrigação Sem dúvida essa resposta é correta e satisfatória para o homem em seu estado de civilização e quando formado segundo uma certa dis ciplina e educação Mas em sua condição rude e mais natural se quereis chamar de natural uma tal condição essa resposta seria re jeitada como completamente ininteligível e sofística Pois uma pes soa que se encontrasse nessa situação imediatamente vos pergun taria em que consistem essa honestidade e justiça que encontrais na restituição de um empréstimo e na abstenção da propriedade alheia Cer tamente não está na ação externa Por conseguinte tem de estar no motivo de que essa ação externa foi derivada Esse motivo nunca poderia ser a consideração pela honestidade da ação pois é uma clara falácia dizer que é preciso um motivo virtuoso para tornar uma ação honesta e ao mesmo tempo que a consideração pela honestidade é o motivo da ação Só podemos ter consideração pela virtude de uma ação se a ação já for de antemão virtuosa Ora uma ação só pode ser virtuosa se procede de um motivo virtuoso Um motivo virtuoso por tanto deve anteceder a consideração pela virtude é impossível que o motivo virtuoso e a consideração pela virtude sejam a mesma coisa 10 É preciso encontrar portanto para os atos de justiça e honesti dade algum motivo distinto de nossa consideração pela honestida de e é nisso que está a grande dificuldade Porque se disséssemos que a preocupação com nosso interesse privado ou com nossa repu tação é o motivo legítimo de todas as ações honestas seguirseia que sempre que cessa tal preocupação a honestidade não poderia mais ter lugar Mas é certo que o amor a si próprio quando age livremente 520 Livro 3 Parte 2 Seção 1 em vez de nos levar a ações honestas é fonte de toda injustiça e vio lência e ninguém pode corrigir esses vícios sem corrigir e restringir os movimentos naturais desse apetite 1 1 Caso se afirmasse ao contrário que a razão ou motivo de tais ações é uma consideração pelo interesse público ao qual nada é mais con trário que haver exemplos de injustiça e de desonestidade eu proporia que se prestasse atenção às três considerações seguintes Em primeiro lugar o interesse público não está naturalmente ligado à observância das regras da justiça conectase a ela apenas em virtude de uma con venção artificial para o estabelecimento dessas regras como mostra rei mais detalhadamente adiante Em segundo lugar se supusermos que o empréstimo foi sigiloso e que é do interesse do prestador que o dinheiro seja restituído da mesma maneira por exemplo se quer ocultar sua riqueza nesse caso não há mais exemplaridade e o pú blico não tem mais interesse pelas ações do prestatário entretanto suponho que nenhum moralista iria afirmar que isso elimina o dever ou a obrigação Em terceiro lugar a experiência prova de maneira sufi ciente que os homens em seu comportamento cotidiano não pen sam em algo tão distante quanto o interesse público quando pagam a seus credores cumprem suas promessas e se abstêm de roubar sa quear ou cometer todo tipo de injustiça Esse é um motivo demasiada mente remoto e sublime para afetar a generalidade dos homens e para influir com alguma força em ações tão contrárias ao interesse priva do como são freqüentemente os atos de justiça e as ações comuns de honestidade 12 Em geral podese afirmar que não há na mente dos homens uma paixão como o amor à humanidade concebida meramente enquanto tal independentemente de qualidades pessoais de favores ou de uma relação da outra pessoa conosco É verdade que não existe uma só criatura humana ou sequer uma criatura sensível cuja felicidade ou infelicidade não nos afete em alguma medida quando está perto de nós ou é representada em cores vivas Mas isso se deve meramente à simpatia e não prova que haja uma tal afeição universal pela huma 52 1 Tratado da natureza humana nidade uma vez que essa preocupação se estende para além de nos sa própria espécie A afeição entre os sexos é uma paixão evidente mente implantada na natureza humana e essa paixão se mostra não apenas por seus sintomas peculiares mas também por inflamar to dos os outros princípios de afeição despertando pela beleza inteli gência e bondade de uma pessoa um amor mais forte que aquele que de outro modo resultaria dessas qualidades Ora se houvesse um amor universal entre todas as criaturas humanas esse amor se mostraria da mesma maneira Um grau determinado de uma boa qualidade cau saria uma afeição mais forte que o ódio causado pelo mesmo grau de uma má qualidade mas o que descobrimos pela experiência é o con trário disso Os homens têm temperamentos diferentes alguns têm uma propensão para afetos mais ternos outros para afetos mais ás peros mas no essencial podemos afirmar que o homem em geral ou a natureza humana é apenas o objeto tanto do amor quanto do ódio sendo preciso alguma outra causa que por uma dupla relação de impressões e idéias possa excitar essas paixões Seria inútil ten tar eludir essa hipótese Nenhum fenômeno aponta para a existência dessa terna afeição pelos homens independentemente de seu mérito ou de qualquer outra circunstância Gostamos de companhia em ge ral mas é do mesmo modo como gostamos de qualquer outra diver são Um inglês na Itália é um amigo na China é um europeu e quem sabe pudéssemos amar um homem simplesmente como homem caso o encontrássemos na Lua Mas isso se deve apenas à relação conosco que nesses casos ganha força por estar limitada a poucas pessoas 1 3 Portanto s e a benevolência pública ou uma consideração pelos interesses da humanidade não pode ser o motivo original da justiça muito menos a benevolência privada ou seja uma consideração pelos inte resses do outro Pois e se este for meu inimigo e me tiver dado um bom motivo para odiálo E se for um homem maligno que merece o ódio de toda a humanidade E se for um sovina incapaz de usar aquilo de que eu pretendia priválo E se for um libertino e devasso para quem 522 Livro 3 Parte 2 Seção 1 a posse de uma grande fortuna seria mais prejudicial que benéfica E se eu estiver passando por necessidades ou tiver motivos urgentes para obter algo para minha família Em todos esses casos o motivo original para a justiça desapareceria e conseqüentemente a própria justiça e com ela toda propriedade direito e obrigação 14 O rico tem uma obrigação moral de dar aos necessitados uma par te do que lhe é supérfluo Mas se a benevolência privada fosse o motivo original da justiça ninguém seria obrigado a deixar que os outros ficas sem com mais que aquilo que é obrigado a lhes dar Ou ao menos a diferença seria insignificante As pessoas em geral ligamse afetiva mente mais àquilo que possuem que àquilo de que nunca chegaram a desfrutar Por essa razão seria mais cruel despojar um homem de alguma coisa que não lhe dar essa coisa Mas quem iria querer afir mar que esse é o único fundamento da justiça 1 5 Além disso devemos considerar que a principal razão de os ho mens se prenderem tanto aos bens que possuem é que os vêem como sua propriedade assegurada de um modo inviolável pelas leis da so ciedade Essa é porém uma consideração secundária que depende das noções precedentes de justiça e propriedade 1 6 Supomos que a propriedade de cada um está protegida contra todos os outros mortais em todos os casos possíveis Mas a benevo lência privada para com o proprietário é e deve ser mais fraca em algumas pessoas que em outras e em muitas pessoas ou antes na maioria delas está absolutamente ausente A benevolência privada portanto não é o motivo original da justiça 17 Seguese de tudo isso que não temos naturalmente nenhum motivo real ou universal para observar as leis da eqüidade exceto a própria eqüidade e o mérito dessa observância e uma vez que nenhu ma ação pode ser justa ou meritória se não pode surgir de algum moti vo separado existe aqui um evidente sofisma e um raciocínio cir cular Portanto a menos que admitamos que a natureza estabeleceu um sofisma e o tornou necessário e inevitável temos de admitir que 523 Tratado da natureza humana o sentido de justiça e injustiça não deriva da natureza surgindo an tes artificialmente embora necessariamente da educação e das con venções humanas 1 8 Como corolário a esse raciocínio acrescentarei que já que ne nhuma ação pode ser louvável ou condenável sem motivos ou pai xões que as impulsionem e sejam distintos desse sentidoo da mo ralidade essas paixões distintas devem ter uma grande influência sobre tal sentido É de acordo com sua força geral na natureza hu mana que condenamos ou louvamos Ao julgar a beleza dos corpos animais sempre levamos em consideração a economia de uma cer ta espécie quando os membros e os traços observam a proporção que é comum àquela espécie nós os declaramos graciosos e belos De modo semelhante sempre consideramos a força natural e usual das paixões ao emitir juízos acerca do vício e da virtude e se as pai xões se afastam muito das medidas comuns de um lado ou de ou tro nós as desaprovamos como viciosas Os homens naturalmente amam seus filhos mais que seus sobrinhos seus sobrinhos mais que seus primos seus primos mais que estranhos nos casos em que to das as outras circunstâncias são iguais É daí que surgem nossas regras comuns do dever que nos fazem preferir uns aos outros Nosso sentido do dever segue sempre o curso usual e natural de nos sas paixões 19 Para que ninguém se sinta ofendido devo aqui observar que quando nego que a justiça seja uma virtude natural estou empregan do a palavra natural como significando exclusivamente o oposto de artificial Em outra acepção da palavra assim como nenhum princí pio da mente humana é mais natural que um sentido da virtude as sim também nenhuma virtude é mais natural que a justiça O homem é uma espécie inventiva e quando uma invenção é evidente e absolu tamente necessária é tão correto considerála natural quanto tudo que proceda imediatamente de princípios originais sem a interven ção do pensamento ou reflexão Embora as regras da justiça sejam ar tificiais não são arbitrárias Tampouco é impróprio utilizar a expressão 524 Livro 3 Parte 2 Seção 2 Leis Naturais para caracterizálas se entendermos por natural aqui lo que é comum a uma espécie qualquer ou mesmo se restringirmos seu sentido apenas ao que é inseparável dessa espécie Seção 2 Da origem da justiça e da propriedade 1 Passamos agora a examinar duas questões sobre o modo como as regras da justiça são estabelecidas pelo artifício dos homens e sobre as razões que nos determinam a atribuir à observância ou à desobediência dessas regras uma beleza ou uma deformidade morais Mais adiante veremos que essas questões são distintas Começaremos com a primeira 2 De todos os animais que povoam nosso planeta à primeira vista parece ser o homem aquele contra o qual a natureza foi mais cruel dadas as inúmeras carências e necessidades com que o cobriu e os escassos meios que lhe forneceu para aliviar essas necessidades Em outras criaturas esses dois pontos em geral se compensam mutua mente Se considerarmos que o leão é um animal voraz e carnívoro descobriremos facilmente que é cheio de necessidades mas se pres tarmos atenção em sua constituição e temperamento sua agilidade sua coragem suas armas e sua força veremos que nele as vantagens são proporcionais às carências O carneiro e o boi carecem de todas essas vantagens mas seus apetites são moderados e seu alimento é fácil de obter Apenas no homem se pode observar em toda sua per feição essa conjunção antinatural de fragilidade e necessidade Não somente o alimento necessário para sua subsistência escapa a seu cerco e aproximação ou ao menos exige trabalho para ser produzi do como além disso o homem precisa de roupas e abrigo para se de fender das intempéries Entretanto considerado apenas em si mesmo Laws of Nature Essa expressão será traduzida quer por leis naturais quer por direito natural ou ainda por leis do direito natural A primeira alternativa só será usada quando o contexto como neste caso não deixar nenhuma margem à confusão entre essas leis e as leis físicas NT 525 Tratado da natureza humana ele não possui armas força ou qualquer outra habilidade natural que seja em algum grau condizente com suas necessidades 3 Somente pela sociedade ele é capaz de suprir suas deficiências igualandose às demais criaturas e até mesmo adquirindo uma su perioridade sobre elas Pela sociedade todas as suas debilidades são compensadas embora nessa situação suas necessidades se multi pliquem a cada instante suas capacidades se ampliam ainda mais dei xandoo em todos os aspectos mais satisfeito e feliz do que jamais poderia se tornar em sua condição selvagem e solitária Quando cada indivíduo trabalha isoladamente e apenas para si mesmo sua força é limitada demais para executar qualquer obra considerável tem de empregar seu trabalho para suprir as mais diferentes necessidades e por isso nunca atinge a perfeição em nenhuma arte particular e como sua força e seu sucesso não são iguais o tempo todo a menor falha em um dos dois deve inevitavelmente trazer para ele a ruína e a infe licidade A sociedade fornece um remédio para esses três inconvenien tes A conjunção de forças amplia nosso poder a divisão de trabalho aumenta nossa capacidade e o auxílio mútuo nos deixa menos expos tos à sorte e aos acidentes É por essa força capacidade e segurança adicio nais que a sociedade se torna vantajosa 4 Mas para que a sociedade se forme não basta que ela seja vanta josa os homens também têm de se dar conta de suas vantagens Entretanto em seu estado selvagem e inculto e apenas pelo estudo e reflexão é impossível que os homens alguma vez cheguem a adquirir esse conhecimento Felizmente junto com essas necessidades cujos remédios são remotos e obscuros existe uma outra necessidade que por ter um remédio mais imediato e evidente pode ser legitimamen te considerada o princípio primeiro e original da sociedade humana Essa necessidade não é outra senão aquele apetite natural que existe entre os sexos unindoos e preservando sua união até o surgimento de um outro laço ou seja a preocupação com sua prole comum Essa nova preocupação também se torna um princípio de união entre os pais e os filhos formando uma sociedade mais numerosa em que os 526 Livro 3 Parte 2 Seção 2 pais governam em virtude da superioridade de sua força e sabedoria e ao mesmo tempo têm o exercício de sua autoridade limitado pela afeição natural que sentem por seus filhos Em pouco tempo o cos tume e o hábito agindo sobre as tenras mentes dos filhos tomam nos sensíveis às vantagens que podem extrair da sociedade além de gradualmente formálos para essa sociedade aparando as duras ares tas e afetos adversos que impedem sua coalizão 5 Porque é preciso admitir que embora as condições da natureza humana possam tomar necessária uma união e embora essas paixões do desejo carnal e da afeição natural pareçam tomála inevitável há outras particularidades em nosso temperamento natural e nas circuns tâncias externas em que nos encontramos que são muito inconvenien tes e até contrárias à requerida conjunção Entre as primeiras pode mos justificadamente considerar que a mais importante é nosso egoísmo Estou consciente de que falando de maneira geral tem havido muito exagero na representação dessa qualidade alguns filósofos se deleitam em fornecer sobre esse aspecto da humanidade descrições tão afasta das da natureza quanto as narrativas sobre monstros que encontra mos em fábulas e romances Estou longe de pensar que os homens não sentem afeição por nada além de si mesmos ao contrário sou da opinião de que embora seja raro encontrar alguém que ame uma pes soa sequer mais que a si mesmo é igualmente raro encontrar alguém em quem todos os afetos benévolos considerados em conjunto não superem os egoístas Consultai a experiência corrente Não vedes que embora em geral todos os gastos de uma família estejam sob o con trole de seu senhor poucos há que não destinem a maior parte de suas fortunas ao prazer de suas esposas e à educação de seus filhos reser vando a menor parte para seu próprio uso e entretenimento É o que observamos nas pessoas que se encontram unidas por esses vínculos afetivos e podemos presumir que o mesmo ocorreria com todas se estivessem em situação semelhante 6 Entretanto embora devamos reconhecer em honra da natureza humana a existência dessa generosidade podemos ao mesmo tempo 527 Tratado da natureza humana observar que essa paixão tão nobre em vez de preparar os homens para a vida em grandes sociedades é quase tão contrária a estas quanto o mais acirrado egoísmo Pois enquanto cada pessoa amar a si mes ma mais que a qualquer outro e em seu amor pelos demais sentir maior afeição por seus parentes e amigos essa situação deve neces sariamente produzir uma oposição de paixões e conseqüentemente uma oposição de ações e para uma união recémestabelecida isso só pode ser perigoso 7 Notese entretanto que essa contrariedade de paixões seria pou co perigosa se não coincidisse com uma peculiaridade nas circunstân cias externas que dá a ela oportunidade de se exercer Os bens que pos suímos podem ser de três espécies diferentes a satisfação interior do espírito as qualidades exteriores de nosso corpo e a fruição dos bens que adquirimos com nosso trabalho e nossa boa sorte Podemos usu fruir dos primeiros com plena segurança Os segundos podem nos ser tomados mas não beneficiam em nada a quem deles nos priva Ape nas os últimos estão expostos à violência alheia e ao mesmo tempo podem ser transferidos sem sofrer nenhuma perda ou alteração além disso não existem em quantidade suficiente para suprir os desejos e as necessidades de todas as pessoas Por isso assim como o aperfei çoamento desses bens é a principal vantagem da sociedade assim tam bém a instabilidade de sua posse juntamente com sua escassez é seu maior impedimento 8 Seria inútil buscar na natureza inculta um remédio para tal incon veniente ou esperar encontrar um princípio não artificial da mente humana que pudesse controlar essa afeição parcial fazendonos ven cer as tentações decorrentes das circunstâncias que nos envolvem A idéia de justiça nunca poderia servir para esse fim não podemos considerála um princípio natural capaz de inspirar aos homens uma conduta justa para com os demais Homens rudes e selvagens não poderiam sequer sonhar com essa virtude tal como agora a com preendemos Pois a noção de dano ou injustiça implica uma imorali dade ou uma conduta viciosa contra uma outra pessoa e como toda 528 Livro 3 Parte 2 Seção 2 imoralidade é derivada de alguma deficiência ou algum desequilíbrio das paixões e como essa deficiência deve ser julgada em grande par te pelo curso ordinário da natureza na constituição da mente será fácil saber se somos culpados de alguma imoralidade em relação aos outros bastando para isso considerar a força natural e usual dos di versos afetos a eles dirigidos Ora é manifesto que na estrutura ori ginal de nossa mente nosso maior grau de atenção se dirige a nós mesmos logo abaixo está a atenção que dirigimos a nossos parentes e amigos e só o mais leve grau se volta para os estranhos e as pessoas que nos são indiferentes Essa parcialidade portanto e essa afeição desigual têm de influenciar não somente nosso comportamento e conduta social mas também nossas idéias de vício e de virtude para nos fazer considerar como viciosa e imoral qualquer transgressão sig nificativa desses graus de parcialidade seja por uma intensificação exagerada seja por uma restrição da afeição Podese observar esse fato nos juízos que formamos comumente sobre as ações quando censuramos uma pessoa que concentra todas as suas afeições em sua família ou que a despreza a ponto de no caso de uma oposição de interesses dar preferência a um desconhecido ou a alguém que co nheceu apenas casualmente Seguese de tudo isso que nossas idéias naturais e incultas da moral em vez de remediar a parcialidade de nossos afetos antes se conformam a essa parcialidade dandolhe mais força e influência 9 O remédio portanto não vem da natureza mas do artifício ou mais corretamente falando a natureza fornece no juízo e no enten dimento um remédio para o que há de irregular e inconveniente nos afetos Porque quando os homens em sua primeira educação na so ciedade tornaramse sensíveis às infinitas vantagens que dela resul tam e além disso adquiriram um novo gosto pelo convívio e pela conversação e quando observaram que a principal perturbação da sociedade se deve a esses bens que denominamos externos a sua mobilidade e à facilidade com que se transmitem de uma pessoa a outra então precisam buscar um remédio que ponha esses bens tanto 529 Tratado da natureza humana quanto possível em pé de igualdade com as vantagens firmes e cons tantes da mente e do corpo Ora o único meio de realizar isso é por uma convenção de que participam todos os membros da sociedade para dar estabilidade à posse desses bens externos permitindo que todos gozem pacificamente daquilo que puderam adquirir por seu tra balho ou boa sorte Desse modo cada qual sabe aquilo que pode pos suir com segurança e as paixões têm restringidos seus movimentos parciais e contraditórios Tal restrição não é contrária às paixões se o fosse jamais poderia ser feita nem mantida É contrária apenas a seu movimento cego e impetuoso Em vez de abrir mão de nossos interes ses próprios ou do interesse de nossos amigos mais próximos abs tendonos dos bens alheios não há melhor meio de atender a ambos que por essa convenção porque é desse modo que mantemos a socie dade tão necessária a seu bemestar e subsistência como também aos nossos 10 Essa convenção não tem a natureza de uma promessa pois mes mo as promessas como veremos posteriormente dependem das con venções humanas A convenção é apenas um sentido geral do interesse comum que todos os membros da sociedade expressam mutuamente e que os leva a regular sua conduta segundo certas regras Observo que será de meu interesse deixar que outra pessoa conserve a posse de seus bens contanto que ela aja da mesma maneira em relação a mim Ela tem consciência de um interesse semelhante em regular sua con duta Quando esse sentido comum do interesse se exprime mutuamente e é conhecido por ambos produz uma resolução e um comportamento adequados E isso pode muito apropriadamente ser denominado uma convenção ou acordo entre nós embora sem a interposição de uma pro messa pois as ações de cada um de nós reportamse às do outro e são realizadas com base na suposição de que outras ações serão realiza das daquele lado Dois homens que estão a remar um mesmo barco fazemno por um acordo ou convenção embora nunca tenham pro metido nada um ao outro E o fato de que a regra concernente à esta bilidade da posse surge gradualmente adquirindo força por um len to progresso e por nossa repetida experiência dos inconvenientes de 530 Livro 3 Parte 2 Seção 2 sua transgressão não a torna menos derivada das convenções hu manas Ao contrário essa experiência nos assegura ainda mais que o sentido do interesse se tornou comum a todos os nossos compa nheiros dandonos confiança na regularidade futura de sua condu ta e é somente na expectativa dessa regularidade que está fundada nossa moderação e abstinência De maneira semelhante as diversas línguas se estabelecem gradualmente pelas convenções humanas sem nenhuma promessa E assim também o ouro e a prata tornam se as medidas correntes da troca sendo considerados um pagamen to suficiente por coisas que têm um valor até cem vezes maior 1 1 Uma vez firmada essa convenção sobre a abstinência dos bens alheios e uma vez todos tendo adquirido uma estabilidade em suas posses surgem imediatamente as idéias de justiça e de injustiça bem como as de propriedade direito e obrigação Estas últimas são absoluta mente ininteligíveis sem a compreensão das primeiras Nossa pro priedade não é senão aqueles bens cuja posse constante é estabelecida pelas leis da sociedade isto é pelas leis da justiça Portanto aqueles que utilizam as palavras propriedade direito ou obrigação sem ter antes explicado a origem da justiça ou que fazem uso daquelas para expli car esta última estão cometendo uma falácia grosseira mostrando se incapazes de raciocinar sobre um fundamento sólido A proprie dade de uma pessoa é algum objeto a ela relacionado essa relação não é natural mas moral e fundada na justiça É absurdo portanto imaginar que podemos ter uma idéia de propriedade sem compreen der completamente a natureza da justiça e mostrar sua origem no artifício e na invenção humana A origem da justiça explica a da pro priedade Ambas são geradas pelo mesmo artifício Como nosso pri meiro e mais natural sentimento moral está fundado na natureza de nossas paixões e dá preferência a nós e a nossos amigos sobre estra nhos é impossível que exista naturalmente algo como um direito ou uma propriedade estabelecida enquanto as paixões opostas dos ho mens os impelem em direções contrárias e não são restringidas por nenhuma convenção ou acordo 53 1 Tratado da natureza humana 1 2 Não há dúvida de que a convenção para a distinção das proprie dades e para a estabilidade da posse é a circunstância mais necessária para o estabelecimento da sociedade humana e após realizado o acor do para se fixar e observar essa regra resta pouco ou nada a fazer para o estabelecimento de uma perfeita harmonia ou concórdia Todas as outras paixões à parte esta do interesse são facilmente restringidas ou não têm conseqüências tão perniciosas A vaidade deve ser antes considerada uma paixão social constituindo um elo de união entre os homens A piedade e o amor devem ser vistos do mesmo modo Quanto à inveja e à vingança embora nocivas elas agem apenas es poradicamente e se dirigem contra pessoas determinadas a quem consideramos nossos superiores ou inimigos Apenas essa avidez de obter bens e posses para nós e para nossos amigos mais íntimos é insaciável infindável universal e diretamente destrutiva para a so ciedade Não há praticamente ninguém que não seja movido por ela e não há ninguém que não tenha razão para temêla quando ela atua sem restrições entregue a seus movimentos primeiros e mais na turais De modo geral portanto devemos considerar que as difi culdades para o estabelecimento da sociedade são maiores ou meno res segundo as dificuldades que temos para regular e restringir essa paixão 13 É certo que nenhum afeto da mente humana tem ao mesmo tempo a força suficiente e a direção adequada para contrabalançar a ganân cia e para tornar os homens bons membros da sociedade fazendo que se abstenham das posses alheias A benevolência para com os estra nhos é fraca demais para isso quanto às outras paixões elas antes inflamam essa avidez quando observamos que quanto mais possuí mos mais capacidade temos de satisfazer nossos apetites Não há uma só paixão portanto capaz de controlar a afeição motivada pelo inte resse exceto essa própria afeição por uma alteração de sua direção Ora tal alteração deve necessariamente ocorrer à menor reflexão pois é evidente que a paixão se satisfaz muito melhor se a contemos que se a deixamos agir livremente preservando a sociedade favorecemos 532 Livro 3 Parte 2 Seção 2 muito mais a aquisição de bens que quando reduzidos à condição solitária e desolada que deve se seguir à violência e a uma permissivi dade generalizada Por isso a questão de saber se a natureza humana é boa ou má não tem a menor importância para essa outra questão acerca da origem da sociedade e não há nada a considerar senão os graus de sagacidade ou estupidez dos homens Porque se a paixão do interesse próprio é considerada um vício ou uma virtude tanto faz já que apenas ela mesma pode se restringir Desse modo se for virtuo sa os homens se tornam sociais por sua virtude se for viciosa é seu vício que tem esse efeito 14 Ora uma vez que é pela instituição da regra para a estabilidade das posses que essa paixão se restringe a si própria se tal regra fosse mui to abstrusa e difícil de inventar a sociedade deveria ser considerada de certa maneira como acidental e efeito de muitas gerações Mas se cons tatarmos que nada pode ser mais simples e evidente que essa regra que todo pai para preservar a paz entre os filhos tem de estabelecêla e que esses primeiros rudimentos de justiça devem se aprimorar a cada dia conforme a sociedade vaise ampliando se tudo isso se mostrar evidente como certamente deve ser poderemos concluir que é abso lutamente impossível que os homens permaneçam um tempo significa tivo naquela condição selvagem que antecede a sociedade ao contrá rio seu primeiro estado e situação pode legitimamente ser considerado já social Entretanto isso não impede que os filósofos se assim o qui serem estendam seu raciocínio a um pretenso estado de natureza contanto que reconheçam tratarse de uma mera ficção filosófica que nunca teve e nunca poderia ter realidade A natureza humana se com põe de duas partes principais requeridas para todas as suas ações ou seja os afetos e o entendimento e certamente os movimentos ce gos daqueles sem a direção deste incapacitam o homem para a socie dade Mas podemos considerar separadamente os efeitos resultantes das operações de cada uma dessas duas partes que compõem a men te Podese conceder aos filósofos morais a mesma liberdade conce dida aos filósofos naturais estes últimos muito freqüentemente consi 533 Tratado da natureza humana deram um movimento qualquer como composto e consistindo em duas partes separadas embora ao mesmo tempo reconheçam que em si mesmo esse movimento é simples e indivisível 15 Esse estado de natureza portanto deve ser visto como uma sim ples ficção não muito diversa da ficção de uma Idade de Ouro inven tada pelos poetas com a única diferença que aquele é descrito como cheio de guerras violência e injustiça ao passo que esta nos é pinta da como a condição mais encantadora e pacífica que se pode imaginar A se acreditar nos poetas as estações naquela primeira idade da na tureza eram tão temperadas que os homens não necessitavam de roupas e casas para se proteger da violência do calor e do frio Os rios corriam cheios de vinho e leite os carvalhos davam mel e a natureza produzia espontaneamente as melhores iguarias Mas essas não eram as principais vantagens daquela época feliz Tormentas e tempesta des não eram inexistentes apenas na natureza também se desconhe ciam aquelas tempestades mais furiosas que hoje causam tamanha comoção e engendram tal confusão nos corações humanos Avareza ambição crueldade egoísmo nunca se ouvira falar de tais coisas As únicas emoções com que a mente humana estava familiarizada eram a afeição cordial a compaixão a simpatia Até mesmo a distinção entre meu e teu estava excluída do seio daquela feliz raça de mortais e com ela as noções mesmas de propriedade e obrigação justiça e injustiça 16 Sem dúvida tudo isso é vã ficção entretanto é uma ficção que merece nossa atenção porque nada é capaz de mostrar com mais evi dência a origem dessas virtudes que são o objeto de nossa investiga ção presente Já observei que a justiça nasce das convenções huma nas e que estas têm como objetivo remediar alguns inconvenientes procedentes da concorrência de certas qualidades da mente humana com a situação dos objetos externos Tais qualidades da mente são o egoísmo e a generosidade restrita e a situação dos objetos externos é a facilidade de sua troca juntamente com sua escassez em comparação com as ne cessidades e os desejos dos homens Mas embora os filósofos pos sam terse perdido em meio a essas especulações os poetas têm sido 534 Livro 3 Parte 2 Seção 2 guiados de maneira mais infalível por um certo gosto ou instinto co mum que em muitos tipos de raciocínios vai mais longe que qual quer arte ou filosofia que já conhecemos Logo perceberam que se todo homem tivesse uma afetuosa consideração pelos demais ou se a natureza satisfizesse abundantemente todas as nossas neces sidades e desejos os conflitos de interesse que a justiça pressu põe não poderiam mais ocorrer e não haveria mais ocasião para se estabelecerem aquelas distinções e limites de posse e propriedade que hoje se usam entre os homens Aumentai até um grau suficiente a benevolência dos homens ou a generosidade da natureza e torna reis a justiça inútil preenchendo seu lugar com virtudes muito mais nobres e bênçãos mais valiosas O egoísmo humano é atiçado pela escassez de nossos bens quando comparados às nossas necessi dades e é para restringir esse egoísmo que os homens se viram obrigados a se separar da comunidade e a distinguir entre seus pró prios bens e os dos outros 17 Mas não precisamos recorrer às ficções poéticas para aprender tudo isso Razões à parte podemos descobrir a mesma verdade pela experiência corrente e pela observação É fácil observar que a afeição cordial torna tudo comum entre amigos em especial pessoas casa das abrem mão de sua propriedade uma em favor da outra desconhe cendo a distinção entre meu e teu coisa tão necessária e entretanto causa de tamanha perturbação na sociedade humana Esse mesmo efeito decorre de qualquer alteração nas circunstâncias em que os ho mens vivem por exemplo quando algo é abundante o bastante para satisfazer a todos os desejos dos homens Nesse caso a distinção de propriedade desaparece inteiramente e tudo passa a ser comum a to dos Podemos observar essa situação com respeito ao ar e à água que entretanto são os mais valiosos dentre todos os objetos externos E podemos facilmente concluir que se os homens dispusessem de tudo com a mesma abundância ou se todos tivessem por todos a mesma afeição e terna consideração que têm por si mesmos a justiça e a injus tiça seriam igualmente desconhecidas dos homens 535 Tratado da natureza humana 1 8 Eis aqui portanto uma proposição que acredito pode ser tida como certa a justiça tira sua origem exclusivamente do egoísmo e da genero sidade restrita dos homens em conjunto com a escassez das provisões que a natureza ofereceu para suas necessidades Se olharmos para trás veremos que essa proposição confere uma força adicional a algumas das ob servações que já fizemos sobre este assunto 1 9 Primeiramente dela podemos concluir que um respeito pelo inte resse público ou uma benevolência forte e irrestrita não é nosso pri meiro motivo ou o motivo original para observar as regras da justiça já que se admite que se os homens fossem dotados de tal benevo lência essas regras jamais teriam sido imaginadas 20 Em segundo lugar podemos concluir do mesmo princípio que o sentido da justiça não se funda na razão isto é na descoberta de cer tas conexões e relações de idéias eternas imutáveis e universalmen te obrigatórias Pois como se reconhece que uma alteração tal como a acima mencionada no temperamento dos homens e nas circunstân cias em que se encontram alteraria completamente todos os nossos deveres e obrigações tornase necessário pelo sistema comum de que o sentido da virtude é derivado da razão mostrar a mudança que isso produziria nas relações e idéias É evidente porém que a única causa pela qual uma irrestrita generosidade humana e a perfeita abundância de todas as coisas destruiriam a própria idéia de justiça é que a tornariam inútil e por outro lado uma benevolência restrita e a condição de carência só dão origem àquela virtude por tornála ne cessária ao interesse público bem como ao interesse de todo indiví duo Foi portanto uma preocupação com nosso próprio interesse e com o interesse público que nos fez estabelecer as leis da justiça e nada pode ser mais certo que o fato de que não é uma relação de idéias o que nos dá essa preocupação mas nossas impressões e senti mentos sem os quais tudo na natureza nos seria inteiramente indife rente e incapaz de nos afetar por menos que fosse O sentido de justi ça portanto não se funda em nossas idéias mas em nossas impressões 536 Livro 3 Parte 2 Seção 2 21 Em terceiro lugar podemos ainda confirmar a proposição anterior de que as impressões que dão origem a esse sentido de justiça não são natu rais à mente do homem surgindo antes do artifício e das convenções humanas Porque como qualquer alteração considerável no temperamento e nas circunstâncias destrói igualmente a justiça e a injustiça e como tal alteração só tem esse efeito por alterar nosso interesse bem como o interesse público seguese que o estabelecimento inicial das regras da justiça depende desses diferentes interesses Mas se os homens perseguissem o interesse público naturalmente com uma sincera de voção nunca teriam sonhado em se impor restrições mútuas por meio dessas regras e se perseguissem seu próprio interesse sem nenhuma precaução mergulhariam diretamente em todo tipo de injustiça e vio lência Essas regras portanto são artificiais e buscam seu fim de uma maneira oblíqua e indireta o interesse que as engendra não é do tipo que poderia ser perseguido pelas paixões naturais e não artificiais dos homens 22 Para que esse ponto fique mais evidente consideremos que em bora as regras da justiça sejam estabelecidas simplesmente por inte resse sua conexão com o interesse é algo singular diferente do que se observa em outras ocasiões Um único ato de justiça é com fre qüência contrário ao interesse público se permanecesse isolado se não fosse seguido por outros atos poderia ser em si mesmo bastante prejudicial à sociedade Quando um homem de mérito e de disposi ção benfazeja devolve uma grande fortuna a um avarento ou a um fa nático traiçoeiro está agindo de maneira justa e louvável mas na rea lidade o público sofre com essa ação De maneira semelhante nem todo ato isolado de justiça considerado separadamente é favorável ao interesse privado é fácil conceber de que maneira um homem pode se empobrecer em virtude de um ato exemplarmente íntegro e pode ter razão para desejar que em relação àquele ato em particular as leis da justiça tivessem sido momentaneamente suspensas do universo Mas embora atos isolados de justiça possam ser contrários ao interes se público ou privado certamente a totalidade do plano ou esquema é 53 7 Tratado da natureza humana altamente propícia e mesmo absolutamente necessária tanto à ma nutenção da sociedade quanto ao bemestar de cada indivíduo É impossível separar o bem do mal A propriedade tem de ser estável e determinada por regras gerais Ainda que em um caso isolado o público em geral possa sofrer esse mal momentâneo é amplamente compensado pela firme execução da regra e pela paz e ordem que esta estabelece na sociedade E mesmo cada indivíduo ao fazer as contas deverá perceber que saiu ganhando pois sem justiça a sociedade imediatamente se dissolveria e todos cairiam naquela condição sel vagem e solitária que é infinitamente pior que a pior situação que se possa supor na sociedade Portanto quando os homens já adquiri ram experiência bastante para observar que seja qual for a conse qüência de um ato singular de justiça realizado por uma única pes soa a totalidade do sistema de ações em que concorre toda a sociedade é infinitamente vantajosa para o conjunto e para cada parte quando isso acontece a justiça e a propriedade não tardam a se estabelecer Cada membro da sociedade é sensível a esse interesse Cada um ex pressa esse sentimento sense para seus companheiros juntamente com a resolução que tomou de conformar suas ações com ele com a condição de que os outros façam o mesmo Nada mais é preciso para induzir qualquer um deles a realizar um ato de justiça à primeira opor tunidade Esse ato se torna um exemplo para os demais E assim a justiça se estabelece por uma espécie de convenção ou acordo isto é por um sentido do interesse que se supõe comum a todos e em que cada ato é realizado na expectativa de que as outras pessoas agirão de maneira semelhante Sem essa convenção ninguém sequer teria so nhado que havia uma virtude como a justiça ou teria sido levado a conformar suas ações com ela Considerandose um ato singular mi nha justiça pode ser perniciosa sob todos os aspectos é apenas pela suposição de que os outros devem imitar meu exemplo que posso ser levado a abraçar essa virtude pois nada a não ser essa combinação pode tornar a justiça vantajosa ou me dar motivos para me confor mar com suas regras 538 Livro 3 Parte 2 Seção 2 23 Chegamos agora à segunda questão que propusemos por que vin culamos a idéia de virtude à de justiça e a de vício à de injustiça Essa ques tão não irá nos deter por muito tempo após os princípios que já esta belecemos Tudo que sobre ela podemos dizer neste momento será concluído em poucas palavras para uma explicação mais satisfatória o leitor deverá aguardar até chegarmos à terceira parte deste livro A obrigação natural da justiça ou seja o interesse já foi explicada em sua totalidade quanto à obrigação moral ou sentimento do que é certo ou errado será preciso primeiramente examinar as virtudes naturais antes que possamos fornecer uma explicação completa e satisfatória 24 Quando os homens descobrem pela experiência que o livre exer cício de seu egoísmo e de sua generosidade limitada os torna total mente incapacitados para a sociedade e ao mesmo tempo observam que a sociedade é necessária para a satisfação dessas próprias paixões são naturalmente levados a se submeter à restrição de regras que pos sam tornar seu comércio mais seguro e cômodo Portanto inicialmente eles são levados a se impor e a observar essas regras tanto em geral como em cada caso particular apenas por interesse e esse motivo quando da formação da sociedade é suficientemente forte e impera tivo Mas quando a sociedade cresce e se torna numerosa transfor mandose em uma tribo ou nação esse interesse se faz mais remoto os homens não percebem tão facilmente como ocorria em uma socie dade mais limitada e reduzida que cada violação dessas regras tem como conseqüência a desordem e a confusão Entretanto embora em nossas próprias ações possamos com freqüência perder de vista esse interesse que temos na manutenção da ordem e embora possamos seguir um interesse presente e menos importante nunca deixamos de observar como somos prejudicados direta ou indiretamente pela injustiça alheia pois nesse caso não somos cegados pela paixão nem predispostos por uma tentação contrária Mais ainda mesmo quan do a injustiça é tão distante que não afeta nosso interesse ela ainda nos desagrada pois a consideramos prejudicial à sociedade huma na e perniciosa para todas as pessoas que se aproximam do culpado 539 Tratado da natureza humana de têla cometido Participamos por simpatia do desprazer dessas pes soas e como tudo que produz um desprazer nas ações humanas exa minado de maneira geral é denominado vício e tudo que produz sa tisfação da mesma maneira é dito virtude essa é a razão por que o sentido do bem e do mal morais resulta da justiça e da injustiça E embora no caso presente esse sentido seja derivado unicamente da contemplação das ações alheias não deixamos de estendêlo a nos sas próprias ações A regra geral ultrapassa os casos que lhe deram origem ao mesmo tempo simpatizamos naturalmente com os senti mentos que as outras pessoas têm sobre nós Assim o interesse pró prio é o motivo original para o estabelecimento da justiça mas uma simpatia com o interesse público é a fonte da aprovação moral que acompanha essa virtude Este último princípio da simpatia é fraco demais para controlar nossas paixões mas tem força suficiente para influenciar nosso gosto e para nos dar os sentimentos de aprovação ou de condenação 25 Embora esse progresso dos sentimentos seja natural e até neces sário ele certamente se vê favorecido pelo artifício dos políticos que com o intuito de governar mais facilmente os homens e preservar a paz na sociedade humana buscaram produzir um apreço pela justiça e uma aversão pela injustiça Sem dúvida esse artifício deve surtir efeito É evidente porém que a questão foi levada longe demais por certos moralistas que parecem ter empregado todos os seus esfor ços para extirpar da humanidade qualquer sentido de virtude Um ar tifício dos políticos pode ajudar a natureza a produzir esses sentimen tos que ela nos sugere e em algumas ocasiões pode até produzir sozinho uma aprovação ou apreço por uma ação particular mas é impossível que seja a única causa da distinção que fazemos entre o vício e a virtude Pois se a natureza não nos ajudasse quanto a isso seria em vão que os políticos falariam em honroso ou desonroso louvá vel ou condenável Essas palavras seriam inteiramente ininteligíveis não estariam vinculadas a nenhuma idéia como se pertencessem a uma lín 540 Livro 3 Parte 2 Seção 2 gua completamente desconhecida por nós O máximo que os políti cos podem fazer é estender os sentimentos naturais para além de seus limites originais mas a natureza ainda tem de fornecer a matériapri ma dandonos alguma noção das distinções morais 26 Assim como o elogio e a condenação pública aumentam nosso apreço pela justiça assim também a educação e a instrução privada contribuem para o mesmo efeito Os pais observam facilmente que uma pessoa é tão mais útil para si mesma e para os demais quanto maior for o grau de probidade e honra de que seja dotada e que esses princípios têm mais força quando o costume e a educação auxiliam o interesse e a reflexão por essa razão são levados a inculcar em seus filhos desde a mais tenra infância os princípios da probidade e ensinamlhes a ver a observância das regras que mantêm a socie dade como algo honroso e louvável e sua violação como vil e des prezível Desse modo os sentimentos de honra podem criar raízes em suas mentes delicadas adquirindo uma tal firmeza e solidez que não ficam muito aquém dos princípios mais essenciais à nossa natureza emais profundamente enraizados em nossa constituição interna 27 Algo que também contribui para aumentar a solidez desses sen timentos é o interesse por nossa reputação uma vez firmemente estabelecida entre os homens a opinião de que um mérito ou demérito acompanha a justiça ou a injustiça Nada nos toca mais de perto que nossa reputação e esta depende sobretudo de nossa conduta em relação à propriedade alheia Por essa razão todos os que tenham algum cui dado com sua reputação ou que pretendam viver em bons termos com a humanidade devem fixar para si mesmos como uma lei inviolável que nunca seja qual for a tentação irão violar esses princípios que são essenciais a um homem de probidade e honradez 28 Farei apenas mais uma observação antes de abandonar este tema embora eu afirme que no estado de natureza ou seja naquele estado imaginário anterior à sociedade não havia nem justiça nem injusti ça não afirmo que em tal estado era permitido violar a propriedade 541 Tratado da natureza humana alheia Sustento apenas que não havia algo como a propriedade e con seqüentemente não poderia haver algo como justiça ou injustiça Te rei a oportunidade de fazer uma reflexão semelhante a respeito das promessas quando tratar desse assunto e espero que essa reflexão quan do devidamente considerada seja suficiente para eliminar qualquer aver são pelas opiniões precedentes a respeito da justiça e da injustiça Seção 3 Das regras que determinam a propriedade 1 Embora a instituição da regra concernente à estabilidade da pos se seja não apenas útil mas absolutamente necessária à sociedade hu mana não poderá servir a propósito nenhum enquanto permanecer em termos tão gerais Devese estabelecer algum método que nos per mita distinguir que bens particulares devem ser atribuídos a cada pes soa particular ao passo que o resto da humanidade fica excluído de sua posse e usufruto Nossa próxima tarefa portanto deve ser des cobrir as razões que modificam essa regra geral adaptandoa ao uso e à prática comum dos homens 2 É óbvio que essas razões não são derivadas de uma utilidade ou vantagem que uma pessoa particular ou o público em geral pudessem extrair desse usufruto de bens particulares e a qual seria maior que a resultante de sua posse por alguma outra pessoa Sem dúvida seria bem melhor que todos possuíssem tudo que lhes fosse mais adequado e apropriado para seu uso Mas além de essa relação de adequação po der ser comum a várias pessoas ao mesmo tempo ela está sujeita a tantas controvérsias as quais os homens julgam de maneira tão par cial e passional que uma regra tão vaga e incerta seria absolutamente incompatível com a paz da sociedade humana A convenção sobre a estabilidade das posses é feita justamente para eliminar qualquer oca sião de discórdia e polêmica e essa finalidade nunca seria alcançada se nos fosse permitido aplicar essa regra diferentemente em cada caso de acordo com a utilidade particular que pudéssemos descobrir em 542 Livro 3 Parte 2 Seção 3 tal aplicação A justiça em suas decisões nunca leva em conta a ade quação ou a inadequação dos objetos às pessoas particulares sendo ao contrário conduzida por considerações mais amplas Quer um ho mem seja generoso quer seja avaro é igualmente contemplado por ela obtendo com a mesma facilidade uma decisão a seu favor mes mo quanto a algo que lhe é inteiramente inútil 3 Seguese portanto que a regra geral de que a posse deve ser estável não se aplica por meio de juízos particulares mas mediante outras regras gerais que devem se estender a toda a sociedade sem se dei xar influenciar nem pelo despeito nem pelo favor Como ilustração proponho o seguinte exemplo Primeiramente considero os homens em sua condição selvagem e solitária e suponho que sensíveis aos sofrimentos decorrentes desse estado e prevendo as vantagens que resultariam da sociedade eles busquem a companhia uns dos outros oferecendo sua mútua proteção e assistência Suponho também que esses homens são dotados de tal sagacidade que percebem imediata mente que o maior impedimento a esse projeto de sociedade e parce ria está na avidez e no egoísmo de seu temperamento natural para remediar tal coisa formam uma convenção para a estabilidade da posse e para sua mútua restrição e abstenção Bem sei que esse modo de proceder não é inteiramente natural mas estou aqui apenas su pondo que essas reflexões se formam de uma só vez quando na ver dade elas nascem pouco a pouco imperceptivelmente Além disso é bem possível haver diversas pessoas que tendo sido separadas por diferentes acidentes das sociedades a que antes pertenciam vejam se obrigadas a formar entre si uma nova sociedade e neste caso sua situação é exatamente como a que descrevi acima 4 É evidente que sua primeira dificuldade nessa situação após a convenção geral para o estabelecimento da sociedade e para a cons tância da posse é saber como separar seus bens e designar a cada um sua porção particular de que deverá usufruir inalteradamente dali em diante Mas essa dificuldade não os deterá por muito tempo Imedia tamente deve ocorrer a esses homens como o expediente mais natu 543 Tratado da natureza humana ral que cada qual continue a gozar daquilo que possui no presente e que a propriedade ou posse constante deve se unir à posse imediata O costume não tem apenas o efeito de nos acomodar às coisas de que usufruímos por muito tempo gera também em nós uma afeição por elas de modo que acabamos preferindo essas coisas a outros obje tos talvez mais valiosos porém menos conhecidos Aquilo que há muito está sob nossos olhos e tem sido freqüentemente usado em nosso benefício é isso que mais relutamos em abandonar mas pode mos facilmente viver sem os bens de que nunca usufruímos e a que não estamos acostumados É evidente portanto que os homens as sentiriam facilmente a esse expediente ou seja que todos continuem a gozar daquilo que possuem no presente e é por essa razão que estariam tão naturalmente de acordo com essa solução1 Nenhuma questão filosófica é tão difícil quanto estabelecer dentre um grande número de causas que se apresentam para um mesmo fenômeno qual a principal e predominan te Raramente existe um argumento preciso o bastante para determinar nossa escolha e temos de nos contentar em nos guiar por uma espécie de gosto ou inclinação baseado na analogia e em uma comparação com exemplos similares Assim no caso presente não há dúvida de que existem motivos de interesse público para a maioria das regras que deter minam a propriedade mesmo assim suspeito que essas regras são fixadas sobretudo pela imaginação ou seja pelas propriedades mais frívolas de nosso pensamento e concepção Continuarei a explicar essas causas deixando que o próprio leitor se decida entre as deri vadas da utilidade pública ou as derivadas da imaginação Começaremos com o direito do possuidor atual 2 Uma qualidade que já observei Livro 1 Parte 4 Seção S na natureza humana é que quando dois objetos apresentam uma relação estreita a mente tende a atribuirlhes uma relação adicional para completar a união e essa inclinação é tão forte que freqüentemente nos leva a cometer erros como o da conjunção entre pensamento e matéria se descobri mos que estes podem servir a tal propósito Muitas de nossas impressões são incapazes de ocupar um lugar ou ter uma posição no espaço entretanto supomos que essas mesmas impressões têm uma conjunção local com as impressões da visão e do tato simplesmente porque apresentam uma conjunção causal e já estão unidas na imaginação Portanto uma vez que para completar uma união podemos fantasiar uma nova relação mesmo absurda é fácil imaginar que se houver alguma relação que dependa da mente esta irá facilmente conjugála com qualquer relação anterior unindo por um novo laço aqueles objetos que já têm uma união na fantasia Assim por exemplo quando arrumamos determinados cor pos nunca deixamos de pôr os semelhantes em contigüidade uns com os outros ou ao menos em posições correspondentes porque sentimos uma satisfação em juntar a relação de conti güidade à de semelhança ou a semelhança de situação à de qualidades Isso se explica facil mente pelas conhecidas propriedades da natureza humana Quando a mente se vê deter minada a juntar certos objetos mas permanece indeterminada quanto à escolha dos objetos 544 Livro 3 Parte 2 Seção 3 5 Podemos observar no entanto que embora a regra que atribui a propriedade ao possuidor atual seja natural e por isso mesmo útil sua utilidade não ultrapassa a formação inicial da sociedade e nada seria mais pernicioso que sua observância constante que levaria à ex clusão da restituição bem como à autorização e mesmo à recompen sa de todo tipo de injustiça Portanto devemos buscar outras circuns tâncias que possam dar origem à propriedade após a sociedade já terse estabelecido E entre essas considero as quatro seguintes como as mais importantes a ocupação o usucapião a acessão e a sucessão Exa minaremos brevemente cada uma delas começando pela ocupação 6 A posse de todo bem externo é cambiável e incerta o que consti tui um dos maiores impedimentos ao estabelecimento da sociedade sendo a razão pela qual por um acordo geral expresso ou tácito os homens impõem restrições uns aos outros por meio daquilo que hoje chamamos de regras de justiça e eqüidade A penúria da condição que antecede essa restrição é a razão de nos submetermos a esse remédio o mais rapidamente possível e isso por sua vez permite que expli quemos facilmente por que vinculamos a idéia de propriedade à de primeira posse ou ocupação Os homens relutam em deixar sua pro priedade em suspenso mesmo por um curto período ou em deixar o menor espaço à violência e à desordem A isso podemos acrescentar que a primeira posse sempre atrai mais a atenção caso a desprezás particulares é natural que volte seu olhar para aqueles que estão relacionados Estes já estão unidos pela mente apresentamse ao mesmo tempo à concepção e sua conjunção não precisa de uma nova razão ao contrário seria preciso uma razão muito poderosa para nos fazer desprezar essa afinidade natural Mais adiante quando tratarmos da beleza te remos ocasião de explicar esse fato de maneira mais completa Por ora podemos nos sa tisfazer com a observação de que o mesmo amor pela ordem e pela uniformidade que nos faz arrumar os livros em uma biblioteca e as cadeiras em uma sala contribui para a forma ção da sociedade e para o bemestar da humanidade ao modificar a regra geral concernente à estabilidade da posse Como a propriedade estabelece uma relação entre uma pessoa e um objeto é natural fundála em alguma relação anterior e como a propriedade não é senão a posse constante assegurada pelas leis sociais é natural acrescentála à posse atual que é uma relação semelhante pois isso também tem sua influência Se é natural conju gar todo tipo de relação é mais natural ainda juntar relações que são semelhantes e estão elas próprias relacionadas 545 Tratado da natureza humana semos não haveria sombra de razão para atribuir a propriedade a uma posse subseqüente2 7 Resta apenas determinar com exatidão o que se quer dizer com posse e isso não é tão fácil quanto se pode imaginar à primeira vista Dizemos estar de posse de alguma coisa não apenas quando a tocamos imediatamente mas também quando estamos situados de tal forma em relação a ela que temos o poder de usála movêla alterála ou destruíla conforme nosso agrado ou conveniência presente Essa relação então é uma espécie de causa e efeito e como a propriedade não é mais que uma posse estável derivada das regras de justiça ou das convenções humanas deve ser considerada uma relação da mesma espécie Mas aqui cabe observar que como o poder de usar um obje to se torna mais ou menos certo segundo sejam mais ou menos pro váveis as interrupções que possamos sofrer e como essa probabili dade pode aumentar gradativa e imperceptivelmente em muitos casos é impossível determinar quando a posse começa ou termina e não há nenhum critério certo que nos permita resolver tais controvérsias Se um javali cai em nossa armadilha considerase que está em nossa posse quando é impossível que escape Mas o que queremos dizer com impossível Como separar essa impossibilidade de uma impro babilidade E como distinguir exatamente esta última de uma probabi lidade Como marcar os limites precisos de uma e de outra e qual o critério que nos permite decidir todas as disputas que possam surgir e que como vemos na experiência surgem de fato e com freqüência sobre essa questão3 2 Alguns filósofos explicam o direito de ocupação dizendo que cada pessoa tem a proprie dade de seu próprio trabalho e quando a pessoa une esse trabalho a algo isso lhe dá a propriedade do conjunto Mas 1 Há diversos tipos de ocupação em que não se pode di zer que unimos nosso trabalho ao objeto adquirido por exemplo quando possuímos um prado porque nosso gado pasta ali 2 Essa explicação recorre à acessão o que constitui um desvio desnecessário 3 Somente em sentido figurado se pode dizer que unimos nos so trabalho a algo Rigorosamente falando o trabalho apenas altera o objeto o que esta belece uma relação entre este e nós e é daí que surge a propriedade de acordo com os princípios anteriores 3 Se buscarmos a solução dessas dificuldades na razão e no interesse público nunca a encon traremos e se a buscarmos na imaginação é evidente que as qualidades que agem sobre 546 Livro 3 Parte 2 Seção 3 essa faculdade se misturam tão gradativa e tão insensivelmente umas com as outras que é impossível estabelecer seus limites ou suas fronteiras precisas As dificuldades quanto a esse ponto devem crescer quando consideramos que nosso juízo se altera de maneira bastante perceptível segundo o assumo e que o mesmo poder e a mesma proximidade é considerada posse em um caso mas não em outro Uma pessoa que caçou uma lebre até a exaustão consideraria uma injustiça que alguém se adiantasse para pegar sua presa Mas essa mesma pessoa dirigindose para colher uma maçã que está ao seu alcance não tem razão em reclamar se outra pessoa mais alerta passa à sua frente e se apossa da maçã Qual a razão dessa diferença senão que a imobilidade não sendo algo natural à lebre mas sim efeito do esforço estabelece naquele caso uma relação mais forte com o caçador que está ausente no outro caso 2 Vêse aqui portanto que freqüentemente um poder certo e infalível de usufruir de algum objeto não produz a propriedade se não houver um toque ou alguma outra relação sensível Além disso observo que uma relação sensível sem um poder presente às vezes é suficiente para dar direito a um certo objeto A visão de uma coisa ao contrário rara mente é uma relação considerável e só é tida como tal quando o objeto está oculto ou é muito obscuro nesse caso constatamos que sua mera visão confere propriedade confor me à máxima de que mesmo um continente inteiro pertence à primeira nação que o descobriu Note se porém que tanto no caso da descoberta quanto no da posse aquele que primeiro des cobre ou possui o objeto tem de juntar à relação uma intenção de se tornar proprietário de outro modo a relação não terá efeito porque a conexão em nossa fantasia entre a pro priedade e a relação não é tão grande precisando ser auxiliada por essa intenção 3 Por todas essas circunstâncias é fácil ver quão complicadas podem se tornar várias querelas acerca da aquisição de propriedade por ocupação o menor esforço de pensamento deve nos proporcionar casos que não comportam uma decisão racional Se preferirmos exemplos reais em lugar de exemplos hipotéticos poderemos considerar o seguinte que se encontra em quase todos os autores que tratam do direito natural 4 Dois grupos de colonos gregos deixando seu país natal em busca de novos assenta mentos receberam a informação de que uma cidade próxima havia sido abandonada por seus habitantes Para confirmar a verdade desse relato enviaram imediatamente dois men sageiros um de cada colônia estes ao se aproximarem do local descobriram que a infor mação era verdadeira e iniciaram uma corrida com a intenção de tomar posse da cidade cada qual em nome de seus conterrâneos Um desses mensageiros vendo que não era tão veloz quanto o outro atirou uma lança contra os portões da cidade e teve a sorte de cravá la antes que seu companheiro ali chegasse Isso produziu uma discussão entre as duas colônias para saber qual das duas era a proprietária da cidade deserta e essa discussão permanece até hoje entre os filósofos De minha parte penso que é impossível resolver a controvérsia pois toda a questão depende da fantasia que neste caso não possui um cri tério preciso ou determinado com base no qual possa formular sua sentença 5 Para que isso fique evidente consideremos que se essas duas pessoas tivessem sido simplesmente membros das colônias e não mensageiros ou delegados suas ações seriam irrelevantes pois nesse caso sua relação com as colônias seria fraca e imperfeita Acres centese que nada as obrigava a correr em direção aos portões em vez de em direção aos muros ou a qualquer outra parte da cidade senão o fato de que os portões sendo a parte mais óbvia e fácil de se notar são mais satisfatórios para a fantasia podendo ser tomados pelo conjunto da cidade vemos a mesma coisa nos poetas que utilizam freqüentemente portões como imagem e metáfora Além disso consideremos que o fato de um dos men sageiros tocar ou ter um contato direto com os portões não constitui propriamente pos se não mais que o ato de neles cravar uma lança apenas constitui uma relação Ora no outro caso também existe uma relação igualmente evidente embora talvez não tão forte Qual dessas relações portanto confere um direito e uma propriedade ou se alguma delas é suficiente para tanto deixo essa decisão a cabo de quem é mais sagaz que eu 547 Tratado da natureza humana 8 Disputas como essas surgem porém não apenas quanto à exis tência real da propriedade e da posse mas também quanto a sua extensão e freqüentemente não podem resolvidas ou podem sêlo unicamente pela faculdade da imaginação Alguém que desembarca na praia de uma pequena ilha deserta e não cultivada é considerado seu possuidor desde o primeiro momento adquirindo a proprieda de de toda a ilha porque o objeto nesse caso é limitado e circuns crito na fantasia sendo ao mesmo tempo proporcional ao novo pos suidor Mas se a mesma pessoa aportasse numa ilha deserta que fosse grande como a GrãBretanha sua propriedade não se estenderia além de sua posse imediata já um grande número de colonos seriam considerados proprietários de toda a ilha desde o momento de seu desembarque 9 Freqüentemente entretanto o título decorrente da primeira posse fica obscurecido com o tempo e muitas controvérsias que surgem a esse respeito são impossíveis de resolver Nesse caso sobrevém na turalmente a posse prolongada ou usucapião que dá à pessoa uma propriedade suficiente sobre o bem de que ela já desfruta A natureza da sociedade humana não admite uma precisão muito grande e nem sempre podemos retroceder até a origem das coisas para determinar sua condição presente Qualquer intervalo de tempo considerável põe os objetos a uma tal distância que eles parecem perder sua realidade exercendo tão pouca influência sobre a mente como se jamais hou vessem existido O direito de um homem claro e certo no presente parecerá obscuro e duvidoso dali a cinqüenta anos mesmo que os fatos em que está fundado sejam provados com a maior evidência e certe za Os mesmos fatos não têm a mesma influência após um intervalo de tempo tão longo Essa observação pode ser aceita como um argu mento convincente em favor de nossa doutrina precedente a respeito da propriedade e da justiça A posse durante um longo período de tempo confere um direito sobre um objeto qualquer Mas o certo é que embora tudo se produza no tempo nada de real se produz pelo tempo por isso como a propriedade é produzida pelo tempo ela não 548 Livro 3 Parte 2 Seção 3 é algo real nos objetos mas fruto dos sentimentos a única coisa so bre a qual o tempo tem alguma influência4 10 Adquirimos a propriedade sobre os objetos por acessão quando estão estreitamente conectados com outros objetos que já são de nossa propriedade e ao mesmo tempo são inferiores a estes Assim por exemplo os frutos de nosso jardim as crias de nosso gado e o traba lho de nossos escravos todos são considerados nossa propriedade antes mesmo de os possuirmos Quando os objetos estão conectados na imaginação tendemos a pôlos em pé de igualdade e comumente supomos que são dotados das mesmas qualidades Passamos facil mente de um ao outro sem fazer diferença em nossos juízos a seu respeito sobretudo se os últimos forem inferiores aos primeiros 5 4 A posse atual é claramente uma relação entre uma pessoa e um objeto mas não é suficiente para contrabalançar a relação de primeira posse a menos que seja longa e ininterrupta Nesse caso a relação se fortalece do lado da posse atual pela extensão do tempo e se enfraquece do lado da primeira posse pela distância Essa mudança na relação produz uma mudança subseqüente na propriedade 5 Essa fonte de propriedade só pode ser explicada pela imaginação e podese afirmar que aqui as causas são simples Passaremos a explicálas mais detalhadamente ilustrandoas por meio de exemplos extraídos da experiência e da vida corrente 2 Observamos acima que a mente tem uma propensão natural a juntar relações sobre tudo relações semelhantes encontrando uma espécie de adequação e uniformidade nes sa união É dessa propensão que derivam as leis do direito natural que estabelecem que quando da formação inicial da sociedade a propriedade segue sempre a posse atual e em seguida decorre da primeira posse ou de uma posse prolongada Ora podemos facilmente observar que a relação não se limita a um único grau partindo de um objeto relacionado conosco adqui rimos uma relação com qualquer outro objeto que seja relacionado com ele e assim por diante até o pensamento perder o fio da meada em virtude da progressão demasiadamente longa Embora a relação possa se enfraquecer a cada recuo ela não é imediatamente destruída com freqüência conecta dois objetos por meio de um objeto intermediário re lacionado aos dois Esse princípio tem tanta força que gera o direito de acessão fazendo nos adquirir a propriedade não apenas dos objetos que possuímos imediatamente mas também dos que estão estreitamente conectados a eles 3 Suponhamos que um alemão um francês e um espanhol sic NT entrem em uma sala onde sobre a mesa estão colocadas três garrafas de vinho do Reno da Borgonha e do Porto e suponhamos que comecem a discutir sobre como distribuílas Para mostrar sua imparcialidade uma pessoa escolhida como árbitro iria naturalmente dar a cada um o pro duto de seu próprio país e isso por um princípio que em certa medida é a fonte das leis do direito natural que atribuem a propriedade à ocupação ao usucapião e à acessão 4 Em todos esses casos particularmente o da acessão existe primeiro uma união natu ral entre a idéia da pessoa e a do objeto e em seguida uma nova união moral produzida pelo direito ou propriedade que conferimos à pessoa Mas aqui ocorre uma dificuldade 549 Tratado da natureza humana que merece nossa atenção e que poderá nos dar a oportunidade de testar o método sin gular de raciocínio que utilizamos para este assunto Já observei que a imaginação passa com mais facilidade do pequeno ao grande que do grande ao pequeno sendo a transição de idéias sempre mais fácil e suave no primeiro caso que no segundo Ora como o direito de acessão surge da facilidade com que se dá a transição de idéias que conecta os objetos relacionados seria natural imaginar que esse direito fosse tão mais forte quanto mais fá cil a transição de idéias Podese pensar portanto que quando adquirimos a propriedade de um objeto pequeno consideramos facilmente qualquer objeto grande relacionado ao primeiro como uma acessão e pertencente ao proprietário do pequeno pois a transição nesse caso é muito fácil já que vai do objeto pequeno ao grande devendo conectálos da maneira mais estreita Mas de fato constatamos que nunca é assim O domínio da Grã Bretanha parece trazer consigo o domínio das Órcadas das Hébridas da Ilha de Man e da Ilha de Wight mas a autoridade sobre essas ilhas menores não implica naturalmente ne nhum direito sobre a GrãBretanha Em suma um objeto pequeno segue naturalmente um objeto grande como sua acessão mas nunca supomos que um objeto grande perten ça ao proprietário de um objeto pequeno a ele relacionado simplesmente por causa dessa propriedade e relação Entretanto neste último caso a transição entre as idéias é mais suave porque vai do proprietário ao objeto pequeno que é sua propriedade e do objeto pequeno ao grande ao passo que no primeiro caso ela vai rio proprietário ao objeto grande e deste ao objeto pequeno Podese pensar portanto que esses fenômenos cons tituem objeções à hipótese anterior de que a atribuição de propriedade à acessão não é senão um efeito das relações de idéias bem como da transição suave da imaginação 5 Para eliminarmos essa objeção basta considerarmos a agilidade e a instabilidade da imaginação que continuamente considera seus objetos de diferentes pontos de vista Quando atribuímos a alguém a propriedade sobre dois objetos nem sempre passamos da pessoa a um dos objetos e deste ao objeto relacionado Como os dois objetos aqui devem ser considerados propriedades dessa pessoa tendemos a reunilos e vêlos pela mesma pers pectiva Suponhamos portanto dois objetos relacionados um grande e um pequeno se uma pessoa tiver uma forte relação com o objeto grande também terá uma forte relação com o conjunto dos dois objetos já que sua relação é com a parte principal Se ao contrá rio só tiver relação com o objeto pequeno não terá uma forte relação com os dois ao mesmo tempo pois sua relação é só com a parte mais insignificante que não é capaz de nos afetar em um grau considerável quando consideramos o conjunto Essa é a razão por que objetos pequenos se tornam acessões de objetos grandes mas não o contrário 6 É opinião geral de filósofos e juristas que o mar não pode se tornar propriedade de nenhuma nação isso porque é impossível dele se apossar ou com ele formar uma relação distinta o bastante para fundamentar a propriedade Quando essa razão desaparece a pro priedade imediatamente tem lugar Assim os mais ferrenhos defensores da liberdade dos mares admitem sem exceção que esteiros e baías pertencem naturalmente como acessão aos proprietários do continente circundante Esses acidentes propriamente falando não têm mais vínculo ou união com a terra que o Oceano Pacífico poderia ter mas como estão uni dos na fantasia e ao mesmo tempo são menores são naturalmente vistos como acessões 7 A propriedade dos rios pelas leis da maioria das nações e pelo feitio natural de nosso pensamento é atribuída aos proprietários de suas margens excetuandose rios longos como o Reno ou o Danúbio que parecem à imaginação extensos demais para se seguirem co mo acessões à propriedade dos campos vizinhos Entretanto mesmo esses rios são conside rados propriedades da nação por cujos domínios passam pois a idéia de uma nação é de um tamanho adequado ao dos rios mantendo com eles essa relação na fantasia 8 Os juristas dizem que as acessões às terras que margeiam os rios seguem a propriedade dessas terras com a condição de que sejam formadas pelo que chamam de aluvião isto é de maneira insensível e imperceptível pois essas circunstâncias auxiliam muito a imagi nação a realizar a conjunção Quando uma parte considerável é arrastada de uma só vez 550 Livro 3 Parte 2 Seção 3 de uma margem não se torna propriedade daquele em cuja terra vai parar até que se una de fato a essa terra até que as árvores ou plantas tenham deitado suas raízes em ambas An tes que isso aconteça a imaginação não as une suficientemente 9 Há outros casos que se assemelham um pouco a esse caso da acessão mas que no fundo são consideravelmente diferentes merecendo por isso nossa atenção Um deles é a conjunção das propriedades de diferentes pessoas de maneira a não mais admitir sepa ração A questão que se coloca é a de saber a quem deve pertencer o conjunto após a união 10 Quando essa conjunção se dá de modo a admitir uma divisão mas não separação a deci são é natural e fácil Devese supor que toda a massa é comum aos proprietários das di versas partes e em seguida dividila proporcionalmente a essas partes Mas aqui não pos so deixar de mencionar uma notável sutileza do direito romano que distingue entre a confusão e a comistão Confusão é uma união de dois corpos como dois líquidos diferentes em que as partes se tornam absolutamente indistinguíveis Comistão é a mistura de dois corpos tais como dois alqueires de trigo em que as partes permanecem separadas de uma ma neira evidente e visível Neste último caso a imaginação não descobre uma união tão perfeita quanto no primeiro sendo ao contrário capaz de determinar e de preservar uma idéia distinta da propriedade de cada uma delas por essa razão o direito civil embora estabeleça uma perfeita comunhão no caso da confusão seguida de uma divisão proporcio nal supõe no caso da comistão que cada proprietário mantém um direito distinto embo ra a necessidade possa acabar forçandoos a se submeter à mesma divisão 1 1 Quod si frumentum Titii frumento tuo mistum fuerit siquidem ex voluntate vestra commune est quia singula corpora id est singula grana quce cujusque propria fuerunt ex consensu vestro communicata sunt Quod si casu id mistum fuerit vel Titius miscuerit sine tua voluntate non videtur commune esse quia singula corpora in sua substantia durant Sed nec magis istis casibus commune sit frumentum quam grex intelligitur esse communis si pecora Titii tuis pecoribus mista fuerint Sed si ab alterutro vestrúm totum id frumentum retineatur in rem quidem actio pro modo frumenti cujusque competit Arbítrio autem judieis continetur ut ipse cestimet quale cujusque frumentum fuerit Inst Lib II Tit 1 28 12 Se propriedades de duas pessoas estão unidas de tal maneira que não admitem nem divisão nem separação como quando uma constrói uma casa no terreno da outra o con junto nesse caso deve pertencer a apenas um dos proprietários E aqui afirmo que é na tural conceberse que pertence ao proprietário da parte mais importante Porque embora o objeto composto possa ter uma relação com as duas pessoas diferentes conduzindo nosso olhar a ambas ao mesmo tempo é sobretudo a parte mais importante que capta nossa atenção e por meio da união estreita arrasta consigo a inferior por isso o conjunto pas sa a ter uma relação com o proprietário dessa parte sendo visto como sua propriedade A única dificuldade é saber qual parte desejamos chamar de mais importante e mais atraen te para a imaginação 1 3 Essa qualidade depende de diversas circunstâncias diferentes que têm pouca cone xão entre si Uma parte de um objeto composto pode se tornar mais importante que a outra porque é mais constante e duradoura porque tem mais valor porque é mais evidente e fácil de notar porque é mais extensa ou porque sua existência é mais separada e inde pendente É fácil conceber que como essas circunstâncias podem ser reunidas e opostas de todas as maneiras e em todos os graus imagináveis haverá muitos casos em que as ra zões de ambos os lados serão tão perfeitamente equilibradas que nos será impossível tomar uma decisão satisfatória É portanto tarefa do direito interno determinar aquilo que 0s princípios da natureza humana deixaram indeterminado 14 A superfície submetese ao solo diz o direito civil a escrita ao papel a tela à pintura Essas decisões não concordam muito bem umas com as outras sendo uma prova da contrarie dade dos princípios de que derivam 15 De todas as questões desse gênero porém a mais curiosa é a que durante tantos sé culos dividiu os discípulos de Próculo e de Sabino Suponhamos que uma pessoa fabrique 551 Tratado da natureza humana 1 1 O direito de sucessão é um direito muito natural em virtude do suposto consentimento do pai da mãe ou de um parente próximo e em virtude igualmente do interesse geral da humanidade que requer que nossas posses passem para os que nos são mais queridos a fim de nos tornar mais laboriosos e frugais É possível que essas causas sejam favorecidas pela influência da relação ou associação de idéias que nos leva naturalmente a considerar o filho após a morte do pai e a atribuirlhe um direito sobre os bens deste Esses bens têm de se tornar propriedade de alguém mas a questão é de quem Ora é evi dente que os filhos da pessoa falecida naturalmente se apresentam à mente e como já estão conectados a essas posses por intermédio do parente morto tendemos a conectálos ainda mais pela relação de propriedade Há muitos exemplos análogos a este6 um cálice com o metal de outra ou construa um navio com sua madeira e suponhamos que o proprietário do metal ou da madeira reclame seus bens A questão é saber se ele adquire um direito ao cálice ou ao navio Sabino dizia que sim e afirmava que a substân cia ou matéria é o fundamento de todas as qualidades por ser incorruptível e imortal e por isso superior à forma que é acidental e dependente Próculo por sua vez observou que a forma é a parte mais evidente e manifesta e é com base nela que os corpos são ditos dessa ou daquela espécie particular Poderia ter acrescentado que a matéria ou substân cia em muitos corpos é tão flutuante e incerta que é inteiramente impossível acompanhá la ao longo de todas as suas mudanças De minha parte não sei que princípios poderiam solucionar com segurança uma controvérsia como essa Contentarmeei portanto em observar que a decisão de Triboniano me parece bastante engenhosa que o cálice pertence ao proprietário do metal porque este pode ser trazido de volta à sua forma inicial mas que o navio pertence ao autor de sua forma pela razão contrária No entanto por mais en genhosa que pareça essa explicação ela depende claramente da fantasia que pela possi bilidade de uma tal redução vê uma conexão e relação mais estreita entre um cálice e o proprietário de seu metal que entre um navio e o proprietário de sua madeira cuja subs tância é mais fixa e inalterável Se o trigo de Tício for misturado com o teu por vontade de ambos tornase comum porque todos os corpos isto é todos os grãos que foram próprios de cada um se confun diram por vosso consentimento Se porém foi misturado por acaso ou Tício misturouos sem teu conhecimento não parece tornarse comum porque cada grão permanece em sua substância e nestes casos não fica o trigo mais comum do que o rebanho quando os gados de Tício se misturassem com os teus E se algum de vós retém todo esse trigo com pete ao outro uma ação real proporcionada à quantidade do seu Ao arbítrio do juiz cabe apreciar a qualidade do trigo de cada um Triboniano Institutas do Imperador Justiniano livro II tít 1 28 Tradução de Clovis Natalini de Oliveira NT 6 Quando examinarmos as diferentes pretensões à autoridade governamental encontrare mos muitas razões que nos convencerão de que o direito de sucessão depende em gran de parte da imaginação Enquanto isso contentarmeei em chamar a atenção para um exemplo que diz respeito ao assunto presente Suponhamos que uma pessoa morra sem 552 Livro 3 Parte 2 Seção 4 Seção 4 Da transferência da propriedade pelo consentimento 1 A estabilidade da posse por mais útil ou mesmo necessária que possa ser à sociedade humana apresenta graves inconvenientes A relação de adequação ou conveniência nunca deveria ser levada em consideração na distribuição das propriedades entre os homens ao con trário devemos nos guiar por regras de aplicação mais geral e mais livres de dúvidas e incertezas Uma dessas regras é a da posse atual que tem lugar quando se estabelece pela primeira vez a sociedade e mais tarde a ocupação o usucapião a acessão e a sucessão Mas como es tas dependem em grande parte do acaso freqüentemente entram em contradição com as necessidades e os desejos dos homens desse modo amiúde pessoas e posses não se ajustam muito bem Esse é um grande inconveniente que precisa ser remediado Mas aplicar um remédio diretamente permitindo que cada pessoa tome pela violência aquilo que julga bom para si mesma destruiria a sociedade por isso as regras da justiça buscam um meiotermo entre a rígida estabilida de e esse ajuste variável e incerto E não há melhor meiotermo que este bastante evidente que a posse e propriedade deveria ser sem pre estável exceto quando o proprietário concorda em transferila a outra pessoa Essa regra não pode ter conseqüências nocivas nem oca sionar guerras ou discórdias pois o consentimento do proprietário que é o único interessado acompanha a alienação Ao contrário pode servir a muitos bons propósitos adequando as propriedades às pes soas Diferentes partes do mundo produzem diferentes mercadorias deixar filhos e que surja uma disputa entre seus parentes acerca da herança é evidente que se sua riqueza for oriunda em parte de seu pai e em parte de sua mãe o modo mais natural de resolver a questão é dividir suas posses destinando cada parte à família de que procedeu Ora como supostamente a pessoa foi um dia proprietária plena e integral des ses bens pergunto o que mais nos faria encontrar uma certa eqüidade e razão natural nessa partilha senão a imaginação O afeto da pessoa por essas famílias não dependia de suas posses por essa razão nunca se poderia presumir que consentiria inteiramente com tal partilha Quanto ao interesse público este não parece ter sido levado em consideração nem de um lado nem de outro 553 Tratado da natureza humana E não apenas isso Também diferentes homens são por natureza qua lificados para diferentes ocupações ao mesmo tempo que se aperfei çoam mais em uma ocupação quando se dedicam apenas a ela Tudo isso exige uma troca e um comércio mútuos por essa razão a transfe rência de propriedade por consentimento se funda em uma lei do direi to natural como ocorria com sua estabilidade sem tal consentimento 2 Até aqui tudo é determinado por um claro interesse e utilidade Talvez seja por razões mais triviais porém que a entrega ou transfe rência material do objeto é comumente exigida pelo direito civil e tam bém pelo direito natural segundo a maioria dos autores como circunstância necessária para a transferência da propriedade A pro priedade de um objeto tomada como algo real sem referência à mo ralidade ou aos sentimentos da mente é uma qualidade absolutamen te insensível e mesmo inconcebível não somos capazes de formar uma noção distinta nem de sua estabilidade nem de sua transferên cia Essa imperfeição de nossas idéias é menos perceptível no que diz respeito a sua estabilidade já que esta atrai menos nossa atenção e é facilmente menosprezada pela mente sem um exame cuidadoso Mas como a transferência da propriedade de uma pessoa a outra é um acon tecimento mais notável a deficiência de nossas idéias se torna mais sensível nessa ocasião obrigandonos a vasculhar todos os cantos em busca de um remédio Ora como nada aviva mais uma idéia que uma impressão presente e uma relação entre essa impressão e a idéia é natural que busquemos erroneamente uma luz nessas paragens Para auxiliar a imaginação a conceber a transferência da propriedade to mamos o objeto sensível e transferimos realmente sua posse à pes soa a quem queremos conferir a propriedade A suposta semelhança entre as ações e a presença dessa entrega visível enganam a mente fazendo que imagine estar concebendo a misteriosa transferência da propriedade Que essa explicação é correta fica claro pelo fato de que os homens inventaram uma entrega simbólica para satisfazer à fanta sia quando a entrega real é impraticável Assim a entrega das chaves de um celeiro é entendida como a cessão do trigo nele contido a en trega de uma pedra e de um punhado de terra representa a cessão de 554 Livro 3 Parte 2 Seção 5 um domínio Essa é uma espécie de prática supersticiosa do direito civil e do direito natural semelhante às superstições encontradas na religião católica romana Assim como os católicos romanos tornam os mistérios inconcebíveis da religião cristã mais presentes à mente re presentandoos por meio de uma vela de um hábito ou de gesticula ções que supostamente se assemelham a eles assim também os ju ristas e moralistas pela mesma razão lançaram mão de invenções semelhantes buscando dessa forma satisfazer a si mesmos no que diz respeito à transferência da propriedade por consentimento Seção 5 Da obrigatoriedade das promessas 1 Que a regra moral que impõe o cumprimento de promessas não é natural ficará suficientemente manifesto por estas duas proposições que provarei a seguir que uma promessa não seria inteligível antes de ser estabelecida pelas convenções humanas e que mesmo que fosse inteligível não viria acompanhada de nenhuma obrigação moral 2 Digo em primeiro lugar que uma promessa não é naturalmente inteligível nem é anterior às convenções humanas e um homem que não estivesse familiarizado com a vida em sociedade nunca poderia se comprometer perante outro homem ainda que ambos fossem ca pazes de perceber por intuição os pensamentos um do outro Se as promessas fossem naturais e inteligíveis deveria haver algum ato mental acompanhando as palavras eu prometo e é desse ato mental que a obrigação dependeria Examinemos pois todas as faculdades da alma e vejamos qual delas exercemos em nossas promessas 3 O ato mental expresso por uma promessa não consiste na resolu ção de realizar alguma coisa pois essa resolução por si só jamais impõe uma obrigação Tampouco é o desejo de realizála já que pode mos nos comprometer sem esse desejo ou mesmo com uma aversão declarada e confessa Também não consiste em querer a ação que pro metemos realizar pois uma promessa se refere sempre a um tempo futuro e a vontade só influencia ações presentes Seguese portanto que como o ato mental que faz parte de uma promessa e produz sua 555 Tratado da natureza humana obrigatoriedade não consiste nem em resolver nem em desejar nem em querer realizar algo em particular ele tem de consistir necessaria mente em querer a obrigação decorrente da promessa Essa conclusão não é apenas filosófica ao contrário é inteiramente conforme a nos so modo corrente de pensar e nos exprimir como nas ocasiões em que dizemos que nos comprometemos por nosso próprio consenti mento e que a obrigação decorre de nossa simples vontade e prazer A única questão que se coloca é saber se não há um evidente absur do em supor esse ato mental e um absurdo tal que só poderia ser cometido por alguém cujas idéias estivessem perturbadas pelo pre conceito e por um uso falacioso da linguagem 4 Toda moralidade depende de nossos sentimentos quando uma ação ou qualidade da mente nos agrada de uma determinada maneira dizemos que é virtuosa e quando o descuido ou a não realização des sa ação nos desagrada de maneira semelhante dizemos que temos obri gação de realizála Uma mudança na obrigação supõe uma mudança no sentimento e a criação de uma nova obrigação supõe o surgimento de um novo sentimento Mas é certo que naturalmente não pode mos mudar nossos próprios sentimentos não mais que os movimen tos celestes tampouco podemos por um simples ato de nossa von tade isto é por uma promessa tornar agradável ou desagradável moral ou imoral uma ação que sem esse ato da vontade teria produ zido impressões contrárias ou teria sido dotada de qualidades dife rentes Seria absurdo portanto querer uma nova obrigação isto é um novo sentimento de dor ou prazer ninguém poderia cometer na turalmente tamanho absurdo Portanto uma promessa é naturalmente algo ininteligível e a ela não corresponde nenhum ato mental 7 7 Se a moralidade fosse descoberta pela razão e não pelo sentimento seria ainda mais evidente que as promessas não poderiam produzir nela nenhuma alteração Supostamen te a moralidade consistiria em uma relação Toda nova imposição moral portanto teria de surgir de alguma nova relação dos objetos por conseguinte a vontade não poderia produzir imediatamente nenhuma mudança na moral só poderia ter esse efeito produ zindo uma mudança nos objetos Mas como a obrigação moral de uma promessa é puro efeito da vontade e não corresponde à menor alteração em parte alguma do universo seguese que as promessas não implicam qualquer obrigação natural 556 Livro 3 Parte 2 Seção 5 5 Mas em segundo lugar se houvesse um ato mental corresponden te à promessa ele não poderia produzir naturalmente uma obrigação Isso fica evidente pelo raciocínio anterior Uma promessa cria uma nova obrigação Uma nova obrigação supõe o surgimento de novos sentimentos A vontade nunca cria novos sentimentos Portanto uma promessa jamais poderia gerar naturalmente uma nova obri gação mesmo supondose que a mente pudesse cometer o absurdo de querêla 6 Podese provar essa mesma verdade de forma ainda mais eviden te por meio do raciocínio pelo qual provamos que a justiça em geral é uma virtude artificial Nenhuma ação pode ser exigida de nós como um dever a menos que haja implantada na natureza humana alguma paixão impulsora ou algum motivo capaz de produzir essa ação Ora esse motivo não pode ser o sentido do dever O sentido do dever su põe uma obrigação prévia e se uma ação não é exigida por nenhuma paixão natural ela não pode ser exigida por nenhuma obrigação na tural uma vez que é possível omitila sem que isso revele um defeito ou imperfeição na mente ou no caráter e conseqüentemente sem que haja um vício Ora é evidente que não temos nenhum motivo im pelindonos a cumprir nossas promessas distinto de um senso do de ver Se pensássemos que as promessas não implicam uma obrigação moral jamais sentiríamos uma inclinação a cumprilas Isso não acon tece com as virtudes naturais Mesmo que não tivéssemos obrigação de confortar os sofredores nosso humanitarismo nos levaria a isso e 2 Caso se dissesse que esse ato da vontade sendo de fato um novo objeto produz novas relações e novos deveres eu responderia que isso é puro sofisma e uma pequena dose de precisão e exatidão basta para detectálo Querer uma nova obrigação é querer uma nova relação de objetos portanto se essa nova relação de objetos fosse constituída pela própria volição nós de fato quereríamos a volição o que é claramente absurdo e impossível A vontade aqui não tem um objeto ao qual pudesse tender ao contrário tem de retornar sobre si mesma ao infinito A nova obrigação depende de novas relações As novas relações dependem de uma nova volição A nova volição tem como objeto uma nova obrigação e conseqüentemente novas relações e conseqüentemente uma nova vo lição e essa volição por sua vez tem em vista uma nova obrigação relação e volição infindavelmente Portanto seria impossível querer uma nova obrigação em conseqüên cia disso seria impossível que a vontade alguma vez acompanhasse uma promessa ou que produzisse uma nova obrigação moral 557 Tratado da natureza humana se faltarmos a esse dever essa omissão será imoral por provar que carecemos dos sentimentos humanitários naturais Um pai sabe que é seu dever cuidar de seus filhos mas também tem uma inclinação na tural a fazêlo E se nenhuma criatura humana tivesse essa inclinação ninguém poderia estar sujeito a uma obrigação semelhante Mas como não existe naturalmente uma inclinação ao cumprimento de promes sas que seja distinta de um sentido de sua obrigação seguese que a fidelidade não é uma virtude natural e que as promessas não têm uma força anterior às convenções humanas 7 Se alguém não estiver de acordo com isso terá de fornecer uma prova regular destas duas proposições Que existe um ato mental peculiar vinculado às promessas e que como conseqüência desse ato surge uma inclinação a cumprilas distinta de um sentido do dever Presumo que seja impossível provar qualquer desses dois pontos por isso arriscome a concluir que as promessas são invenções humanas fundadas nas necessidades e nos interesses da sociedade 8 Para descobrir essas necessidades e interesses temos de consi derar as mesmas qualidades da natureza humana que conforme cons tatamos dão origem às leis da sociedade antes mencionadas Como os homens são naturalmente egoístas ou dotados de uma generosi dade apenas limitada não se convencem facilmente a agir no interes se de estranhos a não ser quando têm em vista alguma vantagem re cíproca que não tinham esperanças de conseguir senão por meio dessa ação Ora com freqüência essas ações mútuas não podem ser con cluídas ao mesmo tempo e por isso é necessário que uma das partes se contente em permanecer na incerteza confiando na gratidão da ou tra para lhe devolver o benefício Há porém tanta corrupção entre os homens que em geral essa garantia é muito frágil e como aqui se supõe que o benfeitor prestou um favor tendo em vista seu pró prio interesse isso libera o outro da obrigação e ao mesmo tempo estabelece um exemplo de egoísmo o verdadeiro pai da ingratidão Portanto se seguíssemos o curso natural de nossas paixões e inclina ções realizaríamos poucas ações em benefício dos demais de modo 558 Livro 3 Parte 2 Seção 5 desinteressado porque nossa bondade e afeição são naturalmente muito restritas e realizaríamos igualmente poucas ações desse tipo por interesse porque não podemos confiar na gratidão alheia Assim a troca de bons ofícios entre os homens acabaria de alguma maneira se perdendo e cada qual estaria reduzido à sua própria habilidade e trabalho para promover seu bemestar e subsistência A invenção no direito natural da lei sobre a estabilidade da posse já tornou os ho mens toleráveis uns aos outros a da transferência da propriedade e da posse por consentimento começou a tornálos mutuamente vantajo sos Mas essas leis ainda que rigidamente observadas não são sufi cientes para tornálos tão prestativos uns para os outros quanto se podem tornar por natureza Mesmo que a posse seja estável com fre qüência os homens não podem tirar dela muito proveito enquanto possuírem determinados bens em quantidade maior do que necessi tam ao mesmo tempo que sofrem com a falta de outros A transferên cia da propriedade que é o remédio apropriado para esse inconvenien te não é capaz de remediálo por completo pois só pode ser utilizada no caso de objetos presentes e individuais mas não no caso de objetos ausentes ou gerais Não se pode transferir a propriedade de uma casa particular que fica a vinte léguas de distância porque aqui o consen timento não pode se fazer acompanhar da entrega que é uma circuns tância necessária Tampouco se pode transferir a propriedade de dez alqueires de trigo ou de cinco barris de vinho pela simples expres são do consentimento pois estes são apenas termos gerais sem rela ção direta com qualquer monte de trigo ou barril de vinho em parti cular Além disso o comércio entre os homens não se limita à permuta de bens materiais podendo se estender a serviços e ações que tro camos tendo em vista nosso mútuo interesse e benefício Teu milho está maduro hoje o meu o estará amanhã É vantajoso para nós dois que hoje eu trabalhe contigo e que me ajudes amanhã Mas não sinto afeição por ti e sei que tampouco sentes afeição por mim Por isso não farei por ti nenhum esforço se trabalhasse contigo por mi nha própria conta esperando obter um retorno sei que seria desapon 559 Tratado da natureza humana tado e em vão confiaria em tua gratidão Por isso deixo que traba lhes sozinho tu me tratas do mesmo modo As estações mudam e ambos perdemos nossas colheitas por falta de confiança e certeza mútuas 9 Tudo isso é efeito dos princípios e das paixões naturais e ineren tes à natureza humana e como essas paixões e esses princípios são inalteráveis podese pensar que nossa conduta que depende deles também deva sêlo e que é inútil que moralistas ou políticos se metam em nossa vida ou tentem mudar o curso usual de nossas ações com vistas ao interesse público De fato se o sucesso de seus propósitos dependesse de seu sucesso em corrigir o egoísmo e a ingratidão dos homens jamais fariam nenhum progresso a não ser com o auxílio da onipotência divina a única coisa capaz de remodelar a mente hu mana e de transformar seu caráter em pontos tão fundamentais O máximo que podem pretender é redirecionar essas paixões naturais ensinandonos que satisfaremos melhor nossos apetites de maneira oblíqua e artificial e não por meio de seu movimento impulsivo e impetuoso Assim aprendo a prestar um serviço a outra pessoa mes mo que não sinta uma afeição real por ela pois prevejo que devolverá meu favor na expectativa de obter outro do mesmo tipo e também para manter a mesma reciprocidade de bons préstimos comigo ou com outros De acordo com isso após eu lhe ter prestado um serviço e estando ela já de posse da vantagem resultante de minha ação essa pessoa é levada a cumprir sua parte por prever as conseqüências de sua recusa 10 Mas embora esse comércio humano guiado pelo interesse pró prio comece a ter lugar e a predominar na sociedade ele não abole in teiramente o intercâmbio mais generoso e nobre da amizade e dos bons préstimos Ainda posso prestar serviços a pessoas que amo e com quem estou mais particularmente familiarizado sem nenhuma perspectiva de me beneficiar com isso e elas podem me devolver esse favor da mesma maneira sem ter em vista senão me recompensar por meus serviços passados Portanto para distinguir esses dois tipos 560 Livro 3 Parte 2 Seção 5 diferentes de intercâmbio o devido ao interesse e o desinteressado inventouse para o primeiro uma certa fórmula verbal pela qual nos comprometemos a realizar uma ação Essa fórmula verbal constitui o que chamamos de promessa que é a sanção do intercâmbio entre os homens quando realizado por interesse Quando alguém diz que pro mete alguma coisa exprime de fato a resolução de realizála ao mesmo tempo ao utilizar essa fórmula verbal submetese à penalidade de nunca mais receber a confiança alheia se não a cumprir Uma resolu ção é o ato mental natural expresso pela promessa mas se não hou vesse aqui mais que uma resolução as promessas declarariam ape nas nossos motivos prévios sem criar um novo motivo ou obrigação São as convenções humanas que criam um novo motivo uma vez que a experiência nos ensinou que os assuntos humanos seriam conduzi dos de maneira muito mais vantajosa para todos nós se fossem insti tuídos certos símbolos ou signos pelos quais pudéssemos dar garantia uns aos outros de nossa conduta em qualquer situação particular Após a instituição desses signos aquele que os utiliza fica imediatamente obrigado por seu próprio interesse a cumprir seus compromissos e caso se recuse a fazer o que prometeu nunca mais deve esperar rece ber a confiança alheia 1 1 Não se deve considerar que o conhecimento necessário para tor nar os homens sensíveis a esse interesse pela instituição e pelo cumpri mento de promessas seja superior à capacidade da natureza humana ainda que selvagem e inculta Um mínimo de prática do mundo bas ta para percebermos todas essas conseqüências e vantagens A mais curta experiência da vida em sociedade as torna visíveis a qualquer mortal e quando cada indivíduo percebe que todos os seus companhei ros têm o mesmo sentido de interesse cumpre imediatamente sua parte do contrato seguro de que os outros não deixarão de cumprir a sua Todos em concerto entram em um programa de ações calculado para o benefício comum e concordam em honrar sua palavra para for mar esse concerto ou convenção basta que tenham o sentido de seu interesse no leal cumprimento de seus compromissos e expressem 561 Tratado da natureza humana esse sentido a outros membros da sociedade Isso imediatamente faz que esse interesse atue sobre eles e o interesse é a primeira obriga ção ao cumprimento de promessas 12 Em seguida um sentimento de moralidade concorre com o inte resse tornandose uma nova obrigação para a humanidade Esse sen timento da moralidade que acompanha o cumprimento de promes sas surge dos mesmos princípios que o sentimento que acompanha a abstinência da propriedade alheia O interesse público a educação e os arti fícios dos políticos têm o mesmo efeito nos dois casos As dificuldades que se nos apresentam quando supomos que uma obrigação moral acompanharia as promessas nós as superamos ou simplesmente eludimos Por exemplo não se costuma considerar obrigatório expres sar uma resolução e não é fácil conceber como o emprego de uma certa fórmula verbal poderia ser capaz de produzir uma diferença im portante Por isso fantasiamos aqui um novo ato mental que deno minamos querer uma obrigação e supomos que é dele que a moralidade depende Já provamos porém que esse ato não existe e que conse qüentemente as promessas não impõem uma obrigação natural 13 Para confirmar isso podemos acrescentar algumas outras refle xões a respeito daquela vontade que se supõe fazer parte de uma pro messa causando sua obrigação Evidentemente nunca se supõe que a vontade sozinha cause a obrigação para impor um vínculo a alguém ela deve antes ser expressa em palavras ou signos Uma vez introduzida como um instrumento da vontade entretanto a expressão logo se torna a parte principal da promessa quando um homem empenha sua pa lavra seu compromisso será sempre o mesmo ainda que secretamente dê uma direção diferente a sua intenção e se abstenha tanto de uma resolução como de querer uma obrigação Mas embora a expressão em muitos casos constitua a totalidade da promessa nem sempre é assim se alguém utiliza uma expressão cujo sentido não compreende e sem intenção de se comprometer certamente não está comprometi do por ela E mesmo que saiba o que significa se a utilizar apenas por brincadeira dando sinais evidentes de que não tem a séria intenção 562 Livro 3 Parte 2 Seção 5 de se comprometer tampouco estará obrigado a cumprir sua pala vra Para que haja obrigação é necessário que as palavras sejam a perfeita expressão da vontade sem sinais contrários E mesmo isso não devemos levar ao ponto de imaginar que uma pessoa que graças a nossa perspicácia e baseandonos em certos sinais presumimos ter a intenção de nos enganar não está comprometida por sua pa lavra ou promessa verbal se aceitamos essa promessa devemos li mitar essa conclusão aos casos em que os sinais são de um tipo di ferente daqueles que mostram a intenção de enganar Todas essas contradições se explicarão facilmente se compreendermos a obri gação das promessas simplesmente como uma invenção humana visando à conveniência da sociedade mas jamais se explicarão se essa obrigação for tida como algo real e natural decorrente de uma ação da mente ou do corpo 14 Observarei ainda que uma vez que cada nova promessa impõe uma nova obrigação moral à pessoa que promete se essa nova obri gação surgisse de sua vontade teríamos aqui uma das mais misterio sas e incompreensíveis operações que se possa imaginar comparável inclusive à transubstanciação ou ao sacramento da ordem 8 nos quais uma certa fórmula verbal juntamente com uma certa intenção muda in teiramente a natureza de um objeto externo e até mesmo de uma cria tura humana Entretanto embora haja uma tal semelhança entre es ses mistérios é bastante evidente que eles diferem amplamente sob outros aspectos e essa diferença pode ser vista como uma forte pro va da diferença de suas origens Como a obrigatoriedade das promes sas é uma invenção no interesse da sociedade toma tantas formas quantas esse interesse requer chegando a cair em contradições para não perder de vista seu objeto Quanto a essas outras doutrinas mons truosas como são meras invenções eclesiásticas e não têm em vista o interesse público têm seu progresso menos perturbado por novos 8 Quero dizer enquanto se supõe que a ordem produz o caráter indelével Em outros aspec tos tratase apenas de uma qualificação legal 563 Tratado da natureza humana obstáculos e devese reconhecer que após seu primeiro absurdo se guem mais diretamente a corrente da razão e do bom senso Os teó logos perceberam claramente que a fórmula verbal é apenas externa um mero som e por isso precisa de uma intenção para ter eficácia e uma vez que se considere essa intenção como uma circunstância ne cessária sua ausência deve impedir a produção do efeito seja ela con fessa ou secreta seja a intenção sincera ou falsa Desse modo determinaram de maneira geral que a intenção do sacerdote faz o sa cramento e quando ele secretamente retira sua intenção tornase altamente culpado de um crime interior além de destruir o batismo a comunhão ou a ordem As terríveis conseqüências dessa doutrina não foram capazes de impedir seu estabelecimento ao passo que o inconveniente de uma doutrina similar a respeito das promessas im pediu que esta doutrina se estabelecesse Os homens sempre se pre ocupam mais com sua vida presente que com a futura e tendem a considerar o menor mal que diga respeito à primeira como mais im portante que o maior mal concernente à segunda 15 A mesma conclusão a respeito da origem das promessas pode ser extraída da força que supostamente invalida qualquer contrato e livranos de sua obrigação Esse princípio prova que as promessas não implicam uma obrigação natural sendo meros dispositivos artificiais que visam à conveniência e ao favorecimento da sociedade Se considerarmos corretamente a questão veremos que a força não é essencialmente diferente de nenhum outro motivo de esperança ou de medo que possa nos levar a empenhar nossa palavra submetendo nos a uma obrigação Um homem gravemente ferido que promete a um cirurgião uma grande soma de dinheiro para que o cure certa mente estaria obrigado a cumprir sua promessa entretanto esse caso não seria assim tão diferente do daquela pessoa que promete uma soma de dinheiro a um ladrão a ponto de produzir uma diferença tão grande em nossos sentimentos morais a menos que esses sentimentos sejam construídos inteiramente com base no interesse público e na conveniência 564 Livro 3 Parte 2 Seção 6 Seção 6 Algumas outras reflexões sobre a justiça e a injustiça 1 Examinamos assim as três leis fundamentais do direito natu ral a da estabilidade da posse a de sua transferência por consentimento e a do cumprimento de promessas A paz e a segurança da sociedade huma na dependem inteiramente da estrita observância dessas três leis não há nenhuma possibilidade de se estabelecerem boas relações entre os homens quando elas são desprezadas A sociedade é absolutamente necessária ao bemestar dos homens e essas leis são igualmente ne cessárias à sustentação da sociedade Sejam quais forem as restrições que elas possam impor às paixões humanas na realidade são frutos dessas paixões sendo apenas um meio mais artificial e refinado de satisfazêlas Nada é mais vigilante e inventivo que nossas paixões e nada é mais evidente que a convenção para observar essas regras A natureza portanto confiou essa tarefa inteiramente à conduta huma na não pôs na mente nenhum princípio original peculiar que nos de terminasse a realizar um conjunto de ações já que os outros princí pios de nossa estrutura e constituição são suficientes para nos guiar até elas Para nos convencermos mais completamente dessa verdade podemos nos deter por um momento neste ponto faremos uma re visão dos raciocínios precedentes e partindo deles extrairemos no vos argumentos para provar que essas leis embora necessárias são inteiramente artificiais produtos da invenção humana e que conse qüentemente a justiça é uma virtude artificial e não natural 2 1 O primeiro argumento que utilizarei se baseia na definição co mum de justiça Costumase definir a justiça como a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que lhe é devido Nessa definição estáse supondo a existência do direito e da propriedade como coisas inde pendentes da justiça e anteriores a ela e que essas coisas existiriam mesmo que os homens jamais tivessem sonhado em praticar tal virtude Já observei de maneira superficial a falácia dessa opinião agora irei 565 Tratado da natureza humana manifestar de um modo um pouco mais distinto o que penso sobre o assunto 3 Começarei observando que essa qualidade que denominamos propriedade é como muitas qualidades imaginárias da filosofia peri patética desaparecendo diante de um exame mais minucioso quan do considerada separada de nossos sentimentos morais Evidentemen te a propriedade não consiste em nenhuma das qualidades sensíveis do objeto pois estas podem continuar invariavelmente iguais enquan to a propriedade muda A propriedade portanto tem de consistir em alguma relação do objeto Mas não em sua relação com outros obje tos externos e inanimados pois estes também podem continuar in variavelmente iguais enquanto muda a propriedade Essa qualidade portanto consiste nas relações dos objetos com seres inteligentes e racionais Não é no entanto a relação externa e corpórea que forma a essência da propriedade pois essa relação pode existir igualmente entre objetos inanimados ou com respeito aos animais embora nes tes casos não forme uma propriedade Portanto a propriedade con siste em alguma relação interna isto é em alguma influência que as relações externas dos objetos exercem sobre a mente e as ações As sim não se imagina que a relação externa que chamamos de ocupação ou primeira posse seja por si mesma a propriedade do objeto mas apenas que produz sua propriedade Ora é evidente que essa relação externa não produz nada nos objetos externos apenas influencia a mente ao despertar em nós o sentido do dever de nos abster desse objeto e de restituílo ao primeiro possuidor Essas ações são propria mente o que chamamos justiça conseqüentemente a natureza da pro priedade depende dessa virtude e não a virtude da propriedade 4 Se alguém afirmasse portanto que a justiça é uma virtude natural e a injustiça um vício natural deveria afirmar também que abstrain dose das noções de propriedade direito e obrigação uma certa conduta e uma certa série de ações em certas relações externas de objetos apresentam naturalmente uma beleza ou deformidade morais e cau sam um prazer ou um desconforto original Assim restituir os bens 566 Livro 3 Parte 2 Seção 6 de uma pessoa seria considerado um ato de virtude não porque a natureza teria vinculado um certo sentimento de prazer a uma tal con duta em relação à propriedade alheia mas sim porque teria vincula do esse sentimento a uma tal conduta em relação àqueles objetos externos dos quais outras pessoas tiveram a primeira posse ou uma posse prolongada ou que outras pessoas receberam por consenti mento daqueles que tiveram sua primeira posse ou uma posse prolon gada Se a natureza não nos tivesse proporcionado esse sentimento não haveria naturalmente ou anteriormente às convenções humanas nada semelhante à propriedade Ora embora este exame conciso e preciso do presente assunto pareça ter deixado suficientemente evi dente que a natureza não vinculou nenhum prazer ou sentimento de aprovação a essa conduta acrescentarei alguns outros argumentos para confirmar minha opinião de modo a deixar o menor espaço pos sível para dúvidas 5 Em primeiro lugar se a natureza nos tivesse proporcionado um prazer desse gênero ele seria tão evidente e discernível nesta como em todas as outras ocasiões e não teríamos encontrado nenhuma difi culdade para perceber que a consideração dessas ações em uma tal situação proporciona um certo prazer e um sentimento de aprova ção Não teríamos sido obrigados a recorrer às noções de proprieda de para definir a justiça e ao mesmo tempo utilizar as noções de justi ça para definir a propriedade Esse método falacioso de raciocinar é uma clara prova de que este assunto contém obscuridades e dificul dades que não somos capazes de superar e das quais tentamos esca par por meio desse artifício 6 Em segundo lugar as regras que determinam a propriedade o di reito e a obrigação não levam nelas mesmas nenhuma marca de uma origem natural mas muitas marcas de artifício e invenção são nu merosas demais para terem procedido da natureza podem ser alte radas pelas leis humanas e todas mostram uma tendência direta e evidente para o bem público e para a manutenção da sociedade Esta última circunstância é notável por duas razões Primeiro porque ainda 567 Tratado da natureza humana que a causa do estabelecimento dessas leis tivesse sido uma conside ração pelo bem público sendo este bem público sua tendência natu ral elas ainda seriam artificiais porque concebidas e dirigidas para um certo fim Segundo porque se os homens fossem dotados de uma consideração assim tão forte pelo bem público jamais teriase obri gado por meio dessas regras desse modo as leis da justiça surgem de princípios naturais de um modo ainda mais oblíquo e artificial Sua verdadeira origem é o amor por si mesmo e como o amor que uma pessoa tem por si mesma é naturalmente contrário ao das outras pes soas essas diversas paixões interessadas são obrigadas a se ajustar umas às outras de maneira a concorrer para algum sistema de condu ta e comportamento Esse sistema portanto que compreende o in teresse de cada indivíduo é certamente vantajoso para o público ainda que não tenha sido esse o propósito de seus inventores 7 2 Em segundo lugar podemos observar que vícios e virtudes de todos os tipos mudamse insensivelmente uns nos outros podendo se aproximar por graus tão imperceptíveis que se torna difícil senão absolutamente impossível determinar quando o vício termina e co meça a virtude ou viceversa dessa observação podemos extrair um novo argumento em favor do princípio precedente Pois seja qual for o caso dos vícios e virtudes é certo que os direitos as obrigações e a propriedade não admitem essa gradação insensível uma pessoa ou tem a propriedade plena e completa de algo ou não tem essa proprie dade ou é inteiramente obrigada a realizar uma ação ou não tem qualquer obrigação Por mais que o direito civil possa falar de um do mínio pleno ou parcial é fácil observar que se trata de uma ficção sem fundamento na razão que jamais poderia estar presente em nossas noções de justiça e eqüidade natural Um homem que aluga um ca valo mesmo que só por um dia tem um direito tão pleno de utilizá lo durante esse tempo quanto aquele que chamamos de seu proprie tário o tem durante qualquer outro dia e é evidente que embora esse uso possa ser limitado em duração ou em grau o próprio direito não 568 Livro 3 Parte 2 Seção 6 admite gradação sendo absoluto e íntegro em toda sua extensão As sim podemos observar que esse direito nasce e desaparece de um momento para outro que uma pessoa adquire inteiramente a proprie dade de um objeto por ocupação ou pelo consentimento do proprietá rio e a perde por seu próprio consentimento sem nada daquela gra dação insensível que se pode notar em outras qualidades e relações Portanto como é isso que ocorre com a propriedade os direitos e as obrigações eu vos pergunto o que ocorre com a justiça e a injusti ça Seja qual for vossa resposta caireis em dificuldades insuperáveis Se responderdes que a justiça e a injustiça admitem graus transfor mandose insensivelmente uma na outra estareis contradizendo ex pressamente a posição anterior de que a obrigação e a propriedade não são suscetíveis de tal gradação A obrigação e a propriedade de pendem inteiramente da justiça e da injustiça acompanhandoas em todas as suas variações Se a justiça é plena a propriedade também é plena se a justiça é imperfeita a propriedade também tem que ser im perfeita E viceversa se a propriedade não admite tais variações es tas também devem ser incompatíveis com a justiça Se concordardes portanto com esta última proposição e afirmardes que a justiça e a injustiça não são passíveis de graus estareis de fato afirmando que elas não são naturalmente nem um vício nem uma virtude visto que vício e virtude bem e mal morais e aliás todas as qualidades naturais mudamse insensivelmente umas nas outras sendo em muitos ca sos indistinguíveis 8 Talvez valha a pena observar neste ponto que embora o racio cínio abstrato e as máximas gerais da filosofia e do direito estabeleçam a posição de que a propriedade o direito e a obrigação não admitem graus em nosso modo comum e descuidado de pensar temos grande di ficuldade para manter essa opinião e secretamente abraçamos o princí pio contrário Um objeto tem de ser possuído por uma pessoa ou por outra Uma ação tem de ou ser realizada ou não A necessidade de se escolher um lado desses dilemas e a freqüente impossibilidade de se encontrar o justo meio entre os dois nos obriga quando refleti 569 Tratado da natureza humana mos sobre o assunto a reconhecer que toda propriedade e toda obri gação é plena Mas por outro lado quando consideramos a origem da propriedade e da obrigação e constatamos que dependem da uti lidade pública e às vezes das propensões da imaginação que quase nunca se inclinam inteiramente para um só lado vemonos natural mente propensos a imaginar que essas relações morais admitem uma gradação insensível É assim que nos casos de arbitragens em que as duas partes concordam em dar aos árbitros total poder de decisão é comum estes descobrirem tal eqüidade e justiça de ambos os lados que são levados a tirar uma média e a dividir a diferença entre os dois Os juízes que não têm essa liberdade sendo ao contrário obrigados a dar uma sentença decisiva a favor de apenas uma das partes fre qüentemente sentemse confusos sem saber como determinar a ques tão tendo então de proceder com base nas mais frívolas razões desse mundo Os meiosdireitos e as meiasobrigações que parecem tão naturais na vida corrente são completos absurdos para seus tribu nais por essa razão tais juízes são freqüentemente obrigados a con siderar meiosargumentos como argumentos completos para deci dir a questão de uma maneira ou de outra 9 3 O terceiro argumento dessa espécie que utilizarei pode ser ex plicado da seguinte maneira Se considerarmos o curso ordinário das ações humanas veremos que a mente não se restringe mediante re gras gerais e universais ao contrário age na maioria dos casos tal como a determinam seus motivos e inclinações presentes Como cada ação é um acontecimento particular e individual tem de provir de princí pios particulares e de nossa situação imediata quanto a nós mesmos e quanto ao resto do universo Se em alguns casos estendemos nos sos motivos para além dessas mesmas circunstâncias que os geraram e formamos algo como regras gerais para nossa conduta é fácil ob servar que essas regras não são totalmente inflexíveis admitindo ao contrário muitas exceções Portanto como é esse o curso ordinário das ações humanas podemos concluir que as leis da justiça sendo 570 Livro 3 Parte 2 Seção 6 universais e absolutamente inflexíveis nunca poderiam ser deriva das da natureza nem ser fruto imediato de um motivo ou de uma inclinação natural Nenhuma ação pode ser moralmente boa ou má a menos que haja alguma paixão ou motivo natural impelindonos em sua direção ou fazendo que nos abstenhamos de realizála por isso é evidente que a moralidade tem de ser suscetível exatamente das mesmas variações que são naturais à paixão Duas pessoas bri gam por uma propriedade uma é rica estúpida e solteira a outra é pobre sensata e tem uma família numerosa A primeira é minha ini miga a segunda minha amiga Quer eu seja movido neste caso pela perspectiva do interesse público ou privado pela amizade ou inimiza de devo ser levado a fazer o máximo para dar a propriedade à segun da Nenhum respeito pelo direito e pela propriedade das pessoas se ria capaz de me restringir se eu fosse impulsionado unicamente por motivos naturais e não tivesse formado qualquer combinação ou con venção com os outros homens Porque se toda propriedade depende da moralidade e se toda moralidade depende do curso ordinário de nossas paixões e ações as quais por sua vez são dirigidas unicamente por motivos particulares é evidente que essa conduta parcial deve ser adequada à mais rígida moralidade e jamais poderia ser uma viola ção de propriedade Se os homens portanto tomassem a liberdade de agir com respeito às leis da sociedade como agem relativamente a qualquer outra questão iriam se conduzir na maioria dos casos por meio de juízos particulares levando em consideração os caracteres e as circunstâncias em que se encontram as pessoas bem como a na tureza geral da questão É fácil observar no entanto que isso produ ziria uma confusão infinita na sociedade humana e que a avidez e a parcialidade dos homens rapidamente trariam a desordem para o mun do se não fossem restringidas por certos princípios gerais e inflexí veis Portanto foi tendo em vista esse inconveniente que os homens estabeleceram esses princípios e concordaram em se autorestringir por meio de regras gerais que não se deixam influenciar nem pelo des peito nem pelo favor e não podem ser alteradas por considerações 571 Tratado da natureza humana particulares de interesse privado ou público Essas regras portanto são inventadas artificialmente com um certo propósito sendo con trárias aos princípios comuns da natureza humana que se adaptam às circunstâncias e não possuem um método estabelecido e invariá vel de operação 1 O Não vejo como poderia estar enganado a esse respeito Percebo com clareza que quando um homem impõe a si mesmo regras gerais infle xíveis para regular sua conduta perante os demais considera certos objetos como suas propriedades que supõe serem sagradas e invio láveis Mas não há proposição mais evidente que aquela que diz que a propriedade é completamente ininteligível sem a prévia suposição da justiça e da injustiça e que essas qualidades morais são igualmente ininteligíveis a menos que tenhamos motivos independentes da moralidade impelindonos às ações justas e desviandonos das injus tas Portanto sejam quais forem esses motivos eles têm de se adaptar às circunstâncias e têm de admitir todas as variações que os assuntos humanos em suas revoluções incessantes podem sofrer São portan to fundamentos muito pouco apropriados para regras tão inflexíveis e rígidas quanto as leis do direito natural é evidente portanto que es sas leis só podem ser derivadas das convenções humanas estabelecidas quando os homens perceberam as desordens que resultam quando seguem seus princípios naturais e variáveis 1 1 Em suma devemos considerar que essa distinção entre a justiça e a injustiça tem dois fundamentos diferentes o do interesse próprio quan do os homens observam que é impossível viver em sociedade sem se restringir por meio de certas regras e o da moralidade quando já se ob servou que esse interesse próprio é comum a toda a humanidade e os homens passam a ter prazer em contemplar ações que favorecem a paz da sociedade sentindo um desconforto diante daquelas que são con trárias a ela É a convenção voluntária e o artifício dos homens que faz que o primeiro interesse ocorra e portanto essas leis da justiça devem sob esse aspecto ser consideradas artificiais Uma vez estabelecido e 572 Livro 3 Parte 2 Seção 7 reconhecido esse interesse o sentido da moralidade diante da obser vância dessas regras seguese naturalmente por si só embora certa mente ele possa se ampliar por um novo artifício os ensinamentos públicos dos políticos e a educação privada fornecida pelos pais contri buem para nos proporcionar um sentido de honra e dever na regulação estrita de nossas ações concernentes à propriedade alheia Seção 7 Da origem do governo 1 Nada é mais certo que o fato de que os homens são em grande medida governados pelo interesse e mesmo quando estendem suas preocupações para além de si mesmos não as levam muito longe na vida corrente não é muito comum olhar para além dos amigos mais próximos e dos conhecidos É igualmente certo que o meio mais efi caz que os homens têm de levar em conta seu próprio interesse é pela observância inflexível e universal das regras da justiça única coisa que lhes permite preservar a sociedade impedindoos de cair naquela condição miserável e selvagem comumente representada como o es tado de natureza E como esse interesse que todo homem tem pela pre servação da sociedade e pela observância das regras da justiça é muito grande tornase palpável e evidente até mesmo para os membros mais rudes e incultos da raça humana é quase impossível que alguém que tenha tido experiência da sociedade se engane quanto a isso Portanto uma vez que os homens são tão sinceramente apegados a seu inte resse uma vez que seu interesse está tão ligado à observância da jus tiça e é tão certo e explícito podese perguntar como é possível o surgimento de qualquer desordem no seio da sociedade e que prin cípio haverá na natureza humana que seja tão poderoso a ponto de sub jugar uma paixão tão forte ou que seja tão violento que acabe obs curecendo um conhecimento tão claro 2 Quando tratamos das paixões observamos que os homens são poderosamente governados pela imaginação e proporcionam seus 573 Tratado da natureza humana afetos mais à perspectiva pela qual um objeto lhes aparece do que a seu valor real e intrínseco Aquilo que lhes toca com uma idéia forte e vívida comumente prevalece sobre o que é obscuro sendo preciso ter um valor muito superior para compensar essa desvantagem Ora como todo objeto que nos é contíguo no tempo ou no espaço toca nos com uma idéia desse tipo ele exerce um efeito proporcional sobre a vontade e as paixões e comumente atua com mais força que qual quer objeto mais distante e obscuro Mesmo que estejamos plena mente convencidos de que este último objeto supera o primeiro não somos capazes de regular nossas ações por esse juízo cedemos às so licitações de nossas paixões que sempre intercedem em favor de tudo que é próximo e contíguo 3 É por essa razão que os homens com tanta freqüência agem em contradição com seu reconhecido interesse em particular é por essa razão que preferem qualquer vantagem trivial mas presente à manu tenção da ordem na sociedade que depende em tão grande medida da observância da justiça As conseqüências de cada violação da eqüi dade parecem muito remotas não sendo capazes de contrabalançar as vantagens imediatas que se podem extrair dessa violação A dis tância entretanto não as torna menos reais e como todos os homens estão em algum grau sujeitos à mesma fraqueza acontece necessa riamente que as violações da eqüidade acabam se tornando muito fre qüentes na sociedade e o relacionamento entre os homens desse modo se torna mais perigoso e incerto Tu tens como eu a mesma propensão para o que está contíguo em detrimento do que está distante Por tanto és naturalmente levado a cometer atos de injustiça tanto quanto eu Teu exemplo me impele nessa mesma direção por imitação e ao mesmo tempo me dá mais uma razão para violar a eqüidade ao me mostrar que eu seria um tolo se me ativesse à minha integridade se fosse o único a impor a si mesmo severas restrições em meio à licen ciosidade de todos os demais Ver nossa nota à p375 NT 574 Livro 3 Parte 2 Seção 7 4 Essa qualidade da natureza humana portanto não apenas é muito perigosa para a sociedade mas também parece vista de maneira apres sada impossível de remediar O remédio só pode vir do consentimento dos homens e se os homens por si mesmos são incapazes de pre ferir o distante ao contíguo nunca consentirão em nada que os obri gue a uma tal escolha e que contradiga de maneira tão sensível seus princípios e propensões naturais Aquele que escolhe os meios es colhe também os fins e se nos é impossível preferir o distante énos igualmente impossível nos submeter a qualquer necessidade que nos obrigue a um tal modo de agir 5 O que se observa aqui porém é que essa deficiência da natureza humana se torna seu próprio antídoto e que a providência que to mamos contra nossa negligência para com os objetos remotos proce de exatamente de nossa inclinação natural a negligenciálos Quan do consideramos os objetos à distância suas pequenas distinções desaparecem e sempre damos preferência àquele que é em si mes mo preferível sem considerar sua situação e as circunstâncias que o cercam Isso gera o que em um sentido impróprio chamamos razão que é um princípio freqüentemente contraditório em relação às pro pensões que se manifestam quando nos aproximamos do objeto Ao refletir sobre uma ação que devo realizar daqui a doze meses sempre prefiro o bem maior sem me importar se então ele será mais próxi mo ou mais distante uma diferença quanto a esse ponto não produz nenhuma diferença em minhas intenções e resoluções presentes Minha distância da determinação final faz todas essas minúsculas di ferenças desaparecerem e não sou afetado senão pelas qualidades mais gerais e discerníveis do bem e do mal Mas conforme voume aproximando dessa determinação as circunstâncias que de início des prezei começam a aparecer influenciando minha conduta e meus afe tos Nasce uma nova inclinação para o bem presente e passo a ter dificuldade em continuar aderindo inflexivelmente a meu primeiro propósito e resolução Posso lamentar muito essa fraqueza natural e esforçarme de todas as maneiras para me libertar dela Posso re 575 Tratado da natureza humana correr ao estudo e à reflexão interior ao conselho de amigos à medi tação freqüente e a repetidas resoluções Ao perceber porém quão ineficaz é tudo isso abraço com prazer qualquer outro expediente que me permita impor a mim mesmo uma restrição protegendome des sa fraqueza 6 A única dificuldade portanto é descobrir esse expediente por meio do qual os homens curam sua fraqueza natural submetendo se à necessidade de observar as leis da justiça e da eqüidade não obstante sua violenta propensão a preferir o que é contíguo ao que é remoto É evidente que esse remédio nunca poderia ser eficaz sem corrigir essa propensão e como é impossível mudar ou corrigir algo importante em nossa natureza o máximo que podemos fazer é trans formar nossa situação e as circunstâncias que nos envolvem tornan do a observância das leis da justiça nosso interesse mais próximo e sua violação nosso interesse mais remoto Mas como isso é imprati cável com respeito a toda a humanidade só pode funcionar relativa mente a umas poucas pessoas em quem criamos um interesse ime diato pela execução da justiça São essas pessoas que chamamos de magistrados civis reis e seus ministros nossos governantes e diri gentes que por serem indiferentes à maior parte da sociedade não têm nenhum interesse ou têm apenas um remoto interesse em qual quer ato de injustiça e que estando satisfeitos com sua condição pre sente e com seu papel na sociedade têm um interesse imediato em cada cumprimento da justiça tão necessária para a manutenção da sociedade Eis portanto a origem do governo e da obediência civil Os homens não são capazes de curar radicalmente em si mesmos ou nos outros a estreiteza de alma que os faz preferir o presente ao remoto Não podem mudar suas naturezas Tudo que podem fazer é mudar sua situação tornando a observância da justiça o interesse imediato de algumas pessoas particulares e sua violação seu interesse mais remoto Essas pessoas portanto são levadas não apenas a observar essas regras em sua própria conduta mas também a compelir os outros a observar uma regularidade semelhante e a reforçar os pre 576 Livro 3 Parte 2 Seção 7 ceitas da eqüidade em toda a sociedade E caso seja necessário po dem também fazer que outras pessoas se interessem mais imediata mente pela execução da justiça criando um certo número de funcio nários civis e militares para auxiliálos em seu governo 7 Mas essa execução da justiça embora seja a principal vantagem do governo não é a única Assim como a violência da paixão impede que os homens vejam distintamente o interesse que têm em um com portamento justo para com os demais impedeos também de ver a própria justiça dandolhes uma notável parcialidade em favor de si próprios Esse inconveniente é corrigido da mesma maneira que o anterior As mesmas pessoas que executam as leis da justiça também decidirão todas as controvérsias a seu respeito e sendo indiferentes à maior parte da sociedade suas decisões serão mais justas que aquelas que cada qual tomaria em seu próprio caso 8 Por meio dessas duas vantagens que se encontram na execução e na decisão da justiça os homens adquirem segurança contra a fraque za e as paixões dos demais e também contra as suas próprias e sob a proteção de seus governantes começam a saborear confortavelmente a parte doce da sociedade e da assistência mútua Mas o governo vai mais longe em sua influência benéfica não contente em proteger os homens nessas convenções que eles próprios fazem em vista de seu interesse mútuo freqüentemente os obriga a estabelecer tais conven ções e os força a buscar seu próprio benefício cooperando para al gum fim ou propósito comum Nenhuma qualidade da natureza hu mana causa tantos erros fatais em nossa conduta quanto a que nos leva a preferir o que é presente ao que é distante e remoto e nos faz desejar os objetos mais de acordo com sua situação do que com seu valor intrínseco Dois vizinhos podem concordar em drenar um pra do que possuem em comum porque é fácil para cada um saber o que o outro pensa e cada um deve perceber que a consequência imediata da falha na execução de sua parte é o abandono de todo o projeto Mas é muito difícil e na verdade até impossível que mil pessoas se ponham de acordo em uma ação desse tipo pois é difícil conceberem juntas 577 Tratado da natureza humana um plano tão complicado e ainda mais difícil executálo quando ca da uma busca um pretexto para se livrar do trabalho e dos custos e gostaria de jogar toda a carga sobre as outras A sociedade política remedeia facilmente esses dois inconvenientes Os magistrados en contram um interesse imediato em defender o interesse de qualquer parte considerável de seus súditos Não precisam consultar ninguém além de si mesmos para formar um plano que o promova E como o fracasso na execução de uma parte está conectado embora não imedia tamente com o de todo o conjunto eles impedem esse fracasso por que não vêem nenhum interesse nele seja imediato seja remoto As sim por todo canto constroemse pontes abremse portos erguemse muralhas fazemse canais equipamse esquadras e disciplinamse exércitos graças aos cuidados do governo que embora composto por homens sujeitos a todas as fraquezas humanas tornase por meio de uma das mais refinadas e sutis invenções imagináveis uma com posição em certa medida isenta de todas essas fraquezas Seção 8 Da fonte da obediência civil 1 Embora o governo seja uma invenção muito vantajosa e mesmo em algumas circunstâncias absolutamente necessária para a huma nidade ele não é necessário em todas as circunstâncias não é impos sível preservar a sociedade durante algum tempo sem recorrer a essa invenção É verdade que os homens mostramse sempre muito incli nados a preferir o interesse presente ao distante e remoto não lhes é fácil resistir à tentação de uma vantagem da qual podem gozar ime diatamente pela apreensão de um mal que ainda está longe Mas essa fraqueza é menos manifesta quando os bens e os prazeres da vida são poucos e de pouco valor como sempre ocorre na infância da socie dade Um índio não se sente muito tentado a se apossar da cabana de outro ou a roubar seu arco porque já possui esses mesmos benefícios quanto a qualquer riqueza superior que possa advir a um deles na caça ou na pesca será apenas casual e temporária e não terá uma tendên 578 Livro 3 Parte 2 Seção 8 eia muito grande a perturbar a sociedade Estou tão longe de concor dar com certos filósofos que dizem que os homens são inteiramente incapazes de viver em uma sociedade sem governo que afirmo que os primeiros rudimentos do governo surgem de disputas entre ho mens não da mesma sociedade mas de sociedades diferentes Um grau menor de riqueza que o necessário para produzir o primeiro efeito bastará para produzir o segundo A única coisa que os homens temem da guerra e da violência pública é a resistência que encontram e nes te caso como a partilham com todos da mesma sociedade essa re sistência parece menos terrível e além disso porque vem de pessoas estranhas parece ter conseqüências menos nocivas que quando cada um está exposto sozinho a um outro cujo relacionamento lhe é van tajoso e sem cuja companhia fica impossível sobreviver Ora a guer ra externa quando se abate sobre uma sociedade sem governo pro duz necessariamente uma guerra civil Se introduzirmos uma quantidade considerável de bens entre os homens eles começarão ins tantaneamente a brigar cada qual tentando se apossar daquilo que lhe agrada sem se importar com as conseqüências Em uma guerra externa o que está em jogo é o mais importante de todos os bens a vida e a integridade física e como todos evitam as posições perigo sas apossamse das melhores armas usam como desculpa os feri mentos mais leves as regras da sociedade que podem ter sido muito bem observadas quando havia tranqüilidade não têm mais lugar agora que os homens passam por tamanha comoção 2 Verificamos tal fato nas tribos americanas onde os homens vivem em mútua harmonia e amizade sem que haja um governo estabele cido e nunca se submetem a nenhum de seus companheiros exceto em tempos de guerra quando seu chefe goza de leve autoridade a qual perdem quando retornam do campo de batalha e restabelecem a paz com as tribos vizinhas Essa autoridade entretanto é suficiente para lhes mostrar as vantagens do governo e ensinalhes a recorrer a ele quan do sua riqueza e seus bens obtidos seja por pilhagem em guerras seja pelo comércio ou por qualquer invenção fortuita tornamse tão 579 Tratado da natureza humana consideráveis a ponto de fazêlos esquecer nas situações de emer gência o interesse que têm na preservação da paz e da justiça Sendo assim podemos dar uma razão plausível entre outras para explicar por que todos os governos são inicialmente monárquicos sem ne nhuma mistura ou variedade e por que as repúblicas surgem exclusivamente dos abusos da monarquia e do poder despótico Os acampamentos guerreiros são o verdadeiro pai das cidades e como em razão da urgência de cada situação a guerra não pode ser admi nistrada sem que a autoridade esteja concentrada em uma pessoa é natural que o mesmo tipo de autoridade reapareça no governo civil que sucede o militar Considero essa explicação mais natural que a comumente extraída do governo patriarcal ou da autoridade do pai que ocorreria primeiro na família acostumando seus membros à au toridade de uma só pessoa O estado da sociedade sem governo é um dos estados mais naturais do homem podendo subsistir mesmo após a conjunção de várias famílias e até muito depois da primeira gera ção Nada a não ser um aumento da riqueza e dos bens poderia obri gar os homens a abandonálo e tão bárbaras e incultas são todas as sociedades quando de sua formação inicial que muitos anos devem se passar antes que esses bens possam aumentar a ponto de pertur bar a paz e a harmonia dos homens 3 Entretanto embora os homens possam manter uma sociedade pequena e inculta sem governo não podem manter nenhum tipo de sociedade sem justiça e sem observar aquelas três leis fundamentais concernentes à estabilidade da posse à sua transferência por consen timento e ao cumprimento das promessas Essas leis portanto são anteriores ao governo e supõese que impõem uma obrigação antes mesmo que se tenha pensado pela primeira vez no dever de obediên cia aos magistrados civis E direi ainda mais seria natural supor que o governo quando se estabelece pela primeira vez deriva sua obrigação desse direito natural particularmente da lei concernente ao cumpri mento de promessas Uma vez os homens tendo percebido a neces sidade do governo para manter a paz e fazer cumprir a justiça eles 580 Livro 3 Parte 2 Seção 8 naturalmente se reuniriam escolheriam seus magistrados determi nariam seu poder e lhes prometeriam obediência Como por suposi ção a promessa é um vínculo ou garantia já em uso que se acompa nha de uma obrigação moral devese considerála a sanção original do governo e a fonte da primeira obrigação à obediência Esse racio cínio parece tão natural que se tornou o fundamento do sistema po lítico hoje em voga entre nós sendo de certa maneira o credo de um de nossos partidos cujos membros se orgulham com razão da cor reção de sua filosofia e de sua liberdade de pensamento Todos os ho mens dizem eles nascem livres e iguais o governo e a superioridade só podem se estabelecer pelo consentimento o consentimento dos homens quan do estabelecem o governo impõelhes uma nova obrigação desconhecida do direito natural Os homens portanto só são obrigados a obedecer a seus magistrados porque assim o prometeram se não tivessem expressa ou tacita mente dado sua palavra de manter a obediência esta nunca se teria tornado parte de seu dever moral Essa conclusão entretanto quando compreen dida de modo a incluir o governo em todas as suas épocas e situa ções é inteiramente errônea O que afirmo é que embora o dever da obediência civil se baseie inicialmente no da obrigação das promes sas e seja sustentado durante algum tempo por essa obrigação tão logo as vantagens do governo são plenamente conhecidas e reconhe cidas ele imediatamente cria raízes próprias passando a implicar uma obrigação e autoridade originais independentes de qualquer contra to Este é um princípio importante que devemos examinar com cui dado e atenção antes de prosseguirmos 4 É razoável que esses filósofos que afirmam ser a justiça uma vir tude natural e anterior às convenções humanas reduzam toda obediên cia civil à obrigação decorrente de uma promessa e afirmem que so mente nosso consentimento nos obriga a nos submeter à magistratura Pois como todo governo é claramente uma invenção humana e como a origem da maior parte dos governos é um fato histórico conhecido será necessário retroceder ainda mais para encontrar a fonte de nossos deveres políticos se quisermos afirmar que implicam uma obrigação 581 Tratado da natureza humana moral natural Esses filósofos portanto rapidamente observam que a sociedade é tão antiga quanto a espécie humana e aquelas três leis fundamentais do direito natural tão antigas quanto a sociedade Desse modo aproveitandose da antiguidade e da origem obscura dessas leis eles primeiro negam que elas sejam invenções humanas artifi ciais e voluntárias e em seguida procuram enxertar nelas aqueles outros deveres que são mais claramente artificiais Mas quando per cebermos que isto é um engano e virmos que a justiça natural as sim como a civil tem origem nas convenções humanas rapidamente descobriremos como é inútil reduzir uma à outra ou seja buscar nas leis naturais um fundamento para nossos deveres políticos que seja mais forte que o interesse e as convenções humanas quando estas mesmas leis são construídas com base no mesmo fundamento De qualquer lado que examinemos este assunto veremos que essas duas espécies de deveres são exatamente equivalentes e tanto no que diz respeito a sua invenção como no que concerne a sua obriga ção moral ambas têm a mesma origem São concebidas para reme diar inconvenientes semelhantes e adquirem sua sanção moral da mesma maneira ou seja do fato de remediarem esses inconvenien tes Esses são dois pontos que procuraremos provar da maneira mais distinta possível 5 Já mostramos que os homens inventaram essas três leis fundamen tais do direito natural quando observaram a necessidade da socieda de para sua subsistência e descobriram que seria impossível manter uma harmonia comum sem algum tipo de restrição a seus apetites naturais Portanto o mesmo amor a si próprios que torna os homens tão incômodos uns para os outros toma uma direção nova e mais con veniente produz as regras da justiça e passa a ser o primeiro motivo para que as observemos Mas quando os homens percebem que em bora as regras da justiça sejam suficientes para manter uma sociedade eles são todavia incapazes por si sós de observar essas regras em so ciedades maiores e mais sofisticadas instauram o governo como uma nova invenção para alcançar seus fins preservando as antigas vanta 582 Livro 3 Parte 2 Seção 8 gens ou possibilitando novas por meio de uma aplicação mais rígi da da justiça É neste sentido portanto que nossos deveres civis es tão conectados com nossos deveres naturais ou seja porque aqueles foram inventados especialmente em benefício destes e porque o prin cipal objetivo do governo é forçar os homens a observar o direito na tural Entretanto sob esse aspecto a lei natural concernente ao cum primento de promessas devese compreender juntamente com as outras devese considerar sua estrita observância um efeito da institui ção do governo em lugar de se considerar a obediência ao governo um efeito da obrigação de se cumprir uma promessa Embora o obje tivo de nossos deveres civis seja reforçar nossos deveres naturais o primeiro9 motivo da invenção bem como do cumprimento de ambos é unicamente o interesse próprio E uma vez que na obediência ao governo existe um interesse independente do interesse pelo cumpri mento das promessas temos de admitir também a existência em cada um de uma obrigação distinta Obedecer aos magistrados civis é ne cessário para a preservação da ordem e da harmonia social Cumprir as promessas é necessário para promover a segurança e a confiança mútua nas tarefas comuns da vida Os meios assim como os fins são perfeitamente distintos e uns não se subordinam aos outros 6 Para que isso fique mais evidente consideremos que os homens freqüentemente se comprometem por meio de promessas a realizar ações que teriam interesse em realizar independentemente dessas promessas por exemplo quando querem dar à outra pessoa uma ga rantia maior e por isso acrescentam uma nova obrigação de interes se àquela a que já estavam sujeitos O interesse pelo cumprimento de promessas além de sua obrigação moral é geral explícito e da maior importância para a vida Outros interesses podem ser mais particulares e duvidosos tendemos a duvidar mais de que os homens possam dar vazão a seus humores e paixões agindo contra eles Aqui 9 Primeiro no tempo e não em dignidade ou em força 583 Tratado da natureza humana portanto é natural que as promessas entrem em jogo sendo com fre qüência requeridas para proporcionar maior satisfação e segurança Quando se supõe contudo que esses outros interesses são tão ge rais e explícitos quanto o interesse pelo cumprimento de uma pro messa eles passam a ser tratados em pé de igualdade e os homens começam a depositar neles a mesma confiança Ora é exatamente isso que se passa com nossos deveres civis ou seja com a obediência aos magistrados sem a qual nenhum governo poderia sobreviver e nenhu ma paz ou ordem poderia se manter em grandes sociedades nas quais por um lado há tantos bens e por outro tantas necessidades reais ou imaginárias Nossos deveres civis portanto logo devem se des vincular de nossas promessas adquirindo uma força e uma influên cia independentes O interesse nos dois casos é exatamente do mes mo tipo é geral explícito e prevalece em todos os tempos e lugares Por isso não pode haver nenhum pretexto racional para fundarmos um sobre o outro já que cada um tem seu fundamento próprio Se reduzimos a obrigação da obediência civil à de uma promessa bem poderíamos reduzir a esta também a obrigação de se abster das posses alheias Os interesses não são mais distintos em um caso que no outro O respeito pela propriedade não é mais necessário à sociedade natural que a obediência o é à sociedade civil ou ao governo e o primeiro tipo de sociedade tampouco é mais necessário à existência da humanidade que esta última o é a seu bemestar e felicidade Em resumo se o cum primento das promessas é vantajoso a obediência ao governo também o é se aquele interesse é geral este também o é se aquele é evidente e explícito este também o é E como essas duas regras estão fundadas em obrigações semelhantes de interesse cada qual tem de ter uma autoridade própria e independente da outra 7 Porém não são apenas as obrigações naturais motivadas pelo in teresse que são distintas nas promessas e na obediência civil mas também as obrigações morais impostas pela honra e consciência de modo que o mérito ou demérito de umas não depende em nada do 584 Livro 3 Parte 2 Seção 8 das outras De fato se considerarmos a estreita conexão que existe entre as obrigações naturais e as morais veremos que essa conclu são é absolutamente inevitável Nosso interesse está sempre do lado da obediência aos magistrados só uma grande vantagem presente pode nos levar à rebelião ao nos fazer menosprezar o interesse re moto que temos pela preservação da paz e da ordem na sociedade Mas o interesse presente embora possa nos tornar cegos para as con seqüências de nossas próprias ações não intervém no caso das ações alheias não impede que elas apareçam em suas verdadeiras cores ou seja como altamente prejudiciais a nosso próprio interesse ou ao menos ao interesse público de que participamos por simpatia Isso naturalmente produz em nós um malestar quando consideramos essas ações sediciosas e desleais levandonos a vincular a elas a idéia de vício e deformidade moral É o mesmo princípio que nos faz desa provar todo tipo de injustiça privada particularmente a quebra de pro messas Censuramos toda traição e quebra de confiança porque con sideramos que a liberdade e a extensão do interrelacionamento humano dependem inteiramente da fidelidade às promessas Censu ramos toda deslealdade aos magistrados porque percebemos que a observação da justiça na estabilidade da posse em sua transferência por consentimento e no cumprimento de promessas é impossível sem a submissão a um governo Como aqui existem dois interesses intei ramente distintos entre si eles devem gerar duas obrigações morais igualmente separadas e independentes Mesmo que jamais tivesse havido no mundo algo semelhante a uma promessa o governo ainda seria necessário em todas as sociedades extensas e civilizadas e se as promessas tivessem apenas sua própria obrigação sem receber inde pendentemente a sanção do governo seriam pouco eficazes nessas sociedades Isso separa as fronteiras entre nossos deveres públicos e privados e mostra que estes dependem mais daqueles que aqueles destes A educação e o artifício dos políticos concorrem para proporcio nar uma moralidade adicional à lealdade e para estigmatizar toda re belião com um maior grau de culpa e infâmia Nem é de admirar que 585 Tratado da natureza humana os políticos se esforcem tanto para inculcar tais noções já que seu interesse está tão particularmente em jogo 8 Para o caso de esses argumentos não parecerem inteiramente concludentes como penso que são recorrerei à autoridade e pro varei partindo do consentimento universal dos homens que a obri gação de submissão ao governo não é derivada de uma promessa por parte dos súditos Ninguém precisa estranhar que até aqui eu tenha tentado estabelecer meu sistema com base na pura razão sem quase nunca citar sequer a opinião de filósofos ou de historiadores e agora passe a apelar para a autoridade popular opondo as opiniões da plebe ao raciocínio filosófico Devese observar que as opiniões dos homens neste caso carregam consigo uma autoridade peculiar sendo em gran de medida infalíveis A distinção entre o bem e o mal morais se fun da no prazer ou na dor que resultam da contemplação de um sen timento ou um caráter e como esse prazer ou essa dor não podem ser desconhecidos da pessoa que os sente seguese10 que em cada caráter há tanto vício ou tanta virtude quanto cada um põe nele é impossível nos enganarmos quanto a isso E embora nossos juízos concernentes à origem de um vício ou de uma virtude não sejam tão certos quanto os que se referem a seus graus como o problema aqui não diz respeito à origem filosófica de uma obrigação mas a uma sim ples questão de fato não é fácil conceber como poderíamos cometer um erro Um homem que reconhece seu compromisso de dar a outro uma certa soma de dinheiro certamente deve saber se foi ele ou seu pai que se comprometeu se o fez simplesmente por benevolência ou porque tomou esse dinheiro emprestado e sob que condições e com que objetivo assumiu esse compromisso De maneira semelhante assim como é certo que temos a obrigação moral de nos submeter ao governo porque todos pensam assim deve ser igualmente certo que 1 O Essa proposição tem de ser rigorosamente verdadeira para toda qualidade determinada apenas pelo sentimento Consideraremos posteriormente em que sentido se pode falar de um gosto correto ou errado no que diz respeito à moral à retórica ou à beleza Enquanto isso podemos observar que existe tal uniformidade nos sentimentos gerais da humanida de que essas questões se tornam pouco importantes 586 Livro 3 Parte 2 Seção 8 essa obrigação não resulta de uma promessa já que ninguém cujo juízo não tenha sido desviado por uma adesão demasiadamente rígida a um sistema filosófico jamais sonhou em atribuirlhe essa origem Nem magistrados nem súditos têm essa idéia de nossos deveres civis 9 Constatamos que os magistrados estão tão longe de derivar sua autoridade e a obrigação de obediência por parte de seus súditos de uma promessa ou contrato original que tanto quanto possível escon dem de seu povo sobretudo do vulgo que seria essa sua origem Se fosse esse o fundamento da sanção dada ao governo nossos gover nantes nunca a receberiam tacitamente sendo ela o máximo que se poderia desejar pois aquilo que é concedido de maneira tácita e imper ceptível nunca pode ter sobre as pessoas a mesma influência que aquilo que se realiza de maneira expressa e aberta Uma promessa é tácita quando a vontade é significada por signos mais difusos que os da fala mas sempre supõe uma vontade e esta nunca pode deixar de ser notada pela pessoa que a exerce mesmo que o faça tácita ou silencio samente Mas se perguntásseis à grande maioria dos membros de uma nação se alguma vez deram seu consentimento à autoridade de seus dirigentes ou se prometeram obedecerlhes eles provavelmente fariam de vós uma idéia bem estranha por certo responderiam que a questão não depende de seu consentimento e que já nasceram submetidos a essa obediência Em conseqüência dessa opinião vemos que fre qüentemente consideram como seus dirigentes naturais pessoas que naquele momento estão desprovidas de qualquer poder e autoridade e as quais ninguém por mais estúpido que fosse escolheria voluntaria mente e isso apenas porque essas pessoas pertencem à linhagem daqueles que antes governaram e encontramse hierarquicamente na posição que costuma tomar a sucessão mesmo que o intervalo de tempo entre eles seja tão grande que não haja praticamente ne nhum homem ainda vivo que possa ter prometido obediência Será então que um governo não tem nenhuma autoridade sobre essas pes soas só porque elas nunca lhe deram seu consentimento e considera riam a própria tentativa de tal escolha voluntária prova de arrogância e 587 Tratado da natureza humana impiedade Ora a experiência nos mostra que o governo as pune li vremente pelo que chama de traição e rebelião mas tal prática de acor do com esse sistema parece reduzirse a um ato comum de injustiça Se disserdes que permanecendo em seus domínios as pessoas de fato dão seu consentimento ao governo estabelecido responderei que isso só poderia ocorrer se elas pensassem que a questão depende de sua escolha coisa que poucos ou ninguém além desses filósofos jamais imaginou Nunca se alegou em defesa de um rebelde que a primeira coisa que fez após atingir a idade da razão foi declarar guerra contra o soberano do Estado que enquanto era criança não podia se compro meter por seu próprio consentimento e ao se tornar um adulto mos trou claramente por esse primeiro ato que realizou que não tinha a intenção de impor a si mesmo nenhuma obrigação à obediência Ao contrário o que vemos é que o direito civil pune esse crime na mesma idade que qualquer outro que seja criminoso por si mesmo indepen dentemente de um consentimento a saber assim que a pessoa atin ge o uso pleno da razão e no entanto segundo essa hipótese o mais justo seria admitir para esse crime um tempo intermediário em que se supusesse ao menos um consentimento tácito A isso podemos acrescentar que nesse caso um homem que vive sob um governo absolutista não deveria a ele nenhuma obediência já que por sua própria natureza esse governo não depende do consentimento Mas como esse é um governo tão natural e comum quanto qualquer outro certamente deve ocasionar algum tipo de obrigação e a experiência deixa claro que os homens que a ele se submetem sempre pensam dessa forma Isso é uma prova clara de que comumente não conside ramos que nossa obediência seja derivada de nosso consentimento ou promessa Outra prova disso encontrase no fato de que quando por algum motivo nossa promessa é feita de modo explícito sempre distinguimos precisamente entre as duas obrigações e acreditamos que uma reforça a outra diferentemente do que ocorreria se apenas estivéssemos repetindo a mesma promessa Quando nenhuma promes sa é feita um homem não considera que por causa de uma rebelião 588 Livro 3 Parte 2 Seção 9 seu compromisso quanto a questões privadas esteja quebrado ao contrário mantém esses dois deveres da honra e da obediência civil completamente distintos e separados Ora como esses filósofos vêem a união desses dois deveres como uma invenção muito sutil essa é uma prova convincente de sua falsidade pois ninguém pode fazer uma promessa ou ser constrangido por sua sanção e obrigação sem ter conhecimento disso Seção 9 Das regras da obediência civil 1 Os tratadistas políticos que recorreram à hipótese de uma pro messa ou contrato original como fonte de nossa obediência ao gover no pretendiam estabelecer um princípio perfeitamente justo e razoá vel mas o raciocínio com base no qual procuraram estabelecêlo era falacioso e sofístico Pretendiam provar que nossa submissão ao go verno admite exceções e um excesso de tirania por parte dos go vernantes é suficiente para liberar os súditos de todo vínculo de obe diência Afirmam que como os homens entram em sociedade e se submetem a um governo por seu consentimento livre e voluntário devem ter em vista certas vantagens que se propõem a extrair desse governo e em nome das quais de bom grado abrem mão de sua liber dade original Portanto há um compromisso recíproco assumido pelo magistrado a saber dar proteção e segurança e é apenas por dar es peranças de proporcionar essas vantagens que pode persuadir as pes soas a se submeterem a ele Mas quando em vez de proteção e se gurança essas pessoas encontram tirania e opressão ficam liberadas de suas promessas como acontece em todo contrato condicional retornando àquele estado de liberdade que precede a instituição do governo Os homens nunca seriam tão estúpidos a ponto de assu mir compromissos que pudessem ser vantajosos apenas aos outros sem nenhuma perspectiva de melhorar sua própria condição Quem se propõe a tirar algum proveito de nossa submissão tem de se com 589 Tratado da natureza humana prometer expressa ou tacitamente a nos proporcionar alguma van tagem com sua autoridade e não deve esperar que continuemos a lhe obedecer se não cumpre sua parte 2 Repito a conclusão é correta mas os princípios são falsos e or gulhome de poder estabelecer a mesma conclusão com base em prin cípios mais razoáveis Para estabelecer nossos deveres políticos não afirmarei que os homens percebem as vantagens do governo que ins tituem o governo tendo em vista essas vantagens que essa institui ção requer uma promessa de obediência a qual impõe uma obrigação moral até um certo ponto mas que sendo condicional deixa de ser obrigatória sempre que o outro contratante não cumpre sua parte Vejo que a própria promessa surge unicamente de convenções humanas e é inventada em vista de um certo interesse Por isso procuro um interesse que esteja mais imediatamente conectado com o governo e possa ser ao mesmo tempo o motivo original de sua instituição e a fonte de nossa obediência a ele Constato que esse interesse consiste na segurança e proteção de que desfrutamos na sociedade política que nunca poderíamos alcançar quando inteiramente livres e inde pendentes Como o interesse portanto é a sanção imediata do gover no um não pode durar mais que o outro e sempre que o magistrado civil leva sua opressão ao ponto de tornar sua autoridade intolerável não temos mais obrigação de nos submeter a ele A causa cessa o efeito portanto também deve cessar 3 Até aqui no que se refere à obrigação natural da obediência civil a conclusão é imediata e direta Quanto à obrigação moral podemos observar que seria falsa a máxima de que quando a causa cessa o efeito também deve cessar Pois existe um princípio na natureza humana que notamos diversas vezes que diz que os homens se prendem fortemen te a regras gerais e que freqüentemente estendemos nossas máximas além das razões que nos levaram a estabelecêlas pela primeira vez Quando os casos são similares em muitas circunstâncias tendemos a tratálos em pé de igualdade sem considerar que diferem nas cir cunstâncias mais importantes sendo a semelhança mais aparente que 590 Livro 3 Parte 2 Seção 9 real Podese pensar portanto que no caso da obediência civil nossa obrigação moral derivada do dever não deixa de existir mesmo se a obrigação natural derivada do interesse que é sua causa não mais existir e que os homens podem ser obrigados por sua consciência a se submeter a um governo tirânico contra seu próprio interesse e o do público De fato reconheço a força desse argumento enquanto admito que as regras gerais comumente se estendem além dos prin cípios em que se baseiam e raramente fazemos a elas qualquer ex ceção a menos que essa exceção tenha as qualidades de uma regra geral e seja fundada em exemplos muitos numerosos e comuns Ora afirmo que é exatamente esse o caso presente Quando os homens se submetem à autoridade alheia fazemno para proporcio nar a si mesmos alguma segurança contra a maldade e a injustiça dos outros homens que são perpetuamente levados por suas pai xões desregradas e por seu interesse presente e imediato a violar todas as leis da sociedade Mas como essa imperfeição é inerente à natureza humana sabemos que deve acompanhar os homens em to dos os seus estados e condições e aqueles que escolhemos como nossos governantes não adquirem imediatamente uma natureza superior à do resto da humanidade simplesmente por adquirirem um poder e uma autoridade superiores O que esperamos deles depende de uma mudança não em sua natureza mas em sua situação que ocorre quando adquirem um interesse mais imediato pela preserva ção da ordem e pelo cumprimento da justiça Mas além do fato de esse interesse só ser mais imediato no caso do cumprimento da jus tiça entre seus súditos e não no caso de disputas entre eles próprios e seus súditos além disso digo freqüentemente podemos esperar dada a irregularidade da natureza humana que esses governantes irão desconsiderar até mesmo esse interesse imediato e que suas paixões os levarão a todos os excessos da crueldade e da ambição Nosso co nhecimento geral da natureza humana nossa observação da história passada da humanidade nossa experiência dos tempos presentes todas essas causas devem nos levar a abrir espaço para exceções e 591 Tratado da natureza humana devem nos fazer concluir que podemos resistir aos exemplos mais violentos do poder supremo sem cometer por isso nenhum crime ou injustiça 4 De acordo com isso podemos observar que tal é ao mesmo tem po a prática geral e o princípio da humanidade e que nenhuma nação que tenha podido lançar mão de algum remédio continuou sofrendo os cruéis estragos de um tirano ou foi censurada por ter resistido a eles Os homens que pegaram em armas contra Dionísio Nero ou Felipe II têm a simpatia de todos aqueles que lêem sua história só a mais violenta perversão do bom senso poderia nos levar a condenálos É certo portanto que em nenhuma de nossas noções morais sustenta mos um tamanho absurdo como o da obediência passiva ao contrá rio permitimos a resistência nos casos mais flagrantes de tirania e opressão A opinião geral dos homens tem alguma autoridade em todos os casos mas no caso da moral é absolutamente infalível E não é menos infalível apenas porque os homens não conseguem expli car distintamente os princípios em que se baseia Poucas pessoas são capazes de formar esta cadeia de raciocínios o governo é uma mera invenção humana no interesse da sociedade quando a tirania do governante contraria esse interesse suprime a obrigação natural da obediência A obrigação moral fundase na natural e portanto tem que deixar de existir quando esta acaba sobretudo quando o assunto é tal que nos leva a entrever muitas ocasiões em que a obrigação natural pode acabar e nos faz formar uma espécie de regra geral para regular nossa conduta em tais circunstâncias Mas embora essa cadeia de raciocínios seja demasiadamente sutil para as pessoas comuns o certo é que todos os homens têm dela uma noção implícita percebem que só devem obediência ao governo em virtude do interesse público e ao mesmo tempo que a natureza humana está sujeita a tantas fra quezas e paixões que pode facilmente perverter essa instituição trans formando seus governantes em tiranos e inimigos públicos Se o sen tido do interesse não fosse nosso motivo original para a obediência eu perguntaria que outro princípio há na natureza humana capaz de 592 Livro 3 Parte 2 Seção 1 0 subjugar a ambição natural dos homens forçandoos a se subme ter A imitação e o costume não são suficientes pois a questão reaparece que motivo produz esses primeiros exemplos de submis são que imitamos e essa série de ações que produz o costume É evi dente que não há outro princípio além do interesse e se é o interesse que gera primeiramente a obediência ao governo a obrigação de obe decer tem de cessar toda vez que cessa o interesse em um grau sig nificativo e em um número considerável de casos Seção 1 O Dos objetos da obediência civil 1 Embora em certas ocasiões resistir ao poder supremo possa ser justificável tanto para a boa política como para a moral é certo entre tanto que no curso comum dos assuntos humanos nada pode ser mais nocivo e criminoso pois além das convulsões que sempre acom panham as revoluções tal prática tende diretamente a subverter todo governo e a produzir uma anarquia e confusão universal entre os ho mens Assim como as sociedades numerosas e civilizadas não podem subsistir sem governo assim também o governo é inteiramente inú til sem uma estrita obediência Devemos sempre pesar as vantagens que extraímos da autoridade e suas desvantagens desse modo sere mos mais cuidadosos antes de pôr em prática a doutrina da resistên cia A regra comum exige a submissão e somente em casos de uma tirania e opressão atroz pode ter lugar a exceção 2 Portanto uma vez que comumente devemos uma cega submissão à magistratura a próxima questão é a quem devemos tal submissão quem devemos considerar nossos magistrados legítimos Para responder a essa questão relembremos o que já foi estabelecido a respeito da origem do governo e da sociedade política Uma vez tendo os homens expe rimentado a impossibilidade de preservar uma ordem estável na so ciedade enquanto cada um é dono de si próprio violando ou obser vando as leis da sociedade de acordo com seu interesse presente ou a 593 Tratado da natureza humana seu belprazer eles naturalmente inventam o governo e tanto quan to possível põem fora de seu próprio alcance o poder de transgredir as regras da justiça O governo portanto surge da convenção volun tária dos homens e evidentemente a mesma convenção que estabe lece o governo também determinará as pessoas que devem governar eliminando toda dúvida e ambigüidade a esse respeito O consenti mento voluntário dos homens deve ser neste caso ainda mais eficaz já que a autoridade do magistrado se fundamenta inicialmente em uma promessa por parte dos súditos pela qual estes se comprometem a obedecer como ocorre em qualquer outro contrato ou compromis so A mesma promessa portanto que os obriga a obedecer submete os a uma pessoa particular e a torna objeto de sua lealdade 3 Mas quando o governo já está estabelecido sobre essa base há um tempo considerável e o interesse distinto que temos pela submissão já produziu um sentimento distinto de moralidade tudo se modifi ca a promessa não é mais capaz de determinar o magistrado parti cular pois não é mais considerada o fundamento do governo Supo mos naturalmente que nascemos sob a submissão e imaginamos que tais pessoas particulares têm o direito de comandar enquanto nós por nosso lado temos de obedecer Essas noções de direito e obriga ção derivam unicamente da vantagem que vemos no governo o que nos dá uma aversão pela idéia de praticarmos nós mesmos a resis tência e nos faz sentir um desprazer quando outros a praticam No entanto devese notar aqui que nesse novo estado de coisas não admi timos que a sanção original do governo que é o interesse determine a quem devemos obedecer como era o caso da sanção original quando tudo se baseava numa promessa A promessa fixa e determina as pessoas sem dar lugar a incertezas Mas evidentemente se os homens regu lassem sua conduta quanto a esse aspecto pela perspectiva de um in teresse peculiar fosse ele público ou privado envolverseiam em con fusões intermináveis o que tornaria qualquer governo em grande parte sem efeito Cada pessoa tem um interesse privado diferente e embora o interesse público em si próprio seja sempre o mesmo gera 594 Livro 3 Parte 2 Seção 1 O grandes dissensões em razão das diferentes opiniões que as pessoas particulares têm dele Portanto o mesmo interesse que nos leva a nos submeter à magistratura faz que renunciemos a ele próprio ao esco lhermos nossos magistrados submetendonos a uma certa forma de governo e a uma pessoa particular sem poder aspirar à completa per feição em uma ou em outra O que se passa aqui é o mesmo que ocorre no caso daquela lei do direito natural concernente à estabilidade da posse É altamente vantajoso e mesmo absolutamente necessário à sociedade que a posse seja estável é isso que nos leva a estabelecer essa regra Mas constatamos que buscando obter a mesma vantagem se atribuíssemos posses particulares a pessoas particulares apenas frustraríamos nosso objetivo e perpetuaríamos a confusão que essa regra pretende impedir Portanto devemos proceder com base em regras gerais e regular a nós mesmos por interesses gerais modifi cando a lei natural concernente à estabilidade da posse E não temos por que temer que nossa adesão a essa lei diminua em virtude da apa rente futilidade dos interesses que a determinam O impulso da mente é derivado de um interesse muito forte e os interesses menores ser vem apenas para direcionar o movimento sem nada acrescentar a ele ou dele retirar O mesmo se passa com o governo Nada é mais vantajoso para a sociedade que essa invenção e esse interesse é suficiente para nos fazer abraçála com ardor e entusiasmo mas posteriormente somos obrigados a regular e a direcionar nossa devoção ao governo por meio de diversas considerações que não têm a mesma importância escolhendo nossos magistrados sem ter em vista nenhuma vantagem particular que possamos obter com essa escolha 4 O primeiro princípio que analisarei como fundamento do direito de magistratura é aquele que dá autoridade a quase todos os gover nos estabelecidos no mundo Refirome à posse prolongada em uma determinada forma de governo ou sucessão de príncipes Certamente se retrocedermos até a origem de cada nação descobriremos que não há quase nenhuma linhagem de reis ou comunidade política que 595 Tratado da natureza humana não tenha sido primeiro fundada na usurpação e na rebelião e cujo direito não tenha sido de início mais que duvidoso e incerto Só o tem po dá solidez a esse direito e agindo de modo gradativo sobre a men te dos homens levaos a aceitar qualquer autoridade que acaba por lhes parecer justa e razoável Nada faz um sentimento ter sobre nós maior influência e nada dirige nossa imaginação mais fortemente para um objeto determinado que o costume Quando estamos há muito tempo acostumados a obedecer a um certo grupo de pessoas o instin to ou tendência geral que temos a supor que existe uma obrigação moral acompanhando a obediência civil toma facilmente essa direção e esco lhe esse grupo como seu objeto É o interesse que produz o instinto geral mas é o costume que imprime a ele uma direção particular 5 Cabe aqui observar que o mesmo período de tempo tem influên cias diferentes em nossos sentimentos morais de acordo com suas diferentes influências sobre a mente Nós naturalmente julgamos tudo por comparação e uma vez que ao considerar o destino de reis e repúblicas percorremos um longo período uma curta duração não tem nesse caso a mesma influência em nossos sentimentos que quando consideramos outros objetos Um período de tempo bem curto basta para que uma pessoa pense ter adquirido direito sobre um cavalo ou um conjunto de roupas mas em geral nem todo um século é suficiente para estabelecer um novo governo ou para eli minar qualquer hesitação dos súditos a seu respeito Acrescentese a isso que para um príncipe adquirir um direito sobre qualquer po der adicional que possa vir a usurpar basta um período mais curto que o necessário para consolidar seu direito quando todo o poder que ele adquiriu é produto de usurpação Os reis da França não estão de posse de um poder absoluto há mais de dois reinados entretanto nada parecerá mais estranho aos franceses que falar de suas liberda des Se considerarmos o que dissemos sobre a acessão será fácil ex plicar esse fenômeno 6 Quando não há uma forma de governo estabelecida por uma posse prolongada a posse atual preenche seu lugar podendo por isso ser vis 596 Livro 3 Parte 2 Seção 1 0 ta como a segunda fonte de toda a autoridade pública O direito à au toridade não é senão a posse constante da autoridade mantida pelas leis da sociedade e pelos interesses dos homens e nada pode ser mais natural que acrescentar essa posse constante à posse atual de acor do com os princípios acima mencionados Se os mesmos princípios não tiveram influência no caso da propriedade privada foi porque eram então contrabalançados por considerações muito fortes de interes se foi assim que observamos que isso impediria qualquer restitui ção e autorizaria e mesmo protegeria toda e qualquer violência Embora os mesmos motivos possam parecer ter força no caso da au toridade pública eles sofrem a oposição de um interesse contrário que consiste em preservar a paz e impedir todas as mudanças que ainda que não causem dificuldades nos assuntos privados vêm ine vitavelmente acompanhadas de desordem e derramamento de san gue no caso do interesse público 7 Se uma pessoa vendo a impossibilidade de explicar o direito do possuinte presente por meio dos sistemas éticos estabelecidos re solvesse negar por completo esse direito e afirmasse que ele não é autorizado pela moral seria considerada com razão como alguém que defende um extravagante paradoxo que choca o bom senso e o senso comum dos homens Não há máxima mais conforme à pru dência bem como à moral que aquela que diz que devemos nos sub meter pacificamente ao governo que encontramos já estabelecido no país em que nos coube viver sem nos perguntarmos demasiado curiosamente sobre sua origem e formação Poucos governos re sistirão a um exame tão rigoroso Quantos reinos existem hoje no mundo e quantos mais encontramos na história cujos governantes não têm melhor fundamento para sua autoridade que a posse atual Para nos restringirmos apenas ao império grecoromano não é evi dente que a longa sucessão de imperadores desde a dissolução das liberdades públicas de Roma até a extinção final desse império pelos Ver nossa nota à p1 78 NT 597 Tratado da natureza humana turcos não poderia sequer ter a pretensão de dar uma outra justifica tiva para o direito a seu império A eleição pelo senado era uma mera formalidade e sempre seguia a escolha das legiões ora estas esta vam quase sempre divididas nas diferentes províncias e nada a não ser a espada podia acabar com tais diferenças Era pela espada por tanto que todo imperador adquiria e defendia seu direito Assim ou dizemos que todo o mundo conhecido durante tantos anos não possuía nenhum governo e não devia obediência a ninguém ou te mos de admitir que na esfera pública o direito do mais forte deve ser aceito como legítimo sendo autorizado pela moral quando não se opõe a nenhum outro direito 8 O direito de conquista pode ser considerado uma terceira fonte do direito de soberania Esse direito se parece muito com o da posse atual porém tem uma força superior uma vez que é apoiado pelas noções de glória e honra que atribuímos aos conquistadores em vez dos sen timentos de ódio e execração que acompanham os usurpadores Os homens são naturalmente favoráveis aos que amam por isso apresen tam maior tendência a atribuir um direito à violência bemsucedida de um soberano sobre outro que a uma rebelião bemsucedida de um súdito contra seu soberano 9 Quando não existe nem posse prolongada nem posse atual nem conquista como ocorre quando morre o soberano que fundou uma determinada monarquia nesse caso o direito de sucessão prevalece naturalmente e os homens em geral são levados a colocar no trono o filho de seu falecido monarca supondo que ele herda a autoridade do pai O presumível consentimento do pai a imitação do processo de sucessão em famílias privadas o interesse do Estado em escolher a pessoa mais poderosa e com o maior número de seguidores todas 1 1 Não estou afirmando aqui que a posse atual ou a conquista são suficientes para conferir um direito contra a posse prolongada e o direito positivo Digo apenas que têm alguma força e serão capazes de decidir a questão quando os direitos são iguais em todos os outros as pectos sendo por vezes até suficientes para consagrar o direito mais fraco É difícil deter minar qual seu grau de força Acredito que quem for razoável admitirá que elas têm uma grande força em todas as disputas concernentes aos direitos dos príncipes 598 Livro 3 Parte 2 Seção 1 O essas razões fazem que os homens prefiram o filho de seu exmonar ca a qualquer outra pessoa12 10 Essas razões têm algum peso mas estou convencido de que qual quer pessoa que considerar a questão de maneira imparcial verá que alguns princípios da imaginação concorrem com essas considerações de justiça e interesse A autoridade real parece estar conectada com o jovem príncipe mesmo durante a vida de seu pai em virtude da transi ção natural do pensamento e mais ainda após sua morte Desse modo nada é mais natural que completar essa união por meio de uma nova relação conferindo ao príncipe de fato a posse daquilo que parece lhe pertencer tão naturalmente 1 1 Para confirmar essa afirmação podemos examinar os seguintes fenômenos bastante curiosos em seu gênero Nas monarquias ele tivas o direito de sucessão não é admitido nem pelas leis nem pelo costume adquirido entretanto sua influência é tão natural que é im possível excluílo inteiramente da imaginação e tornar os súditos indi ferentes ao filho de seu exmonarca Assim em alguns governos desse tipo a escolha comumente recai sobre algum membro da família real e em outros tais membros são todos excluídos Esses fenômenos con trários decorrem do mesmo princípio A exclusão da família real se dá por uma sutileza política que faz as pessoas se darem conta de sua propensão a escolher um soberano nessa família isso lhes dá um zelo por sua liberdade de escolha por temor de que seu novo monarca auxiliado por essa propensão estabeleça sua família no poder des truindo a liberdade de eleição no futuro 12 A história de Artaxerxes e do jovem Ciro pode nos permitir algu mas reflexões com o mesmo propósito Ciro alegava ter mais direito ao trono que seu irmão mais velho por ter nascido após a ascensão de seu pai Não pretendo afirmar que essa razão seja válida Apenas infiro dela que Ciro nunca teria utilizado tal pretexto se não fosse pelas 1 2 Para evitar malentendidos devo observar que este caso de sucessão não é o mesmo que o das monarquias hereditárias em que o costume fixa o direito de sucessão Essas mo narquias dependem do princípio da posse prolongada acima explicado 599 Tratado da natureza humana qualidades da imaginação já mencionadas em virtude das quais vemo nos naturalmente inclinados a unir por meio de uma nova relação aqueles objetos que encontramos já unidos Artaxerxes tinha uma van tagem sobre seu irmão por ser o primogênito e o primeiro na linha de sucessão Ciro tinha porém uma relação mais próxima com a auto ridade real por ter sido gerado quando seu pai já estava investido dessa autoridade 13 Caso se afirme que considerações de conveniência podem ser a fonte de todo direito de sucessão e que os homens se aproveitam de bom grado de qualquer regra que lhes permita fixar o sucessor de seu falecido soberano e assim impedir a anarquia e confusão que acom panham toda nova eleição responderei que talvez esse motivo con tribua parcialmente para esse efeito mas que sem um outro princí pio é impossível que o próprio motivo tivesse lugar O interesse de uma nação requer que a sucessão à coroa seja determinada de uma maneira ou de outra mas é indiferente a esse interesse de que modo ela é determinada Assim se a relação de consangüinidade não tives se um efeito independente do interesse público jamais teria sido le vada em conta sem um direito positivo e teria sido impossível que direitos positivos de tantas nações diferentes jamais pudessem ter as mesmas considerações e intenções 14 Isso nos leva ao exame da quinta fonte de autoridade a saber o direito positivo que ocorre quando a legislação estabelece uma certa forma de governo e de sucessão dos príncipes À primeira vista pode se pensar que essa fonte deve se reduzir a algum dos direitos de auto ridade anteriormente mencionados O poder legislativo de que deri va o direito positivo tem de ter sido estabelecido por um contrato original pela posse prolongada pela posse atual pela conquista ou pela sucessão conseqüentemente a força do direito positivo deve derivar de algum desses princípios Mas notase aqui que embora um direito positivo só possa derivar sua força desses princípios não ad quire toda a força do princípio de que deriva mas perde uma parte considerável dessa força na transição como seria natural imaginar 600 Livro 3 Parte 2 Seção 1 O Por exemplo um certo governo se estabeleceu por muitos séculos com base em um determinado sistema de leis formas e métodos de suces são Subitamente o poder legislativo estabelecido por essa longa su cessão muda todo o sistema de governo e introduz em seu lugar uma nova constituição Creio que poucos súditos se sentirão obrigados a consentir nessa alteração a menos que ela tenha uma tendência evi dente a promover o bem público do contrário sentirseão livres para retornar ao antigo governo A isso se deve a noção de leis fundamen tais que são consideradas inalteráveis pela vontade do soberano Na França entendese que a lei sálica é dessa natureza Nenhum gover no determina até onde vão essas leis nem seria possível fazêlo Exis te uma gradação tão insensível das leis mais importantes às mais triviais e das mais antigas às mais modernas que seria impossível estabelecer limites ao poder legislativo e determinar até que ponto ele pode inovar nos princípios do governo Essa tarefa cabe mais à ima ginação e à paixão que à razão 15 Quem examinar a história das diversas nações do mundo suas revoluções conquistas ascensões e declínios a maneira pela qual estabelecem seus governos particulares e transmitem o direito de su cessão de uma pessoa a outra logo aprenderá a não dar tanta impor tância às disputas concernentes aos direitos dos príncipes e se conven cerá de que uma rígida adesão a regras gerais e a obediência estrita a pessoas e famílias particulares a que alguns dão tanto valor são vir tudes que têm menos de razão que de fanatismo e superstição Por esse aspecto o estudo da história confirma os raciocínios da verda deira filosofia que ao nos mostrar as qualidades originais da natureza humana ensinanos a ver as controvérsias políticas como impossí veis de solucionar na maioria dos casos e como inteiramente subor dinadas aos interesses da paz e da liberdade Quando o berp público não exige claramente uma mudança é certo que a concorrência de todos esses direitos contrato original posse prolongada posse atual sucessão e direito positivo forma o mais forte direito à soberania sendo corretamente visto como sagrado e inviolável Mas quando esses di 601 Tratado da natureza humana reitos se misturam e se opõem em diferentes graus freqüentemente causam perplexidade e são menos suscetíveis de ser solucionados pelos argumentos de juristas e filósofos que pela espada dos solda dos Quem poderá me dizer por exemplo se era Germânico ou Druso que deveria suceder Tibério caso este houvesse morrido enquanto am bos estavam vivos sem ter nomeado um deles como seu sucessor O direito obtido por adoção deveria ser aceito como equivalente ao da consangüinidade em uma nação em que aquele tinha o mesmo efei to que este dentro das famílias e em que já havia ocorrido em dois casos na vida pública Deveria Germânico ser considerado o filho mais velho por ter nascido antes de Druso ou o mais jovem por ter sido adotado após o nascimento de seu irmão Deveria o direito do mais velho ser levado em conta em uma nação onde o primogênito não tinha nenhum privilégio nas sucessões privadas Deveríamos con siderar que o império romano de então era hereditário porque houve ra dois casos de sucessão hereditária ou deveríamos considerálo mesmo então como pertencendo ao mais forte ou ao possuinte presente já que havia sido fundado sobre uma usurpação tão re cente Seja qual for o princípio que tomemos como base para res ponder a essas questões e a outras semelhantes temo que nunca conseguiremos convencer um investigador imparcial que não tome partido nas controvérsias políticas e não se satisfaça com nada a não ser a boa razão e a filosofia 16 Mas neste ponto o leitor inglês tenderá a perguntar a respeito daquela famosa revolução que teve uma influência tão feliz sobre nos so sistema político e conseqüências tão importantes Já observamos que no caso de uma tirania e opressão atroz é legítimo pegar em armas mesmo contra o poder supremo e que como o governo é uma mera invenção humana com o objetivo de proporcionar um mútuo benefício e segurança às pessoas deixa de impor uma obrigação na tural ou moral quando não tem mais essa tendência Mas embora esse princípio geral seja sancionado pelo senso comum e pela prática de todos os tempos é certamente impossível que as leis ou sequer a 602 Livro 3 Parte 2 Seção 1 0 filosofia estabeleçam regras particulares que nos permitam saber quando a resistência é legítima e resolver todas as controvérsias que possam surgir a respeito Isso não acontece apenas no caso do poder supre mo também em alguns sistemas políticos em que o poder legislativo não está alojado em uma única pessoa é possível haver um magistra do tão eminente e poderoso que obrigue as leis a silenciarem sobre essa questão Esse silêncio não seria efeito apenas de seu respeito mas também de sua prudência pois é certo que em meio à imensa varie dade de circunstâncias que se apresentam em todos os governos um exercício particular do poder por um magistrado tão importante pode ser ora benéfico para o público ora nocivo e tirânico Mas não obstante esse silêncio das leis nas monarquias constitucionais é certo que o povo conserva o direito à resistência pois é impossível priválo desse direito mesmo nos governos mais despóticos A mesma necessidade de autopreservação e o mesmo motivo do bem público lhe dá igual liberdade nos dois casos E podemos também observar que nesses governos mistos os casos em que a resistência é legíti ma devem ser muito mais freqüentes que nos governos arbitrários devendo haver uma tolerância muito maior para com os súditos que se defendem pela força das armas Não apenas quando o magistrado supremo toma medidas em si mesmas extremamente nocivas para o público mas também quando pretende usurpar as prerrogativas de outras autoridades e estender seu poder para além dos limites legais é permitido resistir a ele e depôlo embora essa resistência e violên cia possam no teor geral das leis ser consideradas ilegais e subversi vas Porque além de nada ser mais essencial ao interesse público que preservar a liberdade pública é evidente que uma vez que se supo nha que um tal governo misto esteja estabelecido toda parte ou mem bro da sociedade política deve ter direito à autodefesa e a manter seus antigos limites contra a usurpação de qualquer outra autoridade Assim como a matéria teria sido criada em vão se fosse desprovida de um poder de resistência sem o qual nenhuma de suas partes pode ria preservar uma existência distinta fundindose todas em um único 603 Tratado da natureza humana ponto assim também é um grande absurdo supor em qualquer gover no um direito sem restrição ou admitir que o poder supremo é par tilhado com o povo sem admitir ao mesmo tempo que é legítimo o povo defender sua parte contra todo usurpador Portanto aqueles que afirmam respeitar a liberdade de nosso governo mas negam o direito de resistência renunciam a qualquer pretensão ao bom senso e não merecem uma resposta séria 17 Não faz parte de meu propósito presente mostrar que esses prin cípios gerais são aplicáveis à recente revolução e que todos os direi tos e privilégios que deveriam ser sagrados para uma nação livre cor riam naquele momento um perigo extremo Prefiro abandonar esse tema controverso se é que ele realmente admite controvérsia e en tregarme a algumas reflexões filosóficas suscitadas naturalmente por esse importante acontecimento 18 Em primeiro lugar observemos que se os lordes e os comuns em nosso sistema político sem nenhum motivo de interesse público de pusessem o rei ainda em vida ou então após sua morte excluíssem o príncipe que pelas leis ou pelo costume deveria sucedêlo ninguém consideraria seu procedimento legítimo nem pensaria estar obriga do a concordar com ele Mas se o rei em razão de suas práticas injus tas ou de suas tentativas de estabelecer um poder tirânico e despóti co perdesse merecidamente o direito a sua autoridade legal nesse caso não apenas se tornaria moralmente legítimo e conforme à na tureza da sociedade política destronálo mas além disso tendería mos também a pensar que os membros restantes da sociedade políti ca adquirem o direito de excluir seu herdeiro próximo e de escolher como seu sucessor quem lhes agrade Isso se baseia em uma qualida de bastante singular de nosso pensamento e imaginação Quando um rei perde seu direito à autoridade seu herdeiro deveria naturalmente ficar na mesma situação em que estaria se o rei fosse afastado por morte a menos que tivesse tomado parte na tirania perdendo assim ele também sua autoridade Mas embora isso possa parecer razoável nós facilmente adotamos a opinião contrária A deposição de um rei em 604 Livro 3 Parte 2 Seção 1 O um governo como o nosso é certamente um ato que ultrapassa toda autoridade comum pois supõe que se assuma ilegalmente em vista do bem público um poder que no curso normal do governo não pode caber a nenhum membro da sociedade política Quando o bem pú blico é tão grande e evidente a ponto de justificar tal ação a louvável utilização dessa prerrogativa faz que naturalmente atribuamos ao parlamento o direito de tomar outras liberdades e uma vez os anti gos limites legais tendo sido transgredidos com a aprovação geral tendemos a não mais nos confinar tão rigidamente a seus limites pre cisos É de maneira natural que a mente dá continuidade a qualquer série de ações já iniciada e em geral não hesitamos acerca de nosso dever após termos realizado uma ação seja de que tipo for Assim na revolução ninguém que tenha considerado justificável a deposição do pai pensava estar agora limitado a seu filho infante mas se o infeliz monarca houvesse morrido inocente e se seu filho por um acidente qualquer houvesse sido levado para alémmar não há dúvida de que teria sido escolhida uma regência provisória até que ele atingisse a maioridade e pudesse ser restaurado a seus domínios Como as mais insignificantes propriedades da imaginação exercem um efeito sobre o juízo dos homens é prova da sabedoria das leis e do parlamento tirar vantagem dessas propriedades e escolher os magistrados den tro ou fora da linha de sucessão conforme o vulgo atribua mais na turalmente uma autoridade e um direito a um ou a outro 19 Em segundo lugar embora a subida ao trono do Príncipe de Orange possa de início ter dado ocasião a muitas disputas e ainda que seu título possa ter sido contestado agora seu direito não deveria mais parecer duvidoso tendo já adquirido uma autoridade suficiente em virtude dos três príncipes que o sucederam no mesmo título Nada é mais comum embora à primeira vista nada pareça menos razoável que esse modo de pensar Os príncipes com freqüência parecem ad quirir um direito de seus sucessores bem como de seus antepassa dos e um rei que durante sua vida poderia merecidamente ser con siderado um usurpador será visto pela posteridade como um príncipe 605 Tratado da natureza humana legítimo por ter tido a sorte de estabelecer sua família no trono e por ter transformado inteiramente a antiga forma de governo Júlio César é considerado o primeiro imperador romano ao passo que Sila e Mário que possuíam na realidade os mesmos direitos que ele são tratados como usurpadores e tiranos O tempo e o costume conferem autori dade a todas as formas de governo e a todas as dinastias de príncipes e o poder que de início se fundava apenas na injustiça e na violência se torna com o tempo legítimo e obrigatório Mas a mente não pára aqui retornando sobre seus passos ela transfere a seus predecessores e antepassados o direito que atribui naturalmente à posteridade por estarem relacionados e unidos na imaginação O atual rei da França faz de Hugo Capeta um príncipe mais legítimo que Cromwell assim como a liberdade estabelecida entre os holandeses é uma boa desculpa para sua obstinada resistência contra Felipe II Seção 1 1 Do direito internacional 1 Uma vez que um governo civil se estabeleceu entre a maior parte dos homens e uma vez que diferentes sociedades se formaram umas ao lado das outras surge um novo conjunto de deveres entre os Esta dos vizinhos apropriado à natureza do comércio que mantêm entre si Os autores de escritos políticos dizemnos que em todo tipo de intercâmbio um corpo político deve ser considerado como uma pes soa Essa afirmação é correta um certo ponto de fato nações dife rentes como as pessoas privadas necessitam de uma assistência mú tua ao mesmo tempo em que seu egoísmo e ambição são fontes perpétuas de guerras e discórdias Mas embora quanto a esse pon to particular as nações se assemelhem a indivíduos elas são muito diferentes destes sob outros aspectos e não é de admirar que sejam reguladas por máximas diferentes e criem um novo conjunto de re gras que denominamos de direito internacional Entre estas podemos incluir a imunidade dos embaixadores a declaração de guerra a 606 Livro 3 Parte 2 Seção 1 1 abstenção de armas envenenadas e outros deveres do mesmo gêne ro que são evidentemente projetados para o relacionamento peculiar entre diferentes sociedades 2 Mas embora essas regras se acrescentem ao direito natural não o abolem inteiramente podese afirmar com segurança que as três regras fundamentais da justiça a estabilidade da posse sua transfe rência por consentimento e o cumprimento das promessas são de veres tanto de príncipes como de súditos O mesmo interesse produz igual efeito em ambos os casos Ali onde a posse não tem estabilida de certamente haverá uma guerra perpétua Onde a propriedade não é transferida por consentimento não pode haver comércio Onde as promessas não são cumpridas ligas ou alianças não podem existir As vantagens da paz do comércio e do auxílio mútuo portanto fa zemnos estender aos diferentes reinos as mesmas noções de justiça que têm lugar entre os indivíduos 3 Existe uma máxima muito comum em nosso mundo que pou cos políticos querem admitir mas que é referendada pela prática de todas as épocas que há um sistema de moral concebido especialmente para os príncipes e muito mais livre que aquele que deve governar as pessoas priva das É evidente que não se deve com isso entender que a aplicação dos deveres e das obrigações públicas tenha naquele caso uma me nor extensão ninguém pode ser tão extravagante a ponto de afirmar que os tratados mais solenes não deveriam ter valor algum entre prín cipes Pois como estes de fato firmam tratados uns com os outros devem propor a obtenção de algum benefício por seu cumprimento e a perspectiva desse benefício futuro deve leválos a cumprir sua parte estabelecendo essa lei natural O sentido dessa máxima políti ca é portanto que embora a moral dos príncipes tenha a mesma ex tensão não tem a mesma força que a das pessoas privadas podendo ser legitimamente transgredida por um motivo mais fútil Por mais chocante que essa proposição possa parecer a certos filósofos é fácil defendêla com base nos princípios que nos permitiram explicar a origem da justiça e da eqüidade 607 Tratado da natureza humana 4 Uma vez os homens tendo descoberto por experiência que é impossível sobreviver sem a sociedade e é impossível manter a socie dade enquanto dão plena liberdade a seus apetites um interesse tão urgente rapidamente restringe suas ações e impõe a obrigação de observar aquelas leis que chamamos de leis da justiça Mas essa obri gação motivada pelo interesse não fica por aqui em virtude do cur so necessário das paixões e sentimentos ela gera a obrigação moral do dever que ocorre quando aprovamos as ações que tendem a pro mover a paz da sociedade e desaprovamos as que tendem a perturbá la A mesma obrigação natural movida pelo interesse tem lugar entre reinos independentes e origina a mesma moral de modo que ninguém pode ser moralmente tão corrupto a ponto de aprovar um rei que por sua própria vontade e consentimento quebra sua palavra ou viola um tratado Mas aqui podemos observar que embora o intercâmbio en tre diferentes Estados seja vantajoso e às vezes até necessário não é tão necessário nem tão vantajoso quanto o intercâmbio entre os indi víduos sem o qual é inteiramente impossível à natureza humana sub sistir Portanto como a obrigação natural à justiça entre diferentes Estados não é tão forte quanto a existente entre os indivíduos a obri gação moral dela decorrente deve partilhar de sua fraqueza e deve mos necessariamente ser mais indulgentes com um príncipe ou com um ministro que engana um outro do que com um cavalheiro que quebra sua palavra de honra 5 Caso se perguntasse qual a proporção entre essas duas espécies de moralidade eu responderia que essa é uma questão a que jamais po deremos responder com precisão pois é impossível reduzir a números a proporção que devemos manter entre elas Podese afirmar com se gurança que essa proporção se encontra por si própria sem a neces sidade de arte ou estudo por parte dos homens como podemos obser var em muitos outros casos A vida prática vai mais longe ao nos ensinar quais os graus de nosso dever que a mais sutil filosofia já inventada Isso pode servir como uma prova convincente de que todos os homens têm uma noção implícita do fundamento dessas regras morais con 608 Livro 3 Parte 2 Seção 1 2 cernentes à justiça natural e civil e percebem que elas derivam uni camente das convenções humanas e do interesse que temos na preservação da paz e da ordem Porque de outro modo a diminui ção do interesse nunca produziria um relaxamento da moral nem nos faria aceitar mais facilmente as transgressões da justiça ocorri das entre príncipes e repúblicas que as ocorridas nas relações priva das entre súditos Seção 1 2 Da castidade e da modéstia 1 Se este sistema concernente ao direito natural e ao direito inter nacional apresentar alguma dificuldade será em relação à aprovação ou à censura universal que acompanham sua observância ou trans gressão e que alguns podem pensar não ter sido suficientemente ex plicadas com base nos interesses gerais da sociedade Para eliminar tanto quanto possível qualquer dúvida desse gênero examinarei aqui um outro par de virtudes a saber a modéstia e a castidade que convêm ao belo sexo Estou seguro de que essas virtudes mostrarseão exem plos ainda mais evidentes da operação daqueles princípios sobre os quais tanto insisti 2 Alguns filósofos atacam com grande veemência as virtudes femi ninas e imaginam ter feito um grande progresso na descoberta dos erros populares quando podem mostrar que não há um fundamento natural para toda aquela modéstia exterior que exigimos nas expres sões no modo de vestir e no comportamento do belo sexo Creio que posso me poupar o trabalho de insistir em um assunto tão óbvio por isso passarei sem mais preâmbulos ao exame da maneira como es sas noções decorrem da educação das convenções voluntárias dos homens e do interesse da sociedade 3 Quem quer que considere a grande duração e a fragilidade da in fância humana juntamente com a preocupação que ambos os sexos mostram por seus filhos perceberá facilmente que deve haver uma 609 Tratado da natureza humana união entre o homem e a mulher na educação dos jovens e que essa união deve ter uma duração considerável Mas para que os homens se convençam a impor a si mesmos essa restrição e suportem alegre mente todo o trabalho e sacrifício a que ela os submete têm de acreditar que os filhos são seus e quando dão vazão a seu amor e ternura que seu instinto natural não está sendo direcionado para o objeto errado Ora se examinarmos a estrutura do corpo humano veremos que essa segurança é muito difícil de se alcançar de nosso lado e como durante a cópula o princípio da geração passa do homem para a mulher é fácil ocorrer um erro do lado do primeiro embora isso seja inteiramente impossível no caso desta última É dessa banal observação anatômica que deriva a ampla diferença na educação e nos deveres dos dois sexos 4 Se um filósofo examinasse a questão a priori raciocinaria da se guinte maneira Os homens são levados a trabalhar para o sustento e a educação de seus filhos por estarem persuadidos de que esses fi lhos são de fato seus por isso é razoável e mesmo necessário dar a eles alguma segurança quanto a isso Essa segurança não pode vir ex clusivamente da imposição de severas punições a toda transgressão da fidelidade conjugal por parte da esposa uma vez que essas puni ções públicas só podem ser aplicadas com provas legais que são difí ceis de se obter nesse caso Que restrição portanto imporemos às mulheres para contrabalançar sua tão grande tentação à infidelida de Parece que a única restrição possível é a punição da má fama e reputação punição esta que tem grande influência sobre a mente hu mana e ao mesmo tempo pode ser aplicada com base em suspeitas conjeturas e provas que nunca seriam aceitas em um tribunal Por tanto para impor a devida restrição ao sexo feminino temos de vincu lar um grau determinado de vergonha a sua infidelidade superior ao que decorre unicamente da injustiça desta ao mesmo tempo fazemos elogios proporcionais a sua castidade 5 Embora este seja um motivo bastante forte para a fidelidade po rém nosso filósofo rapidamente descobriria que por si só ele seria insuficiente para esse propósito Todas as criaturas humanas sobretu 61 0 Livro 3 Parte 2 Seção 12 do as do sexo feminino tendem a menosprezar motivos remotos em favor de qualquer tentação presente Ora neste caso a tentação é a mais forte que se possa imaginar suas investidas são imperceptíveis e sedutoras e as mulheres facilmente descobrem ou têm a ilusão de que descobrirão meios certos de assegurar sua boa reputação bem como de evitar todas as perniciosas conseqüências de seus prazeres Portanto é necessário que além da má fama que acompanha tais li cenciosidades haja algum retraimento ou temor que possa impedir já suas primeiras tentações dando ao sexo feminino uma repulsa por todas as expressões atitudes e liberdades que tenham uma relação imediata com esse prazer 6 Assim seriam os raciocínios de nosso filósofo especulativo Mas estou convencido de que se não tivesse um conhecimento perfeito da natureza humana ele tenderia a vêlos como meras especulações quiméricas e consideraria a desonra que acompanha a infidelidade bem como a relutância em aceitar suas investidas como princípios que deveríamos antes desejar que esperar encontrar no mundo Pois como persuadir os homens diria ele de que as transgressões do de ver conjugal são mais desonrosas que qualquer outro tipo de injusti ça quando é evidente que são mais perdoáveis em razão da força da tentação E como seria possível produzir uma relutância em relação às investidas de um prazer para o qual a natureza nos deu uma incli nação tão forte e uma inclinação que afinal é absolutamente neces sário satisfazer pelo bem da conservação da espécie 7 Mas os raciocínios especulativos que tanto esforço custam aos filósofos com freqüência são formados naturalmente pelas pessoas sem necessitar de reflexão assim como na prática vencemse facil mente dificuldades que parecem insuperáveis na teoria Aqueles que têm interesse na fidelidade das mulheres desaprovam naturalmente sua infidelidade e tudo que leva a ela Os que não têm interesse vão com a corrente e também tendem a sentir uma simpatia pelo interes se geral da sociedade A educação se apossa das maleáveis mentes do belo sexo desde sua infância E quando uma regra geral desse tipo se 61 1 Tratado da natureza humana estabelece os homens tendem a estendêla para além dos princípios que a originaram Assim por exemplo os homens solteiros por mais depravados que sejam não podem deixar de se sentir chocados diante de exemplos de indecência e atrevimento nas mulheres E embora todas essas máximas tenham uma clara relação com a geração as mulheres que já passaram da idade de procriar não têm quanto a isso mais privilégio que aquelas que se encontram na flor de sua juventude e beleza Os homens possuem indubitavelmente uma noção implícita de que todas essas idéias de modéstia e decência têm uma relação com a geração pois não impõem as mesmas leis com a mesma força ao sexo masculino ao qual essa razão não se aplica A exceção nesse caso é evidente e aplicável a todos os homens e se funda em uma diferença facilmente apreciável que produz uma clara separação e disjunção entre as idéias Mas não é este o caso do que ocorre com as diferentes idades das mulheres e por essa razão embora os homens saibam que essas noções estão fundadas no interesse público a regra geral nos leva a ultrapassar o princípio original fazendonos estender as noções de modéstia para a totalidade do sexo feminino desde sua mais tenra infân cia até a mais extrema velhice e enfermidade 8 A coragem que é o ponto de honra entre os homens extrai seu mérito em grande medida do artifício assim como a castidade das mulheres embora também tenha algum fundamento na natureza como veremos adiante 9 Quanto às obrigações que pesam sobre o sexo masculino com rela ção à castidade podemos observar que de acordo com as noções ge rais das pessoas essas obrigações mantêm aproximadamente a mesma proporção em relação às das mulheres que as obrigações do direito internacional mantêm em relação às do direito natural É contrário ao interesse da sociedade civil que os homens tenham total liberdade de satisfazer seus apetites venéreos Mas como esse interesse é mais fra co que no caso do sexo feminino a obrigação moral dele decorrente deve ser proporcionalmente mais fraca Para provar essa afirmação basta recorrer à prática e aos sentimentos de todas as épocas e nações 612 Seção 1 Parte 3 Das outras virtudes e vícios Da origem das virtudes e dos vícios naturais 1 Passamos agora ao exame daquelas virtudes e vícios que são in teiramente naturais e independentes do artifício e da invenção dos homens Seu exame concluirá este sistema da moral 2 O principal motor ou princípio de ação da mente humana é o prazer e a dor e quando essas sensações são retiradas de nosso pensamento e sentimento feeling ficamos em grande medida incapazes de pai xão ou ação de desejo ou volição Os efeitos mais imediatos do prazer e da dor são os movimentos de propensão e de aversão da mente que se diversificam em volição em desejo e aversão tristeza e alegria es perança e medo conforme o prazer ou a dor vão mudando de situação e se tornando prováveis ou improváveis certos ou incertos ou confor me os consideremos como estando fora de nosso alcance no momen to presente Quando porém juntamente com isso os objetos que cau sam prazer ou dor adquirem uma relação conosco ou com outros eles ao mesmo tempo que continuam a excitar desejo e aversão tristeza e 6 1 3 Tratado da natureza humana alegria causam também as paixões indiretas de orgulho ou humil dade amor ou ódio que nesse caso têm uma dupla relação de im pressões e de idéias com a dor ou com o prazer 3 Já observamos que as distinções morais dependem inteiramente de certos sentimentos peculiares de dor e prazer e que toda qualidade mental existente em nós ou nos outros que nos dê uma satisfação quando a consideramos ou refletimos sobre ela será naturalmente virtuosa assim como toda coisa dessa natureza que nos provoque um desconforto será viciosa Ora uma vez que toda qualidade que dá pra zer produz orgulho quando localizada em nós e amor quando loca lizada nos outros e toda qualidade que produz desconforto desperta humildade quando localizada em nós e ódio quando nos outros se guese que esses dois pontos devem ser considerados equivalentes no que diz respeito às nossas qualidades mentais a virtude equivale ao poder de produzir amor ou orgulho e o vício ao poder de produzir humildade ou ódio Em todos os casos portanto devemos julgar a virtude ou o vício por esse poder assim podemos declarar que uma qualidade da mente é virtuosa quando causa amor ou orgulho e viciosa quando causa ódio ou humildade 4 Se uma ação é virtuosa ou viciosa é apenas enquanto signo de alguma qualidade ou caráter Tem que depender de princípios men tais duradouros que se estendem por toda a conduta compondo parte do caráter pessoal As ações que não procedem de nenhum princípio constante não influenciam o amor ou o ódio o orgulho ou a humil dade e conseqüentemente nunca são levadas em conta na moral 5 Essa reflexão é autoevidente e merece ser levada em conta por ser da maior importância neste assunto Em nossas investigações acer ca da origem da moral nunca devemos considerar uma ação isolada mas apenas a qualidade ou caráter dos quais a ação procede Apenas estes são duradouros o bastante para afetar nossos sentimentos sobre a pessoa É verdade que as ações são melhores indicadores de um ca ráter que as palavras ou mesmo que desejos ou sentimentos mas é 614 Livro 3 Parte 3 Seção 1 só enquanto indicadores que elas se fazem acompanhar de amor ou ódio elogio ou censura 6 Para descobrirmos a verdadeira origem da moral e do amor ou do ódio despertados por certos atributos mentais teremos de inves tigar profundamente o problema e comparar alguns princípios que já foram examinados e explicados 7 Podemos começar considerando novamente a natureza e a força da simpatia As mentes de todos os homens são similares em seus sen timentos feelings e operações ninguém poder ser movido por um afeto que não possa ocorrer também nas outras pessoas seja em que grau for Como cordas afinadas no mesmo tom em que o movimen to de uma se comunica às outras todos os afetos passam prontamente de uma pessoa a outra produzindo movimentos correspondentes em todas as criaturas humanas Quando vejo os efeitos da paixão na voz e nos gestos de alguém minha mente passa imediatamente desses efei tos a suas causas e forma uma idéia tão viva da paixão que essa idéia logo se converte na própria paixão De maneira semelhante quando percebo as causas de uma emoção minha mente é transportada a seus efeitos sendo movida por uma emoção semelhante Se eu presenciasse uma das mais terríveis operações cirúrgicas por certo antes mesmo de ela começar a preparação dos instrumentos a arrumação das ban dagens o aquecimento dos ferros com todos os sinais de ansiedade e preocupação no paciente e nos assistentes teriam um grande efeito em minha mente despertando os mais fortes sentimentos de piedade e terror Nenhuma paixão alheia se revela imediatamente à nossa men te Somos sensíveis apenas a suas causas ou efeitos É desses que infe rimos a paixão conseqüentemente são eles que geram nossa simpatia 8 Nosso sentido do belo depende enormemente desse princípio quando um certo objeto tem uma tendência a produzir prazer naque le que o possui é sempre visto como belo e um objeto que tende a produzir desprazer é desagradável e disforme Assim a comodidade de uma casa a fertilidade de um campo a força de um cavalo a capa 61 5 Tratado da natureza humana cidade segurança e velocidade de uma embarcação formam a princi pal beleza desses diversos objetos Nesses casos o objeto que cha mamos de belo agrada apenas por sua tendência a produzir um certo efeito Esse efeito é o prazer ou o benefício que traz para outra pes soa Ora o prazer de um estranho por quem não temos nenhuma amizade agradanos somente por simpatia É a esse princípio por tanto que se deve a beleza que encontramos em tudo que é útil Se refletirmos um pouco descobriremos facilmente quão importante é essa parte da beleza Sempre que um objeto tenha uma tendência a produzir prazer em quem o possui ou em outras palavras quando é uma causa própria de prazer ele seguramente agradará ao espectador por uma sutil simpatia com o possuinte A maioria das obras da arte humana são consideradas belas quando adequadas ao uso dos ho mens aliás muitas das produções da natureza derivam sua beleza dessa fonte Em muitos casos belo e atraente não são qualidades absolutas mas relativas e nos agradam exclusivamente por sua ten dência a produzir um fim que é agradável 1 9 Esse mesmo princípio produz em muitos casos nossos sentimen tos morais assim como os do belo Nenhuma virtude é mais aprecia da que a justiça e nenhum vício mais detestado que a injustiça tampouco existe uma qualidade que determine mais um caráter como digno de amor ou de ódio Ora a justiça só é uma virtude moral por que tem essa tendência para o bem da humanidade e na verdade não é senão uma invenção artificial com esse propósito Podese di zer o mesmo da obediência civil do direito internacional da modés tia e das boas maneiras Todas essas são meras invenções humanas que visam ao interesse da sociedade Seus inventores tinham em vista sobretudo seu próprio interesse Mas nós estendemos nossa aprova Decentior equus cujus astricta sunt ilia sed idem velocior Pulcher aspectu sit athleta cujus acertos exercitatio expressit idem certamini paratior Nunquam vera species ab utilitate dividitur Sed hoc quidem discernere modici judicii est Quinct lib 8 Quintiliano De Institutione Oratoria livro VIII cap 3 O cavalo de flancos estreitos é mais formoso mas também mais veloz O atleta cujos músculos se tornaram pronunciados graças ao exercício tem o aspecto mais belo mas também está mais bem preparado para a luta Na verdade a aparência nunca está separada da utilidade Mas para discernir essa relação basta um juízo mediano NT 61 6 Livro 3 Parte 3 Seção 1 ção dessas invenções até os países e as épocas mais distantes muito além de nosso próprio interesse E como sempre se fizeram acompa nhar de um sentimento muito forte de moralidade devemos admitir que basta refletirmos sobre a tendência de um caráter ou qualidade mental para que experimentemos os sentimentos de aprovação e cen sura Ora como o meio para se obter um fim só pode ser agradável quando o fim é agradável e como o bem da sociedade quando nosso próprio interesse ou o de nossos amigos não está envolvido só agra da por simpatia essa simpatia é a fonte do apreço que temos por to das as virtudes artificiais 10 Vemos assim que a simpatia é um princípio muito poderoso da natureza humana que influencia enormemente nosso gosto do belo e que produz nosso sentimento da moralidade em todas as virtudes artificiais Baseandonos nisso podemos supor que é ela também que dá origem a muitas das outras virtudes e que certas qualidades ob têm nossa aprovação em virtude de sua tendência para promover o bem da humanidade Essa suposição se torna necessariamente uma certeza quando descobrimos que a maior parte dessas qualidades que naturalmente aprovamos têm de fato essa tendência e tornam os ho mens bons membros da sociedade ao passo que as qualidades que naturalmente desaprovamos têm uma tendência contrária e tornam qualquer relacionamento com a pessoa perigoso ou desagradável Por que tendo descoberto que essas tendências são fortes o suficiente para produzir os mais fortes sentimentos morais não seria razoável nes ses casos buscar outra causa para nossa aprovação ou censura pois tratase de uma máxima inviolável da filosofia que quando uma cau sa particular é suficiente para explicar um efeito devemos ficar satis feitos com ela em vez de multiplicar causas sem necessidade Rea lizamos com sucesso alguns experimentos acerca das virtudes artificiais em que a tendência das qualidades para o bem da sociedade era a única causa de nossa aprovação sem que pudéssemos suspeitar da concor rência de outros princípios Isso nos ensina a força daquele princípio E sempre que ele pode se aplicar e a qualidade aprovada é realmente 61 7 Tratado da natureza humana benéfica para a sociedade um verdadeiro filósofo nunca exigirá outro princípio para explicar a mais intensa aprovação e apreço 1 1 Ninguém pode duvidar de que muitas das virtudes naturais têm essa tendência para o bem da sociedade Docilidade beneficência ca ridade generosidade clemência moderação e eqüidade ocupam o lugar de maior destaque entre as qualidades morais e são comumente denominadas as virtudes sociais para marcar sua tendência para o bem da sociedade Tanto é assim que alguns filósofos chegaram a repre sentar todas as distinções morais como efeitos do artifício e da edu cação políticos habilidosos teriam se utilizado das noções de honra e vergonha para tentar conter as turbulentas paixões dos homens e fazêlos agir para o bem público Entretanto esse sistema não é coe rente com a experiência Pois primeiramente existem outras virtudes e vícios além daqueles que apresentam essa tendência para o benefí cio ou para o prejuízo do público Em segundo lugar se os homens não tivessem um sentimento natural de aprovação e reprovação este nunca poderia ser despertado pelos políticos e as palavras louvável elogiável condenável e odioso seriam tão pouco inteligíveis como se per tencessem a uma língua inteiramente desconhecida de nós como já observamos Mas embora esse sistema seja falso pode nos ensinar que as distinções morais surgem em grande parte da tendência das qualidades e dos caracteres para promover o interesse da sociedade e é nossa consideração por esse interesse que faz com que os apro vemos ou desaprovemos Ora só temos essa consideração ampla pela sociedade em virtude da simpatia conseqüentemente é esse princí pio que nos leva a sair de nós mesmos proporcionandonos tanto prazer ou desprazer diante de caracteres que sejam úteis ou nocivos para a sociedade quanto teríamos se eles favorecessem nosso pró prio benefício ou prejuízo 12 A única diferença entre as virtudes naturais e a justiça está em que o bem resultante das primeiras deriva de cada ato isolado sendo objeto de alguma paixão natural ao passo que um ato singular de jus tiça considerado isoladamente pode muitas vezes ser contrário ao 61 8 Livro 3 Parte 3 Seção 1 bem público o que é vantajoso é apenas a concorrência de todos os homens em um esquema ou sistema geral de ações Quando recon forto pessoas que passam por algum sofrimento o motivo que me leva a fazêlo é meu respeito humano natural e até onde vai meu au xílio estarei promovendo a felicidade de meus semelhantes Se exa minarmos no entanto todos os casos que se apresentam diante dos tribunais de justiça veremos que considerandose cada um separa damente tomar uma decisão contrária às leis da justiça seria com igual freqüência um exemplo de humanitarismo quanto tomar uma deci são conforme a elas Os juízes tiram do pobre para dar ao rico confe rem ao vagabundo os frutos do esforço do trabalhador e põem nas mãos do depravado os meios de causar danos a si mesmo e aos de mais Entretanto o conjunto do sistema do direito e da justiça é van tajoso para a sociedade e para cada indivíduo e foi tendo em vista essa vantagem que os homens o estabeleceram por meio de suas convenções voluntárias Após ter sido estabelecido por essas conven ções tal sistema se faz naturalmente acompanhar de um forte senti mento de moralidade que só pode provir de nossa simpatia com os interesses da sociedade Não precisamos de outra explicação para com preender esse apreço que acompanha as virtudes naturais que ten dem a promover o bem público 13 Devo ainda acrescentar que há diversas circunstâncias que tor nam essa hipótese muito mais provável em relação às virtudes natu rais que em relação às artificiais É certo que a imaginação é mais afeta da pelo particular que pelo geral e é sempre mais difícil estimular os sentimentos quando seus objetos são em uma certa medida vagos e indeterminados Ora nem todo ato particular de justiça é benéfico para a sociedade mas apenas o conjunto do plano ou sistema da mesma forma talvez não seja toda pessoa individual por quem temos uma preocupação que é beneficiada pela justiça mas apenas a socie dade como um todo Ao contrário todo ato particular de generosidade ou de ajuda ao trabalhador e ao necessitado é benéfico e é benéfico para uma pessoa particular que de fato o merece Por isso é mais 619 Tratado da natureza humana natural pensar que as tendências desta última virtude e não as da primeira afetarão nossos sentimentos e inspirarão nossa aprovação e portanto já que constatamos que a aprovação da primeira deriva de suas tendências podemos com ainda mais razão atribuir a mesma causa à aprovação desta última Se em meio a um determinado nú mero de efeitos similares pudermos descobrir a causa de um deles deveremos aplicar essa causa a todos os outros efeitos que possam ser explicados por ela porém mais ainda se esses outros efeitos esti verem acompanhados de circunstâncias peculiares que facilitem a operação dessa causa 14 Antes de seguir adiante devo observar a esse respeito duas cir cunstâncias dignas de nota que poderiam ser vistas como objeções ao presente sistema A primeira explicase do seguinte modo Quan do uma qualidade ou caráter tem uma tendência a promover o bem da humanidade ela nos agrada e por isso a aprovamos uma vez que apresenta a idéia vívida de prazer que nos afeta por simpatia e é em si mesma uma espécie de prazer Mas como essa simpatia é muito va riável podese pensar que nossos sentimentos morais têm de admi tir as mesmas variações Simpatizamos mais com as pessoas que es tão próximas a nós que com as que estão distantes simpatizamos mais com nossos conhecidos que com estranhos mais com nossos con terrâneos que com estrangeiros Mas apesar dessas variações de nos sa simpatia damos a mesma aprovação às mesmas qualidades morais seja na China seja na Inglaterra Essas qualidades parecem igualmente virtuosas e inspiram o mesmo apreço em um espectador judicioso Nossa estima portanto não procede da simpatia 1 5 A isso respondo a aprovação das qualidades morais com toda cer teza não é derivada da razão ou de uma comparação de idéias proce de inteiramente de um gosto moral e de certos sentimentos de pra zer ou desgosto que surgem da contemplação e da visão de qualidades ou caracteres particulares Ora é evidente que esses sentimentos seja qual for sua origem devem variar de acordo com a distância ou proximidade dos objetos não posso sentir um prazer igualmente 620 Livro 3 Parte 3 Seção 1 vívido pelas virtudes de uma pessoa que viveu na Grécia há dois mil anos e pelas de um amigo de longa data Todavia não digo que sinto mais apreço por um que por outro e portanto se for uma objeção o fato de que o sentimento varia sem que haja uma variação do apreço essa objeção deve ter a mesma força contra qualquer outro sistema além deste da simpatia Mas se considerarmos corretamente a ques tão veremos que essa objeção não tem força alguma aliás é a questão mais fácil do mundo de se explicar Nossa situação tanto no que se refere a pessoas como a coisas sofre uma flutuação contínua um ho mem distante de nós pode dentro de pouco tempo tornarse um co nhecido íntimo Além disso cada homem particular ocupa uma po sição peculiar em relação aos outros e seria impossível conseguir conversar com alguém em termos razoáveis se cada um de nós con siderasse os caracteres e as pessoas somente tais como nos aparecem de nosso ponto de vista particular Portanto para impedir essas con tínuas contradições e chegarmos a um julgamento mais estável das coi sas fixamonos em algum ponto de vista firme e geral e em nossos pensamentos sempre nos situamos nesse ponto de vista qualquer que seja nossa situação presente Da mesma forma a beleza externa é determinada meramente pelo prazer e é evidente que um belo sem blante não pode proporcionar o mesmo prazer quando contemplado a uma distância de vinte passos do que se a pessoa se aproxima de nós Não dizemos entretanto que ela nos parece menos bela pois sabemos que efeito terá nessa posição e por meio dessa reflexão corrigimos sua aparência momentânea 16 Em geral todos os sentimentos de censura ou aprovação são va riáveis de acordo com nossa situação de proximidade ou de distân cia em relação à pessoa censurada ou elogiada e de acordo também com a disposição presente da mente Mas em nossas decisões gerais não levamos em conta essas variações embora continuemos aplican do termos que expressam nosso agrado ou desagrado exatamente como se permanecêssemos em um único ponto de vista A experiência logo nos ensina esse método de corrigir nossos sentimentos ou ao me 621 Tratado da natureza humana nos de corrigir nossa linguagem se os sentimentos são mais obsti nados e inflexíveis Nosso criado quando esforçado e leal pode des pertar sentimentos mais fortes de amor e afeição que os despertados por Marcus Brutus tal como a história o representa mas nem por isso dizemos que o caráter do primeiro é mais louvável que o do segun do Sabemos que se nos aproximássemos igualmente daquele fa moso patriota ele nos inspiraria um grau muito superior de afeição e admiração Correções como essa são comuns para todos os sen tidos na verdade seria impossível fazer uso da linguagem ou co municar nossos sentimentos uns aos outros se não corrigíssemos as aparências momentâneas das coisas desprezando nossa situação presente 1 7 É portanto pela influência que o caráter ou as qualidades de uma pessoa exercem sobre aqueles que têm algum relacionamento com ela que a censuramos ou elogiamos Não consideramos se aqueles que são afetados por essas qualidades são nossos conhecidos ou estranhos nossos conterrâneos ou estrangeiros Mais ainda desprezamos nos so próprio interesse nesses juízos gerais e não censuramos um ho mem por se opor a um de nossos propósitos quando seu próprio in teresse está particularmente em jogo Toleramos um certo grau de egoísmo nos homens porque sabemos que isso é algo inseparável da natureza humana e inerente à nossa estrutura e constituição Por meio dessa reflexão corrigimos aqueles sentimentos de censura que sur gem tão naturalmente diante de qualquer oposição 1 8 Mas embora o princípio geral de nossa condenação ou elogio pos sa ser corrigido por esses outros princípios é certo que estes não são completamente eficazes e nossas paixões com freqüência não correspondem de todo à presente teoria É raro que os homens amem ardentemente aquilo que está longe deles e que de nenhum modo re verte para seu benefício particular e é igualmente raro encontrar pes soas que sejam capazes de perdoar alguém que se opõe a seus inte resses por mais justificável que essa oposição possa ser segundo as regras gerais da moral Nesse caso contentamonos em dizer que a 622 Livro 3 Parte 3 Seção 1 razão exige essa conduta imparcial mas que raramente conseguimos nos conformar com ela já que nossas paixões não seguem facilmen te a determinação de nosso juízo Será fácil compreender essa ma neira de falar se considerarmos aquilo que dissemos anteriormente a respeito dessa razão que é capaz de se opor a nossas paixões e que descobrimos não ser senão uma determinação calma e geral das pai xões fundada em uma visão ou reflexão distante Quando nossos juízos sobre as pessoas se baseiam unicamente na tendência de seu caráter a beneficiar a nós ou a nossos amigos a sociedade e o convívio social contradizem a tal ponto nossos sentimentos e as incessantes mudanças de nossa situação produzem em nós uma tal incerteza que buscamos algum outro critério para o mérito e o demérito que não admita tanta variação Assim desligados de nossa primeira ati tude o meio mais conveniente que temos de nos determinar nova mente é por uma simpatia com aqueles que têm um relacionamen to com a pessoa que estamos considerando Essa simpatia está longe de ser tão vívida quanto a que sentíamos quando o que estava em jogo era nosso próprio interesse ou o de nossos amigos particula res nem influencia tanto nosso amor e ódio Mas como é igualmente conforme a nossos princípios calmos e gerais dizse que tem igual autoridade sobre nossa razão comandando nosso juízo e opinião Censuramos tanto aquela má ação sobre a qual lemos nos livros de história quanto a que foi praticada outro dia em nossa vizinhança Isso significa que sabemos pela reflexão que a primeira ação des pertaria sentimentos tão fortes de desaprovação quanto a última caso estivesse na mesma situação 19 Passo agora à segunda circunstância digna de nota que me propus analisar Quando uma pessoa possui um caráter cuja tendência natu ral é benéfica para a sociedade consideramola virtuosa e deleitamo nos com a contemplação de seu caráter mesmo que acidentes parti culares impossibilitem sua ação impedindoa de servir a seus amigos e a seu país A virtude em andrajos ainda é virtude e continua inspi rando amor mesmo que o homem esteja preso em um calabouço ou 623 Tratado da natureza humana perdido no deserto onde ela não pode mais se exercer por meio de ações estando perdida para o mundo Ora isso pode ser considerado uma objeção ao presente sistema A simpatia nos dá um interesse pelo bem da humanidade e se fosse a simpatia a fonte de nosso apreço pela virtude esse sentimento de aprovação só poderia ter lugar nos casos em que a virtude efetivamente atingisse seu fim e fosse benéfica para a humanidade Quando não consegue alcançar seu fim ela seria apenas um meio imperfeito e portanto nunca poderia adquirir um mérito em razão desse fim A bondade de um fim só poderia conferir um mérito aos meios que se completam e realmente produzem esse fim 20 A isso podemos replicar que quando um objeto por todas as suas partes é adequado para se alcançar um fim agradável ele nos pro porciona naturalmente um prazer e é considerado belo ainda que fal tem certas circunstâncias externas para tornálo inteiramente eficaz É suficiente que o próprio objeto esteja completo Uma casa planeja da com grande critério para proporcionar todas as comodidades da vida nos agrada por esse motivo mesmo que saibamos que ninguém jamais irá morar nela Um solo fértil e um clima ameno aprazemnos quando pensamos na felicidade que proporcionariam aos habitantes embora neste momento a região esteja deserta e desabitada Um ho mem cujos membros e forma física prometem força e atividade é con siderado belo mesmo condenado à prisão perpétua A imaginação tem um conjunto próprio de ações de que dependem em grande medida nossos sentimentos do belo Essas paixões são movidas por graus de vividez e de força inferiores aos necessários para a crença e indepen dentes da existência real de seus objetos Quando um caráter sob todos os aspectos é apropriado para beneficiar a sociedade a imagi nação passa facilmente da causa ao efeito sem considerar que ainda faltam algumas circunstâncias para tornar completa a causa As re gras gerais criam uma espécie de probabilidade que influencia às ve zes o juízo e sempre a imaginação 21 É verdade que quando a causa está completa e uma boa dispo sição se acompanha da sorte que a torna realmente benéfica para a 624 Livro 3 Parte 3 Seção 1 sociedade ela proporciona ao espectador um prazer mais intenso e se faz acompanhar de uma simpatia mais viva Somos mais fortemente afetados por ela entretanto não dizemos que é mais virtuosa ou que a apreciamos mais Sabemos que um revés da fortuna pode tornar a disposição benévola completamente impotente por isso separamos tanto quanto possível a sorte da disposição O mes mo ocorre quando corrigimos as diferenças que se produzem em nossos sentimentos de virtude em razão das diferentes distâncias do caráter virtuoso em relação a nós As paixões nem sempre se guem nossas correções mas essas correções são suficientes para regular nossas noções abstratas sendo as únicas levadas em conta quando nos pronunciamos em geral a respeito dos graus de vício e virtude 22 Os críticos observam que todas as palavras ou frases difíceis de pronunciar são desagradáveis ao ouvido Tanto faz se uma pessoa ouve alguém pronunciálas ou se as lê em silêncio Quando percorro um livro com os olhos imagino ouvir todas as palavras e também por força da imaginação participo do desprazer que sua enunciação da ria a quem as pronunciasse O desprazer não é real mas como essa composição de palavras tem uma tendência natural a produzilo isso basta para afetar a mente com um sentimento doloroso tornando o estilo áspero e desagradável Algo semelhante ocorre quando uma qualidade real por circunstâncias acidentais tornase impotente e fica privada de sua influência natural sobre a sociedade 23 Com base nesses princípios podemos facilmente eliminar qual quer contradição que pareça haver entre a simpatia extensa de que de pendem nossos sentimentos de virtude e a generosidade restrita que diversas vezes observei ser natural aos homens e é suposta pela jus tiça e pela propriedade de acordo com o raciocínio precedente Mi nha simpatia por outra pessoa pode me dar um sentimento de dor e desaprovação quando se apresenta um objeto que tenha uma tendên cia a lhe causar um desprazer mesmo que talvez eu não esteja dis posto a sacrificar em nada meu próprio interesse ou a contrariar 625 Tratado da natureza humana nenhuma de minhas paixões para satisfazêla Uma casa pode me des contentar por não ter sido bem projetada para dar conforto ao pro prietário entretanto posso me recusar a dar um centavo sequer para sua reforma Os sentimentos têm de tocar o coração para controlar nossas paixões mas não precisam ir além da imaginação para influen ciar nosso gosto Quando uma edificação parece aos olhos despro porcional e instável tornase feia e desagradável mesmo que esteja mos inteiramente convencidos da solidez da construção É uma espécie de medo que causa esse sentimento de desaprovação mas a paixão não é a mesma que sentimos quando obrigados a ficar junto a um muro que realmente pensamos ser instável e pouco seguro As tendências aparentes dos objetos afetam a mente e as emoções que elas despertam são de um tipo semelhante às procedentes das con seqüências reais dos objetos mas sua sensação feeling é diferente Mais ainda essas emoções são tão diferentes em sua sensação feel ing que muitas vezes podem ser contrárias sem se destruir reciproca mente é o que ocorre quando as fortificações de uma cidade inimiga são consideradas belas em virtude da sua solidez embora pudéssemos desejar que fossem inteiramente destruídas A imaginação se apega às visões gerais das coisas e faz uma distinção entre as sensações feelings delas decorrentes e as que se devem a nossa situação parti cular e momentânea 24 Se examinarmos os panegíricos que comumente se fazem dos grandes homens veremos que a maior parte das qualidades a eles atribuídas podem ser divididas em dois tipos as que lhes permitem cumprir seu papel na sociedade e as que os tornam úteis a si mesmos e capazes de promover seu próprio interesse Celebramse sua prudên cia temperança frugalidade aplicação assiduidade arrojo destreza assim como sua generosidade e seu respeito humano Se alguma vez somos indulgentes com algum atributo que torne um homem incapaz de ser alguém na vida é com o da preguiça de fato não consideramos que a preguiça prive alguém de seu talento e capacidade mas apenas que 626 Livro 3 Parte 3 Seção 1 suspende seu exercício e isso sem inconveniente algum para a pró pria pessoa já que ocorre em certa medida por sua própria escolha Entretanto a preguiça é sempre tida como um vício e bastante gra ve quando excessiva Ninguém quer reconhecer que seu amigo é pre guiçoso a menos que isso seja necessário para defender seu caráter em pontos mais importantes Ele poderia ser alguém na vida dizem se quisesse se esforçar é muito inteligente tem uma capacidade de concepção bastante aguçada e ótima memória mas detesta os negó cios e não se interessa por sua riqueza E há quem chegue a fazer disso motivo de vaidade embora com ar de quem confessa uma fal ta porque pensa que sua incapacidade para o trabalho esconde qua lidades muito mais nobres tais como um espírito filosófico um gos to refinado uma inteligência sutil ou uma inclinação para o prazer e o convívio social Mas tomemos qualquer outro caso suponhamos uma qualidade que ao mesmo tempo em que não indica a existência de qualidades melhores torna um homem sempre incapaz para o tra balho e prejudique seu interesse por exemplo um entendimento con fuso e um juízo errôneo sobre tudo na vida inconstância e falta de determinação ou uma inabilidade para gerir pessoas e negócios To das essas qualidades são reconhecidamente imperfeições de caráter e muitos homens prefeririam confessar os maiores crimes a passar pela suspeita de ter tais imperfeições 25 É uma sorte quando em nossas investigações filosóficas encon tramos o mesmo fenômeno diversificado por uma variedade de cir cunstâncias pois quando descobrimos o que é comum a elas pode mos estar mais certos da verdade da hipótese que utilizamos para explicálo Se só aquilo que é benéfico para a sociedade fosse consi derado virtude ainda assim estou convencido de que deveríamos acei tar a explicação anterior do sentido moral e isso com base em uma evidência suficiente mas essa evidência deve aumentar ainda mais quando descobrimos outros tipos de virtude que não admitem outra explicação que não provenha dessa hipótese Vamos supor um ho mem cujas qualidades sociais não sejam muito deficientes mas que 62 7 Tratado da natureza humana tenha a seu favor sobretudo sua aptidão para os negócios que foi o que lhe permitiu abrir caminho em meio às maiores dificuldades con duzindo as questões mais delicadas com uma singular habilidade e prudência Imediatamente vejo crescer em mim um apreço por ele sua companhia me dá grande satisfação e antes mesmo de conhecê lo melhor prefiro prestar um serviço a ele que a qualquer pessoa cujo caráter seja igual em todos os outros pontos mas deficiente quanto a esse aspecto Nesse caso as qualidades que me agradam são todas consideradas úteis à pessoa e com uma tendência a promover seu in teresse e satisfação São vistas apenas como meios para um fim e me agradam segundo sua adequação para esse fim O fim portanto tem de ser agradável para mim Mas o que torna o fim agradável A pes soa me é estranha não estou de modo algum interessado nela nem tenho nenhuma obrigação para com ela Sua felicidade não me concerne mais que a de qualquer ser humano e aliás que a de qual quer criatura sensível Ou seja só me afeta por simpatia Em virtude desse princípio sempre que descubro alguma coisa que possa causar sua felicidade e lhe fazer um bem ou que seja efeito destes entro tão profundamente nessa felicidade que experimento uma sensível emo ção A presença de qualidades que tenham uma tendência a promovê la exerce um efeito agradável em minha imaginação e inspira meu amor e apreço 26 Essa teoria pode servir para explicar por que os mesmos atributos em todos os casos produzem tanto orgulho como amor e tanto hu mildade como ódio e por que o mesmo homem é sempre virtuoso ou vicioso bemsucedido ou desprezível para os outros quando o é para si mesmo Uma pessoa em quem descobrimos uma paixão ou hábito que originalmente só incomoda a ela mesma sempre se torna desagradável para nós apenas por isso por outro lado uma pessoa cujo caráter só é perigoso e desagradável para os outros nunca pode estar satisfeita consigo mesma enquanto tiver consciência dessa des vantagem Isso pode ser observado não somente em relação ao cará ter e à conduta mas até nos detalhes mais insignificantes Uma tosse 628 Livro 3 Parte 3 Seção 1 violenta em outra pessoa nos dá um malestar embora em si mesma não nos afete em nada Um homem ficará humilhado se lhe disser mos que tem mau hálito embora isso evidentemente não seja um in cômodo para ele Nossa fantasia facilmente muda sua situação e quer considerando a nós mesmos tais como aparecemos aos outros quer ven do os outros tais como eles sentem a si mesmos ela nos faz participar de sentimentos que não nos pertencem de forma alguma e só podem nos interessar em virtude da simpatia E às vezes levamos tão longe essa simpatia que chegamos a sentir um desconforto por possuirmos uma qualidade que é conveniente para nós só porque essa qualidade é incômoda para outras pessoas e nos torna desagradáveis a seus olhos mesmo que não tenhamos nenhum interesse em nos tornar agradá veis a elas 27 Muitos sistemas acerca da moral foram propostos por filósofos de todas as épocas mas se os examinarmos com rigor apenas dois deles merecem nossa atenção O bem e o mal morais certamente se distinguem por nossos sentimentos não pela razão mas esses senti mentos podem surgir seja do simples aspecto e aparência de um ca ráter ou paixão seja da reflexão sobre sua tendência a trazer o bem da humanidade e dos indivíduos Minha opinião é que essas duas cau sas se entrelaçam em nossos juízos morais do mesmo modo como se entrelaçam em nossas decisões acerca de quase todos os tipos de beleza exterior Mas também sou da opinião de que a reflexão sobre as tendências das ações tem de longe a maior influência e determina as grandes linhas de nosso dever Entretanto há exemplos de casos menos importantes em que é o gosto ou sentimento imediato que produz nossa aprovação A espirituosidade ou um certo compor tamento casual e desprendido são qualidades imediatamente agradáveis aos outros inspirando seu amor e apreço Algumas dessas qualidades produzem satisfação nos demais por meio de princípios particulares originais à natureza humana que não podem ser explicados outras podem ser reduzidas a princípios mais gerais Isso ficará mais claro após uma análise detalhada 629 Tratado da natureza humana 28 Assim como algumas qualidades adquirem seu mérito do fato de serem imediatamente agradáveis aos outros mesmo que não tenham nenhuma tendência para promover o interesse público há outras que são denominadas virtuosas por serem imediatamente agradáveis à pró pria pessoa Cada paixão e operação da mente tem uma sensação feeling particular que deverá ser agradável ou desagradável No pri meiro caso ela será virtuosa no segundo viciosa Essa sensação feeling particular constitui a própria natureza da paixão por isso não precisa ser explicada 29 Mas embora a distinção entre vício e virtude possa parecer de correr diretamente do prazer ou desprazer imediato que as qualidades particulares causam em nós ou nas outras pessoas é fácil observar que ela também depende consideravelmente do princípio da simpa tia em que tantas vezes insisti Aprovamos uma pessoa que possui qualidades imediatamente agradáveis àqueles com quem tem algum re lacionamento mesmo que nunca tenhamos extraído nenhum prazer dessas qualidades Também aprovamos a pessoa que possui qualidades imediatamente agradáveis a si mesma ainda que não tenham utilidade para nenhum mortal Para explicar esses fatos temos de recorrer aos princípios anteriormente mencionados 30 Façamos assim uma revisão geral da presente hipótese Toda qua lidade da mente que produz prazer por sua mera consideração é de nominada virtuosa e toda qualidade que produz dor é classificada de viciosa Esse prazer e essa dor podem surgir de quatro fontes dife rentes Extraímos prazer da visão de um caráter que é naturalmente capaz de ser útil aos outros ou à própria pessoa ou que é agradável aos outros ou à própria pessoa Talvez cause surpresa o fato de que em meio a todos esses interesses e prazeres tenhamos esquecido os nossos que nos tocam tão de perto em todas as outras ocasiões So lucionaremos facilmente essa dúvida porém quando considerarmos que como o prazer e o interesse de cada pessoa particular é diferen te é impossível que os homens jamais pudessem concordar em seus sentimentos e juízos a menos que escolhessem algum ponto de vista 630 Livro 3 Parte 3 Seção 2 comum a partir do qual pudessem examinar seu objeto e que pu desse fazer esse objeto parecer o mesmo para todos eles Ora quan do julgamos um caráter o único interesse ou prazer que parece o mes mo para todo espectador é o da própria pessoa cujo caráter está sendo examinado ou o daqueles que têm alguma conexão com ela E em bora esses interesses e prazeres nos afetem de maneira mais fraca que os nossos são mais constantes e universais e por isso contrabalan çam estes últimos até mesmo na prática além de serem os únicos ad mitidos na especulação como critérios de virtude e de moralidade Apenas eles produzem essa sensação ou sentimento particular de que dependem as distinções morais 3 1 Quanto ao valor positivo ou negativo da virtude ou do vício são uma conseqüência evidente dos sentimentos de prazer e desprazer Esses sentimentos produzem amor ou ódio e o amor ou ódio pela constituição original da paixão humana acompanhamse de benevo lência ou de raiva isto é de um desejo de tornar feliz a pessoa que amamos e infeliz a que odiamos Já tratamos dessa questão de ma neira mais completa em outra ocasião Seção 2 Da grandeza de espírito 1 Convém agora ilustrar esse sistema geral da moral aplicandoo a casos particulares de virtude e de vício e mostrando como seu mérito ou demérito decorre das quatro fontes aqui explicadas Começaremos examinando as paixões do orgulho e da humildade consideraremos o vício ou a virtude que há em seus excessos ou em sua justa proporção Um orgulho excessivo ou uma opinião presunçosa de nós mesmos é sempre considerado um vício sendo universalmente odiado a mo déstia ao contrário ou um justo sentido de nossa fraqueza é conside rada uma virtude ganhando a boa vontade de todos Das quatro fon tes de distinções morais esta deve ser atribuída à terceira ou seja ao fato de uma qualidade ser agradável ou desagradável para as outras 63 1 Tratado da natureza humana pessoas sem a necessidade de reflexão alguma sobre a tendência dessa qualidade 2 Para provar essa afirmação devemos recorrer a dois princípios bas tante manifestos na natureza humana O primeiro é a simpatia ou seja a comunicação de sentimentos e paixões anteriormente mencionada Tão estreita e íntima é a correspondência entre as almas dos homens que assim que uma pessoa se aproxima de mim ela me transmite todas as suas opiniões influenciando meu julgamento em maior ou menor grau Embora muitas vezes minha simpatia por ela não che gue ao ponto de me fazer mudar inteiramente meus sentimentos e modo de pensar raramente é tão fraca que não perturbe o tranqüilo curso de meu pensamento dando autoridade à opinião que me é re comendada por seu assentimento e aprovação Pouco importa sobre que assunto ela e eu estamos pensando Quer estejamos julgando acerca de uma pessoa completamente indiferente quer de meu pró prio caráter minha simpatia dá a mesma força a sua decisão e até seus sentimentos sobre seu próprio mérito fazem que eu a considere da mesma perspectiva que ela toma para considerar a si mesma 3 Esse princípio da simpatia tem uma natureza tão poderosa e su gestiva que intervém em quase todos os nossos sentimentos e pai xões e freqüentemente se dá sob a aparência de seu contrário Pois podemos notar que quando uma pessoa se contrapõe a mim em uma opinião a que estou fortemente apegado e desperta minha paixão em virtude dessa contradição sempre sinto por ela um certo grau de sim patia e é a isso que se deve minha comoção Observamos aqui um evi dente conflito ou choque entre princípios e paixões opostos De um lado está aquela paixão ou sentimento que me é natural e notese que quanto mais forte a paixão maior a comoção Do outro lado tam bém tem de haver alguma paixão ou sentimento e essa paixão só pode proceder da simpatia Os sentimentos alheios nunca poderiam nos afetar se não se tornassem em certa medida nossos sentimentos e nesse caso eles agem sobre nós combatendo e intensificando nossas paixões como se tivessem sido originalmente derivados de nosso 632 Livro 3 Parte 3 Seção 2 próprio caráter e disposição Enquanto permanecem ocultos na mente alheia não podem ter nenhuma influência sobre nós e mesmo quan do conhecidos se não fossem além da imaginação ou da concepção esta faculdade está tão acostumada a toda espécie de objetos que uma mera idéia ainda que contrária a nossos sentimentos e inclinações nunca seria sozinha capaz de nos afetar 4 O segundo princípio para o qual chamarei a atenção é o da com paração ou seja a variação de nossos juízos acerca dos objetos se gundo a proporção entre estes e aqueles com os quais os compara mos Julgamos os objetos mais por comparação que por seu mérito ou valor intrínseco quando opomos uma coisa a outra da mesma es pécie e que seja superior consideramola medíocre Mas nenhuma comparação é mais óbvia que a comparação conosco por isso ela tem lugar em todas as ocasiões e influencia a maioria de nossas paixões Esse tipo de comparação é diretamente contrário à simpatia em seu modo de operar como já observamos ao tratar da compaixão e da ma levolência 2 Em qualquer tipo de comparação o primeiro objeto sempre faz que obtenhamos do segundo com que é comparado uma sensação contrária à que surge quando ele próprio é considerado direta e imediatamente A considera ção direta do prazer de outrem naturalmente nos dá prazer e conseqüente mente produz dor quando esse prazer é comparado com o nosso A dor alheia considerada em si mesma é dolorosa para nós mas aumenta a idéia de nossa própria felicidade dandonos prazer 5 Portanto como esses princípios da simpatia e de uma compara ção conosco são diretamente contrários vale a pena considerar que regras gerais se podem formar para explicar a prevalência de um ou de outro princípio à parte a influência do temperamento particular da pessoa em questão Suponhamos que eu esteja agora seguro em terra firme e queira extrair algum prazer dessa consideração para isso devo pensar na infeliz condição daqueles que se encontram em meio a uma tempestade em altomar esforçandome para tornar essa idéia 2 Livro 2 Parte 2 Seção 8 633 Tratado da natureza humana tão forte e viva quanto possível para melhor sentir minha própria felicidade Contudo por mais que me esforce a comparação nunca terá a mesma eficácia que teria se eu estivesse realmente3 na beira da praia e visse ao longe um navio sendo jogado de um lado para o ou tro pela tempestade correndo um perigo constante de se chocar con tra um rochedo ou um banco de areia Mas suponhamos que essa idéia se torne ainda mais viva Suponhamos que o navio seja trazido para tão perto de mim que eu seja capaz de perceber distintamente o hor ror estampado nas faces dos marinheiros e passageiros que ouça seus gritos de lamento e veja os amigos mais queridos dando seu último adeus ou abraçandose para morrer nos braços uns dos outros Nin guém pode ter um coração tão selvagem a ponto de extrair o menor prazer de tal espetáculo ou resistir aos impulsos da mais terna compai xão e simpatia É evidente portanto que há um meiotermo neste caso se a idéia for fraca demais não terá nenhuma influência quando com parada à nossa situação em contrapartida se for demasiadamente forte agirá sobre nós inteiramente por simpatia que é contrária à comparação A simpatia sendo a conversão de uma idéia em uma impressão requer mais força e vividez que a necessária para a com paração 6 Tudo isso se aplica facilmente ao tema presente Rebaixamonos muito a nossos próprios olhos quando estamos em presença de uma pessoa importante ou de um grande gênio e essa humildade consti tui um elemento significativo daquele respeito que mostramos por nossos superiores de acordo com nossos4 raciocínios anteriores acerca 3 Suave mari magno turbantibus aequora ventis E terra magnum alterius spectare laborem Non quia vexari quenquam est jucunda voluptas Sed quibus ipse malis careas quia cernere suav est Lucret Lucrécio De Rerum Natura II w 14 É bom quando os ventos revolvem a superfície do grande mar ver da terra os rudes trabalhos por que estão passando os outros não porque haja qualquer prazer na desgraça de alguém mas porque é bom presenciar os males que não se sofrem Tradução de Agostinho da Silva São Paulo Abril Cultural 1973 NT 4 Livro 2 Pane 2 Seção 10 634 Livro 3 Parte 3 Seção 2 dessa paixão Às vezes a comparação chega a gerar inveja e ódio mas na maior parte dos homens limitase a provocar respeito e apreço Como a simpatia tem uma influência tão poderosa sobre a mente humana ela faz que o orgulho tenha em certa medida o mesmo efeito que o mérito e ao fazernos penetrar nos elevados sentimentos que o orgulhoso tem de si mesmo propõe essa comparação que é tão hu milhante e desagradável Nosso juízo não acompanha inteiramente o conceito lisonjeiro que o orgulhoso faz de si mesmo mesmo assim é afetado a ponto de admitir a idéia por ele apresentada dando a ela uma influência superior à das vagas concepções da imaginação Um homem que por mero capricho decidisse formar a idéia de alguém dotado de um mérito muito superior ao seu não se sentiria humilha do por essa ficção mas quando estamos diante de uma pessoa que sabemos ter menos mérito se observamos nela um grau extraordi nário de orgulho e presunção a firme persuasão que ela tem de seu próprio mérito toma conta da imaginação e nos diminui perante nós mesmos como se a pessoa realmente possuísse todas as qualidades que tão prodigamente atribui a si mesma Nossa idéia se encontra aqui precisamente naquele meiotermo necessário para que possa agir sobre nós por comparação Se essa idéia fosse acompanhada de cren ça e se a pessoa parecesse ter exatamente o mérito que atribui a si própria exerceria o efeito contrário e agiria em nós por simpatia A influência desse princípio seria então superior à da comparação con trariamente ao que acontece quando o mérito da pessoa parece estar abaixo de suas pretensões 7 A conseqüência necessária desses princípios é que o orgulho ou seja uma opinião presunçosa de nós mesmos deve ser um vício já que causa desprazer em todas as pessoas apresentandolhes cons tantemente uma comparação desagradável É lugarcomum na filo sofia e mesmo nas conversações e na vida corrente observar que é nosso próprio orgulho que nos torna tão descontentes com o orgulho dos outros e que a vaidade se nos torna insuportável unicamente por sermos vaidosos As pessoas alegres naturalmente se associam com 635 Tratado da natureza humana as alegres e as amorosas com as amorosas mas os orgulhosos não suportam os orgulhosos preferindo buscar a companhia de quem tem a disposição oposta Ora como todos nós somos um pouco orgulho sos o orgulho é censurado e condenado por todos os homens sem exceção por sua tendência natural a causar um malestar nos outros por comparação E esse efeito deve se seguir ainda mais naturalmen te pelo fato de que aqueles que têm uma opinião infundada de si mes mos estão sempre fazendo essas comparações por não terem outro meio de sustentar sua vaidade Um homem de mérito e de bom sen so está sempre satisfeito consigo mesmo independentemente da opinião alheia um tolo contudo sempre tem de encontrar alguém que seja mais tolo para continuar de bem com seu próprio talento e entendimento 8 Mas embora um conceito exagerado de nosso próprio mérito seja vicioso e desagradável nada pode ser mais louvável que dar valor a nós mesmos quando realmente possuímos qualidades de valor A uti lidade e a vantagem de uma qualidade para nós é uma fonte de virtu de assim como o fato de ser agradável aos outros e certamente nada nos é mais útil na condução de nossa vida que um grau apropriado de orgulho que nos torna conscientes de nosso próprio mérito e nos dá confiança e segurança em todos os nossos projetos e empreendi mentos Quaisquer que sejam as aptidões de uma pessoa elas lhe serão inteiramente inúteis se ela não as conhecer e se não fizer pro jetos condizentes com elas Precisamos sempre conhecer nossa própria força e se fosse permitido errar para mais ou para menos seria mais vantajoso supervalorizar nosso mérito que formar dele uma idéia in ferior a seu justo valor O destino comumente favorece os audacio sos e empreendedores e nada nos inspira maior audácia que uma boa opinião de nós mesmos 9 Acrescentese a isso que embora o orgulho ou a autoaclama ção seja algumas vezes desagradável aos outros é sempre agradável para nós mesmos em contrapartida a modéstia embora proporcione 636 Livro 3 Parte 3 Seção 2 um prazer a todos que a observam freqüentemente cria um males tar na pessoa mesma Ora já observamos que o vício e a virtude de uma qualidade são determinados por nossas próprias sensações bem como pelas sensações que essa qualidade possa despertar nas outras pessoas 10 Assim a autosatisfação e a vaidade podem ser não apenas ad missíveis mas necessárias a um caráter Entretanto é certo que as boas maneiras e a decência exigem que evitemos sinais e expressões que tendam a revelar diretamente essa paixão Todos temos uma pro digiosa parcialidade em favor de nós mesmos e se sempre déssemos vazão a esses nossos sentimentos causaríamos a maior indignação uns aos outros não somente pela presença imediata de um objeto de comparação tão desagradável mas também pela contrariedade de nossos respectivos juízos Assim do mesmo modo que estabelece mos o direito natural para assegurar a propriedade dentro da socieda de e impedir o choque entre interesses pessoais também estabelece mos as regras da boa educação a fim de impedir o choque entre os orgulhos dos homens e tornar seu relacionamento agradável e ino fensivo Nada é mais desagradável que um homem com uma imagem presunçosa de si mesmo embora quase todo mundo tenha uma for te inclinação para esse vício Ninguém sabe distinguir bem em si mes mo o vício da virtude nem tem certeza de que a avaliação que faz de seu próprio mérito é bem fundada Por essa razão condenamos to das as expressões diretas dessa paixão e não abrimos exceções a essa regra sequer em favor de pessoas de mérito e bom senso Não per mitimos nem a elas nem a qualquer outra pessoa que façam justiça a si mesmas abertamente em palavras e as que se mostram recatadas e secretamente hesitantes quanto a fazer justiça a si próprias mes mo em pensamento estas são ainda mais aplaudidas Aquela imper tinente e quase universal inclinação dos homens a se supervalorizar produziu em nós um tal preconceito contra a autoaclamação que ten demos a condenála por uma regra geral sempre que a encontramos e é com certa dificuldade que concedemos aqui um privilégio aos 63 7 Tratado da natureza humana homens de bom senso mesmo em seus mais secretos pensamen tos Devese ao menos reconhecer que é absolutamente necessário manter algum disfarce quanto a esse ponto se abrigamos orgulho em nosso peito externamente devemos nos mostrar amáveis bem como aparentar uma modéstia e mútua deferência em nossa con duta e comportamento Temos de estar sempre prontos a dar prio ridade aos outros sobre nós mesmos a tratálos com uma espécie de condescendência ainda que sejam iguais a nós a parecer sem pre os mais humildes e os menos importantes de um grupo quando não nos distinguimos por uma superioridade muito marcada Se observarmos essas regras em nossa conduta todos serão mais indul gentes com nossos sentimentos secretos quando os revelarmos de maneira indireta 1 1 Creio que ninguém que tenha alguma prática do mundo e consi ga penetrar nos sentimentos mais íntimos dos homens poderá afir mar que a humildade que é exigida de nós pela boa educação e pela decência deva ir além do comportamento exterior e que uma com pleta sinceridade quanto a esse aspecto seja considerada realmente uma parte de nosso dever Ao contrário podemos observar que um genuíno e sincero orgulho ou autoestima se bem encoberto e bem fundado é essencial para o caráter de um homem honrado e nenhu ma qualidade da mente é mais indispensável para proporcionar o apre ço e a aprovação da humanidade O costume exige que pessoas de di ferentes posições sociais observem certas deferências e submissões mútuas e quem comete um excesso quanto a esse aspecto é acusado de baixeza se o faz por interesse e de parvoíce se o faz por ignorân cia Portanto é necessário que conheçamos nossa posição e nosso lugar no mundo seja ele determinado por nosso nascimento fortu na ocupação talento ou reputação É necessário experimentar o sen timento e a paixão do orgulho de uma maneira condizente com essa posição regulando nossas ações de acordo com isso E se acaso se disser que a prudência pode bastar para regular nossas ações quanto a esse aspecto particular sem a necessidade de um verdadeiro orgu 638 Livro 3 Parte 3 Seção 2 lho observo que aqui o objetivo da prudência é conformar nossas ações ao uso e ao costume geral e é impossível que aqueles tácitos ares de superioridade jamais tivessem sido estabelecidos e autoriza dos pelo costume a menos que os homens fossem de um modo geral orgulhosos e essa paixão fosse de um modo geral aprovada quando bem fundamentada 12 Este raciocínio ganhará ainda mais força se passarmos da con versação e da vida cotidiana para a história e observarmos que todos aqueles grandes feitos e sentimentos que se tornaram a admiração dos homens estão fundados unicamente no orgulho e na autoesti ma Ide diz Alexandre o Grande a seus soldados quando se recusam a seguilo até as Índias ide e dizei a vossos compatriotas que deixastes Ale xandre completando a conquista do mundo O príncipe de Condé sempre teve uma admiração particular por essa passagem como nos informa St Évremond Alexandre dizia o príncipe abandonado por seus sol dados entre bárbaros ainda não completamente subjugados sentia dentro de si uma tal dignidade e um tal direito de comando que não podia acreditar que alguém pudesse se recusar a obedecerlhe Esti vesse ele na Europa ou na Ásia entre gregos ou persas pouco lhe im portava onde quer que achasse homens imaginava ter encontra do súditos 13 Podemos observar de maneira geral que tudo o que chamamos de virtude heróica e admiramos como marca de grandeza e altivez espiritual não é senão um firme e bem estabelecido orgulho e auto estima ou ao menos tem muito dessa paixão Coragem valentia am bição amor à glória magnanimidade e todas as outras grandes virtu des dessa espécie contêm claramente uma forte dose de autoestima retirando boa parte de seu mérito dessa origem Vemos assim que muitos pregadores denigrem essas virtudes como puramente pagãs e naturais e descrevemnos a excelência da religião cristã que inclui a humildade entre as virtudes e corrige o julgamento dos homens Charles de SaintÉvremond 16101703 escritor e poeta francês em Sur Alexandre et César 21424 NT 639 Tratado da natureza humana mundanos e mesmo dos filósofos que tão universalmente admiram todos os esforços do orgulho e da ambição Se essa virtude da humil dade tem sido corretamente compreendida eis algo que não preten do julgar Fico satisfeito que se admita que as pessoas naturalmente apreciam um orgulho controlado que anime secretamente nossa con duta sem irromper em expressões indecentes de vaidade que possam ofender a vaidade alheia 14 O mérito do orgulho ou autoestima deriva de duas circunstân cias sua utilidade e o fato de nos ser agradável é assim que o orgu lho nos torna capazes de agir e ao mesmo tempo nos dá uma satis fação imediata Quando ultrapassa seus justos limites ele perde a primeira vantagem chegando a se tornar prejudicial é por essa razão que condenamos um orgulho e uma ambição exorbitantes ainda que controlados pelas regras das boas maneiras e da polidez Mas como uma tal paixão ainda é agradável e transmite uma sensação elevada e sublime à pessoa por ela movida a simpatia por essa satisfação di minui consideravelmente a censura que naturalmente acompanha sua perigosa influência sobre sua conduta e comportamento Assim po demos observar que uma coragem e uma magnanimidade excessivas sobretudo quando se manifestam nos reveses da fortuna contribuem em grande medida para compor o caráter de um herói e fazem de um homem objeto da admiração da posteridade ao mesmo tempo que arruinam seus negócios e o levam a dificuldades e perigos que de outra forma ele jamais teria conhecido 15 O heroísmo ou glória militar é muito admirado pela generalida de dos homens Consideramno o mais sublime dos méritos Homens de raciocínio sereno não são porém tão sanguíneos em seus elogios A seu ver a infinita confusão e desordem que o heroísmo ocasionou no mundo diminuem muito seu mérito E quando querem se contra por às noções populares a esse respeito sempre retratam os males que essa suposta virtude causou à sociedade humana destruição de impérios devastação de províncias inteiras saque de cidades Enquanto tivermos presentes esses males estaremos mais inclinados a odiar que 640 Livro 3 Parte 3 Seção 2 a admirar a ambição heróica Mas quando dirigimos nosso olhar para a própria pessoa que causou esses estragos há algo tão deslumbrante em seu caráter e sua mera contemplação eleva a tal ponto o espírito que não podemos lhe recusar nossa admiração A dor que experimen tamos por sua tendência a prejudicar a sociedade é sobrepujada por uma simpatia mais forte e mais imediata 1 6 Assim nossa explicação do mérito ou do demérito que acompa nha os diversos graus de orgulho e autoestima pode servir como um forte argumento em favor da hipótese anterior ao mostrar os efeitos daqueles princípios antes expostos em todas as variações de nossos juízos acerca dessa paixão E esse raciocínio não é vantajoso para nós apenas por mostrar que a distinção entre vício e virtude resulta dos quatro princípios da vantagem e do prazer da própria pessoa e dos outros pode também nos fornecer uma prova poderosa de alguns coadjuvan tes dessa hipótese 1 7 Ninguém que considere devidamente essa questão terá escrúpu los em admitir que qualquer demonstração de falta de educação ou qualquer expressão de orgulho e soberba nos desagrada exclusivamen te porque colide com nosso próprio orgulho levandonos por sim patia a estabelecer uma comparação que causa a desagradável pai xão da humildade Ora como censuramos uma insolência desse tipo mesmo em uma pessoa que sempre foi cortês conosco em particular e até em alguém cujo nome conhecemos apenas pela história segue se que nossa desaprovação procede de uma simpatia com os outros e da reflexão de que um tal caráter é altamente desagradável e odioso para todos que entram em conversação ou têm algum tipo de relacio namento com a pessoa que o possui Simpatizamos com eles em seu desconforto e como esse desconforto procede em parte de uma sim patia com quem os insultou podemos observar aqui um duplo rico chete da simpatia um princípio muito similar ao que observamos em outra ocasião5 5 Livro 2 Parte 2 Seção 5 641 Tratado da natureza humana Seção 3 Da bondade e da benevolência 1 Tendo assim explicado a origem do elogio e da aprovação que acompanham tudo aquilo que denominamos grande nos afetos huma nos passaremos agora a explicar sua bondade e a mostrar de onde vem seu mérito 2 Uma vez a experiência tendonos proporcionado um conhecimen to adequado dos assuntos humanos e tendo nos ensinado qual sua relação com as paixões humanas percebemos que a generosidade dos homens é muito restrita raramente indo além dos amigos e da famí lia ou no máximo além de seu país natal Estando assim familiari zados com a natureza humana não mais esperamos dos homens coi sas impossíveis para formar um juízo sobre o caráter moral de uma pessoa limitamos nosso exame ao estreito círculo em que ela se move Quando a tendência natural de suas paixões a leva a ser prestimosa e útil em sua esfera aprovamos seu caráter e amamos sua pessoa por uma simpatia com os sentimentos daqueles que têm uma conexão mais particular com ela Quando formulamos juízos desse tipo so mos rapidamente obrigados a esquecer nosso próprio interesse em razão das perpétuas contradições que encontramos na conversação e no convívio social com pessoas que não estão na mesma situação nem têm o mesmo interesse que nós O único ponto de vista em que nos sos sentimentos coincidem com os dos demais é o que se forma quan do consideramos a tendência de uma paixão a trazer alguma vanta gem ou a causar algum dano àqueles que têm uma conexão imediata ou um relacionamento com a pessoa por ela movida E embora essa vantagem ou esse dano estejam freqüentemente bem distantes de nós algumas vezes são bem próximos e nos interessam fortemente em vir tude da simpatia Tal interesse nós logo o estendemos a outros casos semelhantes e quando estes são muito remotos nossa simpatia é pro porcionalmente mais fraca e nosso elogio ou censura mais tímidos e hesitantes Ocorre aqui o mesmo que em nossos juízos acerca dos 642 Livro 3 Parte 3 Seção 3 corpos externos Todos os objetos parecem diminuir com a distância mas embora a aparência sensível dos objetos seja o critério original pelo qual os julgamos não dizemos que eles realmente diminuem ao se distanciarem corrigimos sua aparência pela reflexão e assim che gamos a um juízo mais constante e estável a seu respeito Da mesma maneira embora a simpatia seja muito mais fraca que nossa preocupa ção por nós mesmos e uma simpatia para com pessoas afastadas de nós seja muito mais fraca que para com pessoas contíguas ou vizinhas desprezamos todas essas diferenças quando formamos juízos sere nos a respeito do caráter dos homens Além do fato de nossa própria situação quanto a esse aspecto mudar com freqüência diariamente encontramos pessoas que estão em situação diferente da nossa e que nunca poderiam sequer conversar conosco em termos razoáveis se permanecêssemos constantemente naquela situação e naquele ponto de vista que nos são peculiares Portanto o intercâmbio de sentimentos na sociedade e no convívio diário nos leva a formar um critério geral e inalterável com base no qual possamos aprovar ou de saprovar caracteres e maneiras Embora o coração nem sempre fique do lado dessas noções gerais e não regule seu amor e ódio por elas essas noções são suficientes para o diálogo e servem a todos os nos sos propósitos no convívio social no púlpito no teatro e nas escolas 3 Partindo desses princípios explicamos com facilidade aquele mé rito comumente atribuído à generosidade ao respeito humano à compai xão à gratidão à amizade à fidelidade à dedicação ao desprendimento à pro digalidade além de a todas as outras qualidades que formam o caráter bom e benevolente Uma propensão para as paixões ternas torna um homem agradável e útil em todos os aspectos da vida e imprime uma direção apropriada a todas as suas outras qualidades que de outro modo podem se tornar prejudiciais à sociedade A coragem e a ambi ção quando não são governadas pela benevolência só servem para criar um tirano e inimigo público O mesmo acontece com a capa cidade de raciocínio o talento e com todas as qualidades desse gêne 643 Tratado da natureza humana ro Nelas mesmas essas qualidades são indiferentes aos interesses da sociedade e só tendem para o bem ou para o mal da humanidade conforme a direção que recebam dessas outras paixões 4 Como o amor é imediatamente agradável à pessoa por ele movida e o ódio é imediatamente desagradável essa também pode ser uma razão importante para explicar por que louvamos todas as paixões que par ticipam do amor e condenamos todas as que tenham um significati vo componente de ódio É certo que um sentimento afetuoso nos toca infinitamente bem como um sentimento grandioso Lágrimas nos vêm naturalmente aos olhos quando pensamos neles e não podemos deixar de mostrar a mesma afetuosidade pela pessoa que expressa sua afeição por nós Tudo isso me parece constituir uma prova de que nesses casos nossa aprovação tem uma origem diferente da perspec tiva de utilidade e vantagem para nós ou para os demais A isso po demos acrescentar que os homens naturalmente sem refletir apro vam aquele caráter que mais se parece com o seu O homem de disposição branda e afetuosa ao conceber a idéia da virtude mais per feita põe nela uma dose maior de benevolência e respeito humano que o homem corajoso e empreendedor para quem o caráter mais excelen te é naturalmente uma certa altivez espiritual Evidentemente isso deve proceder de uma simpatia imediata dos homens pelas pessoas de cará ter similar aos seus já que penetram mais calorosamente em seus sen timentos e experimentam mais sensivelmente o prazer deles decorrente 5 É notável que nada toque mais um homem dotado de sentimen tos humanitários que um exemplo de extraordinária delicadeza no amor ou na amizade quando uma pessoa está atenta às menores preocupa ções de seu amigo e disposta a sacrificar por ele seus maiores interes ses Atenções como essa têm pouca influência na sociedade porque nos fazem levar em consideração as coisas mais insignificantes são porém tão mais envolventes quanto mais minuciosas sendo prova do mais alto mérito naquele que delas é capaz As paixões são tão contagiantes que passam com a maior facilidade de uma pessoa a ou tra produzindo movimentos correspondentes em todos os corações 644 Livro 3 Parte 3 Seção 3 humanos Quando a amizade se mostra em exemplos muito marcan tes meu coração capta a mesma paixão e se enternece com esses cá lidos sentimentos que se me apresentam Esses movimentos agradá veis devem produzir em mim uma afeição por todo aquele que os desperta É o caso de tudo que é agradável em uma pessoa A transi ção do prazer ao amor é fácil mas a transição aqui deve ser ainda mais fácil pois como o sentimento agradável despertado pela simpatia é o próprio amor basta trocar o objeto 6 A isso se deve o mérito peculiar da benevolência sob todas as suas formas e aparências É por isso que até mesmo suas fraquezas são virtuosas e dignas de amor Uma pessoa que sente uma tristeza ex cessiva pela morte de um amigo é estimada exatamente por essa ra zão como dá prazer a afeição que sentia por ele confere um mérito a sua melancolia 7 Não devemos imaginar entretanto que todas as paixões coléricas são viciosas embora sejam desagradáveis Existe uma certa indulgên cia a esse respeito em virtude da natureza humana A raiva e o ódio são paixões inerentes a nossa própria estrutura e constituição A falta delas em algumas ocasiões pode mesmo ser prova de fraqueza e inca pacidade E quando se manifestam de maneira fraca não apenas as desculpamos por serem naturais também as aplaudimos por serem inferiores às que aparecem na maioria dos homens 8 Mas quando essas paixões coléricas se inflamam a ponto de se transformar em crueldade constituem o mais detestado de todos os vícios Toda a piedade e consideração que temos por suas infelizes vítimas se voltam contra os culpados produzindo por eles um ódio mais forte que aquele de que temos consciência em qualquer outra ocasião 9 Mesmo quando o vício da desumanidade não alcança esse grau extremo nossos sentimentos a seu respeito são muito influenciados por reflexões sobre o mal que dele resulta Podemos observar de modo geral que sempre que encontramos em uma pessoa uma caracte rística que a torna incômoda àqueles que com ela convivem e se 645 Tratado da natureza humana relacionam consideramos essa característica uma falta ou mácula sem sequer examinar melhor a situação Por outro lado quando enu meramos as boas qualidades de uma pessoa sempre mencionamos aqueles aspectos de seu caráter que a tornam um companheiro confiável um amigo gentil um amo benévolo um marido agradável ou um pai indulgente Consideramola em todas as suas relações so ciais e a amamos ou odiamos conforme o modo como afete aqueles que têm um relacionamento direto com ela Tratase de uma regra bastante certa que se não houver na vida nenhum tipo de relação que eu não queira ter com uma pessoa em particular seu caráter deve até esse ponto ser considerado perfeito Se deixa tão pouco a desejar a si mesma quanto aos outros seu caráter é completamente perfeito Esse é o teste máximo do mérito e da virtude Seção 4 Das aptidões naturais 1 Não há distinção mais comum em todos os sistemas éticos que aquela feita entre as aptidões naturais e as virtudes morais segundo a qual se considera que as primeiras estão em pé de igualdade com os dotes físicos não tendo nenhum mérito ou valor moral Mas quem quer que considere adequadamente a questão irá constatar que qualquer discussão a esse respeito é uma mera disputa de palavras e embora esses dois tipos de qualidades não sejam exatamente iguais elas coincidem em suas características mais importantes Ambas são qua lidades mentais ambas produzem prazer e têm naturalmente uma tendência a obter o amor e o apreço dos homens Poucas pessoas não são tão ciosas de seu caráter no que concerne à inteligência e ao dis cernimento quanto no que concerne à honra e à coragem e mais ain da que no que diz respeito à temperança e à sobriedade Alguns têm até receio de passar por pessoas de boa índole porque essa qualidade pode ser tomada por falta de inteligência e freqüentemente se gabam de ser mais libertinos do que realmente são para se dar ares de fogo 646 Livro 3 Parte 3 Seção 4 sidade e vigor Em suma a imagem que uma pessoa conquista no mundo o modo como é recebida em sociedade o apreço que obtém de seus conhecidos todas essas vantagens dependem quase tanto de seu bom senso e juízo quanto de qualquer outro elemento de seu ca ráter Um homem pode ter as melhores intenções do mundo e pode se manter o mais longe possível de qualquer injustiça e violência mas nunca será muito respeitado se não tiver ao menos um grau modera do de talento e inteligência As aptidões naturais portanto embora talvez inferiores estão em pé de igualdade com as qualidades que de nominamos virtudes morais no que diz respeito tanto a suas causas quanto a seus efeitos Por que então faríamos qualquer distinção entre elas 2 Mesmo se nos recusamos a conferir às aptidões naturais o título de virtudes temos de admitir que elas obtêm o amor e o apreço da humanidade que dão mais brilho às outras virtudes e que aquele que as possui está muito mais habilitado a receber nossa benevolência e nossos favores que aquele que delas é inteiramente desprovido Pode se afirmar é verdade que o sentimento de aprovação produzido por essas qualidades além de ser inferior é também algo diferente daquele que acompanha as outras virtudes Mas em minha opinião essa não é uma razão suficiente para excluílas do rol das virtudes Cada virtu de até mesmo a benevolência a justiça a gratidão e a integridade desperta um sentimento ou sensação diferente no espectador Tanto o caráter de César quanto o de Catão tais como representados por Salústio são virtuosos no sentido mais estrito da palavra mas de modos diferentes pois os sentimentos por eles ocasionados não são inteiramente iguais Um gera amor o outro apreço Um é amável o outro respeitável O primeiro caráter gostaríamos talvez de encon trar em um amigo o segundo ambicionamos possuilo nós mesmos De forma semelhante a aprovação que acompanha as aptidões natu rais pode ser diferente pela maneira como a sentimos daquela que resulta das outras virtudes mas isso não significa que sejam de espé cies totalmente diversas De fato podemos observar que as aptidões 647 Tratado da natureza humana naturais assim como as outras virtudes não produzem todas elas a mesma espécie de aprovação O bom senso e o gênio geram apre ço a espirituosidade e o senso de humor despertam amor6 3 Aqueles que afirmam que a distinção entre as aptidões naturais e as virtudes morais é muito importante dizem por vezes que as pri meiras são inteiramente involuntárias e portanto não possuem mé rito algum já que não dependem da liberdade ou livrearbítrio Mas a isso respondo em primeiro lugar que muitas dessas qualidades que todos os moralistas sobretudo os antigos incluem na classe das vir tudes morais são tão involuntárias e necessárias quanto as qualida des do juízo e da imaginação Dessa natureza são a constância a co ragem a magnanimidade e em suma todas as qualidades que fazem um grande homem E eu poderia dizer o mesmo até certo ponto das outras qualidades pois é quase impossível à mente alterar seu cará ter em aspectos muito significativos ou curar seu temperamento im pulsivo ou neurastênico quando essa é sua natureza Quanto maior o grau dessas qualidades censuráveis mais viciosas elas se tornam e entretanto elas são as menos voluntárias Em segundo lugar gos taria que alguém me explicasse por que a virtude e o vício não podem ser involuntários assim como a beleza e a feiúra Essas distinções morais surgem das distinções naturais entre a dor e o prazer e quando experimentamos essas sensações feelings pela consideração geral de uma qualidade ou caráter classificamos a estes de viciosos ou de virtuosos Ora creio que ninguém iria afirmar que uma qualidade só pode produzir prazer ou dor à pessoa que a considera se for perfeitamente voluntária na pessoa que a possui Em terceiro lugar quanto ao li vrearbítrio já mostramos que ele não tem lugar nas ações não mais que nas qualidades dos homens Não é uma inferência correta dizer que 6 Amor e apreço são no fundo a mesma paixão e surgem de causas semelhantes Ambas são produzidas por qualidades agradáveis e prazerosas Mas quando esse prazer é grave e sério ou quando seu objeto é sublime e causa uma forte impressão ou quando produz algum grau de humildade e temor em todos esses casos a paixão que resulta do prazer é mais propriamente denominada apreço que amor A benevolência acompanha a ambas mas conectase com o amor em um grau mais proeminente 648 Livro 3 Parte 3 Seção 4 aquilo que é voluntário é livre Nossas ações são mais voluntárias que nossos juízos mas não temos mais liberdade naquelas que nestes 4 Embora essa distinção entre voluntário e involuntário não seja suficiente porém para justificar a distinção entre aptidões naturais e virtudes morais fornecenos uma razão plausível para explicar por que os moralistas inventaram esta última distinção Os homens ob servaram que embora as aptidões naturais e as qualidades morais sejam essencialmente equivalentes existe esta diferença entre elas a saber que as primeiras quase não podem ser alteradas pela arte ou pelo trabalho ao passo que estas últimas ou ao menos as ações de las procedentes podem ser modificadas por motivos como recompen sas e punições elogios e censuras É por isso que legisladores teólo gos e moralistas esforçaramse sobretudo para regular essas ações voluntárias e buscaram dar às pessoas motivos adicionais para serem virtuosas quanto a elas Sabiam que punir um homem por ser um tolo ou exortálo a ser prudente e sagaz não seria muito eficaz já as mes mas punições e exortações no caso da justiça e da injustiça poderiam ter uma influência considerável Na vida e na conversação cotidianas entretanto os homens não pensam nesses fins mas em vez disso elogiam ou censuram naturalmente tudo que lhes agrada ou desagra da Por isso parecem não levar muito em consideração essa distinção classificando a prudência como uma virtude tanto quanto a benevo lência e a perspicácia tanto quanto a justiça Mais ainda verificamos que todos os moralistas cujo julgamento não esteja pervertido por uma adesão demasiadamente rígida a um sistema pensam do mesmo modo e os moralistas antigos em particular não hesitavam em pôr a prudência no topo das virtudes cardinais Existe um sentimento de apreço e de aprovação que pode ser despertado até certo ponto por qualquer faculdade da mente em seu perfeito estado e condição e explicar esse sentimento é tarefa dos filósofos Aos gramáticos cabe examinar que qualidades merecem ser denominadas virtudes ao ten tar fazêlo descobrirão que essa tarefa não é tão fácil quanto poderiam imaginar à primeira vista 649 Tratado da natureza humana 5 A principal razão por que as aptidões naturais são tão estima das é sua tendência a ser úteis à pessoa que as possui É impossível realizar com sucesso nossos propósitos se não nos conduzimos com prudência e discernimento ter boas intenções não é suficiente para trazer a bom resultado nossos empreendimentos Os homens são su periores aos animais sobretudo pela superioridade de sua razão e são os graus dessa mesma faculdade que estabelecem essa diferença infi nita entre um homem e outro Todas as vantagens trazidas pela arte se devem à razão humana e quando o destino não é muito caprichoso a parte mais importante dessas vantagens deverá caber ao homem pru dente e sagaz 6 Quando se pergunta o que tem mais valor uma capacidade de percepção aguçada ou obtusa uma inteligência capaz de penetrar um assunto logo à primeira vista mas inapta a realizar seja o que for pelo estudo ou o caráter contrário que tem de usar de muita aplicação para fazer suas descobertas uma mente lúcida ou uma inventividade copiosa um gênio profundo ou um juízo seguro em suma quan do se pergunta que caráter ou que tipo particular de inteligência é su perior evidentemente não podemos dar uma resposta sem conside rar qual dessas qualidades torna uma pessoa mais capacitada para a vida e a leva mais longe em qualquer empreendimento 7 Há muitas outras qualidades mentais cujo mérito tem a mesma origem Trabalho perseverança paciência atividade vigilância aplicação constância e outras virtudes do mesmo tipo que seria fácil evocar são consideradas valiosas unicamente por sua vantagem na condução da vida Isso também se passa com a temperança a frugalidade a economia a resolução Por sua vez extravagância luxo irresolução e incerteza são vícios exclusivamente porque trazem nossa ruína e nos tornam in capazes para os negócios e as ações 8 Assim como a sabedoria e o bom senso são valorizados por serem úteis a quem os possui assim também o espírito e a eloqüência são valo rizados porque são imediatamente agradáveis aos outros Por outro la do o bom humor é amado e apreciado por ser imediatamente agradável 650 Livro 3 Parte 3 Seção 4 à própria pessoa É evidente que é muito satisfatório poder conver sar com um homem espirituoso assim como um companheiro ale gre e bemhumorado transmite um contentamento a todo o grupo por uma simpatia com sua alegria Essas qualidades portanto sen do agradáveis geram naturalmente amor e apreço e satisfazem a todas as características da virtude 9 Em muitos casos é difícil dizer o que torna a conversa de um ho mem tão agradável e divertida e a de outro insípida e aborrecida Como a conversação é uma transcrição da mente tanto quanto os li vros as mesmas qualidades que dão valor a estes devem proporcionar um apreço por aquela Consideraremos essa questão adiante Enquanto isso podemos afirmar de uma maneira geral que todo o mérito que um homem pode extrair de sua conversação e sem dúvida esse mé rito pode ser considerável resulta unicamente do prazer que ela trans mite aos presentes 10 Dessa perspectiva o asseio também deve ser visto como uma vir tude já que nos torna agradáveis aos outros sendo uma fonte bas tante considerável de amor e afeição Ninguém pode negar que uma negligência quanto a esse ponto seja uma falta e como as faltas não são senão vícios menores e essa falta só pode ter como origem a sen sação desconfortável que desperta nas outras pessoas podemos des cobrir claramente por este exemplo aparentemente tão trivial a ori gem da distinção moral entre o vício e a virtude em outros casos 1 1 Além de todas essas qualidades que tornam uma pessoa estimá vel ou admirável há também um certo jenesaisquoi naquilo que é agradável e belo que concorre para o mesmo efeito Nesse caso como no do espírito e da eloqüência temos de recorrer a um certo sentido que age sem reflexão e não leva em conta as tendências da qualidade ou do caráter Alguns moralistas explicam todos os sentimentos da virtude por meio desse sentido Sua hipótese é bastante plausível So mente uma investigação detalhada pode nos fazer preferir alguma outra hipótese Quando descobrimos que quase todas as virtudes têm essas tendências particulares e também que essas tendências são 651 Tratado da natureza humana suficientes por si sós para nos proporcionar um forte sentimento de aprovação não podemos ter dúvidas de que as qualidades são apro vadas ou não conforme a vantagem que delas resulta 12 A propriedade ou impropriedade de um atributo quanto à idade ao caráter ou à posição social de uma pessoa também contribui para sua aprovação ou condenação Essa propriedade depende em grande parte da experiência É comum que os homens percam sua levianda de conforme vão envelhecendo Por isso um determinado grau de se riedade e uma determinada idade estão conectados em nossos pen samentos E quando observamos que ocorrem separadamente em um caráter essa observação acarreta uma espécie de violência contra nossa imaginação passando a ser desagradável 13 De todas as faculdade da alma a menos relevante para o caráter e a que tem menos de virtude ou vício em suas diversas variações ao mesmo tempo que admite uma grande variedade de gradações é a memória Exceto quando atinge um grau tão prodigioso que causa ad miração ou quando é tão deficiente que chega a afetar a capacidade de julgar não costumamos notar suas variações nem a mencionamos para elogiar ou criticar uma pessoa Ter boa memória está tão longe de ser uma virtude que os homens em geral gostam de se queixar de ter uma memória fraca esforçamse em persuadir todo mundo de que aquilo que eles dizem se deve exclusivamente a sua própria inven tividade sacrificando sua memória para valorizar seu gênio e capa cidade de julgar Entretanto considerandose a questão em abstrato seria difícil dar uma razão para explicar por que a faculdade de recor dar idéias passadas com veracidade e clareza não deveria conter tan to mérito quanto a faculdade de ordenar nossas idéias presentes de modo a formar proposições e opiniões verdadeiras A razão dessa diferença certamente deve ser que a memória se exerce sem provo car nenhuma sensação de prazer ou dor e todos os seus graus me dianos servem quase igualmente bem para nossas atividades e afaze res Ao contrário as menores variações em nossa faculdade de julgar têm conseqüências bastante sensíveis ao mesmo tempo sempre que atinge um grau superior essa faculdade produz um extraordinário 652 Livro 3 Parte 3 Seção 5 deleite e satisfação A simpatia com essa utilidade e prazer conferem um mérito ao entendimento e sua ausência no caso da memória nos faz considerar esta última como uma faculdade bastante indiferente tanto à censura como ao elogio 14 Antes de deixar este tema das aptidões naturais devo observar que uma das fontes do apreço e afeição que as acompanham talvez seja derivada da importância e do peso que conferem àquele que as possui A pessoa se torna mais importante na vida Suas resoluções e ações afetam um número maior de seus semelhantes Tanto sua amizade como sua inimizade têm grande peso E é fácil observar que aquele que por suas aptidões elevase acima do resto da humanidade deve despertar em nós os sentimentos de apreço e aprovação Tudo que é importante atrai nossa atenção fixa nosso pensamento e é visto com satisfação Histórias de reinos são mais interessantes que histórias domésticas histórias de grandes impérios mais que de pequenas cida des e principados e histórias de guerras e revoluções mais que as de tempos de paz e ordem Simpatizamos com aqueles que sofrem nos mais diversos sentimentos que correspondem à sua sorte A mente é ocupada pela multiplicidade de objetos e pelas fortes paixões que se apresentam E essa ocupação ou agitação da mente é comumente agra dável e divertida A mesma teoria dá conta do apreço e da considera ção que temos por homens de talentos e habilidades extraordinárias O bem e o mal de multidões inteiras estão conectados com suas ações Tudo que fazem é importante e exige nossa atenção Nada a seu res peito deve ser menosprezado ou desprezado E quando uma pessoa é capaz de despertar esses sentimentos rapidamente recebe nosso apre ço a menos que outras particularidades de seu caráter a tornem odiosa e desagradável Seção 5 Mais algumas reflexões sobre as aptidões naturais 1 Ao tratarmos das paixões observamos que o orgulho e a humil dade o amor e o ódio são excitados por qualquer vantagem ou des 653 Tratado da natureza humana vantagem da mente do corpo ou da fortuna e que essas vantagens ou desvantagens têm esse efeito por produzirem uma impressão sepa rada de dor ou prazer A dor ou o prazer que resultam do exame ou da consideração geral de uma ação ou qualidade da mente constituem seu vício ou sua virtude gerando nossa aprovação ou censura que não é se não um amor ou um ódio mais fraco e imperceptível Atri buímos quatro fontes diferentes a essa dor e a esse prazer e para justificar mais completamente essa hipótese talvez seja apropriado considerar aqui que é pelos mesmos princípios que as vantagens ou desvantagens do corpo e da riqueza produzem dor ou prazer A ten dência de um objeto a ser útil à pessoa que o possui ou aos demais a transmitir prazer a ela ou aos outros todas essas circunstâncias dão um prazer imediato à pessoa que considera o objeto e inspiram seu amor e aprovação 2 Começando com as vantagens do corpo observemos um fenôme no que pode parecer um pouco fútil e ridículo se é que pode ser fútil algo que reforça uma conclusão tão importante ou ridículo algo que é utilizado em um raciocínio filosófico Tratase de uma observação geral que aqueles homens que chamamos de bons amantes que se des tacaram por suas proezas amorosas ou cuja constituição física pro mete um extraordinário vigor dessa espécie são bem recebidos pelo belo sexo e naturalmente ganham a afeição mesmo daquelas cuja virtude impede qualquer projeto de fazer uso desses talentos Neste último caso é evidente que a capacidade que esses homens têm de dar prazer é a verdadeira fonte do amor e apreço que encontram por parte das mulheres ao mesmo tempo as mulheres que os amam e estimam não têm nenhuma perspectiva de obter elas mesmas esse prazer só podendo ser afetadas por sua simpatia com aquelas que têm com eles algum relacionamento amoroso Esse exemplo é bastante singular e merece nossa atenção 3 Outra fonte do prazer que recebemos da consideração das vanta gens corporais é sua utilidade para a própria pessoa delas dotada É certo que uma parte considerável da beleza dos homens bem como 654 Livro 3 Parte 3 Seção 5 de outros animais consiste em uma determinada conformação de membros que pela experiência verificamos ser acompanhada de for ça e agilidade capacitando a criatura para qualquer ação ou exercí cio Ombros largos ventre esguio articulações firmes pernas tor neadas todas essas características são consideradas belas em nossa espécie porque indicam força e vigor e como essas são vantagens com que naturalmente simpatizamos transmitem ao observador uma parte da satisfação que produzem em quem as possui 4 Isso quanto à utilidade que pode acompanhar uma qualidade cor poral Quanto ao prazer imediato é certo que um ar de saúde bem como de força e agilidade constitui uma parte considerável da bele za e alguém com ar doentio é sempre desagradável para nós em vir tude da idéia de dor e malestar que nos transmite Por outro lado agradanos a regularidade de nossos próprios traços mesmo que ela não seja útil nem para nós nem para os outros e que precisemos to mar uma certa distância de nós mesmos para que nos transmita al guma satisfação Costumamos considerar a nós mesmos tais como aparecemos aos olhos dos outros e simpatizamos com os sentimen tos favoráveis que eles têm por nós 5 Saberemos até que ponto as vantagens da riqueza produzem apreço e aprovação pelos mesmos princípios se lembrarmos nosso raciocí nio anterior sobre esse assunto Observamos que nossa aprovação às pessoas que possuem as vantagens decorrentes da riqueza pode ser atribuída a três causas distintas Primeiro ao prazer imediato que um homem rico nos dá quando vemos as belas roupas equipagem jar dins ou casas que ele possui Em segundo lugar às vantagens que dele esperamos extrair por sua generosidade e prodigalidade Em terceiro lugar ao prazer e às vantagens que ele próprio extrai de suas posses e as quais produzem em nós uma simpatia agradável Quer atribua mos nosso apreço pelas pessoas ricas e importantes a apenas uma ou a todas essas causas podemos ver claramente os traços desses prin cípios que geram o sentido do vício e da virtude Acredito que a maioria das pessoas à primeira vista estará inclinada a atribuir nosso apreço 655 Tratado da natureza humana pelos ricos ao interesse pessoal e à perspectiva de obter alguma van tagem Mas certamente nosso apreço ou deferência vai além de qual quer perspectiva de obter vantagens para nós mesmos por isso é evidente que esse sentimento tem de proceder de uma simpatia com aqueles que dependem da pessoa que estimamos e respeitamos e que têm uma conexão imediata com ela Consideramola alguém capaz de contribuir para a felicidade ou a satisfação de seus semelhantes cujos sentimentos a seu respeito naturalmente abraçamos E essa consideração servirá para justificar minha hipótese de que devemos preferir o terceiro princípio aos outros dois e atribuir nosso apreço pelos ricos a uma simpatia com o prazer e a vantagem que eles pró prios obtêm de seus bens Pois como mesmo os outros dois princípios não podem operar com a devida extensão e não podem dar conta de todos os fenômenos sem recorrer a uma simpatia de um tipo ou de outro é muito mais natural escolhermos a simpatia que é ime diata e direta do que aquela que é longínqua e indireta A isso pode mos acrescentar que quando a riqueza e o poder são muito grandes e tornam a pessoa considerável e importante para o mundo o apreço que os acompanha pode ser em parte atribuído a outra fonte distin ta dessas três a saber o fato de interessarem à mente pela perspec tiva de suas numerosas e importantes conseqüências Mas para ex plicar a operação desse princípio também temos que recorrer à simpatia como já observamos na seção anterior 6 Talvez seja bom observar aqui a flexibilidade de nossos sentimen tos e as diversas alterações que eles tão prontamente recebem dos objetos com que estão conectados Todos os sentimentos de aprova ção que acompanham uma espécie particular de objetos têm entre si uma grande semelhança ainda que sejam derivados de fontes dife rentes e por outro lado esses sentimentos quando dirigidos a obje tos diferentes são sentidos de maneira diferente ainda que derivem da mesma fonte Assim a beleza de todos os objetos visíveis causa um prazer bastante semelhante embora às vezes seja derivada do mero aspecto ou aparência dos objetos outras vezes da simpatia bem 656 Livro 3 Parte 3 Seção 6 como da idéia de sua utilidade Do mesmo modo sempre que consi deramos as ações e o caráter dos homens sem ter por eles nenhum interesse particular o prazer ou a dor resultantes dessa consideração com algumas pequenas diferenças são essencialmente do mesmo tipo embora possa haver uma grande diversidade em suas causas Em contrapartida uma casa confortável e um caráter virtuoso não cau sam o mesmo sentimento feeling de aprovação embora a fonte de nossa aprovação seja a mesma e decorra da simpatia e da idéia de sua utilidade Há algo um tanto inexplicável nessas variações de nossas maneiras de sentir our feelings mas é isso que experimentamos em todas as nossas paixões e sentimentos Seção 6 Conclusão deste livro 1 Assim por tudo o que foi dito tenho esperança de que nada te nha faltado para tornar completa a demonstração deste sistema éti co Temos certeza de que a simpatia é um princípio muito poderoso na natureza humana Também temos certeza de que exerce grande influência sobre nosso sentido do belo seja quando consideramos os objetos externos seja quando formamos juízos morais Constatamos que a simpatia tem força suficiente para nos proporcionar os mais fortes sentimentos de aprovação quando age sozinha sem a concor rência de outros princípios como nos casos da justiça da obediência civil da castidade e das boas maneiras Podemos observar que todas as circunstâncias necessárias para sua operação se encontram na maior parte das virtudes que têm em sua maioria uma tendência para pro mover o bem da sociedade ou da pessoa que as possui Se comparar mos todas essas circunstâncias não teremos dúvidas de que a sim patia é a principal fonte das distinções morais sobretudo se pensarmos que qualquer objeção que se levantar a esta hipótese em um caso deverá se estender a todos os outros Certamente a justiça é aprova da por uma única razão ou seja porque tem uma tendência a trazer 657 Tratado da natureza humana o bem público e o bem público sernosia indiferente se a simpatia não criasse em nós um interesse por ele Podemos presumir que algo semelhante se passa com todas as outras virtudes que tenham a mesma tendência para o bem público Essas virtudes devem derivar todo seu mérito de nossa simpatia com aqueles que delas se beneficiam assim como as virtudes que têm uma tendência para o bem de quem as pos sui derivam seu mérito de nossa simpatia com essa pessoa 2 A maioria das pessoas concordará prontamente que as qualida des úteis da mente são virtuosas justamente por causa de sua utilida de Essa maneira de pensar é tão natural e se dá em tantas ocasiões que poucos hesitarão em admitila Ora uma vez admitido isso deve se necessariamente reconhecer a força da simpatia A virtude é con siderada um meio para a obtenção de um fim Um meio só tem valor se o fim tem valor Mas a felicidade de estranhos só nos afeta por sim patia É a esse princípio portanto que devemos atribuir o sentimento de aprovação decorrente da consideração daquelas virtudes que são úteis à sociedade ou à pessoa virtuosa Essas virtudes formam a prin cipal parte da moral 3 Se fosse apropriado em um assunto como este subornar o lei tor e empregar algo mais que argumentos sólidos para conseguir seu assentimento isso não seria difícil pois temos aqui à nossa disposi ção uma grande abundância de tópicos para cativar os afetos Todos os amantes da virtude e em teoria todos nós o somos embora pos samos nos degenerar na prática certamente devem ficar satisfeitos em ver que as distinções morais são derivadas de uma fonte tão no bre que nos dá uma noção correta tanto da generosidade quanto da capacidade de nossa natureza Um leve conhecimento dos assuntos humanos é suficiente para se perceber que o sentido da moralidade é um princípio inerente à alma e um dos elementos mais poderosos de sua composição Mas esse sentido deve certamente ganhar mais força quando ao refletir sobre si próprio aprova os princípios de que deriva sem encontrar em seu nascimento e origem nada que não seja 658 Livro 3 Parte 3 Seção 6 grande e bom Aqueles que reduzem o sentido da moralidade a ins tintos originais da mente humana podem defender a causa da virtu de com bastante autoridade mas carecem da vantagem daqueles que explicam esse sentido por uma simpatia extensa com a humanidade De acordo com este último sistema não é apenas a virtude que deve ser aprovada mas também o sentido da virtude e não apenas esse senti do como também os princípios de que ele deriva Desse modo de todos os lados não se apresenta nada que não seja louvável e bom 4 Essa observação podese estender à justiça e às outras virtudes dessa espécie Embora a justiça seja artificial o sentido de sua mora lidade é natural É a associação dos homens em um sistema de con duta que torna um ato de justiça benéfico para a sociedade Mas uma vez que esse ato adquira tal tendência nós naturalmente o aprovamos se não fosse assim nenhuma associação ou convenção jamais pode ria produzir esse sentimento 5 A maior parte das invenções humanas estão sujeitas a mudanças Dependem do humor e do capricho Permanecem em voga durante um certo tempo e então caem no esquecimento Por isso talvez se tema que se a justiça fosse considerada uma invenção humana te ria o mesmo destino Mas são casos completamente diferentes O in teresse em que a justiça está fundada é o maior que se pode imagi nar estendendose a todos os tempos e lugares Nenhuma outra invenção poderia satisfazêlo É um interesse evidente e se revela assim que a sociedade se forma Todas essas causas tornam as re gras da justiça firmes e imutáveis ou ao menos tão imutáveis quanto a natureza humana Se fossem fundadas em instintos originais aca so poderiam ter maior estabilidade 6 O mesmo sistema pode nos ajudar a ter uma noção correta da felicidade bem como da dignidade da virtude e pode fazer que todos os princípios de nossa natureza se interessem em abrigar e alimentar essa nobre qualidade De fato quem não sente aumentar seu entusias mo pela busca de conhecimento e de todo tipo de habilidade quando considera que além das vantagens que podem resultar imediatamente 659 Tratado da natureza humana dessas aquisições estas também lhe darão um novo brilho aos olhos da humanidade por serem universalmente estimadas e aprovadas E quem poderia pensar que qualquer vantagem decorrente da rique za poderia ser suficiente para compensar a menor violação das virtu des sociais quando considera que não apenas seu caráter perante as outras pessoas mas também sua paz e satisfação interior dependem inteiramente de sua estrita observância dessas virtudes e que ne nhum intelecto pode suportar encarar a si próprio se não for capaz de cumprir seu papel perante os homens e a sociedade Mas não que ro insistir nesse tema Tais reflexões requerem uma obra à parte muito diferente do espírito do presente livro O anatomista nunca deve emular o pintor nem deve em suas cuidadosas dissecções e em suas descrições das partes mais diminutas do corpo humano querer dar às suas figuras atitudes ou expressões graciosas e atraentes Existe mesmo algo repulsivo ou ao menos desprezível na visão que nos fornece das coisas é necessário situar os objetos mais à distância tornálos menos visíveis para que se tornem mais atraentes para o olho ou para a imaginação O anatomista entretanto é admiravel mente bem qualificado para aconselhar o pintor chega a ser impra ticável atingir a perfeição nesta última arte sem o auxílio da primeira Temos de ter um conhecimento exato das partes de sua posição e conexão para podermos desenhar com elegância e correção Assim as especulações mais abstratas acerca da natureza humana por mais frias e monótonas que sejam fazemse um instrumento da moral prática e podem tornar esta última ciência mais correta em seus pre ceitos e mais persuasiva em suas exortações 660 Apêndice 1 Não há nada que eu pudesse desejar mais que ter a oportunidade de confessar meus erros um semelhante retorno à verdade e à razão seria para mim mais honroso que o juízo mais infalível O homem que se encontra livre de erros só pode pretender ser louvado pela precisão de seu entendimento mas aquele que corrige seus erros mostra a um só tempo a precisão de seu entendimento e a sinceri dade e candura de seu caráter Ainda não tive a sorte de descobrir nenhum erro importante nos raciocínios expostos nos volumes precedentes exceto em um ponto A experiência mostroume po rém que algumas expressões que utilizei não foram tão bem esco lhidas a ponto de evitar malentendidos por parte dos leitores e foi sobretudo para remediar essa imperfeição que acrescentei o apêndi ce a seguir 2 Só podemos ser levados a crer em uma questão de fato se sua causa ou efeito diretos ou colaterais estiverem presentes a nós mas qual a natureza dessa crença que resulta da relação de causa e efeito eis algo que poucos tiveram a curiosidade de se perguntar Em minha opinião o seguinte dilema é inevitável ou a crença é uma nova idéia tal como a idéia de realidade ou de existência que juntamos à simples concepção de um objeto ou é simplesmente uma sensação ou senti 661 Tratado da natureza humana menta peculiar Que ela não é uma nova idéia vinculada à simples con cepção podese mostrar por estes dois argumentos Primeiramente não possuímos uma idéia abstrata de existência que seja distinguível e separável da idéia de objetos particulares É impossível portanto que essa idéia de existência possa ser vinculada à idéia de um objeto ou estabelecer a diferença entre uma simples concepção e uma cren ça Em segundo lugar a mente tem o controle de todas as suas idéias e pode separar unir misturar e transformálas a seu belprazer de modo que se a crença consistisse meramente em uma nova idéia vinculada à concepção os homens teriam o poder de acreditar na quilo que quisessem Concluímos portanto que a crença consiste unicamente em uma certa sensação ou sentimento em algo que não depende da vontade devendo antes resultar de certas causas e prin cípios determinados que estão fora de nosso controle Quando estamos convencidos de um fato não fazemos mais que concebê lo juntamente com uma certa sensação feeling diferente daquela que acompanha os meros devaneios da imaginação E quando ex pressamos nossa incredulidade sobre um fato queremos dizer que os argumentos em seu favor não produzem essa sensação feeling Se a crença não consistisse em um sentimento diferente da simples concepção qualquer objeto apresentado pela imaginação mais des vairada estaria em pé de igualdade com as verdades mais bem esta belecidas fundadas na história e na experiência Apenas a sensação ou sentimento distingue as duas coisas 3 Considerandose assim uma verdade indubitável que a crença não é senão uma sensação feeling peculiar diferente da simples concepção a próxima questão que nos ocorre naturalmente é qual a natureza des sa sensação ou sentimento Será análogo a algum outro sentimento da men te humana Essa é uma questão importante Pois se esse sentimento não for análogo a nenhum outro devemos desistir de explicar suas causas e teremos de considerálo um princípio original da mente hu mana Se for análogo podemos ter esperanças de explicar suas causas por analogia remetendoo a princípios mais gerais Ora todos admi 662 Apêndice tirão que existe uma maior firmeza e solidez nas concepções que são objetos de convicção e certeza que nos vagos e indolentes devaneios de um sonhador Aquelas nos tocam com mais força são mais presentes a mente tem mais domínio sobre elas e se vê afetada e movida por elas de modo mais intenso Concedelhes seu assenti mento e como que se fixa e repousa sobre elas Em suma essas con cepções estão mais próximas das impressões que nos são imediata mente presentes e são portanto análogas a muitas outras operações da mente 4 Em minha opinião não há possibilidade de se evitar essa conclu são a não ser afirmandose que a crença além da simples concepção consiste em alguma impressão ou sensação feeling distinguível da concepção Ela não modificaria a concepção ou tornálaia mais pre sente e intensa Apenas estaria vinculada a ela do mesmo modo que a vontade e o desejo estão vinculados às concepções particulares do bem e do prazer Mas as seguintes considerações serão suficientes espe ro para afastar essa hipótese Em primeiro lugar ela é diretamente contrária à experiência e a nossa consciência imediata Todos sempre admitiram que o raciocínio é uma simples operação de nossos pen samentos ou idéias e por mais que possa variar a maneira como senti mos essas idéias nada jamais entra em nossas conclusões senão idéias ou seja nossas concepções mais fracas Por exemplo ouço agora a voz de uma pessoa que conheço e esse som vem do quarto ao lado Essa impressão de meus sentidos imediatamente conduz meus pen samentos à pessoa juntamente com os objetos circundantes Repre sentoos para mim mesmo como existentes no presente com as mes mas qualidades e relações que sabia que eles possuíam antes Essas idéias se apoderam de minha mente com mais firmeza que a idéia de um castelo encantado Eu as sinto de maneira diferente mas não há nenhuma impressão distinta ou separada acompanhandoas O mesmo se passa quando me recordo dos vários incidentes de uma viagem ou dos acontecimentos de uma história Cada fato particular é então objeto de crença Sua idéia se diferencia dos vagos devaneios de um 663 Tratado da natureza humana sonhador mas não há uma impressão distinta acompanhando cada idéia ou cada concepção distinta de um fato Isso é objeto de uma clara experiência Se há alguma ocasião em que essa experiência pode ser questionada é quando a mente está inquieta em virtude de dúvidas ou dificuldades mas depois considerando o objeto de um novo ponto de vista ou estando de posse de um novo argumento ela repousa e se fixa em uma única conclusão com uma crença estável Nesse caso existe uma sensação feeling distinta e separada da concepção A pas sagem da dúvida e da inquietação à tranqüilidade e ao repouso trans mite satisfação e prazer à mente Mas tomemos um outro caso Su ponhamos que eu veja as pernas de uma pessoa em movimento enquanto algum objeto entre nós esconde o resto de seu corpo Aqui é certo que a imaginação irá completar toda a figura Doulhe uma cabeça ombros peito e pescoço Concebo essas partes do corpo e acredito que a pessoa as possui Nada poderia ser mais evidente que o fato de que toda essa operação é realizada apenas pelo pensamento ou imaginação A transição é imediata As idéias atingemnos de pron to Sua conexão habitual com a impressão presente as altera e modi fica de uma certa maneira mas não produz nenhum ato mental dis tinto dessa peculiaridade de concepção Quem quiser examinar sua própria mente verá que isso é evidentemente verdadeiro 5 Em segundo lugar seja qual for o caso dessa impressão distinta devese admitir que a mente tem um maior domínio ou concebe mais firmemente aquilo que considera um fato que aquilo que vê como fic ção Então por que procurar mais por que multiplicar suposições sem necessidade 6 Em terceiro lugar podemos explicar as causas de uma concepção firme mas não as de uma impressão separada E não só isso as cau sas da concepção firme esgotam todo o assunto e não resta nada que possa produzir qualquer outro efeito Uma inferência a respeito de uma questão de fato não é senão a idéia de um objeto freqüentemen te conjugado ou associado com uma impressão presente Isso é tudo 664 Apêndice Cada um desses elementos é necessário para explicar por analogia a concepção mais estável e não resta nada que seja capaz de produ zir uma impressão distinta 7 Em quarto lugar os efeitos da crença sua influência sobre as pai xões e a imaginação podem ser todos explicados pela concepção fir me não temos nenhuma necessidade de recorrer a outro princípio Esses argumentos juntamente com muitos outros expostos nos vo lumes precedentes provam suficientemente que a crença apenas mo difica a idéia ou concepção e nos faz sentir essa idéia de maneira di ferente sem produzir uma impressão distinta 8 Assim uma visão geral do problema nos permite encontrar duas questões importantes que ousamos recomendar à consideração dos filósofos além da sensação ou sentimento há alguma coisa que distinga a crença da simples concepção E essa sensação feeling é alguma coisa diferente de uma concepção mais firme ou um maior domínio nosso sobre o objeto 9 Se após uma investigação imparcial os filósofos concordarem com minha conclusão a próxima tarefa será examinar a analogia exis tente entre a crença e outros atos da mente bem como descobrir a causa da firmeza e força da concepção Aliás não considero essa uma tarefa difícil A transição que parte de uma impressão presente sem pre aviva e reforça uma idéia Quando um objeto se apresenta a idéia daquele que comumente o acompanha imediatamente nos toca como algo real e sólido Essa idéia é sentida mais que concebida e se apro xima em força e influência da impressão de que é derivada Isso já provei abundantemente Não sou capaz de acrescentar novos argu mentos embora meu raciocínio a respeito de toda essa questão so bre a causa e efeito talvez tivesse sido mais convincente se as passa gens a seguir houvessem sido inseridas nos lugares que ora indico Acrescentei algumas ilustrações sobre outros pontos onde achei que eram necessárias A inserir no Livro 1 página 1 1 3 linha 3 1 após as palavras mais fracas e obscuras iniciando um novo parágrafo 665 Tratado da natureza humana 10 É freqüente acontecer que quando dois homens estiveram en volvidos em um episódio um deles se lembre dele muito melhor do que o outro e tenha a maior dificuldade do mundo para fazer que seu companheiro se lembre também Enumera em vão diversas circuns tâncias menciona o momento o lugar as pessoas que estavam pre sentes o que foi dito o que cada um fez até que finalmente toca em uma circunstância feliz que faz reviver o conjunto todo dando a seu amigo uma memória perfeita de cada detalhe Aqui a pessoa que esqueceu recebe inicialmente do discurso da outra todas as idéias com as mesmas circunstâncias de tempo e lugar mas as considera meras ficções da imaginação Entretanto assim que é mencionada a circuns tância que toca sua memória exatamente as mesmas idéias aparecem sob nova luz produzindo como que uma sensação feeling diferente daquela que antes produziam Sem qualquer outra alteração além dessa na sensação feeling elas se tornam imediatamente idéias da memória e recebem nosso assentimento 1 1 Portanto como a imaginação é capaz de representar todos os mesmos objetos que a memória pode nos oferecer e já que essas fa culdades só se distinguem pela maneira diferente como sentimos as idéias que nos apresentam talvez seja apropriado considerar qual a natureza dessa sensação feeling E aqui acredito que todos concor darão imediatamente comigo que as idéias da memória são mais for tes e mais vívidas que as da fantasia Um pintor que quisesse etc A inserir no Livro 1 página 126 linha 1 5 após as palavras con forme à definição precedente iniciando um novo parágrafo 12 Essa operação da mente que gera a crença em um fato parece ter sido até hoje um dos maiores mistérios da filosofia embora ninguém tenha sequer suspeitado de que havia alguma dificuldade em sua ex plicação De minha parte devo confessar que vejo aqui uma dificul dade considerável e mesmo quando penso compreender perfeitamente 666 Apêndice o assunto não encontro as palavras adequadas para expressar o que quero dizer Por uma indução que me parece bastante evidente con cluo que uma opinião ou crença não é senão uma idéia que difere de uma ficção não na natureza ou na ordem de suas partes mas sim na maneira como é concebida Mas quando pretendo explicar o que é essa maneira não consigo encontrar nenhuma palavra plenamente satisfatória sendo por isso obrigado a apelar para aquilo que cada um sente a fim de lhe dar uma noção perfeita dessa operação da mente Uma idéia que recebe o assentimento é sentida de maneira diferente feels different de uma idéia fictícia apresentada apenas pela fanta sia É essa maneira diferente de sentir this different feeling que tento explicar denominandoa uma força vividez solidez firmeza ou estabi lidade superior Essa variedade de termos que pode parecer tão pou co filosófica busca apenas exprimir aquele ato mental que torna as realidades mais presentes a nós que as ficções e faz com que tenham um peso maior no pensamento bem como uma influência superior sobre as paixões e a imaginação Contanto que concordemos acerca dos fatos é desnecessário discutir sobre os termos A imaginação tem o controle de todas as suas idéias podendo juntálas misturálas e alterálas de todos os modos possíveis Ela pode conceber os objetos com todas as circunstâncias de tempo e espaço Pode por assim di zer apresentálos a nossos olhos em suas cores verdadeiras exata mente como devem ter existido Mas como é impossível que essa faculdade possa jamais por si só alcançar a crença é evidente que esta não consiste na natureza ou na ordem de nossas idéias mas na maneira como as concebemos e como são sentidas pela mente Con fesso que é impossível explicar perfeitamente essa sensação feeling ou maneira de se conceber Podemos empregar palavras que expres sem algo próximo a isso Mas seu nome verdadeiro e apropriado é crença termo que todos compreendem suficientemente na vida co mum E na filosofia não podemos ir além da afirmação de que a crença é algo sentido pela mente que permite distinguir as idéias do juízo das ficções da imaginação A crença dá a essas idéias mais força 667 Tratado da natureza humana e influência faz com que pareçam mais importantes fixaas na mente e as torna os princípios reguladores de todas as nossas ações Nota ao Livro 1 página 1 3 1 linha 2 após as palavras impressão imediata 13 Naturane nobis inquit datum dicam an errore quodam ut cum ea loca videamus in quibus memoria dignos viras acceperimus multum esse versatos magis moveamur quam siquando eorum ipsorum aut f acta audiamus aut scriptum aliquod legamus velut ego nunc moveor Venit enim mihi Platonis in mentem quem accipimus primum hic disputare solitum Cujus etiam illi hortuli propinqui non memoriam solum mihi afferunt sed ipsum videntur in conspectu meo hic ponere Hic Speusippus hic Xenocrates hic ejus auditor Polemo cujus ipsa ilia sessio fuit quam videamus Equidem etiam curiam nostram hostiliam dica non hanc novam quce mihi minar esse videtur postquam est major solebam intuens Scipionem Catonem Lcelium nostrum vera in primis avum cogitare Tanta vis admonitionis inest in locis ut non sine causa ex his memorice ducta sit disciplina Cicero de Finibus livro 5 A inserir no Livro 1 página 1 54 linha 8 após as palavras impres sões dos sentidos iniciando um novo parágrafo Cícero De finibus Livro 5 1 fr 2 Será uma inclinação natural ou bem não sei que ilusão Mas quando vemos os próprios lugares em que sabemos que viveram e tanto se destacaram aqueles homens memoráveis sentimonos muito mais comovidos do que quando apenas ouvimos falar de seus feitos ou lemos algum de seus escritos Por exem plo eu neste momento estou comovido Recordome de Platão dizem que foi o primei ro a utilizar este lugar para suas conversas e esses jardinetes à minha frente não só me tornam presente sua memória mas por assim dizer põem sua imagem diante de meus olhos Aqui ficava Espeusipo aqui Xenócrates aqui o discípulo de Xenócrates Polemon sentavamse bem aqui neste lugar que estamos vendo E também em Roma quando em nossa cúria refirome à cúria Hostília e não à nova que me parece menor desde que a ampliaram sempre me punha a pensar em Cipião em Catão em Lélio e sobretudo em meu avô Tal poder de recordação têm os lugares não é sem razão que foram usados para se criar uma arte da memória NT 668 Apêndice 14 Observemos que a poesia possui esse mesmo efeito em um grau menor A poesia e a loucura têm em comum o fato de que a vividez que conferem às idéias não é derivada das situações ou conexões par ticulares dos objetos dessas idéias mas do humor e disposição da pessoa naquele momento Porém por maior que seja a intensidade atingida pela vividez é evidente que na poesia ela nunca tem a mes ma sensação feeling que a vividez que surge na mente ao raciocinar mos mesmo quando esse raciocínio se faz com base no grau mais baixo de probabilidade A mente distingue facilmente entre os dois tipos de vividez e qualquer que seja a emoção conferida aos espíritos animais pelo entusiasmo poético tratase sempre de um mero simu lacro de crença ou persuasão O que ocorre com a idéia ocorre tam bém com as paixões por ela ocasionadas Não há paixão da mente humana que não possa surgir da poesia Mas ao mesmo tempo as sensações feelings das paixões são muito diferentes quando desperta das por ficções poéticas e quando nascem da crença e da realidade Uma paixão que na vida real é desagradável pode proporcionar um grande deleite em uma tragédia ou um poema épico Neste último caso ela não pesa tanto sobre nós é sentida como algo menos firme e sólido e seu único efeito é estimular agradavelmente os espíritos animais e despertar a atenção A diferença nas paixões é uma clara prova da existência de uma diferença semelhante nas idéias que ori ginam as paixões Quando a vividez surge de uma conjunção habitual com uma impressão presente mesmo que aparentemente a imagina ção possa não ser tão afetada há sempre algo mais imperativo e real em suas ações que no calor da poesia e da eloqüência A força de nos sas ações mentais não deve neste caso como em nenhum outro ser medida pela agitação aparente da mente Uma descrição poética pode ter um efeito mais sensível sobre a fantasia que uma narrativa histó rica Pode reunir um maior número daquelas circunstâncias que for mam uma imagem ou quadro completo Pode parecer dispor diante de nós o objeto em cores mais vivas Mas ainda assim as idéias que apresenta são sentidas de maneira diferente que aquelas que surgem 669 Tratado da natureza humana da memória e do juízo Há algo fraco e imperfeito em meio a toda a aparente veemência de pensamento e sentimento que acompanha as ficções da poesia 15 Mais tarde teremos ocasião de observar tanto as semelhanças como as diferenças entre um entusiasmo poético e uma convicção séria Enquanto isso não posso deixar de notar que a grande diferen ça em sua sensação feeling procede em certa medida da reflexão e das regras gerais Observamos que o vigor na concepção que as fic ções recebem da poesia e da eloqüência é uma circunstância mera mente acidental de que toda idéia é suscetível e que tais ficções não se conectam com nada real Essa observação faz que apenas nos en treguemos temporariamente por assim dizer à ficção Mas a idéia é sentida de modo muito diferente das convicções permanentemente estabelecidas que se fundam na memória e no costume Ficções e con vicções são um pouco do mesmo gênero mas aquelas são muito in feriores a estas em suas causas como em seus efeitos 1 6 Uma reflexão semelhante sobre as regras gerais impede que au mentemos nossa crença a cada vez que cresce a força e a vividez de nos sas idéias Quando uma opinião não comporta dúvida ou qualquer probabilidade oposta atribuímos a ela uma total convicção embora a falta de semelhança ou contigüidade possa tornar sua força inferior à de outras opiniões É assim que o entendimento corrige as aparên cias sensíveis fazendonos imaginar que um objeto a uma distância de vinte pés pareça aos olhos tão grande quanto um outro objeto do mesmo tamanho a uma distância de dez pés A inserir no Livro 1 página 194 linha 8 após as palavras nenhu ma idéia de poder iniciando um novo parágrafo 17 Alguns afirmaram que sentimos uma energia ou poder em nossa própria mente e tendo assim adquirido a idéia de poder transferi mos essa qualidade à matéria na qual não somos capazes de desco brila imediatamente Os movimentos de nosso corpo assim como 670 Apêndice os pensamentos e sentimentos de nossa mente dizem obedecem à vontade não precisamos ir além disso para obter uma noção corre ta de força ou poder Mas para nos convencermos de quão falacioso é esse raciocínio basta considerarmos que como a vontade é aqui tida como uma causa ela não tem com seu efeito uma conexão mais manifesta que aquela que qualquer causa material tem com seu pró prio efeito Longe de se perceber a conexão entre um ato de volição e um movimento do corpo o que se vê é que nenhum efeito é mais inexplicável dados os poderes e a essência do pensamento e da ma téria Tampouco o domínio da vontade sobre nossa mente é mais in teligível Aqui o efeito é distinguível e separável da causa e não pode ria ser previsto sem a experiência de sua conjunção constante Temos o comando de nossa mente até um certo grau mas além deste perde mos todo domínio sobre ela E sem consultarmos a experiência é evi dentemente impossível fixar qualquer limite preciso para nossa auto ridade Em suma as ações da mente são sob esse aspecto iguais às da matéria Tudo que percebemos é sua conjunção constante e nosso raciocínio jamais pode ir além disso Nenhuma impressão interna pos sui uma energia evidente não mais que os objetos externos Portanto já que os filósofos admitem que a matéria age por meio de uma força desconhecida em vão esperaríamos chegar a uma idéia de força con sultando nossa própria mente 1 18 Eu acalentava alguma esperança de que por mais deficiente que pudesse ser nossa teoria do mundo intelectual ela estaria livre da quelas contradições e absurdos que parecem acompanhar qualquer explicação que a razão humana possa dar acerca do mundo material Mas ao fazer uma revisão mais cuidadosa da seção concernente à iden A mesma imperfeição acompanha nossas idéias de Deus mas isso não pode ter nenhuma conseqüência para a religião ou para a moral A ordem do universo prova a existência de uma mente onipotente isto é uma mente cuja vontade se faz constantemente acompanhar pela obediência de todas as criaturas e seres Nada mais é preciso para fundamentar todos os artigos religiosos e tampouco é necessário formarmos uma idéia distinta da força e energia do ser supremo 671 Tratado da natureza humana tidade pessoal vejome perdido em um tal labirinto que devo confes sar não sei nem como corrigir minhas opiniões anteriores nem como tornálas coerentes Se essa não for uma boa razão geral para o ceti cismo ao menos é uma razão suficiente como se eu já não tivesse bastantes razões para guardar uma desconfiança e modéstia em to das as minhas decisões Apresentarei os argumentos de um lado e de outro começando com os que me levaram a negar a identidade e sim plicidade em sentido estrito e próprio de um eu ou ser pensante 19 Quando falamos de eu ou substância devemos ter uma idéia vin culada a esses termos pois de outro modo eles seriam inteiramente ininteligíveis Toda idéia deriva de impressões anteriores e não te mos nenhuma impressão de eu ou substância enquanto algo simples e individual Portanto não temos nenhuma idéia de eu ou substância nesse sentido 20 Tudo que é distinto é distinguível e tudo que é distinguível é se parável pelo pensamento ou imaginação Todas as percepções são dis tintas São portanto distinguíveis e separáveis podem ser concebi das como separadamente existentes e podem existir separadamente sem que haja nisso contradição ou absurdo 21 Quando vejo esta mesa e aquela lareira nada está presente a mim senão percepções particulares que têm uma natureza semelhante à de todas as outras percepções Essa é a doutrina dos filósofos Mas esta mesa que está presente a mim e aquela lareira podem existir e de fato existem separadamente Essa é a doutrina do vulgo e não implica qualquer contradição Não há contradição portanto em se estender a mesma doutrina a todas as percepções 22 Em geral o seguinte raciocínio parece satisfatório Todas as idéias são tiradas de percepções anteriores Nossas idéias dos objetos por tanto derivam dessa fonte Conseqüentemente nenhuma proposi ção pode ser inteligível ou coerente no que diz respeito aos objetos se não o for no que diz respeito às percepções Mas é inteligível e coe rente dizer que os objetos existem de maneira distinta e independen te sem ter em comum nenhuma substância simples ou sujeito de 672 Apêndice inerência Essa proposição portanto nunca poderia ser absurda no que diz respeito às percepções 23 Quando volto minha reflexão para mim mesmo nunca consigo per ceber esse eu sem uma ou mais percepções e não percebo nada além de percepções É a combinação destas portanto que forma o eu 24 Podemos conceber que um ser pensante tenha muitas ou poucas percepções Suponhamos que a mente seja reduzida a um estado in ferior ao de uma ostra Suponhamos que tenha apenas uma percep ção como a de sede ou fome Consideremola nessa situação Sois capazes de perceber alguma coisa além dessa mera percepção Possuís alguma noção de eu ou substância Se não a possuís a adição de ou tras percepções nunca poderá vos dar essa noção 25 A aniquilação que algumas pessoas supõem seguirse à morte e destruir inteiramente esse eu não é mais que a extinção de todas as percepções particulares amor e ódio dor e prazer pensamento e sen sação sensation Essas percepções portanto têm de ser o mesmo que o eu já que uma coisa não pode subsistir sem a outra 26 Será o eu o mesmo que a substância Se o for como é possível a questão da permanência do eu diante de uma mudança de substân cia Se forem distintos qual a diferença entre eles De minha parte não tenho qualquer noção de nenhum dos dois se concebidos como distintos das percepções particulares 27 Os filósofos começam a aceitar o princípio de que não temos ne nhuma idéia de uma substância externa que seja distinta das idéias das quali dades particulares Esse princípio deve abrir caminho para a aceitação de um princípio semelhante a respeito da mente não temos uma noção da mente que seja distinta das percepções particulares 28 Até aqui meu argumento parece ter uma evidência suficiente Mas tendo assim desfeito o laço que prendia todas as nossas percepções par ticulares quando2 passo a explicar o princípio de conexão que as liga e que nos faz atribuir a elas uma real simplicidade e identidade percebo que minha explicação é muito deficiente e só a aparente evidência 2 Livro 1 p292 673 Tratado da natureza humana dos raciocínios anteriores pode terme levado a aceitála Se as per cepções são existências distintas elas só formam um todo por esta rem conectadas Mas o entendimento humano não é capaz de desco brir nenhuma conexão entre existências distintas Apenas sentimos uma conexão ou determinação do pensamento a passar de um ob jeto a outro Seguese portanto que apenas o pensamento encontra a identidade pessoal quando ao refletir sobre a cadeia de percepções passadas que compõem uma mente sente que as idéias dessas per cepções estão conectadas entre si e introduzem naturalmente umas às outras Por mais extraordinária que possa parecer essa conclusão ela não deve nos surpreender A maioria dos filósofos parece inclinada a pensar que a identidade pessoal surge da consciência e que a cons ciência é apenas um pensamento ou percepção refletida A presente filosofia portanto tem até aqui um aspecto promissor Mas todas as minhas esperanças se desvanecem quando passo a explicar os prin cípios que unem nossas percepções sucessivas em nosso pensamento ou consciência Não consigo descobrir nenhuma teoria que me sa tisfaça quanto a esse ponto 29 Em suma há dois princípios a que não posso renunciar mas que não consigo tornar compatíveis que todas as nossas percepções distintas são existências distintas e que a mente nunca percebe nenhuma conexão real entre existências distintas Se nossas percepções fossem inerentes a al guma coisa simples e individual ou então se a mente percebesse algu ma conexão real entre elas não haveria dificuldade alguma De mi nha parte devo apelar para o privilégio do cético e confessar que essa dificuldade é demasiado árdua para meu entendimento Entretanto não pretendo afirmar que seja absolutamente insuperável Outros talvez ou eu mesmo após uma reflexão mais madura poderemos vir a descobrir alguma hipótese que resolva essas contradições 30 Aproveitarei também esta oportunidade para confessar outros dois erros menos importantes que uma reflexão mais madura me levou a descobrir em meu raciocínio O primeiro podese encontrar no Livro 1 página 85 onde digo que a distância entre dois corpos é 674 Apêndice conhecida entre outras coisas pelos ângulos que os raios de luz emanados desses corpos formam entre si O certo é que esses ângu los não são conhecidos pela mente e como conseqüência jamais po dem revelar a distância O segundo erro podese encontrar no Livro 1 página 1 25 onde digo que duas idéias do mesmo objeto só podem se diferenciar por seus graus de força e vividez Acredito haver outras diferenças entre as idéias que não podem ser compreendidas de ma neira apropriada nesses termos Se houvesse dito que duas idéias do mesmo objeto só podem se diferenciar por suas diferentes sensações feeling eu teria estado mais perto da verdade 3 1 Há dois erros de impressão que afetam o sentido do texto e por isso peço que sejam corrigidos pelo leitor No Livro 1 página 223 linha 12 onde está como a percepção leiase uma percepção Também no Livro 1 p295 linha 24 onde está moral leiase da natureza Nota ao Livro 1 página 44 linha 21 à palavra semelhança 32 É evidente que mesmo idéias simples diferentes podem apresen tar uma semelhança ou similaridade entre si não sendo necessário que o ponto ou a circunstância de semelhança seja distinto ou sepa rável daquela em que elas diferem Azul e verde são idéias simples di ferentes mas se assemelham mais que azul e escarlate embora sua simplicidade perfeita exclua toda possibilidade de separação ou dis tinção O mesmo ocorre com sons sabores e aromas particulares A comparação de seu aspecto geral revela que eles admitem infinitas semelhanças mesmo sem possuir nenhuma circunstância em co mum A própria expressão abstrata idéias simples pode nos dar certe za disso Ela compreende todas as idéias simples que se assemelham uma às outras em sua simplicidade E entretanto por sua própria na tureza que exclui qualquer composição essa circunstância que as torna semelhantes não é distinguível nem separável do resto O mes mo se passa com todos os graus de uma qualidade qualquer Todos eles são semelhantes embora a qualidade presente em um indivíduo não seja distinta de seu grau 675 Tratado da natureza humana A inserir no Livro 1 página 73 linha 28 após as palavras em ou tro canto iniciando um novo parágrafo 33 Há muitos filósofos que se recusam a apontar um critério de igual dade afirmando em vez disso que basta apresentar dois objetos iguais para que tenhamos uma noção correta dessa proporção Sem a per cepção dos objetos dizem eles qualquer definição é infrutífera e quando percebemos os objetos não temos mais necessidade de defi nições Concordo inteiramente com esse raciocínio e afirmo que a única noção útil de igualdade ou desigualdade deriva da aparência una e global bem como da comparação entre objetos particulares A inserir no Livro 1 página 79 linha 25 após as palavras praticá veis ou imagináveis iniciando um novo parágrafo 34 Para onde quer que se voltem os matemáticos encontram sem pre esse dilema Se julgam a igualdade ou qualquer outra proporção pelo critério preciso e exato a saber pela enumeração das diminutas partes indivisíveis eles estão ao mesmo tempo empregando um cri tério que na prática é inútil e provando de fato a indivisibilidade da extensão que tentavam demolir Ou então se empregam como é usual o critério aproximado derivado de uma comparação entre os objetos com base em sua aparência geral corrigida pela medição e justaposição seus primeiros princípios embora certos e infalíveis são demasiadamente grosseiros para permitir inferências tão sutis como as que comumente deles se extraem Os primeiros princípios funda mentamse na imaginação e nos sentidos a conclusão portanto ja mais pode ultrapassar e menos ainda contradizer essas faculdades Nota ao Livro 1 página 92 linha 9 às palavras impressões e idéias 35 Enquanto limitarmos nossas especulações às aparências sensíveis dos objetos sem entrarmos em investigações acerca de sua natureza e operações reais estaremos a salvo de todas as dificuldades e ne 676 Apêndice nhuma questão nos embaraçará Assim quando nos perguntarem se a distância invisível e intangível interposta entre dois objetos é al guma coisa ou nada será fácil responder que é alguma coisa a saber uma propriedade dos objetos que afeta os sentidos de tal maneira parti cular Quando nos perguntarem se dois objetos que guardam entre si tal distância se tocam ou não podemos responder que isso depen de da definição da palavra tocar Se dizemos que dois objetos se to cam quando nenhuma coisa sensível se interpõe entre eles então es ses objetos se tocam Se dizemos que dois objetos se tocam quando suas imagens atingem partes contíguas do olho e quando a mão sente ambos sucessivamente sem a interposição de nenhum movimento então esses objetos não se tocam Todas as aparências sensíveis dos objetos são coerentes e nenhuma dificuldade pode surgir senão da obscuridade dos termos utilizados 36 Se estendermos nossa investigação para além das aparências sen síveis dos objetos receio que a maior parte de nossas conclusões será dominada pelo ceticismo e pela incerteza Assim se nos pergunta rem se a distância invisível e intangível está ou não sempre cheia de algum corpo ou de alguma coisa que o aperfeiçoamento de nossos ór gãos poderia tornar visível ou tangível devo reconhecer que não en contro argumento bastante decisivo a favor de nenhuma das duas res postas embora esteja mais inclinado a dizer que não por ser esta a opinião mais adequada às noções vulgares e populares Quando com preendemos corretamente a filosofia newtoniana vemos que ela não significa mais que isso Afirmase a existência de um vácuo isto é dizse que há corpos dispostos de tal maneira a acolher outros cor pos entre eles sem sofrer impulso ou penetração A natureza real dessa posição dos corpos é desconhecida Conhecemos apenas seus efeitos sobre os sentidos e seu poder de receber algum corpo Nada é mais adequado a essa filosofia que uma modesta dose de ceticismo e uma franca confissão de ignorância a respeito de assuntos que ultra passam toda capacidade humana FINIS 677 Sinopse de um livro recentemente publicado intitulado Tratado da natureza humana e Em que o principal argumento daquele livro recebe ilustrações e explicações adicionais Prefácio 1 Minhas expectativas quanto a este pequeno trabalho parecerão talvez um tanto extraordinárias quando eu declarar que minha intenção é resumir uma obra mais extensa e assim tomála mais inteligível para o leitor comum En tretanto é certo que aqueles que não estão acostumados ao raciocínio abstra to tendem a perder o fio da argumentação quando ela é muito extensa e quando cada parte é reforçada por todos os argumentos disponíveis defen dida contra todas as objeções e ilustrada por meio de todas as considerações que podem ocorrer a um autor quando do exame cuidadoso de seu tema Tais leitores terão mais facilidade em compreender uma seqüência de raciocí nios que seja mais simples e concisa em que apenas as proposições mais impor tantes estão encadeadas umas às outras sendo ilustradas por alguns exemplos simples e confirmadas por uns poucos argumentos mais convincentes Como as partes estão mais próximas umas das outras elas podem ser melhor com paradas e a conexão entre os primeiros princípios e a conclusão final pode ser mais facilmente compreendida 2 A obra cujo resumo apresento aqui ao leitor foi considerada obscura e de difícil compreensão e sou levado a pensar que isso se deve tanto a sua exten são quanto ao caráter abstrato da argumentação Se conseguir remediar em algum grau esse inconveniente então terei atingido meu objetivo O livro pa receume ter uma singularidade e uma novidade suficientes para reclamar a 681 Tratado da natureza humana atenção do público sobretudo se como o autor parece insinuar constatarmos que caso sua filosofia seja aceita teremos de alterar desde seus fundamentos a maior parte das ciências Empreendimentos ousados como este são sempre salutares na república das letras porque sacodem o jugo da autoridade acos tumam os homens a pensar por si próprios dão novas sugestões que homens de gênio podem levar adiante e por sua própria oposição a eles ilustram pontos que antes ninguém jamais suspeitara que continham dificuldades 3 O autor deve ter a paciência de aguardar algum tempo até que o mundo erudito possa formar uma opinião sobre sua obra Infelizmente ele não pode apelar para o povo que conforme podemos constatar constitui um tribunal tão infalível em todas as questões que envolvem a razão comum e a eloqüência Terá de ser julgado por aqueles poucos cujo veredicto é mais facilmente corruptível pela parcialidade e pelo preconceito sobretudo porque ninguém será um bom juiz desses assuntos se não tiver pensado freqüentemente so bre eles mas aqueles que o fizeram tendem a formar seus próprios sistemas aos quais não pretendem renunciar Espero que o autor perdoe minha in tromissão nessa questão meu propósito é tãosomente ampliar sua audiên cia eliminando algumas dificuldades que têm impedido muitas pessoas de compreender o que quer dizer 4 Escolhi um único e simples argumento que cuidadosamente acompanhei do início ao fim Esse é o único ponto que fiz questão de terminar O resto são apenas indicações de passagens particulares que me pareceram curiosas e dignas de nota 682 Sinopse de um livro recentemente publicado intitulado Tratado da natureza humana 1 Este livro parece ter sido escrito na mesma linha que várias ou tras obras recentemente em voga na Inglaterra O espírito filosófico que tanto temse aprimorado por toda a Europa nos últimos oitenta ou cem anos tem progredido tanto neste reino quanto em qualquer outro Nossos autores parecem mesmo ter dado início a um novo tipo de filosofia mais promissora no que diz respeito ao entretenimento e à edificação dos homens do que qualquer outra que o mundo já tenha conhecido A maioria dos filósofos da Antiguidade que abordaram o tema da natureza humana mostraram antes um sentimento refina do um justo sentido moral ou uma grandeza de espírito que um racio cínio e reflexão muito profundos Contentaramse em representar o senso comum dos homens nas cores mais fortes e no melhor estilo de pensamento e expressão sem seguir firmemente uma cadeia de proposições ou organizar as diversas verdades em uma ciência regu lar Mas ao menos vale a pena tentar descobrir se a ciência do homem não admite a mesma precisão que vemos ser possível em várias partes da filosofia da natureza Parece que temos todas as razões do mundo para imaginar que ela pode atingir o grau máximo de exatidão Se ao 683 Tratado da natureza humana examinar diversos fenômenos descobrirmos que eles se reduzem a um princípio comum e formos capazes de remeter este princípio a outro chegaremos finalmente àqueles poucos princípios simples de que todo o resto depende E mesmo que jamais possamos chegar aos princípios últimos já é uma satisfação ir até onde nossas facul dades nos permitem ir 2 Esse parece ter sido o objetivo de nossos filósofos mais recentes e entre eles nosso autor Ele se propõe a fazer uma anatomia da natu reza humana de uma maneira sistemática e promete não tirar nenhuma conclusão sem a autorização da experiência Fala das hipóteses com desprezo e sugere que aqueles nossos conterrâneos que as baniram da filosofia moral prestaram ao mundo um serviço mais notável que Lord Bacon a quem considera o pai da física experimental Mencio na nessa oportunidade o Sr Locke Lord Shaftesbury o Dr Mandeville o Sr Hutcheson o Dr Butler que embora difiram entre si em muitos pontos parecem concordar em fundamentar suas rigorosas investi gações acerca da natureza humana exclusivamente na experiência 3 Além da satisfação de conhecer aquilo que nos concerne mais de perto podese afirmar com segurança que quase todas as ciências estão incluídas na ciência da natureza humana e dela dependem A única finalidade da lógica é explicar os princípios e as operações de nossa faculdade de raciocínio e a natureza de nossas idéias a moral e a crítica dizem respeito a nossos gostos e sentimentos e a política considera os homens enquanto unidos em sociedade e dependentes uns dos outros Por tanto esse tratado da natureza humana parece ter sido projetado como um sistema das ciências O autor completou a parte concer nente à lógica e estabeleceu o fundamento das outras partes em sua explicação sobre as paixões 4 O célebre Monsieur Leibniz observou que os sistemas comuns de lógica têm o defeito de ser muito prolixos quando explicam as ope Essais de Theodicée Discours de la conformité de la foi avec la raison 3 1 NT 684 Sinopse rações do entendimento na formação das demonstrações mas demasiadamente concisos quando tratam das probabilidades e daque les outros critérios da evidência de que a vida e a ação dependem com pletamente e que nos guiam mesmo em nossas especulações mais filosóficas Nessa censura ele inclui o Essay on human understanding La recherche de la verité e IArt de penser O autor do Tratado da nature za humana parece terse dado conta dessa deficiência por parte desses filósofos e esforçouse ao máximo para superála Como seu livro contém um grande número de especulações muito novas e notáveis será impossível dar ao leitor uma noção correta de sua totalidade Por isso iremos nos limitar sobretudo a sua explicação de nossos racio cínios por causa e efeito Se conseguirmos tornar essa explicação in teligível ao leitor ela servirá de amostra do conjunto da obra 5 Nosso autor começa com algumas definições Denomina percep ção tudo que pode estar presente à mente seja quando utilizamos nossos sentidos seja quando somos movidos pelas paixões ou quan do exercitamos nosso pensamento e reflexão Divide nossas percep ções em duas espécies impressões e idéias Quando sentimos qualquer tipo de paixão ou emoção ou quando os sentidos nos transmitem imagens dos objetos externos a percepção da mente é o que ele cha ma de impressão palavra que emprega em um novo sentido Quando refletimos sobre uma paixão ou um objeto que não está presente essa percepção é uma idéia Impressões portanto são nossas percepções fortes e vívidas idéias são as mais fracas e pálidas Essa distinção é evidente tão evidente quanto a distinção entre sentir e pensar 6 A primeira proposição que ele apresenta é a afirmação de que todas as nossas idéias ou seja nossas percepções fracas são deriva das de nossas impressões ou percepções fortes e nunca podemos pensar em nada que não tenhamos visto fora de nós ou que não tenhamos sentido em nossa própria mente Essa proposição parece ser equivalente àquela que o Sr Locke esforçouse tanto para estabe lecer a saber que nenhuma idéia é inata Apenas devese observar que aquele famoso filósofo comete a imprecisão de incluir todas as nossas 685 Tratado da natureza humana percepções sob o termo idéia mas nesse sentido é falso dizer que não temos idéias inatas Pois é evidente que nossas percepções mais fortes ou impressões são inatas e que a afeição natural o amor à virtude o ressentimento e todas as outras paixões surgem imediata mente da natureza Estou convencido de que quem quiser abordar a questão por essa perspectiva poderá facilmente reconciliar todas as partes O padre Malebranche ficaria sem saber como apontar um pen samento da mente que não representasse alguma coisa que ela tives se sentido antes seja internamente seja por meio dos sentidos ex ternos e teria de admitir que por mais que possamos combinar misturar aumentar e diminuir nossas idéias todas elas derivam des sas fontes O Sr Locke por sua vez prontamente reconheceria que todas as nossas paixões são espécies de instintos naturais derivados unicamente da constituição original da mente humana 7 Nosso autor pensa que não poderia haver descoberta mais feliz para a solução de todas as controvérsias em torno das idéias que esta todas as impressões sempre precedem as idéias e toda idéia contida na imaginação apareceu primeiro em uma impressão correspondente As percepções deste último tipo são todas tão claras e evidentes que não admitem qualquer discussão ao passo que muitas de nossas idéias são tão obscuras que é quase impossível mesmo para a men te que as forma dizer qual é exatamente sua natureza e composi ção Assim sempre que uma idéia é ambígua ele recorre à impres são que deve tornála clara e precisa E quando suspeita que um determinado termo filosófico não possui nenhuma idéia vinculada a ele o que é muito comum sempre pergunta de que impressão essa pretensa idéia é derivada E caso não se possa apresentar nenhuma idéia ele conclui que o termo é completamente sem sentido É desse modo que examina nossa idéia de substância e de essência e seria de sejável que esse método rigoroso fosse mais praticado em todos os debates filosóficos 8 É evidente que todos os raciocínios sobre questões de fato se fun dam na relação de causa e efeito e nunca poderemos inferir a exis 686 Sinopse tência de um objeto da existência de outro a menos que eles estejam conectados direta ou indiretamente Portanto para entender esses raciocínios temos de estar perfeitamente familiarizados com a idéia de causa e para isso temos de olhar ao redor e tentar encontrar al guma coisa que seja causa de outra 9 Suponhamos uma bola de bilhar sobre uma mesa e outra bola movendose rapidamente em sua direção Elas se chocam e a bola que antes estava em repouso agora ganha movimento Esse exemplo da relação de causa e efeito é tão perfeito quanto qualquer outro de que tomemos conhecimento pela sensação ou pela reflexão Vamos pois examinálo É evidente que as duas bolas se tocaram antes que o movimento fosse comunicado e não houve intervalo entre o choque shock e o movimento A contigüidade no tempo e no espaço é por tanto um requisito da operação de qualquer causa É também evi dente que o movimento que constituiu a causa é anterior ao movi mento que resultou como efeito A prioridade temporal é portanto outro requisito da causa Mas isso não é tudo Tomemos outras bo las do mesmo tipo em uma situação semelhante veremos que o im pacto impact de uma sempre produz movimento na outra Eis por tanto um terceiro requisito ou seja uma conjunção constante entre a causa e o efeito Todo objeto semelhante à causa produz sempre um objeto semelhante ao efeito Não consigo descobrir nada nessa cau sa além dessas três circunstâncias contigüidade anterioridade e conjunção constante A primeira bola está em movimento toca a se gunda imediatamente a segunda se movimenta e quando repito o experimento com a mesma bola ou com bolas semelhantes na mes ma situação ou em circunstâncias semelhantes constato que quan do uma bola se move e toca a outra seguese sempre um movimento na segunda bola Como quer que eu formule esse problema e como quer que o examine não encontro nada além disso 10 Isso é o que ocorre quando tanto a causa como o efeito estão pre sentes aos sentidos Vejamos agora qual o fundamento de nossa inferência quando concluímos partindo de um dos termos que o ou 687 Tratado da natureza humana tro existiu ou existirá Suponhase que eu veja uma bola se movendo em linha reta em direção a outra concluo imediatamente que as duas se chocarão e a segunda irá se movimentar Essa é a inferência da causa ao efeito e todos os raciocínios que empregamos em nossa vida são desse tipo é neles que se funda toda a nossa crença na história e é deles que deriva toda a filosofia excetuandose a geometria e a aritmética Se pudermos explicar a inferência que fazemos a partir do choque de duas bolas seremos capazes de dar conta dessa opera ção da mente em todos os casos 1 1 Se um homem como Adão fosse criado com todo o vigor de seu entendimento mas sem experiência nunca seria capaz de inferir um movimento na segunda bola do movimento e do impacto da primei ra O que nos faz inferir o efeito não é algo que a razão vê na causa Uma tal inferência se fosse possível constituiria uma demonstra ção por estar fundada exclusivamente na comparação de idéias Mas nenhuma inferência de causa a efeito constitui uma demonstração Existe uma prova evidente disso A mente sempre pode conceber que qualquer efeito se segue de uma causa e aliás que qualquer aconte cimento se segue de outro tudo que concebemos é possível ao menos em um sentido metafísico mas sempre que há uma demonstração o contrário é impossível e implica contradição Portanto não há de monstração que prove uma conjunção entre causa e efeito Esse prin cípio é geralmente aceito pelos filósofos 12 Teria sido necessário portanto que Adão se não fosse inspirado tivesse tido experiência do efeito que se seguiu ao choque dessas duas bolas Teria de ter visto em vários exemplos que sempre que uma bola batia na outra a segunda adquiria movimento Se tivesse observado um número suficiente de exemplos desse tipo sempre que visse uma bola se movendo em direção a outra concluiria sem hesitar que a se gunda iria adquirir movimento Seu entendimento anteciparia sua vi são e formaria uma conclusão adequada a sua experiência passada 13 Seguese então que todos os raciocínios concernentes a causas e efeitos estão fundados na experiência e todos os raciocínios 688 Sinopse baseados na experiência estão fundados na suposição de que o cur so da natureza continuará uniformemente o mesmo Concluímos que causas semelhantes em circunstâncias semelhantes sempre pro duzirão efeitos semelhantes Agora talvez valha a pena considerar o que nos determina a formar uma conclusão tão infinitamente im portante 14 É evidente que Adão com toda sua ciência nunca teria sido ca paz de demonstrar que o curso da natureza tem de continuar unifor memente o mesmo e que o futuro tem de ser conforme ao passado Nunca se poderia demonstrar que algo possível é falso e é possível que o curso da natureza mude uma vez que podemos conceber essa mudança Mais ainda Afirmo que Adão não poderia provar que o futu ro tem de ser conforme ao passado nem sequer por meio de argumen tos prováveis Todos os argumentos prováveis baseiamse na suposi ção de que existe essa conformidade entre o futuro e o passado e portanto nunca poderiam provar essa mesma suposição Essa con formidade é uma questão de fato e se tiver de ser provada só poderá sêlo pela experiência Mas nossa experiência do passado jamais pode provar nada quanto ao futuro a não ser com base na suposição de que existe uma semelhança entre os dois Este é um ponto portan to que não admite absolutamente nenhuma prova e que damos por suposto sem nenhuma prova 1 5 Apenas o COSTUME nos determina a supor que o futuro seja con forme ao passado Quando vejo uma bola de bilhar se mover em di reção a outra minha mente é imediatamente levada pelo hábito a seu efeito usual e antecipa minha visão concebendo a segunda bola em movimento Não há nada nesses objetos considerados de modo abs trato e independentemente da experiência que me leve a formar uma tal conclusão e mesmo após eu ter tido experiência repetida de vários efeitos dessa espécie não há nenhum argumento que me determine a supor que o efeito será conforme à experiência passada Os pode res pelos quais os corpos operam são inteiramente desconhecidos Só percebemos suas qualidades sensíveis e que razão temos para pen 689 Tratado da natureza humana sar que os mesmos poderes estarão sempre em conjunção com as mesmas qualidades sensíveis 16 O guia da vida portanto não é a razão mas o costume Apenas este determina a mente em todos os casos a supor que o futuro é conforme ao passado Por mais fácil que pareça esse passo a razão nunca seria capaz de dálo nem que levasse toda a eternidade 1 7 Essa é uma descoberta muito interessante mas que nos leva a outras ainda mais interessantes Quando vejo uma bola de bilhar moven dose em direção a outra minha mente é imediatamente levada pelo hábito a seu efeito usual e antecipa minha visão concebendo a segunda bola em movi mento Mas será só isso Será que não faço senão CONCEBER o movi mento da segunda bola Não certamente isso não é tudo Eu tam bém CREIO que a bola irá se mover O que é portanto essa crença E qual sua diferença em relação à simples concepção de algo Essa é uma questão nova nunca antes considerada pelos filósofos 18 Quando uma demonstração me convence de uma proposição ela não apenas me faz conceber a proposição mas também me faz perce ber que é impossível conceber algo contrário O que é demonstrati vamente falso implica uma contradição e o que implica contradição não pode ser concebido Mas no que diz respeito a qualquer questão de fato por mais forte que seja a prova extraída da experiência posso sempre conceber seu contrário embora nem sempre possa crer nele A crença portanto faz alguma diferença entre a concepção a que as sentimos e aquela a que não assentimos 19 Para explicar esse ponto há apenas duas hipóteses possíveis Podese dizer que a crença acrescenta uma nova idéia àquelas que po demos conceber mas às quais não damos nosso assentimento Mas essa hipótese é falsa Em primeiro lugar não se pode produzir nenhu ma idéia desse tipo Quando simplesmente concebemos um objeto nós o concebemos com todas as suas partes Concebemos o objeto tal como ele poderia existir mesmo que não acreditemos que ele exista Nossa crença nele não revelaria novas qualidades Podemos repre sentar o objeto inteiro em nossa imaginação sem crer nele Podemos 690 Sinopse por assim dizer situálo diante de nossos olhos com todas as suas circunstâncias de tempo e espaço Tratase do próprio objeto conce bido tal como poderia existir e quando cremos nele não podemos fazer mais que isso 20 Em segundo lugar a mente tem a faculdade de juntar a uma idéia qualquer outra que não seja contraditória em relação a ela portan to se a crença consistisse em uma idéia que acrescentaríamos à sim ples concepção todo homem teria o poder de crer em qualquer coi sa que pudesse conceber bastando para isso acrescentar tal idéia a essa concepção 21 Portanto como a crença implica uma concepção mas também é algo mais que isso e como não acrescenta nenhuma nova idéia à con cepção seguese que é uma MANEIRA diferente de se conceber um objeto algo que é sentido de maneira distinta e ao contrário de to das as nossas idéias não depende de nossa vontade Em virtude do hábito minha mente passa do objeto visível ou seja uma bola mo vendose em direção a outra a seu efeito usual ou seja o movimen to da segunda bola E não apenas concebe esse movimento mas sen te nessa concepção algo diferente de um mero devaneio da imaginação A presença desse objeto visível e a conjunção constante desse efeito particular fazem com que a idéia seja sentida de maneira diferente que aquelas idéias soltas que entram na mente sem nenhuma preparação Essa conclusão parece um pouco surpreendente mas somos levados a ela por uma cadeia de proposições que não admitem qualquer dúvi da Para auxiliar a memória do leitor irei resumilas brevemente Só se pode provar uma questão de fato partindo de sua causa ou efeito So mente pela experiência se pode saber que alguma coisa é causa de outra Não podemos dar nenhuma razão para estendermos ao futuro nossa experiência do passado quando concebemos que um efeito se segue de sua causa usual estamos sendo inteiramente determinados pelo cos tume Mas além de conceber que esse efeito se segue também acre ditamos nisso Essa crença não incorpora nenhuma nova idéia à con cepção Apenas modifica nossa maneira de conceber criando uma 691 Tratado da natureza humana diferença para nossa sensação ou sentimento Em todas as questões de fato portanto a crença surge unicamente do costume consistin do em uma idéia concebida de maneira peculiar 22 Nosso autor passa então a explicar essa maneira de sentir ou sen sação this manner ar feeling que torna a crença diferente de uma vaga concepção Parece se dar conta de que é impossível descrever por meio de palavras essa sensação feeling de que entretanto todos devem ter consciência em seu próprio íntimo Ora a denomina uma concepção mais forte ora uma concepção mais viva mais vívida mais firme ou mais intensa Na verdade seja qual for o nome que possamos dar a essa sensação feeling que constitui a crença nosso autor considera evi dente que seu efeito sobre a mente é mais imperativo que o de uma ficção ou mera concepção Prova isso por meio da influência da crença sobre as paixões e a imaginação que só são movidas pela verdade ou por aquilo que tomamos como verdade A poesia com toda sua arte nunca poderia causar uma paixão como as da vida real A concepção original de seus objetos nunca é sentida da mesma maneira que as que obtêm nossa crença e convicção 23 Presumindo ter provado suficientemente que as idéias a que da mos nosso assentimento são sentidas de maneira diferente que ou tras idéias e que essa sensação feeling é mais firme e vívida que nossa concepção comum nosso autor busca em seguida explicar a causa dessa sensação feeling vívida por uma analogia com outros atos mentais Seu raciocínio parece interessante mas dificilmente pode ríamos tornálo inteligível ou ao menos provável aos olhos do leitor sem descrevêlo detalhadamente o que excederia o âmbito daquilo a que me propus 24 Omiti também muitos argumentos de que ele lança mão para pro var que a crença consiste meramente em uma sensação ou sentimen to peculiar Mencionarei apenas um Nossa experiência passada não é sempre uniforme Uma mesma causa é às vezes seguida de um efei to às vezes de outro e nesse caso sempre acreditamos que o efeito que existirá é o mais comum Vejo uma bola de bilhar se movendo 692 Sinopse em direção a outra Não consigo distinguir se ela gira em torno de seu eixo ou foi tocada por baixo de modo a apenas roçar a mesa No primeiro caso sei que ela não vai parar após o choque no segundo ela pode parar O primeiro é o mais comum e por isso é com esse efeito que conto Mas também concebo o outro efeito e o concebo como possível e como conectado à causa Se uma concepção não fos se diferente da outra em sua sensação ou sentimento não haveria nenhuma diferença entre elas 25 Em todo esse raciocínio limitamonos à relação de causa e efeito tal como ela se mostra nos movimentos e nas operações da matéria Mas o mesmo raciocínio se estende às operações da mente Quer con sideremos a influência da vontade no movimento de nosso corpo quer na direção de nosso pensamento podese afirmar com seguran ça que nunca poderíamos prever o efeito unicamente pela considera ção da causa sem a experiência E mesmo após termos tido ex periência desses efeitos é o costume e não a razão que nos determina a fazer dessa experiência o padrão de nossos juízos futuros Quando a causa se apresenta a mente por hábito passa imediatamente à con cepção de seu efeito usual bem como à crença nele Essa crença é algo diferente da concepção Entretanto não acrescenta nenhuma nova idéia a ela Apenas faz com que seja sentida de maneira diferen te tornandoa mais forte e vívida 26 Tendo encerrado esse importante ponto acerca da natureza da inferência a partir da causa e efeito nosso autor retorna sobre seus passos e examina novamente a idéia dessa relação Ao considerar o movimento comunicado de uma bola à outra não pudemos encon trar nada além da contigüidade da anterioridade da causa e da con junção constante Mas além dessas circunstâncias normalmente se supõe que existe uma conexão necessária entre a causa e o efeito e que a causa possui alguma coisa que chamamos de poder força ou ener gia A questão é que idéia está vinculada a esses termos Se todas as nossas idéias e pensamentos são derivados de nossas impressões esse poder tem de se revelar seja a nossos sentidos seja a nossa sensação 693 Tratado da natureza humana feeling interna Nas operações da matéria porém nenhum poder se revela aos sentidos Tanto é assim que os cartesianos não hesitaram em afirmar que a matéria é inteiramente desprovida de energia sendo rodas as suas operações realizadas exclusivamente pela energia do Ser supremo Mas a questão se coloca novamente mesmo no Ser su premo que idéia temos de energia ou de poder Nossa idéia de uma Divin dade segundo aqueles que negam as idéias inatas é apenas uma com posição das idéias que adquirimos ao refletir acerca das operações de nossas próprias mentes Ora nossas mentes nos dão tão pouca noção de energia quanto a matéria Quando consideramos nossa vontade ou volição a priori fazendo abstração da experiência nunca somos capazes de inferir dela efeito algum E quando nos apoiamos na ex periência ela só nos mostra objetos contíguos sucessivos e em con junção constante Em suma ou não temos nenhuma idéia de força e energia e essas palavras são então absolutamente sem sentido ou elas significam apenas aquela determinação do pensamento adquirida pelo hábito a passar da causa a seu efeito usual Mas quem quiser enten der isso perfeitamente deve consultar o próprio autor Ficarei satisfeito se puder fazer o mundo erudito compreender que há aqui uma difi culdade e aquele que resolvêla certamente deverá dizer algo bastan te novo e extraordinário tão novo quanto a própria dificuldade 27 Por tudo o que se disse o leitor perceberá facilmente que a filo sofia contida nesse livro é muito cética e tende a nos dar uma noção das imperfeições e dos estreitos limites do entendimento humano Segundo essa filosofia quase todo raciocínio se reduz à experiência e a crença que acompanha a experiência se explica somente como um sentimento peculiar ou seja como uma concepção vívida produzida pelo hábito E isso não é tudo Quando cremos em algo a respeito da existência externa ou quando supomos que um objeto continua exis tindo mesmo um instante após deixar de ser percebido essa crença é simplesmente um sentimento desse mesmo tipo Nosso autor insis te em diversos outros tópicos céticos e conclui de maneira geral que só assentimos às nossas faculdades e só empregamos nossa razão por 694 Sinopse que não podemos evitálo A filosofia nos tornaria inteiramente pirrônicos se a natureza não fosse forte demais para ela 28 Concluirei a lógica desse autor com uma explicação de duas opi niões que parecem ser peculiares a ele como o são aliás a maioria de suas opiniões Ele afirma que a alma até onde somos capazes de concebêla é somente um sistema ou seqüência de diferentes per cepções de calor e frio amor e raiva pensamentos e sensações to das unidas mas sem uma perfeita simplicidade ou identidade Des cartes afirmava que o pensamento era a essência da mente não este ou aquele pensamento mas o pensamento em geral Isso parece ser absolutamente ininteligível já que tudo que existe é particular portan to nossas diversas percepções particulares é que devem compor nossa mente Digo compor a mente e não pertencer a ela A mente não é uma substância a que nossas percepções seriam inerentes Essa noção é tão ininteligível quanto a noção cartesiana de que o pensamento ou percepção em geral é a essência da mente Não temos idéia de ne nhum tipo de substância uma vez que não temos nenhuma idéia que não seja derivada de alguma impressão e não temos impressão algu ma de uma substância seja material ou espiritual Tudo que conhe cemos são qualidades e percepções particulares Assim como nossa idéia de um corpo um pêssego por exemplo é somente a idéia de um sabor uma cor uma forma um tamanho uma consistência par ticular etc assim também nossa idéia de uma mente é apenas a idéia de percepções particulares sem a noção de alguma coisa que possa mos chamar de substância simples ou composta 29 O segundo princípio que me propus considerar diz respeito à geometria Tendo negado a infinita divisibilidade da extensão nosso autor se vê obrigado a refutar os argumentos matemáticos emprega dos para apoiar aquela noção e de fato estes são os únicos com al gum peso Para fazer isso ele nega que a geometria seja uma ciência exata o suficiente para permitir conclusões tão sutis quanto as que se referem à divisibilidade infinita Seus argumentos podemse ex plicar assim Toda a geometria se funda nas noções de igualdade e 695 Tratado da natureza humana desigualdade e portanto conforme tenhamos ou não um critério exato para essas relações essa própria ciência admitirá ou não uma grande exatidão Ora existe um critério exato de igualdade se supu sermos que a quantidade é composta de pontos indivisíveis Duas li nhas são iguais quando o número de pontos que as compõem é igual e quando cada ponto de uma corresponde a um ponto da outra Mas embora esse critério seja exato ele é inútil pois nunca poderíamos computar o número de pontos de uma linha Além disso está funda do na suposição da divisibilidade finita e portanto nunca poderia for necer uma conclusão contra essa noção Se rejeitarmos esse critério de igualdade não teremos mais nenhum que possa pretender à exa tidão Há dois critérios que são comumente utilizados Duas linhas superiores a uma jarda por exemplo são consideradas iguais quando contêm uma unidade inferior qualquer como uma polegada um nú mero igual de vezes Mas isso é um raciocínio circular Pois estamos supondo que a quantidade que chamamos de uma polegada em uma linha é igual à que chamamos de uma polegada na outra e a questão permanece que critério nos permite julgar que são iguais ou em outras palavras o que queremos dizer quando afirmamos que são iguais Se tomarmos quantidades ainda menores prosseguiremos ao infinito Portanto esse não é um critério de igualdade A maior parte dos filósofos quando lhes perguntamos o que querem dizer com igual dade dizem que a palavra não admite definição e que basta colocar diante de nós dois corpos iguais tais como dois diâmetros de um cír culo para que compreendamos esse termo Ora isso é tomar a aparên cia geral dos objetos como critério dessa proporção e fazer de nossa imaginação e de nossos sentidos seus juízes últimos Mas um critério como esse não admite nenhuma exatidão e nunca poderia fornecer uma conclusão contrária à imaginação e aos sentidos Se esse racio cínio está ou não correto cabe ao mundo erudito julgar Seria certa mente desejável que pudéssemos encontrar algum expediente para reconciliar a filosofia e o senso comum que têm travado as mais cruéis batalhas a propósito da questão da divisibilidade infinita 696 Sinopse 30 Devemos agora dar alguma explicação do segundo volume des sa obra que trata das PAIXÕES Essa parte é mais fácil de se entender que a primeira mas contém opiniões que são tão novas e extraordi nárias quanto as outras O autor começa com o orgulho e a humildade Observa que os objetos que despertam essas paixões são muito nu merosos e aparentemente muito diferentes uns dos outros O orgu lho ou autoestima pode surgir das qualidades da mente como es pirituosidade bom senso coragem integridade das qualidades do corpo como beleza força agilidade boa aparência destreza na dan ça na equitação na esgrima das vantagens externas como o país a família os filhos as relações de amizade a riqueza casas jardins ca valos cães e roupas Em seguida busca a circunstância que seria co mum a todos esses objetos e que os faria agir sobre as paixões Sua teoria também se aplica ao amor e ao ódio bem como a outros afetos Como essas questões embora interessantes não poderiam se tornar inteligíveis sem um longo discurso não as mencionaremos aqui 3 1 O leitor talvez considere mais satisfatório conhecer o que nosso autor diz a respeito do livrearbítrio O fundamento dessa doutrina está naquilo que ele diz sobre a causa e efeito como explicamos anterior mente Todos reconhecem que as operações dos corpos externos são necessárias e que na comunicação de seu movimento e em sua atra ção e coesão mútuas não há nenhum traço de indiferença ou liber dade Tudo que sob esse aspecto estiver na mesma situação que a matéria deverá portanto ser admitido como necessário Para saber se é este o caso das ações da mente podemos examinar a ma téria e analisar qual o fundamento da idéia de uma necessidade em suas operações e por que concluímos que um corpo ou ação é a cau sa infalível de outro corpo ou ação 32 Já observei não haver um só caso em que a conexão última en tre os objetos pudesse ser descoberta por nossa razão ou por nossos sentidos e que somos incapazes de penetrar tão profundamente na essência e estrutura dos corpos a ponto de perceber o princípio que fundamenta sua influência mútua Só temos conhecimento de sua 697 Tratado da natureza humana união constante e é dessa união constante que deriva a necessidade quando a mente é determinada a passar de um objeto àquele que comumente o acompanha e a inferir a existência de um da existência do outro Eis aqui portanto dois pontos que devemos considerar essenciais à necessidade a união constante e a inferência da mente onde quer que os descubramos teremos de admitir uma necessidade Ora não há nada mais evidente que a união constante de ações particula res com motivos particulares Se nem todas as ações estão constan temente unidas com seus motivos próprios essa incerteza não é maior que aquela que se pode observar todo dia nas ações da matéria onde em razão do entrelaçamento e da incerteza das causas o efeito é freqüentemente variável e incerto Dois gramas de ópio matam qual quer pessoa que não esteja acostumada com essa substância mas dois gramas de ruibarbo nem sempre serão suficientes para purgála De maneira semelhante o medo da morte sempre fará um homem se desviar um pouco de seu caminho mas nem sempre o fará cometer uma má ação 33 E assim como freqüentemente existe uma conjunção constante das ações da vontade com seus motivos assim também a inferência dos motivos às ações ou viceversa é freqüentemente tão certa quanto qualquer raciocínio concernente aos corpos e sempre fazemos uma inferência proporcional à constância da conjunção É nisso que se fun da nossa crença em testemunhas o crédito que depositamos na his tória e na verdade todos os tipos de evidência moral e quase toda a conduta da vida 34 Nosso autor afirma que esse raciocínio ao nos fornecer uma nova definição de necessidade dá uma nova perspectiva a toda essa con trovérsia De fato mesmo os mais zelosos defensores do livrearbí trio devem reconhecer essa união e essa inferência a propósito das ações humanas Negam apenas que elas constituam a totalidade da necessidade Mas nesse caso têm de mostrar que temos uma idéia de alguma outra coisa nas ações da matéria o que de acordo com o raciocínio anterior é impossível 698 Sinopse Ao longo de todo esse livro há grandes pretensões de novas des cobertas filosóficas mas se alguma coisa dá ao autor direito a um tí tulo tão glorioso quanto o de inventor é o uso que ele faz do princípio de associação de idéias que está presente em quase toda a sua filoso fia Nossa imaginação tem grande autoridade sobre nossas idéias e sempre que as idéias são diferentes pode separálas juntálas e com binálas em todas as variedades imagináveis Porém apesar do domí nio da imaginação existe um laço ou união secreta entre certas idéias particulares que faz com que a mente as reúna mais freqüentemente e que uma delas ao aparecer introduza a outra É daí que surge aqui lo que denominamos a pertinência do discurso e também o nexo de uma narrativa escrita bem como o fio ou seqüência do pensamento que os homens sempre observam mesmo nos mais vagos devaneios Esses princípios de associação se reduzem a três a semelhança por exemplo um retrato naturalmente nos faz pensar no homem que ser viu de modelo a contigüidade quando se menciona St Denis a idéia de Paris nos ocorre naturalmente e a causalidade quando pensamos no filho tendemos a dirigir nossa atenção ao pai Será fácil conce ber qual deve ser a importância desses princípios para a ciência da natureza humana se considerarmos que no que diz respeito à men te estes são os únicos elos que ligam as diversas partes do universo ou que nos conectam a pessoas ou a objetos exteriores a nós Porque como é somente por meio do pensamento que alguma coisa age sobre nossas paixões e como esses são os únicos laços de nossos pensa mentos eles realmente são para nós o cimento do universo e todas as operações da mente têm que em larga medida deles depender FINIS 699 Notas e variantes As notas a seguir foram inicialmente baseadas na edição de Selby BiggeNidditch SBN com duas modificações importantes Em pri meiro lugar excluímos todas as notas de menor importância e que com a tradução para o português perderam sua razão de ser Em se gundo lugar incluímos no corpo do texto todas as modificações ma nuscritas feitas por Hume à edição original do Tratado bem como as variantes constantes no autógrafo de Hume da Seção 6 Parte 3 do Livro 3 regra que nem sempre foi seguida naquela edição inglesa Posteriormente incluímos também as modificações mais importan tes que foram feitas por David F Norton e Mary J Norton na nova edição inglesa lançada em 2000 NNOPT Referimonos à edição completa para estudantes Conforme mencionamos na Nota à se gunda edição as alterações e observações contidas na nova edição crí tica de 2007 não puderam ser aqui introduzidas No caso das prin cipais alterações editoriais incluímos em pé de página nota do tradutor reproduzindo resumidamente as razões que aqueles editores apre sentaram Cf David F Norton Mary J Norton Substantive differences between two texts of Humes Treatise Hume Studies nov 2000 XXVI 2 24577 Quando discordamos dessas alterações acres centamos também nossas razões deixando que o leitor julgue por si próprio 701 Tratado da natureza humana 1 1 ª edição original do Tratado MS autógrafo de Hume para Tratado IIIIIIVI H correções manuscritas de Hume a 1 SB edição de L A SelbyBigge edit N editorial P H Nidditch OPT edição Oxford Philosophical Texts do Tratado edit NNOPT editorial D F Norton M Norton A numeração abaixo deve ser lida da seguinte maneira livro parteseção parágrafolinha E no caso das notas de Hume livroparteseçãonotaparágrafo da notalinha da nota 1 12 1 29 qualidade SBquantidade edit NNOPT 2 1 25 16 l O os mesmos objetos podem ser tocados H o mesmo objeto pode ser tocado 1 3 13 9 19 178 fundamento que o de nossos raciocínios SB fundamentos que o de nossa experiência ou de nossos raciocínios OPT 4 1 3101 35 todos os sistemas tendem SB todos os sistemas por mais convincentes que sejam os argumentos sobre os quais se fundam ten dem OPT 5 1 310 1 1 6 a respeito da crença SB a respeito da crença e de nossos raciocínios sobre causas e efeitos OPT 6 1 3102 12 Existe implantada na mente humana uma percepção da dor e do prazer SB A natureza implantou na mente humana uma percep ção do bem e do mal ou em outras palavras OPT 7 1 310256 sensação real SB sensação e experiência real OPT 8 1 31223n l Páginas xxii xxiii SB Seções 9 e 1 O desta parte OPT 9 1 313 1 1 2 não filosóficas SB filosóficas 1 10 1 313 1 710 a paixão SB as paixões edit NNOPT 1 1 1 46641 vegetais SB animais edit NNOPT seguindo sugestão de Roland Hall Hume s use of Locke on Identity in The Locke newsletter 5 197469 12 21 459 o prazer SB os prazeres OPT 13 21 45 15 dessa SB de sua OPT 14 2 1 9 1 89 do pensamento e da pessoa SB do pensamento da pes soa edit NNOPT 15 22 107 12 orgulho SB seguindo a sugestão de D W D Owen Hume Studies 1 1975 767ódio 1 702 16 239191213 aumentastes ou seja diminuindo a probabilidade de seu lado e vereis a paixão SB aumentastes diminuindo a probabilidade de seu lado vereis a paixão OPT 17 231081 similar SB familiar edit NNOPT 18 311167 ações SBjuízos I 19 321163 para com o proprietário acréscimo H 20 321171 naturalmente acréscimo H 21 322243339 Assim o interesse próprio condenação HAssim o interesse próprio é o motivo original para o estabelecimento da justiça mas uma simpatia com o interesse público é a fonte da aprovação moral que acompanha essa virtude I 22 323 n5113 e 7 vel Titius id miscuerit sine tua voluntate non videtur commune esse Arbitrio autem judicis ut ipse æstimet quale cujusque frumentum fuerit SB vel Titius sine tua voluntate non videtur commune esse Arbitrio autem judicis continetur ut ipse æstimet quale cujusque frumentum fuerit OPT 23 326612 a propriedade o direito e a obrigação Has propriedades os direitos e as obrigações I 24 32666 sociedade Hsociedade civil I 25 326107 qualidades morais Hvirtudes e vícios I 26 3261014 do direito natural da justiça SB 27 326115 que esse interesse próprio é comum a toda a humanidade acréscimo H 28 327620 obediência civil Hsociedade I 29 328136 regras da sociedade Hleis I 30 328224 podendo Htendo que I 31 32833334 tão logo as vantagens do governo são plenamente conhecidas e reconhecidas ele imediatamente Hele rapidamente I 32 32871415 a nosso próprio interesse ou ao menos ao interesse público de que participamos por simpatia Hao interesse público e a nosso interesse particular I 33 32933637 súditos e não no caso de disputas entre eles próprios e seus súditos Hsúditos I 34 329429 interesse H interesse comum I erratainteresse público I texto 35 3210211 leis da sociedade SB regras da justiça OPT 36 3210423 quase todos os governos estabelecidos no mundo Htodos os governos mais bem estabelecidos do mundo sem exceção I 37 32101034 que alguns princípios da imaginação concorrem com essas considerações de justiça e interesse Hque concorrem com essas considerações de interesse alguns princípios da imaginação I Tratado da natureza humana 38 32 10135 talvez Hadmito prontamente que I 39 32101 620 um exercício particular Ho exercício I 40 32101 889 seu legal SBsua autoridade legal edit NNOPT 41 3 212 7 7 8 e também tendem a sentir uma simpatia pelo interesse geral da sociedade acréscimo H 42 331 913 Seus inventores nosso próprio interesse acréscimo H 43 331913 sempre Hem todas as nações e em todas as épocas I 44 3311 1256 a caracteres alheios que sejam úteis ou nocivos para a socie dade Haos caracteres alheios 1 a caracteres que sejam úteis ou no civos para a sociedade OPT 45 331 12 18 e para cada indivíduo acréscimo H 46 331229 estilo Hdiscurso I 47 335 título virtudes SBaptidões edit NNOPT 48 3361 12 tenho esperanças de que nada tenha faltado lparece que não falta nada MS 49 33611 112 na maior parte das lnas maiores MS 50 336115 principal não está em MS 5 1 33639 nossa natureza Hnatureza humana lnatureza humana MS 52 336319 este último Hseu lseu MS 53 Apêndice 22 diretos ou colaterais acréscimo H 54 Sinopse 7 13 pretensa acréscimo H Sobre a tradução 7 Nota à primeira edição 1 2 Nota à segunda edição 1 4 Livro 1 Do entendimento 1 5 Advertência 1 7 Introdução 1 9 Parte 1 Indice geral Das idéias sua origem composição conexão abstração etc 25 Seção 1 Da origem de nossas idéias 25 Seção 2 Divisão do tema 3 1 Seção 3 Das idéias da memória e da imaginação 32 Seção 4 Da conexão ou associação das idéias 34 Seção 5 Das relações 3 7 705 Tratado da natureza humana Seção 6 Dos modos e substâncias 39 Seção 7 Das idéias abstratas 41 Parte 2 Das idéias de espaço e tempo 51 Seção 1 Da infinita divisibilidade de nossas idéias de espaço e tempo 51 Seção 2 Da divisibilidade infinita do espaço e do tempo 54 Seção 3 Das outras qualidades de nossas idéias de espaço e tempo 59 Seção 4 Resposta às objeções 65 Seção 5 Continuação do mesmo tema 81 Seção 6 Da idéia de existência e de existência externa 93 Parte 3 Do conhecimento e da probabilidade 97 Seção 1 Do conhecimento 97 Seção 2 Da probabilidade e da idéia de causa e efeito 1 O1 Seção 3 Por que uma causa é sempre necessária 1 07 Seção 4 Das partes componentes de nossos raciocínios acerca da causa e do efeito 1 1 1 Seção 5 Das impressões dos sentidos e da memória 1 1 2 Seção 6 Da inferência da impressão à idéia 1 1 5 706 Índice geral Seção 7 Da natureza da idéia ou crença 1 23 Seção 8 Das causas da crença 128 Seção 9 Dos efeitos de outras relações e outros hábitos 1 3 7 Seção 10 Da influência da crença 1 48 Seção 1 1 Da probabilidade de chances 1 56 Seção 12 Da probabilidade de causas 1 63 Seção 13 Da probabilidade não filosófica 1 76 Seção 14 Da idéia de conexão necessária 1 88 Seção 15 Regras para se julgar sobre causas e efeitos 206 Seção 1 6 Da razão dos animais 209 Parte 4 Do ceticismo e outros sistemas filosóficos 2 1 3 Seção 1 Do ceticismo quanto à razão 2 1 3 Seção 2 Do ceticismo quanto aos sentidos 220 Seção 3 Da filosofia antiga 252 Seção 4 Da filosofia moderna 257 Seção 5 Da imaterialidade da alma 264 Seção 6 Da identidade pessoal 283 707 Tratado da natureza humana Seção 7 Conclusão deste livro 296 Livro 2 Das paixões 307 Parte 1 Do orgulho e da humildade 309 Seção 1 Divisão do tema 309 Seção 2 Do orgulho e da humildade seus objetos e suas causas 3 1 1 Seção 3 De onde derivam esses objetos e causas 3 1 4 Seção 4 Das relações de impressões e de idéias 3 1 7 Seção 5 Da influência dessas relações sobre o orgulho e a humildade 3 1 9 Seção 6 Limitações desse sistema 324 Seção 7 Do vício e da virtude 329 Seção 8 Da beleza e da deformidade 332 Seção 9 Das vantagens e das desvantagens externas 33 7 Seção 10 Da propriedade e da riqueza 344 Seção 1 1 Do amor à boa reputação 350 Seção 12 Do orgulho e da humildade dos animais 359 Parte 2 Do amor e do ódio 3 63 Seção 1 Dos objetos e das causas do amor e do ódio 363 708 Índice geral Seção 2 Experimentos que confirmam este sistema 366 Seção 3 Solução das dificuldades 381 Seção 4 Do amor pelos parentes e amigos 385 Seção 5 De nossa estima pelos ricos e poderosos 391 Seção 6 Da benevolência e da raiva 400 Seção 7 Da compaixão 403 Seção 8 Da malevolência e da inveja 406 Seção 9 Da mistura da benevolência e da raiva com a compaixão e a malevolência 41 5 Seção 10 Do respeito e do desprezo 424 Seção 1 1 Da paixão amorosa ou amor entre os sexos 428 Seção 12 Do amor e ódio dos animais 43 1 Parte 3 Da vontade e das paixões diretas 435 Seção 1 Da liberdade e da necessidade 435 Seção 2 Continuação do mesmo tema 443 Seção 3 Dos motivos que influenciam a vontade 448 Seção 4 Das causas das paixões violentas 454 Seção 5 Dos efeitos do costume 458 709 Tratado da natureza humana Seção 6 Da influência da imaginação sobre as paixões 460 Seção 7 Da contigüidade e da distância no espaço e no tempo 463 Seção 8 Continuação do mesmo tema 467 Seção 9 Das paixões diretas 4 7 4 Seção 10 Da curiosidade ou o amor à verdade 484 Livro 3 Da moral 491 Advertência 493 Parte 1 Da virtude e do vício em geral 495 Seção 1 As distinções morais não são derivadas da razão 495 Seção 2 As distinções morais são derivadas de um sentido moral 509 Parte 2 Da justiça e da injustiça 51 7 Seção 1 Justiça uma virtude natural ou artificial 51 7 Seção 2 Da origem da justiça e da propriedade 525 Seção 3 Das regras que determinam a propriedade 542 Seção 4 Da transferência da propriedade pelo consentimento 553 Seção 5 Da obrigatoriedade das promessas 555 Seção 6 Algumas outras reflexões sobre a justiça e a injustiça 565 71 0 Índice geral Seção 7 Da origem do governo 573 Seção 8 Da fonte da obediência civil 578 Seção 9 Das regras da obediência civil 589 Seção 10 Dos objetos da obediência civil 593 Seção 1 1 Do direito internacional 606 Seção 12 Da castidade e da modéstia 609 Parte 3 Das outras virtudes e vícios 61 3 Seção 1 Da origem das virtudes e dos vícios naturais 61 3 Seção 2 Da grandeza de espírito 63 1 Seção 3 Da bondade e da benevolência 642 Seção 4 Das aptidões naturais 646 Seção 5 Mais algumas reflexões sobre as aptidões naturais 653 Seção 6 Conclusão deste livro 657 Apêndice 661 Sinopse de um livro recentemente publicado intitulado Tratado da natureza humana e 679 Notas e variantes 701 Índice geral 705 Índice analítico 713 Índice onomástico 757 71 1 Indice analítico Nota Ss páginas seguintes Cf conferir passagens em que o tema é abordado indiretamente Abstratas abstração a teoria das idéias abstratas de Berkeley e a de Hume 4lss abstração e separação 42ss idéias abstratas do espaço e do tempo maneiras como as impressões aparecem à mente 605 abstração e distinção de razão 69 idéia abstrata de conexão causal e de poder l 95ss idéias gerais abstra tas e sua influência sobre a imaginação 4603 idéias abstratas e as pai xões 4603 idéia abstrata de existência 662 Acaso ver Causa causação Chance acaso e conjunção constante 28 acaso e associação de idéias 34 acaso e probabilidade l 56ss acaso como negação das causas e indiferença 1 58 acaso como causa secreta e oculta 163 cf 698 acaso e necessidade 205 liberdade de indiferença como equivalente de acaso 4434 cf 158 440 o acaso e as regras para a estabilidade da propriedade 553 Acessão acessão e propriedade 549ss Acidental acidente distinção entre circunstâncias acidentais e causas eficientes por meio das regras gerais 182 ficção do acidente 255 7 1 3 Tratado da natureza humana Ação distinção entre pensamento e ação 2778 cf 6701 ações internas em oposição a objetos externos 5045 o caráter artificial das ações 515 as ações como realidades originais e não passíveis de verdade ou falsidade 4989 cf 4501 ações e juízos 499 as ações e a vontade ver Caráter Necessidade Vontade 436ss 447 6489 6701 cf 614 necessidade da ação como determinação da mente do espectador e não como qualidade do agente 444 relação das ações temporárias e perecíveis com o caráter constante e duradouro 447 5 1 78 614 cf 6701 ações e motivos 436ss 447 51 79 6701 ações e virtude 51 1 51 89 Adequado adequação idéias adequadas 545 inexistência de uma idéia adequada de poder ou eficácia 193 adequação como princípio que não pode ser usado na atri buição de propriedade 542 Alegria alegria e orgulho 325 medo e esperança como mistura de alegria com tristeza 476ss Alma ver Identidade Mente crença na imortalidade da alma 1445 emoções da alma e raciocínio da mente 219 imaterialidade da alma 264ss metáfora da alma como repú blica ou comunidade 293 a alma e o corpo 30910 Amor amor como uma paixão violenta 3 101 amor e associação entre paixões impressões 31 78 amor à boa reputação 3509 objetos e causas do amor e do ódio 363ss cf 5212 amor e ódio correlativamente às paixões do orgulho e da humildade 363ss 373 401 4257 512 6146 6283 1 o amor e as qualidades agradáveis 3834 6283 1 6446 648 654 amor e a constância da qualidade agradável na pessoa amada 383 a qualidade agra dável na pessoa amada e sua intenção 3834 648 amor pelos parentes e pelos amigos 3868 amor e simpatia 3509 384 3889 396400 6223 6283 1 6436 amor e ódio enquanto ligados às paixões da benevolência e da raiva 400ss amor e desejo 4012 amor e compaixão 4036 amor e ódio ligados à piedade e à malevolência 406ss 41 5ss 532 amor e ódio ligados ao respeito e ao desprezo 424 amor entre os sexos 428ss 610 654 amor e ódio nos animais 43 13 amor e ódio como paixões indiretas 474ss 614 amor à verdade 4849 amor entre os sexos como princípio da sociedade 526 amor a si próprio 364 5201 568 582 amor à huma nidade 521 4 amor como uma paixão social 532 a virtude e as aptidões naturais como causas de amor 6135 6283 1 64757 transição do amor ao amor 645 a aprovação e a censura moral como um amor ou um ódio mais fracos 654 cf 6223 distinção entre amor e apreço 6478 648 n6 71 4 Índice analítico Análogo analogia analogia entre as influências da relação de semelhança e da experiência 142 analogia e probabilidade 1 75 180 analogia e ultrapassamento da experiência 242 a sensação da crença explicada por analogia com outros sentimentos 662 Animais comparação geral entre animais e homens 2091 1 35962 43 13 4834 5078 ausência de relações de direito e propriedade nos animais seme lhança entre a razão nos animais e nos homens 2091 1 orgulho e humil dade nos animais e nos homens 35961 amor e ódio nos animais 43 1 a imaginação dos animais 43 1 vontade e paixões diretas nos animais 483 a superioridade racional dos homens em relação aos animais 361 650 a identidade atribuída à mente humana às plantas e aos animais 286ss simpatia entre os animais 397 432 ausência de moralidade nos animais 361 5078 Aparência derivação dos princípios da geometria das aparências 1001 aparências e bons modos 1 856 aparência e existência como indistinguíveis para os sentidos 22l ss indistinção entre a aparência e o ser de todas as ações e sensações da mente 2223 cf 453 622 643 670 a distinção pela ima ginação entre aparência percepção das coisas e existência existência das coisas 226ss aparência racional de certas determinações passionais 453 correção da aparência momentânea das coisas em nossa avaliação moral 622 correção da aparência pelo entendimento 643 670 Apreço ver Amor Estima A priori raciocínio a priori e causação 279ss 5056 6934 incapacidade da men te para formar conclusões a priori sobre as operações ou sobre a duração de um objeto 283 raciocínios a priori relativos às paixões confirmados pela experiência 368ss impossibilidade de se provar a priori a determina ção racional da vontade 5056 os raciocínios filosóficos a priori relativos à modéstia 610 Aptidões aptidões naturais e sua oposição às virtudes morais 646ss Argumentos argumentos sofísticos na matemática 55ss discussão do papel da argu mentação e da experiência na inferência causal 1 17 ss degradação da cer teza nas longas cadeias de argumentos 1 77 cf 68 1 especificidade do encadeamento de argumentos históricos 1 79 Arrependimento arrependimento e a doutrina da necessidade 4478 cf 383 71 5 Tratado da natureza humana Artificial artifício ver Natural natureza educação como causa artificial de opiniões 148 artificial oposto a natu ral 51 35 artificial como resultante do propósito ou intenção 5 1 5 arti ficial como equivalente ao resultado da intervenção do pensamento ou reflexão 524 artifício como remédio que a natureza fornece para o que há de irregular e inconveniente nos afetos 529 53 7 virtudes artificiais opos tas às naturais 514 617 619 virtudes artificiais e simpatia 61 67 a vir tude artificial da justiça 344 leisregras artificiais da justiça 56573 o caráter artificial mas não arbitrário das regras da justiça 5235 promes sas como artifício que visa à conveniência e ao favorecimento da socieda de 564 as três leis fundamentais do direito natural como artificiais 565 justiça como artificial e o sentido de sua moralidade como natural 658 ampliação do artifício da justiça pelo artifício dos ensinamentos públicos dos políticos 5723 o governo como meio artificial de curar a fraqueza natural dos homens 5768 o artifício dos políticos 1 que visa a produ zir apreço pela justiça e aversão pela injustiça 540 2 que estende os sentimentos naturais para além de seus limites originais 541 3 que redireciona nossas paixões naturais ensinandonos que satisfaremos melhor nossos apetites de maneira oblíqua e artificial 560 4 e da edu cação entendido como tentativa de conter as paixões dos homens e de fazê los agir para o bem público sistema moral criticado por não ser coerente com a experiência 618 Asseio asseio como virtude 65 1 Assentimento assentimento a uma opinião 297 ver Crença Ceticismo Associação os princípios de associação das idéias pela imaginação semelhança contiguidade e causa e efeito 34ss idéias complexas relações modos e substâncias produzidas por associação 37 atração entre os corpos no mundo físico e associação atração no mundo mental 37 3 1 8 323 ex plicação fisiológica da associação 88 a falibilidade dos princípios da ima ginação e a possibilidade de outras causas de suas associações 121 a pro babilidade como resultado de uma associação imperfeita 164 associação das impressões apenas por semelhança 3 1 7 associação de idéias e as pai xões 33940 associações entre idéias e impressões 3 1 8 a dupla relação entre impressões e idéias na paixão do orgulho 3201 o direito de suces são na propriedade favorecido pela associação 552 n6 Ateísmo o ateísmo de Spinoza 272ss 71 6 Índice analítico Atenção o papel da atenção na abstração 49 atenção e correção do raciocínio 76 95 atenção nos raciocínios causais 1 1 1 cf 409 atenção e associação 121 atenção e vividez 128 2 1 8 236 247 303 373 influência das pai xões na atenção 3 1 23 320 423 430 669 influência da impressão pre sente e da relação sobre a atenção 324 343 simpatia e atenção em nós mesmos 375 529 atenção na filosofia e na caça 485 486 487 488 cf 496 Atração Ver Associação Avaro o avaro e seu prazer com o dinheiro 3489 Beleza emoções da beleza e da deformidade opostas a paixões violentas 3 1 O be leza como causa de prazer e orgulho 3 1 3 3 1 5 3 1920 323 332ss 360 475 697 beleza natural e moral 334 504 519 524 525 566 beleza prazer e utilidade 361 6 1 56 629 6547 beleza como causa de amor 3645 382 427 4283 1 522 beleza e simpatia 3989 6 1 57 6567 efeitos do contraste entre um objeto belo e um feio 41 O beleza prazer e gosto 333 5 1 1 586 n l O beleza e utilidade 6234 beleza como involuntária 648 beleza derivada do mero aspecto ou aparência dos objetos 6567 Bem o bem e o mal morais como prazer e dor de um tipo particular 14950 3 1 1 435 439 4745 5 1 0ss 586 6293 1 bem e mal prazer e dor e sua influência sobre a vontade 14950 4534 insuficiência da razão na de terminação do bem e do mal 44854 496509 sobre os princípios do bem e do mal 303 satisfação com a proximidade de um bem 34850 bem e mal meramente sensíveis nos animais 43 12 bens do espírito bens do corpo e bens exteriores 528 o bem e o mal morais como justiça e injus tiça ver Justiça 53740 569 616 o bem relativo à propriedade ver Pro priedade bem público 5678 6015 o bem imediato como obstáculo à realização da justiça e à criação do governo 5758 bem moral e simpatia 6 1 663 1 644 653 65760 Benevolência benevolência e raiva como paixões que sempre acompanham as paixões do amor e do ódio 379 388 400ss 41 5ss 63 1 mistura da benevolência e da raiva com a compaixão e a malevolência 4 l 5ss benevolência e o amor sexual 428ss benevolência como desejo ou paixão calma 453 benevo lência como instinto 453 4 745 benevolência e prazer 4 75 benevolên cia pública e privada e a justiça 5223 535 536 explicação da benevo lência como virtude 642ss comparação da virtude da benevolência com aptidões naturais 646ss 71 7 Tratado da natureza humana Bom humor bom humor como motivo de orgulho 33 1 bom humor como qualidade privilegiada capaz de produzir amor 427 bom humor como qualidade agra dável à própria pessoa e a seus próximos 6501 Bondade bondade e benevolência 642ss Caráter faltas expressas em palavras e em ações e sua relação com o caráter 186 influência do caráter na imaginação 252 cf 1 83 caráter e identidade pessoal 2934 cf 648 ver Identidade orgulho e humildade relativa mente ao caráter 320 322 3301 3378 3501 366 380 638 6401 caráter de uma nação 351 caráter e simpatia 3515 620 62332 6416 653 657 possibilidade de inferir as ações do caráter 436ss caráter e a uniformidade das ações humanas 439 oposição entre as ações temporá rias e perecíveis e o caráter princípios duradouros em nossa avaliação moral 383 447 5179 6145 caráter liberdade e necessidade 4458 648 9 firmeza de caráter 454 caráter como independente da intenção e da li berdade da vontade 3835 4478 500 501 e n2 ver Intenção Motivo Vontade razão em oposição ao sentimento na determinação do caráter virtuoso 508ss 586 629 o prazer particular da contemplação do caráter virtuoso 5 1 12 586 6301 648 657 cf 3301 justiça como qualidade que melhor determina um caráter virtuoso 616 influência exercida pelo caráter de uma pessoa sobre seus próximos 622 distinção entre caráter amável e caráter respeitável 6478 a quase impossibilidade de a mente alterar seu caráter 648 cf 2934 Cartesiano argumento cartesiano sobre poder ou eficácia 1 923 6934 noção cartesiana de mente 695 cf 283 Castidade castidade e modéstia 609ss castidade e interesse 612 Causa causação impressão como causa da idéia 289 causa e efeito como qualidade das idéias que produz associação 35 objeto como causa da ação ou movimen to e como causa da existência de outro objeto 36 205 causa e efeito como relação filosófica e como relação natural 39 122 2034 cf 359 associa ção por causação limitada às idéias 3 1 78 3445 546 ultrapassagem das impressões dos sentidos na relação de causação lülss 1 15ss 1334 cf l 76ss causação e probabilidade lülss 133 156187 origem de nossas idéias de causação 1016 197200 raciocínio causal e raciocínio demons trativo 102 1 1 1122 1324 68693 questão acerca da necessidade de uma causa 106 107ss 190 inferência causal 106 1 101 1 1 5ss 125 n6 126 71 8 Índice analítico 1334 1378 1412 1 72 1 87 1967 199 203 2556 4367 4412 445 6 687ss causação e relação de conexão necessária 1056 1 1 67 1 88 206 27882 4412 4467 6934 crítica às concepções de causação de Hobbes Clarke e Locke 1089 causação e uniformidade na natureza 1 1 7 9 167 6889 cf 134 135 4379 ver Uniforme uniformidade causação e conjunção constante 1 16122 132 143 158 16lss 182 1867 196ss 2068 2 1 1 245 2556 27982 4367 43940 4456 671 68794 697 8 ver Conjunção constante influência da relação de causação na fanta sia e as relações de contigüidade e semelhança 12832 cf 1212 1404 3523 crença causal 122ss 128ss 137ss 148ss 1601 63 1 65ss 217 20 6623 cf 4412 crença causal e costume ou hábito 1326 144ss l 48ss 1767 1807 ver Crença relação de causação como determina ção da mente 13940 1 60171 1 89 198209 2989 4367 4414 693 4 influência dos raciocínios causais sobre a vontade l 49ss causa e po der ou eficácia 1 89ss ausência de distinção entre causas eficientes e formais entre causa e ocasião 2045 causa e sentimento de determina ção 198 regras para se julgar sobre causas e efeitos 2069 raciocínio causal e os princípios universais e permanentes da imaginação 258 a matéria como causa das percepções 2 7782 identidade pessoal e causação 287ss causação e identidade 28994 princípio de economia das causas 3 1 6 617 propriedade posse estável como uma espécie particular de causação 344 cf 542ss liberdade e causação nas ações 346ss 435ss 501 n2 6701 relação entre causação e simpatia 3524 juízo ou razão como causa da ação 498ss Certeza ver Causa causação Ceticismo Conhecimento Probabilidade relações filosóficas e certeza ou conhecimento 971O1 experiência e cer teza na relação de causa e efeito l 56ss 1867 certeza e ceticismo 3056 Ceticismo ceticismo quanto à razão 2 l 3ss ceticismo superado pela natureza 216ss 220 3002 ceticismo quanto aos sentidos quanto à existência dos cor pos 220ss 247 260 ceticismo total 2 1 6 29930 1 ceticismo e dogmatismo 220 ceticismo extravagante 24 7 260 ceticismo moderado 257 30l ss 677 ceticismo e inclinação ou prazer 303 3056 Chance ver Acaso Probabilidade probabilidade de chances 15663 1 68 175 4 76 a probabilidade como um número superior de chances iguais 158 1 69 mistura de causas entre as chances 159 efeito da combinação de chances sobre a crença 160 chances como equivalentes de impulsos da mente 161 relação entre as probabili dades de chances e de causas 1 63 1 69 1 75 476 cada experiência passa da considerada como uma espécie de chance 1689 1 74 influência da superioridade de chances sobre as paixões 476ss 71 9 Tratado da natureza humana Civil oposição entre natural e civil 514 n4 582ss 609 direito civil 344 554 5 n5 568 588 590 guerra civil 413 579 governo e obediência civil 576 580 581 606 sociedade civil 612 Coerência inferências a partir da coerência das percepções 1 13 coerência das per cepções e existência contínua de objetos externos 228ss coerência das impressões de sensação e coerência das paixões impressões internas ou de reflexão 22830 coerência das impressões e costume 2301 a coerência como uma espécie irregular de raciocínio por experiência 274 Comparação comparação raciocínio e demonstração 1012 688 cf 280 comparação de idéias e conhecimento 1 57 comparação e valor 326 33750 3589 40615 4248 596 63341 a verdade discernida pela comparação e justa posição de idéias 497 comparação como um tipo de operação do enten dimento 503 620 comparação como diretamente contrária à simpatia em sua operação 6335 Comunicação ver Simpatia comunicação de sentimentos ou paixões 351 358 398 4201 432 463 632 Concepção ver Causa causação atos do entendimento raciocínios juízos e crenças como redutíveis a concepções 125 n6 concepção como pressuposta pelo entendimento 197 diferença entre concepção e crença 662 665 Conexão ver Causa causação Conhecimento conhecimento e representação adequada 545 conhecimento dos corpos 912 conhecimento oposto a probabilidades e a provas 97ss 1568 186 7 somente quatro tipos de relações filosóficas são objetos de conhecimento e certeza 98 conhecimento oposto à observação e à experiência 1 1 lss 1 86 conhecimento definido como certeza resultante da comparação de idéias 157 conhecimento reduzido à probabilidade 213ss ver Ceticis mo conhecimento humano e dos animais 360 Conjunção constante ver Causa causação conjunção constante entre idéia e impressão 289 258 conjunção cons tante habitual entre idéia particular e termo geral na idéia abstrata 46 7 conjunção constante e causação 1 1 6122 132 134 143 158 16lss 182 1867 196ss 2068 2 1 1 245 2556 27982 4367 43940 4456 671 68794 6978 Consciência consciência percepção e objeto 25 94 136 2234 245 298 3 1 1 cons ciência e crença 1323 1901 cf 193 663 692 consciência e hábito 72 0 Índice analítico 1 66 1 68 consciência da determinação racional da conduta 209 a cons ciência e o Eu self ver Identidade 283ss 320 3523 3556 3634 3735 674 cf 397 447 consciência moral 344 498 584 591 cons ciência intenção e vontade 3825 435ss 454 consciência do interes se 59 1 Consentimento consentimento e obediência civil 581 ss Constância constância de nossas impressões e a existência contínua e distinta dos corpos 23 l ss Contigüidade contigüidade como qualidade que produz associação 3441 contigüidade como fonte de erros 8890 contigüidade como condição da causação 1O1 7 1 1622 205 cf 188 198 contigüidade entre percepções e sua vividez 130 141 463 670 os efeitos da contigüidade na imaginação comparados aos da semelhança e da causação 13 7 ss contigüidade como relação exis tente na natureza independente de e anterior às operações do entendi mento 202 influência sobre a mente das relações de causação e contigüi dade 2697 1 contigüidade e identidade 28893 associação por contigüidade limitada a idéias 3 l 7ss contigüidade entre causa e objeto do orgulho 33844 contigüidade parcialidade e injustiça 375ss 574ss contigüidade unida à semelhança e à causação produzindo simpatia 352 9 relação de contigüidade semelhança e causação nos animais 3612 influência da contigüidade sobre as paixões 380 404 413 427 467ss relação de contigüidade sem reciprocidade 390 Contingência ver Acaso Causa causação Probabilidade contingência e acaso ou indiferença da imaginação 157ss contingência como resultante de causas secretas 165 contingência e probabilidade 168 9 influência da contingência sobre as paixões 3478 4223 Contrariedade contrariedade como fonte de relação filosófica 39 contrariedade como relação filosófica permitindo certeza demonstrativa 978 503 contrarie dade entre existência e nãoexistência 206 contrariedade e probabilida de 1649 43940 a contrariedade como procedente da operação secreta de causas contrárias 1 65 440 inexistência da relação de contrariedade entre objetos reais 279 contrariedade entre entendimento juízo e ima ginação fantasia 1 8 l ss contrariedade entre orgulho e humildade 3 1 1 2 contrariedade entre amor e ódio 364 efeitos da contrariedade entre paixões 4148 4257 47680 528 cf 537 Contrato original contrato original e obediência ao governo 5879 6001 72 1 Tratado da natureza humana Convenção ver Artificial Artifício Justiça Promessa convenção em oposição a natureza 52930 convenção distinguida de pro messa como condição da justiça 530ss 555 561 590 convenção e lin guagem 53 1 convenção governo justiça natural e civil 565 57l ss 58lss 594 6089 6189 Coragem o fundamento artificial da coragem 612 coragem e orgulho 63941 co ragem sem benevolência 643 coragem como aptidão natural oposta à virtude moral 646ss cf 697 Corpo ver Objeto a idéia de extensão e os corpos 5 l ss as propriedades externas dos cor pos e sua verdadeira natureza 912 68970 695 cf 24 4001 677 poder e necessidade como determinação do pensamento e não dos corpos 190 9 cf 1412 671 as causas da crença na existência contínua e distinta dos corpos 220ss cf 93ss crítica à distinção tradicional entre per cepções e objetos corpos externos 244ss a idéia de corpo como coleção das idéias de qualidades sensíveis constantemente unidas 252ss a filo sofia moderna teoria da distinção entre qualidades primárias e secundá rias e o ceticismo relativo à existência dos corpos 25964 cf 225 a crença na existência dos corpos como diretamente oposta aos argumentos cau sais 264 2989 impressões de reflexão provenientes do corpo 3 1 O qua lidades do corpo como causas de orgulho e humildade 313 31920 332ss 6535 697 qualidades do corpo como únicas causas de orgulho e humil dade nos animais 35962 a necessidade nas operações entre os corpos externos 436ss 6978 qualidades do corpo como uma espécie de bem 528 educação e deveres dos dois sexos relativamente às diferenças entre os corpos do homem e da mullher 610 Costume ver Causa Causação costume como causa da representatividade geral das idéias abstratas 44ss repetição passada costume e inferência causal 128ss l 63ss 188ss 203ss 21 6ss 230ss definição de costume 133 o caráter não reflexivo do cos tume 1335 1 66 costume produzido artificialmente por regras gerais 1345 cf 230 costume e princípio da uniformidade da experiência 135 1 678 tipos de costume ou hábito 146 l 63ss costume e educação 146 8 1 734 costume e repetição voluntária 1 734 costume e probabilidade l 63ss costume e probabilidade não filosófica 1 79ss costume e regras gerais 17980 costume como causa da oposição entre imaginação e juízo 1812 inferência da existência contínua dos objetos a partir do costume distinguida das inferências causais 2301 cf 135 166 abstração dos efei tos do costume pelos filósofos na comparação de idéias 256 costume e paixões 328 387 389 396 423 4545 458ss os dois efeitos do costume na mente facilitação e inclinação 45860 costume e propriedade 543 722 Índice analítico Crença crença como idéia vívida 1 1 5 12lss 1468 1 50ss 1 867 243 66170 definição de crença 125 princípios da crença 128ss crença e costume ou hábito 1323 1 66ss causação como única relação de que deriva a crença e a influência das outras relações 137ss cf 662 ver Causa causação influência da crença sobre a imaginação a vontade e as pai xões l 48ss 4623 624 6645 influência da crença sobre a imaginação 151 influência da imaginação sobre a crença 154 crença e probabilidade 1 631 76 1 867 213ss ver Causa causação crença produzida de outra maneira que pela vividez da idéia l 76ss crença e argumentos longos e abstrusos 1 778 21920 226 496 crença como sensação ou sentimento 1 86 21 67 6635 crença e idéia de existência 186 662 cf 93ss ceti cismo e crença 213ss 25 1 3016 ver Ceticismo crença na existência dos corpos 2205 1 crença e a diferença entre realidade devaneio e poe sia 1516 6623 66970 Critério ver Moral Regras critério de igualdade em matemática 7l ss 676 critério de verdade 297 331 critério racional em moral 496 505 5 1 1 critério de distinção entre natural e artificial 5 13 critério de distinção entre impossível improvável e provável 546 critério de avaliação moral 62031 6423 Crueldade crueldade como o mais detestável de todos vícios 645 Curiosidade curiosidade ou amor à verdade 484ss Deliberação ver Intenção Vontade deliberação e vontade 435ss deliberação e ação 44 78 Demonstração demonstração e conhecimento opostos à probabilidade 578 98 1 1 79 124 142 15960 1 86 1958 213ss 449 68490 demonstrações mate máticas 68ss impossibilidade de se demonstrar a tese da necessidade de uma causa 107ss 2056 demonstração e impossibilidade do contrário 195 cf 199 distinção entre o domínio dos raciocínios demonstrativos e o das determinações da vontade 44950 o prazer das demonstrações 484 5 demonstração e moralidade 5026 as questões de fato como indemonstráveis 503 relações passíveis de demonstração 504 Desejo ver Paixão desejo definido como impressão de reflexão 32 59 4 7 4 desejo como não extenso e indivisível 267 desejo como paixão direta 3 1 1 435 474ss cf 61 3ss 663 desejo de se sobressair em força física 335 desejo da boa reputação 356 366 desejo de justiça 384 desejo de sociedade 397 de sejos que acompanham o amor e o ódio 401ss 416ss 63 1 desejo sexual 723 Tratado da natureza humana carnal 428 527 desejo como paixão calma 4534 desejos calmos con fundidos com a razão 453 desejo como paixão violenta 4548 desejo como resultante da consideração do bem enquanto tal 474 prazer e dor como indispensáveis ao desejo 613 Desprazer ver Prazer Determinação ver Causa causação a abstração e o caráter determinado das idéias 434 60 cf 46 778 99 relação de causa e efeito como determinação da mente 1 1 7 1201 126 13840 160171 1889 198209 250 2989 4367 4414 6934 deter minação necessária nas proposições intuitivas ou demonstrativas 124 destruição da determinação da mente pelo acaso 158 determinação e pro babilidade 16 lss o hábito como determinação de transferir o passado para o futuro 1 67 297 689 determinação e idéia de necessidade 1 89 199 206 674 determinação pela natureza 216 301 determinação da vontade pelas paixões 4535 motivos e paixões que determinam a ação moral 517 525 determinação artificial da ação conforme a justiça 5736 determina ção da ação moral pelo caráter 6145 ver Caráter Moral razão como determinação calma e geral das paixões 6223 Deus Deus como primeiro motor 1923 a idéia de Deus em Descartes e a eficá cia das causas 193 199200 Deus como princípio eficaz 2812 existência de Deus e a idéia de existência de Deus 123 Deus e determinismo em moral 4467 Deus e dever moral 509 Dever ver Moral Obrigação ser e dever ser 509 ação moral e sentido do dever 5 l 8ss dever e paixão na determinação da ação moral 557ss produção de um sentido do dever 5723 promessa obediência civil e dever 58 l ss Diferença ver Distinção diferença como negação de uma relação 39 diferença de número e dife rença de espécie 39 diferença e princípio da distinção e separabilidade das idéias na imaginação 423 49 62 66 95 2656 distinção de idéias na ausência de uma diferença real 49 95 identidade e diferença 284ss Direção direção das paixões ver Paixões Direito ver Justiça Leis origem do direito e da obrigação moral 330ss 522ss 61 67 ausência de direito nos animais 3601 erro de direito e imoralidade 500 moral e di reito 501 moral direito e artifício 525ss 5713 580ss 61 67 o direi to de posse 548ss 5949 direito natural 559 565 582 as três leis fun damentais do direito natural 565ss direito positivo e governo 599606 direito internacional 60612 724 Índice analítico Distância os sentidos e a determinação da distância pela razão e pela experiência 847 224 670 6745 6767 distância e diferença 4278 influência da distância sobre as paixões 375ss 463ss distância parcialidade e sim patia 574ss 6216 6426 Distinção ver Diferença distinção e separação na imaginação 423 49 82 95 108 1 1 56 240 255 2656 672 distinção de razão 4850 69 277 Divisibilidade divisibilidade infinita do espaço e do tempo 51 ss divisibilidade infinita da extensão 66ss 6956 Dogmatismo ceticismo e dogmatismo 220 Dor ver Prazer Drama ver Teatro Tragédia imaginação crença e paixão suave nos espetáculos dramáticos 146 Educação a natureza e os efeitos artificiais da educação 1458 152 1 734 cf 387 8 437 moral e educação 32930 5723 5856 609612 618 educação e paixões 3878 o caráter artificial da justiça e a educação 5234 529 30 541 562 5723 5856 60912 618 cf Convenção Eficácia ver Causa poder e eficácia 1 19 132 eficácia das causas 1 89202 299 a idéia de eficácia como não derivada da razão l 90ss eficácia e idéia de Deus 28 1 Eficiente ver Causa causação Egoísmo egoísmo amor a si próprio ou interesse próprio moral e justiça 52042 55862 5723 582ss 6069 6226 cf Amor egoísmo e generosidade restrita 534ss 6256 Eloqüência crítica ao uso da mera eloquência em lugar da razão 19 efeitos da eloqüên cia sobre a imaginação e as paixões 20 144 1 53 462 6501 66970 Emoção ver Paixão definições e distinções entre emoção paixão e afeto 17 45 340 3512 364 384 392 401 403 40710 427 430 4501 4534 463 473 615 669 Entendimento ver Fantasia Imaginação Razão distinção entre entendimento e fantasia 121 181 300 o erro da divisão usual dos atos do entendimento 125 n6 entendimento e causação 197209 292 2989 4413 505 6734 relação entre as operações do entendimento 72 5 Tratado da natureza humana e os princípios da contigüidade e semelhança 202 entendimento nos homens e nos animais 20912 entendimento probabilidade e ceticismo 21 320 251 301 6 44950 476 694 entendimento e a crença nos obje tos externos 2301 244 25 1 entendimento imaginação e razão 297 306 44952 476 entendimento e regras gerais 328 408 670 cf Regras simpatia e entendimento 3545 oposição entre entendimento e imagina ção 406 n6 a insuficiência do entendimento na determinação da vonta de 501ss entendimento e afetos 529ss 533ss entendimento moral e justiça 529ss 5334 Entrega entrega simbólica na transferência da propriedade 554 Erro explicação fisiológica do erro 88 os erros da geometria 100 relações de semelhança contigüidade e causação como fonte de erros 88ss 2367 erros decorrentes do uso de regras gerais 1 791 83 erros populares 204 2556 609 erro e probabilidade 2 l 3ss o erro a respeito da identidade dos objetos e do Eu 236ss 285ss imaginação como fonte de erros 298306 o erro de distinguir o poder de seu exercício 3468 o erro comum dos filósofos em relação às paixões e à razão 4534 os erros do juízo e a moral 496ss a justiça e os erros que resultam da escolha do bem mais próximo 577ss Escolástica filosofia escolástica 58 66 70ss 208 271 276 3 3 1 2 doutrina escolástica do livrearbítrio 346ss 443ss 453 Espaço ver Extensão espaço como espécie de relação filosófica 389 97 1012 idéias de espa ço e tempo 5 1 ss crítica à doutrina da divisibilidade infinita do espaço 54ss as partes do espaço como impressões de átomos coloridos e sóli dos 645 vácuo ou espaço vazio 66 8 lss 90ss espaço e extensão 267ss a influência da proximidade e distância no espaço e no tempo sobre a imaginação e as paixões 463ss Esperança esperança como paixão direta 3 101 4356 474ss 613 a esperança e o medo como resultantes de um bem ou mal incertos 4 7 6 a esperança e o medo resultantes da mistura de alegria e tristeza 4 77 Espírito espirituosidade Wit espírito como causa de orgulho 331 espírito como causa de amor 629 6478 650 Espíritos animais 54 88 128 154 168 218 236 244 263 301 309 324 387 389 4078 45560 483 669 72 6 Índice analítico Espontaneidade distinção entre liberdade de espontaneidade e liberdade de indiferença 443ss ver Liberdade Esquema ver Justiça esquema das regras da justiça oposto aos atos isolados de justiça 537 6189 Essência confusão e distinção entre circunstâncias essenciais e acidentais 1 8 1 2 cf 207 Estado de natureza ficção filosófica do estado de natureza 5334 estado de natureza como estado imaginário anterior à sociedade 541 2 justiça sociedade e estado de natureza 573 cf Sociedade Estima estima pelos ricos e poderosos 39 l ss simpatia estima e consideração desinteressada do caráter 512 620 656 65960 cf 3956 Eu Selj ver Alma identidade mente idéia de eu 222 identidade do eu 28395 o eu como sucessão ou combinação de percepções 298 6723 o eu como objeto do orgulho e da humildade 3 1 l ss 333 363 qualidades que produzem o prazer ou des prazer no orgulho e na humildade e sua relação com o eu 320ss 335 3378 3412 4301 o eu e o outro nas paixões do amor e do ódio 363ss 366ss 4301 a vivacidade dos objetos relacionados ao eu 4634 Evidência graus de evidência e probabilidade 1 1 8 1567 1634 1 72 1 769 1 867 21 58 43940 evidência moral 4403 698 Exemplares causas exemplares 204 Exercício poder e seu exercício 36 1923 205 34650 3945 Existência idéias de existência e nãoexistência como as únicas idéias contrárias 39 concepção clara e existência possível 5259 69 existência e unidade 56 identificação entre a idéia de um objeto e a idéia de sua existência 94 percepção ou objeto e existência 82 936 123 484 6734 6901 im pressões e idéia de existência 94 2223 crença e idéia de existência 123 8 186 6614 6901 6945 papel dos sentidos e da razão na formação da idéia da existência dos corpos 2206 aparência e existência 2216 exis tência dos corpos e a imaginação 2275 1 ficção da dupla existência das percepções e dos objetos 244ss existência dos objetos externos na filo 72 7 Tratado da natureza humana sofia moderna 258ss a questão da substância da alma e a existência in dependente das percepções 266 existência real e fatos em oposição a re lações de idéias 484 498 503 Expansão expansão da simpatia natural pelo artifício da justiça 523ss 6 l 6ss Experiência experiência como fundamento em filosofia 2224 684 experiência como fundamento e limite da inferência causal 234 29 88 98 1 10 l 15ss 1578 1 724 190 203 245 279 505 662 684 6889 694 experiência e relação de contrariedade 39 descrição da natureza da experiência 1 1 6 princípio da uniformidade da experiência 1 1 720 134 168 6899 1 ex periência e hábito 1334 experiência como princípio da crença 129 132ss 297 439ss 69 lss a associação de idéias como o efeito imediato da expe riência 142 efeitos análogos da semelhança e da experiência 142 expe riência e educação 147 experiência e fantasia 153 experiências contrá rias e probabilidade 156ss 16387 efeitos da experiência contrastados com os da repetição voluntária 1 734 experiência e memória 1 76 expe riência e regras gerais 1802 135 164 396 experiência e idéia de eficá cia 190ss 203 experiência e o eu selj 2834 definição da experiência como um princípio 297 determinação pela experiência passada 3479 439ss falsa experiência da liberdade de indiferença 444 Experimental experimento método experimental em filosofia 224 3 7 2089 física experimental 684 experimentos que confirmam a doutrina das paixões 366ss experimen tos que não se enquadram em princípios que se busca estabelecer 400 Extensão ver Espaço 54ss distinção entre extensão e duração 612 espaço e extensão 267ss extensão e distância 90 extensão na teoria cartesiana 192 existência externa e extensão 2234 extensão e solidez como qualidades primárias 260 indivisibilidade do pensamento e divisibilidade da extensão 266ss percepções e extensão 26872 Externo existência externa e percepções 934 2001 22 lss 244ss 271 ação como signo externo do caráter 5 1 7 ss Faculdade falibilidade de nossas faculdades e ceticismo 213ss cf 296 faculda des e qualidades ocultas como invenção dos filósofos 2567 Fama ver Reputação Família família como causa de orgulho e humildade 341 4 3546 697 família como causa de amor e ódio 364 família simpatia e sociedade 52630 642 família e origem do governo 57980 72 8 Índice analítico Fantasia ver Entendimento Imaginação Razão fantasia e a liberdade de associação na imaginação 34 35 3 7 48 1589 fantasia e memória 1 135 666 fantasia e entendimento 121 1 8 1 300 66970 fantasia e crença 151 ss 1 73 324 667 66970 fantasia e ficção da dupla existência 249 fantasia e as noções de substância e matéria ori ginal 253 fantasia e razão 2701 299301 fantasia e as paixões 349 374 37680 3901 3923 399 407 41 5 457 462 465ss 477 629 Ficção ver Crença Fantasia ficção da substância 40 ficção e idéia de tempo 634 93 233 ficção da igualdade perfeita 75 ficção de objetos semelhantes e contíguos 140 crença fantasia e ficção 138 l 49ss 181 2423 4623 664 6678 669 70 692 indistinção entre ficções e impressões ou juízos causais na lou cura 153 ficção da existência contínua e distinta dos corpos 226ss fic ção da identidade 233ss 2945 ficção da existência dos corpos como objeto de crença 2423 ficção da dupla existência das percepções e objetos 244ss ficções da filosofia antiga 252ss ficções como esforço de elimi nar a descontinuidade e encobrir a variação 2868 29 12 ficção filosófica do estado de natureza 533 ficção poética de uma Idade de Ouro 533 4 ficção de um domínio pleno ou parcial 568 Filosofia ver Ceticismo Experiência filosofia e ciência da natureza humana 2024 o vulgo o senso comum e a filosofia 23 63 163 1 65 1 63 208 2257 243 470 2557 6023 672 683 filosofia da natureza 24 83 132 310 335 400 404 683 filosofia da natureza e filosofia moral 24 104 2089 3 167 4456 479 488 o desejo do filósofo de procurar causas 3 7 relação filosófica e relação natural 3 89 97ss 122 203 filosofia e experiência 912 132 207 gosto como critério em filosofia 133 o caráter abstruso da filosofia 172 222 68 1 filosofia probabilidade e ceticismo 176 183 213ss a questão sobre o poder ou efi cácia na filosofia l 90ss a questão da existência dos corpos na filosofia 225ss 235 23940 2425 1 filosofia antiga 252ss 449 566 filosofia moderna 257ss 449 crítica às filosofias de Descartes Malebranche e Spinoza 264ss filosofia e religião 2823 304 4456 filosofia e supersti ção 3034 filosofia ceticismo e vida comum 257 3016 filosofia das pai xões e a doutrina escolástica do livrearbítrio 3467 a oposição tradicional na filosofia entre razão e paixão 448ss o prazer da investigação filosófica 4846 semelhança entre a filosofia a caça e o jogo 4879 a divisão da filosofia em especulativa e prática 497 a preeminência da filosofia prática 660 Fim finalidade ou Propósito fim de uma ação e as paixões 20912 4869 499ss fim e identidade 289 90 as paixões os fins naturais e a justiça 5289 5423 5678 5723 justiça governo e fim comum 5778 a virtude e seu fim 61 67 624 628 658 fim agradável e o belo 616 624 729 Tratado da natureza humana Final ver Causa causação causa final 204 Física ver Filosofia filosofia da natureza física e moral 24 104 2069 316 400 479 683 necessidade física e moral 2045 442ss física e moral remetidas a percepções na mente e não a qualidades nos objetos 5089 física experimental 684 Força força e vividez das idéias ver Crença 25ss 29 33 43 125 1 135 128ss 1356 667 a força suave dos princípios de associação 34 crítica às ten tativas de explicação da força ou poder causal 18996 a força de uma pai xão distinguida de sua violência 4548 a força da ação mental distinguida da agitação da mente 669 Formal ver Causa causação causa formal 204 Gênio genialidade como faculdade mágica da alma 48 gênio como alguém altivo e sublime 470 gênio como causa de respeito e apreço 6345 648 cf n6 Geometria ver Matemática 68ss 991 00 6956 Geral idéia geral ou abstrata ver Abstratas abstração idéia de poder em geral 195 noção geral de prazer 460 caráter em geral e vontade 454 caráter em geral e moralidade 512 moralidade e ponto de vista geral 512 540 prazer e desprazer em geral e sua relação com a virtude e o vício 5 1 5 540 Gosto gosto como critério em filosofia 133 gosto como critério para julgar o espírito wit 331 gosto como critério para o estabelecimento de uma causa 544 gosto correto ou errado e moralidade 586 n 10 Governo origem do governo 573ss interesses imediatos e a necessidade do gover no 5 7 46 os governantes e seu interesse imediato na justiça 5 7 6 governo como invenção isenta das fraquezas humanas 578 submissão ao governo ou obediência civil 578ss ausência de governo em algumas sociedades 57880 sociedade sem governo como estado natural do homem 580 ori gem da monarquia como governo civil 580 governo e justiça 580ss justiça como fonte da obediência dos governados 5801 governo e pro messas 5801 5835 587 589ss governo obediência e consentimento 58 1 5878 deveres civis deveres naturais e governo 5823 instituição do governo obediência e cumprimento de promessas 583 585 589ss obrigação do cumprimento de promessas como efeito do governo 583 interesse e obediência aos magistrados 5834 593ss equívoco da hipótese 73 0 Índice analítico de uma promessa ou contrato original como fonte da obediência ao gover no 589ss resistência ao governo 58990 5935 6023 princípios do direito de magistratura dos governantes 595606 Hábito ver Costume hábito como um dos princípios da natureza 212 Hipotéticos argumentos hipotéticos ou raciocínios baseados em uma suposição 1 12 História poesia história e influência sobre a imaginação 152 66970 credibilidade da história 1779 Humano homem relação das ciências em geral com a ciência do homem 1920 305 máxi mas gerais da ciência da natureza humana 878 128 limite do entendi mento humano 912 1 13 insuficiência da razão humana na explicação da causa última das impressões dos sentidos 1 13 credulidade como fra queza mais manifesta da natureza humana 143 percepção do bem pra zer e do mal dor como princípio natural do homem 149 divisão da ra zão humana em conhecimento e probabilidade 157 preconceito como erro da natureza humana 1 7980 homem comparado aos animais ver Ani mais 20912 303 35962 43 13 filósofos e homens em geral 226 238 identidade pessoal como ficção da mente humana 283ss 29 lss a men te humana e a busca por princípios 298ss a inconstância da mente hu mana 3 1 8 a semelhança entre todas as criaturas humanas 352 393 403 incapacidade humana de isolamento e introspecção permanentes 3867 regularidade das ações humanas 436ss leis humanas e divinas 4468 repetição como princípio da mente humana 459 razão e paixão na natu reza humana 4 734 analogia entre a mente humana e um instrumento de cordas 4 76 parcialidade afetiva original do homem e egoísmo natural 517 ss 534ss amor pela humanidade 521 inventividade humana 5245 fragilidade natural do homem e sociedade 525ss os afetos e o entendimen to como as duas partes principais da natureza humana 5 3 3 Humildade ver Orgulho Idade de Ouro analogia entre estado de natureza e Idade de Ouro 534 Idéias origem e classificação das idéias 25ss conceito de idéia em Locke 26 idéias simples e complexas 267 37 relações de idéias ver Relações idéias e sua derivação de impressões anteriores 28 43 59 101 103 128ss 351ss 195 princípios de associação de idéias 34ss 121 3 l 7ss 339ss exceção ao princípio da anterioridade das impressões sobre as idéias 2930 idéias primárias e secundárias 3 1 idéias e impressões de reflexão 3 1 2 73 1 Tratado da natureza humana idéias inatas 3 1 1901 idéias da memória e da imaginação 32ss idéias abstratas ou gerais 4lss divisibilidade das idéias 52 raciocínio acerca de uma idéia e realidade da mesma 58 90 idéias de espaço e tempo 59ss 81 obscuridade das idéias em relação às impressões 59 101 idéias da matemática 65ss 1001 princípios de associação de idéias e explicação fisiológica 88 idéia de existência 93ss 2978 idéia abstrata de existên cia 93ss 6612 relações demonstráveis entre idéias 97ss 503 idéia de causação lOlss idéias da memória como equivalentes a impressões 1 1 1 136 idéia de conexão necessária l 88ss idéia abstrata de poder 195 idéia de corpo e solidez 26l ss idéia de substância 264ss idéia de extensão 26 7 ss idéia de Deus 28 1 idéia de identidade pessoal 283ss dupla relação de impressões e idéias 3 1 79 3214 330 341 2 346 349 367ss 386 41 6ss 430 455 4745 522 6134 associação de idéias e paixões 339 simpatia e conversão de uma idéia em impressão 351352 idéias na men te dos animais 3612 transição das idéias obscuras às vívidas e das dis tantes às próximas 3734 transição de idéias e simpatia 3745 compo sição de idéias por conjunção oposta à união total ou mistura de impressões e paixões 400 idéias e emoções 4079 4267 relações abstratas entre idéias e relações entre objetos 449 5023 mundo das idéias e mundo das realidades 449 idéia como representação e verdade 45 1 484 498 Identidade ver Eu identidade como relação filosófica 38 978 1012 identidade pessoal 222 4 283ss 3 1 12 320 337 354 373 388 6714 identidade e o principium individuationis 232ss constância de impressões e identidade numérica 232 2356 285ss identidade e tempo ou duração 2334 idéia de iden tidade idéia de unidade e idéia de número 2334 sucessão de percepções relacionadas e identidade 236ss impressões intermitentes e identidade 238ss identidade e ficção da existência contínua 238ss identidade e ficção da substância 252ss 285ss identidade da mente e identidade dos objetos 2857 ficção da identidade pessoal 2867 29 lss identidade e objetos variáveis ou descontínuos 2879 1 relações de causação e seme lhança e sua influência sobre a noção de identidade pessoal 2924 me mória como fonte da identidade pessoal 2934 identidade e simplicidade da mente 295 identidade de impressões e paixões 375 Igualdade dificuldades relativas à noção de igualdade 7lss 97 99100 23 1 676 6956 a ficção da igualdade perfeita 448 Imaginação ver Entendimento Fantasia Razão idéias e imaginação 27 327 59 1 135 124 137ss 1 77 2368 241 253 2878 29 12 298 3 1 7 352 3535 3734 376ss 3901 667 699 expe riência e imaginação 30 2978 memória e imaginação 324 1 127 138 9 298 406 n6 6667 imaginação e o princípio de associação de idéias 732 Índice analítico 347 137ss 292 3 1 7 3901 699 imaginação e relação de causação 35 6 108 1 1 722 124 1334 137ss 1 56ss 1 8 1 3 2045 2924 390 441 distinções operadas pelo pensamento e imaginação 42 524 589 62 65 6 68 789 82 9 1 95 99100 108 1 1 722 124 134 1 58 2045 222 2656 292 300 463 626 664 672 imaginação e indivisibilidade da ex tensão 534 58 68 imaginação e existência possível 58 124 283 ima ginação e experiência do tempo 612 233 463ss imaginação e experiên cia do espaço 645 463ss imaginação e sua relação com a matemática 788 1 99100 23 1 676 696 imaginação e entendimento ou razão 132 4 204 298300 406 n6 476 cf 601 imaginação e raciocínio demons trativo 124 costume ou hábito e imaginação 133 1613 1678 1803 2045 2 1 1 297 441 596 crença e imaginação 14856 1705 187 21 1 21 820 24l ss 4889 662 665 667 669 6902 imaginação e paixões 1501 1812 3525 374 376ss 393 3969 4603 476 cf 601 imagina ção e probabilidade 15663 1705 1 87 oposição entre juízo e imaginação 1 8 1 3 relação entre imaginação sentidos e razão na produção da crença na existência distinta dos corpos 22151 ficções da imaginação 233 252 3 29 1 295 299 444 4623 6667 princípios permanentes e princípios variáveis da imaginação 258 identidade pessoal e imaginação 285ss imaginação identidade e finalidade 289 prazeres da imaginação 3 1 9 orgulho humildade e imaginação 323 339 3801 imaginação e simpa tia 3525 3969 4234 6323 635 transição fácil da imaginação das idéias obscuras para as vívidas 3734 376ss 391 piedade malevolência e ima ginação 403ss 415 prazeres da imaginação e dos sentidos nos animais 43 1 inveja malevolência e imaginação nos animais 433 imaginação e vontade 444 rapidez da imaginação oposta à lentidão das paixões 476 imaginação e sua relação com a justiça e o interesse 599600 imaginação mais afetada pelo particular que pelo geral 619 626 imaginação e beleza ou prazer 624 imaginação como sinônimo de pensamento 664 672 Imortalidade crença na imortalidade da alma 1445 Impressões impressões e idéias 25ss impressões simples e complexas 268 exce ção ao princípio da anterioridade das impressões em relação às idéias 29 30 impressões de sensação e de reflexão 3 1 2 1 124 30910 impressão de reflexão e idéia de necessidade 199 impressões e existência externa 221ss impressão de um eu 2223 283ss 3512 impressões dos sen tidos 2235 impressões e existência contínua e distinta 225ss impres sões como existências internas e perecíveis 227 284 impressão da idéia de corpo 2614 impressões originais e causas físicas e naturais 3091 O dor e prazer como impressões originais 3091 O paixões como impressões secundárias ou de reflexão 3091 O divisão das impressões de reflexão em 733 Tratado da natureza humana calmas e violentas 3101 1 impressões de reflexão violentas como paixões diretas e indiretas 3101 1 orgulho e humildade como impressões sim ples e uniformes 3 1 1 associação de impressões 3 1 78 3 78 416 dupla relação de impressões e idéias 321 375 416 associação de idéias e im pressões de reflexão 339 415 conversão de uma idéia em uma impressão na simpatia 35lss 4046 420ss identidade de impressões 375 princí pio da transição entre impressões 376ss 4046 união completa de im pressões e paixões 400 vontade como impressão interna 435 distinções morais e sua relação com impressões ou idéias 496ss impressão distin tiva da moralidade 509ss sentido de justiça derivado de impressões arti ficiais 537 Indiferença indiferença da mente e acaso 1589 440 probabilidade de chances e indi ferença 1 601 62 440 indiferença nas paixões 3 12 3 70 450 455 459 60 477 indiferença como sinônimo de liberdade 436 697 distinção en tre liberdade de indiferença e liberdade de espontaneidade 4434 indiferença da razão em relação às paixões 45 12 cf 495ss Inerência ver Substância Inferência inferência causal ver Causa causação inferência a partir da coerência e regularidade das percepções 1 13 2302 inferência imediata a partir de objetos e longas cadeias de argumentos 1 77 inferência sobre a existên cia externa 2234 249 inferência da impressão à idéia l 1 5ss 126 133 4 1378 1412 1 72 1 87 1967 199 203 2556 4367 4412 4456 687ss contrariedade da experiência e inferência causal 1 656 confusão entre uma inferência do juízo e uma sensação 1423 cf 1823 inferência e probabilidade 18 7 inferência causal nos animais 211 inferência baseada na constância das percepções e inferência baseada na coerência das per cepções 2302 inferência de questões de fato 503 664 Instinto razão como um instinto da alma 212 instinto ou impulso natural em oposição à reflexão ou razão 24 7 instintos naturais e paixões calmas 453 instinto natural de busca do prazer bem 4745 instinto e obediência civil 596 instinto original e distinções morais 513 659 Intenção ver Vontade a intenção propósito ou escolha voluntária nas ações e em nosso juízo moral 3824 442 499 508 501 6489 intenção vontade e promessa 5624 Interesse ver Justiça interesse e moral 512 interesse como fonte da justiça 536ss 565ss interesse obrigação natural e obrigação moral 539ss 5845 interesse e 734 Índice analítico promessas 558ss interesse e obediência civil 578ss interesse e casti dade 61 12 Intuição intuição e demonstração nas relações filosóficas 98 a suposta intuição da necessidade de uma causa 10710 205 intuição relativa à relação de causação 1 19 intuição e crença 124 Inveja inveja como paixão indireta 3 1 1 distinção entre inveja e malevolência 406ss origem da inveja 41 1 Irregular irregularidade ver Regular regularidade Juízo ver Entendimento juízo concepção e raciocínio como atos do entendimento 125 n6 sistema de realidades como objeto do juízo 138 confusão entre inferência do juízo e sensação 1423 regulação do juízo pelas regras gerais e sua oposição à imaginação 1803 contrariedade entre a razão e as paixões apenas quando estas são acompanhadas de juízos 4512 498500 juízos como percepções 496 moralidade e juízo 5091 O juízo e entendimento como remédio para a irregularidade dos afetos 529 faculdade de julgar e memória 6523 Justiça justiça como virtude artificial 5 1 7ss 525ss 537 565ss 572 659 mo tivos do ato de justiça e consideração pela justiça 5 1 723 sentido de jus tiça educação e convenções 5234 analogia entre regras da justiça e leis naturais 5245 vaidade piedade e amor como paixões sociais e favoráveis à justiça 532 justiça e estado de natureza 5336 benevolência e gene rosidade irrestritas e o sentido de justiça 5345 sentido de justiça e ra zão 536 esquema das regras da justiça oposto aos atos isolados de justi ça 537 61 89 justiça e interesse 5379 61 79 virtudes naturais e justiça 537 61 820 influência da simpatia na justiça e na moral 53940 61 79 justiça interesse próprio e interesse público 53940 572 61 79 artifí cio político e justiça 5401 573 justiça e boa reputação 541 definição comum de justiça 565ss justiça virtude e vício 56870 a artificialidade da justiça e a naturalidade da moral que ela implica 5723 659 justiça e governo 573ss justiça civil como derivada de convenções humanas 581 2 obrigação moral da justiça em relação a indivíduos e Estados 6089 Lealdade lealdade rígida como próxima à superstição 562 Leis ver Direito a necessidade moral como essencial às leis divinas e humanas 446 leis eternas e fundamento das distinções morais 505 caracterização da regras da justiça como leis naturais 525 leis do direito natural como inven ções humanas 559 565 56773 580ss 595 73 5 Tratado da natureza humana Liberdade e livrearbítrio ver Indiferença Necessidade Vontade doutrina escolástica do livrearbítrio 346 liberdade e necessidade 435ss 6978 loucura e liberdade 440 liberdade como equivalente a acaso 443 liberdade de indiferença e liberdade de espontaneidade 4434 livrearbí trio e a falsa sensação de liberdade de indiferença 4445 doutrina da li berdade e religião 445 liberdade escolha e moralidade 501 n2 livrear bítrio e virtudes morais 648 ações voluntárias e liberdade 6489 Linguagem linguagem comum 378 1356 157 linguagem e simpatia 3523 lin guagem filosófica e vida comum 5 1 8 linguagem convenção e promessa 5301 correção do juízo moral e correção da linguagem 6212 Lógica lógica como uma das quatro ciências constituintes do conhecimento hu mano 21 684 regras da lógica 208 Malevolência malevolência e inveja 406ss malevolência e piedade como apetites inver sos 416 malevolência e ódio 41 8ss Matemática ver Geometria idéias de pontos matemáticos 64ss definições e demonstrações da ma temática 68ss possibilidade e existência dos objetos matemáticos 689 1001 demonstrações da geometria 7lss matemática e imaginação 74 5 23 1 graus de certeza na geometria aritmética e álgebra 99100 valor da geometria 100 relação de impressões e idéias sobre objetos matemáti cos 1001 a necessidade na matemática 199 matemática e probabilida de 213ss Matéria matéria força e movimento na filosofia cartesiana 1923 matéria origi nal ou substância na filosofia antiga 252ss matéria e mente 264ss percepções sem conjunção com a matéria 268ss pensamento e matéria na filosofia de Spinoza 27lss matéria e movimento 278ss ações ne cessárias da matéria como uma determinação da mente 4367 necessida de nas ações da mente e nas ações da matéria 436ss 446 Material ver Causa causação causa material 204 Medo medo como paixão direta 4745 medo e a probabilidade de um aconteci mento 4 75 medo como resultado da mistura de alegria e tristeza 4 76ss Memória memória e imaginação 32ss 1 1 35 138 148 n 7 2423 2978 406 n6 666 memória e preservação da ordem e posição das idéias simples 334 idéias da memória como equivalentes a impressões 1 1 12 memória e cren 73 6 Índice analítico ça 1 1 5 sistema da memória e dos sentidos 138 oposição entre memória e imaginação 148 n 7 406 n6 memória e raciocínio demonstrativo 1 86 memória e crença na existência dos corpos 23 12 2423 memória como fonte da identidade pessoal 2945 memória e sua relação com a virtude e o vício 6523 memória e caráter 6523 Mental mente ver Alma Eu Identidade mundo mental e mundo natural 2089 264 4001 emoções da alma e raciocínio da mente 21 89 mente como feixe de percepções 240 285 293 6705 imaterialidade da mente 26483 idéia da substância da men te 2656 relação entre pensamento ou mente e extensão 266ss a dou trina espinosista da imaterialidade da alma ou mente e a dos teólogos 272ss pensamento ou mente e ação 2778 movimento matéria e pen samento ou mente 278ss ininteligibilidade da questão acerca da subs tância da mente 282 mente como uma espécie de teatro 285 mente com parada a uma república ou comunidade 2934 analogia entre a mente e um instrumento de cordas 476 prazer ou desprazer frente às qualidades mentais e sua relação com a virtude 614 princípios mentais duradouros e sua relação com a virtude 614 similaridade da mente de todos os ho mens em seus sentimentos e operações 615 controle da mente sobre suas idéias e crenças 662 Mérito ver Moral mérito e necessidade ou constância nas ações humanas 44950 mérito motivos e a moralidade das ações 517 ss Metafísica metafísica e ceticismo 20 tese metafísica sobre a existência possível de tudo que a mente concebe 58 cf 688 tese metafísica sobre a matéria e a extensão 82 filosofia e retórica na metafísica 20 8990 3001 518 cf 3001 449 a substância pensante na metafísica 223 a natureza da alma na metafísica 2689 283 285 a parte metafísica da ótica 409 primazia da razão sobre a paixão na metafísica 449 o erro comum dos metafísicos relativo à determinação da vontade 454 Milagre milagre oposto a natureza 5134 Modéstia virtudes da castidade e da modéstia 609ss Modos modo como idéia complexa 37 modos e substâncias 3941 modos ou modificações em Spinoza e para os teólogos 2747 Monarquia monarquia inicial de todos os governos 580 monarquia e sucessão do poder 5989 6024 73 7 Tratado da natureza humana Moral limitações da filosofia moral em relação à filosofia da natureza 24 2089 3 1 6 filosofia moral e a prioridade das causas em relação aos efeitos 104 a causação aplicada a fenômenos morais e naturais 1 69 necessidade moral e necessidade física 2045 4402 existência nãoespacial de uma refle xão moral 268 a moral e sua relação com dor e prazer 32932 510ss 53940 5567 586 6147 6201 648 moralidade e natureza 3293 1 344 5048 5 1 14 5283 1 539ss 56673 580ss 589ss 6023 6089 642 6589 prazer beleza natural e moral 334 justiça e eqüidade moral como base da relação de propriedade 344 evidência moral baseada na regularida de das ações humanas 4408 698 moral religião e necessidade 4458 combate entre paixão e razão na moral 449 distinções morais e razão 495ss 5 1 1 6201 distinção entre bem e mal morais como uma percepção 496 51 O distinções morais pela justaposição e comparação de idéias ou dedu ção racional 496ss 6201 influência da moral sobre as ações e as paixões 497 moral filosofia especulativa e filosofia prática 497 juízos equivoca dos ou erros de fato e ações imorais 499502 erro de fato erro de direito e moralidade 5002 liberdade ou escolha e moralidade 501 n2 moralidade e demonstrações 503 503 n3 moralidade como sinônimo de obrigação 503 distinções morais e sentimento moral 506 509ss 524 539 5567 586 614 6201 6293 1 animais e moralidade 5078 ser e dever ser 509 caráter e moral 512 6145 6293 1 6579 ver Caráter interesse e moral 512 princípios simples e gerais das noções morais 5 1 23 consideração da ação externa e dos motivos internos na avaliação moral 5179 524 571 6145 sentido moral e dever 519ss justiça e moral 520ss 562 ver Jus tiça beleza ou deformidade morais 525ss 53940 propriedade como uma relação moral e nãonatural 53 1 554 56673 simpatia e moralidade 539 40 5845 6089 615ss 6579 ver Simpatia moral e promessas 555ss ver Promessa moral e paixões 5712 obediência civil e obrigação mo ral 578ss 589ss 6025 61 67 moral educação e os políticos 585 moral dos príncipes 6079 obrigação moral e castidade 60912 virtudes natu rais e moralidade 61 3ss aptidões naturais e virtudes morais 646ss Motivo ações e os motivos 436ss inferência das ações aos motivos e viceversa 440ss motivos que determinam a vontade e liberdade 444ss 448ss ver Vontade motivos ações e mérito 5 1 7ss motivo ação e sentido do de ver ou moralidade 5 1 7ss 557 motivos para os atos de justiça ou hones tidade 520ss motivos para atos de justiça e sentido do interesse 529ss motivos para os atos de justiça simpatia e aprovação moral 53940 Movimento Deus como primeiro motor do universo 192 movimento como qualidade primária 2601 movimento matéria e pensamento 2 78ss 73 8 Índice analítico Mulher mulher na sociedade matrimonial 3424 piedade ou compaixão na mu lher 404 423 mulher belo sexo como naturalmente agradável 459 modéstia e castidade na mulher 60912 capacidade do homem de propor cionar prazer como verdadeira fonte do amor da mulher 6546 Natural natureza relações naturais e relações filosóficas 3 79 2034 natural e artificial 1478 5135 5245 5283 1 565 5678 58 13 613ss 659 ver Artificial artifício operações da natureza como independentes do pensamento e raciocínio 202 complexidade da natureza 208 hábito como um dos prin cípios da natureza 212 determinações da natureza 2 1 6 a natureza como moderadora do ceticismo 220 raciocínios falsos como naturais 258 mundo natural e mundo intelectual 264 natural e original 3 1 46 403 orgulho e humildade como determinações da natureza 3 1 4ss 320ss princípios da natureza 3 1 6 513 567 inconstância da natureza humana 3 1 8 nature za e moralidade 32930 natural em oposição a milagroso 5 135 natural em oposição a raro ou inabitual 5135 5245 distinção equivocada da virtude como natural e do vício como nãonatural 5145 natural em opo sição a civil 514 n4 5678 direito natural 5245 559 565 5823 na tureza como aquilo que é comum a uma espécie 5245 estado de nature za como ficção filosófica 5334 estado de natureza justiça e propriedade 5412 cumprimento de promessas como regra moral nãonatural 555ss obrigação natural e obrigação moral 5578 564 567 5812 584ss 590 1 6089 61 79 virtudes e vícios naturais 569 613ss deveres naturais e deveres civis 5813 obrigação natural e interesse 5901 direito natural e direito internacional 6067 aptidões naturais e virtudes morais 646ss Necessidade conexão necessária e causação 105ss 1 1 69 1 65 181 188ss 693 697 8 ver Causa causação necessidade em oposição a acaso 1 63ss neces sidade e regularidade das ações humanas 435ss 6978 operações necessá rias da matéria como uma determinação da mente 188ss 436 necessidade e livrearbítrio 435ss ver Vontade constância das ações ou necessida de associada a motivos temperamento e circunstâncias 437ss necessi dade da ação e liberdade 4446 necessidade na matéria e na mente 445 6 necessidade religião e moral 4458 Nomes ver Palavras Obediência ver Governo origem do governo e da obediência civil 576ss 657 Objeto ver Corpo existência dos objetos externos 220ss existência dos objetos externos e imaginação 226ss opinião do senso comum sobre percepções e objetos 739 Tratado da natureza humana externos 226 235 238 242 2867 distinção filosófica entre percepções e objetos 244ss qualidades primárias e secundárias e objetos externos 25964 conhecimento dos objetos por intermédio de uma percepção 271 2 2734 relações comuns aos objetos e às percepções 274 distinção entre objetos e causas do orgulho e da humildade 3 1 lss 320ss 3379 365 objeto do amor e do ódio 363ss Obrigação obrigação da justiça e obrigação moral 539ss obrigação moral e obriga ção natural 539ss 580ss 589ss 5923 6023 6089 obrigação e pro messa 555ss 593ss ver Promessa ações virtuosas e obrigação moral 556 obrigação e sentimentos 5567 obrigação natural e paixão natural 5578 5845 obrigação como não admitindo gradação 568570 obediên cia civil e obrigação moral 580ss 589ss 593ss 6025 61 67 obriga ção moral e castidade 60912 Ocasião ocasião como causa real 204 Ocupação ocupação e propriedade 543ss Ódio ver Amor Orgulho e humildade as paixões de orgulho e humildade 309ss orgulho e humildade como impressões de reflexão violentas e indiretas 3 1 01 objetos e causas do orgulho e da humildade 3 1 1 ss 3145 320 3267 3368 causas do or gulho e da humildade como naturais e nãooriginais 3 1 56 causas do orgulho e humildade e suas relações com prazer e dor 3 l 9ss 32932 614 orgulho como sensação prazerosa e humildade como sensação dolorosa 320ss orgulho e humildade como paixões derivadas de uma dupla rela ção de impressões e idéias 321 limitações do sistema das paixões do orgulho e da humildade 324ss influência de regras gerais e do costume sobre o orgulho e a humildade 3278 orgulho e humildade e suas rela ções com a felicidade e a infelicidade 3289 virtude e vício como causas do orgulho e da humildade 32932 5 12 influência da beleza e da defor midade na produção de orgulho e humildade 3327 influência das rela ções de semelhança contigüidade e causação na produção do orgulho e da humildade 33844 papel da associação de impressões na produção do orgulho e da humildade 33944 orgulho pelo país ou terra natal 341 orgulho pelos amigos e parentes 3412 orgulho pela família 3423 372 orgulho pela riqueza 342 34450 orgulho pela propriedade 34450 opi nião alheia como causa do orgulho 3509 orgulho e humildade nos ani mais 35962 orgulho e humildade e suas relações com o amor e o ódio 365ss 374 401 4248 512 6289 propensão maior da mente para o 740 Índice analítico orgulho do que para a humildade 4245 qualidade virtuosa da mente na produção de orgulho ou amor e da viciosa na produção de ódio ou humil dade 614 orgulho humildade e simpatia 6289 6326 virtudes e vícios do orgulho e da humildade 63 l ss orgulho humildade e suas relações com o eu e com os outros 63641 mérito e demérito do orgulho e da humildade 63641 Original impressões de sensação como originais 3 1 2 impressões originais e se cundárias 30910 distinção entre original e natural 3 1 45 instinto ori ginal da mente ao bem 4 7 4 contrato original ver Contrato original Paixões paixões consideradas como impressões 2526 275ss paixões prazer e dor ver Prazer 32 1456 149ss 223 3101 319ss ver Orgulho 365ss ver Amor 4 74ss 613ss influência da crença sobre as paixões l 49ss paixões suscitadas pela poesia 1536 imaginação e as paixões 1812 34 7 50 373ss 46074 4778 distinção entre paixões calmas e violentas 309 1 1 453ss paixões diretas e indiretas 3 l lss 47484 paixões e costume 3278 45860 influência das regras gerais sobre as paixões 328 as pai xões e a relação de contigüidade 339ss 404 46374 5738 efeitos da in certeza sobre as paixões 34 79 4578 4 7 584 6134 paixão e emoção 369 70 paixão e simpatia ver Simpatia 3509 615ss 6446 6537 efeitos da intenção nas paixões 3825 direção das paixões 4168 429 560 ver Po lítica paixão e sexo 4283 1 paixões diretas e vontade 435ss cf 5567 suposto combate entre as paixões e a razão 44854 4734 6204 cf 498 paixões como motivos que influenciam a vontade 44854 51 89 5703 paixão definida como emoção violenta 4 73 contrariedade entre as paixões 47484 52730 metáfora das paixões como instrumento de cordas 476 7 paixões e virtudes artificiais 5215 529ss 565 direção das paixões alterada pela convenção ver Artificial artifício Convenção 5323 560 5 65 incapacidade da vontade de alterar paixões 5 567 paixões inatas 68 6 Palavras Nomes ou Termos relação das palavras com as idéias 40 4450 89 122 143 196 686 pa lavras sem sentido 2567 686 694 cf 299 Passivo passividade passividade dos sentidos 1012 hábitos passivos e hábitos ativos 459 60 obediência passiva e resistência 5923 Patriarcal governo patriarcal 580 Pensamento ver Idéia Imaginação Percepção pensamento como sinônimo de consciência 25 674 distinção entre sen tir e pensar 25 685 pensamento e idéias 35 37 6856 693 distinção 74 1 Tratado da natureza humana do pensamento e distinção real 42 195 672 curso usual ou natural do pensamento 48 1212 140 2379 2525 26870 288 320 340 344 350 3769 385 387 390l 403 415 4567 463 4658 471 476 480 l 599 604 699 percepção como objeto do pensamento 94 percepção distinta da atividade do pensamento 1O1 movimento irregular do pensa mento 121 149 pensamento e memória 136 princípios de associação do pensamento 137 3 1 7 361 699 determinação do pensamento e ne cessidade 1 58 444 694 pensamento e relação de causação 158 1612 199 2012 contrariedade no pensamento produzida por uma oposição entre imaginação e regras gerais 1 823 pensamento e sentimentos 1 86 21 89 pensamento nos animais 209 4323 pensamento e crença 217 667 princípios regulares da imaginação como fundamento do pensamen to e da ação 258 pensamento e conjunção local com a matéria 266ss impressões e idéias como o universo do pensamento em Spinoza 275 a concepção do pensamento como ação da alma 277 hipótese sobre a causa das percepções ou pensamentos 278ss fluxo do pensamento e identida de pessoal 285ss 363 6734 comparação entre o fluxo do pensamento e uma república ou comunidade 293 pensamento vulgar ou do senso comum 346 cf 556 pensamento e sensações de prazer e desprazer 392 3 esforço de pensamento e amor à verdade 485 pensamento como uma das percepções da mente 496 673 685 695 pensamento e simpatia 632 pensamento e raciocínio 663 693 pensamento como sinônimo de ima ginação 664 672 pensamento e vontade 6701 693 pensamento em Descartes 695 Percepção ver ldéia Pensamento divisão das percepções em impressões e idéias 25ss 125 30910 353 493 496 510 6723 6856 divisão das percepções em simples e comple xas 26ss semelhança entre as percepções 26ss relação causal entre as percepções 283 1 59 193 6856 sucessão de percepções e noção de tem po 602 93 critério de igualdade e comparação de percepções 734 676 percepções envolvidas na idéia de existência 935 percepções como todo o conteúdo mental 956 125 223 226 230 245 249 266 496 5 10 685 conhecimento dos objetos através das percepções 956 1 1 3 220ss 2713 6723 percepção e raciocínio 1012 descontinuidade de percep ções e identidade 102 220ss 264ss inferência causal e percepção asso ciada 1 1 lss vivacidade das percepções e crença 1 1 5 1356 14950 186 associação e relação de percepções na inferência causal 1 1 78 sistema de percepções 1389 percepção da dor e do prazer 149 227 30910 poder ou necessidade como qualidades das percepções 200 2023 cf 4412 princípio unificador das percepções internas 2023 distinção e separação das percepções 220ss 264ss 283ss 6724 percepções de qualidades primárias e secundárias 2256 2604 5089 sucessão regular das per 742 Índice analítico cepções e hábito 2301 mente como um feixe de percepções 240 283ss 6734 695 percepções órgãos sensoriais e constituição corporal 2434 substância inerência e percepções 264ss 6734 695 percepções e con junção espacial 268ss percepções originais 3091 O associação de idéias e percepção imediata 339 percepção gerada pela vontade 435 conexão necessária como uma percepção da mente 4412 juízo moral como per cepção 496 5081 O percepção em Locke 6856 Peripatética filosofia peripatética 2547 Pessoa ver Alma Eu Identidade Mente Piedade definição de piedade 403 piedade e simpatia 403ss 41 924 615 pieda de e sua dependência da imaginação 4046 malevolência como piedade invertida 410 41 56 piedade e benevolência 41 67 piedade nos animais 433 piedade como paixão social 49 1 532 Poder poder ou eficácia e causa ver Causa l 89ss o poder e seu exercício 35 6 2045 o poder e seu exercício na doutrina do livre arbítrio e na filosofia das paixões 345ss 393ss o poder legislativo 600ss Poesia poesia e filosofia 134 2567 4134 poesia fantasia e imaginação 139 151 ss 219 3923 4124 472 66970 692 aficção poética da idade de ouro 5345 Política política como ciência do homem em sociedade 21 684 política e artifício 456 5401 5602 5723 5846 589ss 61 89 filosofia política fundada em obrigação moral natural 5812 origem da sociedade política 5934 595ss Pontos possibilidade e realidade dos pontos indivisíveis 589 66ss 8 l ss 89 90 2678 696 Popularidade popular fame ver Reputação Posse ver Propriedade estabilidade da posse como condição necessária à sociedade 52835 542 6 553 5945 posse e propriedade 546 503 557 critérios para determina ção da posse 542ss 546 n3 549 n4 e n5 553ss estabilidade da posse e sua transferência como leis do direito natural 565ss 580 585 posse atual e posse prolongada 5489 549 n4 cf 598 n 1 1 princípios que determi nam a autoridade do governante pela posse do poder 595ss Prazer prazer e dor como impressões e como idéias 312 223 225 3091 1 474 prazer no sentimento do medo e do terror 1456 prazer e dor como prin 743 editora unesp ISBN 9788571399013 Índice analítico messas 55564 ver Obrigação caráter involuntário e ininteligível da promessa 5558 5623 obrigatoriedade da promessa e o sentido do dever 5578 cumprimento de promessas como lei do direito natural ver Direito 565 580ss 606 obrigatoriedade das promessas como condição do gover no 578ss ver Governo distinção entre obrigatoriedade da promessa e obediência ao governo 5839 promessa e submissão ao governo 5967 Propensão propensão a crer no que é contrário à experiência 1434 propensão da imaginação causada pelo costume que se opõe ao juízo 181 propensão presente na idéia de conexão necessária 199201 propensão da imagina ção na ficção da existência contínua 2323 238 2413 250 propensão da imaginação fantasia na conjunção espacial 26970 propensão da imaginação na identidade pessoal 2858 propensão natural na crença em geral 297 302 3056 relação como propensão de passar de uma idéia a outra 343 propensão à simpatia 351 cf 438 propensão de passar de uma paixão a outra 3745 3778 466 propensão ao orgulho 389 425 propensão para o que está contíguo contrária à justiça 574 5767 pro pensão que mantém o poder monárquico na mesma família 5989 propen são para paixões ternas 6434 Proporção proporção de quantidade ou número como relação filosófica 39 97101 503 descoberta da proporção das idéias como um tipo de verdade 484 Propósito ver Intenção propósito nas ações dos homens e dos animais 1 76 propósito e o caráter artificial das ações 5 1 45 Propriedade ver Posse propriedade definida como espécie de causalidade 344 propriedade como fonte do orgulho 344ss origem da justiça e da propriedade 525ss pro priedade como relativa à moral e ao artifício em oposição à natureza 53 1 541 2 565ss justiça como condição da propriedade 53 1 5412 56573 critérios de determinação da propriedade 54252 546 n3 549 n4 e n5 cf 598 n 1 1 propriedade do próprio trabalho e direito de ocupação 546 n2 propriedade referida ao sentimento e à moral e não ao objeto possuí do 5489 554 transferência da propriedade pelo consentimento 5535 impossibilidade de haver graus na propriedade 56870 Prova razão baseada no conhecimento em provas e em probabilidade 157 163 4 provar demonstrativas e provas sensíveis 484 Prudência dever de submissão ao governo obediência civil como máxima da pru dência 597 prudência como qualidade dos grandes homens 626 prudência 745 Tratado da natureza humana e orgulho 6389 objetivo da prudência 639 prudência como aptidão natural 64950 Público bem público justiça e interesse ver Justiça 461 521 5368 540 560 4 5678 5712 5845 5902 597 6003 612 61 89 630 6578 deve res públicos e privados 585 Punição a punição e o determinismo nas ações humanas 4467 cf 61 O 649 desejo de punição 453 475 Qualidade graus de qualidade como relação filosófica 39 978 107 503 a idéia de substância como coleção de qualidades sensíveis particulares 401 252ss 264ss qualidade produtiva 1 89ss qualidades primárias e secundárias 2236 25864 5089 influência nas paixões da relação entre a qualidade e o sujeito em que a qualidade está situada 3 13ss 3 l 9ss 3546 359 62 366ss 4243 1 614ss 653ss 697 qualidades originais e paixões 3 14ss qualidades operantes causadoras do amor e do ódio 363ss 424 31 5212 614ss 653ss 697 qualidades sensíveis e impressões 400 a necessidade de uma ação como qualidade do observador 4445 necessi dade como uma qualidade inteligível 446 qualidades morais 495ss 50l ss 6 1 4ss sentimentos morais e qualidades morais 5 1 1 3 556 614ss 6201 qualidade moral motivos e caráter 5 1 7 6145 622ss 648 qualidades sensíveis de um objeto e propriedade 566 qualidades morais como naturais 569 justiça e injustiça como qualidades morais 572 ten dência para o bem da humanidade como característica que determina a qualidade moral 617ss 658 qualidades morais e aptidões naturais 646ss Quantidade quantidade ou número como relação filosófica 38 978 107 503 quan tidade e idéias gerais ou abstratas 41 ss 60 19 5 quantidade e divisibilidade infinita do espaço e do tempo 56ss 6956 quantidade e geometria 71 quantidade e probabilidade 1 70 174 quantidade ou figura e localização espacial 268 Questões de fato questões de fato e causalidade 121 1234 226 449 6612 6645 6867 689 69 1 questões de fato e imaginação 1534 questões de fato e proba bilidade 1 73 questões de fato e costume 23 1 69 12 questões de fato e percepções 23940 inferências de questões de fato e comparação de idéias como operações do entendimento 503 questões de fato e moral 5023 508 586 questões de fato e crença 661 6645 69 12 questões de fato e demonstrações 503 690 questões de fato e uniformidade da natureza 68990 746 Índice analítico Raciocínio raciocínio metafísico 20 raciocínio e lógica 21 684 idéias e raciocínio 25 3 1 37 445 47 80 889 1001 1078 1 1 8 1 3 1 136 274 raciocí nio idéias e palavras 89 relação de causação e raciocínio abstrato 98 1078 raciocínio demonstrativo 1001 1 19 197 raciocínio como com paração ou relação entre idéias 1012 1078 3689 raciocínio e percep ção 1012 1 1 8 raciocínio científico ou conhecimento 1 10 raciocínios causais prováveis 1 1 12 1 15 1 189 1234 1313 1467 150 152 157ss 1 73 177 197 204 206 21 67 298 671 686ss raciocínio juízo e con cepção 1256 n6 663 raciocínio costume e crença 1323 1478 1 52 167 182 21 67 23 1 328 raciocínio provável e sensação 133 21 67 669 raciocínio e imaginação 148 n 7 1 856 raciocínio e paixões 1 50 3689 raciocínios por conjetura ou probabilidade de chances 1 57 43940 racio cínios por provas 177 raciocínio demonstrativo em oposição a raciocínio provável 197 2 l 3ss operações da natureza e raciocínio 202 raciocínio nos animais 20912 raciocínio sobre objetos e raciocínio sobre impressões 274 raciocínios sobre objetos e raciocínios morais 439 raciocínio de monstrativo vontade e ação 449ss raciocínios morais 495ss raciocí nio demonstrativo ação e distinções morais 496ss raciocínio abstrato sobre a propriedade o direito e a obrigação 56970 Raiva ver Benevolência relação da raiva com outras paixões 3 1 78 362 3 79 382 384 385 456 benevolência e raiva 4002 cf 63 1 mistura da raiva com outras paixões 41 524 raiva e ódio como paixões inerentes à constituição humana 605 Razão ver Entendimento Fantasia Imaginação distinção de razão 4850 69 277 razão e crença 126ss 1323 140 693 razão imaginação e memória 1478 n7 cf 137ss 299ss 601 razão dividida em conhecimento e probabilidade 157 ss razão e experiência 190 1 693 razão dos animais 20912 650 razão e ceticismo 21 320 299ss cf 183 discussão sobre a determinação da vontade pela razão e pela pai xão 44854 4734 495ss 509ss ver Moral Paixão razão como paixão calma 4535 4 734 5756 6223 razão como descoberta da verdade e da falsidade 498 argumentos da razão pura e argumentos de autoridade 586 Realidade ver Existência os dois sistemas de realidades 13 79 realidade dos objetos externos 220ss mundo das realidades e mundo das idéias 449 verdade como conformidade de nossas idéias dos objetos com sua realidade sua existência real 484 Rebelião ver Resistência interesse obediência civil e rebelião 5859 rebelião e usurpação como fundamentos de um governo 5956 legitimidade da rebelião sinônimo de revolução 6026 74 7 Tratado da natureza humana Reflexão ver Pensamento Razão impressões de reflexão ver Impressão crença e reflexão 217 reflexão ou razão e imaginação 2489 o artificial como aquilo que resulta da refle xão 5245 alteração da direção das paixões pela reflexão 5323 papel da reflexão sobre a tendência de um caráter ou paixão para o bem da humani dade 629 correção da aparência sensível dos objetos pela reflexão 643 Regras regra geral e as relações de semelhança contigüidade e causação 140 re gras gerais e probabilidade 1 7 45 regras gerais e probabilidade não filosó fica 17980 regra geral no juízo e exceção na imaginação 1803 regras para se julgar sobre causas e efeitos 1825 206ss cf 670 regras das ciên cias demonstrativas e probabilidade 21 3ss influência das regras gerais sobre o orgulho 3278 6378 640 entendimento e regras gerais 328 408 66970 influência das regras gerais na estima pelos ricos e podero sos 3967 regras gerais e simpatia 4056 633 influência das regras ge rais sobre os sentidos 408 regras gerais da conduta e leis ou regras da justiça inflexíveis imutáveis 5701 659 adesão excessiva a regras ge rais 5903 60lss 61 12 interesse geral na obediência civil e regras gerais 595 6012 regras do direito internacional 6069 regras morais e justi ça 6089 regras gerais da moral e interesse pessoal 6223 regras gerais caráter e imaginação 6245 regras da boa educação 63 7 regras gerais e a distinção entre ficção e realidade 66970 Regularidade ver Uniformidade regularidade da reunião das idéias 345 ver Associação regularidade na experiência 1 1 6 228ss 436ss regularidade do entendimento e irregularidade da imaginação 1 823 princípios regulares e irregulares 258 falta de regularidade nas paixões ou afetos 3 1 8 328 41 1 529 59 1 regularidade nas ações humanas 437ss 444 448 regularidade na conduta produzida pelas convenções humanas especialmente pela jus tiça 529ss 5767 Relação relações de semelhança contigüidade e causação 345 38 40 489 88 90 121 1 3 1 137ss 188 1978 2025 2368 2925 3 1 7 3389 352ss 38891 relação de causa e efeito 357 39 102ss l l l ss 123ss 137ss 1 57ss 1 86ss 203ss 226 241 245 24950 279 282 28990 2925 450 6612 686ss relações como um gênero de idéias complexas 37 relação natural e relação filosófica 379 979 122 2034 268 relação entre idéias palavras e hábito 47 relação entre percepções e objetos ex ternos 545 956 202 220ss 252ss 2735 relações de quantidade na geometria 71 6956 relação de igualdade 73 23 1 6956 relação entre idéias 878 236 2524 286ss cf 368ss relações envolvidas na noção 748 Índice analítico de tempo 93 tipos de relações filosóficas 97102 relações intuitivas e demonstrativas de idéias 98101 107 3689 449ss 488 498ss 536 relações de contigüidade e prioridade temporal na idéia de causação 103 5 687 6934 conexão necessária e relação de causação 1056 1 88ss 2045 aplicação da relação de causa e efeito às paixões 106 relação de causação e crença l 15ss 125 n6 186 66 12 6902 conjunção cons tante como relação pertencente à noção de causação l l 6ss l 57ss l 86ss 245 279 282 687 6934 relação de causação e questões de fato 121 1234 226 449 6612 6645 6867 689 69 1 relações entre impressões idéias e crença 123ss 241 relação de causação e costume 126 138ss 1868 68990 relação transição ou associação da fantasia 131 ss 286ss regras gerais da relação de causação 206ss relação de identidade 233ss 286ss relações envolvidas na noção de mente 240 relação de conjunção espacial 268ss dupla relação de idéias e impressões nas paixões 3 1 79 32l ss 34l ss 367ss 383ss 41 5ss 430 455 474ss 512 5212 613 4 relações envolvidas na noção de propriedade 344ss 3689 53 1 546 552 554 5668 relações morais 495ss 53 1 570 Religião religião natural e sua dependência da ciência do homem 21 religião cató lica romana 130 5545 crença e religião 141 prazer em sentir medo na religião 1456 argumento contra a religião cristã 1 789 religião e filoso fia 2823 304 4457 63940 liberdade e necessidade na religião 445 na tureza e religião 513 humildade como virtude na religião cristã 63940 Repetição repetição passada costume e causação 128ss 1 63ss 1 88ss 203ss 2 l 6ss 230ss conversão do prazer em dor ou da dor em prazer pela repe tição 45860 repetição como princípio da mente humana 459 Representação idéias como representações das impressões ou objetos 27 28 31 523 54 63 125 136 143 190 194 idéias abstratas e representação 4lss 60 460 percepção idéia ou impressão oposta a representação de objeto 136 sentidos e representações 22l ss opinião da dupla existência re presentante e representada 235ss as idéias dos afetos alheios como con vertendose nas impressões que elas representam 354 as paixões não contêm qualidades representativas 451 representação e simbolismo 554 5 ver Simbólico símbolo representação distinguida da crença 690 Reputação amor à boa reputação 350ss reputação explicada pela simpatia 35lss boa reputação orgulho e simpatia 3545 cf 366 638 reputação como causa de amor ou ódio 3 72 cuidado com a reputação como motivação de agir conforme a moral e a justiça 541 2 610 749 Tratado da natureza humana Resistência ver Rebelião resistência justificável ao poder 58992 6026 interesse no governo e aversão à resistência 594 impossibilidade de estabelecimento de regras de legitimação da resistência 6023 Respeito respeito pelos ricos e poderosos 3936 respeito e desprezo 4248 cf 634 respeito pelo inimigo 512 respeito pelo homem virtuoso 519 respeito pela justiça 520 5712 respeito pelo interesse público 536 respeito humano natural e justiça 619 respeito humano como qualidade dos grandes ho mens 626 respeito humano como qualidade dos homens bons 643 644 Responsabilidade liberdade determinismo e responsabilidade 446 Revolução ver Rebelião Resistência Riqueza riqueza como causa do orgulho 3 13 3 1 5 332 342 3501 3545 rique za e propriedade 34450 estima pelos ricos como resultante da simpatia 39 lss cf 655 Sálica lei sálica como lei fundamental e inalterável 601 Satisfação orgulho e satisfação 3258 satisfação proporcionada pelo caráter virtuo so 33 1 5102 5 1 5 614 riqueza e a satisfação de poder proporcionar pra zer 346ss expansão da satisfação pela simpatia ver Simpatia 392400 41 89 53941 idéia de nossa própria satisfação diminuída pela satisfação de outrem ver Inveja 41 1 maior satisfação da paixão pela sua contenção na moral e na justiça 5323 53941 565 cf 560 Semelhança ver Relação semelhança como princípio de associação de idéias 347 88 137 seme lhança como relação filosófica 38 97 98 503 relação de semelhança como fonte de erros 8990 cf 2369 n6 influência da semelhança entre im pressão e idéia na vivacidade da idéia 129 1 3 1 2 137ss 14lss efeitos da relação de semelhança na crença e na probabilidade 137ss l 70ss 180 1 l 96ss raciocínio e graus de semelhança 1 756 relação de semelhan ça sua anterioridade e independência em relação ao entendimento 202 semelhança das percepções e sua identidade ver Identidade 232ss 285ss 375 semelhança entre percepção e objeto externo 24950 cf270 relação de semelhança na conjunção espacial 26970 semelhança entre idéia e impressão a propósito da idéia de substância 265 produção da relação de semelhança pela memória 293 semelhança como única fonte de relação entre impressões paixões 3 1 8 378 relação de semelhança no 750 Índice analítico orgulho e na humildade 338 semelhança entre os homens e simpatia 352ss 388 cf 3967 semelhança e contrariedade entre paixões 418 Sensação Feeling sensação na crença e fantasia 1268 1336 14950 6615 6667 66970 sensação e regras gerais 1 745 sensação das percepções 223ss sensação da identidade do objeto 2867 sensação da associação de idéias e as pai xões orgulho e humildade 339 sensação das paixões 149 424 6256 630 sensação da razão e das paixões 4534 sensação do vício e da virtu de 5081 5 6301 648 sentimento usado como sinônimo de sensa ção 657 sensação do bem geral e do bem particular 6256 sensação na memória e imaginação 666 Sensação Sensation impressões de sensação ver Impressão sensação impressão do prazer e da dor ver Prazer sensação e órgãos da sensação 29 84 1012 312 1 124 30910 sensação como sinônimo de impressão 84 sensação e a idéia de extensão 84ss sensação e raciocínio 1 18 133 confusão da sen sação com inferência do juízo 142 sensação do tato e a idéia de solidez 2623 falsa sensação de liberdade de indiferença 349 444 présensação que permite o conhecimento das paixões em outras pessoas 366 vício e virtude determinados pela sensação ver Sensação feeling 63 7 Sentido sentido moral da virtude e do dever ver Moral 498 5034 50915 5 1 8 9 524 53640 5578 566 5723 627 652 655 6589 cf 361 sentido de justiça 5234 5367 sentido geral do interesse comum 5301 538 5612 sentido do belo 615 657 Senso Comum ou Bom Senso ver NT p 1 78 Cf Vulgo senso co mum e filosofia 470 683 696 senso comum direito e moral 592 597 602 604 bom senso e crença 1 78 1 80 bom senso e razão 446 5634 592 597 604 qualidade do bom senso 364 6378 647 648 Sentidos sentidos como critério em geometria 789 ceticismo quanto aos senti dos 220ss ver Ceticismo crença nos objetos externos e os sentidos 220ss impossibilidade de os sentidos distinguirem entre o eu e o obje to 2223 três tipos de impressões transmitidas pelos sentidos 225 sen tidos memória e entendimento enquanto fundados na imaginação 297 8 correção necessária dos sentidos 622 6423 670 Sexo amor sexual 4283 1 526 uniformidade das ações relativamente ao sexo 437 Signo ver Simbólico símbolo 75 1 Tratado da natureza humana Simbólico símbolo ver Convenção entrega simbólica na transferência da propriedade 554 símbolos e con venções humanas 561 Simpatia simpatia entre as partes como fundamento da identidade dos animais e vegetais 28990 simpatia como qualidade mais notável da natureza hu mana 351 simpatia como comunicação de sentimentos ou paixões 3 51 4 355 358 396400 4045 420 432 462 540 632 65 1 simpatia como conversão de uma idéia em impressão 354 357 420 462 634 influência da simpatia sobre o orgulho e a humildade 354359 relação da simpatia com o eu 3 75 simpatia entre parentes e amigos 3889 simpatia e pos sibilidade de compartilhar da satisfação do próximo 392 393 394 396 400 6 1 6 6546 simpatia enquanto princípio que anima as paixões 397 8 beleza e simpatia 399 6 1 7 656 657 compaixão ou piedade explicada pela simpatia 403ss simpatia no espetáculo da tragédia 4034 simpa tia benevolência e bondade 4 l 8ss 642ss simpatia na busca da verdade 486 simpatia e o suposto amor pela humanidade 5212 cf 6 1 8 629 simpatia na Idade de Ouro 534 simpatia na moral e na justiça 540 585 592 6153 1 632 65760 cf 61 1 642ss vividez e amplitude da simpa tia 6205 632 642ss 656 659 cf Egoísmo simpatia e a comparação conosco como princípios contrários 633ss simpatia com a utilidade e o prazer produzidos pelo entendimento 653 Sociedade sociedade e a justiça 330 5235 525ss 565ss 573ss 578ss 608 616 25 65860 ver Justiça sociedade patrimonial 343 desejo de sociedade 397 necessidade humana de sociedade 348 5256 565 608 sociedade e governo 348 578ss 589ss 593ss sociedade e moral 496 sociedade selvagem e inculta estado de natureza oposta à grande sociedade 526 8 5334 538 539 541 2 543 561 573 580 584 585 593 sociedade humana e propriedade 542ss 553ss sociedade humana e a obriga toriedade das promessas 555ss sociedade política e governo 578 590 593 603 6045 cf 684 importância da castidade para a sociedade 609 12 tendência a promover o bem da sociedade como efeito da simpatia 616 25 641 6436 65760 ver Simpatia Solidez solidez e extensão 646 2614 solidez como qualidade primária 225 260 1 idéia de solidez 2614 analogia entre as idéias e a solidez 400 Substância ver Sujeito substância como idéia complexa 37 substância ou sujeito de inerência e modos ou acidentes 3941 2528 686 inerência de percepções ou quali dades a uma substância ou substratum 40 255 264ss 2867 2725 672 752 Índice analítico 4 69 5 idéia de substância como uma coleção de idéias particulares 401 substância pensante e existência externa 223 264ss simplicidade das substâncias 2535 Sucessão sucessão das percepções e idéia de tempo 606 93 104 2334 4657 472 sucessão como parte essencial da idéia de causação 1046 1 1 67 122 188 1978 2024 230 sucessão de percepções e identidade 237 2523 2868 2904 298 3 1 12 propriedade e direito de sucessão 545 5523 Sucesso paixões e sucesso na realização de um fim 4867 Sujeito ver Substância sujeito e modos 41 sujeito unidade e identidade 233 sujeito de inerência ou substância e acidente 255 sujeito simples e indivisível ou substância imaterial 2725 6723 Superstição superstição e filosofia 303 Tato tato e percepções 25 2634 268 semelhança entre as impressões do tato e as da visão 60 tato visão e idéia de espaço e extensão 645 72 847 90 2678 465 tato e idéia de solidez 2624 Tempo contigüidade no tempo e no espaço 35 207 463ss 574 687 tempo e espaço como relações filosóficas 38 978 1012 idéias de tempo e espa ço 5lss doutrina da divisibilidade infinita do tempo e do espaço 5lss idéia de tempo e sucessão das partes e percepções 57ss 834 923 104 2336 4657 4 72 prioridade temporal da causa em relação ao efeito 104 5 1 88 207 687 tempo espaço e princípio da causação 108 sucessão temporal e identidade 237 2523 26973 286 2904 tempo e proprie dade ou posse 543ss 5689 tempo e obediência civil 5957 Teólogos crença na eternidade e os teólogos 144 crítica dos teólogos ao ateísmo de Spinoza 272ss desaprovação dos sistemas dos teólogos 297 inten ção e fórmula verbal segundo os teólogos 5634 promoção da virtude pelos teólogos 649 Termos ver Palavras Trabalho trabalho e o artifício dos homens 5256 propriedade do próprio trabalho 546 n2 propriedade do trabalho dos escravos 549 trabalho como quali dade mental 650 753 Tratado da natureza humana Tragédia fantasia e crença na tragédia 152 219 simpatia na tragédia 403 paixões na tragédia 669 Unidade unidade e extensão 56 unidade e número 56 99 235 unidade oposta à identidade 2335 ver Identidade unidade da substância espinosista 273 Uniformidade ver Conjunção constante Regularidade uniformidade da mente imaginação 345 1201 1656 cf 163ss 438 uniformidade da natureza 1 1 78 6889 uniformidade coerência e cons tância das impressões 22 732 uniformidade das paixões 3 1 1 uniformi dade e simpatia 351 uniformidade das ações humanas 437ss cf 1 66 necessidade como derivada da uniformidade 4389 Usucapião ver Prescrição aquisitiva Utilidade utilidade e sua relação com a beleza e o prazer 3335 345 361 398 615 6 629 6547 prazer e utilidade da filosofia 4849 cf 210 258 utilida de da estabilidade da posse 542ss 553ss 56970 relação da utilidade com a simpatia e a moral 541 570 618 6268 630 6426 657 658 utilidade do orgulho e simpatia 636ss utilidade das aptidões naturais 6502 653ss Vácuo ver Espaço vácuo como idéia inconcebível 66 8 l ss vácuo na filosofia peripatética 257 vácuo na filosofia newtoniana 677 Vaidade ver Orgulho Verdade verdade ao alcance do homem 20 representações verdadeiras ou falsas de objetos externos 1 13 verdade e paixões 1502 45 13 498 5012 poesia e verdade 1513 imaginação vivaz loucura e verdade 1 53 razão e verda de 213ss 498 matemática e verdade 214 probabilidade e verdade 215 juízo e verdade 21 3218 652 opiniões e critério para a distinção da ver dade 297 3025 raciocínio verdadeiro ou falso na produção de orgulho ou vaidade 33 1 349 curiosidade ou amor à verdade 4849 dois tipos de verdade 484ss 498 moralidade associada à verdade 496ss ações e juízos verdadeiros ou falsos 5001 crença e verdade 692 Virtude ver Moral Visão visão e extensão espaço 59ss 83ss 2678 465 visão e exterioridade dos objetos 84 1423 156 166 224 visão do objeto e sua identidade 233 235 237 754 Índice analítico Vivi dez Liveliness ou Vivacity vividez como critério de distinção entre impressões e idéias 256 289 3 1 3 43 125 133 1 50 353 388 685 vividez como critério de distinção entre as idéias da imaginação e as da memória 33 1 1 35 136 138 1 86 666 vividez da idéia na crença 1 15 12538 1413 1467 150 1524 1 62 3 1 678 1701 1 739 1813 1857 2025 21 67 219 232 2412 297 9 324 3524 3734 4036 4603 4889 574 624 66670 675 6924 contigüidade semelhança e vividez das idéias 1413 463ss vividez de uma impressão ou idéia e sua influência sobre as paixões 1 8 1 2 1 857 3514 3734 3878 393 3979 4036 4201 460 4623 4889 574 6204 634 66970 692 idéia de conexão necessária e vividez 2025 Voluntário vontade ver Caráter Liberdade e livrearbítrio Necessidade vontade e a conversão do poder em ação 36 crença e vontade 1495 1 1 734 662 69 1 693 vontade divina 281 inconstância da vontade do homem 347 escolha voluntária intenção ou propósito nas ações e em nosso juízo moral 3824 442 499 508 501 6489 vontade liberdade e necessidade 43554 6701 6979 cf 3469 violência das paixões e sua influência sobre a vontade 45463 4734 influência da contigüidade e da distância dos objetos sobre a vontade 46374 574 desejo e vontade 475 vontade nos animais 4834 razão e determinação da vontade 499 5059 obrigatoriedade moral e vontade 555ss cf 5879 intenção von tade e promessa 5624 convenções voluntárias 572 582 589 594 609 619 obediência civil e vontade 5879 virtude e vontade 647ss vontade considerada a priori 694 Vulgo Cf Senso Comum o vulgo e a filosofia 23 63 163 165 183 208 2256 235 2556 672 o vulgo e a crença 141 144 235 242 o vulgo e a obediência civil 587 605 755 Adão 6889 Addison Joseph 3 1 8 NT Alexandre o Grande 639 Alma or the progress of the mind 414 e 414 NT Analogy of Religion 459 NT Arnauld Antoine 69 NT IArt de penser ou La Logique 69 NT 685 Artaxerxes 599 Augusto Otávio 441 Bacon Francis 22 684 Barrow Isaac 73 n6 e NT Bayle Pierre 276 n 14 Berkeley George 41 n3 Bíblia passagens citadas 27 141 299 471 689 Borgonha 549 n5 Brutus Marcus 622 Butler Joseph 22 459 NT 684 Capeta Hugo 606 Catão 647 César Júlio 1 1 1 123 1 78 441 606 647 Charnpagne 437 Indice onomástico China 620 Cícero 668 668 NT Cipião 377 Ciro 599 600 Clarke Samuel 109 n4 Condé Príncipe de 639 Copérnico 3 1 6 Cornélia 377 Craig John 178 Cromwell Oliver 382 606 Cyder 392 NT Danúbio rio 550 n5 Descartes 695 Dionísio Dionísio II o Jovem 592 Druso filho de Tibério Júlio César 602 Éléments de Géometrie de Monseigneur le duc de Bourgogne 56 NT Eneida 469 469 NT Épodos de Horácio 482 NT Essais de Theodicée 684 NT An Essay Conceming Human Understanding 1 90 NT 685 Europa 683 75 7 Tratado da natureza humana Farsália 491 Felipe II 592 606 De Finibus 668 668 NT França 596 601 606 Germânico filho de Tibério Júlio César 602 GrãBretanha 548 549 n5 Gracos irmãos Caio e Tibério 377 Grécia 460 621 Guienne 437 Hébridas 550 n5 Histórias de Tácito 15 NT 307 NT Hobbes Thomas 108 n3 439 Horácio 470 e 470 NT 482 e 482 NT Hutcheson Francis 22 684 Índias OcidentaisOrientais 464 Inglaterra 22 29 1 304 439 620 683 Institutas do Imperador Justiniano 551 n5 552 NT De Institutione Oratoria 6 1 6 NT Jamaica 465 Japão 469 Júpiter 376 La Logique ou JArt de penser 69 NT La Rochefoucauld 458 458 NT Lectiones Mathematicae 73 NT Leibniz G Wilhelm 6845 Leviatã 439 Locke John 22 26 n l 61 109 n5 190 n 13 684 685 686 Lucano Marcos 49 1 49 1 NT Lucrécio Tito 634 n3 e NT Luxemburgo Duque de 382 Malebranche Nicolas 1 9 1 n 14 28 1 n 1 6 686 Maléziee Nicolas de 56 n2 Man ilha de 550 n5 Mandeville Bernard de 22 n l 684 Mário Caio 606 Maximes de La Rochefoucauld 458 NT Mémoires du Cardinal de Retz 1 86 NT Milton John 471 The Moralists a philosophical rhapsody 287 NT Nero Ludo Domício Cláudio 441 592 Nicole Pierre 69 NT Odes de Horácio 470 Orange Príncipe de 605 Órcadas 550 n5 Pacífico Oceano 550 n5 Paradise Lost 471 NT Philips Oohn Philips 392 392 NT Platão 439 Poems on severa occasions de Matthew Prior 414 NT Porto 549 n5 Prior Matthew 414 e 414 NT Próculo 551 n5 Quintiliano 616 n l e NT Reno região e rio 54950 n5 República 439 Retz Cardeal de 186 186 NT La Recherche de la vérité 191 NT Rollin Monsieur Charles Rollin autor de Histoire Ancienne 461 NT Roma 597 De Rerum Natura 634 n3 e NT Sabino 551 n5 SaintÉvremond Charles de 639 Salústio Caio 647 Shaftesbury Anthony Ashley Cooper 22 n l 287 n 1 7 684 Sila Lúcio Cornélio 606 758 Índice onomástico Sísifo 256 Sócrates 22 Solomon or the vanity of the world 414 e 414 NT Spectator 3 1 8 NT Spinoza Baruch de 272ss Tácito 15 307 307 NT Tales 22 Tântalo 256 Temístocles 4601 Tibério Tibério Júlio César 602 Tratado Sobre os Princípios do Conhecimento Humano 41 n3 e NT Triboniano 551 n5 552 NT Virgílio 469 469 NT Wight Ilha de 550 n5 Wollaston 501 n2 759 cipios determinantes da ação 14950 209 435ss 448ss 613 cf 509 atividade filosófica e prazer 3013 4849 cf 664 prazer e dor como fontes de paixões 30911 3656 435 474 6134 6537 prazer e simpatia 3589 53940 617631 633 6445 influência do costume e da repetição no prazer e na dor 45860 prazer e dor na moral 50915 517 519 56773 586 6147 6201 630 6356 641 649 cf prazer na obrigação e na obediência civil 556 594 prazer e sentimento do belo 6156 624 626 prazer e beleza física 6545 Preconceito preconceito como espécie de probabilidade não filosófica 17980 Preguiça preguiça como o não exercício de uma capacidade 6267 Prescrição aquisitiva ou Usucapião prescrição aquisitiva e propriedade 508 Princípios impossibilidade de se explicar os princípios últimos 234 2989 674 684 princípios universais da imaginação 34ss 88ss 1212 137ss 257ss 699 Privado benevolência pública e privada 522 deveres públicos e privados 5856 interesses públicos e privados 5945 Probabilidade ver Acaso Chance probabilidade em oposição à demonstração e ao conhecimento 57 1189 157 197 213ss 449 6845 689 probabilidade e causação 101ss 1189 157ss 1867 214 provável ou possível 1612 probabilidade e questões de fato 1189 1735 689 raciocínio provável e sensação 133 probabilidade de chances 156ss 1678 probabilidade e incerteza 157 215 probabilidade acaso e causação 157ss probabilidade e crença 157ss 170 213ss 66970 probabilidade de causas 163ss suposição probabilidade e prova 1634 probabilidade e contrariedade na experiência e na observação 164ss 47680 66970 raciocínio conjuntural ou provável 172 probabilidade não filosófica 176ss regras gerais e probabilidade 179ss 624 redução do conhecimento à probabilidade 213ss probabilidade juízo e reflexão 2158 probabilidade ou possibilidade de ação 3478 probabilidade nas motivações e ações humanas 43940 probabilidade e paixões 47580 6134 probabilidade e uniformidade 68890 Progresso progresso dos sentimentos 540 Promessa estado de natureza e convenção humana ou artifício como condição da promessa 5301 5412 55564 578ss 58991 obrigatoriedade das pro SOBRE O LIVRO Formato 16 x 23 cm Mancha 275 x 495 paicas Tipologia IowanOldSt BT 1116 Papel Pólen soft 80 gm² miolo Couché fosco 120 gm² encartonado capa 2ª edição 2009 EQUIPE DE REALIZAÇÃO Edição de Texto Adriana Moreira Pedro Revisão Editoração Eletrônica Edmílson Gonçalves Impressão e Acabamento Prol EDITORA GRÁFICA FICHAMENTO TRATADO DA NATUREZA HUMANA DAVID HUME Hume David Tratado da natureza humana uma tentativa de induzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais tradução Debora Danowski 2ed são Paulo Editora UNESP 2009 INTRODUÇÃO o livro Tratado da Natureza Humana de David Hume é uma obra complexa e influente que influenciou muitos pensadores posteriores Ele é considerado um dos mais importantes trabalhos de filosofia na história do pensamento ocidental Parte I Das idéias sua origem composição conexão abstração etc As percepções da mente humana se reduzem a dois gêneros distintos que chamarei de IMPRESSÕES e IDÉIAS A diferença entre estas consiste nos graus de força e vividez com que atingem a mente e penetram em nosso pensamento ou consciência As percepções que entram com mais força e violência podem ser chamadas de impressões sob esse termo incluo todas as nossas sensações paixões e emoções em sua primeira aparição à alma Pag 25 Embora haja em geral uma grande semelhança entre nossas impressões e idéias complexas não é uma regra universalmente verdadeira que elas sejam cópias exatas umas das outras Consideremos agora o que ocorre com nossas percepções simples Após o exame mais rigoroso de que sou capaz arriscome a afirmar que aqui a regra não comporta exceção e que toda idéia simples tem uma impressão simples que a ela se assemelha e toda impressão simples uma idéia correspondente A idéia de vermelho que formamos no escuro e a impressão que atinge nossos olhos à luz do sol diferem somente em grau não em natureza Pag 27 Nossas idéias ao aparecerem não produzem impressões correspondentes tampouco percebemos uma cor ou temos uma sensação qualquer simplesmente por pensar nessa cor ou nessa sensação Em contrapartida vemos que qualquer impressão da mente ou do corpo é constantemente seguida por uma idéia que a ela se assemelha e da qual difere apenas nos graus de força e vividez A conjunção constante de nossas percepções semelhantes é uma prova convincente de que umas são as causas das outras e essa anterioridade das impressões é uma prova equivalente de que nossas impressões são as causas de nossas idéias e não nossas idéias as causas de nossas impressões Pag 29 Hume argumenta que toda ideia simples tem uma impressão simples que se assemelha a ela e toda impressão simples tem uma ideia correspondente Ou seja as ideias são derivadas das impressões e são cópias menos vívidas delas Além disso Hume afirma que as impressões são a causa das ideias e não o contrário Essa distinção entre impressões e ideias é fundamental para a compreensão da epistemologia e da filosofia da mente de Hume já que ele argumenta que todo conhecimento humano é derivado de impressões sensoriais Assim a teoria de Hume sugere que todas as nossas ideias e conceitos são construídos a partir das nossas experiências sensoriais e que nossa compreensão do mundo é limitada pelos nossos sentidos e pela nossa capacidade de perceber e compreender as impressões que recebemos Seção 2 Divisão do tema As da primeira espécie nascem originalmente na alma de causas desconhecidas As da segunda derivam em grande medida de nossas idéias conforme a ordem seguinte Primeiro uma impressão atinge os sentidos fazendonos perceber o calor ou o frio a sede ou a fome o prazer ou a dor de um tipo ou de outro Em seguida a mente faz uma cópia dessa impressão que permanece mesmo depois que a impressão desaparece e à qual denominamos idéia Pag 32 o E como as impressões de reflexão a saber as paixões os desejos e as emoções que sobretudo merecem nossa atenção surgem em sua maior parte de idéias será necessário inverter o método acima mencionado e que à primeira vista parece mais natural Para explicar a natureza e os princípios da mente humana daremos uma explicação particular das idéias antes de passarmos às impressões Por essa razão escolhi aqui começar pelas idéias Pag 33 Nestes trechos o autor David Hume discute a origem das impressões e ideias Ele argumenta que as impressões são percepções que nascem originalmente na alma de causas desconhecidas Em contrapartida as ideias derivam em grande parte das impressões que recebemos sendo uma cópia dessas impressões que permanece na mente mesmo depois que a impressão original desaparece Hume também afirma que as impressões de reflexão como as paixões desejos e emoções são em grande parte derivadas de ideias Por isso ele sugere que é necessário inverter a ordem natural de explicação da mente humana começando com uma explicação particular das ideias antes de passar para as impressões Assim Hume propõe que para entendermos a natureza da mente humana precisamos primeiro compreender como as ideias são formadas e como elas afetam nossos pensamentos e ações para então entender como as impressões afetam nossas percepções e emoções Essa abordagem invertida que começa com as ideias e depois passa para as impressões é um aspecto importante da filosofia da mente de Hume Seção 3 Das idéias da memória e da imaginação A faculdade pela qual repetimos nossas impressões da primeira maneira se chama MEMÓRIA e a outra IMAGINAÇÃO É evidente mesmo à primeira vista que as idéias da memória são muito mais vivas e fortes que as da imaginação e que a primeira faculdade pinta seus objetos em cores mais distintas que todas as que possam ser usadas pela última Ao nos lembrarmos de um acontecimento passado sua idéia invade nossa mente com força ao passo que na imaginação a percepção é fraca e lânguida e apenas com muita dificuldade pode ser conservada firme e uniforme pela mente durante um período considerável de tempo Pag 30 Tal liberdade da fantasia não causará estranheza porém se considerarmos que todas as nossas idéias são copiadas de nossas impressões e que não há duas impressões que sejam completamente inseparáveis isso para não mencionarmos o fato de que se trata aqui de uma consequência evidente da divisão das idéias em simples e complexas Sempre que a imaginação percebe uma diferença entre idéias ela pode facilmente produzir uma separação Pag 34 Neste capitulo do livro o autor lança ao leitor a ideia de imaginação e memoria o que remete esses dois pensamentos e quais as suas vertentes um questionamento importante para a filosofia até os dias atuais Seção 4 Da conexão ou associação das idéias Creio que não haverá muita necessidade de provar que essas qualidades produzem uma associação entre idéias e quando do aparecimento de uma idéia naturalmente introduzem outra Está claro que no curso de nosso pensamento e na constante circulação de nossas idéias a imaginação passa facilmente de uma idéia a qualquer outra que seja semelhante a ela tal qualidade por si só constitui um vínculo e uma associação suficientes para a fantasia observando que dois objetos estão conectados pela relação de causa e efeito não apenas quando um produz um movimento ou uma ação qualquer no outro mas também quando tem o poder de os produzir Notemos que essa é a fonte de todas as relações de interesse e de dever pelas quais os homens se influenciam mutuamente na sociedade e se ligam pelos laços de governo e subordinação Um senhor é aquele que por sua situação decorrente quer da força quer de um acordo tem o poder de dirigir sob certos aspectos particulares as ações de outro homem a que chamamos servo Um juiz é aquele que em todos os casos litigiosos entre membros da sociedade é capaz de decidir com sua opinião a quem cabe a posse ou a propriedade de determinado objeto David Hume filósofo empirista escocês do século XVIII aborda em cada uma das passagens um tema diferente Na primeira passagem Hume discute a natureza da associação de ideias e como a imaginação funciona Ele argumenta que as qualidades das ideias por si só são suficientes para produzir uma associação entre elas ou seja quando uma ideia aparece naturalmente introduz outra ideia similar Essa associação é feita de forma tão rápida e fácil que a imaginação passa de uma ideia para outra semelhante criando um vínculo e uma associação suficientes para a fantasia Já na segunda passagem Hume fala sobre a relação de causa e efeito e como ela é fundamental para a vida social Ele explica que essa relação não se dá apenas quando um objeto produz um movimento ou uma ação em outro mas também quando tem o poder de produzilos Essa relação é a base de todas as relações de interesse e dever pelas quais os homens se influenciam mutuamente na sociedade e se ligam pelos laços de governo e subordinação Por exemplo um senhor tem o poder de dirigir as ações de um servo enquanto um juiz tem o poder de decidir a posse ou propriedade de um objeto em disputa Em resumo Hume está explorando a natureza da associação de ideias e da relação de causa e efeito e como esses conceitos são fundamentais para a nossa compreensão da vida social e da forma como interagimos uns com os outros Seção 5 Das relações A palavra RELAÇÃO é comumente usada em dois sentidos bem diferentes para designar a qualidade pela qual duas idéias são conectadas na imaginação uma delas naturalmente introduzindo a outra da maneira acima explicada ou para designar a circunstância particular na qual ainda que a união de duas idéias na fantasia seja meramente arbitrária podemos considerar apropriado comparálas Pag 38 A primeira é a semelhança Essa é uma relação sem a qual não pode existir nenhuma relação filosófica já que só admitem comparação os objetos que apresentam entre si algum grau de semelhança Entretanto embora a semelhança seja necessária para todas as relações filosóficas daí não se segue que ela sempre produza uma conexão ou associação de idéias Quando uma qualidade se torna muito geral e é comum a um grande número de indivíduos ela não leva a mente diretamente a nenhum deles ao contrário por apresentar de uma só vez uma grande variedade de alternativas impede que a imaginação se fixe em um objeto único Pag 38 No primeiro trecho citado Hume está explorando o significado da palavra relação e como ela pode ser entendida de duas maneiras diferentes Em um sentido a relação pode se referir à qualidade pela qual duas ideias são conectadas na imaginação uma ideia naturalmente levando a outra de forma lógica e necessária Em outro sentido a relação pode se referir à circunstância particular em que duas ideias são comparadas mesmo que a conexão entre elas seja arbitrariamente estabelecida Já no segundo trecho Hume aborda a relação de semelhança que é um dos tipos de relação que permite a comparação de objetos na filosofia Ele argumenta que a semelhança é necessária para todas as relações filosóficas mas isso não significa que ela sempre produz uma conexão ou associação de ideias Quando uma qualidade é muito geral e comum a muitos objetos ela não leva a mente diretamente a nenhum objeto em particular tornando difícil para a imaginação se fixar em um objeto específico Em resumo Hume está discutindo a natureza da relação entre ideias e como essa relação pode ser estabelecida de diferentes maneiras Ele também destaca a importância da semelhança na comparação de objetos mas adverte que ela nem sempre é suficiente para produzir uma conexão ou associação de ideias Seção 6 Dos modos e substâncias Acredito porém que ninguém afirmará que a substância é uma cor ou um som ou um sabor Portanto a idéia de substância se é que ela existe realmente deve ser derivada de uma impressão de reflexão Mas as impressões de reflexão se reduzem às nossas paixões e emoções nenhuma das quais poderia representar uma substância Assim sendo não temos nenhuma idéia de substância que seja distinta da idéia de uma coleção de qualidades particulares e tampouco temos em mente qualquer outro significado quando falamos ou quando raciocinamos a seu respeito Pag 40 Nesse trecho Hume está questionando a existência da ideia de substância como algo distinto das qualidades particulares que compõem essa substância Ele argumenta que se a substância existe realmente então a ideia de substância deve ser derivada de uma impressão de reflexão ou seja de uma experiência interna ou introspectiva No entanto ele afirma que as impressões de reflexão se reduzem às nossas paixões e emoções e nenhuma delas pode representar uma substância Dessa forma Hume conclui que não temos nenhuma ideia de substância que seja distinta da ideia de uma coleção de qualidades particulares Ou seja a ideia de substância é apenas uma maneira conveniente de agrupar e organizar as qualidades particulares que observamos em um objeto mas não é uma entidade real e independente dessas qualidades Portanto quando falamos ou raciocinamos sobre substância não estamos nos referindo a nada além das qualidades particulares que compõem essa substância Seção 7 Das idéias abstratas Uma questão muito importante foi levantada a respeito das idéias abstratas ou gerais a saber se são concebidas pela mente como gerais ou particulares Um grande filósofo3 contestou a opinião tradicional acerca desse ponto afirmando que as idéias gerais não passam de idéias particulares que vinculamos a um certo termo termo este que lhes dá um significado mais extenso e que quando a ocasião o exige faz com que evoquem outros indivíduos semelhantes a elas Considero esta descoberta uma das maiores e mais valiosas feitas recentemente na república das letras e por isso tentarei aqui confirmála mediante alguns argumentos que espero eliminarão qualquer dúvida e controvérsia a seu respeito Pag 41 David Hume discute a natureza das ideias abstratas ou gerais e questiona se elas são concebidas pela mente como gerais ou particulares Ele menciona um grande filósofo que contestou a opinião tradicional sobre esse ponto argumentando que as ideias gerais não passam de ideias particulares que vinculamos a um termo específico que lhes dá um significado mais amplo e que quando necessário podem evocar outros indivíduos semelhantes a elas Hume considera essa descoberta como uma das mais importantes e valiosas feitas recentemente na filosofia e tenta confirmála com argumentos que eliminem qualquer dúvida e controvérsia sobre o assunto Ele busca mostrar que as ideias abstratas ou gerais são na verdade construções mentais que surgem a partir da união de várias ideias particulares que são vinculadas por um termo comum que lhes dá um significado mais amplo e universal Parte 2 Das idéias de espaço e tempo Tudo que tem um ar de paradoxo e é contrário às primeiras noções da humanidade às noções mais despidas de preconceitos costuma ser fervorosamente esposado pelos filósofos como se mostrasse a superioridade de sua ciência capaz de descobertas tão distantes da concepção vulgar Pag 51 O que se passa com as idéias da imaginação passase igualmente com as impressões dos sentidos Fazei uma pequena mancha de tinta sobre uma folha de papel fixai nela os olhos e afastaivos gradativamente até uma distância em que finalmente não mais a enxergueis É claro que no momento que precedeu seu desaparecimento a imagem ou impressão era perfeitamente indivisível Pag 53 A divisibilidade infinita do espaço implica a do tempo como fica evidente pela natureza do movimento Se a segunda portanto é impossível a primeira também deve ser Pag 57 No primeiro trecho Hume observa que muitas vezes as ideias contrárias às primeiras noções da humanidade são adotadas pelos filósofos como se fosse uma prova de superioridade da ciência filosófica capaz de descobertas tão distantes da concepção vulgar Essa observação indica que Hume valoriza o bom senso e a experiência como fonte de conhecimento e desconfia de teorias abstratas que não encontram apoio na realidade concreta No segundo trecho Hume discute a natureza das impressões sensoriais e como elas se relacionam com a nossa percepção do mundo Ele argumenta que as impressões dos sentidos são perfeitamente indivisíveis e que portanto a divisão do mundo em partes distintas é uma construção da mente humana Isso sugere que a realidade é mais complexa do que podemos perceber e que nossa compreensão do mundo é limitada pelas limitações de nossos sentidos e de nossas capacidades cognitivas Por fim no terceiro trecho Hume discute a divisibilidade do espaço e do tempo Ele argumenta que se a divisibilidade infinita do tempo é impossível então a divisibilidade infinita do espaço também deve ser Isso sugere que Hume considera a questão da infinitude do espaço e do tempo como uma questão filosófica importante e que a resposta para essa questão pode ter implicações profundas para a compreensão da natureza do mundo Em geral esses trechos indicam que Hume valoriza a experiência concreta e a observação empírica como fonte de conhecimento e que ele está interessado em questionar as suposições básicas da filosofia tradicional para chegar a novas conclusões sobre a natureza do mundo Seção 3 Das outras qualidades de nossas idéias de espaço e tempo Não poderia haver descoberta mais feliz para a solução de todas as controvérsias em torno das idéias que a anteriormente mencionada que as impressões sempre precedem as idéias e que toda idéia contida na imaginação apareceu primeiro em uma impressão correspondente As percepções deste último tipo são todas tão claras e evidentes que não admitem discussão ao passo que muitas de nossas idéias são tão obscuras que é quase impossível mesmo para a mente que as forma dizer qual é exatamente sua natureza e composição Pag 59 Pois a idéia de extensão é formada de partes ao passo que está de acordo com nossa suposição é perfeitamente simples e indivisível Mas então ela não é nada Isso é absolutamente impossível Pois como a idéia composta de extensão que é real é composta de tais idéias simples fossem estas meras nãoentidades haveria uma existência real composta de não entidades Pag 60 Deste modo o escritor passa a desenvolver na primeira passagem Hume argumenta que as impressões sensoriais que recebemos do mundo exterior são a base de todas as nossas ideias Ou seja toda ideia que temos em nossa mente é uma cópia ou reflexo de uma impressão anterior Ele defende que as impressões sensoriais são mais claras e evidentes do que as ideias que temos em nossa mente muitas das quais são obscuras e difíceis de serem compreendidas Essa descoberta segundo Hume é fundamental para solucionar controvérsias em torno das ideias uma vez que estabelece que a fonte de todas as nossas ideias é a experiência Na segunda passagem Hume discute a natureza das ideias simples e compostas Ele argumenta que algumas ideias são compostas ou seja formadas pela combinação de outras ideias simples enquanto outras são simples e não podem ser divididas em partes menores Hume levanta a questão de que se as ideias simples não têm partes como podemos afirmar que elas existem Ele responde que as ideias simples não são meras nãoentidades mas sim representações mentais de algo real que existe no mundo exterior Ele argumenta que se a ideia composta de extensão é real então as ideias simples que a compõem também são reais uma vez que as ideias compostas são formadas a partir das ideias simples Seção 4 Resposta às objeções Nosso sistema do espaço e do tempo possui duas partes intimamente ligadas A primeira depende da seguinte cadeia de raciocínios A capacidade da mente não é infinita consequentemente nenhuma idéia de extensão ou de duração consiste em um número infinito de partes ou idéias inferiores mas sim em um número finito de partes ou idéias simples e indivisíveis Pag 65 Hume também relaciona que Muitas objeções contra a indivisibilidade das partes da extensão foram extraídas da matemática embora à primeira vista essa ciência pareça antes favorável à presente doutrina e mesmo quando contrária a ela em suas demonstrações élhe perfeitamente conforme em suas definições Minha tarefa neste momento deve ser por isso defender as definições e refutar as demonstrações Pag 68 Hume está falando sobre a natureza do espaço e do tempo argumentando que eles são compostos por partes simples e indivisíveis Ele começa o trecho afirmando que o sistema do espaço e do tempo possui duas partes intimamente ligadas e em seguida apresenta um raciocínio para sustentar sua afirmação Hume argumenta que a capacidade da mente não é infinita e portanto nenhuma ideia de extensão ou duração pode ser composta por um número infinito de partes ou ideias inferiores Em vez disso essas ideias são compostas por um número finito de partes ou ideias simples e indivisíveis Em outras palavras o espaço e o tempo não são infinitamente divisíveis mas têm partes fundamentais que não podem ser divididas em partes menores Hume reconhece que essa visão da indivisibilidade das partes da extensão foi alvo de objeções inclusive na matemática Ele argumenta no entanto que embora a matemática possa parecer à primeira vista contrária a essa doutrina ela é perfeitamente conforme em suas definições Assim Hume está defendendo a ideia de que o espaço e o tempo são compostos por partes simples e indivisíveis e que essa ideia é fundamental para a compreensão desses conceitos Ele está também preparado para responder às objeções que foram feitas a essa doutrina defendendo suas definições e refutando as demonstrações contrárias à sua visão Seção 5 Continuação do mesmo tema Em primeiro lugar podese dizer que há séculos os homens discutem sobre o vácuo e o pleno sem conseguir chegar a uma conclusão definitiva E os filósofos ainda hoje acreditamse livres para tomar partido de um lado ou de outro ao sabor de sua fantasia Mas seja qual for o fundamento que possa ter uma controvérsia a respeito dessas coisas mesmas podese alegar que a própria discussão é decisiva no que concerne à idéia em questão e é impossível que os homens tenham podido raciocinar há tanto tempo sobre um vácuo Pag 81 O autor nesta parte discute a controvérsia filosófica sobre o vácuo e o pleno que durou séculos e não foi resolvida de forma definitiva Ele aponta que os filósofos ainda hoje tomam partido de um lado ou de outro baseados em sua própria fantasia No entanto Hume argumenta que independentemente do fundamento dessa controvérsia a própria discussão é decisiva para a compreensão da ideia em questão Ou seja a controvérsia em si é importante porque levanta questões sobre o que é o vácuo e o pleno e como eles se relacionam com a natureza e o mundo físico Hume sugere que a discussão sobre o vácuo e o pleno pode ter levado os homens a raciocinar sobre essas questões durante tanto tempo e isso é um exemplo da importância da reflexão filosófica na busca pelo conhecimento e compreensão do mundo ao nosso redor Seção 6 Da idéia de existência e de existência externa Não há impressão ou idéia de nenhum tipo da qual tenhamos alguma consciência ou memória que não seja concebida como existente E é evidente que é dessa consciência que deriva a mais perfeita idéia e a certeza do ser Pag 93 Neste sentido Hume também cita Um raciocínio semelhante dará conta da idéia de existência externa Podemos observar que todos os filósofos admitem e aliás é bastante óbvio por si só que nada jamais está presente à mente além de suas percepções isto é suas impressões e idéias e que só conhecemos os objetos externos pelas percepções que eles ocasionam Odiar amar pensar sentir ver tudo isso não é senão perceber Pag 95 O autor está enfatizando a ideia de que nossa consciência e memória estão diretamente relacionadas à ideia de existência Ele afirma que não há nenhuma impressão ou ideia que tenhamos consciência ou memória que não seja concebida como existente Isso significa que a nossa percepção da realidade está ligada à ideia de que as coisas existem e são reais Além disso Hume argumenta que a ideia de existência externa ou seja a existência de objetos fora de nós mesmos só pode ser conhecida através de nossas percepções Ele afirma que todas as nossas percepções são baseadas em nossas impressões e ideias e que é somente através delas que podemos conhecer os objetos externos Esses trechos mostram a preocupação de Hume em entender como conhecemos o mundo ao nosso redor e como nossa percepção da realidade é construída Ele argumenta que nosso conhecimento é limitado às nossas percepções e que não podemos ter certeza da existência de algo além dessas percepções Isso tem implicações importantes na filosofia especialmente no que se refere à natureza do conhecimento e da realidade Parte 3 Do conhecimento e da probabilidade Existem sete tipos diferentes de relação filosófica semelhança identidade relações de tempo e espaço proporção de quantidade ou número graus de qualidade contrariedade e causalidade Essas relações podem ser divididas em duas classes as que dependem inteiramente das idéias comparadas e as que podem se transformar sem que haja nenhuma transformação nas idéias Pag 97 Aqui o autor está apresentando os sete tipos diferentes de relação filosófica semelhança identidade relações de tempo e espaço proporção de quantidade ou número graus de qualidade contrariedade e causalidade Ele argumenta que essas relações são fundamentais para entender como as ideias se relacionam e como elas são formadas Hume também faz uma distinção entre as relações que dependem inteiramente das ideias comparadas e aquelas que podem se transformar sem que haja nenhuma mudança nas ideias As relações que dependem das ideias comparadas são aquelas que se baseiam em semelhanças diferenças proporções e graus de qualidade Essas relações são baseadas nas características das ideias que estão sendo comparadas Por outro lado as relações que podem se transformar sem que haja mudanças nas ideias são aquelas que dependem da causalidade Hume argumenta que a causalidade é uma relação que não pode ser deduzida apenas das ideias comparadas mas depende de uma experiência empírica do mundo Ele defende que a causalidade é uma relação fundamental para entendermos o mundo ao nosso redor mas que não podemos compreendêla apenas através da reflexão filosófica sem a observação empírica Seção 2 Da probabilidade e da idéia de causa e efeito Isso é tudo que penso ser necessário observar a respeito das quatro relações que constituem o fundamento da ciência Quanto às outras três que não dependem da idéia e podem estar presentes ou ausentes enquanto aquela permanece a mesma cabe explicálas mais detalhadamente Essas três relações são identidade situações no tempo e no espaço e causalidade Pag 101 Neste trecho Hume está encerrando uma discussão sobre as quatro relações que segundo ele constituem o fundamento da ciência semelhança contiguidade ordem e causaefeito Ele afirma que já disse tudo o que acha necessário sobre essas quatro relações e agora se concentrará nas outras três que não dependem da ideia e podem estar presentes ou ausentes enquanto aquela permanece a mesma As três relações que Hume menciona são identidade situações no tempo e no espaço e causalidade Identidade referese à relação que um objeto tem consigo mesmo ou seja a sua permanência ao longo do tempo Situações no tempo e no espaço referemse à localização de um objeto no espaço e na sequência de eventos no tempo Causalidade referese à relação entre causa e efeito ou seja à ideia de que um evento leva a outro Hume argumenta que essas três relações são importantes para a compreensão do mundo e da experiência humana Ele argumenta que embora essas relações não dependam da ideia são necessárias para se ter uma compreensão adequada do mundo Por exemplo sem a noção de causalidade não poderíamos entender a relação entre causa e efeito e como eventos estão relacionados uns aos outros Seção 3 Por que uma causa é sempre necessária Uma vez que não é do conhecimento ou de um raciocínio científico que derivamos a opinião de que uma causa é necessária para toda nova produção tal opinião deve vir necessariamente da observação e da experiência Pag 110 Hume questiona como podemos ter certeza de que uma causa é necessária para a produção de um efeito se nunca podemos observar uma conexão necessária entre causa e efeito Em vez disso tudo o que podemos observar é a relação constante entre eventos ou seja sempre que um evento A é seguido por um evento B Mas essa relação constante não prova necessidade Hume argumenta que para inferir que uma causa é necessária para um efeito precisamos confiar na nossa experiência passada Por exemplo sabemos que a luz do sol aquece a superfície da terra porque sempre observamos essa relação constante entre o sol e o calor No entanto essa relação constante não prova necessidade A ideia de necessidade é algo que inferimos de nossa experiência passada mas não podemos provar que é verdadeira por meio do raciocínio lógico ou científico Seção 4 Das partes componentes de nossos raciocínios acerca da causa e do efeito É desnecessário observar que não se trata de uma objeção legítima à presente doutrina dizer que podemos raciocinar com base em nossas conclusões ou princípios passados sem ter de recorrer às impressões de que estes derivaram em primeiro lugar Pois mesmo supondo que essas impressões se apaguem inteiramente de nossa memória Pag 113 Seção 5 Das impressões dos sentidos e da memória Nesse tipo de raciocínio por causalidade portanto empregamos materiais de natureza mista e heterogênea que embora conectados são essencialmente diferentes uns dos outros Todos os nossos argumentos concernentes a causas e efeitos consistem tanto em uma impressão da memória ou dos sentidos como na idéia daquela existência que produz o objeto da impressão ou que é por ele produzida Seção 6 Da inferência da impressão à idéia É fácil observar que ao traçarmos essa relação a inferência que fazemos da causa ao efeito não deriva meramente de um exame desses objetos particulares nem de uma penetração em suas essências que pudesse revelar a dependência de um em relação ao outro Pag 115 Ele argumenta que ao estabelecermos essa relação entre causa e efeito não estamos simplesmente examinando os objetos particulares envolvidos ou descobrindo alguma essência que revela a dependência de um em relação ao outro Para Hume a relação de causalidade não é algo que pode ser observado diretamente na experiência Em vez disso é uma relação que é inferida a partir da observação de eventos que parecem estar conectados Ele argumenta que quando observamos que um evento sempre é seguido por outro evento começamos a inferir que há uma relação causal entre eles No entanto Hume também argumenta que essa inferência não pode ser justificada por meio da razão ou da lógica Em vez disso é algo que fazemos por hábito ou costume sem ter qualquer garantia de que a relação causal que estamos inferindo é verdadeira Em outras palavras a relação de causalidade é uma construção humana uma convenção estabelecida pela mente humana para lidar com a experiência do mundo mas não tem uma base objetiva na realidade em si mesma PESQUISA AMPLIADA Esta obra de Hume David Hume é considerada um dos textos mais importantes e influentes da filosofia moderna Abaixo estão algumas citações de outros autores em relação ao livro e ao pensamento de Hume Immanuel Kant Kant afirmou que a leitura do Tratado da Natureza Humana foi responsável por despertaro de seu sono dogmático Embora Kant tenha sido um crítico da abordagem cética de Hume em relação à razão e à causalidade ele reconheceu a importância do trabalho de Hume em desafiar as suposições comuns da época Bertrand Russell Em seu livro História da Filosofia Ocidental Russell descreve Hume como o maior filósofo que já escreveu em língua inglesa Ele destaca a importância do trabalho de Hume em criticar o conceito de causalidade e em enfatizar a importância da experiência e da observação Friedrich Nietzsche Nietzsche criticou o ceticismo de Hume e sua visão de que não podemos conhecer a realidade em si mesma No entanto ele elogiou Hume por ter uma abordagem saudável em relação à moralidade argumentando que ele reconheceu que nossos valores e crenças são o resultado de nossas emoções e experiências CONSIDERAÇÕES O livro Tratado da Natureza Humana escrito por David Hume e publicado em 1739 1740 é considerado uma das obras mais importantes da filosofia moderna e um marco no pensamento empirista Hume propõe uma análise crítica do conhecimento humano questionando a possibilidade de se alcançar conhecimento objetivo e universal Ele argumenta que todo o conhecimento humano é baseado em nossas percepções sensoriais e que nossas crenças são formadas por hábito e associação de ideias Além disso Hume faz uma crítica à metafísica e à religião argumentando que não podemos conhecer a realidade última das coisas incluindo a existência de Deus a alma e a imortalidade O livro é dividido em três partes Da compreensão humana Dos afetos ou paixões e Da moral e aborda temas como causalidade identidade pessoal liberdade e determinismo moralidade entre outros A obra de Hume influenciou muitos outros filósofos como Immanuel Kant Friedrich Nietzsche e Bertrand Russell e é considerada uma das mais importantes contribuições para a filosofia moderna REFERÊNCIAS Hume David Tratado da Natureza Humana Editora UNESP 2Ed 2009 Disponível em fileCUserseurafDownloads1681830473073David20Hume20 20Tratado20da20Natureza20HumanaUNESP2020001202pdf acesso em 18 de abril de 2023 Powders Lipstick Blush Non greasy Non drying Easy to apply Suitable for all skin types Cement Based Paint This paint is made above No 1 Quality Cement We can supply it in Red Blue Yellow Black and White Color This paint also has good binding Quality White Cement Based Putti If you want to give your walls a smooth clear pasteurized look then this is most suitable putty This can be used on all surfaces We also supply Modak Putty Asbestos Putty For fragility and controlling cracking of putty and punching of ceiling Dry Distemper Color in powder form For covering walls and fresh walls after white washing Dark colors not suitable Water Resistant Putty Wet Putty or Acrylic Putty is water resistant This Putty Film is more flexible and smooth This putty is best suited for exterior walls Paste Form Dry Color White Powder for use in distemper Mild Cleanser Washing powder for textile Clothes Walls Kitchen Bathroom Cleaning Herbal shampoo shampoo for all types of hair Closed Open Porcelain Enamel paints Oil Paint for wood and steel work Exterior Emulsion paint special with water resistance oil resistance bacteria proof etc Synthetic enamel paints for Brushes and Spray spraying with super gloss Emulsion Paint for internal and external walls water resistant fissures resistance and etc Putty for White Wash Cement Base All Grades of Cement Soapstone powder Pech Marbles Chips Etc Mody Chemical works 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Tratado da natureza humana David Hume DavidHume Tratado da natureza humana Uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais Tradução Déborah Danowski Elaboração dos índices analítico e onomástico Amandio de Jesus Gomes 2ª edição revista e ampliada editora unesp Título original em inglês A Treatise of Human Nature 2000 da tradução brasileira Fundação Editora da UNESP FEU Praça da Sé 108 01001900 São Paulo SP Tel Oxxl 1 32427171 Fax Oxxl 1 32427172 wwweditoraunespcombr feueditora unesp br H91t 2ed CIP Brasil Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ Hume David 17111776 Tratado da natureza humana uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais David Hume tradução Débora Danowski 2ed rev e ampliada São Paulo Editora UNESP 2009 Tradução de A treatise of human nature Apêndice ISBN 9788571399013 1 Teoria do conhecimento 2 Filosofia inglesa 3 Filosofia moderna 1 Título 090081 Editora afiliada Asociaciôn de Editoiiales Universitalias de América Latina y el Cartbe Associação Brasileira de Editoras Unlversitãrlas CDD 121 CDU 165 Sobre a tradução 7 Nota à primeira edição 12 Nota à segunda edição 14 Livro 1 Do entendimento 15 Livro 2 Das paixões 307 Livro 3 Da moral 491 Apêndice 661 Sinopse 679 Notas e variantes 701 Índice geral 705 Índice analítico 713 Índice onomástico 757 Sumário 5 Sobre a tradução David Hume 17111776 terminou de escrever seu primeiro li vro o Tratado da natureza humana aos 27 anos de idade Os três vo lumes que o compunham foram publicados em 1739 Livros 1 e 2 e em 1740 Livro 3 juntamente com o Apêndice passando pratica mente despercebidos O jovem filósofo escocês que havia deposita do grandes esperanças em sua obra fica profundamente decepcio nado o livro diz ele no pequeno texto autobiográfico My own life 1776 já saiu da gráfica natimorto Não teve sequer o mérito de despertar murmurações entre os zelotes Hume entretanto estava seguro de que seu fracasso se devia mais à maneira que à matéria e que havia sido sobretudo incompreendido Por isso já em 1739 ou início de 1740 em resposta às críticas dos leitores que haviam consi derado os dois primeiros volumes demasiadamente difíceis ele pu blica de forma anônima e na terceira pessoa uma Sinopse Abstract do Tratado em que tenta explicar mais claramente o argumento prin cipal de seu livro Mas isso não muda muita coisa e alguns anos mais tarde Hume já quase não fala mais do Tratado dedicandose antes à publicação de três obras distintas Investigação sobre o entendi mento humano 1748 Investigação sobre os princípios da moral 1751 e Dissertação sobre as paixões 1757 Sob a nova maneira entretanto é a mesma matéria que ali se encontra com muito poucas modifi 7 Tratado da natureza humana cações substanciais E embora o próprio autor o tenha posto em se gundo plano como um mero escrito de juventude o Tratado perma nece certamente sua obra mais rica e complexa Semelhante complexidade como se poderia esperar torna a tra dução do Tratado tarefa cheia de dificuldades Inúmeras vezes tive de resistir ao impulso de acumular notas explicativas ou tecer conside rações sobre trechos obscuros ou ambíguos Dada a natureza da pre sente edição procurei limitar minhas notas aos casos em que a solu ção encontrada na tradução perde algo da precisão complicação ou mesmo ambigüidade do original Essas notas encontramse todas em pé de página com exceção de duas que por serem demasiadamen te longas e gerais apresento a seguir 1 Podemos encontrar ao longo do Tratado uma distinção entre os termos conjunction conjunção e connexion conexão A conjun ção em geral se refere a uma mera proximidade espacial ou tempo ral ao passo que a conexão supõe um princípio de união e um tra balho da imaginação Há dois bons exemplos disso no Livro 1 Já na Seção 1 da Parte 1 p25 a conjunção constante entre nossas im pressões e nossas idéias nos permite concluir a existência de uma co nexão entre os dois tipos de percepções E na Parte 3 toda a análise da relação causal mostra que a conexão necessária entre causa e efeito supõe a existência de uma conjunção constante entre duas es pécies de objetos Procurando manter essa distinção embora Hume raramente seja muito rigoroso quanto aos termos que emprega tra duzi sempre conjunction por conjunção e connexion por cone xão Entretanto algumas formas derivadas de conjunction como por exemplo conjoined requerem uma outra solução Assim utili zei três formas básicas para traduzir o termo conjoined sempre que possível utilizei a expressão em conjunção com quando isso não me pareceu estilisticamente adequado empreguei o termo conjuga do e suas variações conjugada conjugar etc Mas em alguns ca sos conjugado pode conotar um vínculo maior que o de uma mera conjunção espacial ou temporal Recorri então à forma mais simples 8 Sobre a tradução juntar cf p 108 e p 124 Finalmente em alguns raros casos tive de apelar ainda para outras soluções porém acredito sem trair o sentido do texto 2 Feeling é talvez o termo utilizado por Hume cuja tradução é a mais problemática Feeling pode significar sentir em oposição a pensar mas também quando usado como substantivo a ra zão ou pensamento aquilo que sinto uma maneira peculiar de sentir a faculdade de sentir dessa maneira peculiar uma impressão um sentimento ou uma sensação além de tato O ideal evidentemen te seria encontrar um termo diferente para exprimir cada um desses significados Entretanto embora essa tarefa seja razoavelmente sim ples no caso de tato não é isso o que ocorre na maioria das vezes De fato o próprio Hume com freqüência parece usar como equivalen tes palavras como sentiment feeling sensation e até impression Na página 133 por exemplo ele fala sucessivamente e um tanto in distintamente em sensation taste sentiment e feeling Michel Malherbe em La philosophie empiriste de David Hume Paris J Vrin 1984 notou a dificuldade da tradução do termo feeling e as diversas tentativas de so lução adotadas por autores de língua francesa ver p284 nota 39 Te mos assim maneira de sentir sentimento consciência moral impressão sensação O próprio Malherbe após expor as desvan tagens maiores ou menores de todas essas alternativas oscila em seu texto entre le sentir e le feeling mantendo neste último caso o ter mo em inglês como o fazem aliás outros comentadores de língua francesa Infelizmente essas duas soluções tampouco me parecem adequadas ao menos em uma tradução por uma razão estilística e também especificamente no caso da primeira solução porque esta ríamos excluindo aquilo que é sentido por esse sentir Em vista de todas essas dificuldades a solução que adotei que tam bém é imperfeita mas me pareceu a melhor foi alternar entre o ver bo sentir por exemplo quando feeling se opõe a thinking fór mulas como é sentida são sentidas de maneira diferente sempre que o original põe algo semelhante a it feels different ou they are different 9 Tratado da natureza humana to the feeling sentimento nos casos em que o sentido de feeling me pareceu equivalente ao de sentiment e em que além disso os dois ter mos não foram usados conjuntamente como ocorre com freqüência e finalmente sensação Essas três últimas soluções repito foram rejeitadas por Malherbe Sentimento porque Si le sentiment a toujours sa racine dans le feeling et de ce fait précede lentendement sil nest pas une opération de la pensée néanmoins il est dessence judicatoire maneira de sen tir porque ela suggere en effet une différence entre le sentir et sa maniere qui nexiste pas En toute rigueur la maniere du sentir est espace et le temps e sensação puisquil y a des impressions de réflexion Essa avaliação é perfeitamente legítima mas sobretudo nos dois primeiros casos nossa concordância com ela não impede que adotemos essas soluções de uma forma discriminada e não generalizada Quanto a sensação ressalvo que a nota em que Malherbe faz essas considerações ocorre por ocasião de sua análise acerca da parte inicial do Tratado em que Hume fala em sensation para se referir exclusivamente às impres sões de sensação de modo diferente do que ocorre por exemplo a propósito das paixões quando Hume fala em sensações sensations das paixões Além disso pareceme que em português a palavra sen sação não tem necessariamente de estar ligada apenas às impressões sensíveis Énos perfeitamente compreensível falar por exemplo na sensação de uma paixão ou na sensação peculiar de uma idéia De toda forma para evitar malentendidos sempre que utilizar mos a palavra sensação para verter feeling acrescentaremos en tre colchetes o termo em inglês feeling O mesmo procedimento será adotado quando feeling for traduzido por sentimento O leitor sa berá portanto que sempre que sensação ou sentimento aparece rem sem qualquer indicação o original diz respectivamente sensation e sentiment Da mesma forma para não sobrecarregar em demasia o texto não faremos exceto nas primeiras ocorrências nenhuma indicação ao original feeling quando for possível utilizar o verbo sentir ou a expressão maneira diferente de sentir ou equivalente nem quando empregarmos o par sensação ou sentimento que sem pre traduzirá a expressão feeling or sentiment 10 Sobre a tradução A presente tradução foi realizada com base na edição do texto ori ginal organizada em 1888 por L A SelbyBigge revista e modificada em 1978 por P H Nidditch A Treatise of Human Nature Clarendon Press Oxford Cotejei o original inglês com as traduções francesas de André Leroy Aubier Paris 1946 e para o terceiro livro de Philippe Saltel Garnier Flammarion Paris 1993 bem como com a tradução espanhola de Felix Duque Tecnos Madri 1992 Algumas notas explicativas por exemplo nomes completos de autores e obras men cionados por Hume basearamse em notas contidas nessas tradu ções Uma nova edição inglesa anotada e comentada por David Fate Norton e Mary Norton foi publicada quando esta tradução para o português estava já em fase de editoração A Treatise of Human Nature Oxford University Press Oxford 2000 Apesar do pouco tempo que me restava pude com base nela fazer pequenas retificações no tex to e complementar certas notas David Norton socorreume gentil mente em minha tentativa de compreender os motivos subjacentes a algumas decisões dessa nova edição enviandome um artigo que escreveu com Mary Norton Substantive differences between two texts of Humes Treatise Hume Studies nov 2000 XXVI2 24577 e discutindo comigo vários pontos que ainda me pareceram obscuros Além de ter podido recorrer a essas edições e traduções tive a sorte de contar com a ajuda de vários colegas no decorrer de meu tra balho Quero agradecer sobretudo a Eduardo Viveiros de Castro Luiz Carlos Pereira e Luiz Henrique Lopes dos Santos por suas muitas e preciosas sugestões Agradeço também por suas contribuições a Ana Lúcia de Lira Tavares Danilo Marcondes Fernando Rodrigues José Oscar de Almeida Marques Kátia Muricy Marina FrascaSpada Marina Velasco Michael Houseman Michael Wrigley Paulo Henrique Viana de Barros Peter Gow Plínio Smith e Renato Lessa 1 1 Nota à primeira edição Quando saiu a nova edição inglesa do Tratado da natureza huma na David Hume A Treatise of Human Nature ed David Fate Norton e Mary J Norton Oxford Philosophical Texts Oxford Oxford University Press 2000 tratase da edição completa para estudan tes mas seu texto será basicamente o mesmo usado na Clarendon Edition of the Works of David Hume edição crítica ainda em preparação vimonos diante de um dilema Há muito a edição de SelbyBigge Nidditch é a referência clássica para as três principais obras de Hume o Tratado a Investigação sobre o entendimento humano e a Investigação so bre os princípios da moral Ela é consultada pela maior parte dos estudio sos da filosofia de Hume e é à sua paginação que estes se remetem em seus próprios trabalhos A nova edição de Norton Norton en tretanto é excelente e não é nada improvável que venha a se tornar a nova fonte principal de referência Diante desses dois fatos que nos pareciam incontornáveis hesitávamos sobre a paginação que devería mos adotar Felizmente a solução não foi assim tão difícil A nova edi ção da Oxford procedeu a uma numeração dos parágrafos internos rio texto de Hume e foi também o que fizemos facilitando a referência pa dronizada ao texto independentemente da paginação adotada A numeração dos parágrafos entretanto gerou suas próprias difi culdades Parte do Apêndice é constituída de pequenos trechos que Hume recomendava que fossem inseridos em lugares específicos do Livro 1 do Tratado A edição de Norton Norton inseriu esses tre chos nos locais recomendados omitindoos do Apêndice Esse pro cedimento embora tenha a vantagem de facilitar a leitura impede o leitor de apreender este último texto em sua unidade tal como foi escrito por Hume e publicado originalmente Por isso decidimos mantêlo integralmente seguindo a edição de SelbyBiggeNidditch Com isso entretanto não podíamos respeitar a mesma numeração de parágrafos de Norton Norton A alternativa que encontramos foi inserir os devidos trechos no corpo do Livro 1 e repetilos no Apên dice preservando assim a unidade e integridade deste sem afetar a numeração correta dos parágrafos 12 Nota à primeira edição Restava ainda um problema entretanto Com a inserção dos tre chos do Apêndice no corpo do Livro 1 fazendo assim a numeração dos parágrafos coincidir exatamente com a da edição de Norton Norton tanto a edição para estudantes como a edição crítica vindoura criou se uma pequena defasagem em relação à edição de SelbyBigge Nidditch que não inclui esses trechos Por isso em cinco casos espe cíficos se o leitor quiser cotejar o texto da tradução ou o de Norton Norton aliás com o desta última edição deverá atentar para o seguinte 124 os parágrafos 32 e 33 da tradução correspondem aos pará grafos 31 e 32 em SBN 135 os parágrafos 5 a 7 da tradução correspondem aos parágra fos 4 a 6 em SBN 13 7 o parágrafo 8 da tradução corresponde ao parágrafo 7 em SBN 13 10 os parágrafos 1 O a 12 da tradução fazem parte do Apêndi ce e portanto não estão em SBN O parágrafo 13 corresponde ao pará grafo 10 em SBN e foi excluído por Norton Norton Para compreen der melhor estas últimas inclusões e exclusões o leitor pode consultar a nota da tradutora que antecede o parágrafo 1 O da mesma seção 13 14 os parágrafos 13 a 36 da tradução correspondem aos pa rágrafos 12 a 35 em SBN Por outro lado a manutenção do Apêndice em sua íntegra gerou uma discrepância entre a paragrafação desse texto em nossa edição e na nova edição da Oxford Assim os parágrafos 18 a 30 da tradução correspondem aos parágrafos 1Oa 22 de Norton Norton Finalmen te uma última diferença aparecerá dentro da nota de Hume a 3237 decorrente de uma alteração na paragrafação apenas indicada na edi ção de SelbyBiggeNidditch mas adotada na edição Norton Norton e em nossa tradução Outros esclarecimentos Os trechos do apêndice que foram inseridos no corpo do texto vêm entre colchetes Tanto as notas de Hume como as da tradutora aparecem em pé de página aquelas numeradas dentro de cada parte e estas marcadas por asteriscos As seguintes abreviaturas foram utilizadas nas notas da tradutora 13 NNOPT o texto completo para estudantes de A Treatise of Human Nature editado por David Fate Norton e Mary J Norton dentro da coleção Oxford Philosophical Texts Oxford Oxford University Press 2000 SBN a edição de SelbyBigge 1888 revista por P H Nidditch em 1976 Oxford Clarendon Press 1978 Nota à segunda edição Esta segunda edição do Tratado da Natureza Humana sofreu numerosas modificações em relação à anterior a maioria correções de cunho apenas tipográfico ou estilístico porém em certos casos razoavelmente importantes Destas últimas algumas são fruto de discussões com colegas entre os quais agradeço principalmente a Lívia Guimarães e a todos que participaram do Colóquio Hume por ela organizado em julho de 2002 no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais Além disso esta edição inclui um índice analítico e um índice onomástico cuidadosamente elaborados por Amandio de Jesus Gomes que assim nos redime do pecado de têlos omitido na primeira edição Agradeço também a Amandio a sugestão de algumas correções importantes à tradução Em meados de 2007 veio à luz em dois volumes a edição crítica do Tratado da Natureza Humana editada por David Fate e Mary J Norton David Hume A Treatise of Human Natureza Oxford Clarendon Press 2007 Infelizmente problemas editoriais tornaram impossível atualizar as correções aqui contidas para levar em conta tal como seria desejável esta nova e muito provavelmente definitiva edição Mal redimidos de um pecado portanto cometemos outro Esperamos poder desfazêlo num futuro próximo Finalmente passouse toda a numeração de livros partes e seções para algarismos arábicos o que conjugado com a numeração dos parágrafos já adotada na primeira edição deverá facilitar ainda mais as futuras referências ao texto da tradução brasileira A tradutora Tratado da natureza humana Uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais Rara tempornm felicitas ubi sentire qua velis qua sentias dicere licet Tácito Livro 1 Do entendimento Tácito Histórias 11 Rara felicidade de uma época em que se pode pensar o que se quer e dizer o que se pensa NT Advertência Meu objetivo no presente trabalho está explicado de maneira suficiente na Introdução O leitor deve apenas ter em mente que nem todos os temas que ali me propus tratar são abordados nestes dois volumes Os temas do en tendimento e das paixões compõem por si sós uma seqüência completa de racio cínios e minha intenção era tirar vantagem dessa divisão natural a fim de testar o gosto do público Se eu tiver a sorte de ser bemsucedido procederei ao exame da moral da política e da crítica o que completará este Tratado da natureza humana Considero a aprovação do público a maior recompensa que posso receber por meus esforças mas estou determinado a tomar seu juízo qualquer que seja ele como meu melhor ensinamento Introdução 1 Nada é mais usual e mais natural para aqueles que pretendem oferecer ao mundo novas descobertas filosóficas e científicas que in sinuar elogios a seu próprio sistema depreciando todos os que foram propostos anteriormente De fato se se contentassem em lamentar a ignorância que ainda nos envolve nas mais importantes questões que podem enfrentar o tribunal da razão humana seriam poucos os que tendo alguma familiaridade com as ciências não concordariam imediatamente com eles O homem dotado de discernimento e de saber percebe facilmente a fragilidade do fundamento até mesmo daque les sistemas mais bem aceitos e com as maiores pretensões de con ter raciocínios precises e profundos Princípios acolhidos com base na confiança conseqüências deles deduzidas de maneira defeituosa falta de coerência entre as partes e de evidência no todo tudo isso podese encontrar nos sistemas dos mais eminentes filósofos e pa rece cobrir de opróbrio a própria filosofia 2 Tampouco é necessário um conhecimento muito profundo para se descobrir quão imperfeita é a atual condição de nossas ciências Mesmo a plebe lá fora é capaz de julgar pelo barulho e vozerio que ouve que nem tudo vai bem aqui dentro Não há nada que não seja ob jeto de discussão e sobre o qual os estudiosos não manifestem opiniões contrárias A questão mais trivial não escapa à nossa controvérsia e não 19 Tratado da natureza humana somos capazes de produzir nenhuma certeza a respeito das mais im portantes Multiplicamse as disputas como se tudo fora incerto e essas disputas são conduzidas da maneira mais acalorada como se tudo fora certo Em meio a todo esse alvoroço não é a razão que con quista os louros mas a eloqüência e ninguém precisa ter receio de não encontrar seguidores para suas hipóteses por mais extravagan tes que elas sejam se for hábil o bastante para pintálas em cores atraen tes A vitória não é alcançada pelos combatentes que manejam o chuço e a espada mas pelos corneteiros tamborileiros e demais músicos do exército 3 É daí que surge em minha opinião o preconceito comum con tra todo tipo de raciocínio metafísico mesmo por parte daqueles que se dizem doutos e que costumam avaliar de maneira justa todos os ou tros gêneros da literatura Entendem eles por raciocínio metafísico não os raciocínios de um ramo particular da ciência mas qualquer espécie de argumento que seja de alguma forma abstruso e requeira alguma atenção para ser compreendido É tão freqüente ver nossos esforços desperdiçados em tais investigações que costumamos rejeitálas sem hesitação decidindo que se não podemos deixar deser vítimas de erros e ilusões então estes deverão ao menos ser naturais e agradáveis E realmente nada a não ser o mais determinado ceticis mo juntamente com um elevado grau de indolência pode justificar tal aversão à metafísica Pois se a verdade está ao alcance da capacidade humana é certo que ela deve se esconder em algum lugar muito pro fundo e abstruso Esperar alcançála sem grande esforço enquanto os maiores gênios falharam mesmo ao cabo das piores dificuldades é uma atitude que com toda razão deve ser considerada bastante vã e presunçosa De minha parte não tenho a pretensão de que a filoso fia aqui desenvolvida goze de tal privilégio se fosse tão fácil e óbvia aliás isso seria para mim um forte motivo para se suspeitar dela 4 É evidente que todas as ciências têm uma relação maior ou me nor com a natureza humana e por mais que alguma dentre elas pos sa parecer se afastar dessa natureza a ela sempre retornará por um 20 Introdução caminho ou outro Mesmo a matemática a filosofia da natureza e a re ligião natural dependem em certa medida da ciência do HOMEM pois são objetos do conhecimento dos homens que as julgam por meio de seus poderes e faculdades É impossível dizer que transformações e melhoramentos seríamos capazes de operar nessas ciências se co nhecêssemos plenamente a extensão e a força do entendimento hu mano e se pudéssemos explicar a natureza das idéias que emprega mos bem como das operações que realizamos em nossos raciocínios Tais melhoramentos seriam sobretudo bemvindos no caso da religião natural que não se contenta em nos instruir sobre a natureza dos poderes superiores mas vai além considerando ainda as disposições desses poderes em relação a nós assim como nossos deveres para com eles Em conseqüência disso nós não somos simplesmente os seres que raciocinam mas também um dos objetos acerca dos quais raciocinamos 5 Se portanto as ciências da matemática filosofia da natureza e re ligião natural mostram tal dependência em relação ao conhecimento do homem o que se pode esperar das outras ciências cuja conexão com a natureza humana é ainda mais estreita e íntima A única fina lidade da lógica é explicar os princípios e operações de nossa facul dade de raciocínio e a natureza de nossas idéias a moral e a crítica tra tam de nossos gostos e sentimentos e a política considera os homens enquanto unidos em sociedade e dependentes uns dos outros Essas quatro ciências lógica moral crítica e política compreendem quase tudo que possamos ter algum interesse em conhecer ou quase tudo que possa servir para aperfeiçoar ou adornar a mente humana 6 Eis pois o único recurso capaz de conduzir nossas investigações filosóficas ao sucesso abandonar o método moroso e entediante que seguimos até agora e ao invés de tomar vez por outra um castelo ou aldeia na fronteira marchar diretamente para a capital ou centro des sas ciências para a própria natureza humana estando nós de posse desta podemos esperar uma vitória fácil em todos os outros terrenos Partindo de tal posição poderemos estender nossas conquistas a to das as ciências que concernem de perto à vida humana e então pro 2 1 Tratado da natureza humana ceder calmamente à investigação mais completa daquelas que são ob jetos da pura curiosidade Não existe nenhuma questão importante cuja decisão não esteja compreendida na ciência do homem e não existe nenhuma que possa ser decidida com alguma certeza antes de conhe cermos essa ciência Portanto ao pretender explicar os princípios da natureza humana estamos de fato propondo um sistema completo das ciências construído sobre um fundamento quase inteiramente novo e o único sobre o qual elas podem se estabelecer com alguma se gurança 7 Assim como a ciência do homem é o único fundamento sólido para as outras ciências assim também o único fundamento sólido que podemos dar a ela deve estar na experiência e na observação Não é de espantar que a aplicação da filosofia experimental às questões morais tenha tido que esperar todo um século desde sua aplicação à ciência da natureza Na verdade sabemos que o mesmo intervalo separou a ori gem dessas ciências o tempo transcorrido entre TALES e SÓCRATES é quase igual ao que transcorreu entre LORD BACON e alguns filósofos recentes da Inglaterra 1 que deram início à construção de uma nova base para a ciência do homem atraindo a atenção e despertando a curiosidade do público Isso tanto é verdade que embora outras na ções possam rivalizar conosco na poesia e nos suplantar em outras artes agradáveis os aperfeiçoamentos na razão e na filosofia não po deriam caber senão a uma terra de tolerância e liberdade 8 Não devemos pensar que tal aperfeiçoamento na ciência do ho mem será menos honroso para nosso país natal que aquele ocorrido na filosofia da natureza devemos antes considerálo como uma glória ainda maior em virtude da maior importância daquela ciência bem como da necessidade de sua reforma Pareceme evidente que a es sência da mente sendonos tão desconhecida quanto a dos corpos externos deve ser igualmente impossível formar qualquer noção de seus poderes e qualidades de outra forma que não seja por meio de experimentos cuidadosos e precisos e da observação dos efeitos l Sr Locke Lord Shaftesbury Dr Mandeville Sr Hutcheson Dr Butler etc 22 Introdução particulares resultantes de suas diferentes circunstâncias e situações Embora devamos nos esforçar para tornar todos os nossos princípios tão universais quanto possível rastreando ao máximo nossos expe rimentos de maneira a explicar todos os efeitos pelas causas mais simples e em menor número ainda assim é certo que não podemos ir além da experiência E qualquer hipótese que pretenda revelar as qualidades originais e últimas da natureza humana deve imediatamente ser rejeitada como presunçosa e quimérica 9 Creio que um filósofo que se dedicasse com tal empenho a expli car os princípios últimos da alma não estaria na verdade revelando se um grande mestre nessa mesma ciência da natureza humana que ele pretende explicar nem um grande conhecedor daquilo que natu ralmente satisfaz à mente humana Pois nada é mais certo que o fato de que o desespero tem sobre nós quase o mesmo efeito que o con tentamento e tão logo nos damos conta da impossibilidade de satis fazer um desejo esse mesmo desejo desaparece Ao ver que atingimos o limite máximo da razão humana sossegamos satisfeitos ainda que no essencial estejamos totalmente convencidos de nossa ignorância e percebamos que não somos capazes de indicar nenhuma razão para nossos princípios mais gerais e sutis além de nossa experiência de sua realidade experiência que é a razão do vulgo e que inicialmen te não requereu nenhum estudo para ser descoberta mesmo no caso dos fenômenos mais particulares e extraordinários E assim como essa impossibilidade de qualquer progresso adicional basta para satisfazer ao leitor assim também o autor pode extrair uma satisfação ainda mais requintada da livre confissão de sua ignorância e de sua prudência em evitar o erro em que muitos incorreram a saber o de impor ao mun do suas conjeturas e hipóteses como se fossem os princípios mais cer tos Quando se consegue obter esse mútuo contentamento e satisfa ção entre mestre e discípulo não sei o que mais se pode exigir de nossa filosofia 10 Caso se considere essa impossibilidade de se explicarem os prin cípios últimos como um defeito da ciência do homem arriscarmeei a ponderar que esse defeito é comum a ela e a todas as ciências e to 23 Tratado da natureza humana das as artes a que possamos nos aplicar sejam elas cultivadas nas es colas dos filósofos ou praticadas nas oficinas dos mais humildes artesãos Nenhum deles pode ir além da experiência ou estabelecer princípios que não estejam fundados sobre essa autoridade É verda de que a filosofia moral tem uma desvantagem peculiar que não se encontra na filosofia da natureza ela não pode reunir experimentos de maneira deliberada e premeditada a fim de esclarecer todas as di ficuldades particulares que vão surgindo Quando não sou capaz de conhecer os efeitos de um corpo sobre outro em uma dada situação tudo que tenho a fazer é pôr os dois corpos nessa situação e observar o resultado Mas se tentasse esclarecer da mesma forma uma dúvida no domínio da filosofia moral colocandome no mesmo caso que aquele que estou considerando é evidente que essa reflexão e preme ditação iriam perturbar de tal maneira a operação de meus princípios naturais que se tornaria impossível formar qualquer conclusão cor reta a respeito do fenômeno Portanto nessa ciência devemos reu nir nossos experimentos mediante a observação cuidadosa da vida humana tomandoos tais como aparecem no curso habitual do mun do no comportamento dos homens em sociedade em suas ocupa ções e em seus prazeres Sempre que experimentos dessa espécie forem criteriosamente reunidos e comparados podemos esperar es tabelecer com base neles uma ciência que não será inferior em cer teza e será muito superior em utilidade a qualquer outra que esteja ao alcance da compreensão humana Seção 1 Parte 1 Das idéias sua origem composição conexão abstração etc Da origem de nossas idéias 1 As percepções da mente humana se reduzem a dois gêneros dis tintos que chamarei de IMPRESSÕES e IDÉIAS A diferença entre es tas consiste nos graus de força e vividez com que atingem a mente e penetram em nosso pensamento ou consciência As percepções que entram com mais força e violência podem ser chamadas de impres sões sob esse termo incluo todas as nossas sensações paixões e emoções em sua primeira aparição à alma Denomino idéias as páli das imagens dessas impressões no pensamento e no raciocínio como por exemplo todas as percepções despertadas pelo presente discur so excetuandose apenas as que derivam da visão e do tato e exce tuandose igualmente o prazer ou o desprazer imediatos que esse mesmo discurso possa vir a ocasionar Creio que não serão necessá rias muitas palavras para explicar essa distinção Cada um por si mes mo percebe imediatamente a diferença entre sentir e pensar Os graus 25 Tratado da natureza humana mais comuns dessas duas espécies de percepções são facilmente dis tinguíveis mas não é impossível que em certos casos elas possam estar muito próximas uma da outra Assim por exemplo no sono no delírio febril na loucura ou em qualquer emoção mais violenta da alma nossas idéias podem se aproximar de nossas impressões Por outro lado acontece às vezes de nossas impressões serem tão apagadas e fracas que não somos capazes de as distinguir de nossas idéias Mas apesar dessa grande semelhança em alguns poucos ca sos elas são geralmente tão diferentes que ninguém pode hesitar em separálas em duas classes distintas atribuindo a cada uma um nome característico para marcar sua diferença 1 2 Convém observar ainda uma segunda divisão entre nossas per cepções que se aplica tanto às impressões como às idéias Tratase da divisão em SIMPLES e COMPLEXAS Percepções simples sejam elas impressões ou idéias são aquelas que não admitem nenhuma dis tinção ou separação As complexas são o contrário dessas e podem ser distinguidas em partes Embora uma cor um sabor e um aroma particulares sejam todos qualidades unidas nesta maçã é fácil per ceber que elas não são a mesma coisa sendo ao menos distinguíveis umas das outras 3 Tendo com tais divisões ordenado e classificado nossos objetos podemos agora nos dedicar a considerar de maneira mais precisa suas qualidades e relações A primeira circunstância que me chama a aten ção é a grande semelhança entre nossas impressões e idéias em todos os pontos exceto em seus graus de força e vividez As idéias parecem ser de alguma forma os reflexos das impressões de modo que todas as percepções da mente são duplas aparecendo como impressões e Emprego aqui os termos impressão e idéia em sentido diferente do usual liberdade que espero me seja concedida Talvez na verdade eu esteja restituindo à palavra idéia seu sentido original do qual o Sr Locke a desviou quando a fez representar todas as nossas percepções Quanto ao termo impressão gostaria que não se o entendesse aqui como expri mindo a maneira pela qual nossas percepções vívidas são produzidas na alma mas como exprimindo apenas as próprias percepções para as quais não existe um nome particular nem em inglês nem que eu saiba em nenhuma outra língua 26 Livro 1 Parte 1 Seção 1 como idéias Quando fecho os olhos e penso em meu quarto as idéias que formo são representações exatas das impressões que antes senti e não há sequer uma circunstância naquelas que não se encontre também nestas últimas Ao passar em revista minhas outras percep ções encontro a mesma semelhança e representação Idéias e im pressões parecem sempre se corresponder mutuamente Essa cir cunstância me parece notável prendendo minha atenção por um momento 4 Ao proceder a um exame mais rigoroso vejo que me deixei levar longe demais pelas primeiras aparências e que terei de fazer uso da distinção das percepções em simples e complexas para limitar a conclu são geral de que todas as nossas idéias e impressões são semelhantes Ob servo que muitas de nossas idéias complexas jamais tiveram impres sões que lhes correspondessem e que muitas de nossas impressões complexas nunca são copiadas de maneira exata como idéias Posso imaginar uma cidade como a Nova jerusalém pavimentada de ouro e com seus muros cobertos de rubis mesmo que nunca tenha visto nenhuma cidade assim Eu vi Paris mas afirmarei por isso que sou capaz de formar daquela cidade uma idéia que represente perfeitamente todas as suas ruas e casas em suas proporções reais e corretas 5 Percebo portanto que embora haja em geral uma grande seme lhança entre nossas impressões e idéias complexas não é uma regra universalmente verdadeira que elas sejam cópias exatas umas das outras Consideremos agora o que ocorre com nossas percepções simples Após o exame mais rigoroso de que sou capaz arriscome a afirmar que aqui a regra não comporta exceção e que toda idéia sim ples tem uma impressão simples que a ela se assemelha e toda im pressão simples uma idéia correspondente A idéia de vermelho que formamos no escuro e a impressão que atinge nossos olhos à luz do sol diferem somente em grau não em natureza É impossível provar por uma enumeração exaustiva de todos os casos que isso se dá com todas as nossas impressões e idéias simples Qualquer pessoa po de se convencer disso examinando tantas quantas queira Mas se 27 Tratado da natureza humana alguém negar essa semelhança universal o único meio que vejo de o convencer é pedirlhe que mostre uma impressão simples que não tenha uma idéia correspondente ou uma idéia simples que não te nha uma impressão correspondente Se ele não responder a esse desafio e com certeza não conseguirá fazêlo poderemos com base em seu silêncio e em nossa própria observação ter por estabelecida nossa conclusão 6 Vemos assim que todas as idéias e impressões simples se asse melham umas às outras E como as complexas se formam a partir delas podemos afirmar de um modo geral que essas duas espécies de percepções são exatamente correspondentes Tendo descoberto essa relação que não requer nenhum exame adicional estou curioso por descobrir algumas outras de suas qualidades Consideremos como elas se situam no que diz respeito a sua existência e quais delas im pressões ou idéias são causas quais são efeitos 7 O exame completo dessa questão é o tema do presente tratado por isso contentarnosemos aqui em estabelecer nossa proposição geral que todas as nossas idéias simples em sua primeira aparição derivam de impres sões simples que lhes correspondem e que elas representam com exatidão 8 Ao buscar fenômenos que provem essa proposição encontro os de apenas dois tipos mas para cada um desses tipos os fenôme nos são óbvios numerosos e conclusivos Em primeiro lugar median te um novo exame certificome daquilo que já afirmei a saber que toda impressão simples é acompanhada de uma idéia correspondente e toda idéia simples de uma impressão correspondente Dessa con junção constante entre percepções semelhantes concluo imedia tamente que há uma forte conexão entre nossas impressões e idéias correspondentes e que a existência de umas tem uma influência con siderável sobre a das outras Uma tal conjunção constante em um número infinito de casos jamais poderia surgir do acaso Ela prova ao contrário que há uma dependência das impressões em relação às Ver supra p89 NT 28 Livro 1 Parte 1 Seção 1 idéias ou das idéias em relação às impressões Para saber de que lado está essa dependência examino a ordem de sua primeira aparição e descubro pela experiência constante que as impressões simples sem pre antecedem suas idéias correspondentes nunca aparecendo na or dem inversa Para dar a uma criança uma idéia do escarlate ou do la ranja do doce ou do amargo apresentolhe os objetos ou em outras palavras transmitolhe essas impressões mas nunca faria o absurdo de tentar produzir as impressões excitando as idéias Nossas idéias ao aparecerem não produzem impressões correspondentes tam pouco percebemos uma cor ou temos uma sensação qualquer sim plesmente por pensar nessa cor ou nessa sensação Em contrapartida vemos que qualquer impressão da mente ou do corpo é constante mente seguida por uma idéia que a ela se assemelha e da qual difere apenas nos graus de força e vividez A conjunção constante de nos sas percepções semelhantes é uma prova convincente de que umas são as causas das outras e essa anterioridade das impressões é uma prova equivalente de que nossas impressões são as causas de nossas idéias e não nossas idéias as causas de nossas impressões 9 Para confirmar isso considero um outro fenômeno bastante claro e convincente toda vez que algum acidente obstrui a operação das fa culdades que geram determinadas impressões como no caso de um cego ou surdo de nascença perdemse não apenas as impressões mas também suas idéias correspondentes de modo que jamais apa rece na mente nenhum traço de umas ou de outras Isso é verdade não apenas quando há uma total destruição dos órgãos da sensação mas igualmente quando estes nunca chegaram a ser acionados para pro duzir uma impressão particular Não somos capazes de formar uma idéia correta do sabor de um abacaxi sem têlo realmente provado 10 Existe entretanto um fenômeno que parece contradizer isso e que poderia provar que não é absolutamente impossível que as idéias antecedam suas impressões correspondentes Acredito que se admiti rá sem dificuldade que as diversas idéias distintas das cores que pene tram pelos olhos ou as idéias dos sons transmitidas pela audição 29 são na realidade diferentes umas das outras embora ao mesmo tempo semelhantes Ora se isso é verdade em relação às diferentes cores não deve ser menos verdade em relação às diferentes tonalidades da mesma cor ou seja que cada uma delas produz uma idéia distinta e independente do resto Pois se não fosse assim deveria ser possível pela gradação contínua das tonalidades fazer uma cor se transformar insensivelmente na mais afastada dela Se não se quiser admitir que nenhum dos matizes intermediários é diferente será absurdo negar que os extremos são iguais Suponhamos assim uma pessoa que tenha gozado de sua visão durante trinta anos e tenhase familiarizado perfeitamente com todos os tipos de cores exceto com uma única tonalidade de azul por exemplo a qual ela nunca teve a ocasião de encontrar Imaginemos que todas as diferentes tonalidades dessa cor excetuandose apenas aquela sejam dispostas à sua frente em ordem gradualmente descendente da mais escura à mais clara É evidente que essa pessoa irá perceber um vazio no lugar onde falta a tonalidade e será sensível à existência de uma maior distância entre as cores contíguas àquele espaço que entre quaisquer outras Pergunto então se lhe é possível suprir tal deficiência por meio de sua própria imaginação produzindo para si mesma a idéia daquela tonalidade particular muito embora esta jamais lhe tenha sido transmitida por seus sentidos Acredito que poucos discordarão de que isso seja possível Esse exemplo pode servir como prova de que as idéias simples nem sempre derivam das impressões correspondentes embora o caso seja tão particular e singular que quase não é digno de nossa atenção não merecendo que apenas por sua causa alteremos nossa máxima geral Will be sensible that Embora Hume geralmente utilize essa expressão com um sentido equivalente ao de perceber o que para ele aliás significa ter impressões ou idéias mantive aqui e em outras poucas ocorrências a tradução literal mesmo que soe um pouco estranha em português Neste caso por exemplo a compreensão da exceção apresentada por Hume a sua própria teoria da prioridade das impressões em relação às idéias depende em parte justamente da definição do que é esse ser sensível ao tom de azul ausente A solução que apela para a expressão ter consciência de me parece inconveniente por transferir para a consciência algo que diz respeito à sensação NT À parte essa exceção porém não é descabido observar acerca desse ponto que o princípio da anterioridade das impressões em relação às idéias deve ser tomado com uma limitação adicional a saber que assim como nossas idéias são imagens de nossas impressões assim também podemos formar idéias secundárias que são imagens das primárias como se vê no presente raciocínio a seu respeito Não se trata aqui propriamente falando de uma exceção à regra mas de uma explicação As idéias produzem imagens de si mesmas em novas idéias mas como supomos que as primeiras são derivadas de impressões continua sendo verdade que todas as nossas idéias simples procedem mediata ou imediatamente de suas impressões correspondentes Esse é portanto o primeiro princípio que estabeleço na ciência da natureza humana e não há que desprezálo por sua aparência simples Pois cabe notar que a presente questão a respeito da anterioridade de nossa impressão ou idéias é a mesma que produziu tanto barulho sob uma outra formulação quando se discutiu se haveria idéias inatas ou se todas as idéias derivam da sensação e da reflexão Podemos observar que a fim de provar que as idéias de extensão e de cor não são inatas os filósofos nada mais fazem que mostrar que elas são transmitidas por nossos sentidos Para provar que as idéias de paixão e desejo não são inatas eles observam que experimentamos previamente em nós mesmos essas emoções Ora se examinarmos cuidadosamente esses argumentos veremos que eles nada provam senão que as idéias são precedidas por outras percepções mais vívidas das quais derivam e as quais elas representam Espero que essa exposição clara do problema possa pôr fim a todas as disputas a seu respeito tornando esse princípio mais útil para nossos raciocínios do que ele parece ter sido até agora Seção 2 Divisão do tema Uma vez estabelecido que nossas impressões simples são anteriores às idéias correspondentes e que as exceções são bastante raras o Tratado da natureza humana método parece exigir que examinemos nossas impressões antes de considerar as idéias As impressões podem ser divididas em duas es pécies de SENSAÇÃO e de REFLEXÃO As da primeira espécie nascem originalmente na alma de causas desconhecidas As da segunda de rivam em grande medida de nossas idéias conforme a ordem seguin te Primeiro uma impressão atinge os sentidos fazendonos perce ber o calor ou o frio a sede ou a fome o prazer ou a dor de um tipo ou de outro Em seguida a mente faz uma cópia dessa impressão que permanece mesmo depois que a impressão desaparece e à qual denominamos idéia Essa idéia de prazer ou dor ao retornar à alma produz novas impressões de desejo ou aversão esperança ou medo que podemos chamar propriamente de impressões de reflexão porque derivadas dela Essas impressões de reflexão são novamente copiadas pela memória e pela imaginação convertendose em idéias as quais por sua vez podem gerar outras impressões e idéias Desse modo as impressões de reflexão antecedem apenas suas idéias corresponden tes mas são posteriores às impressões de sensação e delas derivadas Ora o estudo de nossas sensações cabe antes aos anatomistas e aos filósofos naturais que aos filósofos morais e por esse motivo não en traremos nele no momento E como as impressões de reflexão a sa ber as paixões os desejos e as emoções que sobretudo merecem nos sa atenção surgem em sua maior parte de idéias será necessário inverter o método acima mencionado e que à primeira vista parece mais natural Para explicar a natureza e os princípios da mente humana da remos uma explicação particular das idéias antes de passarmos às im pressões Por essa razão escolhi aqui começar pelas idéias Seção 3 Das idéias da memória e da imaginação 1 Pela experiência vemos que quando uma determinada impres são esteve presente na mente ela ali reaparece sob a forma de uma idéia o que pode se dar de duas maneiras diferentes ou ela retém 32 Livro 1 Parte 1 Seção 3 em sua nova aparição um grau considerável de sua vividez original constituindose em uma espécie de intermediário entre uma impres são e uma idéia ou perde inteiramente aquela vividez tornandose uma perfeita idéia A faculdade pela qual repetimos nossas impres sões da primeira maneira se chama MEMÓRIA e a outra IMAGINA ÇÃO É evidente mesmo à primeira vista que as idéias da memória são muito mais vivas e fortes que as da imaginação e que a primeira faculdade pinta seus objetos em cores mais distintas que todas as que possam ser usadas pela última Ao nos lembrarmos de um aconteci mento passado sua idéia invade nossa mente com força ao passo que na imaginação a percepção é fraca e lânguida e apenas com muita dificuldade pode ser conservada firme e uniforme pela mente durante um período considerável de tempo Temos aqui portanto uma diferença sensível entre as duas espécies de idéias Mas tratare mos desse ponto de maneira mais completa adiante 2 2 Há uma outra diferença não menos evidente entre esses dois tipos de idéias Embora nem as idéias da memória nem as da imagi nação nem as idéias vívidas nem as fracas possam surgir na mente antes que impressões correspondentes tenham vindo abrirlhes o ca minho a imaginação não se restringe à mesma ordem e forma das impressões originais ao passo que a memória está de certa maneira amarrada quanto a esse aspecto sem nenhum poder de variação 3 É evidente que a memória preserva a forma original sob a qual seus objetos se apresentaram Sempre que ao nos recordarmos de algo nós nos afastamos dessa forma isso se deve a algum defeito ou imperfeição dessa faculdade Um historiador pode talvez buscando facilitar sua narrativa relatar um evento antes de outro que lhe é efe tivamente anterior mas se for rigoroso ele fará notar essa desor dem recolocando assim a idéia na posição devida O mesmo ocorre com nossas recordações dos lugares e pessoas que alguma vez co nhecemos A principal função da memória não é preservar as idéias 2 Parte 3 Seção 5 33 Tratado da natureza humana simples mas sua ordem e posição Em suma esse princípio se apóia em tantos fenômenos comuns e vulgares que podemos nos poupar o trabalho de continuar insistindo nele 4 A mesma evidência nos acompanha em nosso segundo princí pio a liberdade que tem a imaginação de transpor e transformar suas idéias As fábulas que encontramos nos poemas e romances eliminam qual quer dúvida sobre isso A natureza é ali inteiramente embaralhada e não se fala senão de cavalos alados dragões de fogo e gigantes mons truosos Tal liberdade da fantasia não causará estranheza porém se considerarmos que todas as nossas idéias são copiadas de nossas im pressões e que não há duas impressões que sejam completamente inseparáveis isso para não mencionarmos o fato de que se trata aqui de uma conseqüência evidente da divisão das idéias em simples e com plexas Sempre que a imaginação percebe uma diferença entre idéias ela pode facilmente produzir uma separação Seção 4 Da conexão ou associação das idéias 1 Como a imaginação pode separar todas as idéias simples e uni las novamente da forma que bem lhe aprouver nada seria mais inexplicável que as operações dessa faculdade se ela não fosse guia da por alguns princípios universais que a tornam em certa medida uniforme em todos os momentos e lugares Fossem as idéias inteira mente soltas e desconexas apenas o acaso as juntaria e seria impos sível que as mesmas idéias simples se reunissem de maneira regular em idéias complexas como normalmente fazem se não houvesse al gum laço de união entre elas alguma qualidade associativa pela qual uma idéia naturalmente introduz outra Esse princípio de união en tre as idéias não deve ser considerado uma conexão inseparável pois isso já foi excluído da imaginação tampouco devemos concluir que sem ele a mente não poderia juntar duas idéias pois nada é mais li vre que essa faculdade Devemos vêlo apenas como uma força sua ve que comumente prevalece e que é a causa pela qual entre outras 34 Livro 1 Parte 1 Seção 4 coisas as línguas se correspondem de modo tão estreito umas às ou tras pois a natureza de alguma forma aponta a cada um de nós as idéias simples mais apropriadas para serem unidas em uma idéia com plexa As qualidades que dão origem a tal associação e que levam a mente dessa maneira de uma idéia a outra são três a saber SEME LHANÇA CONTIGÜIDADE no tempo ou no espaço e CAUSA e EFEITO 2 Creio que não haverá muita necessidade de provar que essas qua lidades produzem uma associação entre idéias e quando do apareci mento de uma idéia naturalmente introduzem outra Está claro que no curso de nosso pensamento e na constante circulação de nossas idéias a imaginação passa facilmente de uma idéia a qualquer outra que seja semelhante a ela tal qualidade por si só constitui um víncu lo e uma associação suficientes para a fantasia É também evidente que como os sentidos ao passarem de um objeto a outro precisam fazêlo de modo regular tomandoos em sua contigüidade uns em re lação aos outros a imaginação adquire por um longo costume o mes mo método de pensamento e percorre as partes do espaço e do tem po ao conceber seus objetos Quanto à conexão feita pela relação de causa e efeito teremos adiante ocasião de examinála a fundo e por esse motivo não insistiremos agora sobre ela Basta observar que ne nhuma relação produz uma conexão mais forte na fantasia e faz com que uma idéia evoque mais prontamente outra idéia que a relação de causa e efeito entre seus objetos 3 Para que possamos compreender toda a extensão dessas relações devemos considerar que dois objetos estão conectados na imaginação não somente quando um deles é imediatamente semelhante ou con tíguo ao outro ou quando é sua causa mas também quando entre eles encontrase inserido um terceiro objeto que mantém com ambos al guma dessas relações Esse encadeamento pode se estender até bem longe embora ao mesmo tempo possase observar que a cada in terposição a relação se enfraquece consideravelmente Primos de quarto grau são conectados pela causalidade se me permitem empre gar esse termo mas não de modo tão estreito quanto irmãos e menos 35 Tratado da natureza humana ainda que uma criança e seus pais Podemos observar de maneira ge ral que todas as relações de parentesco consangüíneo dependem da relação de causa e efeito sendo consideradas próximas ou remotas segundo o número de causas interpostas entre as pessoas por elas conectadas 4 Dentre as três relações acima mencionadas a de causalidade é a de maior extensão Dois objetos podem ser considerados como estan do inseridos nessa relação seja quando um deles é a causa de qual quer ação ou movimento do outro seja quando o primeiro é a causa da existência do segundo Pois como essa ação ou movimento não é senão o próprio objeto considerado sob um certo ângulo e como o objeto continua o mesmo em todas as suas diferentes situações é fácil imaginar de que forma tal influência dos objetos uns sobre os outros pode conectálos na imaginação 5 Podemos prosseguir com esse raciocínio observando que dois objetos estão conectados pela relação de causa e efeito não apenas quando um produz um movimento ou uma ação qualquer no outro mas também quando tem o poder de os produzir Notemos que essa é a fonte de todas as relações de interesse e de dever pelas quais os homens se influenciam mutuamente na sociedade e se ligam pelos laços de governo e subordinação Um senhor é aquele que por sua situação decorrente quer da força quer de um acordo tem o poder de dirigir sob certos aspectos particulares as ações de outro homem a que chamamos servo Um juiz é aquele que em todos os casos litigio sos entre membros da sociedade é capaz de decidir com sua opinião a quem cabe a posse ou a propriedade de determinado objeto Quan do uma pessoa possui um certo poder nada mais é necessário para convertêlo em ação que o exercício da vontade e isso em todos os ca sos é considerado possível e em muitos provável especialmente no caso da autoridade em que a obediência do súdito é um prazer e uma vantagem para seu superior 6 Tais são portanto os princípios de união ou coesão entre nossas idéias simples ocupando na imaginação o lugar daquela conexão 36 Livro 1 Parte 1 Seção 5 inseparável que as une em nossa memória Eis aqui uma espécie de ATRAÇÃO cujos efeitos no mundo mental se revelarão tão extraordiná rios quanto os que produz no mundo natural assumindo formas igual mente numerosas e variadas Seus efeitos são manifestos em toda parte quanto a suas causas porém estas são em sua maioria des conhecidas devendo ser reduzidas a qualidades originais da natureza hu mana as quais não tenho a pretensão de explicar Não há nada tão ne cessário para um verdadeiro filósofo como a moderação do desejo excessivo de procurar causas ele deve sentirse satisfeito ao fundamen tar uma determinada doutrina em um número suficiente de experimen tos se perceber que um exame mais prolongado o levaria a especulações obscuras e incertas Nesse caso sua investigação seria muito mais bem empregada no exame dos efeitos do que no das causas de seu princípio 7 Dentre os efeitos dessa união ou associação de idéias nenhum é mais notável que as idéias complexas que são os objetos comuns de nossos pensamentos e raciocínios devendose geralmente a algum princípio de união entre nossas idéias simples Tais idéias complexas podem ser divididas em relações modos e substâncias Examinaremos brevemente cada um desses gêneros por ordem e acrescentaremos em seguida algumas considerações acerca de nossas idéias gerais e particulares Assim teremos concluído nosso presente assunto que pode ser definido como os elementos desta filosofia Seção 5 Das relações 1 A palavra RELAÇÃO é comumente usada em dois sentidos bem diferentes para designar a qualidade pela qual duas idéias são conec tadas na imaginação uma delas naturalmente introduzindo a ou tra da maneira acima explicada ou para designar a circunstância particular na qual ainda que a união de duas idéias na fantasia seja meramente arbitrária podemos considerar apropriado comparálas Na linguagem corrente usamos a palavra relação sempre no primeiro 37 Tratado da natureza humana sentido apenas na filosofia estendemos esse sentido fazendoo sig nificar qualquer objeto particular de comparação que prescinda de um princípio de conexão Assim por exemplo os filósofos admitem que a distância é uma verdadeira relação porque adquirimos essa idéia pela comparação de objetos Mas na linguagem comum quando afir mamos que nada pode ser mais distante que tais ou tais coisas queremos dizer que nada pode ter menos relação que essas coisas como se distân cia e relação fossem incompatíveis 2 Podese talvez pensar que é infindável a tarefa de enumerar to das as qualidades que tornam os objetos passíveis de comparação e que são responsáveis pela produção das idéias de relação filosófica Se observarmos cuidadosamente essas qualidades porém veremos que elas podem sem dificuldade ser reduzidas a sete classes gerais que po demos considerar as fontes de toda relação filosófica 3 1 A primeira é a semelhança Essa é uma relação sem a qual não pode existir nenhuma relação filosófica já que só admitem compa ração os objetos que apresentam entre si algum grau de semelhan ça Entretanto embora a semelhança seja necessária para todas as relações filosóficas daí não se segue que ela sempre produza uma conexão ou associação de idéias Quando uma qualidade se torna mui to geral e é comum a um grande número de indivíduos ela não leva a mente diretamente a nenhum deles ao contrário por apresentar de uma só vez uma grande variedade de alternativas impede que a imaginação se fixe em um objeto único 4 2 A identidade pode ser vista como uma segunda espécie de re lação Considero aqui essa relação enquanto aplicada em seu senti do mais estrito a objetos constantes e imutáveis sem examinar a na tureza ou o fundamento da identidade pessoal que terá seu lugar mais adiante De todas as relações a identidade é a mais universal sendo comum a todo ser cuja existência tenha alguma duração 5 3 Após a identidade as relações mais universais e abrangentes são as de espaço e tempo que estão na origem de um número infinito de com parações tais como distante contíguo acima abaixo antes depois etc 38 Livro 1 Parte 1 Seção 6 6 4 Todos os objetos que admitem quantidade ou número podem ser comparados sob esse aspecto que é outra fonte bastante fértil de relações 7 5 Quando dois objetos quaisquer possuem em comum uma mes ma qualidade os graus dessas qualidades formam uma quinta espécie de relação Assim de dois objetos pesados um pode ter um peso maior ou menor que o outro Duas cores ainda que do mesmo tipo podem possuir tonalidades diferentes e nesse sentido ser passíveis de com paração 8 6 A relação de contrariedade contrariety pode à primeira vista ser considerada uma exceção à regra de que nenhuma relação de nenhuma espécie pode subsistir sem algum grau de semelhança Mas observemos que nenhuma idéia em si mesma é contrária a outra exceto as idéias de existência e de nãoexistência que são claramente semelhantes uma vez que ambas implicam uma idéia do objeto embora a segunda exclua o objeto de todos os tempos e lugares em que se supõe que ele não existe 9 7 Quanto a todos os outros objetos tais como o fogo e a água ou o calor e o frio somente a experiência e a contrariedade de suas cau sas ou efeitos podem revelar se são contrários A relação de causa e efei to é portanto a sétima espécie de relação filosófica além de ser tam bém uma relação natural A semelhança implicada nessa relação será explicada mais tarde 10 Seria natural esperar que eu acrescentasse a diferença às demais relações Mas considero esta antes a negação de uma relação que algo real e positivo A diferença pode ser de dois tipos conforme seja oposta à identidade ou à semelhança A primeira é denominada diferença de número a outra diferença de espécie Seção 6 Dos modos e substâncias 1 Eu gostaria de perguntar àqueles filósofos que fundamentam tan tos de seus raciocínios na distinção entre substância e acidente e ima 39 Tratado da natureza humana ginam que temos idéias claras de ambos se a idéia de substância é derivada das impressões de sensação ou de reflexão Se ela nos é trans mitida pelos sentidos pergunto por qual deles e de que maneira Se é percebida pelos olhos deve ser uma cor se pelos ouvidos um som se pelo paladar um sabor e assim por diante para os demais sentidos Acredito porém que ninguém afirmará que a substância é uma cor ou um som ou um sabor Portanto a idéia de substância se é que ela existe realmente deve ser derivada de uma impressão de reflexão Mas as impressões de reflexão se reduzem às nossas pai xões e emoções nenhuma das quais poderia representar uma subs tância Assim sendo não temos nenhuma idéia de substância que seja distinta da idéia de uma coleção de qualidades particulares e tampouco temos em mente qualquer outro significado quando fala mos ou quando raciocinamos a seu respeito 2 A idéia de uma substância bem como a de um modo não passa de uma coleção de idéias simples que são unidas pela imaginação e às quais se atribui um nome particular nome este que nos permite evocar para nós mesmos ou para os outros aquela coleção Mas a diferença entre essas duas idéias consiste no fato de que as qualida des particulares que formam uma substância são comumente referi das a um algo desconhecido a que supostamente elas são inerentes Ou mesmo que essa ficção não ocorra supõese ao menos que as qualidades particulares são conectadas estreita e inseparavelmente pelas relações de contigüidade e causalidade O resultado disso é que sempre que descobrimos uma nova qualidade simples que tenha a mesma conexão com o restante imediatamente a incluímos entre as outras ainda que ela não tenha feito parte de nossa primeira concep ção da substância em questão Assim por exemplo nossa idéia de ouro pode a princípio ser a de uma cor amarela de peso de ma leabilidade e de fusibilidade mas com a descoberta de sua solubili dade em água régia acrescentamos esta última àquelas qualidades e supomos que pertence à substância tanto como se sua idéia houves se desde o início feito parte da idéia composta Visto como a prin 40 Livro 1 Parte 1 Seção 7 cipal parte da idéia complexa o princípio de união admite a inclusão de qualquer qualidade que se apresente posteriormente e essa qua lidade será nele compreendida como o são todas as outras que se apresentaram desde o início 3 Que isso não pode ocorrer no caso dos modos eis algo que fica evidente ao considerarmos sua natureza As idéias simples que for mam os modos representam qualidades que ou não estão unidas nem pela contigüidade nem pela causação estando antes dispersas em di ferentes sujeitos ou então se estiverem todas unidas seu princípio de união não é visto como o fundamento da idéia complexa A idéia de uma dança é exemplo da primeira espécie de modo a idéia de be leza é exemplo da segunda É óbvia a razão pela qual tais idéias com plexas não podem receber nenhuma idéia nova sem que com isso seja necessário mudar o nome que distingue o modo Seção 7 Das idéias abstratas 1 Uma questão muito importante foi levantada a respeito das idéias abstratas ou gerais a saber se são concebidas pela mente como gerais ou par ticulares Um grande filósofo3 contestou a opinião tradicional acerca desse ponto afirmando que as idéias gerais não passam de idéias particulares que vinculamos a um certo termo termo este que lhes dá um significado mais extenso e que quando a ocasião o exige faz com que evoquem outros indivíduos semelhantes a elas Considero esta descoberta uma das maiores e mais valiosas feitas recentemente na república das letras e por isso tentarei aqui confirmála mediante alguns argumentos que espero eliminarão qualquer dúvida e contro vérsia a seu respeito 2 É evidente que ao formar a maior parte de nossas idéias gerais se não todas elas fazemos abstração de todo e qualquer grau parti cular de quantidade e qualidade e que um objeto não deixa de per 3 Dr Berkeley George Berkeley Principies Introd 620 NT 41 Tratado da natureza humana tencer a uma espécie particular cada vez que ocorre uma pequena al teração em sua extensão duração e outras propriedades Podese pen sar portanto que existe aqui um claro dilema decisivo para a deter minação da natureza das idéias abstratas a qual tem sido motivo de tanta especulação por parte dos filósofos Como a idéia abstrata de homem representa homens de todos os tamanhos e todas as quali dades concluise que ela só será capaz de fazer isso se representar ao mesmo tempo todos os tamanhos e todas as qualidades possíveis ou então se não representar nenhum tamanho ou qualidade particu lar Ora a primeira proposição tendo sido considerada absurda por que implicaria uma capacidade infinita da mente costumouse infe rir que a segunda seria a correta e por isso se supôs que nossas idéias abstratas não representam nenhum grau particular de quanti dade ou de qualidade O que tentarei mostrar contudo é que essa inferência é errônea em primeiro lugar provando que é inteiramente impossível conceber qualquer quantidade ou qualidade sem formar uma noção precisa de seus graus e em segundo lugar mostrando que muito embora a capacidade da mente não seja infinita podemos for mar de uma só vez uma noção de todos os graus possíveis de quan tidade e qualidade de uma maneira tal que embora imperfeita pos sa ao menos servir a todos os propósitos da reflexão e do diálogo 3 Começaremos com a primeira proposição que a mente é incapaz de formar qualquer noção de quantidade ou qualidade sem f armar uma noção precisa de seus graus Podemos provar isso mediante os três argumen tos a seguir Em primeiro lugar já observamos que todos os objetos diferentes são distinguíveis e que todos os objetos distinguíveis são separáveis pelo pensamento e imaginação Podemos aqui acrescen tar que essas proposições são igualmente verdadeiras em seu senti do inverso todos os objetos separáveis são também distinguíveis e todos os objetos distinguíveis são também diferentes Pois como se ria possível separar o que não é distinguível ou distinguir o que não é diferente Para sabermos se a abstração implica uma separação portanto precisamos apenas considerála deste ponto de vista exa 42 Livro 1 Parte 1 Seção 7 minando se todas as circunstâncias de que fazemos abstração em nossas idéias gerais são distinguíveis e diferentes daquelas que rete mos como partes essenciais dessas idéias Ora é imediatamente evi dente que o comprimento preciso de uma linha não é diferente nem distinguível da própria linha assim como o grau preciso de uma qua lidade qualquer tampouco é distinguível dessa qualidade Essas idéias portanto não são mais suscetíveis de separação que de distinção e diferença Conseqüentemente estão sempre conjugadas na concep ção A idéia geral de uma linha não obstante todas as nossas abstra ções e depurações aparece na mente com um grau preciso de quan tidade e qualidade mesmo se a fazemos representar outras linhas dotadas de graus diferentes de ambas 4 Em segundo lugar reconhecese que nenhum objeto pode apa recer aos sentidos ou em outras palavras que nenhuma impressão pode se tornar presente à mente sem ser determinada em seus graus tanto de quantidade como de qualidade A confusão que por vezes envolve as impressões procede somente de sua fraqueza e instabili dade e não de uma capacidade que teria a mente de receber uma im pressão que em sua existência real não possua um grau ou propor ção particulares Isso seria uma contradição em termos e implicaria mesmo a mais absoluta das contradições a saber que é possível que uma mesma coisa seja e não seja 5 Ora uma vez que todas as idéias são derivadas de impressões e não são mais que cópias e representações destas tudo aquilo que é verdade de umas deve ser aceito a respeito das outras Impressões e idéias diferem apenas em sua força e vividez Tal conclusão não está fundamentada em nenhum grau particular de vividez não podendo portanto ser afetada por nenhuma variação nesse aspecto Uma idéia é uma impressão mais fraca e como uma impressão forte deve ne cessariamente ter uma quantidade e qualidade determinadas o mes mo deve valer para sua cópia ou representante 6 Em terceiro lugar tratase de um princípio geralmente aceito na filo sofia que tudo na natureza é individual e que é inteiramente absurdo 43 Tratado da natureza humana supor a existência real de um triângulo que não possua uma propor ção precisa entre seus lados e ângulos Se portanto isso é absurdo de fato e na realidade deve ser absurdo também no domínio das idéias pois nada a respeito do qual podemos formar uma idéia clara e dis tinta é absurdo ou impossível Mas formar a idéia de um objeto é o mesmo que simplesmente formar uma idéia pois a referência da idéia a um objeto é uma denominação extrínseca da qual não há nenhuma marca ou sinal na própria idéia Ora como é impossível formar a idéia de um objeto que possua quantidade e qualidade mas que não possua um grau preciso de nenhuma das duas seguese que é igualmente impossível formar uma idéia que não seja limitada e determinada em ambos os aspectos As idéias abstratas são portanto individuais em si mesmas embora possam se tornar gerais pelo que representam A imagem na mente é apenas a de um objeto particular ainda que a apliquemos em nosso raciocínio exatamente como se ela fosse universal 7 Tal aplicação das idéias para além de sua natureza procede do fato de que nós reunimos todos os seus graus possíveis de quantidade e de qualidade de uma maneira que embora imperfeita é capaz de aten der aos propósitos da vida esta é a segunda proposição que me pro pus explicar Quando encontramos uma semelhança entre diversos objetos que se apresentam a nós com freqüência aplicamos a todos eles o mesmo nome não obstante as diferenças que possamos ob servar em seus graus de quantidade e qualidade e não obstante quais quer outras diferenças que possam surgir entre eles Após termos adquirido tal costume a mera menção desse nome desperta a idéia de um desses objetos fazendo que a imaginação o conceba com to das as suas circunstâncias e proporções particulares Mas como por hipótese a mesma palavra foi com freqüência aplicada a outros indi víduos que diferem em muitos aspectos da idéia imediatamente pre sente à mente e como essa palavra não é capaz de despertar a idéia Ver Apêndice p675 44 Livro 1 Parte 1 Seção 7 de todos esses indivíduos ela apenas toca a alma se posso me expri mir assim e desperta o costume que adquirimos ao observálos Esses indivíduos não estão realmente e de fato presentes na mente mas apenas potencialmente tampouco os representamos todos de modo distinto na imaginação mas mantemonos prontos a considerar qual quer um deles conforme sejamos impelidos por um objetivo ou ne cessidade presente A palavra desperta uma idéia individual junta mente com um certo costume e esse costume produz qualquer outra idéia individual que se faça necessária Mas como na maior parte dos casos é impossível produzir todas as idéias às quais o no me pode se aplicar limitamos tal trabalho por uma consideração mais parcial procedimento que gera muito poucos inconvenientes em nos so raciocínio 8 Pois uma das circunstâncias mais extraordinárias da presente questão é o fato de que se por acaso formamos um raciocínio que não concorda com uma idéia individual produzida pela mente e acer ca da qual raciocinamos o costume que a acompanha reanimado pelo termo geral ou abstrato sugere imediatamente qualquer outro indi víduo Assim se mencionamos a palavra triângulo e formamos a idéia de um triângulo equilátero particular que lhe corresponda e se de pois afirmamos que os três ângulos de um triângulo são iguais entre si os outros casos individuais de triângulos escalenos e isósceles que a prin cípio negligenciamos imediatamente se amontoam à nossa frente fazendonos perceber a falsidade dessa proposição que entretanto é verdadeira em relação à idéia que havíamos formado Se a mente nem sempre sugere tais idéias na ocasião apropriada isso se deve a alguma imperfeição de suas faculdades imperfeição esta que freqüen temente gera raciocínios falsos e sofismas Mas tal fato ocorre sobre tudo no caso de idéias abstrusas e compostas Em outras ocasiões o costume é mais perfeito e é raro cometermos esse tipo de erro 9 O costume aliás é tão perfeito nesses casos que podese vincular a mesma idéia a diversas palavras diferentes e empregála em dife rentes raciocínios sem qualquer perigo de erro Assim a idéia de um 45 Tratado da natureza humana triângulo equilátero de uma polegada de altura pode servir para fa larmos de uma figura de uma figura retilínea de uma figura regular de um triângulo e de um triângulo equilátero Todos esses termos portanto se fazem acompanhar da mesma idéia mas como são usual mente aplicados em uma extensão ora maior ora menor eles susci tam seus hábitos próprios mantendo assim a mente de prontidão para que não se forme qualquer conclusão contrária a nenhuma das idéias comumente por eles compreendidas 10 Antes de esses hábitos terem se tornado inteiramente perfeitos talvez a mente não possa se contentar em formar a idéia de apenas um indivíduo devendo em lugar disso percorrer diversos deles a fim de compreender seu próprio sentido bem como o âmbito do conjunto que ela pretende exprimir pelo termo geral Para determinar o sentido da palavra figura podemos percorrer em nossa mente as idéias de círcu los quadrados paralelogramos triângulos de diferentes tamanhos e proporções sem necessariamente nos fixar em apenas uma imagem ou idéia Seja como for o certo é que sempre que empregamos um termo geral nós formamos a idéia de indivíduos que raramente ou nunca conseguimos esgotar a totalidade desses indivíduos e que aqueles que restam só são representados mediante o hábito pelo qual os evocamos sempre que uma ocasião presente o exige Tal é portanto a natureza de nossas idéias abstratas e de nossos termos gerais e é dessa maneira que resolvemos o paradoxo anterior a saber que algumas idéias são par ticulares em sua natureza mas gerais pelo que representam Uma idéia par ticular se torna geral quando a vinculamos a um termo geral isto é a um termo que por uma conjunção habitual relacionase com muitas outras idéias particulares evocandoas prontamente na imaginação 1 1 A única dificuldade que pode permanecer nesse assunto diz res peito àquele costume que tão prontamente evoca qualquer idéia par ticular de que necessitemos e que é despertado por qualquer palavra ou som a que usualmente a vinculamos Em minha opinião o méto do mais apropriado para se fornecer uma explicação satisfatória des se ato da mente é apresentar outros exemplos análogos a ele bem 46 Livro 1 Parte 1 Seção 7 como outros princípios que facilitam sua operação É impossível ex plicar as causas últimas de nossas ações mentais Basta sermos capa zes de dar uma explicação satisfatória dessas ações com base na ex periência e por analogia 12 Em primeiro lugar portanto observo que quando mencionamos um número elevado qualquer como por exemplo mil a mente em geral não possui uma idéia adequada dele mas apenas o poder de produzila mediante suas idéias adequadas dos decimais que o for mam Entretanto essa imperfeição de nossas idéias nunca se faz sentir em nossos raciocínios o que parece constituir um exemplo análogo ao caso das idéias universais de que estamos tratando 13 Em segundo lugar temos vários exemplos de hábitos que podem ser despertados por uma simples palavra Assim uma pessoa que sabe de cor determinadas frases de um discurso ou um certo número de versos dos quais entretanto não está conseguindo se lembrar pode vir a se recordar repentinamente de tudo ao ouvir aquelas palavras ou expressões que abrem o discurso ou poema 14 Em terceiro lugar acredito que todo aquele que examinar o que acontece com sua mente ao raciocinar irá concordar comigo que nós não vinculamos idéias distintas e completas a todos os termos que uti lizamos e que ao falarmos em governo igreja negociação conquista ra ramente explicitamos em nossa mente todas as idéias simples que compõem essas idéias complexas Observese entretanto que apesar dessa imperfeição podemos evitar dizer absurdos acerca desses temas e somos capazes de perceber qualquer incompatibilidade que haja en tre as idéias tão bem como se as compreendêssemos inteiramente Assim se em vez de dizer que na guerra os mais fracos sempre recorrem à negociação dissermos que eles sempre recorrem à conquista o costume que adquirimos de atribuir certas relações às idéias por continuar acompanhando essas palavras fará com que percebamos imediata mente o absurdo dessa proposição do mesmo modo que uma idéia particular pode servir para raciocinarmos acerca de outras idéias por mais diferentes que dela sejam em diversas circunstâncias 47 Tratado da natureza humana 15 Em quarto lugar como os indivíduos são agrupados e subsu midos sob um termo geral em razão da semelhança que mantêm entre si essa relação deve facilitar sua entrada na imaginação fazendo que sejam mais rapidamente sugeridos quando isso se torna necessário E de fato se considerarmos o curso usual do pensamento seja na reflexão seja no diálogo encontraremos uma boa razão para nos con vencermos disso Nada é mais admirável que a rapidez com que a ima ginação sugere suas idéias apresentandoas no instante mesmo em que elas se tornam necessárias ou úteis A fantasia percorre o uni verso de um extremo ao outro reunindo as idéias que dizem respei to a um determinado assunto É como se a totalidade do mundo in telectual das idéias fosse a um só tempo exposta à nossa visão e simplesmente escolhêssemos as mais adequadas a nosso propósito No entanto as únicas idéias que podem estar presentes são aquelas que foram reunidas por essa espécie de faculdade mágica da alma a qual embora seja sempre a mais perfeita possível nos grandes gênios constituindo aliás precisamente o que denominamos gênio per manece inexplicável para o entendimento humano a despeito de to dos os seus esforços 16 Essas quatro reflexões poderão talvez nos ajudar a eliminar to das as dificuldades da hipótese que propus acerca das idéias abstra tas tão contrária à que até agora tem prevalecido na filosofia Mas para falar a verdade confio sobretudo naquilo que já provei a respei to da impossibilidade das idéias gerais quando explicadas segundo o método usual É certo que devemos buscar algum novo sistema para dar conta dessa questão e evidentemente não existe nenhum além daquele que propus Se as idéias são particulares em sua natureza e ao mesmo tempo são em número finito somente pelo costume elas podem se tornar gerais em sua representação subsumindo um nú mero infinito de outras idéias 17 Antes de passar a outro tema farei uso dos mesmos princípios para explicar a distinção de razão tão falada e tão pouco compreendi da nas escolas Um exemplo é a distinção entre figura e corpo figu 48 Livro 1 Parte 1 Seção 7 rado ou entre movimento e corpo movido A dificuldade de se expli car essa distinção surge do princípio acima exposto que todas as idéias diferentes são separáveis Pois seguese desse princípio que se a figura for diferente do corpo suas idéias deverão ser separáveis bem como distinguíveis se não for diferente suas idéias não poderão ser nem separáveis nem distinguíveis O que significa então uma distinção de razão já que ela não implica nem diferença nem separação 18 Para eliminar tal dificuldade devemos recorrer à explicação das idéias abstratas acima apresentada É certo que a mente jamais teria sonha do em distinguir uma figura de um corpo figurado uma vez que na realidade estes não são nem distinguíveis nem diferentes nem se paráveis se não houvesse observado que mesmo nessa simplici dade poderiam estar contidas várias semelhanças e relações diferen tes Assim quando se nos apresenta um globo de mármore branco recebemos apenas a impressão de uma cor branca disposta em uma certa forma não sendo capazes de separar nem distinguir a cor da forma Mas observando em seguida um globo de mármore negro e um cubo de mármore branco e comparandoos com nosso primeiro objeto encontramos duas semelhanças separadas naquilo que an tes parecia e realmente é completamente inseparável Com a prá tica começamos a distinguir a forma da cor por meio de uma distin ção de razão Isto é consideramos a forma e a cor juntas já que elas são de fato indistinguíveis e uma só coisa mas as vemos também sob diferentes aspectos de acordo com as semelhanças de que são suscetíveis Quando queremos considerar apenas a forma do globo de mármore branco formamos na realidade uma idéia tanto da for ma como da cor mas tacitamente dirigimos nossa atenção para sua semelhança com o globo de mármore negro E do mesmo modo quando queremos considerar apenas sua cor voltamos nosso olhar para sua semelhança com o cubo de mármore branco Desse modo fazemos acompanhar nossas idéias por uma espécie de reflexão à qual o costume nos torna em grande medida insensíveis Uma pessoa que deseja que consideremos a forma de um globo de már 49 Tratado da natureza humana more branco sem pensar em sua cor deseja uma impossibilidade na realidade sua intenção é que consideremos a cor juntamente com a forma sem entretanto perder de vista sua semelhança com o globo de mármore negro ou com qualquer outro globo de qualquer cor ou substância 50 Seção 1 Da infinita divisibilidade Parte 2 Das idéias de espaço e tempo de nossas idéias de espaço e tempo Tudo que tem um ar de paradoxo e é contrário às primeiras no ções da humanidade às noções mais despidas de preconceitos cos tuma ser fervorosamente esposado pelos filósofos como se mostrasse a superioridade de sua ciência capaz de descobertas tão distantes da concepção vulgar De outro lado toda vez que alguém nos apresenta uma opinião que nos causa surpresa e admiração é tal a satisfação que ela proporciona à mente que esta se entrega por completo a es sas emoções agradáveis jamais se deixando persuadir de que seu prazer carece de todo e qualquer fundamento É dessas respectivas disposições dos filósofos e de seus discípulos que nasce aquela mú tua complacência entre eles em que os primeiros fornecem uma abun dância de opiniões estranhas e inexplicáveis enquanto os últimos nelas acreditam com enorme facilidade O exemplo mais evidente que posso apresentar dessa mútua complacência é a doutrina da infinita 51 Tratado da natureza humana divisibilidade pela qual inicio o exame do presente tema as idéias de espaço e tempo 2 Todos concordam que a mente tem uma capacidade limitada e nunca consegue formar uma concepção completa e adequada do in finito Mesmo que não se o admitisse tal fato seria suficientemente evidente pela mais simples observação e experiência É também evi dente que tudo aquilo que é suscetível de ser dividido ao infinito tem de consistir em um número infinito de partes e é impossível estabe lecer qualquer limite para o número de partes sem ao mesmo tem po limitar a divisão Não há necessidade de grandes raciocínios para se concluir daí que a idéia que formamos de uma quantidade finita qualquer não é infinitamente divisível ao contrário mediante dis tinções e separações apropriadas podemos resolver essa idéia em idéias inferiores perfeitamente simples e indivisíveis Ao rejeitar a capacidade infinita da mente supomos que ela pode atingir um ter mo na divisão de suas idéias Não há como fugir à evidênda dessa conclusão 3 É certo portanto que a imaginação atinge um mínimo e é capaz de gerar uma idéia da qual não pode conceber nenhuma subdivisão isto é que não pode ser diminuída sem ser totalmente aniquilada Quando alguém me fala da milésima e da décima milésima parte de um grão de areia faço uma idéia distinta desses números e de suas diferentes proporções mas as imagens que formo em minha mente para representar essas próprias coisas em questão não diferem em It requires scarce any induction Hume não parece estar usando aqui inductionno sen tido mais corrente para nós isto é inferência de uma conclusão geral a partir da observa ção de casos particulares mas antes no sentido mais amplo de mera inferência Cf Oxford English Dictionary induction 7b NT David Fate Norton e Mary Norton justificam assim sua correção de quality para quantity in Substantive differences between two texts of Humes Treatise Hume Studies nov 2000 XXVI2 24577 Hume goes on in the next paragraph to focus on our ideas of fractional parts or quantities thousandths and ten thousandths of grains of sand The remaining paragraphs of the section discuss the parts of entities ink spots mites but not the qualities ofthese entities The phrase finite quantity is repeated at 124 14 at 12432 we are told that no idea of quantity is infinitely divisible There are no relevantly similar discussions of finite qualities NT 52 Livro 1 Parte 2 Seção 1 nada uma da outra e tampouco são inferiores à imagem pela qual represento o próprio grão de areia que supostamente excede a ambas em tamanha proporção Tudo que é composto de partes é distinguível nessas partes e tudo que é distinguível é separável Mas o que quer que possamos imaginar da coisa mesma a idéia de um grão de areia não é distinguível nem separável em vinte e menos ainda em mil dez mil ou em um número infinito de idéias diferentes 4 O que se passa com as idéias da imaginação passase igualmente com as impressões dos sentidos Fazei uma pequena mancha de tin ta sobre uma folha de papel fixai nela os olhos e afastaivos gradati vamente até uma distância em que finalmente não mais a enxergueis É claro que no momento que precedeu seu desaparecimento a ima gem ou impressão era perfeitamente indivisível Não é por falta de raios de luz atingindo nossos olhos que as partes diminutas dos cor pos distantes não transmitem nenhuma impressão sensível e sim porque elas estão além da distância em que suas impressões estavam reduzidas a um mínimo e eram incapazes de sofrer qualquer outra diminuição Um microscópio ou um telescópio que as tornam visí veis não produzem novos raios de luz apenas espalham aqueles que já eram emitidos por essas partes produzindo assim partes em im pressões que a olho nu parecem simples e sem composição ao mes mo tempo em que elevam a um mínimo aquilo que antes era imper ceptível 5 Podemos desse modo descobrir em que consiste o erro da opi nião comum de que a capacidade da mente é limitada em ambos os sentidos e que é impossível para a imaginação formar uma idéia ade quada daquilo que ultrapassa um certo grau de pequenez ou de gran deza Nada pode ser menor que certas idéias que formamos na fan tasia ou que certas imagens que aparecem aos sentidos pois estas são idéias e imagens perfeitamente simples e indivisíveis O único de feito de nossos sentidos é o de nos fornecer imagens desproporcio nais das coisas representando como minúsculo e sem composição aquilo que na realidade é grande e composto de um imenso núme 53 Tratado da natureza humana ro de partes Mas não nos damos conta desse erro Em vez disso con sideramos que as impressões desses objetos minúsculos que apa recem aos sentidos são iguais ou quase iguais aos objetos e desco brindo pela razão que há outros objetos muitíssimo menores concluímos precipitadamente que eles são inferiores a qualquer idéia de nossa imaginação ou a qualquer impressão de nossos sentidos Em todo caso uma coisa é certa somos capazes de formar idéias que não serão maiores que o menor átomo dos espíritos animais de um inseto mil vezes menor que uma pulga E devemos antes concluir que a dificuldade está em ampliar nossas concepções até conseguirmos formar uma noção correta de uma pulga ou mesmo de um inseto mil vezes menor que uma pulga Pois para formar uma noção corre ta desses animais precisamos ter uma idéia distinta que represente todas as suas partes o que de acordo com o sistema da divisibilidade infinita é inteiramente impossível e de acordo com o das partes indivisíveis ou átomos é extremamente difícil em razão do enorme número e da imensa multiplicidade dessas partes Seção 2 Da divisibilidade infinita do espaço e do tempo 1 Quando as idéias representam adequadamente seus objetos to das as relações contradições e concordâncias entre elas são aplicá A NNOPT substitui objetos por partes seguindo antes a correção da Errata de Hume que suas correções manuscritas adotadas por SBN A justificativa dos editores Cf Davis F Norton Mary Norton op cit é que esta última correção faz Hume afirmar que certos objetos minúsculos são quase iguais a objetos o que lhes parece pouco provável Além disso haveria a discussão sobre partes diminutas no parágrafo anterior a referência a partes no final da frase e a insistência de Hume nesse mesmo parágrafo de que para formar uma noção correta de pulgas e insetos ainda menores precisamos ter uma idéia distinta que represente todas as suas partes Não posso concordar com essa conclusão O que Hume diz aqui e no parágrafo anterior é justamente que não temos impressões des sas partes de que são formados os objetos minúsculos Além disso não vejo qualquer problema na frase citada pois não são os objetos minúsculos que são quase iguais aos objetos mas sim as impressões desses objetos minúsculos NT 54 Livro 1 Parte 2 Seção 2 veis também a estes Tal é como podemos observar em geral o fun damento de todo o conhecimento humano Ora nossas idéias são representações adequadas das mais diminutas partes da extensão e não obstante todas as divisões e subdivisões que possam ter sido necessárias para se chegar a essas partes elas jamais poderão se tor nar inferiores a algumas idéias que formamos A conseqüência evidente disso é que tudo que parece impossível e contraditório pela compara ção entre essas idéias tem de ser realmente impossível e contraditório sem escapatória 2 Tudo que é suscetível de ser infinitamente dividido contém um número infinito de partes se assim não fosse a divisão seria abrup tamente interrompida pelas partes indivisíveis a que logo chegaría mos Portanto se qualquer extensão finita é infinitamente divisível não pode ser contraditório supor que uma extensão finita contém um número infinito de partes e viceversa se for contraditório supor que uma extensão finita contém um número infinito de partes nenhu ma extensão finita pode ser infinitamente divisível Ora ao exami nar minhas idéias claras convençome facilmente de que tal suposi ção é absurda Em primeiro lugar tomo a menor idéia que consigo formar de uma parte da extensão e certo de que não existe nada menor que essa idéia concluo que tudo que descubro por meio dela tem de ser uma qualidade real da extensão Repito então essa idéia uma duas três vezes e assim por diante e vejo que a idéia compos ta de extensão produzida por essa repetição aumenta sempre tornan dose duas três quatro vezes maior etc expandindose até finalmen te atingir um tamanho considerável que pode ser maior ou menor conforme eu repita mais ou menos vezes a mesma idéia Quando suspendo a adição de partes a idéia de extensão pára de aumentar Em troca percebo claramente que se prosseguisse ao infinito com a adição a idéia de extensão também se tornaria infinita De tudo isso concluo que a idéia de um número infinito de partes e a idéia de uma extensão infinita são numericamente idênticas que nenhuma exten 55 Tratado da natureza humana são finita é capaz de conter um número infinito de partes e conse qüentemente que nenhuma extensão finita é infinitamente divisível1 3 Gostaria de acrescentar aqui um outro argumento proposto por um autor famoso2 e que me parece bastante forte e elegante É evi dente que a existência em si cabe apenas à unidade e só pode ser aplicada aos demais números em virtude das unidades que os com põem Podese bem dizer que vinte homens existem mas é somen te porque um dois três quatro homens etc existem e se negarmos a existência destes a daqueles naturalmente desaparece É inteira mente absurdo portanto supor a existência de um número qualquer mas negar a existência de unidades E como conforme a opinião comum dos metafísicos a extensão é sempre um número e nunca pode ser resolvida em unidades ou quantidades indivisíveis segue se que a extensão não pode de maneira alguma existir Seria inútil replicar que uma quantidade determinada de extensão é uma unida de mas tal que admite um número infinito de frações sendo ines gotável em suas subdivisões pois pela mesma regra esses vinte ho mens podem ser considerados como uma unidade Todo o globo terrestre ou melhor ainda o universo inteiro pode ser considerado uma unidade O termo unidade é apenas uma denominação fictícia que a mente pode aplicar a qualquer quantidade de objetos por ela reunidos Sen do na realidade um verdadeiro número tal unidade não pode existir sozinha já que um número não o pode A unidade que pode existir so zinha e cuja existência é necessária à existência de todos os núme ros é uma unidade de outro tipo ela deve ser perfeitamente indivisível e incapaz de ser resolvida em qualquer unidade menor Foime objetado que a divisibilidade infinita supõe apenas um número infinito de partes proporcionais e não de partes alíquotas e que um número infinito de partes proporcionais não compõe uma extensão infinita Mas essa distinção não tem nenhum valor Quer se denominem tais partes alíquotas quer proporcionais elas não podem ser inferiores àquelas partes minúsculas que concebemos e portanto sua conjunção não pode formar uma extensão menor 2 Monsieur Malezieu Nicolas de Maléziee 1650172 7 A passagem a que Hume se refere encontrase em Éléments de Géométrie de Monseigneur le duc de Bourgogne livro IX 1715 NT 56 Todo esse raciocínio se aplica também ao tempo juntamente com um argumento adicional que valeria a pena considerar Uma propriedade inseparável do tempo e que constitui de certa maneira sua essência é que suas partes são todas sucessivas nenhuma delas podendo coexistir com outra ainda que sejam contíguas A mesma razão pela qual o ano de 1737 não pode coincidir com o presente ano de 1738 faz que todo momento deva ser distinto de outro isto é deva ser posterior ou anterior a ele Portanto é certo que o tempo tal como existe deve ser composto de momentos indivisíveis Pois se no caso do tempo nunca pudéssemos chegar ao fim da divisão e se cada momento ao suceder outro não fosse perfeitamente singular e indivisível haveria um número infinito de momentos ou partes coexistentes de tempo Acredito que todos irão concordar que isso seria uma pura e simples contradição A divisibilidade infinita do espaço implica a do tempo como fica evidente pela natureza do movimento Se a segunda portanto é impossível a primeira também deve ser Estou certo de que mesmo os mais obstinados defensores da doutrina da divisibilidade infinita admitirão que esses argumentos contêm dificuldades e que é impossível dar a eles uma resposta perfeitamente clara e satisfatória Mas podemos aqui observar que nada pode ser mais absurdo que esse costume de atribuir uma dificuldade àquilo que pretende ser uma demonstração tentando desse modo eludir sua força e evidência As demonstrações não são como as probabilidades em que podem ocorrer dificuldades e um argumento pode contrabalançar outro diminuindo sua autoridade Se for correta uma demonstração não admite a oposição de nenhuma dificuldade se não o for não passa de um mero sofisma e conseqüentemente jamais pode conter uma dificuldade Uma demonstração ou é irresistível ou não tem força alguma Portanto falar em objeções e respostas em contraposição de argumentos numa questão como essa é o mesmo que confessar que a razão humana é um simples jogo de palavras ou que a pessoa que assim se exprime não está à altura desses as Tratado da natureza humana sumos Há demonstrações difíceis de se compreender por causa do caráter abstrato de seu tema nenhuma demonstração porém uma vez compreendida pode conter dificuldades que enfraqueçam sua autoridade 7 Os matemáticos provavelmente dirão é verdade que nesta ques tão os argumentos da outra parte são igualmente fortes e que a dou trina dos pontos indivisíveis pode também ser alvo de objeções ir respondíveis Antes de examinar detalhadamente esses argumentos e objeções irei considerálos como um todo buscando provar de uma só vez mediante um raciocínio curto e decisivo que é inteiramente impossível que eles tenham qualquer fundamento correto 8 É uma máxima estabelecida da metafísica que tudo que a mente concebe claramente inclui a idéia da existência possível ou em outras pa lavras que nada que imaginamos é absolutamente impossível Como po demos formar a idéia de uma montanha de ouro concluímos que uma montanha assim pode realmente existir Não somos capazes porém de formar a idéia de uma montanha sem um vale e por isso a vemos como impossível 9 Ora é certo que temos uma idéia de extensão pois senão por que falamos e raciocinamos a seu respeito É igualmente certo que essa idéia tal como concebida pela imaginação embora seja divisível em partes ou idéias inferiores não é infinitamente divisível nem é composta de um número infinito de partes pois isso excederia o âmbito de nossa limitada capacidade Eis portanto uma idéia de ex tensão que se compõe de partes ou idéias inferiores perfeitamente indivisíveis conseqüentemente essa idéia não implica contradição conseqüentemente é possível que a extensão exista realmente con forme a essa idéia e conseqüentemente todos os argumentos em pregados contra a possibilidade dos pontos matemáticos são meras tergiversações escolásticas indignas de nossa atenção 10 Podemos levar um pouco adiante essas conseqüências e concluir que todas as pretensas demonstrações da divisibilidade infinita da extensão são igualmente sofísticas Pois é certo que essas demons 58 Livro 1 Parte 2 Seção 3 trações não podem ser corretas a menos que provem a impossibili dade dos pontos matemáticos o que seria manifestamente absurdo Seção 3 Das outras qualidades de nossas idéias de espaço e tempo 1 Não poderia haver descoberta mais feliz para a solução de todas as controvérsias em torno das idéias que a anteriormente menciona da que as impressões sempre precedem as idéias e que toda idéia contida na imaginação apareceu primeiro em uma impressão cor respondente As percepções deste último tipo são todas tão claras e evidentes que não admitem discussão ao passo que muitas de nos sas idéias são tão obscuras que é quase impossível mesmo para a mente que as forma dizer qual é exatamente sua natureza e composi ção Façamos pois uma aplicação desse princípio a fim de descobrir algo mais sobre a natureza de nossas idéias de espaço e de tempo 2 Ao abrir meus olhos e dirigir o olhar para os objetos à minha volta percebo vários corpos visíveis quando novamente os fecho e considero a distância entre esses corpos adquiro a idéia de exten são Como toda idéia é derivada de uma impressão que lhe é exata mente similar as impressões similares a essa idéia de extensão de vem ser ou bem sensações derivadas da visão ou bem impressões internas oriundas dessas sensações 3 Nossas impressões internas são as paixões emoções desejos e aversões e acredito que ninguém jamais afirmará que alguma delas é o modelo de que deriva a idéia de espaço Restam portanto apenas os sentidos como aquilo que seria capaz de nos transmitir essa im pressão original Ora que impressão nos transmitem nossos senti dos neste caso Essa é a questão principal e é ela que decidirá sem apelação possível qual a natureza da idéia 4 A visão da mesa à minha frente é suficiente para me dar a idéia de extensão Essa idéia portanto é obtida de alguma impressão que 59 Tratado da natureza humana ela representa e que aparece neste momento aos sentidos Mas meus sentidos me transmitem somente as impressões de pontos coloridos dispostos de uma certa maneira Se há alguma coisa mais a que o olho é sensível gostaria que me fosse apontada se isso não for possível poderemos concluir com segurança que a idéia de extensão não é se não uma cópia desses pontos coloridos e do modo como aparecem 5 Suponhamos que no objeto extenso isto é na composição de pontos coloridos da qual recebemos pela primeira vez a idéia de ex tensão os pontos fossem de cor púrpura Seguese que cada vez que repetíssemos essa idéia nós não apenas iríamos dispor os pontos na mesma ordem mas iríamos ainda atribuirlhes essa cor precisa a única que por hipótese conhecemos Mas depois de termos experi mentado também as outras cores violeta verde vermelho branco preto bem como todas as suas combinações e de termos encon trado uma semelhança na disposição dos pontos coloridos de que são compostas omitimos tanto quanto possível as peculiaridades rela tivas à cor e construímos uma idéia abstrata baseados apenas naqui lo em que elas concordam na disposição de seus pontos ou seja no modo como estes aparecem E mesmo quando a semelhança se es tende para além dos objetos de um único sentido mesmo quando descobrimos que as impressões do tato são semelhantes às da visão pela disposição de suas partes isso não impede que a idéia abstrata represente ambas em razão de sua semelhança Todas as idéias abs tratas são na realidade apenas idéias particulares consideradas sob um certo ângulo mas sendo vinculadas a termos gerais tornamse capazes de representar uma grande diversidade e de compreender objetos que embora semelhantes em alguns aspectos particulares são em outros aspectos bastante diferentes uns dos outros 6 A idéia de tempo derivada da sucessão de todo tipo de percepção tanto idéias como impressões e tanto impressões de reflexão como de sensação irá nos proporcionar um exemplo de uma idéia abstrata que compreende uma diversidade ainda maior que a do espaço e que entretanto é representada na fantasia por alguma idéia individual par ticular de uma quantidade e qualidade determinadas 60 Livro 1 Parte 2 Seção 3 7 Assim como recebemos a idéia de espaço da disposição dos obje tos visíveis e tangíveis assim também formamos a idéia de tempo partindo da sucessão de nossas idéias e impressões O tempo por si só jamais pode aparecer nem ser notado pela mente Um homem mer gulhado em sono profundo ou intensamente ocupado com um só pensamento é insensível ao tempo e conforme suas percepções su cedam umas às outras com uma rapidez maior ou menor a mesma duração parecerá mais longa ou mais curta para sua imaginação Um grande filósofo3 já observou que nossas percepções conhecem cer tos limites quanto a esse aspecto particular limites estes que são determinados pela natureza e constituição original da mente Nenhu ma influência de objetos externos sobre os sentidos é capaz de apres sar ou de retardar nosso pensamento para além desses limites Se fi zermos girar rapidamente um pedaço de carvão incandescente a imagem que irá se apresentar aos sentidos será a de um círculo de fogo Não se notará nenhum intervalo de tempo entre suas revolu ções e isso simplesmente porque é impossível que nossas percep ções se sucedam umas às outras com a mesma rapidez com que o movimento é comunicado aos objetos externos Quando não temos percepções sucessivas não temos nenhuma noção de tempo mes mo que exista uma sucessão real nos objetos Com base nesses e em muitos outros fenômenos podemos concluir que o tempo não pode aparecer à mente nem isolado nem acompanhado de um objeto fixo e imutável Ao contrário ele sempre é descoberto em virtude de al guma sucessão perceptível de objetos em mudança 8 Para confirmar o que foi dito podemos acrescentar o seguinte argumento que me parece inteiramente decisivo e convincente É evidente que o tempo ou duração é composto de partes diferentes pois de outro modo não seríamos capazes de conceber durações mais longas ou mais curtas É também evidente que tais partes não são coexistentes pois essa qualidade da coexistência das partes perten 3 Sr Locke Oohn Locke Essay 214 NT 61 Tratado da natureza humana ce à extensão sendo precisamente o que a distingue da duração Ora como o tempo é composto de partes não coexistentes um objeto in variável que produz apenas impressões coexistentes não produz nenhuma impressão capaz de nos dar a idéia de tempo Conseqüen temente essa idéia tem de ser derivada de uma sucessão de objetos em mudança Em sua primeira aparição o tempo não pode ser sepa rado de tal sucessão 9 Tendo assim descoberto que o tempo em sua primeira aparição à mente ocorre sempre em conjunção com uma sucessão de objetos em mudança e que se não fosse desse modo nós nunca o notaría mos devemos agora examinar se podemos concebêlo sem conceber uma sucessão de objetos e se ele sozinho é capaz de formar uma idéia distinta na imaginação 10 Para sabermos se dois objetos que estão juntos na impressão são separáveis na idéia precisamos apenas considerar se eles são diferen tes um do outro pois nesse caso é evidente que podem ser conce bidos separadamente Tudo que é diferente é distinguível e tudo que é distinguível pode ser separado de acordo com as máximas acima explicadas Se ao contrário esses objetos não forem diferentes eles não serão distinguíveis e se não forem distinguíveis não poderão ser separados Ora esse é precisamente o caso do tempo se comparado com nossas percepções sucessivas A idéia de tempo não é derivada de uma impressão particular misturada a outras das quais seria cla ramente distinguível Ela surge exclusivamente da maneira como as impressões aparecem à mente sem ser uma delas Cinco notas tocadas numa flauta nos dão a impressão e a idéia de tempo embo ra o tempo não seja uma sexta impressão que se apresentaria à audi ção ou a algum outro sentido Tampouco é uma sexta impressão que a mente encontraria dentro de si pela reflexão Esses cinco sons que aparecem dessa maneira particular não despertam nenhuma emo ção na mente nem produzem algum tipo de afeto cuja observação Hume utiliza o termo affection na maioria das vezes como sinônimo de passion pai xão É estritamente nesse sentido que emprego afeto em lugar de afecção que 62 Livro 1 Parte 2 Seção 3 pudesse gerar uma nova idéia pois é isso que é necessário para a produção de uma nova idéia da reflexão Mesmo que a mente repas sasse mil vezes todas as suas idéias de sensação nunca seria capaz de extrair daí uma nova idéia original a menos que a natureza hou vesse fabricado suas faculdades de tal maneira que ela sentisse algu ma nova impressão original surgir dessa contemplação Mas aqui a mente percebe apenas a maneira como os diferentes sons fazem sua aparição e essa maneira ela pode posteriormente considerála sem considerar os sons particulares conjugandoa com qualquer outro objeto As idéias de alguns objetos ela certamente tem de possuir e sem estas serlheia impossível chegar a uma concepção do tempo O tempo portanto uma vez que não aparece como uma impressão primária distinta não pode evidentemente ser outra coisa que dife rentes idéias impressões ou objetos dispostos de uma certa manei ra isto é sucedendose uns aos outros 11 Bem sei que há os que afirmam que a idéia de duração pode ser aplicada em um sentido apropriado a objetos perfeitamente invariá veis Essa me parece ser a opinião comum tanto dos filósofos como do vulgo Para nos convencermos de sua falsidade porém basta re fletir sobre a conclusão precedente ou seja que a idéia de duração deriva sempre de uma sucessão de objetos em mudança e jamais pode ser transmitida à mente por algo fixo e invariável Pois daí se segue inevitavelmente que já que a idéia de duração não pode ser derivada de tal objeto ela nunca pode ser aplicada a ele de maneira apropriada ou exata e portanto nunca se pode dizer que uma coisa imutável tem duração As idéias sempre representam os objetos ou impressões de que derivam e jamais podem representar ou ser aplica das a outros objetos ou impressões senão por uma ficção Posterior poderia gerar alguns malentendidos sobretudo se nos guiarmos pela distinção espinosista entre affectio e affectus É importante ressaltar entretanto que a palavra affection tem ainda para Hume o sentido de afeição que para nós aliás também corresponde a um segundo sentido de afeto Para evitar confusão portanto reservei sempre para este último sentido o termo afeição NT 63 Tratado da natureza humana mente 4 consideraremos por meio de que ficção aplicamos a idéia de tempo também àquilo que é imutável supondo como é usual que a duração é uma medida tanto do repouso como do movimento 12 Existe outro argumento bastante decisivo que confirma a pre sente doutrina acerca de nossas idéias de espaço e tempo e está fun dado unicamente neste simples princípio que essas idéias são compos tas de partes indivisíveis Vale a pena examinarmos esse argumento 13 Visto que toda idéia que é distinguível é também separável to memos uma dessas idéias simples e indivisíveis que formam a idéia composta de extensão separandoa de todas as outras e consideran doa à parte e formemos um juízo sobre sua natureza e qualidades 14 É claro que esta não é a idéia de extensão Pois a idéia de exten são é formada de partes ao passo que esta de acordo com nossa su posição é perfeitamente simples e indivisível Mas então ela não é nada Isso é absolutamente impossível Pois como a idéia composta de extensão que é real é composta de tais idéias simples fossem estas meras nãoentidades haveria uma existência real composta de não entidades o que é absurdo Devo portanto perguntar em que con siste nossa idéia de um ponto simples e indivisível Não é de admirar que minha resposta pareça um tanto nova uma vez que a própria ques tão raramente foi objeto de reflexão Costumamos discutir acerca da natureza dos pontos matemáticos mas quase nunca acerca da natu reza de suas idéias 15 A idéia de espaço é transmitida à mente por dois sentidos a vi são e o tato nada jamais parecerá extenso se não for visível ou tangí vel A impressão composta que representa a extensão consiste em várias impressões menores que são indivisíveis ao olhar ou ao tato e que podem ser denominadas impressões de átomos ou corpúscu los dotados de cor e solidez Mas isso não é tudo Não é preciso ape nas que esses átomos sejam coloridos ou tangíveis para que possam se mostrar a nossos sentidos é igualmente necessário que preserve 4 Seção 5 p93 64 Livro 1 Parte 2 Seção 4 mos a idéia de sua cor ou tangibilidade para que os possamos com preender por meio de nossa imaginação Somente a idéia de sua cor ou tangibilidade pode tornálos concebíveis pela mente Se suprimir mos essas qualidades sensíveis tais átomos serão inteiramente ani quilados para o pensamento ou imaginação 16 Ora tais as partes tal o todo Se um ponto não for considerado colorido ou tangível ele não poderá nos transmitir nenhuma idéia e como conseqüência a idéia de extensão que é composta das idéias desses pontos jamais poderá existir Mas se a idéia de extensão real mente pode existir e temos plena consciência de que o pode suas partes também têm de existir e para isso devem ser consideradas como coloridas ou tangíveis Portanto só possuímos idéia de espaço ou extensão se o consideramos como um objeto de nossa visão ou de nosso tato 17 O mesmo raciocínio provará que os momentos indivisíveis do tem po devem ser preenchidos por algum objeto ou existência real cuja sucessão forma a duração permitindo que esta seja concebida pela mente Seção 4 Resposta às objeções 1 Nosso sistema do espaço e do tempo possui duas partes intima mente ligadas A primeira depende da seguinte cadeia de raciocínios A capacidade da mente não é infinita conseqüentemente nenhuma idéia de extensão ou de duração consiste em um número infinito de partes ou idéias inferiores mas sim em um número finito de partes ou idéias simples e indivisíveis É possível portanto que o espaço e o tempo existam em conformidade com essa idéia E se isso é possí vel é certo que eles realmente existem em conformidade com ela uma vez que sua divisibilidade infinita é inteiramente impossível e con traditória 2 A outra parte de nosso sistema é uma conseqüência do que se se gue As partes a que se reduzem as idéias de espaço e de tempo são em 65 Tratado da natureza humana última análise indivisíveis e essas partes indivisíveis não sendo nada em si mesmas serão inconcebíveis se não estiverem preenchidas por algo real e existente As idéias de espaço e tempo portanto não são idéias separadas ou distintas mas simplesmente idéias da maneira ou ordem como os objetos existem Em outras palavras é impossí vel conceber seja um vácuo e uma extensão sem matéria seja um tempo em que não houve nenhuma sucessão ou alteração em uma existência real A estreita conexão entre essas partes de nosso siste ma é a razão pela qual examinaremos conjuntamente as objeções le vantadas contra ambas a começar pelas que atacam a divisibilidade finita da extensão 3 1 A primeira objeção que irei considerar serve mais para provar essa conexão e dependência entre as duas partes do que para des truir qualquer uma delas Sustentouse freqüentemente nas escolas que a extensão deve ser divisível ao infinito porque o sistema dos pontos matemáticos é absurdo e que esse sistema é absurdo porque um ponto matemático é uma nãoentidade e conseqüentemente jamais poderia por sua conjunção com outros pontos formar uma existência real Esse raciocínio seria absolutamente decisivo senão houvesse um meiotermo entre a divisibilidade infinita da matéria e a nãoentidade dos pontos matemáticos Mas é evidente que há um meiotermo a atribuição de cor ou solidez a esses pontos Aliás o absurdo dos dois extremos constitui uma demonstração da verdade e realidade desse meiotermo O sistema dos pontos físicos que seria um outro meiotermo é tão absurdo que não é necessário refutálo Uma extensão real tal como se supõe que seja um ponto físico jamais poderia existir sem partes diferentes entre si e todos os objetos dife rentes são distinguíveis e separáveis pela imaginação 4 2 A segunda objeção argumenta que se a extensão fosse com posta de pontos matemáticos seria necessária uma penetração Quan do um átomo simples e indivisível toca outro ele deve necessaria mente penetrálo pois seria impossível que ele tocasse apenas suas partes externas já que a própria suposição de sua perfeita simpli 66 Livro 1 Parte 2 Seção 4 cidade exclui a existência de partes Ele deve portanto tocálo intima mente e em toda sua essência secundum se tota et totaliter que é a definição mesma da penetração Mas a penetração é impossível E os pontos matemáticos são como conseqüência igualmente impossíveis 5 Respondo a essa objeção apresentando uma idéia mais correta de penetração Suponhamos que dois corpos que não contêm nenhum espaço vazio dentro de seus perímetros aproximemse um do outro unindose de tal maneira que o corpo resultante de sua união não seja mais extenso que qualquer um dos dois É isso que devemos ter em mente quando falamos de penetração É evidente porém que essa pe netração nada mais é que a aniquilação de um desses corpos e a pre servação do outro sem que sejamos capazes de distinguir qual deles particularmente foi preservado e qual foi aniquilado Antes da aproxi mação temos a idéia de dois corpos depois de apenas um É impossí vel à mente preservar qualquer noção de uma diferença entre dois cor pos da mesma natureza existindo no mesmo lugar ao mesmo tempo 6 Entendendo então a penetração nesse sentido ou seja como a aniquilação de um corpo quando de sua aproximação com um outro pergunto se alguém considera necessário que um ponto colorido ou tangível seja aniquilado ao se aproximar de um outro ponto colorido ou tangível Ao contrário não se perceberá claramente que da união desses pontos resulta um objeto composto e divisível que pode ser distinguido em duas partes cada uma das quais conserva sua exis tência distinta e separada apesar de sua contigüidade com a outra Para auxiliar a fantasia concebamos que esses pontos são dotados de cores diferentes o que impede melhor sua mistura e confusão Um ponto azul e um ponto vermelho certamente podem ser contí guos sem que haja penetração ou aniquilação Caso contrário o que poderia lhes acontecer Qual deles seria aniquilado o vermelho ou o azul Ou ainda se as duas cores se fundissem em uma só que nova cor seria produzida por essa união De acordo consigo mesmo todo e completamente NT 67 O que gera tais objeções tornandoas ao mesmo tempo tão difíceis de serem respondidas satisfatoriamente é sobretudo a falta de firmeza e a instabilidade naturais tanto de nossa imaginação como de nossos sentidos quando aplicados a objetos tão diminutos Fazei uma pequena mancha de tinta sobre uma folha de papel e afastaivos até a distância em que essa mancha se torna completamente invisível Ao vos aproximar novamente do papel vereis que primeiro a mancha se torna visível durante breves intervalos em seguida tornase visível o tempo todo depois apenas adquire nova força em seu colorido sem aumentar de tamanho e finalmente após ter crescido ao ponto de se tornar realmente extensa mesmo então ainda é difícil para a imaginação quebrála em suas partes componentes em razão da dificuldade que sente em conceber um objeto tão minúsculo como um simples ponto Essa deficiência afeta a maior parte de nossos raciocínios sobre o presente tema tornando quase impossível responder de um modo inteligível e por meio de expressões apropriadas a muitas questões que podem surgir a seu respeito 3 Muitas objeções contra a indivisibilidade das partes da extensão foram extraídas da matemática embora à primeira vista essa ciência pareça antes favorável à presente doutrina e mesmo quando contrária a ela em suas demonstrações élhe perfeitamente conforme em suas definições Minha tarefa neste momento deve ser por isso defender as definições e refutar as demonstrações Uma superfície se define como um comprimento e uma largura sem profundidade uma linha como um comprimento sem largura nem profundidade um ponto como aquilo que não possui nem comprimento nem largura nem profundidade É evidente que tudo isso é ininteligível se nos baseamos em qualquer outra suposição que não seja a de que a extensão se compõe de pontos ou átomos indivisíveis De que outro modo uma coisa poderia existir sem comprimento sem largura ou sem profundidade Constato que esse argumento recebeu duas respostas nenhuma das quais em minha opinião é satisfatória A primeira é que os Livro 1 Parte 2 Seção 4 objetos da geometria as superfícies linhas e pontos cujas propor ções e posições ela examina são meras idéias na mente e não ape nas nunca existiram como nunca podem vir a existir na natureza Nunca existiram pois ninguém tem a pretensão de traçar uma li nha ou desenhar uma superfície de maneira inteiramente confor me à definição Nunca podem vir a existir pois partindo dessas pró prias idéias podemos realizar demonstrações que provam sua impossibilidade 1 1 Mas podese imaginar algo mais absurdo e contraditório que esse raciocínio Tudo que pode ser concebido por uma idéia clara e distin ta implica necessariamente a possibilidade de sua existência E aquele que pretende provar a impossibilidade dessa existência por um argu mento derivado de sua idéia clara está afirmando na realidade que não temos disso nenhuma idéia clara porque temos uma idéia clara Seria em vão buscar uma contradição em algo que é distintamente concebido pela mente Se implicasse contradição seria impossível concebêlo 12 Não há meiotermo portanto entre admitir ao menos a possibi lidade de pontos indivisíveis e negar sua idéia É sobre este último princípio que se funda a segunda resposta ao argumento anterior Afirmouse5 que embora seja impossível conceber um comprimen to sem largura podemos por meio de uma abstração sem separação considerar uma dessas propriedades sem levar em conta a outra do mesmo modo como podemos pensar no comprimento do caminho entre duas cidades desprezando sua largura O comprimento é inseparável da largura tanto na natureza como em nossas mentes mas isso não exclui a possibilidade de uma consideração parcial e de uma distinção de razão da maneira acima explicada 13 Ao refutar essa resposta não insistirei sobre o argumento que já expliquei suficientemente de que se for impossível para a mente 5 LArt de penser A Arnauld 1 6121 694 e P Nicole 16251 695 La logique ou Lart de penser NT 69 Tratado da natureza humana atingir um mínimo em suas idéias sua capacidade deve ser infinita para que possa compreender o número infinito de partes que com poriam sua idéia de uma extensão qualquer Tentarei aqui encon trar novos absurdos nesse raciocínio 14 Um sólido é limitado por uma superfície uma superfície é limi tada por uma linha uma linha é limitada por um ponto Ora afirmo que se as idéias de ponto linha ou superfície não fossem indivisíveis sernosia impossível sequer conceber esses limites Pois suponha mos que essas idéias fossem infinitamente divisíveis Nesse caso se a fantasia tentasse se fixar na idéia da última superfície linha ou pon to ela imediatamente veria essa idéia cindirse em partes e ao ten tar se apoderar da última dessas partes deixálaia escapar por uma nova divisão e assim sucessivamente ao infinito sem nenhuma possibilidade de chegar a uma idéia última Um grande número de fracionamentos não a aproximaria mais da última divisão que a pri meira idéia formada Cada partícula esquivarseia à apreensão me diante um novo fracionamento como acontece com o mercúrio quan do o tentamos pegar Mas já que de fato deve haver algo que limite a idéia de toda qualidade finita e como essa idéialimite não pode ela mesma consistir em partes ou idéias inferiores pois senão a última de suas partes é que limitaria a idéia e assim por diante isso é uma prova clara de que as idéias de superfícies linhas e pontos não admi tem certas divisões as de superfícies não admitem divisão na pro fundidade as de linhas na largura e na profundidade e as de pontos em nenhuma dimensão 15 Os escolásticos estavam tão cientes da força desse argumento que alguns deles afirmavam que a natureza teria misturado um certo nú mero de pontos matemáticos entre as partículas de matéria divisíveis ao infinito com a finalidade de dar um limite aos corpos Outros ten tavam eludir a força do argumento por meio de um amontoado de cavilações e distinções ininteligíveis Mas todos estavam com isso reconhecendo a vitória de seu adversário O homem que se esconde 70 Livro 1 Parte 2 Seção 4 está admitindo a superioridade do inimigo de forma tão evidente quanto aquele que abertamente entrega suas armas 16 Desse modo parece que as próprias definições dos matemáticos destróem as pretensas demonstrações e que se temos a idéia de pon tos linhas e superfícies indivisíveis conforme às definições sua exis tência é certamente possível Mas se não temos tal idéia énos inteira mente impossível conceber o limite de uma figura qualquer E sem essa concepção não pode haver demonstração geométrica 17 Vou ainda mais longe contudo e afirmo que nenhuma dessas demonstrações pode ter peso suficiente para estabelecer um princí pio como o da divisibilidade infinita isso porque por dizerem respei to a objetos tão minúsculos elas não são propriamente demonstra ções uma vez que são construídas sobre idéias inexatas e sobre máximas que não são precisamente verdadeiras Quando a geome tria faz qualquer asserção acerca das relações de quantidade não devemos esperar a mais alta precisão e exatidão Nenhuma de suas provas tem tal alcance Ela toma as dimensões e proporções das fi guras de maneira correta mas aproximada e com alguma liberdade Seus erros nunca chegam a ser consideráveis aliás ela jamais erra ria se não aspirasse a uma perfeição absoluta 18 Pergunto primeiramente aos matemáticos o que querem dizer quando afirmam que uma linha ou superfície é IGUAL a ou MAIOR ou MENOR que outra Pouco importa o que possam responder seja qual for a escola a que pertençam e quer afirmem que a extensão é composta por pontos indivisíveis quer por quantidades divisíveis ao infinito Essa questão embaraçará tanto a uns como a outros 19 Poucos matemáticos se algum defendem a hipótese dos pontos indivisíveis e entretanto são os que a defendem que possuem a mais pronta e correta resposta à presente questão Bastalhes responder que as linhas ou superfícies são iguais quando o número de pontos em cada uma delas é o mesmo e que conforme varia a proporção dos números a proporção das linhas e superfícies também varia Mas 7 1 Tratado da natureza humana embora essa resposta seja correta além de óbvia posso afirmar que esse critério de igualdade é inteiramente inútil e que quando quere mos determinar se certos objetos são iguais ou desiguais entre si nunca recorremos a tal comparação Porque os pontos que entram na composição de uma linha ou superfície qualquer sejam eles per cebidos pela visão ou pelo tato são tão diminutos e se confundem tanto uns com os outros que é inteiramente impossível para a mente computar seu número e por isso tal computação nunca poderá for necer um critério que nos permita avaliar as proporções Ninguém jamais será capaz de determinar por uma enumeração exata que uma polegada tem menos pontos que um pé ou que um pé tem menos pontos que um côvado ou qualquer outra medida maior Por essa razão raramente ou nunca consideramos tal enumeração como cri tério de igualdade ou desigualdade 20 Quanto aos que imaginam que a extensão é divisível ao infinito estes não podem utilizar tal resposta nem determinar a igualdade de duas linhas ou superfícies por uma enumeração de suas partes com ponentes Pois uma vez que segundo sua hipótese tanto as figuras menores como as maiores contêm um número infinito de partes e uma vez que números infinitos propriamente falando não podem ser nem iguais nem desiguais entre si a igualdade ou a desigualdade entre duas porções quaisquer do espaço jamais pode depender da proporção entre o número de suas partes Podese bem dizer que a O termo em inglês standard pode significar tanto critério como padrão Nossa palavra critério tende a conotar uma operação mais ligada ao entendimento enquantopadrão remete à comparação sensível entre dois objetos Na maioria dos casos que ocorrem na Parte 2 do Livro 1 onde se dá a maior incidência desse termo Hume parece estar se referindo a critério mas isso nem sempre é claro já que em suas próprias palavras o critério último que nos permite determinar com precisão por exemplo se uma linha é uma reta ou uma curva deriva dos sentidos e da imaginação Se nos guiarmos porém pela distinção que ele próprio propõe no Apêndice p676 entre the accurate and exact standard e the inaccurate standard derived from a comparison of objects upon their general appearance teremos uma justificativa para traduzir o termo standard sempre por critério As únicas exceções estão nas páginas 167 linha 3 e 693 linha 1 7 onde me pareceu mais adequado o uso de padrão NT 72 Livro 1 Parte 2 Seção 4 desigualdade entre um côvado e uma jarda consiste na diferença entre os números de pés de que são compostos e a desigualdade entre um pé e uma jarda na diferença entre os números de polegadas Mas como a quantidade que chamamos de uma polegada em um caso é supostamente igual à que chamamos de uma polegada no outro e como é impossível para a mente encontrar tal igualdade prosseguindo ao infinito com essas referências a quantidades inferiores é evidente que ao final devemos fixar algum critério de igualdade que não seja uma enumeração das partes Há os que afirmam6 que a igualdade é mais bem definida pela congruência e que duas figuras são iguais quando ao colocarmos uma sobre a outra todas as suas partes se correspondem e se tocam mu tuamente A fim de julgar essa definição consideremos que como a igualdade é uma relação ela não é estritamente falando uma pro priedade contida nas figuras mesmas surgindo somente pela com paração que a mente faz entre elas Se portanto ela consiste nessa aplicação imaginária e nesse contato mútuo entre as partes devemos ao menos ter uma noção distinta dessas partes e devemos conceber seu contato Ora é claro que nessa concepção teríamos de reduzir essas partes à menor dimensão concebível pois o contato entre par tes grandes nunca tornaria essas figuras iguais Mas as menores partes que podemos conceber são justamente os pontos matemáticos e con seqüentemente esse critério de igualdade é o mesmo que aquele derivado da igualdade entre o número de pontos que já mostramos ser um critério correto porém inútil Devemos portanto buscar a solução da presente dificuldade em outro canto Há muitos filósofos que se recusam a apontar um critério de igualdade afirmando em vez disso que basta apresentar dois obje tos iguais para que tenhamos uma noção correta dessa proporção Sem a percepção dos objetos dizem eles qualquer definição é infrutí 6 Ver as conferências matemáticas do Dr Barrow Isaac Barrow 1 6301 677 Lectiones Mathematicre XI NT 73 Tratado da natureza humana fera e quando percebemos os objetos não temos mais necessidade de definições Concordo inteiramente com esse raciocínio e afirmo que a única noção útil de igualdade ou desigualdade deriva da apa rência una e global bem como da comparação entre objetos particu lares É evidente que o olho ou antes a mente é com freqüência capaz de determinar de uma só vez as proporções dos corpos declaran doos iguais maiores ou menores uns em relação aos outros sem ter de examinar ou comparar o número de suas partes diminutas Tais juízos não são apenas comuns mas em muitos casos são também certos e infalíveis Quando se apresentam as medidas de uma jarda e de um pé a mente não tem como questionar se a primeira é mais comprida que a segunda exatamente como não pode duvidar daque les princípios que são mais claros e autoevidentes 23 Existem portanto três proporções que a mente distingue na apa rência geral de seus objetos e que denomina maior menor e igual Mas embora suas conclusões acerca dessas proporções sejam às vezes infalíveis isso nem sempre é assim Nossos juízos nesses casos são tão passíveis de dúvidas e erros quanto os juízos acerca de qualquer outro assunto Freqüentemente corrigimos nossa primeira opinião mediante uma revisão e uma reflexão declarando serem iguais cer tos objetos que antes havíamos considerado desiguais ou vendo como menor um objeto que nos parecera maior que outro E essa não é a única correção experimentada por esses juízos de nossos sentidos É freqüente descobrirmos nosso erro por uma justaposi ção dos objetos ou quando isso é impraticável pela utilização de uma medida comum e invariável que aplicamos sucessivamente a cada um deles informandonos assim sobre suas diferentes propor ções E mesmo essa correção é suscetível de nova correção bem como de diferentes graus de exatidão segundo a natureza do instrumento que utilizamos para medir os corpos e o cuidado com que realizamos a comparação 24 Quando portanto a mente se habitua a esses juízos e a suas corre ções e descobre que a mesma proporção que faz com que duas figuras 74 Livro 1 Parte 2 Seção 4 tenham perante nossos olhos aquela aparência que chamamos de igualdade também faz que elas se correspondam uma à outra bem como a uma medida comum de comparação nós formamos uma noção mista de igualdade derivada ao mesmo tempo dos métodos mais frouxos e mais precisos de comparação Mas não nos conten tamos com isso Pois como a boa razão nos convence de que há cor pos imensamente menores que aqueles que aparecem aos sentidos e como uma falsa razão nos persuadiria de que há corpos infinitamente menores percebemos claramente que não possuímos nenhum ins trumento ou técnica de medição que pudesse nos resguardar de todo erro e incerteza Percebemos que o acréscimo ou a subtração de uma dessas partes minúsculas não é discernível nem pela aparência dos corpos nem pela medição E como imaginamos que duas figuras antes iguais não podem continuar iguais após essa subtração ou esse acréscimo fazemos a suposição de um critério imaginário de igual dade que possa corrigir com exatidão tanto as aparências desses cor pos como o procedimento de medição reduzindo inteiramente as fi guras a essa proporção Tal critério é claramente imaginário Porque como a própria idéia de igualdade é a de uma aparência particular corrigida por justaposição ou por uma medida comum a noção de qualquer correção além daquela para a qual possuímos instrumen tos ou uma técnica apropriada é uma mera ficção da mente tão inú til quanto incompreensível Entretanto embora esse critério seja so mente imaginário a ficção é muito natural Pois nada é mais usual para a mente que continuar com uma ação dessa maneira mesmo após ter deixado de existir a razão que originalmente a havia levado a começar Isso se mostra de maneira bastante conspícua no caso do tempo Aqui embora seja evidente que o método para determinar as Appearance no original Nos casos em que o sentido dessa palavra não é o de aparição ou aparecimento mantive a tradução literal aparência Devese entretanto notar que no texto humeano aparência não tem na maioria das vezes o sentido que ficou mais corrente entre nós ou seja de mera aparência podendo significar simplesmente aqui lo que aparece É o caso das diversas ocorrências deste parágrafo NT 75 Tratado da natureza humana proporções das partes é ainda menos exato que no caso da extensão as várias correções de nossas medidas e seus diferentes graus de exatidão nos deram uma noção obscura e implícita de uma igualdade perfeita e completa O mesmo se passa em muitas outras áreas Um músico que vê sua audição se tornar a cada dia mais refinada e que corrige a si próprio pela reflexão e atenção prolonga o mesmo ato da mente ainda que seu objeto lhe falte mantendo a noção de uma ter ça ou uma oitava completas sem ser capaz de dizer de onde extraiu seu critério Um pintor forma a mesma ficção a propósito das cores um mecânico a propósito do movimento Para um a luz e a sombra para o outro a rapidez e a lentidão são imaginados como passíveis de uma comparação e uma igualdade exatas e para além do julgamento dos sentidos 25 Podemos aplicar o mesmo raciocínio às curvas e retas Nada é mais evidente aos sentidos que a distinção entre uma linha curva e uma reta nem há idéia mais fácil de se formar que as idéias desses obje tos No entanto por mais facilmente que o façamos é impossível definilas de tal maneira que possamos fixar os limites precisos en tre elas Quando traçamos uma linha sobre um papel ou qualquer superfície contínua ela passa de um ponto a outro seguindo uma certa ordem e é assim que se produz a impressão global de uma curva ou uma reta Essa ordem porém nos é inteiramente desconhecida e a única coisa que se observa é a aparência como um todo Assim mes mo de acordo com o sistema dos pontos indivisíveis não podemos formar senão uma noção vaga de algum critério desconhecido para esses objetos De acordo com o sistema da divisibilidade infinita não chegamos sequer a isso ficamos restritos a adotar a aparência geral como a regra pela qual determinamos se as linhas são curvas ou re tas Mas embora não possamos dar uma definição perfeita dessas linhas nem produzir um método exato o bastante para distinguir Mechanic no original o que no contexto pode significar tanto um tipo específico de trabalhador por exemplo um que lida com máquinas e portanto com movimento quanto um físico especializado em mecânica NT 76 Livro 1 Parte 2 Seção 4 mos umas das outras isso não nos impede de corrigir a primeira apa rência por um exame mais preciso e pela comparação com alguma regra de cuja correção graças a testes repetidos estejamos mais se guros É por meio dessas correções e levando adiante a mesma ação da mente mesmo quando não temos mais uma razão para ela que formamos a vaga idéia de um critério perfeito para essas figuras sem que sejamos capazes de explicálo ou compreendêlo 26 É verdade que os matemáticos pretendem dar uma definição exata de uma reta quando dizem que é o caminho mais curto entre dois pontos Mas em primeiro lugar observo que isso é mais propriamente a des coberta de uma das propriedades da reta que uma definição precisa Pois pergunto se à menção de uma linha reta não pensamos imedia tamente nessa aparência particular e se não é apenas acidentalmen te que consideramos aquela propriedade Uma reta pode ser compreen dida por si só mas a definição em causa é ininteligível sem uma comparação da reta com outras linhas que concebemos como mais extensas Na vida corrente temse como uma máxima que o cami nho mais reto é sempre o mais curto o que seria tão absurdo como dizer que o caminho mais curto é sempre o mais curto se nossa idéia de uma linha reta não fosse diferente da idéia do caminho mais curto entre dois pontos 27 Em segundo lugar repito aquilo que já estabeleci que não temos nenhuma idéia mais precisa de igualdade ou desigualdade de mais curto ou mais longo do que a que temos de linha reta ou curva e que em conseqüência disso não podemos extrair das primeiras um critério perfeito para estas últimas Uma idéia precisa jamais pode ser construída com base em idéias vagas e indeterminadas 28 A idéia de uma superfície plana é tão pouco suscetível de um crité rio preciso quanto a de uma linha reta O único meio que temos de distinguir tal superfície é por sua aparência geral É inteiramente em vão que os matemáticos representam a superfície plana como pro duzida pelo deslocamento de uma reta Objetarseá imediatamente que nossa idéia de superfície é tão independente desse método de 77 Tratado da natureza humana formação de uma superfície quanto nossa idéia de uma elipse o é do método de formação de um cone que a idéia de uma reta não é mais precisa que a de um plano que uma reta pode se deslocar de modo irregular e assim formar uma figura bem diferente de um plano e que portanto vemonos obrigados a supor que ela se desloca ao longo de duas retas paralelas entre si e localizadas no mesmo plano Mas essa descrição é circular pois explica uma coisa por ela mesma 29 Vemos portanto que concebidas segundo nosso método usual as idéias mais essenciais à geometria a saber igualdade e desigual dade reta e plano estão longe de ser exatas e determinadas Não apenas somos incapazes de dizer no caso de haver algum grau de dúvida se tais figuras particulares são iguais se tal linha é uma reta ou tal superfície um plano tampouco somos capazes de formar uma idéia firme e invariável daquela proporção ou dessas figuras Temos de continuar recorrendo ao julgamento fraco e falível que produzi mos baseados na aparência dos objetos e que corrigimos por meio de um compasso ou uma medida comum E se supusermos que é possível fazer qualquer outra correção esta será uma correção inútil ou imaginária Seria vão recorrer ao lugarcomum evocando uma di vindade cuja onipotência lhe permitisse formar uma figura geomé trica perfeita e desenhar uma linha reta sem nenhuma curva ou inflexão Como o critério último para essas figuras não é derivado senão dos sentidos e da imaginação é absurdo falar de qualquer per feição que ultrapasse a capacidade de julgamento dessas faculdades Pois a verdadeira perfeição de algo consiste em sua conformidade com seu critério 30 Ora já que essas idéias são tão vagas e incertas eu gostaria que algum matemático me respondesse em que consiste sua segurança infalível não apenas acerca das proposições mais intricadas e obscu ras de sua ciência mas também acerca dos princípios mais vulgares e óbvios Como ele me provaria por exemplo que duas retas não po dem ter um segmento em comum Ou que é impossível traçar mais de uma reta entre dois pontos quaisquer Se me dissesse que tais opi 78 Livro 1 Parte 2 Seção 4 niões são obviamente absurdas e que contradizem nossas idéias cla ras eu responderia que não nego que quando a inclinação entre duas retas forma um ângulo perceptível é absurdo imaginar que elas pos suam um segmento comum Mas supondo que essas duas linhas se aproximem uma da outra na proporção de uma polegada a cada vinte léguas não vejo nenhum absurdo em afirmar que ao se encon trarem elas se tornam uma só Pois peçovos que me respondeis que regra ou critério norteia vosso juízo quando afirmais que a linha para a qual supus que elas convergem não pode formar uma só e mesma reta com aquelas duas que formam entre si um ângulo tão pequeno Certamente essa linha não concorda com vossa idéia de reta Quereis portanto dizer que seus pontos não seguem a mesma ordem e regra que é peculiar e essencial a uma reta Se for assim devo informar vos não apenas que ao julgar dessa maneira admitis que a exten são é composta de pontos indivisíveis o que talvez seja mais do que pretendeis como também que não é esse o critério de acordo com o qual formamos a idéia de uma reta Além disso mesmo que fosse esse o critério não existe uma tal firmeza em nossos sentidos ou imaginação que nos permita determinar quando essa ordem foi violada ou preservada O critério original de uma linha reta na rea lidade não passa de uma certa aparência geral E é evidente que se pode fazer que as retas coincidam e ainda assim correspondam a esse critério mesmo corrigido por todos os meios praticáveis ou ima gináveis 31 Para onde quer que se voltem os matemáticos encontram sem pre esse dilema Se julgam a igualdade ou qualquer outra proporção pelo critério preciso e exato a saber pela enumeração das diminutas partes indivisíveis eles estão ao mesmo tempo empregando um cri tério que na prática é inútil e provando de fato a indivisibilidade da extensão que tentavam demolir Ou então se empregam como é usual o critério aproximado derivado de uma comparação entre os objetos com base em sua aparência geral corrigida pela medição e justaposição seus primeiros princípios embora certos e infalíveis 79 Tratado da natureza humana são demasiadamente grosseiros para permitir inferências tão sutis como as que comumente deles se extraem Os primeiros princípios fundamentamse na imaginação e nos sentidos a conclusão por tanto jamais pode ultrapassar e menos ainda contradizer essas fa culdades 32 Isso pode abrirnos um pouco os olhos e nos fazer ver que ne nhuma demonstração geométrica da divisibilidade infinita da exten são pode ter a força que naturalmente atribuímos a todo argumento sustentado por pretensões tão grandiosas Ao mesmo tempo pode mos descobrir a razão pela qual a geometria carece de evidência nes se único ponto enquanto todos os seus outros raciocínios merecem nosso mais completo assentimento e aprovação De fato parece mais importante dar a razão dessa exceção que mostrar que nós realmen te devemos abrila e considerar como inteiramente sofísticos todos os argumentos matemáticos a favor da divisibilidade infinita Porque é evidente que uma vez que nenhuma idéia de quantidade é infinita mente divisível não se pode imaginar absurdo mais manifesto que a tentativa de provar que a própria quantidade admite tal divisão e proválo por meio de idéias que são diretamente opostas sob esse as pecto particular E assim como esse absurdo é em si mesmo evidente assim também não há argumento nele fundado que não traga consigo um novo absurdo e não envolva uma evidente contradição 33 Como exemplos posso citar os argumentos a favor da divisibili dade infinita derivados do ponto de contato Sei que não há um só ma temático que não se recusaria a ser julgado pelos diagramas que cons trói sobre o papel pois como eles próprios nos diriam tais diagramas são rascunhos imprecisos e só servem para facilitar a transmissão de certas idéias que são estas sim os verdadeiros fundamentos de todos os nossos raciocínios Estou perfeitamente de acordo com isso e pretendo basear a controvérsia apenas nessas idéias Sugiro portan to que nosso matemático forme com a maior precisão possível as idéias de um círculo e de uma reta e então lhe pergunto se ao con ceber o contato entre essas figuras ele consegue concebêlas tocan 80 Livro 1 Parte 2 Seção 5 dose apenas em um ponto matemático ou se tem necessariamente que imaginar que elas coincidem ao longo de um segmento Seja qual for sua opção ele se verá emaranhado em dificuldades equivalentes Se afirmar que ao traçar essas figuras em sua imaginação é capaz de imaginar que elas se tocam em apenas um ponto estará admitindo a possibilidade dessa idéia e conseqüentemente da própria coisa Se disser que ao conceber o contato dessas linhas deve fazêlas coinci dir estará reconhecendo a falácia das demonstrações geométricas quando aplicadas além de um certo grau de minúcia Porque é certo que suas demonstrações contra a coincidência entre um círculo e uma reta são desse tipo Em outras palavras nosso matemático é capaz de provar que uma idéia a de coincidência é incompatível com outras duas idéias de círculo e de reta ao mesmo tempo entretanto ele reconhece que essas idéias são inseparáveis Seção 5 Continuação do mesmo tema 1 Se for verdadeira a segunda parte de meu sistema a saber que a idéia de espaço ou extensão não é senão a idéia de pontos visíveis ou tan gíveis distribuídos segundo uma certa ordem seguese que não podemos formar nenhuma idéia de vácuo ou seja de um espaço onde não existe nada visível ou tangível Isso gera três objeções que examinarei con juntamente já que a resposta que darei a uma delas será uma conse qüência da que utilizarei para rebater as outras 2 Em primeiro lugar podese dizer que há séculos os homens dis cutem sobre o vácuo e o pleno sem conseguir chegar a uma conclu são definitiva E os filósofos ainda hoje acreditamse livres para to mar partido de um lado ou de outro ao sabor de sua fantasia Mas seja qual for o fundamento que possa ter uma controvérsia a respeito dessas coisas mesmas podese alegar que a própria discussão é de cisiva no que concerne à idéia em questão e é impossível que os homens tenham podido raciocinar há tanto tempo sobre um vácuo 8 1 Tratado da natureza humana fosse para negálo fosse para afirmálo sem ter uma noção daquilo que negavam ou afirmavam 3 Em segundo lugar mesmo que se conteste esse argumento a realidade ou ao menos a possibilidade da idéia de um vácuo poderia ser provada pelo seguinte raciocínio Toda idéia é possível se é uma conseqüência necessária e infalível de idéias possíveis Ora mesmo que aceitemos que o mundo presente é um pleno podemos facilmente concebêlo desprovido de movimento e com certeza se admitirá que essa idéia é possível Devese também admitir que é possível conce ber a aniquilação de uma parte qualquer da matéria pela onipotência divina enquanto as outras partes permanecem em repouso Porque como toda idéia distinguível é separável pela imaginação e como toda idéia separável pela imaginação pode ser concebida existindo separa damente é evidente que a existência de uma partícula de matéria implica tão pouco a existência de outra quanto o fato de um corpo possuir uma figura quadrada implica que todos os outros também a possuam Uma vez aceito isso pergunto agora qual o resultado da concorrência dessas duas idéias possíveis de repouso e de aniquila ção e o que devemos conceber que se segue à aniquilação de todo o ar e de toda a matéria sutil contida em um aposento supondose que as paredes permaneçam iguais sem nenhum movimento ou altera ção Alguns metafísicos respondem que uma vez que matéria e ex tensão são a mesma coisa a aniquilação de uma implica necessaria mente a da outra e não havendo agora qualquer distância entre as paredes do aposento essas paredes se tocam do mesmo modo que minha mão toca o papel que se encontra imediatamente à minha fren te Embora tal resposta seja bastante comum porém desafio esses metafísicos a conceberem a matéria segundo sua hipótese ou a ima ginar o chão e o teto juntamente com todos os lados opostos do aposento tocandose uns aos outros ao mesmo tempo em que perma necem em repouso e preservam a mesma posição Pois como é pos sível que as duas paredes que vão de norte a sul se toquem mutua mente enquanto também tocam os extremos opostos das duas outras 82 Livro 1 Parte 2 Seção 5 paredes que vão de leste a oeste E como é possível que o teto e o chão se encontrem estando separados pelas quatro paredes situa das em posição contrária Se alterarmos sua posição estaremos su pondo um movimento Se concebermos alguma coisa entre eles es taremos supondo que algo é criado Ao contrário se nos ativermos estritamente às duas idéias de repouso e aniquilação é evidente que a idéia delas resultante não será a de um contato entre as partes mas algo diferente que podemos concluir ser a idéia de um vácuo 4 A terceira objeção vai ainda mais longe afirmando que a idéia de um vácuo é não apenas real e possível mas também necessária e ine vitável Essa asserção se funda no movimento que observamos nos corpos e que segundo se afirma seria impossível e inconcebível sem um vácuo para onde um corpo deve se mover a fim de abrir caminho a outro Não me estenderei sobre essa objeção porque ela diz respei to sobretudo à filosofia da natureza que está fora de nossa esfera pre sente 5 Para responder a essas objeções sem correr o risco de iniciar uma discussão antes de ter compreendido perfeitamente o objeto da con trovérsia devemos examinar profundamente a questão consideran do a natureza e a origem de diversas idéias É evidente que a idéia de escuridão não é uma idéia positiva mas a mera negação da luz ou mais propriamente falando de objetos coloridos e visíveis Na total ausência de luz um homem dotado de visão por mais que olhe para todos os lados não recebe outra percepção que aquela mesma que um cego de nascença receberia e é certo que este último não possui nenhuma idéia de luz ou de escuridão A conclusão disso é que não é pela mera supressão dos objetos visíveis que recebemos a impres são de uma extensão sem matéria e que a idéia da escuridão total nunca poderia ser a mesma que a de um vácuo 6 Suponhamos agora um homem suspenso no ar sendo transpor tado suavemente por algum poder invisível É evidente que ele nada sente e que jamais obtém a idéia de extensão ou qualquer outra idéia partindo desse movimento invariável Mesmo supondo que mova suas 83 Tratado da natureza humana pernas para a frente e para trás isso não poderia lhe transmitir tal idéia Nesse caso ele teria alguma sensação ou impressão cujas partes sucedendose umas às outras poderiam lhe dar a idéia de tempo mas certamente essas partes não estariam dispostas da maneira necessária para lhe transmitir a idéia de espaço ou extensão 7 Vemos assim que a escuridão e o movimento quando há total supressão de todo objeto visível e tangível nunca poderiam nos dar a idéia da extensão sem matéria ou seja de um vácuo A próxima questão é pois se poderiam nos transmitir essa idéia quando mistu rados a algo visível e tangível 8 Os filósofos comumente admitem que todos os corpos que se mostram à visão aparecem como se estivessem pintados sobre uma superfície plana e que seus diferentes graus de afastamento em re lação a nós são descobertos mais pela razão que pelos sentidos Quan do ergo minha mão espalmada os dedos se mostram separados pela cor azul do firmamento de maneira tão perfeita quanto o seriam por qualquer objeto visível que eu pudesse inserir entre eles Portanto para saber se a visão é capaz de transmitir a impressão e a idéia de um vácuo temos de supor que em meio a uma total escuridão apre sentamse a nós corpos luminosos cuja luz revela apenas eles mes mos sem nos dar nenhuma impressão dos objetos circundantes 9 Devemos fazer uma suposição análoga a respeito dos objetos de nosso tato Não convém supor a eliminação completa de todos os objetos tangíveis devemos admitir que alguma coisa é percebida pelo tato e que após um intervalo e um movimento da mão ou de algum outro órgão da sensação um outro objeto tangível é encontrado e largandose este um outro e assim por diante tão freqüentemente quanto se queira A questão é se esses intervalos não nos proporcio nam a idéia da extensão sem nenhum corpo 10 Começando com o primeiro caso é evidente que quando ape nas dois objetos luminosos aparecem à visão podemos perceber se eles estão juntos ou separados se estão separados por uma distância 84 Livro 1 Parte 2 Seção 5 pequena ou grande e quando essa distância varia podemos perce ber seu aumento ou sua diminuição juntamente com o movimen to dos corpos Mas como neste caso a distância não é algo colorido ou visível podese pensar que existe aqui um vácuo ou extensão pura não apenas inteligível à mente mas evidente para os próprios sentidos 1 1 Esse é nosso modo mais natural e familiar de pensar mas uma pequena reflexão nos ensinará a corrigilo Podemos observar que quando dois objetos se apresentam lá onde antes havia uma total es curidão a única mudança que se pode descobrir está na aparição des ses dois objetos todo o resto continua como antes uma perfeita negação da luz e de todo objeto colorido ou visível Isso vale não ape nas para aquilo que se pode considerar distante desses corpos mas para a própria distância entre eles e esta não é senão a escuridão ou negação da luz sem partes sem composição invariável e in divisível Ora uma vez que essa distância não causa nenhuma per cepção diferente daquela que um cego recebe de seus olhos ou da quela que nos é transmitida na mais escura noite ela deve partilhar das mesmas propriedades E como a cegueira e a escuridão não nos proporcionam nenhuma idéia de extensão é impossível que a dis tância obscura e indistinguível entre dois corpos possa jamais pro duzir tal idéia 12 A única diferença entre uma escuridão absoluta e a aparição de dois ou mais objetos luminosos e visíveis consiste como disse an tes nos próprios objetos e na maneira como afetam nossos sentidos Os ângulos que os raios de luz emanados desses objetos formam entre si o movimento necessário ao olho para passar de um a outro e as diferentes partes dos órgãos por eles afetados isso é o que pro duz as únicas percepções que nos permitem julgar acerca da distân cia Como cada uma dessas percepções é simples e indivisível po rém elas nunca poderão nos dar a idéia de extensão Ver Apêndice p674 85 Tratado da natureza humana 13 Isso pode ser ilustrado considerandose o sentido do tato e a dis tância ou intervalo imaginário interposto entre objetos tangíveis ou sólidos Suponho dois casos o de um homem suspenso no ar e que movimenta suas pernas para a frente e para trás sem encontrar ne nhuma coisa tangível e o de um homem que sente alguma coisa tan gível largaa e após um movimento ao qual é sensível percebe ou tro objeto tangível Pergunto então em que consiste a diferença entre esses dois casos Ninguém hesitará em afirmar que ela consiste me ramente na percepção desses objetos e que a sensação originada do movimento é a mesma nos dois casos E assim como essa sensação é incapaz de nos transmitir uma idéia de extensão quando não vem acompanhada de alguma outra percepção ela tampouco pode nos dar essa idéia quando misturada às impressões de objetos tangíveis uma vez que essa mistura não produz nela nenhuma alteração 14 Mas embora nem o movimento nem a escuridão quer quando isolados quer quando acompanhados de objetos tangíveis e visíveis possam nos transmitir qualquer idéia de um vácuo ou de uma exten são sem matéria eles são as causas que nos levam a imaginar fàlsa mente que somos capazes de formar tal idéia Pois existe uma rela ção estreita entre de um lado tal movimento e escuridão e de outro uma extensão real ou composição de objetos visíveis e tangíveis 15 Primeiramente podemos observar que dois objetos visíveis que aparecem em meio a uma total escuridão afetam os sentidos da mes ma maneira e os ângulos dos raios que deles emanam e se encon tram no olho formam o mesmo ângulo que formariam se a distância entre eles estivesse preenchida por objetos visíveis que nos propor cionassem urna verdadeira idéia de extensão A sensação do movimento também é a mesma seja quando não há nada tangível interposto entre os dois corpos seja quando sentimos um corpo composto cujas dife rentes partes estão dispostas urnas ao lado das outras 16 Em segundo lugar descobrimos pela experiência que dois cor pos situados de forma a afetar os sentidos da mesma maneira que 86 Livro 1 Parte 2 Seção 5 outros dois corpos entre os quais existe uma certa extensão de obje tos visíveis são capazes de receber a mesma extensão de objetos sem sofrer nenhum impacto impulse ou penetração sensível e sem que haja nenhuma alteração no ângulo com que aparecem aos sentidos De modo semelhante sempre que para tocarmos um objeto após ou tro for necessário um intervalo entre eles e a percepção dessa sen sação que chamamos movimento de nossa mão ou órgão do tato a experiência nos mostra que os mesmos objetos podem ser tocados com a mesma sensação de movimento quando esta se acompanha da impressão interposta de objetos sólidos e tangíveis Em outras palavras uma distância invisível e intangível pode se tornar uma dis tância visível e tangível sem nenhuma mudança nos objetos distantes 17 Em terceiro lugar podemos observar outra relação entre esses dois tipos de distância a saber que elas têm quase o mesmo efeito sobre todos os fenômenos naturais Uma vez que todas as qualida des como calor frio luz atração etc diminuem proporcionalmente a distância não se pode observar quase nenhuma diferença entre os casos em que essa distância é indicada por objetos compostos e sen síveis e aqueles em que ela é conhecida apenas pela maneira como os objetos distantes afetam os sentidos 18 Eis aqui portanto três relações entre aquela distância que trans mite a idéia de extensão e essa outra que não é preenchida por ne nhum objeto colorido ou sólido Os objetos distantes afetam os sen tidos da mesma maneira não importando qual das duas distâncias os separa A segunda espécie de distância se mostra capaz de aco lher a primeira e ambas diminuem igualmente a força de todas as qualidades 19 Essas relações entre os dois tipos de distância nos proporcionam uma razão simples para explicar por que as duas têm sido tão fre qüentemente confundidas uma com a outra e por que imaginamos ter uma idéia de extensão mesmo sem a idéia de um objeto qualquer da visão ou do tato De fato podemos estabelecer como uma máxi ma geral nessa ciência da natureza humana que sempre que há uma 87 Tratado da natureza humana relação estreita entre duas idéias a mente apresenta uma forte ten dência a confundilas e a usar uma em lugar da outra em todos os seus discursos e raciocínios Esse fenômeno ocorre em tantas oca siões e tem conseqüências tão consideráveis que não posso deixar de parar um momento para examinar suas causas Minha única pre missa será que devemos distinguir exatamente entre o próprio fenô meno e as causas que a ele atribuirei e qualquer incerteza que possa existir nessas causas não nos deve fazer imaginar que o fenômeno seja igualmente incerto O fenômeno pode ser real mesmo que mi nha explicação seja quimérica A falsidade daquele não é conseqüên cia da falsidade desta embora ao mesmo tempo possamos observar que é muito natural extrairmos tal conseqüência o que aliás é um exemplo manifesto do próprio princípio que tento explicar 20 Quando admiti as relações de semelhança contigüidade e causalida de como princípios de união entre idéias sem examinar suas causas foi antes para seguir minha primeira máxima de que devemos em última instância nos contentar com a experiência que pela falta de alguma coisa especiosa e plausível que eu pudesse ter apresentado sobre esse tema Teria sido fácil fazer uma dissecção imaginária do cérebro e mostrar por que ao concebermos determinada idéia os espíritos animais se espalham por todas as vias contíguas desper tando as outras idéias relacionadas à primeira Entretanto embora eu tenha desprezado qualquer vantagem que teria podido extrair des sas considerações para explicar as relações de idéias receio que devo aqui recorrer a elas a fim de dar conta dos erros provenientes dessas relações Observarei portanto que como a mente é dotada do poder de despertar qualquer idéia que lhe aprouver quando ela envia os espíritos animais para a região do cérebro em que está localizada tal idéia esses espíritos sempre a despertam penetrando precisamente nas vias apropriadas e vasculhando o compartimento a ela pertencen te Mas o movimento dos espíritos animais raramente é direto ao contrário ele se desvia naturalmente um pouco para um lado ou para outro Por essa razão ao penetrarem nas vias contíguas os espíritos 88 apresentam outras idéias relacionadas em lugar daquela que a mente de início desejava considerar Nem sempre percebemos essa troca Continuamos com a mesma cadeia de pensamentos e fazemos uso da idéia relacionada que se nos apresenta empregandoa em nosso raciocínio como se fosse a mesma que aquela que buscávamos Essa é a causa de tantos erros e sofismas presentes na filosofia como se poderia naturalmente imaginar e como seria fácil mostrar se houvesse ocasião para tal Das três relações acima mencionadas a de semelhança é a fonte mais fértil de erros De fato poucos são os erros presentes nos raciocínios que não se devem em grande parte a essa origem Não apenas as idéias semelhantes são relacionadas como também as ações mentais que realizamos para considerar cada uma delas diferem tão pouco umas das outras que não somos capazes de as distinguir Esta última circunstância tem conseqüências importantes Podemos observar em geral que sempre que as ações da mente pelas quais formamos duas idéias quaisquer são iguais ou semelhantes temos uma forte tendência a confundir tais idéias tomando uma pela outra Veremos vários exemplos disso no decorrer deste tratado Entretanto embora a semelhança seja a relação que mais facilmente produz um equívoco nas idéias as outras relações de contigüidade e causalidade podem igualmente contribuir para esse mesmo efeito Poderíamos apresentar as figuras poéticas e retóricas como provas suficientes do que acaba de ser mencionado se fosse tão comum como é razoável nas questões metafísicas extrair nossos argumentos desse domínio Mas como os metafísicos talvez considerem tal procedimento abaixo de sua dignidade extrairei minha prova de algo que pode ser observado na maioria de seus discursos a saber que é muito comum que os homens utilizem palavras em lugar de idéias e em seus raciocínios falem ao invés de pensar Utilizamos palavras em lugar de idéias porque elas normalmente estão conectadas de forma tão estreita que a mente as confunde com facilidade E essa também é a razão de utilizarmos a idéia de uma distância que não é considerada nem como Tratado da natureza humana visível nem tangível em lugar da extensão que não é mais que uma composição de pontos visíveis ou tangíveis dispostos em uma certa ordem As relações de semelhança e de causalidade concorrem para causar esse erro Como a primeira espécie de distância se mostra con versível na segunda ela constitui nesse sentido uma espécie de cau sa e a similaridade da maneira como as duas afetam os sentidos e diminuem todas as qualidades forma a relação de semelhança 22 Com essa série de raciocínios e explicações de meus princípios estou agora preparado para responder a todas as objeções que me foram apresentadas sejam elas derivadas da metafísica ou da mecâni ca A freqüência das discussões acerca de um vácuo ou extensão sem matéria não prova a realidade da idéia sobre a qual se discute Pois nada é mais comum que ver os homens enganarem a si mesmos sobre esse ponto especialmente quando se apresenta uma outra idéia es treitamente relacionada capaz de ocasionar seu erro 23 Podemos dar uma resposta quase igual à segunda objeção deri vada da conjunção das idéias de repouso e aniquilação Quando to das as coisas dentro do aposento são aniquiladas e as paredes conti nuam imóveis o aposento deve ser concebido de uma maneira muito próxima à maneira como é concebido agora quando o ar que o preen che não é um objeto dos sentidos Essa aniquilação deixa aos olhos a distância fictícia revelada pelas diferentes partes desse órgão que são afetadas e pelos graus de luz e sombra e deixa ao tato aquela outra distância que consiste na sensação de um movimento na mão ou em outro membro do corpo Em vão buscaríamos algo além disso De qualquer lado que examinemos este assunto veremos que essas são as únicas impressões que tal objeto é capaz de produzir após a su posta aniquilação E já observamos que as impressões só podem ori ginar idéias que a elas se assemelhem 24 Uma vez que se pode supor que um corpo interposto entre dois outros seja aniquilado sem produzir nenhuma mudança nos que o ladeiam é fácil conceber como esse mesmo corpo pode ser recriado produzindo tão pouca alteração como no caso anterior Ora o mo 90 Livro 1 Parte 2 Seção 5 vimento de um corpo tem quase o mesmo efeito que sua criação Os corpos distantes não são mais afetados em um caso que no outro Isso é suficiente para satisfazer a imaginação provando que não há incompatibilidade nesse movimento Posteriormente entra em jogo a experiência persuadindonos de que dois corpos situados da ma neira acima descrita têm realmente uma tal capacidade de acolher al gum corpo entre eles e que não há obstáculo à conversão da distân cia invisível e intangível em uma distância visível e tangível Por mais natural que possa parecer essa conversão só podemos ter certeza de que é factível depois de ter tido experiência dela 25 Pareceme que com isso respondi às três objeções menciona das embora ao mesmo tempo eu tenha consciência de que poucos ficarão satisfeitos com essas respostas e que novas objeções e difi culdades serão imediatamente propostas Dirseá provavelmente que meu raciocínio é irrelevante e que eu explico somente a maneira como os objetos afetam os sentidos sem dar conta de sua natureza e ope rações reais Ainda que não haja nada visível ou tangível interposto entre dois corpos vemos pela experiência que esses corpos podem es tar situados da mesma maneira em relação ao olho e exigir que a mão faça o mesmo movimento para passar de um a outro como se esti vessem separados por algo visível e tangível A experiência também mostra que essa distância invisível e intangível possui a capacidade de acolher algum corpo ou seja de se tornar visível e tangível Essa seria a totalidade de meu sistema E em nenhuma parte dele teria eu expli cado a causa que separa os corpos dessa maneira dandolhes a ca pacidade de acolher outros corpos entre eles sem sofrer nenhum impacto ou penetração 26 Respondo a essa objeção confessandome culpado e admitindo que minha intenção nunca foi penetrar na natureza dos corpos ou explicar as causas secretas de suas operações Além de isso estar fora de meu propósito presente receio que tal empresa ultrapasse o al cance do entendimento humano e que nunca poderemos conhecer os corpos senão por meio das propriedades externas que se mostram 9 1 Tratado da natureza humana aos sentidos Quanto àqueles que tentam algo além disso não pode rei lhes dar crédito até ver que tiveram sucesso em pelo menos um caso No momento contentome em conhecer perfeitamente a ma neira como os objetos afetam meus sentidos e as conexões que eles mantêm entre si até onde a experiência disso me informa Esse co nhecimento basta para a condução da vida e basta também para mi nha filosofia que pretende explicar tãosomente a natureza e as cau sas de nossas percepções ou seja de nossas impressões e idéias 27 Concluirei esse tema da extensão com um paradoxo que será facilmente explicado com base no raciocínio anterior O paradoxo con siste em que se quisermos dar à distância invisível e intangível ou em outras palavras à capacidade de se tornar uma distância visível e tangível o nome de vácuo então extensão e matéria são a mesma coisa e entretanto existe o vácuo Se não quisermos darlhe tal nome o movimento é possível no pleno sem nenhum impacto transmitido ao infinito sem retornar em círculos e sem penetração Porém como quer que nos expressemos devemos sempre confessar que não possuímos nenhuma idéia de uma extensão real se não a preenche mos com objetos sensíveis e se não concebemos suas partes como visíveis e tangíveis 28 Quanto à doutrina de que o tempo não é senão a maneira pela qual certos objetos reais existem podemos observar que ela está su jeita às mesmas objeções que a doutrina similar a respeito da exten são Se o fato de discutirmos e raciocinarmos acerca de um vácuo fosse uma prova suficiente de que temos essa idéia então pela mes ma razão deveríamos ter uma idéia de tempo ainda que na ausência de qualquer existência mutável pois não há objeto de discussão mais freqüente e comum Entretanto é certo que não temos realmente tal idéia Pois de onde ela seria derivada Surgiria ela de uma impressão de sensação ou de reflexão Mostrainos distintamente essa impres Ver Apêndice p676 92 Livro 1 Parte 2 Seção 6 são para que possamos conhecer sua natureza e suas qualidades Mas se não fordes capazes de nos mostrar uma tal impressão podeis estar certos de vosso engano quando imaginais possuir uma tal idéia 29 De todo modo mesmo que seja impossível mostrar a impressão de que deriva a idéia de um tempo sem existência mutável podemos facilmente apontar as aparências que nos fazem imaginar que temos essa idéia Podemos observar que existe uma sucessão contínua de percepções em nossa mente de modo que a idéia de tempo está sem pre presente em nós E quando consideramos um objeto estável às cinco horas e voltamos a olhálo às seis tendemos a aplicar a ele essa idéia como se cada momento fosse distinguível por uma posição di ferente ou por uma alteração no objeto A primeira e a segunda apa rições do objeto ao serem comparadas com a sucessão de nossas per cepções parecem tão afastadas entre si como se o objeto houvesse iealmente mudado A isso podemos acrescentar algo que nos é mos trado pela experiência a saber que o objeto poderia ter sofrido um tal número de alterações entre essas aparições como também que a duração imutável ou antes fictícia tem o mesmo efeito sobre todas as qualidades aumentandoas ou diminuindoas que aquela sucessão que é evidente para os sentidos É em razão dessas três relações que tendemos a confundir nossas idéias imaginando que somos capa zes de formar a idéia de um tempo e de uma duração sem nenhuma mudança ou sucessão Seção 6 Da idéia de existência e de existência externa 1 Antes de passarmos a outro tema talvez não seja fora de propó sito explicar as idéias de existência e de existência externa que assim como as de espaço e de tempo apresentam suas dificuldades próprias Desse modo e uma vez que tenhamos compreendido perfeitamente Ver nossa nota à p 139 NT 93 todas as idéias particulares que podem entrar em nossos raciocínios estaremos mais bem preparados para examinar o conhecimento e a probabilidade Não há impressão ou idéia de nenhum tipo da qual tenhamos alguma consciência ou memória que não seja concebida como existente E é evidente que é dessa consciência que deriva a mais perfeita idéia e a certeza do ser Com base nisso podemos formular uma alternativa a mais clara e conclusiva que se pode imaginar já que nunca nos lembramos de nenhuma idéia ou impressão sem atribuir a ela uma existência a idéia de existência deve ou bem ser derivada de uma impressão distinta em conjunção com cada percepção ou objeto de nosso pensamento ou então ser exatamente a mesma que a idéia da percepção ou objeto Esse dilema é uma conseqüência evidente do princípio de que toda idéia procede de uma impressão similar e por isso também não resta dúvida sobre qual das duas proposições do dilema escolheremos Como não penso que existam duas impressões distintas que sejam inseparavelmente conjugadas assim também estou longe de admitir que haja uma impressão distinta acompanhando cada idéia e cada impressão Embora certas sensações possam estar unidas em determinado momento nós rapidamente descobrimos que elas admitem uma separação e podem se apresentar separadamente Assim embora toda impressão e idéia de que nos recordamos seja considerada como existente a idéia de existência não é derivada de nenhuma impressão particular A idéia de existência portanto é exatamente a mesma que a idéia daquilo que concebemos como existente A simples reflexão sobre uma coisa em nada difere da reflexão sobre essa coisa enquanto existente A idéia de existência quando conjugada com a idéia de um objeto não acrescenta nada a esta Tudo que concebemos concebemos como existente Qualquer idéia que quisermos formar será a idéia de um ser e a idéia de um ser será qualquer idéia que quisermos formar Livro 1 Parte 2 Seção 6 5 Quem se opuser a isso deverá necessariamente apontar a impres são distinta de que deriva a idéia de entidade e provar que essa im pressão é inseparável de toda percepção que acreditamos ser existente Mas podemos concluir sem hesitar que isso é impossível 6 Nosso raciocínio anterior7 a respeito da distinção de idéias na au sência de uma diferença real não nos servirá aqui de forma alguma Esse tipo de distinção se baseia nas diferentes semelhanças que a mesma idéia simples pode ter com várias idéias diferentes Mas não se pode apresentar nenhum objeto que se assemelhe a um segundo objeto no que concerne à sua existência e que seja diferente de ou tros no que concerne a esse mesmo ponto pois todo objeto que se nos apresenta deve necessariamente existir 7 Um raciocínio semelhante dará conta da idéia de existência exter na Podemos observar que todos os filósofos admitem e aliás é bas tante óbvio por si só que nada jamais está presente à mente além de suas percepções isto é suas impressões e idéias e que só conhece mos os objetos externos pelas percepções que eles ocasionam Odiar amar pensar sentir ver tudo isso não é senão perceber 8 Ora como nada jamais está presente à mente além das percep ções e como todas as idéias são derivadas de algo anteriormente pre sente à mente seguese que nos é impossível sequer conceber ou for mar uma idéia de alguma coisa especificamente diferente de idéias e impressões Dirijamos nossa atenção para fora de nós mesmos tan to quanto possível lancemos nossa imaginação até os céus ou até os limites extremos do universo Na realidade jamais avançamos um passo sequer além de nós mesmos nem somos capazes de conceber um tipo de existência diferente das percepções que apareceram den tro desses estreitos limites Tal é o universo da imaginação e não possuímos nenhuma idéia senão as que ali se produzem 9 O mais longe que podemos chegar no que diz respeito à concep ção de objetos externos quando se os supõe especificamente diferen 7 Parte 1 Seção 7 95 Tratado da natureza humana tes de nossas percepções é formar deles uma idéia relativa sem pre tender compreender os objetos relacionados Falando de um modo geral nós não supomos que sejam especificamente diferentes ape nas atribuímos a eles relações conexões e durações diferentes Mas trataremos disso de maneira mais completa um pouco adiante 8 8 Parte 4 Seção 2 96 Seção 1 Do conhecimento Parte 3 Do conhecimento e da probabilidade Existem 1 sete tipos diferentes de relação filosófica semelhança identidade relações de tempo e espaço proporção de quantidade ou núme ro graus de qualidade contrariedade e causalidade Essas relações po dem ser divididas em duas classes as que dependem inteiramente das idéias comparadas e as que podem se transformar sem que haja nenhuma transformação nas idéias É partindo da idéia de um triân gulo que descobrimos a relação de igualdade que existe entre seus três ângulos e dois retos e essa relação fica invariável enquanto nossa idéia permanece a mesma Ao contrário as relações de contigüidade e distância entre dois objetos podem se alterar por uma mera alteração de seus lugares sem nenhuma mudança nos próprios objetos ou em suas idéias e o lugar depende de centenas de acidentes diferentes que não podem ser previstos pela mente O mesmo se passa com a 1 Parte 1 Seção 5 9 7 Tratado da natureza humana identidade e a causalidade Dois objetos ainda que perfeitamente se melhantes um ao outro e ainda que apareçam no mesmo lugar em momentos diferentes podem ser numericamente diferentes E como o poder pelo qual um objeto produz outro jamais pode ser descober to apenas por meio de suas idéias é evidente que só podemos conhe cer as relações de causa e efeito pela experiência e não por algum ra ciocínio ou reflexão abstratos Não há um só fenômeno por mais simples que seja que possa ser explicado pelas qualidades dos obje tos tais como estas aparecem a nós ou que pudéssemos prever sem a ajuda de nossa memória e experiência 2 Vêse portanto que dessas sete relações filosóficas apenas qua tro por dependerem unicamente das idéias podem ser objetos de co nhecimento e certeza Essas quatro relações são semelhança contrarie dade graus de qualidade e proporções de quantidade ou número Três dessas quatro relações podem ser descobertas à primeira vista e per tencem mais propriamente ao domínio da intuição que ao da demons tração Quando dois objetos ou mais se assemelham a semelhança logo salta aos olhos ou antes à mente e quase nunca requer um novo exame O mesmo se dá com a contrariedade e com os graus de uma qualidade Ninguém jamais poderia duvidar que a existência e a não existência destróemse uma à outra sendo absolutamente incompa tíveis e contrárias E embora seja impossível formar um juízo exato acerca dos graus de uma qualidade qualquer como cor sabor calor ou frio quando a diferença entre esses graus é muito pequena é fá cil decidir qual deles é superior ou inferior ao outro quando sua dife rença é considerável E tal decisão é sempre tomada à primeira vista sem necessitar de nenhuma investigação ou raciocínio 3 Poderíamos proceder da mesma maneira para determinar as pro porções de quantidade ou de número percebendo de um só olhar uma superioridade ou inferioridade entre dois números ou figuras quais quer sobretudo quando a diferença é muito grande e evidente Quan to à igualdade ou qualquer proporção exata podemos apenas estimá la quando de uma primeira consideração exceto no caso de números 9 8 Livro 1 Parte 3 Seção 1 muito pequenos ou de porções muito limitadas de extensão que apreen demos imediatamente e em relação aos quais percebemos ser impos sível cometer um erro considerável Em todos os demais casos de vemos estabelecer as proporções com alguma liberdade ou proceder de maneira mais artificial 4 Já observei que a geometria arte pela qual determinamos as pro porções das figuras embora seja muito superior em universalidade e exatidão aos juízos imprecisos dos sentidos e da imaginação nun ca chega a atingir uma total precisão e exatidão Seus primeiros prin cípios são sempre extraídos da aparência geral dos objetos e essa aparência jamais pode nos proporcionar uma segurança quando se trata de examinar a prodigiosa minúcia de que a natureza é capaz Nossas idéias parecem nos dar uma total certeza de que duas retas não podem ter um segmento em comum Se examinarmos essas idéias porém veremos que elas sempre supõem uma inclinação sensível das duas linhas e que quando o ângulo formado por elas é extrema mente pequeno não possuímos nenhum critério de reta que seja tão preciso a ponto de nos assegurar da verdade dessa proposição O mes mo se aplica à maior parte dos juízos fundamentais da matemática 5 Restam portanto a álgebra e a aritmética como as únicas ciên cias em que podemos elevar uma série de raciocínios a qualquer ní vel de complexidade e ainda assim preservar uma perfeita exatidão e certeza Aqui estamos de posse de um critério preciso que nos per mite julgar acerca da igualdade e proporção dos números E con forme esses números correspondam ou não a tal critério determi namos suas relações sem possibilidade de erro Quando dois números se relacionam de tal forma que cada unidade de um cor responde sempre a uma unidade do outro afirmamos que eles são iguais É por falta de um critério de igualdade semelhante aplicável à extensão que a geometria dificilmente pode ser considerada uma ciên cia perfeita e infalível 6 Mas talvez não seja fora de propósito afastar aqui uma dificuldade que pode surgir de minha afirmação de que embora a geometria careça 9 9 Seção 9 Dos efeitos de outras relações e outros hábitos Por mais convincentes que possam parecer os argumentos anteriores não devemos nos contentar com eles Devemos examinar a questão de todos os lados a fim de encontrar novos pontos de vista que possam ilustrar e confirmar princípios tão extraordinários e fundamentais Uma cuidadosa hesitação perante qualquer hipótese nova é uma disposição tão louvável nos filósofos e tão necessária ao exame da verdade que merece nossa adesão exigindo que apresentemos a eles todos os argumentos capazes de lhes satisfazer como também que afastemos qualquer objeção que lhes perturbe o raciocínio Observei várias vezes que além da causa e efeito as relações de semelhança e contigüidade devem ser consideradas como princípios de associação do pensamento e capazes de conduzir a imaginação de uma idéia a outra Também observei que quando dois objetos estão conectados por uma dessas relações e um deles está imediatamente presente à memória ou aos sentidos a mente não apenas é levada a seu correlato pelo princípio de associação mas além disso concebeo com uma força e um vigor adicionais graças à ação conjunta desse princípio e da impressão presente Tudo isso observei com o intuito de confirmar por analogia minha explicação de nossos juízos a respeito das causas e efeitos Mas esse mesmo argumento pode talvez voltarse contra mim e em lugar de confirmar minha hipótese tornarse uma objeção a ela Pois podese dizer que se todas as partes dessa hipótese forem verdadeiras a saber que essas três espécies de relações são derivadas dos mesmos princípios que todas têm o mesmo efeito de reforçar e avivar nossas idéias e que a crença não é senão uma concepção mais imperativa e vívida de uma idéia devese seguir daí que essa ação mental pode ser derivada não somente da relação de causa e efeito mas também das de contigüidade e semelhança Mas como descobrimos pela experiência que a crença surge exclusivamente da causalidade e que não somos capazes de Tratado da natureza humana daquela precisão e certeza peculiares à aritmética e à álgebra ela supe ra os juízos imperfeitos de nossos sentidos e imaginação A razão que me leva a atribuir alguma deficiência à geometria é que seus princípios originais e fundamentais são derivados meramente das aparências E talvez se imagine que tal deficiência deva para sempre acompanhála impedindo que essa ciência possa jamais atingir uma maior exatidão na comparação entre os objetos ou idéias que aquela que nossos olhos ou imaginação sozinhos são capazes de alcançar Reconheço que essa deficiência marca a geometria a ponto de impedila de jamais aspirar a uma certeza completa Mas como seus princípios fundamentais de pendem daquelas aparências que são mais fáceis e menos enganosas eles conferem às suas conseqüências um grau de exatidão que essas conseqüências por si sós são incapazes de atingir É impossível ao olho determinar que os ângulos de um quiliágono são iguais a 1996 ângu los retos ou fazer qualquer conjetura que se aproxime de tais propor ções Mas quando determina que duas retas não podem coincidir ou que não podemos traçar mais de uma reta entre dois pontos dados seus erros nunca são muito significativos Essa é a natureza e a fun ção da geometria a saber conduzirnos a aparências tais que em razão de sua simplicidade não podem nos levar a cometer nenhum erro muito considerável 7 Aproveitarei aqui a ocasião para propor uma segunda observação a respeito de nossos raciocínios demonstrativos sugerida pelo mes mo tema da matemática É comum os matemáticos afirmarem que as idéias de que se ocupam possuem uma natureza tão refinada e espiri tual que não podem ser concebidas pela fantasia devendo antes ser compreendidas por uma visão pura e intelectual acessível apenas às faculdades superiores da alma Tal concepção perpassa quase todas as partes da filosofia sendo utilizada sobretudo para explicar nossas idéias abstratas e para mostrar como podemos formar a idéia de um triân gulo por exemplo que não seja nem isósceles nem escaleno e tam pouco seja restrito a um comprimento ou proporção particular entre seus lados É fácil ver por que os filósofos gostam tanto dessa noção 1 00 Livro 1 Parte 3 Seção 2 de algumas percepções espirituais e refinadas é que assim eles enco brem vários de seus absurdos e podem se recusar a aceitar as resolu ções impostas pelas idéias claras recorrendo em lugar destas a idéias obscuras e incertas Para destruir esse artifício porém bastanos re fletir acerca daquele princípio sobre o qual insistimos com tanta fre qüência que todas as nossas idéias são copiadas de nossas impressões Dele podemos imediatamente concluir que uma vez que todas as impres sões são claras e precisas as idéias que são delas copiadas devem ter essa mesma natureza e só por uma falha de nossa parte poderiam conter algo tão obscuro e intricado Uma idéia por sua própria natu reza é mais fraca e pálida que uma impressão Mas sendo igual a ela em todos os demais aspectos não pode conter grandes mistérios Se sua fraqueza a torna obscura cabe a nós remediar tal defeito tanto quan to possível mantendo a idéia firme e precisa Enquanto não o fizer mos é vão pretender raciocinar e filosofar Seção 2 Da probabilidade e da idéia de causa e efeito 1 Isso é tudo que penso ser necessário observar a respeito das qua tro relações que constituem o fundamento da ciência Quanto às ou tras três que não dependem da idéia e podem estar presentes ou au sentes enquanto aquela permanece a mesma cabe explicálas mais detalhadamente Essas três relações são identidade situações no tempo e no espaço e causalidade 2 Todos os tipos de raciocínio consistem apenas em uma compara ção e uma descoberta das relações constantes ou inconstantes en tre dois ou mais objetos Essa comparação pode ser feita quando ambos os objetos estão presentes aos sentidos ou quando nenhum dos dois está presente ou ainda quando apenas um está Quando ambos os objetos estão presentes aos sentidos juntamente com a relação cha mamos a isso antes de percepção que de raciocínio pois neste caso não há propriamente falando um exercício do pensamento e tam pouco uma ação mas uma mera admissão passiva das impressões 1 0 1 Tratado da natureza humana pelos órgãos da sensação De acordo com esse modo de pensar não deveríamos considerar como raciocínio nenhuma das observações que se podem fazer a respeito da identidade e das relações de tempo e espaço Em nenhuma delas a mente é capaz de ir além daquilo que está imediatamente presente aos sentidos para descobrir seja a exis tência real seja as relações dos objetos Apenas a causalidade produz uma conexão capaz de nos proporcionar uma convicção sobre a exis tência ou ação de um objeto que foi seguido ou precedido por outra existência ou ação As outras duas relações só podem ser emprega das no raciocínio enquanto afetam ou são afetadas por ela Não há nada em nenhum objeto capaz de nos persuadir de que ele está sem pre distante de outro ou que os dois sejam sempre contíguos E quan do pela observação e experiência descobrimos que essa sua relação é invariável sempre concluímos haver alguma causa secreta que os separa ou une O mesmo raciocínio aplicase à identidade Estamos sempre prontos a supor que um objeto pode continuar sendo nume ricamente idêntico ainda que se ausente e se reapresente diversas vezes perante os sentidos Apesar da descontinuidade da percepção atribuímos a ele uma identidade sempre que concluímos que caso o tivéssemos mantido constantemente ao alcance de nosso olhar ou sob nossa mão ele teria transmitido uma percepção invariável e inin terrupta Mas tal conclusão que ultrapassa as impressões de nossos sentidos só pode estar fundada na conexão de causa e efeito De ou tro modo não poderíamos de forma alguma estar seguros de que o que temos agora diante de nós não é um outro objeto muito seme lhante àquele que estava antes presente aos sentidos Sempre que des cobrimos uma semelhança tão perfeita examinamos se essa seme lhança é comum nessa espécie de objeto e se é possível ou provável que alguma causa tenha produzido a mudança e a semelhança Nos so juízo a respeito da identidade do objeto será formulado de acordo com a conclusão acerca dessas causas e efeitos 3 Vemos assim que dessas três relações que não dependem mera mente das idéias a única que remete para além de nossos sentidos 1 02 Livro 1 Parte 3 Seção 2 e nos informa acerca de existências e objetos que não vemos ou to camos é a causalidade Por isso procuraremos explicar essa relação de maneira mais completa antes de abandonarmos o tema do enten dimento 4 Para começar de maneira ordenada devemos considerar a idéia de causação e examinar qual sua origem É impossível raciocinar de maneira correta sem compreender perfeitamente a idéia sobre a qual raciocinamos e é impossível compreender perfeitamente uma idéia sem referila à sua origem e sem examinar aquela impressão primeira da qual ela surge O exame da impressão confere clareza à idéia e o exame da idéia confere uma clareza semelhante a todos os nossos raciocínios 5 Voltemos assim nosso olhar para dois objetos quaisquer que chamaremos de causa e efeito e examinemolos de todos os lados a fim de encontrar a impressão que produz uma idéia de tamanha im portância Logo à primeira vista percebo que não devo buscar essa impressão em nenhuma das qualidades particulares dos objetos pois qualquer que seja a qualidade que escolho encontro sempre um obje to que não a possui e que não obstante se inclui sob a denominação de causa ou de efeito De fato não existe nada interno ou externo que não deva ser considerado uma causa ou um efeito E entretanto é claro que não existe nenhuma qualidade que pertença universalmente a todos os seres e que lhes dê direito a essa denominação 6 A idéia de causação portanto deve ser derivada de alguma rela ção entre os objetos e é essa relação que devemos agora tentar en contrar Em primeiro lugar vejo que todos os objetos considerados causas ou efeitos são contíguos e que nenhum objeto pode atuar em um momento ou lugar afastados por menos que seja do momento e lugar de sua própria existência Embora algumas vezes possa pare cer que objetos distantes produzem uns aos outros descobrimos ao examinálos que estão ligados por uma cadeia de causas contíguas entre si e em relação ao objeto distante E quando em um caso par ticular não somos capazes de descobrir essa conexão ainda assim 1 03 Tratado da natureza humana presumimos que ela existe Podemos portanto considerar a relação de CONTIGÜIDADE como essencial à de causalidade Ou ao menos podemos supor que é essencial de acordo com a opinião geral até que encontremos uma ocasião2 mais apropriada para esclarecer esse pro blema examinando que objetos são ou não suscetíveis de justaposi ção e de conjunção 7 A segunda relação que assinalarei como essencial às causas e efei tos não é tão universalmente reconhecida estando ao contrário su jeita a alguma controvérsia Tratase da PRIORIDADE temporal da causa em relação ao efeito Há os que afirmam que não é absolutamente necessário que uma causa preceda seu efeito e que qualquer objeto ou ação já no primeiro instante de sua existência pode exercer sua qualidade produtiva gerando outro objeto ou ação que lhe seja per feitamente contemporâneo Contudo além do fato de que a experiên cia parece contradizer essa opinião na maioria dos casos podemos estabelecer a relação de prioridade por meio de uma espécie de inferência ou raciocínio Tanto a filosofia da natureza como a filoso fia moral têm como uma máxima estabelecida que um objeto que exista durante algum período de tempo em sua plena perfeição sem produzir um outro não é a única causa deste sendo antes auxiliado por algum outro princípio que o arranca de seu estado de inativida de fazendo com que exerça aquela energia que secretamente possuía Ora se alguma causa pode ser perfeitamente contemporânea a seu efeito é certo que de acordo com essa máxima todas devem sêlo Pois qualquer causa que retarde sua operação por um só instante deixa de atuar naquele momento particular preciso em que poderia ter atua do e portanto não é propriamente uma causa A conseqüência disso seria nada menos que a destruição da sucessão de causas que observamos no mundo e mesmo a total aniquilação do tempo Por que se uma causa fosse contemporânea a seu efeito e esse efeito a seu efeito e assim por diante é claro que não haveria algo como uma sucessão e os objetos seriam todos coexistentes 2 Parte 4 Seção 5 1 04 Livro 1 Parte 3 Seção 2 8 Se esse argumento parece satisfatório ótimo Se não peço ao lei tor que me conceda a mesma liberdade que tomei no caso anterior isto é de supor que é satisfatório pois verá que a questão não tem grande importância 9 Tendo assim descoberto ou suposto que as duas relações de con tigüidade e sucessão são essenciais às causas e efeitos vejo que tenho de parar subitamente e que não posso ir adiante pelo exame de um exemplo isolado de causa e efeito O movimento de um corpo é visto como a causa por impacto do movimento de outro corpo Quando consideramos atentamente esses objetos tudo que vemos é que um corpo se aproxima do outro e que seu movimento precede o movi mento do outro porém sem um intervalo perceptível É inútil atormentarmonos com mais pensamentos e reflexões sobre esse as sunto Não podemos ir mais longe considerando este caso particular 10 Se alguém descartar esse exemplo e quiser definir uma causa co mo uma coisa que produz outra é evidente que não estará dizendo nada Pois o que quer dizer com produção Poderá dar uma definição desse termo que não seja a mesma que a definição de causação Se puder peço que a mostre Se não puder é porque está andando em círculos oferecendo um sinônimo em lugar de uma definição 11 Deveremos pois ficar satisfeitos com essas duas relações de con tigüidade e sucessão como fornecendo uma idéia completa da causação De forma alguma Um objeto pode ser contíguo e anterior a outro sem ser considerado sua causa Há uma CONEXÃO NECES SÁRIA a ser levada em consideração e essa relação é muito mais im portante que as outras duas anteriormente mencionadas 12 Aqui novamente examino o objeto de todos os lados a fim de descobrir a natureza dessa conexão necessária e encontrar a impres são ou impressões de que pode ser derivada sua idéia Quando diri jo meu olhar para as qualidades conhecidas dos objetos descubro ime diatamente que a relação de causa e efeito não depende em nada delas Quando considero suas relações as únicas que encontro são as de 1 05 Tratado da natureza humana contigüidade e sucessão que já mostrei serem imperfeitas e insa tisfatórias Deverei afirmar em desespero de causa que estou aqui de posse de uma idéia que não é precedida por qualquer impressão similar Isso seria uma prova demasiadamente forte de leviandade e inconstância uma vez que o princípio contrário já foi firmemente es tabelecido não admitindo mais dúvidas ao menos até termos exa minado de modo mais completo a presente dificuldade 13 Devemos portanto proceder como aqueles que à procura de al guma coisa escondida e não a encontrando no lugar esperado saem por todos os campos vizinhos sem objetivo ou propósito certo na esperança de que a sorte acabe por guiálos até aquilo que buscam É necessário que abandonemos a investigação direta dessa questão a respeito da natureza daquela conexão necessária que faz parte de nossa idéia de causa e efeito e que nos esforcemos para encontrar outras questões cujo exame talvez nos forneça alguma indicação para es clarecermos a presente dificuldade Dessas questões há duas que exa minarei a seguir a saber 14 Em primeiro lugar por que razão afirmamos ser necessário que tudo aquilo cuja existência tem um começo deva também ter uma causa 15 Em segundo lugar por que concluímos que tais causas particula res devem necessariamente ter tais efeitos particulares e qual a natu reza da inferência que fazemos daquelas a estes bem como da crença que depositamos nessa inferência 16 Antes de passar adiante observarei apenas que embora as idéias de causa e de efeito sejam derivadas das impressões de reflexão as sim como das de sensação entretanto no interesse da concisão men cionarei em geral apenas estas últimas como a origem de tais idéias mas estou supondo que tudo o que delas disser pode se estender às primeiras As paixões estão tão conectadas com seus objetos e umas com as outras quanto os corpos externos entre si Portanto a mesma relação de causa e efeito que pertence a um tipo de impres são deve ser comum a todas 1 06 Livro 1 Parte 3 Seção 3 Seção 3 Por que uma causa é sempre necessária 1 Comecemos pela primeira questão a respeito da necessidade de uma causa Tratase de uma máxima geral da filosofia que tudo que começa a existir deve ter uma causa para sua existência Costumase pres supor essa máxima em todos os raciocínios sem se fornecer ou exi gir prova alguma Ela supostamente está fundada na intuição sendo uma dessas máximas que embora possam ser negadas verbalmen te não podem ser sinceramente postas em dúvida pelos homens Mas se a examinarmos segundo a idéia de conhecimento anteriormente explicada não descobriremos nela nenhuma marca de uma tal certe za intuitiva Ao contrário veremos que sua natureza é bastante alheia a essa espécie de convicção 2 Toda certeza provém da comparação de idéias e da descoberta de relações que permanecem inalteráveis enquanto as idéias continuam iguais Essas relações são a semelhança as proporções de quantidade e de número os graus de uma qualidade e a contrariedade nenhuma das quais está implicada na proposição de que tudo que tem um começo deve ter uma causa para sua existência Essa proposição portanto não é in tuitivamente certa Ou ao menos qualquer pessoa que queira afir mar que é intuitivamente certa deverá negar que essas sejam as úni cas relações infalíveis e deverá descobrir alguma outra relação desse tipo implicada naquela proposição e então será o momento ade quado de examinála 3 Mas eis aqui um argumento que prova de uma só vez que a pro posição precedente não é nem intuitiva nem demonstrativamente cer ta Nunca poderíamos demonstrar a necessidade de uma causa para toda nova existência ou para toda nova modificação de existência sem mostrar ao mesmo tempo a impossibilidade de que alguma coisa co mece a existir sem algum princípio produtivo E se esta última pro posição não puder ser provada devese perder qualquer esperança de jamais provar a primeira Ora que a última proposição é inteiramente incapaz de receber uma prova demonstrativa é algo de que podemos 1 0 7 Tratado da natureza humana nos convencer considerando que como todas as idéias distintas são separáveis entre si e como as idéias de causa e de efeito são eviden temente distintas é fácil conceber que um objeto seja nãoexistente neste momento e existente no momento seguinte sem juntar a ele a idéia distinta de uma causa ou princípio produtivo Portanto a sepa ração da idéia de uma causa da idéia de um começo de existência é claramente possível para a imaginação Uma vez portanto que não implica contradição ou absurdo a separação real desses objetos é pos sível e por isso não pode ser refutada por nenhum raciocínio basea do nas meras idéias E sem isso é impossível demonstrar a necessi dade de uma causa 4 Por conseguinte o exame das demonstrações já apresentadas a favor da necessidade de uma causa mostrará que são todas falaciosas e sofísticas Alguns filósofos3 dizem que todos os pontos do tempo e do espaço em que podemos supor que um objeto começa a existir são em si mesmos equivalentes A menos que haja alguma causa que seja peculiar a um momento e a um lugar determinando e fixando dessa maneira a existência esta deverá permanecer eternamente em suspenso e o objeto nunca poderá começar a existir em por falta de alguma coisa que fixe seu começo Mas eu pergunto será mais difícil supor que o tempo e o espaço sejam fixados sem uma causa do que su por que a existência seja determinada dessa mesma maneira A pri meira pergunta que se coloca a esse respeito é sempre se o objeto irá ou não existir a pergunta seguinte é quando e onde ele começará a existir Se no primeiro caso for intuitivamente absurdo suprimir toda causa também deve ser assim no segundo mas se no primei ro caso esse absurdo não ficar claro sem uma prova esta também será necessária no segundo Portanto o absurdo de uma suposi ção jamais pode servir de prova do absurdo da outra pois elas estão na mesma condição sendo confirmadas ou refutadas pelo mes mo raciocínio 3 Sr Hobbes 1 08 Livro 1 Parte 3 Seção 3 5 O segundo argumento4 que vi ser utilizado a propósito dessa questão enfrenta a mesma dificuldade Tudo deve ter uma causa di zem pois se alguma coisa carecesse de causa ela seria produzida por si mesma isto é existiria antes de existir o que é impossível Esse ra ciocínio porém é claramente inconcludente Ele supõe que ao ne garmos uma causa estamos ainda admitindo aquilo que negamos ex pressamente a saber que deve haver uma causa a qual portanto é tida como o próprio objeto Isso sem dúvida é uma evidente contra dição Mas dizer que alguma coisa é produzida ou para me exprimir de maneira mais apropriada dizer que uma coisa passa a existir sem uma causa não é afirmar que ela é sua própria causa Ao contrário ao excluirmos todas as causas externas excluímos também a fortiori a própria coisa criada Um objeto que existe absolutamente sem ne nhuma causa com certeza não é sua própria causa Sustentar o con trário seria supor aquilo mesmo que está em questão tomando como certo que é inteiramente impossível que alguma coisa possa come çar a existir sem uma causa e que se excluirmos um princípio pro dutivo teremos sempre de recorrer a outro 6 Exatamente o mesmo se passa com o terceiro argumento5 utili zado para demonstrar a necessidade de uma causa Tudo que é pro duzido sem causa é produzido por nada ou em outras palavras tem como causa o nada Mas o nada nunca poderia ser uma causa assim como não pode ser alguma coisa ou ser igual a dois ângulos retos A mesma intuição que nos leva a perceber que o nada não é igual a dois ângulos retos ou que não é alguma coisa levanos a perceber que jamais poderia ser uma causa Conseqüentemente devemos perce ber que a existência de todo objeto possui uma causa real 7 Creio que não precisarei ser muito prolixo para mostrar a fra queza desse argumento após o que eu já disse acerca do argumento 4 Dr Clarke e outros 5 Sr Locke Whatever is produc d without any cause is produc d by nothing A frase gramaticalmen te correta em português seria Tudo que é produzido sem causa não é produzido por nada mas isso deixaria sem sentido o raciocínio de Hume NT 1 09 Tratado da natureza humana anterior Os dois estão fundados na mesma falácia e derivam do mes mo modo de pensar Basta apenas observar que ao excluirmos todas as causas nós realmente as excluímos e não supomos nem que o nada nem que o objeto mesmo sejam as causas da existência deste Conseqüentemente não podemos extrair do absurdo dessas supo sições nenhum argumento para provar o absurdo daquela exclusão Se tudo deve ter uma causa seguese que ao excluirmos outras cau sas devemos aceitar que o próprio objeto ou o nada são causas Mas o que está em questão é justamente se tudo deve ou não ter uma causa Portanto de acordo com todas as regras do bom raciocínio isso é algo que nunca se deve dar por suposto 8 São ainda mais levianos aqueles que dizem que todo efeito deve ter uma causa porque a idéia de causa está implicada na idéia mesma de efeito Todo efeito pressupõe necessariamente uma causa já que efeito é um termo relativo cujo correlato é causa Mas isso não pro va que todo ser tenha de ser precedido por uma causa assim como do fato de que todo marido deve ter uma esposa não se segue que por isso todo homem tenha de ser casado A verdadeira questão é se todo objeto que começa a existir deve ter sua existência atribuída a uma causa E isso eu afirmo que não é nem intuitiva nem demons trativamente certo como espero haver provado de maneira suficien te pelos argumentos precedentes 9 Uma vez que não é do conhecimento ou de um raciocínio cien tífico que derivamos a opinião de que uma causa é necessária para toda nova produção tal opinião deve vir necessariamente da obser vação e da experiência A questão seguinte portanto deveria natu ralmente ser como a experiência dá origem a um tal princípio Mas penso que o mais conveniente será embutir essa questão na seguinte a saber por que concluímos que tais causas particulares devem necessaria mente ter tais efeitos particulares e por que realizamos uma inferência daquelas para estes últimos Esse portanto será o tema de nossa pró xima investigação Talvez acabemos descobrindo que a mesma res posta serve para ambas as questões 1 1 o Livro 1 Parte 3 Seção 4 Seção 4 Das partes componentes de nossos raciocínios acerca da causa e do efeito 1 Embora a mente em seus raciocínios partindo de causas ou efei tos dirija sua atenção para além dos objetos que vê ou recorda ela nunca deve perdêlos inteiramente de vista nem raciocinar apenas com base em suas próprias idéias sem combinálas com impressões ou ao menos com idéias da memória que equivalem a impressões Quan do inferimos efeitos de causas devemos estabelecer a existência des sas causas E só temos dois meios de fazêlo por uma percepção ime diata de nossa memória ou nossos sentidos ou por uma inferência a partir de outras causas Estas últimas por sua vez devem ser deter minadas da mesma maneira ou seja por uma impressão presente oµ por uma inferência baseada em suas causas e assim por diante até chegarmos a um objeto que vemos ou recordamos É impossível prosseguir com nossas inferências ao infinito e a única coisa capaz de as deter é uma impressão da memória ou dos sentidos além da qual não cabem dúvidas nem perquirições 2 Para ilustrar esse tema podemos escolher um ponto qualquer da história e examinar por que razão acreditamos nele ou o rejeita mos Assim por exemplo acreditamos que César foi morto no Se nado nos idos de março porque esse fato foi estabelecido com base no testemunho unânime dos historiadores que concordam em atri buir esse momento e lugar precisos a tal acontecimento Temos aqui certos caracteres e letras que estão presentes em nossa memória ou a nossos sentidos e também nos lembramos de que esses caracteres foram usados como signos de certas idéias Ora essas idéias ou es tavam nas mentes dos que se encontravam imediatamente presen tes àquela ação recebendo tais idéias diretamente da existência de tal ação ou foram derivadas do testemunho de outras pessoas e este novamente de outro testemunho mediante um visível processo gradativo até chegarmos às testemunhas oculares e espectadores do 1 1 1 Tratado da natureza humana acontecimento É óbvio que toda essa cadeia de argumentos ou cone xão de causas e efeitos está fundada primeiramente nesses caracteres ou letras que são vistos ou recordados e que sem a autoridade seja da memória seja dos sentidos todo o nosso raciocínio seria quimérico e infundado Nesse caso cada elo da cadeia estaria preso a outro mas não haveria nada afixado a um dos extremos capaz de sustentar o todo conseqüentemente não haveria nem crença nem evidência É isso o que de fato se passa com todos os argumentos hipotéticos ou seja ra ciocínios baseados em uma suposição pois neles não há nenhuma impressão presente nem tampouco crença em uma existência real 3 É desnecessário observar que não se trata de uma objeção legíti ma à presente doutrina dizer que podemos raciocinar com base em nossas conclusões ou princípios passados sem ter de recorrer às im pressões de que estes derivaram em primeiro lugar Pois mesmo supondo que essas impressões se apaguem inteiramente de nossa memória a convicção por elas produzida pode ainda permanecer Por isso é igualmente verdadeiro que todo raciocínio acerca de cau sas e efeitos deriva originalmente de alguma impressão do mesmo modo que a certeza de uma demonstração procede sempre de uma comparação de idéias embora possa permanecer mesmo depois de es quecida essa comparação Seção 5 Das impressões dos sentidos e da memória 1 Nesse tipo de raciocínio por causalidade portanto empregamos materiais de natureza mista e heterogênea que embora conectados são essencialmente diferentes uns dos outros Todos os nossos argu mentos concernentes a causas e efeitos consistem tanto em uma im pressão da memória ou dos sentidos como na idéia daquela existência que produz o objeto da impressão ou que é por ele produzida Temos aqui portanto três coisas a explicar em primeiro lugar a impressão original em segundo a transição para a idéia da causa ou do efeito conectados e em terceiro a natureza e as qualidades dessa idéia Livro 1 Parte 3 Seção 5 2 Quanto às impressões provenientes dos sentidos sua causa última é em minha opinião inteiramente inexplicável pela razão humana e será para sempre impossível decidir com certeza se elas surgem ime diatamente do objeto se são produzidas pelo poder criativo da men te ou ainda se derivam do autor de nosso ser Tal questão digase de passagem não tem nenhuma importância para nosso propósito pre sente Podemos sempre fazer inferências partindo da coerência de nos sas percepções sejam estas verdadeiras ou falsas representem elas a natureza de maneira correta ou sejam meras ilusões dos sentidos 3 Quando buscamos a característica que distingue a memória da ima ginação devemos imediatamente perceber que ela não pode estar nas idéias simples que aquela nos apresenta pois ambas as faculdades retiram suas idéias simples das impressões e nunca podem ir além dessas percepções originais As duas faculdades tampouco se distin guem pela disposição de suas idéias complexas Porque embora seja uma propriedade peculiar da memória preservar a ordem e posição originais de suas idéias enquanto a imaginação as transpõe e altera a seu belprazer essa diferença não é suficiente para distinguilas em suas operações ou para nos permitir discernir uma da outra Pois é impossível recordar impressões passadas a fim de comparálas com nossas idéias presentes e dessa forma ver se sua ordenação é exata mente igual Como portanto a memória não é conhecida nem pela ordem de suas idéias complexas nem pela natureza de suas idéias sim ples seguese que a diferença entre ela e a imaginação está em sua força e vividez superior Um homem pode dar vazão a sua fantasia imaginandose como personagem de uma cena passada de aventu ras E não haveria possibilidade de distinguir essa cena de uma lem brança de um tipo semelhante se as idéias da imaginação não fossem mais fracas e obscuras 4 É freqüente acontecer que quando dois homens estiveram en volvidos em um episódio um deles se lembre dele muito melhor que o outro e tenha a maior dificuldade do mundo para fazer que seu com 1 1 3 Tratado da natureza humana panheiro se lembre também Enumera em vão diversas circunstân cias menciona o momento o lugar as pessoas que estavam presen tes o que foi dito o que cada um fez até que finalmente toca em uma circunstância feliz que faz reviver o conjunto todo dando a seu amigo uma memória perfeita de cada detalhe Aqui a pessoa que es queceu recebe inicialmente do discurso da outra todas as idéias com as mesmas circunstâncias de tempo e lugar mas as considera como meras ficções da imaginação Entretanto assim que é mencionada a circunstância que toca sua memória exatamente as mesmas idéias aparecem sob nova luz produzindo como que uma sensação feeling diferente daquela que antes produziam Sem qualquer outra altera ção além dessa na sensação feeling elas se tomam imediatamente idéias da memória e recebem nosso assentimento 5 Portanto como a imaginação é capaz de representar todos os mes mos objetos que a memória pode nos oferecer e já que essas facul dades só se distinguem pela maneira diferente como sentimos as idéias que nos apresentam talvez seja apropriado considerar qual a natureza dessa sensação feeling E aqui acredito que todos con cordarão imediatamente comigo que as idéias da memória são mais fortes e mais vívidas que as da fantasia Um pintor que quisesse repre sentar uma paixão ou emoção qualquer tentaria observar uma pes soa movida por uma emoção semelhante a fim de avivar suas idéias e darlhes uma força e vividez superiores às encontradas nas idéias que são meras ficções da fantasia Quanto mais recente essa memória mais clara a idéia e quando após um longo intervalo o pintor vol tasse a contemplar seu objeto sempre acharia a idéia deste bastan te enfraquecida senão apagada por completo Freqüentemente quando as idéias da memória se tomam muito fracas e pálidas fi camos indecisos a seu respeito e não sabemos como determinar se uma imagem procede da fantasia ou da memória quando não está pintada com as cores vivas que distinguem esta última facul dade Acho que me lembro de tal acontecimento diz alguém mas não tenho certeza Um longo intervalo de tempo quase o apagou de 1 1 4 Livro 1 Parte 3 Seção 6 minha memória e não sei dizer se é ou não um mero produto de mi nha fantasia 6 E assim como uma idéia da memória ao perder sua força e vi videz pode degenerar a ponto de ser tomada por uma idéia da imagi nação assim também em contrapartida uma idéia da imaginação pode adquirir tal força e vividez que chega a passar por uma idéia da memória simulando seus efeitos sobre a crença e o juízo Isso pode ser notado no caso dos mentirosos que pela freqüente repetição de suas mentiras acabam finalmente por acreditar nelas e lembramse mesmo delas como realidades Neste caso como em muitos outros o costume e o hábito exercem sobre a mente a mesma influência que a natureza fixando a idéia com igual força e vigor 7 Vemos assim que a crença ou assentimento que sempre acompa nha a memória e os sentidos não consiste senão na vividez das per cepções que ambos apresentam e que somente isso os distingue da imaginação Crer nesse caso é sentir uma impressão imediata dos sentidos ou uma repetição dessa impressão na memória É simples mente a força e a vividez da percepção que constituem o primeiro ato do juízo e estabelecem o fundamento do raciocínio que construímos com base nela quando traçamos a relação de causa e efeito Seção 6 Da inferência da impressão à idéia 1 É fácil observar que ao traçarmos essa relação a inferência que fazemos da causa ao efeito não deriva meramente de um exame des ses objetos particulares nem de uma penetração em suas essências que pudesse revelar a dependência de um em relação ao outro Ne nhum objeto implica a existência de outro se consideramos esses ob jetos em si mesmos sem olhar para além das idéias que deles forma mos Uma tal inferência equivaleria a um conhecimento e implicaria a absoluta contradição e impossibilidade de se conceber algo diferente Mas uma vez que todas as idéias distintas são separáveis é evidente 1 1 5 Tratado da natureza humana que não pode haver tal impossibilidade Quando passamos de uma impressão presente à idéia de um objeto qualquer teria sido possível separar a idéia da impressão substituindoa por qualquer outra idéia 2 É apenas pela EXPERIÊNCIA portanto que podemos inferir a existência de um objeto da existência de outro A natureza da experiên cia é a seguinte Lembramonos de ter tido exemplos freqüentes da existência de objetos de uma certa espécie e também nos lembramos que os indivíduos de uma outra espécie de objetos sempre acompa nharam os primeiros existindo em uma ordem regular de contigüida de e sucessão em relação a eles Assim lembramonos de ter visto aque la espécie de objetos que denominamos chama e de ter sentido aquela espécie de sensação que denominamos calor Recordamonos igual mente de sua conjunção constante em todos os casos passados Sem mais cerimônias chamamos à primeira de causa e à segunda de efei to e inferimos a existência de uma da existência da outra Em todos os casos com base nos quais constatamos a conjunção entre causas e efeitos particulares tanto a causa como o efeito foram percebidos pelos sentidos e são recordados Mas em todos os casos em que ra ciocinamos a seu respeito apenas um é percebido ou lembrado en quanto o outro é suprido em conformidade com nossa experiência passada 3 Assim conforme avançamos descobrimos sem querer uma nova relação entre a causa e o efeito quando menos esperávamos estando inteiramente envolvidos em outro assunto Tal relação é a CONJUNÇÃO CONSTANTE Contigüidade e sucessão não são suficien tes para nos fazer declarar que dois objetos são causa e efeito a não ser que percebamos que essas duas relações se mantêm em vários casos Podemos ver agora a vantagem de ter abandonado o exame direto dessa relação com o intuito de descobrir a natureza daquela conexão necessária que constitui uma parte tão essencial dela Desse modo podemos ter esperanças de chegar finalmente ao objetivo que propusemos embora para falar a verdade essa recémdescoberta relação de uma conjunção constante pareça nos fazer avançar muito 1 1 6 Livro 1 Parte 3 Seção 6 pouco em nosso caminho Pois ela não implica nada mais que isto objetos semelhantes têm se mostrado sempre em relações semelhan tes de contigüidade e sucessão E parece evidente ao menos à pri meira vista que por esse meio jamais descobriremos uma idéia nova podemos simplesmente multiplicar mas não acrescentar novos ob jetos à nossa mente Podese pensar que aquilo que não aprendemos com um objeto não poderemos nunca aprender com uma centena de objetos do mesmo tipo e perfeitamente semelhantes em todas as cir cunstâncias Assim como nossos sentidos nos mostram um exem plo de dois corpos ou movimentos ou qualidades em determinadas relações de sucessão e contigüidade assim também nossa memória nos apresenta apenas uma multiplicidade de casos em que sempre encontramos corpos movimentos ou qualidades semelhantes em relações semelhantes Da mera repetição de uma impressão passa da mesmo ao infinito jamais surgirá uma nova idéia original tal como a de uma conexão necessária um grande número de impres sões não tem neste caso um efeito maior que se nos confinássemos a apenas uma Esse raciocínio parece correto e óbvio entretanto seria tolice perder tão cedo as esperanças e assim continuaremos seguindo o fio de nosso discurso Tendo visto que após a descoberta da con junção constante entre dois objetos quaisquer nós sempre fazemos uma inferência de um a outro examinaremos agora a natureza des sa inferência e da transição da impressão à idéia Talvez acabemos descobrindo que em vez de a inferência depender da conexão neces sária é a conexão necessária que depende da inferência 4 Tendo já visto que a transição que fazemos de uma impressão presente à memória ou aos sentidos para a idéia de um objeto que denominamos causa ou efeito está fundada na experiência passada e em nossa lembrança de sua conjunção constante a próxima questão é a experiência produz a idéia por meio do entendimento ou da imagi nação É a razão que nos determina a fazer a inferência ou uma cer ta associação e relação de percepções Se fosse a razão ela o faria com base no princípio de que os casos de que não tivemos experiência devem Tratado da natureza humana se assemelhar aos casos de que tivemos experiência e de que o curso da na tureza continua sempre uniformemente o mesmo A fim de esclarecer essa questão portanto passemos ao exame de todos os argumentos que podem supostamente fundamentar essa proposição E como tais ar gumentos devem ser derivados quer do conhecimento quer da probabi lidade consideremos cada um desses graus de evidência para ver se podem nos fornecer alguma conclusão legítima dessa natureza 5 Nosso método anterior de raciocínio nos convencerá facilmente de que não pode haver nenhum argumento demonstrativo para pro var que os casos de que não tivemos experiência se assemelham àqueles de que tivemos experiência Podemos ao menos conceber uma mudança no curso da natureza o que é prova suficiente de que tal mudan ça não é absolutamente impossível Ser capaz de formar uma idéia clara de alguma coisa é um argumento inegável a favor da possibili dade dessa coisa e constitui por si só uma refutação de qualquer pretensa demonstração em contrário 6 Quanto à probabilidade como não se aplica às relações de idéias consideradas enquanto tais mas apenas às relações de objetos ela deve sob certos aspectos estar fundada nas impressões de nossa memória e sentidos e sob outros em nossas idéias Se não houves se alguma impressão misturada a nossos raciocínios prováveis a con clusão seria inteiramente quimérica E se não houvesse idéias mis turadas a ação da mente ao observar a relação seria propriamente falando uma sensação e não um raciocínio Portanto é necessário que em todos os raciocínios prováveis haja alguma coisa presente à mente quer seja vista ou lembrada e que dessa coisa infiramos algo a ela conectado que não é nem visto nem lembrado 7 A única conexão ou relação de objetos capaz de nos levar para além das impressões imediatas de nossa memória e sentidos é a de causa e efeito e isso porque é a única sobre a qual podemos fundar uma inferência legítima de um objeto a outro A idéia de causa e efei to é derivada da experiência que nos informa que tais objetos particula res em todos os casos passados estiveram em conjunção constante 1 1 8 Livro 1 Parte 3 Seção 6 um com o outro E como se supõe que um objeto similar a um deles está imediatamente presente em sua impressão presumimos a par tir disso a existência de um objeto similar ao que habitualmente o acompanha De acordo com essa explicação do que se passa expli cação que creio ser inquestionável em todos os seus pontos a pro babilidade se funda na suposição de uma semelhança entre os obje tos de que tivemos experiência e aqueles de que não tivemos É impossível portanto que essa suposição possa surgir da probabili dade O mesmo princípio não pode ser ao mesmo tempo causa e efeito de outro e essa é talvez a única proposição intuitiva ou demonstra tivamente certa acerca dessa relação 8 Se alguém pensa poder eludir esse argumento afirmando que to das as conclusões a respeito de causas e efeitos são construídas com base em um raciocínio sólido sem sequer determinar se esse racio cínio deriva da demonstração ou da probabilidade a única coisa que posso fazer é pedir que nos apresente esse raciocínio para que seja submetido a nosso exame Talvez se diga que após a experiência da conjunção constante de certos objetos nós raciocinamos da seguin te maneira Sempre se viu que tal objeto produzia um outro É impos sível que ele tivesse esse efeito se não fosse dotado de um poder de produção O poder implica necessariamente o efeito e portanto existe um fundamento legítimo para se tirar uma conclusão da existência de um objeto para a daquele que comumente o acompanha A produ ção passada implica um poder o poder implica uma nova produção e é essa nova produção que inferimos do poder e da produção passada 9 Sermeia muito fácil mostrar a fraqueza desse raciocínio se de sejasse utilizar aqui as observações que fiz há pouco a saber que a idéia de produção é a mesma que a de causação e que nenhuma exis tência implica de maneira certa e demonstrativa um poder em outro objeto ou então se fosse apropriado antecipar o que terei ocasião de observar adiante a respeito da idéia que formamos do poder e da eficá cia Mas como tal procedimento pode parecer ou enfraquecer meu sis tema por apoiar uma de suas partes em outra ou gerar uma confusão 1 1 9 Tratado da natureza humana em meu raciocínio tentarei sustentar a presente afirmação sem esse recurso 10 Admitamos pois por um momento que a produção de um ob jeto por outro em um caso qualquer implica um poder e que esse poder está conectado com seu efeito Ora uma vez que já se provou que o poder não repousa nas qualidades sensíveis da causa e como não há nada presente a nós além das qualidades sensíveis pergunto por que em outros casos presumis que exista o mesmo poder com base apenas no aparecimento dessas qualidades Vosso recurso à ex periência passada não serve de nada neste caso podendo no máxi mo provar que aquele mesmo objeto que produziu um outro era na quele mesmo instante dotado de tal poder Jamais poderá provar porém que o mesmo poder deve permanecer no mesmo objeto ou coleção de qualidades sensíveis e menos ainda que um poder se melhante ocorre sempre em conjunção com qualidades sensíveis semelhantes Se se disser que temos experiência de que o mesmo poder continua unido ao mesmo objeto e de que objetos semelhan tes são dotados de poderes semelhantes eu recolocaria minha qµes tão por que partindo dessa experiência formamos uma conclusão que ultra passa os casos passados de que tivemos experiência Se vossa resposta a essa questão for semelhante à anterior ela suscitará uma nova ques tão do mesmo tipo e assim ao infinito o que prova claramente que o raciocínio não possuía um fundamento legítimo 1 1 Assim não apenas nossa razão nos falha na descoberta da cone xão última entre causas e efeitos mas mesmo após a experiência ter nos informado de sua conjunção constante é impossível nos conven cermos pela razão de que deveríamos estender essa experiência para além dos casos particulares que pudemos observar Nós supomos mas nunca conseguimos provar que deve haver uma semelhança en tre os objetos de que tivemos experiência e os que estão além do al cance de nossas descobertas 12 Já observamos a existência de certas relações que nos fazem pas sar de um objeto a outro mesmo sem haver uma razão que nos deter 1 2 0 Livro 1 Parte 3 Seção 6 mine a fazer essa transição Podemos estabelecer como regra geral que sempre que a mente constante e uniformemente faz uma tran sição sem nenhuma razão ela está sendo influenciada por essas re lações Ora tal é exatamente o caso presente A razão jamais pode nos mostrar a conexão entre dois objetos mesmo com a ajuda da ex periência e da observação de sua conjunção constante em todos os casos passados Portanto quando a mente passa da idéia ou impres são de um objeto à idéia de outro objeto ou seja à crença neste ela não está sendo determinada pela razão mas por certos princípios que associam as idéias desses objetos produzindo sua união na ima ginação Se as idéias não fossem mais unidas na fantasia que os objetos parecem ser no entendimento nunca poderíamos realizar uma inferência das causas aos efeitos nem depositar nossa crença em qualquer questão de fato A inferência portanto depende uni camente da união das idéias 13 Quanto aos princípios de união entre as idéias eu os reduzi a três princípios gerais e afirmei que a idéia ou impressão de um obje to introduz naturalmente a idéia de qualquer outro objeto que seja semelhante contíguo ou conectado com o primeiro Admito que es ses princípios não são nem causas infalíveis nem as únicas causas de uma união entre idéias Não são causas infalíveis pois podemos fi xar nossa atenção durante algum tempo em um só objeto sem olhar para mais nada além dele Não são as únicas causas pois é evidente que o pensamento apresenta um movimento muito irregular ao per correr seus objetos podendo saltar dos céus à terra de um extremo ao outro da criação sem método ou ordem certa Mas embora admi ta essa fraqueza nessas três relações bem como essa irregularidade na imaginação afirmo que os únicos princípios gerais que associam idéias são a semelhança a contigüidade e a causalidade 14 É verdade que existe um princípio de união entre idéias que à primeira vista pode ser considerado diferente desses mas veremos que no fundo ele depende da mesma origem Quando a experiência mostra que todos os indivíduos de uma espécie de objetos estão 1 2 1 Tratado da natureza humana constantemente unidos com os indivíduos de outra espécie o apare cimento de um novo indivíduo pertencente a uma das duas espécies leva naturalmente o pensamento àquele que usualmente o acompa nha Assim uma vez que tal idéia particular é comumente vinculada a tal palavra particular a mera audição dessa palavra basta para pro duzir a idéia correspondente será quase impossível à mente por mais que se esforce impedir essa transição Nesse caso não é absoluta mente necessário que ao ouvir esse som particular nós reflitamos sobre uma experiência passada e consideremos que idéia esteve comumente conectada ao som A imaginação por si mesma supre o lugar dessa reflexão e está tão acostumada a passar da palavra à idéia que não deixa transcorrer um só momento entre a audição de uma e a concepção da outra 15 Embora eu reconheça que esse é um verdadeiro princípio de as sociação entre idéias afirmo porém que ele é exatamente o mesmo que vigora para as idéias de causa e efeito e que constitui uma parte essencial de todos os nossos raciocínios baseados nessa relação A única noção que temos de causa e efeito é a de certos objetos que existiram sempre conjuntamente e que em todos os casos passados mostraramse inseparáveis Não podemos penetrar na razão da con junção Apenas observamos o próprio fato e vemos sempre que em conseqüência de sua conjunção constante os objetos adquirem uma união na imaginação Quando a impressão de um deles se torna pre sente a nós formamos imediatamente uma idéia daquele que comumente o acompanha em conseqüência disso podemos estabe lecer como parte da definição de uma opinião ou crença que esta é uma idéia relacionada ou associada com uma impressão presente 16 Assim embora a causalidade seja uma relação filosófica por im plicar contigüidade sucessão e conjunção constante é apenas en quanto ela é uma relação natural produzindo uma união entre nos sas idéias que somos capazes de raciocinar ou fazer qualquer inferência a partir dela 1 22 Livro 1 Parte 3 Seção 7 Seção 7 Da natureza da idéia ou crença A idéia de um objeto é uma parte essencial da crença que nele depositamos mas não é tudo Concebemos muitas coisas em que não acreditamos Por isso para descobrir de maneira mais completa a na tureza da crença ou as qualidades das idéias a que damos nosso as sentimento pesemos as seguintes considerações É evidente que todos os raciocínios feitos a partir de causas ou efeitos terminam em conclusões a respeito de questões de fato isto é a respeito da existência de objetos ou suas qualidades É também evidente que a idéia de existência não é nada diferente da idéia de um objeto Quando após ter simplesmente concebido alguma coisa nós em seguida a concebemos como existente na realidade não acres centamos nada a nossa primeira idéia e tampouco a alteramos As sim quando afirmamos que Deus existe simplesmente formamos a idéia desse ser tal como nos é representado a existência que a ele atribuímos não é concebida mediante uma idéia particular que jun taríamos à idéia de suas outras qualidades e a qual pudéssemos no vamente separar e distinguir destas últimas Mas vou mais longe ain da não satifeito em afirmar que a concepção da existência de um objeto não acrescenta nada à sua simples concepção sustento ainda que a crença nessa existência não junta novas idéias àquelas que compõem a idéia do objeto Quando penso em Deus quando penso nele como existente e quando creio que ele existe minha idéia dele não aumenta nem diminui Mas como é certo que há uma grande di ferença entre a simples concepção da existência de um objeto e a cren ça nesta e como tal diferença não repousa nas partes ou na compo sição da idéia que concebemos seguese que ela deve estar na maneira como a concebemos Suponhamos que haja uma pessoa diante de mim enunciando proposições com as quais não concordo que César morreu em seu lei to que a prata é mais fusível que o chumbo ou que o mercúrio é mais pesado 1 2 3 Tratado da natureza humana que o ouro É evidente que não obstante minha incredulidade enten do claramente o que essa pessoa quer dizer e formo as mesmas idéias que ela Minha imaginação é dotada dos mesmos poderes que a sua e é impossível que ela conceba qualquer idéia que eu não possa con ceber ou que junte idéias que eu também não possa juntar Pergun to portanto em que consiste a diferença entre crer e não crer em uma proposição A resposta é fácil quando se trata de proposições provadas por intuição ou por demonstração Nesse caso a pessoa que manifesta seu assentimento não apenas concebe as idéias de acordo com a proposição mas é necessariamente determinada a concebêlas dessa maneira particular seja imediatamente seja pela interposição de outras idéias Tudo que é absurdo é ininteligível é impossível para a imaginação conceber algo contrário a uma demonstração Mas nos raciocínios causais e concernentes a questões de fato essa necessida de absoluta não pode ocorrer e a imaginação é livre para conceber ambos os lados da questão Por isso volto a perguntar em que consiste a dife rença entre a incredulidade e a crença já que em ambos os casos é igualmente possível e imprescindível conceber a idéia 4 Não basta responder que uma pessoa que não dá seu assentimen to a uma proposição que emitis após ter concebido o objeto da mes ma maneira que vós imediatamente depois o concebe de maneira dife rente formando dele idéias diferentes Essa resposta é insatisfatória não por conter uma falsidade mas por não revelar toda a verdade Devese reconhecer que em todos os casos em que discordamos de alguém nós concebemos ambos os lados da questão mas como só podemos crer em um deles seguese evidentemente que a crença deve produzir alguma diferença entre a concepção a que damos nosso as sentimento e aquela de que discordamos Podemos misturar unir separar embaralhar e alterar nossas idéias de centenas de modos di ferentes Mas até que apareça um princípio que fixe uma dessas dife rentes situações não temos realmente nenhuma opinião E esse prin cípio uma vez que claramente não acrescenta nada a nossas idéias precedentes pode apenas mudar a maneira como as concebemos 1 24 Livro 1 Parte 3 Seção 7 As percepções da mente são todas de dois tipos a saber impres sões e idéias que só se distinguem por seus diferentes graus de for ça e vividez Nossas idéias são copiadas de nossas impressões repre sentandoas em todas as suas partes Se quisermos alterar de algum modo a idéia de um objeto particular a única coisa que podemos fa zer é aumentar ou diminuir sua força e vividez Se produzirmos nela qualquer outra mudança ela passará a representar um objeto ou im pressão diferente O mesmo se dá no caso das cores Uma tonalida de particular de uma cor pode adquirir um novo grau de vividez ou brilho sem que haja nenhuma outra variação Se produzirmos qual quer outra variação porém não teremos mais a mesma tonalidade ou cor Sendo assim como a crença não faz senão variar a maneira como concebemos um objeto ela só pode conceder a nossas idéias uma força e vividez adicionais Portanto uma opinião ou crença pode ser definida mais precisamente como UMA IDÉIA VÍVIDA RELACIONA DA OU ASSOCIADA COM UMA IMPRESSÃO PRESENTE 6 Ver Apêndice p675 6 Aproveitemos essa ocasião para observar um erro bastante apreciável que de tanto ser ensinado nas escolas tornouse uma espécie de máxima estabelecida sendo universal mente aceito por todos os lógicos Esse erro consiste na divisão usual dos atos do entendimento em concepçãojuízo e raciocínio e em suas respectivas definições A concepção é definida como a simples consideração de uma ou mais idéias o juízo como a separação ou a união de diferentes idéias o raciocínio como a separação ou a união de diferentes idéias pela interposição de outras que mostram a relação que aquelas mantêm entre si Mas essas distinções e definições são falhas em vários pontos importantes Em primei ro lugar está longe de ser verdade que em todos os juízos que formamos nós unimos duas idéias diferentes pois na proposição Deus existe ou mesmo em qualquer outra que diga respeito à existência a idéia de existência não é uma idéia distinta que unimos à idéia do objeto e que seria capaz de formar por essa união uma idéia composta Em segundo lugar assim como podemos formar uma proposição que contenha apenas uma idéia podemos também exercer nossa razão sem empregar mais de duas idéias e sem recorrer a uma terceira que sirva de termo médio entre elas Inferimos imediatamente uma causa de seu efeito e essa inferência é não apenas uma verdadeira espécie de racio cínio como o mais forte de todos e mais convincente do que aqueles em que interpo mos outra idéia para conectar os dois extremos O que podemos afirmar em geral a respeito desses três atos do entendimento é que examinados de um ponto de vista apro priado todos eles se reduzem ao primeiro não sendo senão formas particulares de conce bermos nossos objetos Quer consideremos um único objeto ou vários quer nos de moremos sobre esses objetos ou passemos a outros e qualquer que seja a forma ou ordem em que os consideremos o ato da mente não excede uma simples concepção a 1 2 5 Tratado da natureza humana 6 Eis aqui o cerne dos argumentos que nos levam a essa conclu são Sempre que inferimos a existência de um objeto da existência de outros deve haver algum objeto presente à memória ou aos senti dos que sirva de fundamento a nosso raciocínio já que a mente não pode seguir com suas inferências ao infinito A razão jamais pode nos convencer de que a existência de um objeto qualquer implica a de outro assim quando passamos da impressão de um à idéia de ou tro ou à crença nele não estamos sendo determinados pela razão mas pelo costume ou um princípio de associação Mas a crença é algo mais que uma simples idéia É uma maneira particular de formar uma idéia E como a mesma idéia só pode ser alterada por uma alte ração em seus graus de força e vividez seguese de tudo o que foi dito que a crença é uma idéia vívida produzida por uma relação com uma impressão presente conforme à definição precedente 7 Essa operação da mente que gera a crença em um fato parece ter sido até hoje um dos maiores mistérios da filosofia embora nin guém tenha sequer suspeitado de que havia alguma dificuldade em sua explicação De minha parte devo confessar que vejo aqui uma dificuldade considerável e mesmo quando penso compreender per feitamente o assunto não encontro as palavras adequadas para expressar o que quero dizer Por uma indução que me parece bastan te evidente concluo que uma opinião ou crença não é senão uma idéia que difere de uma ficção não na natureza ou na ordem de suas par tes mas sim na maneira como é concebida Mas quando pretendo explicar o que é essa maneira não consigo encontrar nenhuma pala vra plenamente satisfatória sendo por isso obrigado a apelar para aquilo que cada um sente a fim de lhe dar uma noção perfeita dessa operação da mente Uma idéia que recebe o assentimento é sentida única diferença apreciável se dá quando juntamos uma crença à concepção e estamos persuadidos da verdade daquilo que concebemos Esse ato mental nunca foi explicado por nenhum filósofo Por isso sintome livre para propor minha hipótese a seu respeito a crença é somente a concepção forte e firme de uma idéia aproximandose em grande medida de uma impressão imediata 1 2 6 Livro 1 Parte 3 Seção 7 de maneira diferente ífeels different de uma idéia fictícia apresenta da apenas pela fantasia É essa maneira diferente de sentir this different feeling que tento explicar denominandoa uma força vividez solidez firmeza ou estabilidade superior Essa variedade de termos que pode parecer tão pouco filosófica busca apenas exprimir aquele ato mental que torna as realidades mais presentes a nós que as ficções e faz que tenham um peso maior no pensamento bem como uma in fluência superior sobre as paixões e a imaginação Contanto que con cordemos acerca dos fatos é desnecessário discutir sobre os termos A imaginação tem o controle de todas as suas idéias podendo juntá las misturálas e alterálas de todos os modos possíveis Ela pode con ceber os objetos com todas as circunstâncias de tempo e espaço Pode por assim dizer apresentálos a nossos olhos em suas cores verda deiras exatamente como devem ter existido Mas como é impossí vel que essa faculdade possa jamais por si só alcançar a crença é evidente que esta não consiste na natureza ou na ordem de nossas idéias mas na maneira como as concebemos e como são sentidas pela mente Confesso que é impossível explicar perfeitamente essa sensa ção ífeeling ou maneira de se conceber Podemos empregar palavras que expressem algo próximo a isso Mas seu nome verdadeiro e apro priado é crença termo que todos compreendem suficientemente na vida comum E na filosofia não podemos ir além da afirmação de que a crença é algo sentido pela mente que permite distinguir as idéias do juízo das ficções da imaginação A crença dá a essas idéias mais força e influência faz que pareçam mais importantes fixaas na mente e as torna os princípios reguladores de todas as nossas ações Essa definição também irá se mostrar inteiramente conforme à sensação ífeeling e à experiência de cada um de nós Nada é mais evidente que o fato de que as idéias a que damos nosso assentimento são mais fortes firmes e cheias de vida que os vagos devaneios de um sonhador Se uma pessoa sentase para ler um livro como se fosse um romance e outra como se ele fosse uma história verdadeira é 1 2 7 Tratado da natureza humana claro que elas recebem as mesmas idéias na mesma ordem e a cre dulidade de uma e a incredulidade da outra não as impedem de atri buir exatamente o mesmo sentido a seu autor As palavras deste pro duzem as mesmas idéias em ambas mas seu testemunho não tem sobre elas a mesma influência A segunda tem uma concepção mais viva de todos os incidentes entra mais profundamente nos proble mas dos personagens representa para si mesma suas ações caráter amizades e inimizades chega até a formar uma noção de seus tra ços aparência e modos Ao passo que a primeira como não dá crédi to ao testemunho do autor concebe todos esses detalhes de maneira mais fraca e lânguida e não fosse pelo estilo e habilidade da compo sição não conseguiria extrair da obra quase nenhum prazer Seção 8 Das causas da crença 1 Tendo assim explicado a natureza da crença e mostrado que con siste em uma idéia vívida relacionada com uma impressão presente exa minemos agora de que princípios ela deriva e o que confere vivi dez à idéia 2 Gostaria de estabelecer como uma máxima geral da ciência da na tureza humana que quando uma impressão se torna presente a nós ela não apenas conduz a mente às idéias com que está relacionada mas também comunicalhes parte de sua força e vividez Todas as operações da mente dependem em grande medida da disposição em que esta se encontra ao realizálas e conforme os espíritos animais estejam mais ou me nos estimulados e a atenção mais ou menos concentrada a ação terá sempre mais ou menos vigor e vividez Assim quando se apresen According as the spirits are more or less elevated Hume utiliza indiferentemente spirits no plural e animal spirits para se referir aos espiritos animais Neste e em alguns outros casos pe à p387 é possível que ele esteja se referindo de maneira mais vaga àquilo que poderíamos chamar de o estado de ânimo de uma pessoa como nas expres sões to be in high spirits ou to be in low spirits Cf Oxford English Dictionary e nota de D F e M J Norton e esta ocorrência op cit p455 Os dois sentidos entretanto estão estreitamente relacionados Vejase a outra ocorrência do termo mais adiante nes te mesmo parágrafo NT 1 28 Livro 1 Parte 3 Seção 8 ta um objeto que esperta e aviva o pensamento toda ação a que a men te se aplica será mais forte e vívida enquanto durar tal disposição Ora é evidente que a continuidade da disposição depende inteiramen te dos objetos para os quais a mente se volta Um objeto novo dá na turalmente uma nova direção aos espíritos alterando a disposição da mente Ao contrário quando a mente se fixa de maneira constante no mesmo objeto ou quando passa fácil e imperceptivelmente por obje tos relacionados a disposição tem uma duração muito mais longa Ocorre assim que quando a mente é estimulada por uma impressão presente ela passa a formar uma idéia mais viva dos objetos relaciona dos em virtude de uma transição natural da disposição de um a outro A mudança de objetos é tão fácil que a mente quase não se dá conta dela aplicandose em conceber as idéias relacionadas com toda a força e vividez que adquiriu da impressão presente 3 Se podemos nos convencer da realidade desse fenômeno simples mente considerando a natureza da relação e a facilidade de transição que lhe é essencial então muito bem Mas confesso que para provar um princípio tão importante confio sobretudo na experiência O pri meiro experimento a que recorreremos para obter tal prova é o se guinte podemos observar que ao nos ser apresentado o retrato de um amigo ausente a idéia que temos dele se aviva de forma evidente pela semelhança e que todas as paixões que essa idéia ocasiona quer de alegria quer de tristeza adquirem nova força e vigor Concorrem para a produção desse efeito uma relação e uma impressão presente Se o quadro não mostra nenhuma semelhança com esse amigo ou se não pretendia retratálo não chega sequer a conduzir nosso pen samento a ele E quando além da pessoa do amigo também seu re trato está ausente embora a mente possa passar do pensamento de um ao de outro ela sente sua idéia antes ser enfraquecida que aviva da por essa transição Temos prazer em ver o retrato de um amigo quando colocado à nossa frente mas quando retirado preferimos pensar em nosso amigo diretamente e não por meio de seu reflexo em uma imagem igualmente distante e obscura 1 29 Tratado da natureza humana 4 As cerimônias da religião católica romana podem ser considera das como experimentos da mesma natureza Quando criticados os devotos dessa estranha superstição costumam justificar toda aquela sua pantomima alegando que esses movimentos posturas e ações exteriores lhes são benéficos por revitalizar sua devoção e estimular seu fervor os quais de outro modo se dirigidos inteiramente para objetos distantes e imateriáis acabariam por se apagar Figuramos os objetos de nossa fé em emblemas e imagens sensíveis dizem eles e assim pela presença imediata desses emblemas tornamos tais obje tos mais presentes a nós do que seria possível por uma mera visão e contemplação intelectuais Objetos sensíveis exercem sempre uma influência maior sobre a fantasia que qualquer outro tipo de obje to e transmitem essa influência facilmente às idéias com que es tão relacionados e às quais se assemelham Dessas práticas e desse raciocínio inferirei apenas que o efeito da semelhança ao avivar as idéias é muito comum e como em todos os casos uma semelhança e uma impressão presente devem concorrer temos à nossa disposi ção uma abundância de experimentos para provar a realidade do prin cípio precedente 5 Podemos reforçar esses experimentos por meio de outros de um tipo diferente considerando os efeitos da contigüidade além dos da semelhança É certo que a distância diminui a força de qualquer idéia e que ao nos aproximarmos de um objeto este mesmo que não se mostre a nossos sentidos age sobre a mente com uma influência que imita a de uma impressão imediata Pensar em um objeto rapidamente conduz a mente ao que lhe é contíguo mas apenas a presença real de um objeto o faz com uma vividez superior Quando estou a algu mas milhas de casa tudo que se relaciona com ela me toca mais de perto do que quando estou a duzentas léguas Mesmo a essa distân cia porém o ato de refletir sobre alguma coisa próxima de meus amigos e família produz naturalmente uma idéia deles Mas neste úl timo caso ambos os objetos da mente são idéias e por isso apesar de haver uma transição fácil entre elas essa transição sozinha não é 1 3 0 Livro 1 Parte 3 Seção 8 capaz de conferir a nenhuma das duas uma vividez superior por fal ta de uma impressão imediata 6 Não há dúvida de que a causalidade tem a mesma influência que as outras duas relações de semelhança e contigüidade Os supersti ciosos têm grande estima por relíquias de santos e beatos e a razão disso é a mesma que os leva a buscar emblemas e imagens ou seja para intensificar sua devoção e formar uma concepção mais íntima e forte daquelas vidas exemplares que tanto desejam imitar Ora é evi dente que uma das melhores relíquias que um devoto poderia conse guir seria algo produzido pelas mãos de um santo e se as roupas e apetrechos deste podem ser considerados como relíquias é por terem estado algum dia à sua disposição tendo sido tocados e afetados por ele e nesse sentido devem ser considerados como uma espécie de efeitos as imperfect effects conectados a ele por meio de uma cadeia di conseqüências mais curta que aquelas que nos levam a conhecer a realidade de sua existência Esse fenômeno prova de maneira clara que uma impressão presente juntamente com uma relação de causalidade pode avivar qualquer idéia e em conseqüência disso produzir crença ou assentimento conforme a definição precedente dessa noção 7 Mas por que procurar outros argumentos para provar que uma impressão presente junto com uma relação ou transição da fanta sia pode avivar uma idéia quando o exemplo mesmo de nossos racio cínios de causa e efeito é suficiente para esse propósito É certo que devemos ter uma idéia de toda questão de fato em que acreditamos É certo que essa idéia surge somente de uma relação com uma im pressão presente É certo que a crença não acrescenta nada à idéia mas apenas transforma nossa maneira de a conceber tornandoa mais forte e vívida A presente conclusão a respeito da influência da rela ção é a conseqüência imediata de todos esses passos e cada passo me parece seguro e infalível As únicas coisas que entram nessa ope ração da mente são uma impressão presente uma idéia vívida e uma Ver Apêndice p668 1 3 1 Tratado da natureza humana relação ou associação na fantasia entre a impressão e a idéia de for ma que não pode haver nem suspeita de erro 8 Para esclarecer de maneira mais completa todo esse tema consideremolo como uma questão de filosofia da natureza que deve ser determinada pela experiência e observação Suponhamos que haja diante de mim um objeto do qual extraio uma certa conclu são formando idéias em que se diz que acredito ou a que dou meu assentimento É evidente que aqui se pode pensar que o objeto pre sente a meus sentidos e aquele cuja existência infiro pelo raciocínio influenciam um ao outro por seus poderes ou qualidades particula res Entretanto como o fenômeno da crença que ora examinamos é meramente interno esses poderes e qualidades sendo inteiramente desconhecidos não podem ter nenhuma participação em sua pro dução A impressão presente é que deve ser considerada a causa ver dadeira e real da idéia bem como da crença que a acompanha De vemos portanto tentar descobrir por meio de experimentos as qualidades particulares que a tornam capaz de produzir um efeito tão extraordinário 9 Primeiramente pois observo que a impressão presente não tem esse efeito em virtude de seu próprio poder e eficácia e quando con siderada isoladamente como uma percepção singular limitada ao mo mento presente Constato que uma impressão da qual não sou ca paz de tirar nenhuma conclusão quando de sua primeira aparição pode mais tarde tornarse o fundamento da crença uma vez que eu tenha tido experiência de suas conseqüências usuais Em cada caso é preciso que tenhamos observado a mesma impressão em exemplos passados e que essa impressão tenha ocorrido em conjunção cons tante com alguma outra impressão Isso se confirma por tantos ex perimentos que não admite a menor dúvida 10 De uma segunda observação concluo que a crença que acompa nha a impressão presente e é produzida por um certo número de im pressões e conjunções passadas surge imediatamente sem nenhu ma operação nova da razão ou imaginação Posso estar certo disso 1 32 Livro 1 Parte 3 Seção 8 porque jamais tenho consciência de uma operação assim e não en contro nada em que ela pudesse estar fundada Ora como chama mos de COSTUME a tudo aquilo que procede de uma repetição passa da sem nenhum novo raciocínio ou conclusão podemos estabelecer como uma verdade certa que toda a crença que se segue a uma im pressão presente é derivada exclusivamente dessa origem Quando estamos acostumados a ver duas impressões em conjunção o apa recimento ou a idéia de uma nos leva imediatamente à idéia da outra 11 Estando plenamente satisfeito quanto a isso farei uma terceira série de experimentos a fim de descobrir se além da transição habi tual alguma coisa mais é requerida para a produção desse fenômeno da crença Substituo assim a primeira impressão por uma idéia e observo que embora a transição habitual para a idéia correlata ainda permaneça não há na realidade nenhuma crença ou persuasão Uma impressão presente portanto é absolutamente necessária para toda essa operação Quando em seguida comparo uma impressão com uma idéia e vejo que sua única diferença está em seus graus de força e vividez concluo de tudo isso que a crença é uma concepção mais vívida e intensa de uma idéia procedente de sua relação com uma impressão presente 12 Assim todo raciocínio provável não é senão uma espécie de sen sação Não é somente na poesia e na música que devemos seguir nos so gosto e sentimento mas também na filosofia Quando estou con vencido de um princípio qualquer é apenas uma idéia que me atinge com mais força quando dou preferência a um conjunto de argumen tos sobre outro não faço mais que decidir partindo daquilo que sin to from my feeling sobre a superioridade de sua influência Os ob jetos não possuem entre si nenhuma conexão que se possa descobrir e nenhum outro princípio senão o costume operando sobre a imagi nação permitenos fazer uma inferência da aparição de um à exis tência de outro 13 Vale a pena observar aqui que a experiência passada da qual de pendem todos os nossos juízos a respeito de causas e efeitos pode 1 33 Tratado da natureza humana atuar em nossa mente de maneira tão insensível que passa desperce bida podendo mesmo em certa medida sernos desconhecida Se uma pessoa interrompe sua viagem ao encontrar um rio no caminho é porque prevê as conseqüências de seguir adiante e seu conheci mento dessas conseqüências é transmitido pela experiência passa da que lhe informa sobre determinadas conjunções de causas e efei tos Mas será possível pensar que nesse momento ela se põe a refletir sobre alguma experiência passada e a recordar casos que viu ou de que ouviu falar a fim de descobrir os efeitos da água sobre o corpo animal Certamente não não é assim que procede seu raciocínio A idéia de afundar está tão intimamente conectada com a de água e a idéia de se afogar com a de afundar que a mente faz a transição sem o auxílio da memória O costume age antes que tenhamos tempo de refletir Os objetos parecem de tal modo inseparáveis que não aguar damos um só momento para passar de um ao outro Mas como essa transição procede da experiência e não de alguma conexão anterior entre as idéias temos necessariamente de reconhecer que a experiên cia pode produzir uma crença e um juízo de causas e efeitos por uma operação secreta e sem que pensemos nela uma vez sequer Isso eli mina qualquer pretexto se ainda restar algum para afirmar que é pelo raciocínio que a mente se convence do princípio de que os casos de que não tivemos experiência devem necessariamente se assemelhar àqueles de que tivemos Pois vimos aqui que o entendimento ou imaginação é capaz de fazer inferências partindo da experiência passada sem refletir acer ca dela e mais ainda sem formar um princípio a seu respeito ou ra ciocinar com base nesse princípio 14 Podemos observar em geral que em todas as conjunções mais firmes e uniformes de causas e efeitos como as de gravidade choque impulse solidez etc a mente nunca se volta expressamente para a consideração de experiências passadas Mas em outras associações de objetos mais raras e inusitadas ela pode auxiliar o costume e a transição de idéias por meio dessa reflexão Em alguns casos aliás vemos a refle xão produzir a crença sem o costume ou mais propriamente falando 1 34 Livro 1 Parte 3 Seção 8 vemos a reflexão produzir o costume de maneira oblíqua e artificial Explicome É certo que não só na filosofia mas mesmo na vida corrente podemos obter o conhecimento de uma causa particular com base em apenas um experimento contanto que este seja feito criteriosamente e após uma cuidadosa exclusão de todas as circuns tâncias estranhas e supérfluas Ora uma vez que após um único ex perimento dessa espécie a mente quando do aparecimento da causa ou do efeito é capaz de inferir a existência de seu correlato e uma vez que um hábito nunca pode ser adquirido por apenas uma ocor rência podese pensar que neste caso não se deve considerar a cren ça como efeito do costume Tal dificuldade desaparecerá se conside rarmos que embora estejamos aqui supondo ter tido àpenas uma experiência de um efeito particular tivemos milhões para nos con vencer do princípio de que objetos semelhantes em circunstâncias seme lhantes produzirão sempre efeitos semelhantes E como esse princípio foi estabelecido com base em um costume suficiente ele confere evidên cia e firmeza a qualquer opinião a que possa se aplicar A conexão das idéias não se torna habitual após uma única experiência mas essa conexão está compreendida sob um outro princípio que é habitual o que nos traz de volta à nossa hipótese Em todos os casos transfe rimos nossa experiência a ocorrências de que não tivemos experiên cia expressa ou tacitamente direta ou indiretamente 15 Não devo concluir este tema sem observar que é muito difícil fa lar das operações da mente de modo perfeitamente apropriado e exato pois a linguagem corrente raramente faz distinções muito sutis en tre elas referindose em geral pelo mesmo termo a todas as que pos suem uma grande semelhança E como essa é uma fonte quase ine vitável de obscuridade e confusão no autor pode freqüentemente gerar dúvidas e objeções no leitor com as quais ele de outro modo nunca haveria sonhado Assim minha posição geral que uma opinião ou crença não é senão uma idéia forte e vívida derivada de uma impressão pre sente a ela relacionada é passível da seguinte objeção em razão de uma 1 3 5 Tratado da natureza humana pequena ambigüidade nas palavras forte e vívida Podese dizer que não apenas uma impressão pode originar um raciocínio mas uma idéia também pode ter o mesmo efeito sobretudo se levarmos em conta meu princípio de que todas as nossas idéias são derivadas de im pressões correspondentes Pois suponhase que eu forme agora uma idéia de cuja impressão correspondente me esqueci Sou capaz de concluir dessa idéia que uma tal impressão algum dia existiu e como essa con clusão é acompanhada de crença podese perguntar de onde derivam as qualidades da força e da vividez que constituem essa crença Ao que respondo imediatamente da idéia presente Porque como essa idéia não é aqui considerada a representação de um objeto ausente mas sim uma real percepção na mente da qual estamos intimamente cons cientes ela deve ser capaz de conferir a tudo que esteja relacionado com ela a mesma qualidade quer a chamemos de firmeza solidez força ou vividez com que a mente reflete sobre ela e se assegura de sua existência presente A idéia ocupa aqui o lugar de uma impres são e no que diz respeito a nosso propósito presente é exatamente igual a ela 16 Segundo esses mesmos princípios não há nada de surpreendente no se falar da lembrança de uma idéia isto é da idéia de uma idéia e de sua força e vividez superior à das vagas concepções da imagina ção Ao pensar em nossos pensamentos passados não apenas figu ramos os objetos em que pensávamos mas também concebemos a ação da mente na meditação aquele certo jenesaisquoi impossível de ser definido ou descrito mas que cada um de nós entende suficien temente Quando a memória proporciona uma idéia disto e a representa como passada é fácil conceber por que essa idéia pode ter mais vigor e firmeza do que quando pensamos em um pensamento passado do qual não temos nenhuma lembrança 17 Depois disso qualquer um entenderá como podemos formar a idéia de uma impressão e de uma idéia e como podemos crer na existência de uma impressão e de uma idéia 13 6 Tratado da natureza humana fazer nenhuma inferência de um objeto a outro exceto quando estão conectados por essa relação podemos concluir que há algum erro nesse raciocínio e que é esse erro que nos leva a tais dificuldades 3 Essa é a objeção consideremos agora sua solução É evidente que tudo que está presente à memória por atingir a mente com uma vivi dez semelhante à de uma impressão presente deve assumir uma im portância considerável em todas as operações da mente sobressain do facilmente às meras ficções da imaginação Dessas impressões ou idéias da memória formamos uma espécie de sistema que compreen de tudo o que nos lembramos ter estado presente a nossa percepção interna ou a nossos sentidos e a cada elemento particular desse sis tema juntamente com as impressões presentes costumamos cha mar de uma realidade Mas a mente não pára aqui Ao constatar que esse sistema de percepções está conectado com um outro sistema pelo costume ou se quisermos pela relação de causa e efeito ela passa a considerar as idéias deste sistema E sentindo que está de certo modo necessariamente determinada a visar essas idéias em particular e que o costume ou relação que a determina não admite a menor alteração forma com elas um novo sistema igualmente agraciado com o título de realidades O primeiro sistema é objeto da memória e dos sentidos o segundo do juízo 4 É este último princípio que povoa o mundo trazendo a nosso conhecimento aquelas existências que por afastadas no tempo e no espaço encontramse fora do alcance dos sentidos e da memória Por meio dele eu pinto o mundo em minha imaginação fixando minha atenção em qualquer parte que desejar Formo uma idéia de ROMA cidade que não vejo nem recordo mas que está conectada com impressões que me lembro ter obtido em conversas e em livros de viajantes e historiadores Essa idéia de Roma situoa em um certo lugar sobre a idéia de um objeto que chamo de globo terrestre Jun to a ela a concepção de um governo religião e costumes particula res Olho para trás e considero o momento de sua fundação suas diversas revoluções vitórias e infortúnios Tudo isso e tudo mais 1 3 8 Livro 1 Parte 3 Seção 9 em que acredito não são senão idéias entretanto por sua força e ordem inflexível derivadas do costume e da relação de causa e efei to distinguemse das outras idéias que são meramente frutos da imaginação 5 Quanto à influência da contigüidade e da semelhança podemos observar que se o objeto contíguo e semelhante estiver compreen dido nesse sistema de realidades não há dúvida de que essas duas relações irão auxiliar a de causa e efeito fixando mais fortemente na imaginação a idéia relacionada Logo desenvolverei esse ponto En quanto isso levo minha observação um passo adiante e afirmo que mesmo quando apenas fantasiamos o objeto relacionado a relação serve para avivar a idéia e ampliar sua influência Um poeta sem dú vida será capaz de fazer uma descrição mais viva dos Campos Elíseos se estimular sua imaginação pela visão de um belo prado ou jardim em outro momento pode também por meio de sua fantasia colo carse nesse lugar fabuloso avivando assim sua imaginação por meio dessa contigüidade simulada O texto da NNOPT corrige object para objects por julgarem seus editores que o substantivo relevante aqui se refere aos objetos relacionados à idéia de Roma e não à própria idéia de Roma Discordo dessa solução 1 nesse parágrafo Hume está iniciando um novo raciocínio O exemplo de Roma vinha mostrar como incluímos no segundo sistema de realidades aquelas idéias relacionadas às idéias da memória ou às impressões dos sentidos por meio da relação de causa e efeito Nesse novo parágrafo ele está tratan do das outras duas relações de contigüidade e semelhança Para ilustrálas ele nos dará um outro exemplo a saber do poeta que vai para um jardim real para melhor imaginar os Campos Elíseos 2 de todo modo os objetos relacionados à idéia de Roma já se encon tram inseridos dentro do primeiro sistema de realidades é a realidade do segundo tipo atribuída à própria idéia de Roma que cabe explicar 3 finalmente notese a frase de Hume logo antes do exemplo do poeta Enquanto isso afirmo que mesmo quando apenas fantasiamos o objeto relacionado NT Com um sentido que se situa no ponto de interseção entre inventar forjar fingir simular imaginar fantasiar e assumir algo hipoteticamente o verbo to feign não possui um equivalente ideal em português Traduzio algumas vezes por simular imaginar e pela expressão criarproduzir a ficção de na maior parte das ocorrências entretanto empreguei a palavra fantasiar Em um único caso p54 7 utilizei o adjetivo hipotético para feigned Por outro lado como Hume utiliza indiferentemente os subs tantivos imagination imaginação e fancy fantasia e como o verbo to imagine também é usado como sinônimo de to fancy traduzi ambos os verbos por imaginar cf p2556 NT 1 3 9 Tratado da natureza humana 6 Mas embora não se possa negar por completo a ação da seme lhança e contigüidade sobre a fantasia observemos que quando iso ladas sua influência é muito fraca e incerta Assim como é preciso a relação de causa e efeito para nos persuadir da existência real de algo assim também tal persuasão é necessária para dar força às outras relações Pois mesmo se quando da aparição de uma impressão não apenas fantasiamos um outro objeto mas além disso arbitrariamente e para nosso simples prazer atribuímos a ele uma relação particular com a impressão é pequeno o efeito que tal relação pode ter sobre a mente E quando essa mesma impressão retorna não há nenhuma razão que nos faça colocar o mesmo objeto na mesma relação com ela A mente não tem absolutamente nenhuma necessidade de fan tasiar objetos semelhantes e contíguos e se o faz tampouco tem ne cessidade de se restringir sempre aos mesmos objetos sem nenhu ma diferença ou variação De fato há tão pouca razão fundamentando tal ficção que nada a não ser o puro capricho pode determinar a mente a formála E como esse princípio é oscilante e incerto é impossível que ele possa jamais operar com um grau considerável de força e Ons tância A mente prevê e antecipa a mudança e desde o primeiro ins tante sente como são imprecisas suas ações e como é fraco o domí nio que exerce sobre seus objetos Tal imperfeição bastante sensível em cada caso singular aumenta ainda mais pela experiência e observa ção quando comparamos os diversos casos de que nos lembramos e formamos uma regra geral contra a atribuição de qualquer certeza a esses lampejos momentâneos que surgem na imaginação em con seqüência de uma semelhança e contigüidade fantasiadas 7 A relação de causa e efeito tem todas as vantagens opostas Os objetos que apresenta são fixos e inalteráveis As impressões da me mória nunca se alteram consideravelmente e cada impressão traz con sigo uma idéia precisa que toma seu lugar na imaginação como algo sólido e real certo e invariável O pensamento vêse sempre determi nado a passar da impressão à idéia e dessa impressão particular àquela idéia particular sem escolha ou hesitação 1 40 Livro 1 Parte 3 Seção 9 8 Não satisfeito em afastar essa objeção porém tentarei extrair dela uma prova da presente doutrina Contigüidade e semelhança exer cem um efeito muito inferior ao da causalidade mas ainda assim exercem algum efeito aumentando a convicção das opiniões e a vividez das concepções Se pudermos provar essa afirmação em vários novos casos além daqueles que já observamos teremos um argumen to bastante considerável a favor da tese de que a crença não é senão uma idéia vívida relacionada a uma impressão presente 9 Comecemos pela contigüidade Observouse tanto entre os maometanos como entre os cristãos que os peregrinos que estiveram em MECA ou na TERRA SANTA tornamse para sempre crentes mais fiéis e zelosos que aqueles que nunca tiveram tal oportunidade Um homem cuja memória apresenta uma imagem viva do Mar Vermelho do deserto de jerusalém e da Galiléia jamais pode duvidar dos aconte cimentos miraculosos relatados por Moisés ou pelos Evangelistas A idéia vívida dos lugares passa por uma transição fácil aos fatos que se supõem terem sido relacionados a eles por contigüidade e ao au mentar a vividez da concepção aumenta também a crença A lembran ça desses campos e rios tem sobre o vulgo a mesma influência que um novo argumento e pelas mesmas causas 10 Podemos fazer uma observação similar a respeito da semelhança Vimos que a inferência que fazemos de um objeto presente à sua causa ou efeito ausente nunca está fundada em qualidades que ob servamos nesse objeto considerado em si mesmo Em outras pala vras é impossível determinar senão pela experiência o que há de resultar de um fenômeno qualquer ou o que o precedeu No entan to embora isso seja tão evidente em si mesmo que nos pareceu não necessitar de prova alguns filósofos imaginaram que existe uma causa manifesta da comunicação do movimento e que qualquer pes soa sensata poderia imediatamente inferir o movimento de um corpo partindo do impacto de outro sem recorrer à observação passada Mas é fácil provar que essa opinião é falsa Se tal inferência pudesse ser feita simplesmente tomando por base as idéias de corpo movimento 1 4 1 Tratado da natureza humana e impacto ela deveria constituir uma demonstração e implicar a ab soluta impossibilidade de qualquer suposição contrária Assim todo efeito distinto da comunicação de movimento implicaria uma contra dição formal e seria impossível não somente que ele existisse como também que fosse concebido Mas podemos rapidamente nos con vencer do contrário formando uma idéia clara e consistente do movi mento de um corpo em direção a outro e de seu repouso imediata mente após o contato ou então de seu retorno pela mesma linha por onde veio ou de sua aniquilação ou de um movimento circular ou elíptico e em suma de um número infinito de outras mudanças que podemos supor que ele sofra Todas essas suposições são consisten tes e naturais A razão por que imaginamos que a comunicação de mo vimento é mais consistente e natural não apenas que os efeitos impli cados em tais suposições mas também que qualquer outro efeito natural fundase na relação de semelhança entre a causa e o efeito que neste caso está unida à experiência ligando os objetos entre si da maneira mais estreita e íntima a ponto de nos fazer imaginar que são absolutamente inseparáveis A semelhança portanto tem uma influên cia igual ou análoga à da experiência E como o único efeito imediato da experiência é associar nossas idéias entre si seguese que toda crença resulta da associação de idéias conforme a minha hipótese 11 Todos os tratados de óptica admitem que o olho vê sempre o mes mo número de pontos físicos e que a imagem que se apresenta aos sentidos de um homem quando este se encontra no topo de uma montanha não é maior que quando ele está confinado no mais es treito pátio ou aposento É somente pela experiência que ele infere a grandeza do objeto com base em certas qualidades peculiares da ima gem e isso que é uma inferência do juízo ele confunde com uma sensação como costuma ocorrer em outras ocasiões Ora é eviden te que neste caso a inferência do juízo é muito mais vívida que aquela que é comum em nossos raciocínios correntes Um homem forma uma concepção mais vívida da vasta extensão do oceano pela imagem que recebe do olho quando está no alto de um promontório do que 1 42 Livro 1 Parte 3 Seção 9 simplesmente pelo barulho das ondas Extrai um prazer mais sensí vel de sua grandeza o que prova a presença de uma idéia mais vívida e confunde seu juízo com uma sensação o que é mais uma prova disso Como a inferência é igualmente certa e imediata em ambos os casos porém essa vividez superior de nossa concepção em um caso só pode proceder do fato de que ao fazermos uma inferência basea dos na visão existe além da conjunção habitual uma semelhança entre a imagem e o objeto inferido e essa semelhança fortalece a relação transmitindo a vividez da impressão para a idéia relacionada com um movimento mais fácil e natural 12 Não há fraqueza mais universal e manifesta na natureza huma na que aquilo que comumente chamamos de CREDULIDADE ou seja uma fé demasiadamente fácil no testemunho alheio Essa fraqueza também se explica de modo muito natural pela influência da seme lhança Quando admitimos uma questão de fato baseados no teste munho dos homens nossa fé tem exatamente a mesma origem que nossas inferências de causas a efeitos e de efeitos a causas Somente nossa experiência dos princípios que governam a natureza humana pode nos assegurar da veracidade dos homens Mas embora a expe riência seja o verdadeiro critério deste bem como de todos os outros juízos raramente nos guiamos inteiramente por ela Possuímos uma notável propensão a crer em tudo que nos é relatado mesmo no caso de aparições encantamentos e prodígios por mais contrários que sejam à experiência e à observação diárias As palavras ou discursos dos outros têm uma estreita conexão com certas idéias existentes em suas mentes e essas idéias também têm uma conexão com os fatos ou objetos que representam Esta última conexão é em geral muito superestimada e induz nosso assentimento além do que seria justi ficável pela experiência o que só pode proceder da semelhança en tre as idéias e os fatos Outros efeitos indicam suas causas apenas de maneira oblíqua mas o testemunho humano o faz diretamente devendo ser considerado não só um efeito mas igualmente uma ima gem Não é de admirar pois que nos precipitemos tanto fazendo 1 43 Tratado da natureza humana inferências com base em tal testemunho e que em nossos juízos a seu respeito deixemonos guiar pela experiência em menor medida que nos juízos acerca de qualquer outro assunto 13 Assim como a semelhança quando conjugada com a causalida de fortalece nossos raciocínios assim também a ausência de seme lhança em um grau muito elevado é capaz de os destruir quase in teiramente Um exemplo notável disso é o descuido e a apatia universal dos homens diante de uma existência póstuma Em relação a esse assunto eles se mostram tão obstinadamente incrédulos como se mostram cegamente crédulos em outras ocasiões De fato nada for nece matéria tão ampla para a admiração dos estudiosos ou para o pesar dos piedosos que a observação da negligência da grande maio ria dos homens quanto à sua condição vindoura Com razão muitos teólogos eminentes não hesitaram em afirmar que embora o vulgo não possua princípios formais de negação da fé ele de fato é infiel em seu coração não possuindo nada semelhante ao que podemos de nominar de crença na duração eterna de sua alma De um lado con sideremos a importância da eternidade que os teólogos mostraram com tanta eloqüência e observemos que mesmo se tais discursos contêm um pouco de exagero como em todas as questões de retóri ca neste caso há que se admitir que as mais fortes figuras retóricas são infinitamente inferiores ao tema em pauta De outro lado consi deremos a prodigiosa tranqüilidade dos homens acerca disso Pergunto pois se as pessoas realmente crêem naquilo que lhes é inculcado e que pretendem professar A resposta é obviamente negativa Como a crença é um ato da mente decorrente do costume não é de se estranhar que a falta de semelhança destrua aquilo que o costume estabeleceu diminuindo a força da idéia tanto quanto este último princípio a au menta Uma vida póstuma é algo tão afastado de nossa compreen são e é tão obscura nossa idéia do modo como existiremos após a dis solução do corpo que todas as razões que podemos inventar por mais fortes que sejam em si mesmas e por mais reforçadas pela educação jamais são capazes de superar a dificuldade encontrada por nossas 1 44 Livro 1 Parte 3 Seção 9 imaginações morosas conferindo uma autoridade e força suficien tes à idéia Tal incredulidade devese à fraqueza da idéia que forma mos sobre nossa condição futura o que atribuo antes à falta de se melhança desta com a vida presente do que à sua grande distância de nós Pois observo que todos os homens se preocupam com o que pode acontecer após sua morte contanto que isso diga respeito a este mun do são poucos os que em qualquer período de sua vida são indife rentes a seu nome sua família seus amigos e seu país 14 De fato a falta de semelhança neste caso destrói tão completa mente a crença que à parte aqueles poucos que após refletir friamen te sobre a importância do assunto tiveram o cuidado de imprimir em sua mente por uma repetida meditação os argumentos a favor de uma existência póstuma dificilmente alguém acreditaria na imorta lidade da alma com base em um juízo verdadeiro e bem estabelecido comparável ao que é derivado do testemunho de viajantes e historia dores Isso aparece de modo bastante evidente sempre que os homens têm a oportunidade de comparar os prazeres e as dores as recompen sas e as punições desta vida com os de uma vida futura mesmo que a questão não diga respeito a eles mesmos e nenhuma paixão violenta esteja perturbando seu julgamento Os católicos romanos formam cer tamente a seita mais zelosa de todo o mundo cristão e entretanto constatamos que quase todos os membros mais sensíveis dessa co munhão censuram a Conspiração da Pólvora e o massacre de São Bartolo meu considerandoos cruéis e bárbaros embora tenham sido planeja dos ou executados contra aquelas mesmas pessoas que sem qualquer escrúpulo eles condenam a castigos eternos e infinitos Tudo que podemos dizer para desculpar tal incoerência é que eles não crêem realmente naquilo que afirmam a respeito de uma existência póstu ma Aliás a melhor prova disso é essa própria incoerência 15 A isso podemos acrescentar uma observação Em questões de religião os homens têm prazer em sentir medo e os pregadores mais populares são os que despertam as paixões mais lúgubres e sombrias Nos afazeres cotidianos quando estamos mergulhados na materia 1 45 Tratado da natureza humana lidade sensível dos assuntos tratados nada pode ser mais desagra dável que o medo e o terror Somente nos espetáculos dramáticos e nos sermões religiosos estes podem nos dar prazer Aqui a imagina ção repousa indolentemente sobre a idéia e a paixão suavizada pela falta de crença no tema tem apenas o agradável efeito de dar ânimo à mente e prender sua atenção 16 A presente hipótese receberá uma confirmação adicional se exa minarmos os efeitos de outros tipos de costume bem como de ou tras relações Para compreender isso devemos considerar que o cos tume a que atribuo toda crença e raciocínio possui duas maneiras diferentes de atuar sobre a mente e revigorar uma idéia Supondo que durante toda a experiência passada tenhamos visto que dois objetos estiveram sempre em conjunção é evidente que quando do apareci mento de um desses objetos em uma impressão devemos por cos tume fazer uma transição fácil para a idéia daquele objeto que co mumente o acompanha E por meio da impressão presente e da transição fácil devemos conceber essa idéia de uma maneira mais forte e vívida que a maneira como concebemos qualquer das imagens vagas e oscilantes da fantasia Mas suponhamos agora que uma mera idéia isolada sem nada dessa preparação extremamente meticulosa e quase artificial apareça com freqüência na mente Essa idéia deve gradualmente adquirir força e facilidade e por sua forte influência como também pela facilidade com que é introduzida distinguese de toda idéia nova e inusitada Este é o único ponto em que esses dois tipos de costumes concordam E se ficar claro que seus efeitos so bre o juízo são similares e proporcionais poderemos concluir com segurança que a explicação precedente dessa faculdade é satisfatória Ora como duvidar dessa concordância em sua influência sobre o juízo após considerarmos a natureza e os efeitos da EDUCAÇÃO 17 Tão profundas são as raízes criadas por todas essas opiniões e noções das coisas a que nos acostumamos desde a infância que nos é quase impossível erradicálas mesmo com todos os poderes da ra zão e da experiência E a influência desse hábito não apenas se aproxi 1 46 Livro 1 Parte 3 Seção 9 ma daquela oriunda da união constante e inseparável de causas e efeitos mas também em muitas ocasiões prevalece sobre ela Em tal caso não devemos nos contentar em dizer que a vividez da idéia produz a crença devemos sustentar que elas são numericamente idên ticas A repetição freqüente de uma idéia fixaa na imaginação mas nunca poderia por si só produzir uma crença se pela constituição original de nossa natureza este ato da mente estivesse vinculado so mente a um raciocínio e a uma comparação de idéias O costume pode nos levar a uma falsa comparação de idéias esse é o maior efeito que se lhe pode conceber Mas é certo que nunca poderia ocupar o lugar dessa comparação nem produzir um ato da mente que coubesse naturalmente a tal princípio Alguém que teve uma perna ou um braço amputado continua durante muito tempo tentando usálos Após a morte de uma pes soa é comum sua família e sobretudo os criados observarem que quase não conseguem acreditar que ela morreu imaginam que ain da está em seu quarto ou em algum outro lugar onde costumavam encontrála Muitas vezes conversando sobre uma pessoa famosa ouvi alguém que não a conhecia dizer Nunca vi tal pessoa mas quase consigo imaginar que a conheço de tanto que ouço falar nela Todos esses são exemplos análogos Se analisado de maneira adequada este argumento da educação irá se mostrar bastante convincente tanto mais que está fundado em um dos fenômenos mais comuns que podemos encontrar Estou per suadido de que se examinarmos as opiniões que predominam entre os homens veremos que mais da metade delas se deve à educação e que os princípios abraçados desse modo implícito superam os resultantes do raciocínio abstrato ou da experiência Assim como os mentirosos de tanto repetirem suas mentiras acabam se lembrando delas como fatos assim também o juízo ou antes a imaginação por meios seme lhantes pode ter idéias impressas tão fortemente em si e concebêlas com tal clareza que essas idéias podem operar sobre a mente da mes ma maneira que aquelas que se apresentam pelos sentidos memória 1 4 7 Tratado da natureza humana ou razão Mas como a educação é uma causa artificial e não natural e como suas máximas são freqüentemente contrárias à razão e até a si mesmas em diferentes momentos e lugares ela nunca é reconhe cida pelos filósofos Na realidade entretanto ela é construída quase sobre o mesmo fundamento que o de nossa experiência ou de nos sos raciocínios de causas e efeitos ou seja o costume e a repetição7 Seção 1 O Da influência da crença 1 Embora a educação seja repudiada pela filosofia por ser consi derada uma base falaciosa de assentimento a qualquer opinião ela entretanto prevalece no mundo e é por sua causa que todos os siste mas por mais convincentes que sejam os argumentos sobre os quais se fundam tendem de início a ser rejeitados como novos e insólitos Talvez seja esse o destino do que aqui expus a respeito da crença e de nossos raciocínios sobre causas e efeitos e embora as provas que apresentei me pareçam perfeitamente conclusivas não espero ganhar muitos prosélitos para minha opinião Dificilmente os homens irão se convencer um dia de que efeitos de tal conseqüência podem emanar de princípios em aparência tão insignificantes e que a maior parte de nossos raciocínios juntamente com todas as nossas ações e paixões Acréscimo cf a edição NNOPT cujos editores esclarecem cf David F Norton Mary Norton op cit que para abrir espaço para a inserção de uma nota ampliando seu uso de imaginação Hume abreviou o texto de três parágrafos Assim a OPT restaura a parte do original que não se tornou redundante pela inserção da nota NT 7 Podemos observar em geral que como nosso assentimento aos raciocínios prováveis está sempre fundado na vividez das idéias ele se assemelha a muitos daqueles caprichos e preconceitos rejeitados sob a acusação ignominiosa de serem frutos da imaginação Essa expressão mostra que a palavra imaginação é comumente usada em dois sentidos di ferentes E embora nada seja mais contrário à verdadeira filosofia que essa imprecisão fui obrigado a incorrer nela freqüentemente nos raciocínios a seguir Quando oponho a imaginação à memória refirome à faculdade pela qual formamos nossas idéias mais fracas Quando a oponho à razão tenho em mente a mesma faculdade excluindo apenas nossos raciocínios demonstrativos e prováveis Quando não a oponho a nenhuma das duas é indiferente se a tomamos no sentido mais amplo ou no mais restrito ou ao menos o contexto será suficiente para explicar seu significado 1 48 Livro 1 Parte 3 Seção 1 0 podem ser derivados simplesmente do costume e do hábito Para afas tar essa objeção anteciparei aqui um pouco daquilo que considera remos de modo mais apropriado adiante quando tratarmos das pai xões e do sentido do belo 2 A natureza implantou na mente humana uma percepção do bem e do mal ou em outras palavras da dor e do prazer que é a principal fonte e princípio motor de todas as suas ações Mas dor e prazer têm duas maneiras de aparecer na mente cada uma com efeitos bem di ferentes Podem se dar como impressões que se apresentam à sen sação feeling e experiência real ou simplesmente como idéias como ocorre agora que os menciono Ora é evidente que a influência dessas impressões e dessas idéias sobre nossas ações está longe de ser igual As impressões sempre ativam a mente no mais alto grau mas nem toda idéia tem esse efeito A natureza agiu com prudência neste caso e parece ter cuidadosamente evitado os inconvenientes dos dois ex tremos Se apenas as impressões influenciassem a vontade estaría mos em todos os momentos de nossa vida sujeitos às maiores cala midades porque mesmo que prevíssemos a aproximação dessas calamidades a natureza não nos teria dotado de nenhum princípio de ação capaz de nos fazer evitálas Por outro lado se todas as idéias influenciassem nossas ações nossa condição não melhoraria mui to É tal a instabilidade e a atividade do pensamento que imagens de todas as coisas sobretudo de bens e males estão sempre a errar pela mente e se esta fosse movida por cada vã concepção desse tipo ja mais gozaria de um momento sequer de paz e tranqüilidade 3 Por isso a natureza escolheu um meiotermo não conferiu a toda idéia de bem e mal o poder de ativar a vontade mas tampouco reti roulhes por completo essa influência Embora ficções vãs não tenham Além do caso mais comum dos sentidos externos também quando a palavra sense se refere a sentimentos e juízos morais ou estéticos traduzia por sentido Algumas ve zes entretanto pareceume mais adequado empregar os termos sendo p405 sentimento p310 4279 e 538 e noção p404 e 420 nestes dois últimos casos porém acrescentei então o termo em inglês sense NT 1 49 Tratado da natureza humana nenhuma eficácia a experiência nos mostra que as idéias dos obje tos em cuja existência presente ou futura acreditamos produzem em menor grau o mesmo efeito que as impressões imediatamente pre sentes aos sentidos e à percepção O efeito da crença portanto é al çar uma simples idéia a um nível de igualdade com nossas impres sões conferindolhe uma influência semelhante sobre as paixões E ela só pode ter tal efeito fazendo a idéia se aproximar de uma impres são em sua força e vividez Pois como a diferença nos graus de força constitui toda a diferença original entre uma impressão e uma idéia ela deve também conseqüentemente ser a fonte de todas as diferen ças entre os efeitos dessas percepções e sua eliminação total ou par cial deve ser a causa de qualquer nova semelhança que venham a adqui rir Sempre que pudermos fazer uma idéia se aproximar das impressões no que se refere à força e vividez ela também as imitará em sua in fluência sobre a mente e viceversa quando imita essa influência como no caso presente isso deve proceder de sua aproximação em força e vividez Portanto como a crença faz com que uma idéia imite os efeitos das impressões ela deve fazer que se assemelhe a elas nes sas qualidades não sendo senão uma concepção mais vívida e intensa de uma idéia Isso pode servir pois tanto como um argumento adicional a favor do presente sistema quanto para nos dar uma noção da ma neira pela qual nossos raciocínios causais são capazes de agir sobre a vontade e as paixões 4 Assim como a crença é um requisito quase indispensável para despertar nossas paixões também as paixões são por sua vez mui to favoráveis à crença Por esse motivo não apenas os fatos que pro porcionam emoções agradáveis mas com freqüência também os que provocam dor tornamse mais facilmente objetos de fé e convicção Um covarde que se amedronta facilmente acredita sem pestanejar em qualquer um que lhe fale de um perigo Uma pessoa de disposi ção triste e melancólica é bastante crédula em relação a tudo que alimente sua paixão dominante Quando aparece um objeto capaz de afetála ele dá o alarme e imediatamente desperta um certo grau 1 50 Livro 1 Parte 3 Seção 1 0 de sua paixão correspondente sobretudo no caso das pessoas natu ralmente inclinadas a essa paixão Tal emoção passa para a imagina ção por uma transição fácil e ao se difundir por nossa idéia do obje to que causa o afeto levanos a formar essa idéia com uma força e vividez maiores e conseqüentemente a assentir a ela de acordo com o sistema precedente A admiração e a surpresa têm o mesmo efeito que as outras paixões assim observamos que charlatães e aventu reiros graças às suas pretensões grandiosas ganham a fé das pes soas comuns com mais facilidade do que se se mantivessem dentro dos limites da moderação O espanto inicial que naturalmente acom panha seus relatos fantásticos se espalha por toda a alma e vivifica e anima a idéia a tal ponto que acaba por tornála semelhante às inferências que extraímos da experiência Esse é um mistério com que devemos estar já um pouco familiarizados e em que teremos ain da ocasião de penetrar no decorrer deste tratado 5 Após essa explicação da influência da crença sobre as paixões encontraremos menor dificuldade em explicar seus efeitos sobre a imaginação por extraordinários que possam parecer É certo que não conseguimos extrair prazer de nenhuma narrativa se nosso juízo não concorda com as imagens apresentadas à nossa fantasia A con versa com pessoas que adquiriram o hábito de mentir mesmo em questões de pouca monta jamais nos dá satisfação isso porque as idéias que essas pessoas nos apresentam não sendo acompanhadas de crença tampouco produzem qualquer impressão sobre nossa men te Até os poetas embora mentirosos por profissão buscam sempre dar um ar de verdade a suas ficções e quando se descuidam inteira mente disso suas obras por mais engenhosas não são capazes de proporcionar muito prazer Em suma podemos observar que mes mo quando as idéias não têm nenhuma influência sobre a vontade e as paixões ainda se requer a verdade e a realidade para tornálas agra dáveis à imaginação 6 Se compararmos porém todos os fenômenos que ocorrem nes se domínio descobriremos que a verdade por mais necessária que possa parecer a toda obra de gênio não tem outro efeito senão 1 5 1 Tratado da natureza humana proporcionar uma fácil recepção para as idéias fazendo que a mente aquiesça a elas com satisfação ou ao menos sem relutância Ora pode mos admitir sem dificuldade que esse efeito é resultante daquela soli dez e força que segundo meu sistema acompanham todas as idéias estabelecidas mediante raciocínios causais seguese portanto que toda a influência da crença sobre a fantasia pode ser explicada por meio desse sistema Assim podemos observar que sempre que tal influência surge de outros princípios que não a verdade ou realida de esses outros princípios desempenham o mesmo papel que esta e satisfazem igualmente a imaginação Os poetas criaram o que cha mam de sistema poético das coisas e embora nem eles mesmos nem seus leitores creiam nesse sistema ele costuma ser considerado um fundamento suficiente para qualquer ficção Habituamonos tanto aos nomes Marte Júpiter e Vênus que assim como a educação fixa uma opinião a constante repetição dessas idéias faz que elas penetrem na mente com facilidade impondose à fantasia sem influenciar o juízo De maneira semelhante os autores trágicos sempre tomam sua fá bula ou ao menos o nome dos protagonistas de alguma passagem famosa da história E fazemno não para enganar os espectadores pois confessam francamente que não se atêm à verdade de forma inviolá vel mas sim para proporcionar aos acontecimentos extraordinários que representam uma recepção mais fácil na imaginação Mas essa precaução não é necessária no caso dos poetas cômicos cujos per sonagens e incidentes por serem mais familiares dispensam tais ce rimônias e são concebidos com mais facilidade mesmo sendo à sim ples vista reconhecidos como fictícios e puros produtos da fantasia 7 Tal mistura de verdade e falsidade nas fabulações dos poetas trá gicos não apenas serve a nosso propósito presente por mostrar que a imaginação pode ser satisfeita sem qualquer crença ou certeza ab soluta mas também vista de outro ângulo pode ser considerada uma fortíssima confirmação de nosso sistema É evidente que os poetas fazem uso desse artifício de extrair da história o nome de seus per sonagens bem como os episódios principais de seus poemas para 1 52 Livro 1 Parte 3 Seção 1 0 que o conjunto da obra seja mais facilmente recebido causando uma impressão mais profunda sobre a fantasia e os afetos Os diversos incidentes da peça adquirem uma espécie de relação por estarem uni dos em um poema ou encenação e se algum desses incidentes for objeto de crença concederá força e vividez a todos os outros com que esteja relacionado A vividez da primeira concepção espalhase pelas relações e é transmitida como se através de dutos ou canais a toda idéia que tenha alguma comunicação com a primeira É verdade que tal coisa nunca poderia constituir uma certeza perfeita porque a união entre as idéias é de certo modo acidental Mas sua influência pode chegar tão perto disso que é capaz de nos convencer de que ambas têm a mesma origem A crença deve aprazer à imaginação mediante a força e vividez que a acompanha já que toda idéia que possui força e vividez se mostra agradável a essa faculdade Para confirmar isso podemos observar que é mútua a colabora ção entre juízo e fantasia bem como entre juízo e paixão e não so mente a crença dá vigor à imaginação mas uma imaginação vigoro sa e forte é dentre todos os dons o mais apropriado para produzir crença e autoridade É difícil recusar nosso assentimento àquilo que é retratado com todas as cores da eloqüência E a vividez produzida pela fantasia é em muitos casos maior que a resultante do costume e da experiência Somos arrebatados pela viva imaginação daquele que lemos ou ouvimos e este último por sua vez é freqüentemente víti ma de seu próprio entusiasmo e genialidade Cabe observar que assim como uma imaginação vivaz muito amiúde degenera em loucura ou insensatez e guardalhes uma grande semelhança em suas operações assim também estas influenciam o juízo da mesma maneira produzindo crença exatamente pelos mes mos princípios Quando a imaginação em virtude de alguma fermen tação extraordinária do sangue e dos espíritos animais adquire uma vivacidade grande a ponto de desordenar todos os seus poderes e fa culdades não há como distinguir entre a verdade e a falsidade Toda vã ficção ou idéia tendo a mesma influência que as impressões da memória ou as conclusões do juízo é recebida em pé de igualdade 1 53 Tratado da natureza humana com estas e age com igual força sobre as paixões Agora não há mais necessidade de uma impressão presente e uma transição habitual para avivar nossas idéias Qualquer quimera do cérebro é tão viva e inten sa quanto as inferências que antes honrávamos com o nome de con clusões acerca de questões de fato às vezes tão viva e intensa quanto as próprias impressões presentes dos sentidos 10 Observemos que a poesia possui esse mesmo efeito em grau menor A poesia e a loucura têm em comum o fato de que a vividez que conferem às idéias não é derivada das situações ou conexões par ticulares dos objetos dessas idéias mas do humor e disposição da pes soa naquele momento Porém por maior que seja a intensidade atin gida pela vividez é evidente que na poesia ela nunca tem a mesma sensação feeling que a vividez que surge na mente ao raciocinarmos mesmo quando esse raciocínio se faz com base no grau mais baixo de probabilidade A mente distingue facilmente entre os dois tipos de vividez e qualquer que seja a emoção conferida aos espíritos ani mais pelo entusiasmo poético tratase sempre de um mero simula cro de crença ou persuasão O que ocorre com a idéia ocorre tam bém com as paixões por ela ocasionadas Não há paixão da mente humana que não possa surgir da poesia Mas ao mesmo tempo as sensações feelings das paixões são muito diferentes quando desper tadas por ficções poéticas e quando nascem da crença e da realidade Uma paixão que na vida real é desagradável pode proporcionar um grande deleite numa tragédia ou num poema épico Neste último caso ela não pesa tanto sobre nós é sentida como algo menos firme e sólido e seu único efeito é estimular agradavelmente os espíritos animais e despertar a atenção A diferença nas paixões é uma clara prova da Conforme as instruções de Hume no Apêndice a edição NNOPT inseriu neste ponto os três parágrafos seguintes o que também fizemos Com essa inserção entretanto embo ra Hume não se tenha dado conta disso criouse uma redundância no texto pois a pri meira frase inserida é igual à que inicia o parágrafo seguinte Isso levou os editores da OPT a simplesmente excluir este último parágrafo considerando que todo ele haviase tornado redundante cf David F Norton Mary Norton op cit Essa conclusão me parece um pouco apressada e por isso mantivemos o último parágrafo conforme a edição SBN Isso faz com que esta seção tenha um parágrafo a mais que a da NNOPT NT 1 54 Livro 1 Parte 3 Seção 1 0 existência de uma diferença semelhante nas idéias que originam as paixões Quando a vividez surge de uma conjunção habitual com uma impressão presente mesmo que aparentemente a imaginação possa não ser tão afetada há sempre algo mais imperativo e real em suas ações que no calor da poesia e da eloqüência A força de nossas ações men tais não deve neste caso como em nenhum outro ser medida pela agita ção aparente da mente Uma descrição poética pode ter um efeito mais sensível sobre a fantasia que uma narrativa histórica Pode reunir um maior número daquelas circunstâncias que formam uma imagem ou quadro completo Pode parecer dispor diante de nós o objeto em co res mais vivas Mas ainda assim as idéias que apresenta são sentidas de maneira diferente que aquelas que surgem da memória e do juízo Há algo fraco e imperfeito em meio a toda a aparente veemência de pensamento e sentimento que acompanha as ficções da poesia 1 1 Mais tarde teremos ocasião de observar tanto as semelhanças como as diferenças entre um entusiasmo poético e uma convicção séria Enquanto isso não posso deixar de notar que a grande dife rença em sua sensação feeling procede em certa medida da reflexão e das regras gerais Observamos que o vigor na concepção que as fic ções recebem da poesia e da eloqüência é uma circunstância mera mente acidental de que toda idéia é suscetível e que tais ficções não se conectam com nada real Essa observação faz que apenas nos en treguemos temporariamente por assim dizer à ficção Mas a idéia é sentida de modo muito diferente das convicções permanentemente estabelecidas que se fundam na memória e no costume Ficções e convicções são um pouco do mesmo gênero mas aquelas são mui to inferiores a estas tanto em suas causas como em seus efeitos 12 Uma reflexão semelhante sobre as regras gerais impede que au mentemos nossa crença a cada vez que cresce a força e a vividez de From the eternal established perswasions A NNOPT corrige eternal para externai e seus editores nos dão a seguinte justificativa David F Norton Mary Norton op cit It may seem unlikely that Hume meant to speak of those beliefs that derive from memory and custom in contrast to the fictions of poetry as externai persuasions but it is even less Iikely that he meant to speak of eternal persuasions He makes the remark in question 1 55 Tratado da natureza humana nossas idéias Quando uma opinião não comporta dúvida ou qual quer probabilidade oposta atribuímos a ela uma total convicção em bora a falta de semelhança ou contigüidade possa tornar sua força inferior à de outras opiniões É assim que o entendimento corrige as aparências sensíveis fazendonos imaginar que um objeto a uma dis tância de vinte pés pareça aos olhos tão grande quanto um outro ob jeto do mesmo tamanho a uma distância de dez pés 13 Observemos que a poesia possui esse mesmo efeito em um grau menor com a única diferença de que a menor reflexão dissipa as ilusões da poesia recolocando os objetos na perspectiva adequada No entanto é certo que no calor do entusiasmo poético o poeta chega a simular uma crença e mesmo uma espécie de visão de seus obje tos E se há o menor argumento que possa apoiar sua crença nada contribui mais para uma total convicção que o fulgor das figuras e imagens poéticas cujo efeito se exerce sobre o próprio poeta bem como sobre seus leitores Seção 1 1 Da probabilidade de chances 1 Para conferir a esse sistema toda sua força e evidência porém devemos afastar nosso olhar dele por um momento e considerar suas in the midst of a discussion that contrasts what he calls loose fictions chimeras of the brain and the ideas of poetry with those beliefs that arise from experience ln this context a contrast between internal and external beliefs makes good Humean sense while a contrast between internal and eternal beliefs whatever they might be does not Moreover although it is clear that Hume supposes ali perceptions are in the most fundamental sense internai at 1 42 7 he distinguishes between externai and internai impressions De nossa parte como nenhuma das alternativas nos parece plenamente satisfatória e como por outro lado não parece inteiramente improvável que Hume tenha usado a palavra eternal de maneira um pouco imprecisa para contrastar o caráter duradouro das convicções fundadas na memória e no costume com o caráter passageiro de nossa entrega à poesia utilizamos o termo permanentemente que preserva esse contraste sem ter o mesmo peso do adjetivo eternas NT Of the probability of chances Em inglês a palavra chance pode significar tanto aca so como chance e foi portanto ora de uma maneira ora de outra que a traduzi con 1 5 6 Livro 1 Parte 3 Seção 1 1 conseqüências explicando pelos mesmos princípios algumas ou tras espécies de raciocínio derivadas da mesma origem 2 Os filósofos que dividiram a razão humana em conhecimento e pro babilidade e que definiram o primeiro como evidência oriunda da com paração de idéias vêemse obrigados a incluir todos os nossos argu mentos baseados em causas ou efeitos dentro do nome geral de probabilidade Mas embora cada qual seja livre para empregar seus termos no sentido que desejar foi assim que na parte precedente deste discurso eu mesmo adotei tal modo de expressão o certo é que na linguagem corrente não hesitamos em afirmar que muitos argumentos causais excedem a probabilidade podendo ser aceitos como uma espécie superior de evidência Se alguém dissesse que é apenas provável que o sol nasça amanhã ou que todos os homens devem morrer pareceria ridículo no entanto é evidente que a única certeza que temos acerca desses fatos é a que a experiência nos pro porciona Por essa razão a fim de preservar o significado comum das palavras e ao mesmo tempo marcar os diversos graus de evidência talvez seja mais conveniente distinguir a razão humana em três clas ses conforme proceda com base no conhecimento em provas ou em probabilidades Entendo por conhecimento a certeza resultante da com paração de idéias Por provas os argumentos derivados da relação de causa e efeito e que estão inteiramente livres de dúvidas e incerteza Por probabilidade a evidência que ainda se faz acompanhar de incer teza É esta última espécie de raciocínio que examinarei a seguir 3 A probabilidade ou raciocínio por conjetura pode ser dividida em dois tipos a saber a que se funda no acaso e a resultante de causas Exa minemos cada uma delas por ordem forme me pareceu ser exigido pelo contexto Entretanto os dois sentidos devem perma necer próximos e por isso até mesmo essa distinção ficará inexata se não entendermos chance e chances como significando primeiramente o simples evento definido a priori a simples possibilidade de um resultado e não aquilo que resultará da soma de chances ou eventos iguais ou seja a probabilidade de chances propriamente dita Como meras possibilidades as chances remetem ao acaso e à indiferença quando se juntam e formam uma probabilidade elas produzem crença Apenas duas vezes no contexto da análise da probabilidade Hume utiliza ainda o termo hazard traduzio por chance no primeiro caso e por azar no segundo acrescentando o termo em inglês hazard NT 1 5 7 Tratado da natureza humana 4 A idéia de causa e efeito é derivada da experiência que ao nos apresentar certos objetos em conjunção constante habituanos a tal ponto a considerálos nessa relação que só com uma sensível violên cia somos capazes de concebêlos em uma relação diferente Por outro lado como o acaso em si mesmo não é nada de real e propriamente falando é somente a negação de uma causa sua influência sobre a mente é contrária à da causalidade Faz parte de sua essência deixar a imaginação inteiramente indiferente para considerar a existência ou a inexistência daquele objeto que é visto como contingente Uma causa traça o caminho para nosso pensamento e de certo modo nos força a considerar objetos determinados em relações determinadas Tudo que o acaso pode fazer é destruir tal determinação do pensa mento deixando a mente em seu estado original de indiferença a que na ausência de uma causa ela retorna instantaneamente 5 Portanto como uma total indiferença é essencial ao acaso é im possível que uma chance seja superior a outra a menos que seja com posta de um número superior de chances iguais Porque se afirmar mos que uma chance pode ser superior a outra de um modo diferente deveremos ao mesmo tempo afirmar que existe alguma coisa que lhe dá essa superioridade e determina o resultado a se inclinar mais para aquele lado que para outro Em outras palavras teríamos de admitir a existência de uma causa destruindo assim a suposição prévia de acaso Uma indiferença perfeita e total é essencial ao acaso e uma indiferença total jamais pode ser em si mesma superior ou inferior a outra Essa verdade não é peculiar a meu sistema ao contrário é ad mitida por todo aquele que faz cálculos sobre chances 6 É de se notar que embora acaso e causalidade sejam diretamen te contrários é impossível concebermos a combinação de chances requerida para tornar uma chance hazard superior a outra sem su por uma mistura de causas entre as chances e a conjunção de uma necessidade em alguns pontos particulares com uma total indiferen Ver nossa nota à p 1 60 NT 1 58 Livro 1 Parte 3 Seção 1 1 ça em outros Ali onde nada limita as chances todas as noções que a fantasia mais extravagante é capaz de formar estão em pé de igualda de E não pode haver nenhuma circunstância que dê a uma dessas noções uma vantagem sobre as outras Assim a menos que admita mos a existência de causas que façam os dados cair preservar sua forma ao cair e repousar sobre apenas um de seus lados não podere mos fazer nenhum cálculo sobre as leis do azar hazard Mas se su pusermos a operação dessas causas e se supusermos igualmente que todo o resto é indiferente e determinado pelo acaso obteremos facil mente a noção de uma combinação superior de chances Um dado contendo quatro faces marcadas com um certo número de pontos e apenas duas faces com um outro número nos fornece um exemplo claro e simples dessa superioridade A mente é aqui limitada pelas causas a considerar um número determinado e qualidades precisas de eventos ao mesmo tempo é indeterminada em sua escolha de um evento particular dentre todos 7 Já avançamos três passos portanto em nosso raciocínio afirma mos que o acaso é meramente a negação de uma causa e produz uma total indiferença na mente que uma negação de uma causa e uma in diferença total nunca podem ser superiores a outras e que para fun damentar um raciocínio é preciso haver sempre uma mistura de causas entre as chances Consideremos a seguir que efeito pode ter sobre a mente uma combinação superior de chances e de que maneira ela influencia nosso juízo e opinião Podemos aqui repetir os mesmos argumentos que empregamos em nosso exame da cren ça decorrente de causas e podemos provar da mesma maneira que não é nem por demonstração nem por probabilidade que um número superior de chances produz nosso assentimento De fato é evidente que pela comparação de meras idéias jamais seremos capazes de descobrir nada importante a esse respeito sendo impos sível provar com certeza que o resultado de um evento tenha de favo recer o lado em que há um número superior de chances Supor alguma certeza neste caso seria subverter o que já estabelecemos a propó 1 59 Tratado da natureza humana sito da oposição de chances e de sua perfeita equivalência e ausência de diferença 8 Se alguém dissesse que embora em uma oposição de chances seja impossível determinar com certeza qual será o resultado do even to podemos declarar com certeza que é mais verossímil e provável que seja aquele que conta com um número superior de chances e não aquele onde existe um número inferior se alguém dissesse isso eu perguntaria o que quer dizer aqui com verossimilhança e probabili dade A verossimilhança e probabilidade de chances consiste em um número superior de chances iguais conseqüentemente quando di zemos que é mais provável que o evento tenha o resultado superior que o inferior não fazemos mais que afirmar que ali onde há um nú mero superior de chances há de fato um número superior e onde há um número inferior há um número inferior proposições idên ticas e irrelevantes A questão portanto é determinar de que modo um número superior de chances iguais age sobre a mente produzin do crença ou assentimento visto que não é nem mediante argumen tos produzidos por demonstração nem por probabilidade 9 Para esclarecer essa dificuldade suponhamos que uma pessoa pegue um dado construído de tal modo que quatro de suas faces são marcadas com um algarismo ou com um certo número de pontos e as duas outras com outro algarismo ou número de pontos e colo que o dado no copo com a intenção de o lançar É claro que ela deve concluir que um algarismo é mais provável que o outro e dará prefe rência àquele que está inscrito no maior número de faces Ela de cer ta forma acredita que esse algarismo irá cair voltado para cima mas ainda apresenta alguma hesitação e dúvida proporcional ao número de chances contrárias E conforme essas chances contrárias dimi Indifference Infelizmente o termo em português elimina a ambigüidade da palavra em inglês já que a ausência de diferença entre as chances tem como contrapartida uma indiferença por parte da mente que contempla as chances Nos diversos casos das páginas 1 589 preferi manter o termo indiferença porque ali sobretudo na primeira ocorrên cia pareceume que o aspecto mais importante da indifference era a ausência de deter minação da mente NT 1 60 nuem e a superioridade do outro lado aumenta sua crença adquire novos graus de estabilidade e certeza Como essa crença decorre de uma operação da mente sobre um objeto simples e definido que temos diante de nós será mais fácil descobrir e explicar sua natureza Bastanos contemplar um único dado para compreender uma das mais curiosas operações do entendimento O dado construído segundo a descrição acima apresenta três circunstâncias que merecem nossa atenção Em primeiro lugar certas causas como a gravidade a solidez uma forma cúbica etc que determinam que ele caia que preserve sua forma na queda e que uma de suas faces fique voltada para cima Em segundo lugar um certo número de faces que se supõem indiferentes Em terceiro lugar uma certa figura inscrita em cada face Essas três particularidades formam toda a natureza do dado no que diz respeito a nosso propósito presente e conseqüentemente são as únicas circunstâncias consideradas pela mente para formar um juízo acerca do resultado do lance Examinemos portanto gradativa e cuidadosamente qual deve ser a influência dessas circunstâncias sobre o pensamento e a imaginação Primeiramente já observamos que a mente é determinada pelo costume a passar de uma causa a seu efeito e quando um dos dois aparece é quase impossível que ela deixe de formar a idéia do outro Sua conjunção constante em casos passados produziu um tal hábito na mente que ela sempre os conjuga em seu pensamento inferindo a existência de um da existência daquele que normalmente o acompanha Quando considera o dado não mais sustentado pelo copo a mente não consegue sem uma violência imaginar que está suspenso no ar ao contrário põeno naturalmente sobre a mesa e o vê voltando uma de suas faces para cima Esse é o efeito das causas entremescladas requeridas para a formação de qualquer cálculo concernente a chances Em segundo lugar supõese que embora o dado esteja necessariamente determinado a cair e a virar para cima uma de suas faces não há nada que fixe uma face em particular sendo esta inteiramente determinada Tratado da natureza humana pelo acaso A natureza e a essência mesma do acaso é ser uma nega ção das causas e deixar a mente em uma completa indiferença entre os eventos que se supõem contingentes Quando portanto as cau sas determinam o pensamento a considerar o dado caindo e virando uma das faces para cima as chances apresentam todas essas faces como equivalentes fazendonos conceber cada uma delas uma após a outra como igualmente provável e possível A imaginação passa da causa o lance do dado ao efeito ou seja uma das seis faces se voltar para cima e sente uma espécie de impossibilidade tanto de parar no meio do caminho como de formar uma outra idéia qualquer Mas como essas seis faces são incompatíveis entre si e como o dado não pode cair com mais de uma face voltada ao mesmo tempo para cima esse prin cípio não nos leva a conceber todas elas como viradas para cima ao mesmo tempo o que consideramos impossível Tampouco nos dire ciona com total força para uma face em particular pois se assim o fizesse essa face seria considerada certa e inevitável Direcionanos antes para o conjunto das seis faces de forma a dividir sua força igualmente entre elas Concluímos em geral que alguma delas tem de resultar do lance percorremos todas em nossa mente a determi nação do pensamento é comum a todas mas a parcela da força que recai sobre uma não é maior que aquela correspondente a sua pro porção com o resto É dessa maneira que o impulso original e con seqüentemente a vividez do pensamento resultante das causas di videse e se fragmenta entre as chances com elas entrelaçadas 13 Já vimos a influência das duas primeiras qualidades do dado as causas e o número e a ausência de diferença entre as faces Aprendemos como elas dão um impulso ao pensamento dividindo esse impulso em tantas partes quantas faces houver Devemos agora considerar os efeitos do terceiro aspecto a saber as figuras inscritas em cada face É evidente que se várias faces têm inscrita a mesma figura elas de vem coincidir em sua influência sobre a mente unindo em uma única imagem ou idéia de uma figura todos os impulsos divididos e disper sos pelas diversas faces que têm essa figura inscrita Se a questão 1 62 Livro 1 Parte 3 Seção 12 fosse apenas saber que face sairá virada para cima diríamos que to das são perfeitamente equivalentes e nenhuma tem qualquer vanta gem sobre as outras Mas como a questão diz respeito à figura e como mais de uma face apresenta a mesma figura é evidente que os im pulsos correspondentes a essas faces devem se reunir naquela figu ra única tornandose mais fortes e imperativos em virtude dessa união No caso presente supõese que quatro faces têm inscrita a mesma figura e duas uma outra figura Os impulsos das primeiras são portanto superiores aos das duas últimas Mas como os even tos são contrários e como é impossível que as duas figuras se vol tem para cima também os impulsos se tornam contrários e o im pulso inferior destrói o superior na medida de sua força A vividez da idéia é sempre proporcional aos graus do impulso ou à tendência à transição e a crença é o mesmo que a vividez da idéia de acordo com a doutrina precedente Seção 1 2 Da probabilidade de causas O que eu disse acerca da probabilidade de chances não tem ou tro propósito senão auxiliarnos na explicação da probabilidade de causas pois os filósofos normalmente admitem que aquilo que o vul go chama de acaso não é senão uma causa secreta e oculta Essa espé cie de probabilidade portanto é o que devemos sobretudo examinar Há vários tipos de probabilidades de causas mas todos derivam da mesma origem a associação de idéias a uma impressão presente Como o hábito que produz a associação nasce da conjunção freqüente de objetos ele deve atingir sua perfeição gradativamente adquirindo mais força a cada caso observado O primeiro caso tem pouca ou ne nhuma força o segundo acrescenta alguma força ao primeiro o ter ceiro tornase ainda mais sensível e é assim a passos lentos que nos so juízo chega a uma perfeita certeza Antes de atingir tal grau de 1 63 Tratado da natureza humana perfeição porém passa por diversos graus inferiores e em todos eles deve ser considerado apenas uma suposição ou probabilidade Por tanto a gradação que vai de probabilidades a provas é em muitos casos insensível e a diferença entre esses tipos de evidência é mais facilmente percebida nos graus mais afastados que naqueles mais próximos ou contíguos 3 Vale observar neste ponto que embora a espécie de probabilida de aqui explicada seja por ordem a primeira e ocorra naturalmente antes que uma prova completa possa existir ninguém que já tenha atingido a maturidade ainda é capaz de reconhecêla É verdade que nada é mais comum que pessoas de grande conhecimento terem ob tido apenas uma experiência imperfeita de muitos eventos particula res o que naturalmente produz um hábito e uma transição apenas imperfeitos Mas devemos considerar que a mente tendo observado outras conexões de causas e efeitos confere nova força a seu racio cínio partindo dessa observação e assim é capaz de construir um ar gumento baseada em um único experimento se este for devidamen te preparado e examinado Quando vemos que alguma coisa se seguiu uma vez de um objeto concluímos que se seguirá dele para sempre E se tal máxima nem sempre é tida como uma base certa não é por falta de um número suficiente de experimentos mas porque freqüen temente encontramos exemplos do contrário o que nos leva à se gunda espécie de probabilidade em que existe uma contrariedade em nossa experiência e observação 4 Seria uma grande felicidade para os homens na conduta de sua vida e de suas ações se os mesmos objetos estivessem sempre juntos nada teríamos então a temer a não ser os erros de nosso próprio juízo e não haveria nenhuma razão para recear a incerteza da natureza Mas como uma observação freqüentemente se mostra contrária a outra e as causas e efeitos nem sempre se seguem na mesma ordem que mostraram em nossa experiência anterior somos obrigados a modi ficar nosso raciocínio de acordo com essa incerteza e a levar em con sideração a contrariedade dos acontecimentos A primeira pergunta 1 64 Livro 1 Parte 3 Seção 12 que se apresenta neste ponto diz respeito à natureza e às causas da contrariedade 5 O vulgo que toma as coisas segundo sua primeira aparência atri bui a incerteza dos acontecimentos a uma incerteza nas causas que faria com que mesmo sem encontrar nenhum obstáculo ou impedi mento a sua operação essas causas falhassem amiúde em sua in fluência habitual Mas os filósofos observam que quase todas as par tes da natureza contêm uma ampla variedade de causas e princípios que se ocultam em razão de seu caráter diminuto ou remoto e assim descobrem que é ao menos possível que a contrariedade de aconteci mentos proceda não de uma contingência na causa mas da opera ção secreta de causas contrárias Essa possibilidade se converte em certeza após observações adicionais quando percebem que se exa minada rigorosamente uma contrariedade de efeitos sempre deixa transparecer uma contrariedade de causas procedendo de sua mú tua obstrução e oposição A melhor razão que um camponês é capaz de dar para um relógio que parou de andar é dizer que às vezes ele não funciona direito Um relojoeiro ao contrário percebe facilmen te que a mesma força na mola ou no pêndulo exerce sempre a mes ma influência sobre as engrenagens se seu efeito habitual falha isso se deve talvez a um grão de poeira que interrompe todo o movimen to Pela observação de vários casos análogos os filósofos formam a máxima de que a conexão entre todas as causas e efeitos é igualmen te necessária e que sua aparente incerteza em alguns casos procede da oposição secreta de causas contrárias 6 Mas embora os filósofos e as pessoas comuns possam diferir em sua explicação sobre a contrariedade de acontecimentos as infe rências que extraem dessa contrariedade são do mesmo gênero e fundadas nos mesmos princípios Uma contrariedade de aconteci mentos no passado pode nos dar uma espécie de crença hesitante quanto ao futuro e isso de dois modos distintos Primeiramente pro duzindo um hábito e uma transição imperfeitos da impressão pre sente à idéia relacionada Quando a conjunção de dois objetos é fre 1 65 Tratado da natureza humana qüente mas não inteiramente constante a mente se vê determinada a passar de um objeto ao outro mas não com um hábito tão comple to como quando a união é ininterrupta e todos os exemplos que já encontramos são uniformes e da mesma espécie Descobrimos pela experiência comum em nossas ações como em nossos raciocínios que a perseverança constante em um certo curso de vida produz uma forte inclinação e tendência a continuar assim no futuro embora haja hábitos dotados de graus inferiores de força proporcionais aos graus inferiores de estabilidade e uniformidade em nossa conduta 7 Não há dúvida de que esse princípio às vezes se manifesta pro duzindo as inferências que extraímos de fenômenos contrários Es tou convencido porém de que um exame adequado mostrará não ser esse o princípio que mais comumente influencia a mente nessa espécie de raciocínio Quando seguimos apenas a determinação ha bitual da mente fazemos a transição sem refletir e sem deixar passar um só momento entre a visão do objeto e a crença naquele que sem pre vimos acompanhálo Como o costume não depende de uma de liberação ele opera imediatamente sem dar tempo à reflexão Mas em nossos raciocínios prováveis temos poucos exemplos dessa maneira de proceder menos ainda que naqueles que são derivados da conjunção ininterrupta dos objetos Na primeira espécie de racio cínio costumamos levar conscientemente em consideração a contra riedade dos acontecimentos passados comparamos os diferentes lados da contrariedade e pesamos com cuidado as experiências que temos de cada lado Podemos concluir daí que essa espécie de racio cínio não surge diretamente do hábito mas apenas de maneira oblí qua É isso que devemos agora tentar explicar 8 É evidente que quando um objeto se faz acompanhar de efeitos contrários nosso juízo se baseia apenas em nossa experiência pas sada e sempre consideramos possíveis os efeitos que observamos te rem se seguido desse objeto E assim como a experiência passada regu la nosso juízo sobre a possibilidade desses efeitos regula igualmente o juízo sobre sua probabilidade É sempre o efeito mais comum que 1 66 Livro 1 Parte 3 Seção 12 consideramos como o mais provável Há aqui portanto duas coisas a examinar as razões que nos determinam a fazer do passado um pa drão para o futuro e a maneira como extraímos um juízo único de uma contrariedade de acontecimentos passados 9 Podemos observar em primeiro lugar que a suposição de que o futuro se assemelha ao passado não está fundada em nenhum tipo de argumento sendo antes derivada inteiramente do hábito que nos de termina a esperar para o futuro a mesma seqüência de objetos a que nos acostumamos Esse hábito ou determinação de transferir o pas sado para o futuro é completo e perfeito conseqüentemente o pri meiro impulso da imaginação nessa espécie de raciocínio é dotado das mesmas qualidades 10 Mas em segundo lugar quando ao examinar experiências passa das vemos que são de natureza contrária essa determinação embo ra completa e perfeita nela mesma não nos apresenta um objeto fixo oferecendonos antes um número de imagens discordantes em uma certa ordem e proporção O primeiro impulso portanto fragmenta se e se difunde por todas essas imagens cada uma das quais recebe uma parcela igual daquela força e vividez derivada do impulso Qual quer um desses acontecimentos passados pode acontecer novamen te e julgamos que quando de fato acontecerem estarão misturados na mesma proporção que no passado 11 Se nossa intenção portanto for considerar as proporções dos acon tecimentos contrários em um grande número de casos as imagens apresentadas por nossa experiência passada devem permanecer em sua forma original e preservar suas proporções originais Suponhamos por exemplo que uma longa observação tenhame mostrado que de vinte navios que partem para o mar apenas dezenove retornam Supo nhamos que eu veja agora vinte navios deixando o cais Transfiro mi nha experiência passada para a futura e represento para mim mes mo dezenove desses navios retornando a salvo e um naufragando Quanto a isso não pode haver dificuldade Mas como freqüentemente percorremos essas diversas idéias de acontecimentos passados a fim 1 67 Tratado da natureza humana de formar um juízo acerca de um único acontecimento que parece incerto essa consideração tem de alterar a forma original de nossas idéias reunindo as imagens separadas que a experiência apresentou pois é a ela que referimos a determinação daquele acontecimento par ticular sobre o qual raciocinamos Por hipótese muitas dessas ima gens coincidem e um número superior coincide em um dos lados Essas imagens concordantes se unem tornando a idéia mais forte e viva não somente que uma mera ficção da imaginação mas tam bém que qualquer outra idéia sustentada por um número menor de experiências Cada nova experiência é como uma nova pincelada que confere às cores uma vividez adicional sem multiplicar nem am pliar a figura Essa operação da mente foi tão bem explicada quando tratamos da probabilidade de chances que não preciso aqui tentar tornála mais inteligível Cada experiência passada pode ser conside rada uma espécie de chance pois não temos certeza se o objeto exis tirá conforme a uma experiência ou a outra Por essa razão tudo que eu disse sobre a probabilidade de chances se aplica também aqui 12 Em resumo portanto experiências contrárias produzem uma crença imperfeita seja enfraquecendo o hábito seja dividindo e em seguida juntando em diferentes partes esse hábito perfeito que nos faz concluir em geral que os casos de que não tivemos experiência devem necessariamente se assemelhar aos casos de que tivemos 13 Para justificar ainda melhor essa explicação da segunda espécie de probabilidade em que raciocinamos consciente e refletidamente com base em uma contrariedade de experiências passadas proporei as seguintes considerações confiando que o ar de sutileza que as en volve não chocará ninguém O bom raciocínio ainda que sutil con serva quiçá sua força do mesmo modo que a matéria conserva sua solidez no ar no fogo e nos espíritos animais tanto quanto nas for mas mais grosseiras e sensíveis 14 Em primeiro lugar podemos observar que não há probabilidade tão grande que não admita uma possibilidade contrária caso contrá rio deixaria de ser uma probabilidade tornandose uma certeza Essa 1 68 Livro 1 Parte 3 Seção 12 probabilidade de causas de maior extensão que estamos agora exa minando depende de uma contrariedade de experiências e é eviden te que uma experiência no passado revela pelo menos uma possibili dade para o futuro Em segundo lugar as partes componentes dessa possibilidade e probabilidade são da mesma natureza e diferem apenas em número mas não em gênero Já observamos que cada chance singular é intei ramente igual às outras e que a única circunstância capaz de dar a um acontecimento contingente uma superioridade sobre outro é uma superioridade no número de chances De maneira semelhante como a incerteza das causas é descoberta pela experiência que nos apre senta uma visão de acontecimentos contrários é claro que quando transferimos o passado para o futuro o conhecido para o desconhe cido todas as experiências passadas têm o mesmo peso e somente um número superior delas pode fazer a balança pender para um dos lados Portanto a possibilidade que entra em todo raciocínio desse tipo é composta de partes da mesma natureza tanto entre si como em relação àquelas que compõem a probabilidade oposta Em terceiro lugar podemos estabelecer como uma máxima cer ta que em todos os fenômenos morais e naturais sempre que uma causa é constituída de um certo número de partes e o efeito aumenta ou diminui de acordo com a variação desse número tal efeito é pro priamente falando composto surgindo da união de diversos efeitos cada qual procedente de uma parte da causa Assim como o peso de um corpo aumenta ou diminui pelo aumento ou diminuição de suas partes concluímos que cada parte contém essa qualidade e contri bui para a gravidade do todo A ausência ou a presença de uma parte da causa é acompanhada da ausência ou da presença de uma parte proporcional do efeito Essa conexão ou conjunção constante prova de modo suficiente que uma parte é causa da outra Ora como a cren ça que depositamos em um acontecimento aumenta ou diminui de acordo com o número de chances ou experiências passadas ela deve ser considerada um efeito composto cujas partes surgem cada uma delas de um número proporcional de chances ou experiências 1 69 Tratado da natureza humana 17 Reunamos agora essas três observações e vejamos que conclusão podemos delas extrair Para cada probabilidade existe uma possibili dade oposta Essa possibilidade é composta de partes que são exata mente da mesma natureza que as da probabilidade e que conseqüen temente exercem a mesma influência sobre a mente e o entendimento A crença que acompanha a probabilidade é um efeito composto for mado pela concorrência de diversos efeitos cada um dos quais pro cede de uma parte da probabilidade Portanto como cada parte da probabilidade contribui para a produção da crença cada parte da pos sibilidade deve ter a mesma influência sobre o lado oposto já que a natureza dessas partes é exatamente a mesma A crença contrária que acompanha a possibilidade implica uma visão de um certo obje to como a probabilidade implica uma visão oposta Nesse aspecto par ticular esses dois graus de crença são semelhantes O único meio portanto pelo qual o número maior de partes componentes simila res em um dos lados pode exercer sua influência e prevalecer sobre o número menor no outro lado é produzindo uma imagem mais for te e vívida de seu objeto Cada parte apresenta uma visão particular e todas essas visões unindose produzem uma visão geral mais com pleta e mais distinta em virtude do maior número de causas ou prin cípios de que deriva 18 As partes componentes da probabilidade e da possibilidade sen do semelhantes em sua natureza devem produzir efeitos semelhan tes e a semelhança entre seus efeitos consiste em que cada um de les apresenta uma imagem de um objeto particular Mas embora essas partes sejam semelhantes em sua natureza são muito diferen tes em sua quantidade e número e essa diferença deve aparecer no efeito tanto quanto a similaridade Ora como a imagem que elas apre sentam é em ambos os casos plena e integral e como compreende o objeto em todas as suas partes é impossível que haja qualquer di ferença sob esse aspecto particular Nada pode distinguir esses efei tos a não ser uma vividez superior na probabilidade resultante da concorrência de um número superior de imagens 1 70 Livro 1 Parte 3 Seção 12 19 Eis agora quase o mesmo argumento colocado de outro ângulo Todos os nossos raciocínios concernentes à probabilidade de causas são fundados na transferência do passado ao futuro A transferência de uma experiência passada ao futuro é suficiente para nos dar uma visão do objeto quer essa experiência seja única ou esteja combina da com outras do mesmo tipo quer seja homogênea ou oposta a ou tras de um tipo contrário Supondose então que adquira ambas as qualidades de combinação e oposição ela nem por isso perde seu poder anterior de apresentar uma visão do objeto apenas concorda com algumas experiências dotadas de uma influência semelhante e se opõe a outras Uma questão portanto pode ser levantada a res peito da maneira como se dão essa concordância e oposição Quanto à concordância a única alternativa é entre estas duas hipóteses pri meira que a imagem do objeto ocasionada pela transferência de cada experiência passada conservase isolada e somente o número de ima gens se multiplica ou segunda que ela se funde com outras imagens similares e correspondentes dandolhes um grau superior de força e vividez Ora nossa experiência deixa evidente que a primeira hipó tese é errônea já que a crença que acompanha um raciocínio qual quer consiste em uma conclusão única e não em uma multiplicidade de conclusões similares que apenas distrairiam a mente e em mui tos casos seriam numerosas demais para serem compreendidas dis tintamente por uma mente finita A única opinião razoável que res ta portanto é que essas visões similares se fundem umas nas outras e unem suas forças de modo a produzir uma imagem mais forte e mais clara que a resultante de uma visão singular É desse modo que as experiências passadas concordam ao serem transferidas para um acontecimento futuro Quanto ao modo como se dá sua oposição é evidente que uma vez que as imagens contrárias são incompatíveis entre si e é impossível que o objeto exista ao mesmo tempo confor me a ambas sua influência se torna mutuamente destrutiva e a de terminação que a mente sofre em direção à imagem superior possui apenas a força que resta após a subtração da inferior 1 71 Tratado da natureza humana 20 Tenho consciência de quão abstruso todo esse raciocínio deve parecer aos leitores em geral que não estando acostumados a refle xões tão profundas a respeito das faculdades intelectuais da mente tenderão a rejeitar como quimérico tudo que destoe das noções comumente aceitas e dos princípios mais fáceis e óbvios da filosofia Não há dúvida de que é necessário algum esforço para penetrar nes ses raciocínios mas talvez um esforço bem pequeno já baste para se perceber a imperfeição de todas as hipóteses vulgares acerca desse tema e a fraca luz que a filosofia é capaz de lançar sobre especula ções tão sublimes e rebuscadas Se algum dia os homens se conven cerem plenamente destes dois princípios que não há nada em nenhum objeto considerado em si mesmo capaz de nos fornecer uma razão para extrair uma conclusão que o ultrapasse e que mesmo após a observação da conjunção freqüente ou constante entre objetos não temos nenhuma razão para fazer uma inferência a respeito de outro objeto além daqueles de que tivemos experiência se os homens digo algum dia se convencerem plenamente desses dois princípios isso os afastará a tal ponto de todos os sistemas comuns que não terão dificuldade em aceitar ne nhum outro ainda que pareça o mais extraordinário Vimos que es ses princípios são bastante convincentes mesmo em relação a nos sos raciocínios causais mais exatos e ouso afirmar que no que concerne aos raciocínios conjeturais ou prováveis eles adquirem um grau ainda maior de evidência 21 Em primeiro lugar é óbvio que em raciocínios desse tipo o ob jeto que se apresenta considerado nele mesmo não é o que nos dá uma razão para extrair uma conclusão a respeito de qualquer outro objeto ou acontecimento Porque como se supõe que este último ob jeto é incerto e como a incerteza procede de uma secreta contrariedade de causas no primeiro se alguma das causas estivesse nas qualidades conhecidas daquele objeto ela não seria mais secreta e tampouco nossa conclusão seria incerta 22 Mas em segundo lugar é igualmente óbvio nessa espécie de racio cínio que se a transferência do passado ao futuro fosse fundada me Livro 1 Parte 3 Seção 12 ramente em uma conclusão do entendimento nunca poderia ocasio nar uma crença ou certeza Quando transferimos experiências con trárias para o futuro não podemos senão repetir essas experiências contrárias com suas proporções particulares E isso não poderia pro duzir nenhuma certeza acerca de um acontecimento isolado sobre o qual raciocinamos a menos que a fantasia fundisse todas as imagens concordantes e delas extraísse uma única idéia ou imagem com uma intensidade e vividez proporcional ao número de experiências de que é derivada e à sua superioridade em relação às experiências antagô nicas Nossa experiência passada não apresenta nenhum objeto de terminado E como nossa crença mesmo fraca fixase em um objeto determinado é evidente que ela não surge unicamente da transferên cia do passado para o futuro mas de alguma operação da fantasia com ela conjugada Isso nos permite conceber de que maneira essa faculdade participa de todos os nossos raciocínios 23 Concluirei este tema com duas reflexões que talvez mereçam nos sa atenção A primeira podese explicar da seguinte maneira Quan do a mente forma um raciocínio a respeito de uma questão de fato apenas provável ela volta seu olhar para a experiência passada e trans ferindoa para o futuro defrontase com o mesmo número de visões contrárias de seu objeto aquelas que são do mesmo tipo se unem e se fundem em um único ato mental tornandoo mais forte e vívido Mas suponhamos que essa multiplicidade de visões ou vislumbres de um objeto não proceda da experiência mas sim de um ato volun tário da imaginação Neste caso tal efeito não se seguiria ou ao me nos não no mesmo grau Pois embora o costume e a educação pos sam produzir crença por meio de uma repetição como essa que não é derivada da experiência isso exige entretanto um longo período de tempo juntamente com uma repetição muito freqüente e não pro posital De maneira geral podemos afirmar que uma pessoa que8 8 Seções 9 e 10 desta parte Cf NNOPT Ver David F Norton Mary Norton op cit para uma divertida descrição da longa série de enganos envolvendo esta nota NT 1 73 Tratado da natureza humana voluntariamente repetisse uma idéia em sua mente mesmo que apoiada por uma experiência passada não estaria mais inclinada a crer na exis tência de seu objeto que se houvesse se contentado em considerála apenas uma vez Além do efeito da intencionalidade cada ato da mente por ser separado e independente tem uma influência separada e não junta sua força à de seus congêneres Não estando unidos por um objeto comum que os tivesse produzido esses atos não têm relação entre si e conseqüentemente não realizam nenhuma transição ou união de forças Compreenderemos melhor esse fenômeno adiante 24 Minha segunda reflexão baseiase nessas altas probabilidades acer ca das quais a mente é capaz de julgar e nas minúsculas diferenças que é capaz de observar entre elas Quando as chances ou experiên cias em um lado chegam a dez mil e as do outro lado a dez mil e um o juízo dá preferência a estas em razão de sua superioridade em bora a diferença seja tão insignificante que é claramente impossível para a mente percorrer cada visão particular e distinguir a vividez su perior da imagem resultante do número superior Temos um exemplo análogo no caso dos afetos De acordo com os princípios acima mencio nados é evidente que quando um objeto produz em nós uma paixão que varia conforme as diferentes quantidades do objeto a paixão não é propriamente falando uma emoção simples mas composta de um grande número de paixões mais fracas derivadas da visão de cada parte do objeto De outro modo seria impossível que a paixão aumentasse com o aumento dessas partes Assim um homem que deseja mil li bras tem na realidade mil ou mais desejos que ao se unirem pare cem formar uma só paixão Mas a composição se revela de maneira evidente a cada alteração do objeto pela preferência que esse homem dá ao número maior ainda que a diferença seja de apenas uma uni dade Entretanto nada pode ser mais certo que o fato de que uma diferença tão pequena seria indiscernível nas paixões e não poderia tornálas distinguíveis umas das outras Portanto a diferença em nossa conduta ao preferirmos o número maior não depende de nos sas paixões mas do hábito e de regras gerais Mediante uma multipli 1 74 Livro 1 Parte 3 Seção 1 2 cidade de exemplos descobrimos que quando os números são pre cisos e a diferença sensível o aumento do montante de uma quantia qualquer de dinheiro aumenta a paixão A mente é capaz de perce ber por uma sensação feeling imediata que três guinéus produzem uma paixão maior que dois guinéus isso ela transfere para números maiores em razão da semelhança e por uma regra geral confere a mil guinéus uma paixão mais forte que aquela que confere a nove centos e noventa e nove Explicaremos essas regras gerais a seguir Mas além dessas duas espécies de probabilidade derivadas de uma experiência imperfeita e de causas contrárias há uma terceira re sultante da ANALOGIA que difere daquelas em alguns pontos impor tantes Segundo a hipótese acima explicada todos os tipos de racio cínios que partem de causas ou efeitos estão fundados em duas circunstâncias particulares a conjunção constante entre dois obje tos em toda a experiência passada e a semelhança entre um deles e um objeto presente O efeito dessas duas circunstâncias é que o ob jeto presente revigora e aviva a imaginação e a semelhança junta mente com a união constante transmite essa força e vividez à idéia relacionada e assim se diz que esta última recebe nossa crença ou assentimento Mas se enfraquecermos seja a união seja a semelhan ça enfraqueceremos o princípio de transição e em conseqüência disso a crença dele derivada A vividez da primeira impressão não pode ser integralmente transmitida à idéia relacionada se a conjun ção de seus objetos não é constante ou se a impressão presente não se assemelha perfeitamente a nenhuma daquelas cuja união estamos acostumados a observar Nas probabilidades de chances e de causas acima explicadas o que diminui é a constância da união na proba bilidade derivada da analogia é apenas a semelhança que é afeta da Sem algum grau de semelhança bem como de união é impossível haver qualquer raciocínio Mas como essa semelhança admite vários graus diferentes o raciocínio se torna proporcionalmente mais ou menos firme e certo Uma experiência perde parte de sua força quando transferida para casos que não são exatamente semelhantes mas en 1 75 Tratado da natureza humana quanto restar alguma semelhança é evidente que ela ainda pode con servar força suficiente para fundamentar uma probabilidade Seção 1 3 Da probabilidade não filosófica 1 Todos esses tipos de probabilidade são admitidos pelos filósofos e reconhecidos como fundamentos válidos de crença e opinião Mas há outros tipos que apesar de derivados dos mesmos princípios não tiveram a sorte de obter igual aprovação O primeiro tipo de probabili dade que se encontra nessa situação pode ser explicado da seguinte maneira Como mostramos anteriormente a diminuição da união bem como da semelhança diminui a facilidade da transição enfraquecendo assim a evidência Ora podemos observar que a mesma diminuição da evidência decorre também de uma diminuição da impressão e do obscurecimento das cores com que aparece à memória ou aos senti dos O argumento que fundamos sobre qualquer fato de que nos lem bramos será mais ou menos convincente conforme o fato seja re cente ou remoto Mas a diferença entre esses graus de evidência não é aceita pelos filósofos como sólida e legítima pois se assim o fos se um argumento deveria ter hoje uma força diferente da que terá daqui a um mês Entretanto apesar da oposição da filosofia é certo que tal circunstância exerce uma influência considerável sobre o en tendimento transformando secretamente a autoridade do mesmo ar gumento segundo os diferentes momentos em que ele nos é propos to Uma maior força e vividez na impressão transmite naturalmente uma força e vividez maior à idéia relacionada E é dos graus de força e vividez que depende a crença de acordo com o sistema precedente 2 Existe uma segunda diferença que podemos freqüentemente ob servar em nossos graus de crença e certeza e que nunca deixa de ocorrer embora rejeitada pelos filósofos Uma experiência recente e ainda fresca na memória nos afeta mais que outra que já esteja meio apagada exercendo uma influência superior sobre o juízo e sobre as 1 76 Livro 1 Parte 3 Seção 13 paixões Uma impressão vívida produz uma maior certeza que uma impressão fraca porque tem mais força original para comunicar à idéia relacionada que assim adquire uma força e vividez maior Uma observação recente tem um efeito semelhante pois o costume e a tran sição são ali mais completos preservando melhor a força original quando ela é comunicada Assim um bêbado que viu seu companhei ro morrer por excesso de bebida fica durante algum tempo abalado com o ocorrido temendo que um acidente semelhante lhe aconteça mas como a memória do acidente gradualmente se deteriora sua se gurança anterior retorna e o perigo parece menos certo e real 3 Como terceiro exemplo desse tipo acrescento que embora nos sos raciocínios por provas sejam consideravelmente diferentes dos raciocínios por probabilidades eles com freqüência se degradam in sensivelmente até se transformarem nestes últimos e isso pelo sim ples fato de haver um grande número de argumentos conectados É certo que quando se faz uma inferência imediatamente a partir de um objeto sem qualquer causa ou efeito intermediário a convicção é muito mais forte e a persuasão mais vívida do que quando a imagi nação é conduzida por uma longa cadeia de argumentos conectados por mais infalível que se considere a conexão entre cada elo e o seguin te A vividez de todas as idéias deriva da impressão original pela tran sição habitual da imaginação E é evidente que essa vividez deve de cair gradativamente conforme a distância perdendo um pouco a cada transição Às vezes essa distância tem uma influência até maior que aquela que teriam experiências contrárias Um homem pode extrair uma convicção mais vívida de um raciocínio provável que seja próximo e imediato do que de uma longa cadeia de conseqüências mesmo que todas as suas partes sejam corretas e conclusivas É raro aliás que ra ciocínios deste último tipo produzam alguma convicção É preciso possuir uma imaginação muito forte e firme para preservar até o fim uma evidência que percorre tantas etapas Mas talvez não seja fora de propósito observar aqui um fenôme no muito curioso que este tema nos sugere É evidente que não há 1 77 Tratado da natureza humana um só ponto da história antiga sobre o qual possamos ter alguma certeza se não passarmos ao longo de muitos milhões de causas e efeitos por uma cadeia de argumentos de uma extensão quase imen surável Para que o conhecimento do fato tenha chegado aos primei ros historiadores ele antes tem de ter sido transmitido de boca em boca numerosas vezes e uma vez posto por escrito cada nova cópia se torna um novo objeto cuja conexão com o anterior só é conhecida por experiência e observação Por conseguinte é bem possível que o raciocínio anterior leve à conclusão de que a evidência de toda a his tória antiga deve agora estar perdida ou ao menos irá se perder com o tempo conforme a cadeia de causas cresça e se alongue Entretan to como parece contrário ao bom senso pensar que se a república das letras e a arte da imprensa continuarem no mesmo passo que hoje nossa posteridade mesmo que só após mil gerações talvez tenha dú vidas se existiu realmente um homem como Júlio César isso pode ser considerado uma objeção ao presente sistema Se a crença consistis se somente em uma certa vividez transmitida de uma impressão ori ginal ela se degeneraria ao longo da transição devendo finalmente se extinguir por completo E viceversa se a crença em algumas oca siões não é passível de tal extinção ela deve ser alguma coisa dife rente da vividez 5 Antes de responder a tal objeção observarei que foi deste tema que se extraiu um argumento célebre contra a religião cristã mas com a diferença de que ali se supunha que a conexão entre cada elo da cadeia no testemunho humano não excedia a probabilidade es tando sujeita a um certo grau de dúvida e incerteza De fato devese reconhecer que a se considerar a questão dessa maneira que entre tanto não é correta não há história ou tradição que não deva aca bar por perder toda sua força e evidência Cada nova probabilidade Traduzo common sense ora como bom senso ora como senso comum Apenas na página 597 a expressão the common sense and judgement of mankind será traduzida como o bom senso e o senso comum dos homens NT John Craig Theologire christianre principia mathematica Londres 1 699 NT 1 78 Livro 1 Parte 3 Seção 1 3 diminui a convicção original e por maior que se suponha tal convic ção é impossível que ela possa subsistir a essas diminuições reitera das Isso geralmente é verdade porém mais tarde veremos9 que exis te uma exceção notável de amplas conseqüências para o presente tema do entendimento 6 Enquanto isso respondamos à objeção anterior baseada na su posição de que a evidência histórica equivale inicialmente a uma prova completa Consideremos que embora sejam inúmeros os elos que conectam um fato original à impressão presente que fundamenta a crença eles são todos do mesmo tipo dependendo da fidelidade de tipógrafos e copistas Uma edição passa a outra esta a uma terceira e assim por diante até chegarmos ao volume que ora examinamos Não há variação nessas etapas Quando conhecemos uma delas co nhecemos todas e após cumprirmos a primeira não hesitamos em cumprir as outras Só essa circunstância é capaz de preservar a evi dência da história e é ela que perpetuará a memória dos tempos pre sentes para a mais remota posteridade Se toda a longa cadeia de cau sas e efeitos que conecta um evento passado qualquer a um livro de história fosse composta por partes diferentes entre si as quais a mente tivesse de conceber distintamente seria impossível preservarmos até o fim qualquer crença ou evidência Mas como a maioria dessas pro vas é perfeitamente semelhante a mente passa com facilidade ao longo delas salta sem esforço de uma parte a outra e forma apenas uma noção confusa e geral de cada elo Desse modo uma longa cadeia de argumentos diminui muito menos a vividez original do que o faria uma cadeia bem mais curta mas composta de partes diferentes en tre si cada uma das quais exigindo um exame distinto 7 Uma quarta espécie de probabilidade não filosófica é derivada de regras gerais que apressadamente formamos para nós mesmos e que são a fonte daquilo que denominamos propriamente PRECON CEITO Os irlandeses não podem ter espiritualidade os franceses não 9 Parte 4 Seção 1 1 79 Tratado da natureza humana podem ter consistência por isso ainda que a conversa de um irlan dês seja claramente muito agradável e a de um francês bastante ju diciosa é tal nosso preconceito contra eles que dizemos contra todo bom senso e razão que o primeiro tem que ser estúpido e o segundo leviano A natureza humana está muito sujeita a esse tipo de erro e talvez esta nação tanto quanto qualquer outra 8 Caso alguém me perguntasse por que os homens formam regras gerais e permitem que elas influenciem seu julgamento mesmo con tra a observação e experiência presente eu responderia que em mi nha opinião isso se deve aos mesmos princípios de que dependem todos os juízos sobre causas e efeitos Nossos juízos sobre causas e efeitos são derivados do hábito e da experiência Quando nos acos tumamos a ver um objeto unido a outro nossa imaginação passa do primeiro ao segundo por uma transição natural que precede a refle xão e que não pode ser evitada por ela Ora é da natureza do costu me não somente operar com plena força quando os objetos que se apresentam são exatamente iguais àqueles com que nos havíamos acostumado mas também operar em um grau menor quando des cobrimos objetos similares Embora o hábito perca parte de sua for ça a cada diferença é raro que ele seja completamente destruído quan do circunstâncias importantes permanecem iguais Um homem que contraiu o hábito de comer frutas consumindo pêras ou pêssegos irá se satisfazer com melões quando não conseguir encontrar sua fruta predileta do mesmo modo um homem que se tornou alcoólatra be bendo vinhos tintos será atraído com uma violência quase igual pelo vinho branco se lhe mostrarmos uma garrafa deste Foi por esse prin cípio que expliquei aquela espécie de probabilidade derivada da ana logia em que transferimos nossa experiência de casos passados a objetos semelhantes mas não exatamente iguais aos objetos de que tivemos experiência À proporção que se reduz a semelhança a pro An Irishman cannot have wit and a Frenchman cannot have solidity Para evitar mal entendidos quase sempre traduzi wit como espirituosidade reservando o termo espírito para os casos que me pareceram suficientemente claros NT 1 80 Livro 1 Parte 3 Seção 13 habilidade diminui mas conservará sempre alguma força enquanto restar algum traço da semelhança 9 Podemos ampliar essa observação e ressaltar que embora o cos tume seja o fundamento de todos os nossos juízos às vezes seu efei to sobre a imaginação se opõe ao juízo produzindo uma contrarie dade em nossos sentimentos sobre o mesmo objeto Explicome Em quase todas as espécies de causas existe uma complexidade de cir cunstâncias algumas das quais são essenciais e outras supérfluas algumas são absolutamente necessárias à produção do efeito e ou tras estão apenas acidentalmente conjugadas com ele Ora podemos observar que quando essas circunstâncias supérfluas são numero sas e consideráveis ocorrendo em conjunção freqüente com as essen ciais elas exercem tal influência sobre a imaginação que mesmo na ausência das circunstâncias essenciais levamnos à concepção do efeito usual dando a essa concepção uma força e vividez que a torna superior às meras ficções da fantasia Podemos corrigir essa propen são mediante uma reflexão sobre a natureza dessas circunstâncias mas ainda nesse caso é certamente o costume que sai na frente im primindo a inclinação à imaginação 10 Para ilustrar esse tema por meio de um exemplo familiar consi deremos o caso de um homem que se encontra dentro de uma gaiola de ferro pendente de uma alta torre Ao olhar para o precipício em baixo dele esse homem não pode se impedir de tremer embora sai ba que está perfeitamente seguro e que não cairá pois tem experiên cia de que o ferro que o sustenta é sólido e as idéias da queda dos ferimentos e da morte derivam somente do costume e da experiên cia O mesmo costume ultrapassa os casos de que se origina e a que corresponde perfeitamente e influencia as idéias de objetos que são semelhantes em alguns aspectos mas que não se enquadram preci samente na mesma regra As circunstâncias da altura e da queda têm tal impacto sobre esse homem que sua influência não pode ser des Montaigne Essais IIXII Apologie de Raimond Sebond ed Thibaudet p578 NT 1 8 1 Tratado da natureza humana truída pelas circunstâncias contrárias da sustentação e da solidez que entretanto deveriam dar a ele uma perfeita segurança A imaginação se deixa levar por seu objeto e desperta uma paixão proporcional a este A paixão incide novamente sobre a imaginação e aviva a idéia Essa idéia vívida exerce uma nova influência sobre a paixão aumen tando sua força e violência Dessa maneira a fantasia e os afetos sus tentandose mutuamente fazem que todo o conjunto tenha uma gran de influência sobre ele 1 1 Mas para que buscar outros exemplos quando o presente tema das probabilidades não filosóficas nos oferece um tão evidente na opo sição entre juízo e imaginação decorrente desses efeitos do costume De acordo com meu sistema todo raciocínio é apenas efeito do cos tume e o único efeito do costume é avivar a imaginação produzindo em nós uma concepção forte de um determinado objeto Podese por tanto concluir que nosso juízo e nossa imaginação nunca podem ser contrários e que a ação do costume sobre esta última faculdade é incapaz de fazêla oporse à primeira A única forma de se eliminar essa dificuldade é admitir a influência de regras gerais Mais adian te 10 observaremos algumas regras gerais pelas quais devemos regu lar nosso juízo sobre causas e efeitos Essas regras se formam segun do a natureza de nosso entendimento e conforme nossa experiência da operação deste nos juízos que formamos acerca dos objetos Gra ças a elas aprendemos a distinguir as circunstâncias acidentais das causas eficientes Quando descobrimos que um efeito pode ser pro duzido sem a concorrência de alguma circunstância particular con cluímos que essa circunstância não faz parte da causa eficiente por mais freqüente que seja sua conjunção com ela Mas como essa con junção freqüente necessariamente faz com que tal circunstância te nha um efeito sobre a imaginação apesar da conclusão oposta de corrente das regras gerais a oposição desses dois princípios produz uma contrariedade em nossos pensamentos fazendonos atribuir 10 Seção 15 1 82 Livro 1 Parte 3 Seção 1 3 uma das inferências a nosso juízo e a outra a nossa imaginação A regra geral é atribuída ao juízo por ser mais extensa e constante a exceção à imaginação por ser mais caprichosa e incerta 12 Assim nossas regras gerais se opõem de certo modo umas às outras Quando aparece um objeto semelhante a uma causa quanto a circunstâncias muito consideráveis a imaginação naturalmente nos leva a uma concepção vívida do efeito habitual embora o objeto seja diferente da causa quanto às circunstâncias mais importantes e efica zes Eis a primeira influência das regras gerais Mas quando passa mos em revista esse ato da mente e o comparamos às operações mais gerais e autênticas do entendimento descobrimos que ele possui uma natureza irregular e que destrói os princípios mais bem estabeleci dos do raciocínio razão pela qual o rejeitamos Essa é uma segunda influência das regras gerais e implica a condenação da primeira Ora uma ora a outra prevalece conforme a disposição e o caráter da pes soa O vulgo costuma se guiar pela primeira e os homens avisados pela segunda Enquanto isso os céticos podem ter o prazer de ob servar aqui uma nova e notável contradição de nossa razão vendo toda a filosofia prestes a ser destruída por um princípio da natureza humana e ser salva em seguida por uma nova direção desse mes mo princípio Seguir regras gerais é uma espécie de probabilidade mui to pouco filosófica Entretanto apenas se as seguimos podemos corri gir a esta e a todas as outras probabilidades não filosóficas 13 Como temos exemplos em que as regras gerais agem sobre a ima ginação de maneira contrária ao juízo não devemos nos surpreen der por vermos crescer seus efeitos quando conjugados com esta última faculdade nem por observarmos que assim essas regras con ferem às idéias que nos apresentam uma força superior à que acom panha qualquer outra idéia Todos sabem que existe uma maneira indi reta de se insinuar um elogio ou uma condenação bem menos ofensiva que a lisonja ou censura abertas a uma pessoa Embora possamos co municar nossos sentimentos por meio dessas insinuações dissimu ladas e fazer com que sejam conhecidos com a mesma certeza que 1 83 Tratado da natureza humana se os revelássemos abertamente é certo que sua influência não será tão forte e poderosa Aquele que me fustiga com sátiras veladas não suscita em mim uma indignação tão grande quanto se me dissesse diretamente que sou um imbecil presunçoso embora eu entenda o que quer dizer exatamente como se o dissesse Essa diferença deve ser atribuída à influência das regras gerais 14 Quer uma pessoa me insulte abertamente quer insinue soler temente seu desprezo não é de imediato que percebo seu sentimen to ou opinião só me torno sensível a estes por meio de signos isto é por seus efeitos A única diferença entre esses dois casos consiste portanto em que quando revela francamente seus sentimentos essa pessoa faz uso de signos gerais e universais e quando os sugere dissi muladamente emprega signos mais singulares e menos comuns O efeito dessa circunstância é que a imaginação ao passar da impres são presente à idéia ausente realiza a transição com maior facilidade e conseqüentemente concebe o objeto com uma força maior no caso em que a conexão é comum e universal do que naquele em que essa conexão é mais rara e particular Assim podemos observar que quan do declaramos abertamente nossos sentimentos dizse que tiramos a máscara ao passo que quando apenas insinuamos disfarçadamente nossas opiniões dizse que as velamos A diferença entre uma idéia produzida por uma conexão geral e a originada em uma conexão par ticular se compara aqui à diferença entre uma impressão e uma idéia Essa diferença na imaginação tem um efeito correspondente sobre as paixões e esse efeito se amplia graças a outra circunstância Uma insinuação velada de raiva ou desprezo mostra que ainda temos al guma consideração pela pessoa visada e evitamos atacála diretamen te Isso torna uma sátira velada menos desagradável mas o princípio de que depende é o mesmo Pois se uma idéia não fosse mais fraca quando apenas insinuada nunca consideraríamos um maior sinal de respeito agir dessa maneira de preferência à outra 15 Às vezes a grosseria é menos desagradável que a sátira sutil por que proporcionandonos uma boa razão para condenar e desprezar 1 84 Livro 1 Parte 3 Seção 1 3 a pessoa que nos atacou de certa forma nos vinga do insulto no mo mento mesmo em que este foi cometido Mas também esse fenôme no depende do mesmo princípio Afinal por que condenamos toda linguagem grosseira e insultuosa senão porque a consideramos con trária à boa educação e ao respeito humano E por que é contrária a estes senão por ofender mais que uma crítica delicada As regras da boa educação condenam tudo que seja abertamente ofensivo e cause um sensível malestar e embaraço àqueles com quem falamos Uma vez estabelecidas essas regras a linguagem insultuosa passa a ser universalmente condenada e dói menos pois sua rudeza e incivili dade tornam desprezível quem a empregou Ela se torna menos de sagradável apenas porque originalmente o é mais e é mais desagra dável porque permite uma inferência por regras gerais e comuns que são palpáveis e inegáveis 16 A essa explicação das diferentes influências da lisonja ou crítica aberta e velada acrescentarei a consideração de um fenômeno aná logo Há vários preceitos relativos à honra tanto de homens como de mulheres cuja violação o mundo jamais perdoa quando aberta e franca mas tende a deixar passar quando as aparências são salvas e a transgressão é secreta e velada Mesmo aqueles que sabem com cer teza que a falta foi cometida perdoamna mais facilmente quando as provas parecem em certa medida oblíquas e equívocas do que quando são diretas e inegáveis A mesma idéia está presente nos dois casos e para falar corretamente é aceita da mesma forma pelo juízo mas sua influência é diferente em razão da maneira diferente como se apresenta 17 Ora se compararmos as violações abertas e veladas aos códigos de honra veremos que a diferença entre os dois casos consiste em que no primeiro o signo do qual inferimos a ação condenável é úni co sendo suficiente para sozinho fundamentar nosso raciocínio e julgamento no segundo ao contrário os signos são numerosos e são pouco ou nada decisivos quando se apresentam isolados e sem a companhia de muitas circunstâncias minúsculas e quase impercep tíveis A verdade é que qualquer raciocínio é sempre tão mais con 1 85 Tratado da natureza humana vincente quanto mais simples e unificado se mostra ao olhar e quanto menos esforço exige da imaginação para reunir todas as suas partes e passar delas para a idéia correlata que forma a conclusão O traba lho do pensamento perturba o progresso regular dos sentimentos como observaremos em breve1 1 A idéia não nos toca com a mesma vividez conseqüentemente não tem tanta influência sobre as paixões e a imaginação 18 Podemos justificar com base nos mesmos princípios estas ob servações do CARDEAL DE RETZ que há muitas coisas sobre as quais o mundo deseja ser iludido e que é mais fácil se desculpar uma pessoa por agir do que por falar de maneira contrária ao decoro de sua profissão e cará ter Uma falta expressa em palavras costuma ser mais franca e dis tinta que uma falta manifesta nas ações pois estas admitem várias desculpas e atenuantes e não revelam tão claramente as intenções e opiniões do agente 19 Assim levandose em conta tudo o que foi dito vemos que to dos os tipos de opiniões ou juízos que não chegam a formar um co nhecimento derivam exclusivamente da força e vividez da percepção e que essas qualidades constituem na mente aquilo que denomina mos CRENÇA na existência de um objeto Essa força e essa vividez são mais manifestas na memória por isso nossa confiança na vera cidade dessa faculdade é a maior que se possa imaginar igualando se em muitos aspectos à certeza de uma demonstração O grau se guinte dessas qualidades é o que deriva da relação de causa e efeito e também é bastante elevado sobretudo quando a experiência mos tra que a conjunção é perfeitamente constante e quando o objeto que se apresenta a nós se assemelha exatamente àqueles de que tivemos experiência Abaixo desse grau de evidência há porém muitos ou tros que exercem uma influência sobre as paixões e a imaginação proporcionalmente ao grau de força e vividez que comunicam à idéia 1 1 Parte 4 Seção 1 Cardinal de Retz 16131679 O trecho citado encontrase em Mémoires du Cardinal de Retz 3 NT 1 86 Livro 1 Parte 3 Seção 1 3 É por hábito que fazemos a transição da causa ao efeito e é de algu ma impressão presente que retiramos a vividez que transmitimos para a idéia correlata Mas quando o número de casos observados não é suficiente para produzir um hábito forte ou quando esses casos são contrários uns aos outros ou a semelhança não é exata ou a im pressão presente é fraca e obscura ou a experiência foi em certa me dida apagada da memória ou a conexão depende de uma longa ca deia de objetos ou a inferência deriva de regras gerais e não obstante não é conforme a elas em todos esses casos a evidência diminui em virtude da diminuição da força e intensidade da idéia Tal é portanto a natureza do juízo e da probabilidade O que confere autoridade a esse sistema é sobretudo além dos argumentos indubitáveis em que se fundam todas as suas partes a concordância entre essas partes e a necessidade de cada uma para explicar as outras A crença que acompanha nossa memória tem a mesma natureza que a derivada de nossos juízos Não há nenhuma diferença entre o juízo resultante de uma conexão constante e uni forme de causas e efeitos e o que depende de uma conexão descon tínua e incerta De fato é evidente que sempre que a mente precisa tomar alguma decisão com base em experiências contrárias ela de início se vê internamente dividida inclinandose um pouco para cada lado em proporção ao número de experiências vistas ou recordadas Esse combate finalmente se decide em favor do lado em que obser vamos o maior número dessas experiências mas a força de sua evi dência sofre um decréscimo correspondente ao número de experiên cias contrárias Cada possibilidade de que se compõe a probabilidade age separadamente sobre a imaginação e é o conjunto mais amplo de possibilidades que finalmente prevalece com uma força proporcio nal à sua superioridade Todos esses fenômenos levam diretamente ao sistema anterior É impossível que qualquer outro sistema forne ça uma explicação satisfatória e consistente desses fenômenos Se não considerarmos esses juízos como efeitos do costume sobre a ima ginação mergulharemos em perpétuas contradições e absurdos 1 8 7 Tratado da natureza humana Seção 1 4 Da idéia de conexão necessária 1 Tendo assim explicado a maneira como em nossos raciocínios ultra passamos nossas impressões imediatas e concluímos que tais causas particulares têm de ter tais efeitos particulares devemos agora voltar sobre nossos passos para examinar a questão12 que primeiro levantamos e que dei xamos de lado ao longo de nosso caminho em que consiste nossa idéia de necessidade quando dizemos que dois objetos estão necessariamente conectados um com o outro Sobre este ponto repito o que tive ocasião de observar diversas vezes Se afirmamos que realmente temos uma idéia de necessidade então devemos encontrar alguma impressão que a origine porque não temos nenhuma idéia que não seja derivada de uma impressão Para isso considero em que objetos comumente se supõe que existe necessidade e como vejo que esta é sempre atribuí da a causas e efeitos dirijo meu olhar para dois objetos que suposta mente mantêm tal relação entre si examinandoos em todas as situa ções em que podem se encontrar Imediatamente percebo que eles são contíguos no tempo e no espaço e que o objeto que chamamos de causa antecede o que chamamos de efeito Em nenhum caso isolado sou capaz de ir além disso sendome impossível descobrir uma ter ceira relação entre esses objetos Por essa razão amplio minha visão para abarcar vários casos de objetos semelhantes que existem sem pre em relações semelhantes de contigüidade e sucessão À primeira vista isso parece servir muito pouco a meu objetivo A reflexão so bre diversos casos apenas repete os mesmos objetos e por isso nunca pode gerar uma nova idéia Contudo levando adiante minha investi gação vejo que a repetição não é igual em todos os aspectos mas pro duz uma nova impressão e desse modo produz também a idéia que estou examinando Pois após uma repetição freqüente descubro que quando um dos objetos aparece o costume determina a mente a 12 Seção 2 1 88 Livro 1 Parte 3 Seção 1 4 considerar aquele que usualmente o acompanha e a considerálo de um modo mais intenso em virtude de sua relação com o primeiro ob jeto Portanto é essa impressão ou determinação que me fornece a idéia de necessidade 2 Não tenho dúvida de que tais conclusões serão aceitas imedia tamente e sem nenhuma dificuldade por serem deduções evidentes de princípios que já estabelecemos e que empregamos várias vezes em nossos raciocínios Essa evidência tanto dos primeiros princípios como das deduções pode nos conduzir despercebidamente para a con clusão fazendonos imaginar que ela não contém nada de extraordi nário ou digno de nossa curiosidade Mas embora tal inadvertência possa facilitar a aceitação desse raciocínio fará também que seja mais facilmente esquecido Por essa razão creio que devo advertir que aca bo de examinar uma das questões mais sublimes da filosofia a sa ber a questão concernente ao poder e à eficácia das causas e a qual pare ce ser objeto de tamanho interesse por parte de todas as ciências Essa advertência naturalmente despertará a atenção do leitor e o fará solicitar uma explicação mais completa de minha doutrina bem como dos argumentos em que está fundada Esse pedido é tão razoável que não posso me recusar a atendêlo sobretudo por ter esperança de que esses princípios quanto mais forem examinados mais força e evidência irão adquirir 3 Nenhuma questão por sua importância e dificuldade causou mais discussões entre os filósofos antigos e modernos que esta refe rente à eficácia das causas ou seja à qualidade que faz com que sejam seguidas por seus efeitos Mas pareceme que antes de entrar nessas discussões não teria sido mal se eles houvessem examinado que idéia temos dessa eficácia a qual é o objeto da controvérsia É especialmente isso que vejo faltar em seus raciocínios e que buscarei aqui remediar 4 Começo observando que os termos eficácia ação poder força energia necessidade conexão e qualidade produtiva são quase sinôni mos e por isso é absurdo empregar qualquer um deles para definir o resto Com essa observação rejeitamos de uma só vez todas as 1 89 Tratado da natureza humana definições comuns que os filósofos dão para poder e eficácia Em vez de procurar a idéia nessas definições devemos procurála nas impressões de que originalmente deriva Se for uma idéia composta deverá resultar de impressões compostas Se for simples de impres sões simples 5 Creio que a explicação mais geral e mais popular dessa questão é dizer que 13 vendo pela experiência que existem diversas produções novas na matéria tais como os movimentos e as variações dos corpos e concluindo que tem de haver em algum lugar um poder capaz de as produzir chegamos finalmente por esse raciocínio à idéia de poder e eficácia Mas para nos convencermos de que essa explicação é mais popular que filosófica basta refletirmos sobre dois princípios bastante óbvios Primeiro que a razão por si só jamais pode gerar uma idéia original e segundo que a razão enquanto distinta da experiência ja mais pode nos fazer concluir que uma causa ou qualidade produtiva é absolutamente necessária para todo começo de existência Ambas as considerações já foram suficientemente explicadas e por isso não insistiremos sobre elas agora 6 Apenas inferirei que como a razão jamais pode dar origem à idéia de eficácia tal idéia tem que ser derivada da experiência e de alguns exemplos particulares dessa eficácia que penetram na mente pelos canais comuns da sensação ou da reflexão As idéias sempre repre sentam seus objetos ou impressões e reciprocamente para dar ori gem a uma idéia sempre é necessário um objeto Portanto se alega mos possuir uma idéia legítima dessa eficácia devemos apresentar algum exemplo em que a eficácia se mostre à mente de forma clara e em que suas operações sejam evidentes à nossa consciência ou sen sação Se nos negarmos a isso estaremos reconhecendo que a idéia é impossível e imaginária Pois o princípio das idéias inatas o único que poderia nos livrar desse dilema já foi refutado e agora é quase 13 Ver Sr Locke capítulo sobre o poder An Essay concerning human understanding 221 NT 1 90 Livro 1 Parte 3 Seção 1 4 universalmente rejeitado no mundo erudito Nossa tarefa presente portanto deve ser encontrar alguma produção natural em que a ope ração e a eficácia de uma causa possam ser claramente concebidas e compreendidas pela mente sem risco de obscuridade ou engano Nesta pesquisa sentimonos muito pouco encorajados pela pro digiosa diversidade de opiniões emitidas pelos filósofos que alegaram explicar a força e energia secreta das causas14 Alguns afirmam que os corpos agem por sua forma substancial outros que agem por seus acidentes ou qualidades muitos por sua matéria e forma alguns ain da por sua forma e acidentes e outros por certas virtudes e faculda des distintas de tudo isso Ademais todas essas opiniões se mistu ram e se transformam de mil maneiras diferentes o que nos dá um forte motivo para suspeitar que nenhuma delas possui qualquer so lidez ou evidência e que a suposição de que haveria uma eficácia em alguma das qualidades conhecidas da matéria é inteiramente infun dada Essa suspeita fica mais forte quando consideramos que esses princípios formas substanciais acidentes e faculdades não consti tuem na realidade nenhuma das propriedades conhecidas dos cor pos sendo antes completamente ininteligíveis e inexplicáveis Por que é evidente que os filósofos jamais teriam recorrido a princípios tão obscuros e incertos se houvessem encontrado princípios claros e inteligíveis que pudessem têlos satisfeito sobretudo numa ques tão como esta que deve ser objeto do mais simples entendimento senão dos sentidos De tudo isso podemos concluir que é impossí vel mostrar em um só exemplo que seja o princípio em que se situa a força e o poder ativo de uma causa e que o entendimento mais refinado e o mais comum se vêem igualmente perdidos a esse res peito Se alguém pensa que cabe refutar tal asserção não precisa se dar ao trabalho de inventar longos raciocínios basta que nos mostre o exemplo de uma causa em que possamos descobrir o poder ou 14 Ver Padre Malebranche Livro VI Parte 2 Capítulo 3 e os esclarecimentos correspondentes La Recherche de la vérité XVm Éclaircissement NT 1 9 1 Tratado da natureza humana princípio operador Vemonos com freqüência obrigados a fazer uso desse tipo de desafio por ser praticamente o único meio de provar uma negação em filosofia 8 O fraco sucesso obtido por todas as tentativas de determinar esse poder finalmente obrigou os filósofos a concluir que a força e eficá cia última da natureza nos é inteiramente desconhecida e que é em vão que a buscamos nas qualidades conhecidas da matéria Sobre essa conclusão os filósofos são praticamente unânimes apenas quanto à inferência que dela extraem é que descobrem diferenças entre suas opiniões De fato alguns deles em particular os cartesianos havendo estabelecido como um princípio que possuímos um perfeito conhe cimento da essência da matéria inferiram muito naturalmente que esta não tem nenhuma eficácia e é impossível que por si só comu nique movimento ou produza qualquer dos efeitos que a ela atribuí mos Como a essência da matéria consiste na extensão e como a ex tensão não implica um movimento em ato mas apenas a mobilidade concluem que a energia que produz o movimento não pode estar na extensão 9 Essa conclusão levaos a uma outra que vêem como absoluta mente inevitável A matéria dizem eles é em si mesma inteiramente inativa e desprovida de qualquer poder pelo qual pudesse produzir conti nuar ou comunicar movimento Mas como esses efeitos são evidentes para nossos sentidos e como o poder que os produz tem de estar em algum lugar ele deve residir em DEUS esse ser divino que contém em sua natureza toda excelência e perfeição Deus portanto é o primei ro motor do universo e não apenas criou a matéria e deu a ela seu im pulso original mas também por um exercício contínuo de sua onipo tência sustenta sua existência conferindolhe sucessivamente todos os movimentos configurações e qualidades de que é dotada 10 Tal opinião é certamente muito curiosa e bem merece nossa aten ção mas se refletirmos por um momento sobre o motivo que nos levou a atentar para ela perceberemos que seria supérfluo examinála 1 92 Livro 1 Parte 3 Seção 1 4 aqui Estabelecemos como um princípio que como todas as idéias são derivadas de impressões ou seja de percepções anteriores é impos sível que tenhamos qualquer idéia de poder e eficácia a menos que se possa mostrar algum caso em que se perceba esse poder em exercício Ora como casos assim jamais podem ser descobertos nos corpos os cartesianos com base em seu princípio das idéias inatas recorreram a um espírito ou àivindade suprema a quem consideram como o único ser ativo no universo e como a causa imediata de toda alteração na ma téria Mas uma vez aceito que o princípio das idéias inatas é falso se guese que a suposição de uma divindade de nada nos serve para dar conta daquela idéia de poder ativo que em vão procuramos em todos os objetos que se apresentam a nossos sentidos ou de que estamos internamente conscientes em nossa própria mente Pois se toda idéia é derivada de uma impressão a idéia de Deus procede da mesma ori gem e se nenhuma impressão de sensação ou de reflexão implica uma força ou eficácia é igualmente impossível descobrir ou sequer imagi nar um tal princípio ativo em Deus Como esses filósofos portanto concluíram que a matéria não pode ser dotada de nenhum princípio eficiente porque é impossível descobrir nela um tal princípio o mes mo raciocínio deveria determinar que o excluíssem do ser supremo Ou se consideram tal opinião absurda e ímpia como realmente o é direi como podem evitála concluindo desde o início que não possuem uma idéia adequada de poder ou eficácia em nenhum objeto pois nem no corpo nem no espírito nem nas naturezas superiores nem nas in feriores serão capazes de descobrir um só exemplo desse poder A mesma conclusão se segue inevitavelmente da hipótese dos que sustentam a eficácia das causas segundas e atribuem à matéria um poder e energia derivados mas reais Como admitem que essa ener gia não se encontra em nenhuma das qualidades conhecidas da maté ria permanece a dificuldade a respeito da origem de sua idéia Se real mente temos uma idéia de poder podemos atribuir poder a uma qualidade desconhecida Mas como é impossível que essa idéia seja de rivada de tal qualidade e como não há nada nas qualidades conhecidas 1 93 Tratado da natureza humana que a possa produzir seguese que estamos enganando a nós mesmos quando imaginamos possuir urna idéia dessa espécie da maneira corno normalmente a entendemos Todas as idéias são derivadas de impressões e as representam Jamais ternos nenhuma impressão que contenha poder ou eficácia Portanto jamais ternos nenhuma idéia de poder 12 Alguns afirmaram que sentimos urna energia ou poder em nossa própria mente e que tendo assim adquirido a idéia de poder trans ferimos essa qualidade à matéria na qual não somos capazes de des cobrila imediatamente Os movimentos de nosso corpo assim corno os pensamentos e sentimentos de nossa mente dizem obedecem à vontade não precisamos ir além disso para obter urna noção corre ta de força ou poder Mas para nos convencermos de quão falacioso é esse raciocínio basta considerarmos que como a vontade é aqui tida corno urna causa ela não tem com seu efeito uma conexão mais manifesta que aquela que qualquer causa material tem com seu pró prio efeito Longe de se perceber a conexão entre um ato de volição e um movimento do corpo o que se vê é que nenhum efeito é mais inexplicável dados os poderes e a essência do pensamento e da ma téria Tampouco o domínio da vontade sobre nossa mente é mais in teligível Aqui o efeito é distinguível e separável da causa e não po deria ser previsto sem a experiência de sua conjunção constante Ternos o comando de nossa mente até um certo grau mas além des te perdemos todo domínio sobre ela E sem consultarmos a experiên cia é evidentemente impossível fixar qualquer limite preciso para nossa autoridade Em suma as ações da mente são sob esse aspecto iguais às da matéria Tudo que percebemos é sua conjunção cons tante e nosso raciocínio jamais pode ir além disso Nenhuma impres são interna possui uma energia evidente não mais que os objetos externos Portanto já que os filósofos admitem que a matéria age por meio de urna força desconhecida em vão esperaríamos chegar a uma idéia de força consultando nossa própria mente Ver nota de Hume à p671 1 94 Livro 1 Parte 3 Seção 1 4 13 Estabelecemos como um princípio certo que as idéias gerais ou abstratas não são senão idéias individuais vistas de um certo ângu lo e que ao refletirmos sobre um objeto é tão impossível excluir de nosso pensamento todos os graus particulares de quantidade e qualidade quanto o é excluílos da natureza real das coisas Se pos suímos portanto uma idéia de poder em geral também temos que ser capazes de conceber alguma espécie particular desse poder E como o poder não pode subsistir por si só sendo sempre conside rado um atributo de algum ser ou existência devemos ser capazes de situar esse poder em algum ser particular e de conceber esse ser como dotado de uma força e energia reais que fazem com que tal efeito particular resulte necessariamente de sua operação Devemos conceber distinta e particularmente a conexão entre a causa e o efeito devemos ser capazes de afirmar pela simples observação de um de les que deve ser seguido ou precedido pelo outro Essa é a maneira correta de se conceber um poder particular em um corpo particular E como uma idéia geral é impossível sem uma idéia individual é certo que quando esta última é impossível a primeira jamais poderá exis tir Ora nada é mais evidente que o fato de que a mente humana não é capaz de formar uma tal idéia de dois objetos de modo a conceber uma conexão entre eles ou a compreender distintamente o poder ou eficácia que os une Tal conexão equivaleria a uma demonstração e implicaria a absoluta impossibilidade de que um objeto não se seguis se ou fosse concebido como não se seguindo de outro e esse tipo de conexão já foi rejeitado em todos os casos Se alguém tem uma opinião contrária e pensa que adquiriu uma noção de poder em al gum objeto particular peçolhe que me aponte esse objeto Mas até que eu encontre tal pessoa e não tenho nenhuma esperança de que isso venha a acontecer não posso deixar de concluir que visto ja mais sermos capazes de conceber distintamente como é possível que um poder particular resida em um objeto particular estamos enga nando a nós mesmos quando imaginamos ser capazes de formar uma tal idéia geral 1 95 Tratado da natureza humana 14 Assim de tudo o que foi dito podemos inferir que quando fala mos de um ser qualquer seja de natureza superior seja inferior e dizemos que possui um poder ou força proporcional a um certo efei to quando falamos de uma conexão necessária entre objetos e su pomos que essa conexão depende de uma eficácia ou energia de que algum desses objetos seria dotado na verdade nenhuma dessas expressões assim aplicadas possui um sentido distinto ao em pregálas estamos apenas utilizando palavras comuns sem ter ne nhuma idéia clara e determinada Mas como o mais provável nesse caso é não que essas expressões nunca tenham tido nenhum sen tido e sim que elas tenham perdido seu sentido verdadeiro por te rem sido erroneamente aplicadas convém fazer um novo exame desse tema para ver se podemos descobrir a natureza e a origem das idéias que a elas vinculamos 15 Suponhamos que se apresentem a nós dois objetos dos quais um é a causa e o outro o efeito É claro que pela simples observação de um ou de ambos os objetos jamais perceberemos o laço pelo qual estão unidos nem seremos capazes de afirmar com certeza que há uma conexão entre eles Portanto não é partindo de um exemplo sin gular que chegamos à idéia de causa e efeito de uma conexão neces sária de poder de força de energia e de eficácia Se jamais víssemos nada além de conjunções particulares de objetos inteiramente dife rentes uns dos outros jamais seríamos capazes de formar tais idéias 16 Mais ainda Supondose que observemos diversos exemplos em que os mesmos objetos estão sempre em conjunção uns com os ou tros imediatamente conceberemos uma conexão entre eles e come çaremos a fazer uma inferência de um ao outro Essa multiplicidade de casos semelhantes constitui portanto a essência mesma do poder ou conexão sendo a fonte de que nasce sua idéia Portanto para com preendermos tal idéia temos de considerar essa multiplicidade Isso é tudo que peço para encontrar a solução dessa dificuldade que há tanto nos vem aturdindo Eis meu raciocínio A repetição de casos perfeitamente similares não pode nunca por si só gerar uma idéia 1 96 Livro 1 Parte 3 Seção 14 original que seja diferente da que se encontra em um caso particular como já observei e como se segue de modo evidente de nosso prin cípio fundamental que todas as idéias são copiadas de impressões Por tanto uma vez que a idéia de poder é uma nova idéia original que não se encontra em nenhum caso singular e que não obstante sur ge da repetição de diversos casos seguese que a repetição por si só não tem esse efeito devendo antes revelar ou produzir alguma coisa nova que seja a fonte dessa idéia Se a repetição não revelasse nem produzisse nada de novo ela poderia multiplicar nossas idéias mas estas não sofreriam nenhum acréscimo em relação ao que são quando da observação de um caso isolado Por isso qualquer acréscimo como a idéia de poder ou de conexão oriundo da multiplicidade de casos similares é copiado de determinados efeitos da multiplicidade e será compreendido perfeitamente quando compreendermos esses efeitos Se encontrarmos alguma coisa nova revelada ou produzida pela re petição é aí que devemos situar o poder não devemos nunca procurá lo em outro objeto 17 Mas é evidente em primeiro lugar que a repetição de objetos se melhantes em relações semelhantes de sucessão e contigüidade não revela nada de novo nesses objetos pois como já provamos 15 não podemos extrair dessa repetição nenhuma inferência nem tomála como objeto de nossos raciocínios sejam eles demonstrativos se jam prováveis Mais ainda supondose que pudéssemos fazer uma inferência isso não teria nenhuma importância neste caso pois ne nhum tipo de raciocínio pode originar uma idéia nova como essa idéia de poder ao contrário sempre que raciocinamos temos de possuir previamente idéias claras que possam ser os objetos de nosso raciocí nio A concepção sempre precede o entendimento quando ela é obscura ele é incerto e quando ela está ausente ele tampouco pode existir 18 Em segundo lugar é certo que essa repetição de objetos simila res em situações similares não produz nada nem nesses objetos nem 15 Seção 6 1 9 7 Tratado da natureza humana nos corpos externos Pois concordarseá imediatamente que os di versos casos da conjunção de causas e efeitos semelhantes são em si mesmos inteiramente independentes e que a comunicação de movi mento que vejo agora resultar do choque de duas bolas de bilhar é totalmente distinta daquela que vi resultar de um impulso semelhante há um ano Esses impulsos não exercem nenhuma influência uns sobre os outros São inteiramente separados pelo tempo e pelo espa ço e um poderia ter existido e comunicado movimento mesmo que o outro nunca tivesse existido 19 Portanto nada de novo é revelado ou produzido em nenhum ob jeto por sua conjunção constante com outro ou pela semelhança ininterrupta de suas relações de sucessão e contigüidade Mas é des sa semelhança que provêm as idéias de necessidade poder e eficácia Tais idéias portanto não representam nada que pertença ou possa vir a pertencer aos objetos que estão em conjunção constante Este argumento se mostrará absolutamente irrefutável seja qual for a pers pectiva pela qual o examinemos Casos similares continuam sendo a fonte inicial de nossa idéia de poder ou necessidade mas ao mesmo tempo sua similaridade não faz com que tenham nenhuma influên cia uns sobre os outros ou sobre objetos externos Portanto deve mos buscar a origem dessa idéia em algum outro canto 20 Embora os diversos casos semelhantes que originam a idéia de po der não se influenciem mutuamente e jamais possam produzir no ob jeto uma nova qualidade que pudesse ser o modelo dessa idéia a obser vação dessa semelhança produz uma nova impressão na mente e é essa impressão que é seu modelo real Após termos observado a semelhan ça em um número suficiente de casos sentimos de imediato uma de terminação da mente a passar de um objeto àquele que usualmente o acompanha e a concebêlo mais intensamente em função dessa rela ção Tal determinação é o único efeito da semelhança e portanto deve ser o mesmo que o poder ou a eficácia cuja idéia é derivada da seme lhança Os diversos casos de conjunções semelhantes nos conduzem à noção de poder e necessidade Esses casos são em si mesmos total mente distintos uns dos outros e não têm nenhuma união a não ser 1 98 Livro 1 Parte 3 Seção 1 4 na mente que os observa e que reúne suas idéias A necessidade por tanto é o efeito dessa observação e é apenas uma impressão interna da mente uma determinação a levar nossos pensamentos de um obje to a outro Se não a considerarmos desse modo nunca poderemos ter dela a mais distante noção nem seremos capazes de atribuíla seja aos objetos externos seja aos internos ao espírito ou ao corpo às causas ou aos efeitos 21 A conexão necessária entre causas e efeitos é o fundamento de nossa inferência daquelas a estes ou reciprocamente O fundamen to de nossa inferência é a transição resultante da união habitual A conexão necessária e a transição são portanto a mesma coisa 22 A idéia de necessidade surge de alguma impressão Nenhuma im pressão transmitida por nossos sentidos é capaz de gerar tal idéia Ela deve portanto ser derivada de alguma impressão interna ou seja de uma impressão de reflexão A única impressão interna com algu ma relação com aquilo de que estamos tratando é a propensão pro duzida pelo costume a passar de um objeto à idéia daquele que o acompanha usualmente Essa é portanto a essência da necessida de Em suma a necessidade é algo que existe na mente e não nos objetos E jamais poderemos formar a menor idéia dela se a conside rarmos uma qualidade dos corpos Ou bem não temos nenhuma idéia de necessidade ou então a necessidade não é senão a determinação do pensamento a passar das causas aos efeitos e dos efeitos às causas de acordo com a experiência de sua união 23 Assim como a necessidade que faz com que dois multiplicado por dois seja igual a quatro ou que a soma dos três ângulos de um triângulo seja igual a dois retos encontrase unicamente no ato do entendimen to pelo qual consideramos e comparamos essas idéias assim também a necessidade ou poder que une causas e efeitos está na determinação da mente a passar daquelas a estes ou reciprocamente A eficácia ou energia das causas não se situa nem nas próprias causas nem em Deus nem na concorrência desses dois princípios Pertence inteiramente à alma que considera a união de dois ou mais objetos em todos os 1 99 Tratado da natureza humana casos passados É aqui que se encontra o poder real das causas jun tamente com sua conexão e necessidade 24 Reconheço que de todos os paradoxos que já apresentei ou que terei ocasião de apresentar no decorrer deste tratado este é o mais radical e somente a força de uma prova e de um raciocínio sólidos po dem me dar esperanças de que um dia será aceito superando os pre conceitos inveterados da humanidade Antes de admitirmos essa doutrina quantas vezes não devemos repetir para nós mesmos que a mera visão de dois objetos ou ações quaisquer mesmo relacio nados jamais pode nos dar a idéia de um poder ou de uma conexão entre eles que essa idéia nasce da repetição de sua união que a repe tição não revela nem causa nada nos objetos influenciando apenas a mente mediante a transição habitual por ela produzida que essa transição habitual é portanto a mesma coisa que o poder e a ne cessidade os quais conseqüentemente são qualidades das percep ções e não dos objetos e são sentidos internamente pela alma em lugar de percebidos externamente nos corpos O espanto costuma acompanhar tudo que é extraordinário e esse espanto se transfor ma imediatamente no mais alto grau de admiração ou desprezo con forme aprovemos ou desaprovemos o objeto Tenho um grande re ceio de que embora o raciocínio anterior me pareça o mais conciso e decisivo que se possa imaginar os leitores em geral vejam prevale cer a inclinação da mente que lhes dará uma predisposição contra a presente doutrina 25 Essa inclinação contrária se explica facilmente É comum obser varmos que a mente tem uma grande propensão a se espalhar pelos objetos externos ligando a eles todas as impressões internas que eles ocasionam e as quais sempre aparecem ao mesmo tempo que esses objetos se manifestam aos sentidos Assim como observamos que certos sons e odores sempre acompanham determinados objetos visí veis naturalmente imaginamos uma conjunção também espacial entre os objetos e as qualidades embora essas qualidades sejam de uma natureza que não admite tal conjunção e na realidade não existam 2 00 Livro 1 Parte 3 Seção 14 em nenhum lugar Falaremos mais sobre esse assunto adiante16 Por ora basta notar que a mesma propensão é a razão por que supomos que a necessidade e o poder se encontram nos objetos que observa mos e não na mente que os observa muito embora não nos seja possível formar a menor idéia dessa qualidade quando não a toma mos como a determinação da mente a passar da idéia de um objeto à idéia daquele que o acompanha usualmente Mas embora essa seja a única explicação razoável que se pode fornecer da necessidade a noção contrária está tão enraizada na men te em razão dos princípios acima mencionados que não duvido que muitos tratarão minhas idéias como extravagantes e ridículas O quê A eficácia das causas está na determinação da mente Como se as causas não operassem de modo inteiramente independente da men te e não fossem continuar sua operação mesmo que não existisse nenhuma mente para as contemplar ou para raciocinar a seu respei to O pensamento pode bem depender das causas para sua operação mas não as causas do pensamento Isso é inverter a ordem da natu reza tomando como secundário o que na realidade é primário Para cada operação existe um poder proporcional e esse poder tem de estar situado no corpo que opera Se retiramos o poder de uma causa te mos de atribuílo a outra Mas retirálo de todas as causas e atribuí lo a um ser que não está de modo algum relacionado com a causa ou com o efeito senão porque os percebe é um absurdo grosseiro con trário aos princípios mais seguros da razão humana A tais argumentos só posso responder que este caso se parece muito com o de um cego que pretendesse encontrar um grande nú mero de absurdos na suposição de que a cor escarlate não é igual ao som de um trompete ou de que a luz não é igual à solidez Se real mente não temos nenhuma idéia de um poder ou eficácia em nenhum objeto nem de uma conexão real entre causas e efeitos de pouco ser virá provar que uma eficácia é necessária em todas as operações Não 16 Parte 4 Seção 5 2 0 1 Tratado da natureza humana compreendemos o sentido de nossas próprias palavras ao falar as sim Sem o saber confundimos idéias que são inteiramente distintas De fato estou pronto a admitir que pode haver várias qualidades tanto nos objetos materiais como nos imateriais que desconhecemos com pletamente e se queremos chamálas de poder ou eficácia isso pouco importa para o mundo Mas quando em vez de nos referirmos a es sas qualidades desconhecidas fazemos que os termos poder e eficá cia signifiquem alguma coisa de que temos uma idéia clara mas é in compatível com os objetos aos quais a aplicamos a obscuridade e o erro começam a se impor e somos desencaminhados por uma fal sa filosofia É o que ocorre quando transferimos a determinação do pensamento para os objetos externos e supomos que existe entre estes uma conexão real e inteligível pois essa é uma qualidade que só pode pertencer à mente que os considera 28 Quanto à afirmação de que as operações da natureza são inde pendentes de nosso pensamento e raciocínio eu o admito Foi assim que observei que os objetos mantêm entre si relações de contigüidade e sucessão que podemos observar vários exemplos de objetos seme lhantes com relações semelhantes e que tudo isso independe das ope rações do entendimento e as antecede Quando vamos além disso porém atribuindo um poder ou conexão necessária a esses objetos afirmo que devemos extrair tal idéia daquilo que sentimos internamente quando os contemplamos já que isso é algo que nunca poderíamos observar neles E estou tão convencido disso que estou disposto a tomar meu raciocínio presente como um exemplo do que acabo de dizer em virtude de uma sutileza que não será difícil compreender 29 Quando um objeto se apresenta a nós ele imediatamente traz à mente uma idéia vívida daquele objeto que geralmente o acompanha e essa determinação da mente forma a conexão necessária entre es ses objetos Mas quando deslocamos o ponto de vista dos objetos para as percepções a impressão deve ser considerada a causa e a idéia ví vida o efeito e sua conexão necessária é essa nova determinação que sentimos a passar da idéia de um à do outro O princípio unificador 2 02 Livro 1 Parte 3 Seção 1 4 de nossas percepções internas é tão ininteligível quanto o dos obje tos externos e nos é conhecido exclusivamente pela experiência Ora a natureza e os efeitos da experiência já foram suficientemente exa minados e explicados Ela jamais nos deixa entrever a estrutura in terna ou o princípio de operação dos objetos mas apenas acostuma a mente a passar de um objeto ao outro 30 Este é o momento de reunir as diferentes partes deste raciocínio e com elas compor uma definição exata da relação de causa e efeito tema da presente investigação A ordem que adotamos examinando primeiro nossa inferência baseada na relação para depois explicar a própria relação seria indesculpável se tivesse sido possível seguir um método diferente Mas como a natureza da relação depende em tão grande medida da natureza da inferência vimonos obrigados a pro ceder dessa maneira aparentemente às avessas empregando os ter mos antes de sermos capazes de definilos com exatidão ou de deter minar seu sentido Corrigiremos agora essa falta apresentando uma definição precisa de causa e efeito 3 1 Podemos dar duas definições dessa relação que diferem apenas por apresentarem aspectos diferentes do mesmo objeto fazendo com que o consideremos seja como uma relação filosófica seja como uma relação natural como uma comparação entre duas idéias ou como uma associação entre elas Podemos definir uma CAUSA como Um objeto anterior e contíguo a outro tal que todos os objetos semelhan tes ao primeiro mantêm relações semelhantes de anterioridade e con tigüidade com os objetos semelhantes ao último Se tal definição for considerada deficiente porque extraída de objetos estranhos à causa podemos substituíla por esta outra Uma CAUSA é um objeto ante rior e contíguo a outro e unido a ele de tal forma que a idéia de um determina a mente a formar a idéia do outro e a impressão de um a formar uma idéia mais vívida do outro Se também essa definição for rejeitada pela mesma razão o único remédio que vejo é que as pessoas que se mostrarem tão exigentes a substituam por uma definição mais exata De minha parte devo confessar que sou incapaz de realizar tal 203 Tratado da natureza humana coisa Quando examino com a maior precisão possível objetos comumente denominados causas e efeitos o que vejo se considero um caso isolado é que um objeto é anterior e contíguo ao outro e se amplio minha visão para compreender vários casos constato tãoso mente que objetos semelhantes estão sempre situados em relações semelhantes de sucessão e contigüidade Novamente quando con sidero a influência dessa conjunção constante percebo que tal rela ção nunca pode ser objeto de raciocínio e nunca pode operar sobre a mente senão por meio do costume que determina a imaginação a fazer uma transição da idéia de um objeto à daquele outro que o acompa nha usualmente e da impressão de um a uma idéia mais vívida do outro Por mais extraordinárias que possam parecer essas afirmações creio que é inútil me dar ao trabalho de realizar mais investigações ou raciocínios sobre esse assunto ao contrário apoiarmeei nelas como se em máximas já estabelecidas 32 Antes de deixarmos este tema devemos apenas extrair dele al guns corolários que nos permitirão eliminar vários preconceitos e er ros populares que têm tido grande prevalência na filosofia Em pri meiro lugar aprendemos com a doutrina precedente que todas as causas são da mesma espécie e em particular que é infundada a dis tinção por vezes estabelecida entre causas eficientes e causas sine qua non ou entre causas eficientes e causas formais materiais exempla res e finais Porque como nossa idéia de eficiência é derivada da con junção constante entre dois objetos sempre que se observa tal conjun ção a causa é eficiente quando não se a observa não pode haver nenhum tipo de causa Pela mesma razão devemos rejeitar a distin ção entre causa e ocasião se por ela se entende que esses termos sig nificam coisas essencialmente diferentes Se naquilo que chamamos ocasião estiver implicada uma conjunção constante essa ocasião será uma causa real Se não estiver não será absolutamente uma relação e não pode originar nenhum argumento ou raciocínio 33 Em segundo lugar o mesmo raciocínio nos fará concluir que exis te apenas uma espécie de necessidade assim como existe apenas uma 2 04 Livro 1 Parte 3 Seção 1 4 espécie de causa e que a distinção comum entre necessidade moral e física não possui fundamento na natureza Isso fica claro pela expli cação anterior da necessidade É a conjunção constante dos objetos juntamente com a determinação da mente que constitui uma neces sidade física e a exclusão destas é o mesmo que o acaso Como os objetos têm de estar ou não em conjunção e como a mente tem de ser ou não determinada a passar de um objeto a outro é impossível admitir um meiotermo entre o acaso e a necessidade absoluta Se enfraquecermos essa conjunção e determinação não estaremos al terando a natureza da necessidade Pois mesmo na operação dos cor pos há diferentes graus de constância e de força sem que isso pro duza uma espécie diferente dessa relação 34 A distinção que com freqüência fazemos entre o poder e seu exer cício é igualmente infundada 35 Em terceiro lugar talvez agora sejamos capazes de superar intei ramente aquela aversão tão natural ao raciocínio anterior por meio do qual tentamos provar que a necessidade de haver uma causa para todo começo de existência não se funda em nenhum argumento nem demonstrativo nem intuitivo Tal opinião não causará estranheza após as definições já apresentadas Se definirmos uma causa como um ob jeto anterior e contíguo a outro e tal que todos os objetos semelhantes ao primeiro mantêm relações semelhantes de anterioridade e contigüidade com os objetos semelhantes ao último poderemos facilmente conceber que não existe uma necessidade absoluta ou metafísica de que todo co meço de existência seja acompanhado de tal objeto Se definirmos uma causa como um objeto anterior e contíguo a outro e unido a ele de tal f arma na imaginação que a idéia de um determina a mente a f armar a idéia do outro e a impressão de um a formar uma idéia mais vívida do outro teremos ainda menos dificuldade em concordar com essa opinião Uma tal influência sobre a mente é em si mesma inteiramente ex traordinária e incompreensível e apenas pela experiência e observa ção podemos estar certos de sua realidade 205 Tratado da natureza humana 36 Acrescentarei como um quarto corolário que jamais teremos qualquer razão para acreditar na existência de um objeto se não pu dermos formar uma idéia dele Pois como todos os nossos raciocínios concernentes à existência são derivados da causalidade e como to dos os nossos raciocínios concernentes à causalidade são derivados da conjunção que experimentamos entre os objetos e não de algum raciocínio ou reflexão a mesma experiência deve nos dar uma noção desses objetos e afastar qualquer mistério de nossas conclusões Isso é tão evidente que dificilmente teria merecido nossa atenção se não fosse para nos prevenirmos contra certas objeções desse tipo que podem ser levantadas contra meus raciocínios ulteriores acerca da matéria e da substância Não preciso observar que não se requer aqui um conhecimento completo do objeto mas apenas das qualidades desse objeto que acreditamos existir Seção 1 5 Regras para se julgar sobre causas e efeitos 1 De acordo com a doutrina precedente não existe um só objeto que por um mero exame e sem consultar a experiência possamos determinar ser com certeza a causa de algum outro e não há um só objeto que possamos determinar desse mesmo modo não ser a cau sa de outro Qualquer coisa pode produzir qualquer coisa Criação aniquilação movimento razão volição todas essas coisas podem surgir umas das outras ou de qualquer outro objeto que possamos imaginar Isso não parecerá estranho se compararmos dois princípios acima explicados que a conjunção constante entre objetos determina sua causalidade e que 17 propriamente falando nenhum objeto é contrário a outro senão a existência e a nãoexistência Quando os objetos não são contrários nada os impede de ter essa conjunção constante de que depende inteiramente a relação de causa e efeito 17 Parte 1 Seção 5 206 Livro 1 Parte 3 Seção 1 5 2 Como portanto todos os objetos podem se tornar causas ou efei tos uns dos outros talvez seja apropriado fixar algumas regras ge rais que nos permitam saber quando eles realmente o são 3 1 A causa e o efeito têm de ser contíguos no espaço e no tempo 4 2 A causa tem de ser anterior ao efeito 5 3 Tem de haver uma união constante entre a causa e o efeito É sobretudo essa qualidade que constitui a relação 6 4 A mesma causa sempre produz o mesmo efeito e o mesmo efeito jamais surge senão da mesma causa Esse princípio nós deriva mos da experiência e é a fonte da maior parte de nossos raciocínios filosóficos Quando mediante um experimento claro descobrimos as causas ou os efeitos de um fenômeno imediatamente estendemos nossa observação a todos os fenômenos do mesmo tipo sem espe rar por sua repetição constante da qual derivamos a primeira idéia dessa relação 7 5 Há um outro princípio que depende do anterior quando di versos objetos diferentes produzem o mesmo efeito isso deve se dar por meio de alguma qualidade que descobrimos ser comum a todos eles Pois uma vez que efeitos semelhantes implicam causas seme lhantes devemos sempre atribuir a causalidade àquela circunstân cia em que descobrimos a semelhança 8 6 O princípio seguinte se fundamenta na mesma razão A dife rença entre os efeitos de dois objetos semelhantes deve proceder da particularidade pela qual eles diferem Pois como causas semelhan tes sempre produzem efeitos semelhantes quando em um caso qual quer ocorre algo que não esperávamos devemos concluir que tal ir regularidade procede de alguma diferença entre as causas 9 7 Quando um objeto aumenta ou diminui com o aumento ou a diminuição de sua causa deve ser visto como um efeito composto derivado da união dos diversos efeitos diferentes resultantes das di versas partes diferentes da causa Estáse supondo aqui que a ausên cia ou a presença de uma parte da causa é sempre acompanhada da ausência ou da presença de uma parte proporcional do efeito Uma 2 0 7 Tratado da natureza humana tal conjunção constante prova suficientemente que uma parte é a cau sa da outra Devemos entretanto ter o cuidado de não extrair essa conclusão de uns poucos experimentos Um certo grau de calor nos dá prazer se diminuirmos esse calor o prazer diminui mas daí não se segue que se o aumentarmos além de um certo grau o prazer tam bém aumentará pois constatamos que ele se transforma em dor 10 8 A oitava e última regra que notarei é que um objeto que exis te durante algum tempo em toda a sua perfeição sem produzir um efeito não será a única causa desse efeito requerendo o auxílio de algum outro princípio que possa promover sua influência e operação Porque como efeitos semelhantes necessariamente se seguem de causas semelhantes e num momento e lugar contíguos sua separa ção durante um período mostra que essas causas não são completas 11 Eis toda a LÓGICA que penso dever empregar em meu raciocínio E talvez sequer ela fosse muito necessária pois poderia ter sido su prida pelos princípios naturais de nosso entendimento Nossas sumidades escolásticas e nossos lógicos não mostram em seus racio cínios habilidosos tanta superioridade em relação ao mero vulgo que passássemos a querer imitálos apresentando um longo sistema de regras e preceitos para a direção de nosso juízo filosófico Todas as regras dessa natureza são muito fáceis de inventar mas extremamente difí ceis de aplicar A própria filosofia experimental que parece mais na tural e simples que qualquer outra requer um esforço extremo do juízo humano Na natureza todo fenômeno é composto e modifica do por tantas circunstâncias diferentes que para chegarmos ao pon to decisivo devemos separar dele cuidadosamente tudo o que é su pérfluo e investigar por meio de novos experimentos se cada circunstância particular do primeiro experimento lhe era essencial Esses novos experimentos são passíveis de uma discussão do mes mo tipo de modo que precisamos da máxima constância para perse verar em nossa investigação e da maior sagacidade para escolher o caminho correto dentre tantos que se apresentam Se isso ocorre até na filosofia da natureza quanto mais na filosofia moral em que existe 2 08 Livro 1 Parte 3 Seção 1 6 uma complicação muito maior de circunstâncias e em que as opi niões e sentimentos essenciais a qualquer ação da mente são tão im plícitos e obscuros que freqüentemente escapam à nossa mais rigo rosa atenção permanecendo não apenas inexplicáveis em suas causas mas até mesmo desconhecidos em sua existência Tenho grande receio de que o medíocre sucesso de minhas investigações acabe por emprestar a essa observação antes um ar de pedido de des culpas que de vanglória 12 Se há algo capaz de me dar alguma segurança a este respeito será ampliar ao máximo a esfera de meus experimentos Por essa razão talvez seja conveniente examinar agora a faculdade de raciocínio dos animais comparandoa com a das criaturas humanas Seção 1 6 Da razão dos animais l Quase tão ridículo quanto negar uma verdade evidente é realizar um grande esforço para defendêla E nenhuma verdade me parece mais evidente que a de que os animais são dotados de pensamento e razão assim como os homens Os argumentos neste caso são tão óbvios que não escapam nem aos mais estúpidos e ignorantes 2 Temos consciência de que nós mesmos ao adaptar os meios aos fins somos guiados pela razão e por um propósito e não é irrefleti damente nem por acaso que realizamos ações que tendem à nossa autopreservação a obter prazer e evitar a dor Quando portanto ve mos milhões de exemplos de outras criaturas realizando ações se melhantes e direcionandoas para fins semelhantes todos os nos sos princípios de razão e probabilidade nos levam com uma força invencível a crer na existência de uma causa semelhante Em minha opinião é desnecessário ilustrar esse argumento pela enumeração de casos particulares A mínima atenção nos fornecerá mais exem plos do que precisamos A semelhança entre as ações dos animais e as dos homens é tão completa quanto a esse aspecto que já a pri 209 Tratado da natureza humana meira ação do primeiro animal que escolhermos nos fornecerá um argumento incontestável da presente doutrina 3 Essa doutrina é tão útil quanto óbvia e nos fornece uma espécie de pedra de toque com a qual podemos pôr à prova todos os sistemas desse gênero de filosofia É com base na semelhança entre as ações externas dos animais e as por nós mesmos realizadas que julgamos que também suas ações internas se assemelham às nossas E o mes mo princípio de raciocínio levado um pouco adiante nos fará con cluir que como nossas ações internas se assemelham umas às ou tras as causas de que elas derivam também têm de ser semelhantes Portanto quando apresentamos uma hipótese para explicar uma operação mental comum aos homens e aos animais devemos po der aplicar a mesma hipótese a ambos Qualquer hipótese verdadeira sobreviverá a esse teste e arriscome a afirmar que nenhuma hipóte se falsa jamais resistirá a ele O defeito comum a todos os sistemas apresentados pelos filósofos para explicar as ações da mente é que supõem um pensamento tão sutil e refinado que não apenas ultra passam a capacidade dos simples animais mas até das crianças e pessoas comuns de nossa própria espécie que não obstante são suscetíveis das mesmas emoções e afetos que as pessoas de maior genialidade e inteligência Tal sutileza é uma prova clara da falsidade de um sistema enquanto a simplicidade ao contrário é uma prova de sua verdade 4 Sendo assim submetamos nosso presente sistema sobre a natu reza do entendimento a essa prova decisiva e vejamos se ele pode dar conta tanto dos raciocínios dos animais como dos da espécie humana 5 Devemos fazer aqui uma distinção entre as ações dos animais que são de uma natureza ordinária e parecem estar no mesmo ní vel que suas habilidades comuns e os exemplos mais extraordiná rios de sagacidade que os animais por vezes mostram quando agem com vistas à sua autopreservação e à propagação de sua espécie Um cão que evita o fogo e os precipícios que se afasta de estranhos e trata seu dono carinhosamente nos dá um exemplo do primeiro tipo de 2 1 0 Livro 1 Parte 3 Seção 1 6 ação Um pássaro que escolhe com grande cuidado e precisão o lu gar e os materiais para seu ninho que choca seus ovos pelo tempo devido e na estação apropriada com a precaução de um químico que realiza a experiência mais delicada fornecenos um exemplo vivo do segundo 6 Quanto às ações do primeiro tipo afirmo que procedem de um raciocínio que em si mesmo não é diferente nem fundado em prin cípios diferentes dos que aparecem na natureza humana Em primeiro lugar é necessário que haja alguma impressão presente à sua me mória ou a seus sentidos capaz de fundamentar seu julgamento Do tom de voz o cão infere a raiva de seu dono e prevê seu próprio cas tigo De uma certa sensação que afeta seu olfato julga que sua presa não está muito distante dele 7 Em segundo lugar a inferência que faz partindo da impressão presente é construída sobre a experiência e sobre sua observação da conjunção de certos objetos em casos passados Se modificarmos essa experiência ele modificará seu raciocínio Assim se por várias vezes batermos no cachorro logo após um certo sinal ou movimen to e depois trocarmos esse sinal ou movimento ele extrairá sucessi vamente conclusões diferentes segundo sua experiência mais recente 8 Pois bem façase qualquer filósofo um esforço para explicar aque le ato da mente que chamamos de crença se conseguir dar uma ex plicação dos princípios de que esta se origina sem apelar para a in fluência do costume sobre a imaginação e se sua hipótese for aplicável igualmente aos animais e à espécie humana se conseguir fazer isso prometo esposar sua opinião Mas ao mesmo tempo como justa con trapartida peço que se meu sistema for o único capaz de responder a todas essas condições ele o aceite como inteiramente satisfatório e convincente Ora que meu sistema é o único capaz disso fica evidente sem a necessidade de quase nenhum raciocínio Os animais cer tamente nunca percebem nenhuma conexão real entre os objetos É pela experiência portanto que inferem uns dos outros São in capazes de mediante argumentos formar a conclusão geral de que 2 1 1 Tratado da natureza humana objetos que eles nunca experimentaram se assemelham àqueles de que já tiveram experiência Portanto é unicamente por meio do costume que a experiência opera sobre eles Tudo isso era suficien temente evidente a propósito do homem Mas quanto aos animais não pode haver a menor suspeita de engano o que deve ser visto como uma forte confirmação ou antes como uma prova invencível de meu sistema 9 Nada mostra melhor a força que o hábito exerce ao fazernos aceitar um fenômeno qualquer que o fato de os homens não se es pantarem com as operações de sua própria razão ao mesmo tempo em que admiram o instinto dos animais e têm dificuldade em explicá lo simplesmente porque não pode ser reduzido exatamente aos mes mos princípios Mas a se considerar devidamente a questão a razão não é senão um maravilhoso e ininteligível instinto de nossas almas que nos conduz por uma certa seqüência de idéias conferindolhes qualidades particulares em virtude de suas situações e relações par ticulares É verdade que tal instinto surge da observação e experiên cia passada mas quem poderá dar a razão última que explique por que deve ser a experiência e a observação passada e não a natureza por si mesma o que produz tal efeito A natureza certamente é ca paz de produzir tudo aquilo que pode surgir do hábito Ou antes o hábito não é senão um dos princípios da natureza e extrai toda a sua força dessa origem 2 1 2 Seção 1 Parte 4 Do ceticismo e outros sistemas filosóficos Do ceticismo quanto à razão Em todas as ciências demonstrativas as regras são certas e in falíveis mas quando as aplicamos nossas faculdades falíveis e incer tas têm uma grande tendência a delas se afastar e a cair em erro Por isso em todo raciocínio devemos conferir e controlar nosso primei ro juízo ou crença mediante um novo juízo e devemos ampliar nossa visão para abranger uma espécie de história de todos os casos em que nosso entendimento nos enganou comparandoos àqueles em que seu testemunho foi legítimo e verdadeiro Nossa razão deve ser conside rada uma espécie de causa cujo efeito natural é a verdade mas esse efeito pode ser freqüentemente impedido pela irrupção de outras cau sas e pela inconstância de nossos poderes mentais Desse modo todo conhecimento degenera em probabilidade e essa probabilidade é maior ou menor segundo nossa experiência da veracidade ou falsidade de nosso entendimento e segundo a simplicidade ou a complexidade da questão 2 1 3 Tratado da natureza humana 2 Nenhum algebrista ou matemático é tão versado em sua ciência a ponto de depositar plena confiança em urna verdade assim que a des cobre ou de considerála algo mais que urna mera probabilidade Sua confiança cresce toda vez que refaz as provas e cresce ainda mais com a aceitação dos amigos atingindo sua máxima perfeição pela aprova ção universal e pelos aplausos do mundo erudito Ora é evidente que esse aumento gradual da certeza não é senão a adição de novas pro babilidades e deriva da união constante de causas e efeitos de acor do com a experiência e a observação passada 3 Em cálculos longos ou importantes os comerciantes raramente confiam na certeza infalível dos números em vez disso produzem pela estrutura artificial dos registros contábeis urna probabilidade que ultrapassa aquela que deriva da habilidade e experiência do contador Pois esta por si só já constitui claramente um grau de probabilida de embora incerta e variável segundo o grau da experiência e a com plexidade do cálculo Ora corno ninguém sustentaria que nossa cer teza em um cálculo complexo excede a probabilidade posso afirmar com segurança que não há praticamente nenhuma proposição numé rica sobre a qual possamos ter urna certeza mais completa Porque di minuindose gradativamente os números é fácil reduzir a mais lon ga série de adições ao problema mais simples possível a adição de apenas dois números E de acordo com essa suposição veremos que é impraticável mostrar os limites precisos do conhecimento e da pro babilidade ou descobrir exatamente em que número aquele termina e esta começa Mas conhecimento e probabilidade têm naturezas tão contrárias e discordantes que não poderiam se transformar insensi velmente um no outro e isso porque não se dividem devendo antes estar inteiramente presentes ou inteiramente ausentes Adernais se urna só adição fosse certa todas seriam e conseqüentemente também a sorna inteira ou total a menos que o todo possa ser diferente do con junto de suas partes Eu quase ia dizendo que este raciocínio é certo mas pensando melhor vejo que ele também assim corno todos os outros raciocínios deve se reduzir e de conhecimento degenerar em probabilidade 2 1 4 Livro 1 Parte 4 Seção 1 4 Portanto como todo conhecimento se reduz a uma probabilida de acabando por adquirir a mesma natureza que essa evidência que empregamos na vida diária devemos agora examinar esta última es pécie de raciocínio para determinar seu fundamento 5 Em todo juízo que podemos formar acerca da probabilidade bem como do conhecimento devemos sempre corrigir o primeiro juízo re ferente à natureza do objeto por meio de um outro juízo referente à natureza do entendimento É certo que um homem inteligente e com uma longa experiência deveria ter e geralmente tem uma segurança maior acerca de suas opiniões do que um homem tolo e ignorante e que nossas opiniões possuem graus diferentes de autoridade peran te nós mesmos proporcionalmente aos graus de nossa razão e expe riência Tal autoridade jamais é completa sequer no homem mais in teligente e experiente pois até este deve ter consciência de muitos erros cometidos no passado e teme repetilos no futuro Surge aqui portanto uma nova espécie de probabilidade para corrigir e regular a primeira e para fixar seu critério e proporção corretos Assim como a demonstração está sujeita ao controle da probabilidade assim tam bém a probabilidade está sujeita a uma nova correção por um ato re flexivo da mente cujo objeto é a natureza de nosso entendimento bem como nosso raciocínio baseado na primeira probabilidade 6 Assim em toda probabilidade após termos descoberto além da incerteza original inerente ao objeto uma nova incerteza derivada da fraqueza da faculdade de julgar e após termos ajustado uma à outra essas duas incertezas nossa razão nos obriga a somar a elas uma nova dúvida derivada da possibilidade de erro em nossa estimativa da ver dade e da fidelidade de nossas faculdades Essa é uma dúvida que nos ocorre imediatamente e se quisermos seguir de modo estrito nossa razão não poderemos deixar de dar uma solução para ela Mas por es tar fundada unicamente na probabilidade essa solução mesmo favo rável a nosso juízo precedente deve enfraquecer ainda mais nossa primeira evidência sendo ela própria enfraquecida por uma quarta dúvida do mesmo tipo e assim ao infinito até que finalmente nada 2 1 5 Tratado da natureza humana reste da probabilidade original por maior que possamos supor que ela tenha sido e por menor que tenha sido a diminuição decorrente de cada nova incerteza Nenhum objeto finito pode subsistir a um decrés cimo repetido ao infinito e desse modo até a maior quantidade con cebível pela imaginação humana deve se reduzir a nada Por mais for te que seja nossa crença inicial ela infalivelmente perecerá ao passar por tantos novos exames cada um dos quais diminui um pouco sua força e vigor Quando reflito sobre a falibilidade natural de meu juízo confio menos em minhas opiniões do que quando considero apenas os objetos sobre os quais raciocino E quando vou ainda mais longe inspecionando minhas sucessivas estimativas acerca de minhas facul dades todas as regras da lógica determinam uma contínua diminui ção e finalmente uma total extinção da crença e da evidência 7 Se me perguntassem se concordo sinceramente com esse argu mento que pareço esforçarme tanto para estabelecer e se sou real mente um desses céticos que sustentam que tudo é incerto e que nosso juízo não possui nenhuma medida da verdade ou falsidade de nada res ponderia que essa questão é inteiramente supérflua e nem eu nem qualquer outra pessoa jamais esposou sincera e constantemente tal opinião A natureza por uma necessidade absoluta e incontrolável determinounos a julgar assim como a respirar e a sentir Não pode mos deixar de considerar certos objetos de um modo mais forte e pleno em virtude de sua conexão habitual com uma impressão presente como não podemos nos impedir de pensar enquanto estamos desper tos ou de enxergar os objetos circundantes quando voltamos nossos olhos para eles em plena luz do dia Quem quer que tenhase dado ao trabalho de refutar as cavilações desse ceticismo total na verdade de bateu sem antagonista e fez uso de argumentos na tentativa de esta belecer uma faculdade que a natureza já havia antes implantado em nossa mente tornandoa inevitável 8 Minha intenção portanto ao expor tão cuidadosamente os argu mentos dessa seita imaginária é apenas sensibilizar o leitor para a verdade de minha hipótese que nossos raciocínios acerca de causas e efeitos 2 1 6 Livro 1 Parte 4 Seção 1 derivam unicamente do costume e que a crença é mais propriamente um ato da parte sensitiva que da parte cogitativa de nossa natureza Provei aqui que exatamente os mesmos princípios que nos levam a formar uma conclusão sobre um assunto qualquer e a corrigir essa conclusão pela consideração de nossa inteligência e capacidade bem como da situa ção em que nossa mente se encontrava quando examinamos o assunto provei que esses mesmos princípios quando levados adiante e apli cados a cada novo juízo reflexivo devem diminuir continuamente a evidência original até reduzila a nada destruindo por completo toda crença e opinião Se a crença portanto fosse um simples ato do pen samento independente de uma maneira peculiar de concepção ou adição de uma força e vividez ela necessariamente destruiria a si mesma terminando sempre em uma total suspensão de juízo Mas a experiência será suficiente para convencer a quem quer que pense valer a pena pôr tudo isso à prova de que mesmo que não encontre nenhum erro nos argumentos anteriores continuará a crer a pensar e a raciocinar como de costume e por isso pode concluir com segu rança que seu raciocínio e sua crença são apenas uma sensação ou maneira peculiar de conceber que meras idéias e reflexões são inca pazes de destruir 9 Mas talvez alguém pergunte neste ponto como é possível mes mo segundo minha hipótese que esses argumentos acima explicados não produzam uma total suspensão de juízo e de que modo a mente pode conservar algum grau de certeza sobre um assunto qualquer Pois essas novas probabilidades que por sua repetição diminuem sem cessar a evidência original fundamentamse exatamente nos mesmos princípios sejam eles do pensamento ou da sensação que fundamen tam o primeiro juízo desse modo pode parecer inevitável que elas destruam a evidência tanto em um caso como em outro e pela opo sição quer de pensamentos quer de sensações contrárias reduzam a mente a uma total incerteza Suponho que alguém me coloca uma questão e que após repassar as impressões de minha memória e meus sentidos levando meus pensamentos dessas impressões aos 2 1 7 Tratado da natureza humana objetos que comumente se encontram em conjunção com elas sin to que concebo um dos lados de maneira mais forte e imperativa que o outro Essa concepção forte constitui minha primeira conclusão Su ponho que em seguida examino meu próprio juízo e observando pela experiência que ele é ora correto ora errôneo consideroo como sendo regulado por princípios ou causas contrárias algumas das quais levam à verdade e outras ao erro Ao contrapor essas causas contrá rias diminuo por uma nova probabilidade a certeza de minha primei ra conclusão Essa nova probabilidade está sujeita à mesma diminui ção que a precedente e assim por diante ao infinito Perguntase portanto como pode acontecer que com tudo isso conservemos um grau de crença suficiente para nosso propósito seja na filosofia seja na vida comum 10 Respondo que após a primeira e a segunda conclusões a ação da mente se torna forçada e pouco natural e as idéias fracas e obscuras e embora os princípios do juízo e a contraposição de causas opostas sejam iguais ao que eram no início sua influência sobre a imaginação e o vigor que emprestam ao pensamento ou dele retiram não são de forma alguma os mesmos Quando a mente não atinge seus objetos confortavelmente e com facilidade os mesmos princípios não exercem os mesmos efeitos que exercem no caso de uma concepção mais na tural das idéias e a imaginação tampouco tem uma sensação compa rável àquela que surge de seus juízos e opiniões correntes A atenção está tensionada a postura da mente é desconfortável e os espíritos animais tendo sido desviados de seu curso natural não têm seus mo vimentos governados pelas mesmas leis ao menos não no mesmo grau do que quando fluem por seus canais usuais 1 1 Se desejarmos exemplos similares não será muito difícil encontrá los O presente tema da metafísica nos fornece uma abundância de les O mesmo argumento que teria sido considerado convincente em um raciocínio concernente à história ou à política tem pouca ou ne nhuma influência nesses temas mais abstrusos mesmo que seja per feitamente compreendido Isso porque tal compreensão requer um estudo e um esforço do pensamento e esse esforço do pensamento 2 1 8 Livro 1 Parte 4 Seção 1 perturba a operação de nossos sentimentos de que a crença depende O mesmo se passa em outros domínios O esforço excessivo da ima ginação sempre impede o fluxo regular das paixões e sentimentos Um poeta trágico que representasse seus heróis como muito engenhosos e espirituosos em meio a seus infortúnios jamais conseguiria tocar as paixões Assim como as emoções da alma impedem qualquer racio cínio e reflexão sutil estas últimas ações da mente são igualmente prejudiciais às primeiras A mente como o corpo parece ser dotada de um grau preciso de força e atividade que quando empregado em uma ação tem de ser subtraído de todas as outras A verdade disso é mais evidente quando as ações são de naturezas bastante diferentes pois nesse caso não só a força da mente é desviada mas a disposi ção também é transformada o que nos torna incapazes de uma tran sição súbita de uma ação a outra e mais ainda incapazes de realizar ambas ao mesmo tempo Não é de admirar portanto que a convicção decorrente de um raciocínio sutil diminua proporcionalmente ao es forço realizado pela imaginação para penetrar o raciocínio e concebê lo em todas as suas partes A crença sendo uma concepção vívida ja mais pode ser completa se não estiver fundada em algo natural e fácil 12 Tal é a meu ver o verdadeiro estado da questão Não posso apro var esse modo apressado que alguns usam contra os céticos de rejei tar de uma só vez todos os seus argumentos sem submetêlos a uma investigação ou exame Se os raciocínios céticos são fortes dizem eles isso é uma prova de que a razão pode ter alguma força e autoridade se são fracos jamais podem ser suficientes para invalidar todas as con clusões de nosso entendimento Esse argumento não é correto pois os raciocínios céticos se pudessem existir sem ser destruídos por sua sutileza seriam sucessivamente fortes e fracos conforme as sucessi vas disposições da mente Primeiro a razão aparece no trono ditan do leis e impondo máximas com um poder e autoridade absolutos Seu inimigo portanto é obrigado a se abrigar sob sua proteção e em pregando argumentos racionais para provar a falibilidade e incompetên cia da razão produz como que uma carta patente assinada e selada 2 1 9 Tratado da natureza humana por esta Tal garantia de início possui uma autoridade proporcional à autoridade presente e imediata da razão da qual é derivada Mas como se supõe que é contraditória em relação à razão ela diminui de modo gradativo a força deste princípio regulador e sua própria força ao mesmo tempo até que finalmente por essa diminuição regular e precisa ambas desaparecem por completo As razões cética e dog mática são da mesma espécie embora contrárias em suas operações e tendências Desse modo quando a última é forte encontra na pri meira um inimigo com a mesma força e como suas forças de início eram iguais elas continuam iguais enquanto uma das duas subsis te A força que uma perde no combate é subtraída igualmente da an tagonista Felizmente a natureza quebra a força de todos os argumen tos céticos a tempo impedindoos de exercer qualquer influência considerável sobre o entendimento Se fôssemos confiar inteiramente em sua autodestruição teríamos de esperar até terem antes minado toda convicção e destruído inteiramente a razão humana Seção 2 Do ceticismo quanto aos sentidos 1 Assim o cético continua a raciocinar e a crer muito embora afir me ser incapaz de defender a razão pela razão E pela mesma regra deve dar seu assentimento ao princípio concernente à existência dos corpos embora não possa ter a pretensão de sustentar sua veracida de por meio de argumentos filosóficos A natureza não deixou isso à sua escolha sem dúvida avaliou que se tratava de uma questão dema siadamente importante para ser confiada a nossos raciocínios e espe culações incertos Podemos perfeitamente perguntar que causas nos in duzem a crer na existência dos corpos Mas é inútil perguntar se existem ou não corpos Esse é um ponto que devemos dar por suposto em todos os nossos raciocínios 2 O tema de nossa investigação presente portanto diz respeito às causas que nos induzem a crer na existência dos corpos Meus racio cínios acerca desse ponto terão início com uma distinção que à pri 220 Livro 1 Parte 4 Seção 2 meira vista pode parecer supérflua mas que contribuirá muito para a perfeita compreensão do que se segue Devemos examinar em se parado estas duas questões que são igualmente confundidas por que atribuímos uma existência CONTÍNUA aos objetos mesmo quando não estão presentes aos sentidos e por que supomos que possuem uma existência DISTINTA da mente e da percepção Com este último ponto refirome a sua situação bem como a suas relações a sua po sição externa bem como à independência de sua existência e operação As duas questões concernentes à existência contínua e distinta dos corpos estão estreitamente conectadas Porque se os objetos de nossos sentidos continuam a existir mesmo quando não são mais percebidos é claro que sua existência é independente e distinta da percepção e viceversa se sua existência é independente e distinta da percepção eles têm de continuar existindo mesmo quando não são percebidos A res posta a uma questão responde também à outra Porém para que pos samos descobrir mais facilmente os princípios da natureza humana de que deriva essa resposta conservaremos conosco a distinção e exami naremos se são os sentidos a razão ou a imaginação o que produz a opinião de uma existência contínua ou de uma existência distinta Essas são as únicas questões inteligíveis acerca do presente tema pois quanto à no ção de existência externa quando considerada como algo especificamen te diferente de nossas percepções 1 já mostramos seu absurdo Comecemos com os SENTIDOS É evidente que essas faculdades são incapazes de dar origem à noção da existência contínua de seus objetos quando estes não mais aparecem a elas Isso seria uma con tradição em termos seria supor que os sentidos continuam a operar mesmo após terem cessado qualquer tipo de operação Tais faculda des portanto se têm alguma influência neste caso devem produzir a noção de uma existência distinta não a de uma existência contínua e para isso devem apresentar suas impressões seja como imagens e re presentações seja como essas próprias existências distintas e externas 1 Parte 2 Seção 6 22 1 Tratado da natureza humana 4 Que nossos sentidos não oferecem suas impressões como ima gens de alguma coisa distinta ou seja independente e externa é evidente Pois tudo que eles nos transmitem é uma percepção singular e jamais nos dão a menor indicação de algo além dela Uma percepção singu lar nunca poderia produzir a idéia de uma dupla existência a não ser por meio de alguma inferência da razão ou da imaginação Quando a mente dirige sua visão para além daquilo que lhe aparece imedia tamente suas conclusões jamais podem ser levadas à conta dos sen tidos E certamente é isso que ela faz quando partindo de uma per cepção singular infere uma dupla existência e supõe entre essas existências as relações de semelhança e causalidade 5 Se nossos sentidos portanto sugerem alguma idéia de existên cias distintas devem apresentar as impressões como se fossem es sas próprias existências por uma espécie de falácia e ilusão Sobre isso podemos observar que todas as sensações são sentidas pela mente tais como realmente são e quando temos dúvidas se elas se apresentam como objetos distintos ou como meras impressões a di ficuldade não diz respeito a sua natureza mas a suas relações e situa ção Ora se os sentidos apresentassem nossas impressões como ex ternas e independentes de nós tanto os objetos como nós mesmos teríamos de ser evidentes para nossos sentidos de outro modo não poderíamos ser comparados por essas faculdades A dificuldade portanto está em saber até que ponto nós somos objetos de nossos sentidos 6 Certamente não há na filosofia questão mais abstrusa que aque la concernente à identidade e à natureza do princípio de união que constitui uma pessoa Longe de sermos capazes de resolver essa ques tão apenas por meio de nossos sentidos temos de recorrer à mais pro funda metafísica para encontrar para ela uma resposta satisfatória É evidente que na vida corrente essas idéias de eu e pessoa jamais são muito precisas ou determinadas Portanto é absurdo imaginar que os sentidos alguma vez sejam capazes de distinguir entre nós e os obje tos externos 222 Livro 1 Parte 4 Seção 2 7 Acrescentese a isso que todas as impressões externas e inter nas paixões afetos sensações dores e prazeres são originalmente equivalentes sejam quais forem as diferenças que possamos obser var entre elas todas aparecem em suas verdadeiras cores como im pressões ou percepções De fato se considerarmos corretamente a questão veremos que é quase impossível que fosse de outro modo É inconcebível que nossos sentidos fossem mais capazes de nos enga nar acerca da situação e das relações de nossas impressões que acer ca de sua natureza Porque como todas as ações e sensações da men te nos são conhecidas pela consciência elas devem necessariamente em todos os pormenores parecer o que são e ser o que parecem Como tudo que entra na mente é na realidade uma percepção é im possível que alguma coisa pareça diferente em sua sensação feeling Afirmar isso seria supor que poderíamos estar enganados mesmo sobre aquilo de que estamos mais intimamente conscientes 8 Mas para não perder tempo examinando se é possível que nos sos sentidos nos enganem representando nossas percepções como distintas de nós isto é como externas e independentes consideremos se eles realmente nos enganam e se esse erro procede de uma sensação imediata ou de alguma outra causa 9 Comecemos com a questão da existência externa Talvez se diga que deixando de lado a questão metafísica da identidade de uma subs tância pensante é evidente que nosso próprio corpo nos pertence e como várias impressões aparecem como exteriores ao corpo supo mos que também são exteriores a nós O papel em que ora escrevo está além de minha mão A mesa está além do papel As paredes do apo sento além da mesa E ao dirigir meu olhar para a janela percebo uma grande extensão de campos e edificações além de meu aposento De tudo isso poderseia inferir que não é preciso nenhuma outra facul dade além dos sentidos para nos convencer da existência externa dos corpos Mas para evitar tal inferência bastanos atentar para as três Corrigido segundo o Apêndice p675 223 Tratado da natureza humana considerações seguintes Primeiro que não é propriamente nosso cor po o que percebemos quando olhamos para nossos membros e par tes corporais mas certas impressões que entram pelos sentidos de modo que a atribuição de uma existência real e corpórea a essas im pressões ou a seus objetos é um ato da mente tão difícil de explicar quanto o que estamos agora examinando Segundo sons sabores e aromas embora costumem ser vistos pela mente como qualidades contínuas e independentes não parecem ter nenhuma existência na extensão e conseqüentemente não podem aparecer aos sentidos como situados fora do corpo A razão de lhes atribuirmos um lugar será considerada2 posteriormente Terceiro mesmo nossa visão não nos informa da distância ou exterioridade por assim dizer de manei ra imediata e sem um certo raciocínio e experiência como reconhe cem os filósofos mais razoáveis 1 O Quanto à independência de nossas percepções em relação a nós ela jamais pode ser objeto dos sentidos qualquer opinião que formemos a esse respeito deve ser derivada da experiência e observação E vere mos adiante que nossas conclusões baseadas na experiência estão lon ge de favorecer a doutrina da independência de nossas percepções En quanto isso podemos observar que ao falarmos de existências reais e distintas costumamos ter em vista mais sua independência do que sua situação espacial externa pensamos que um objeto tem uma rea lidade suficiente quando sua existência é ininterrupta e independente das transformações incessantes de que temos consciência em nós mesmos 1 1 Assim para resumir o que eu disse acerca dos sentidos eles não nos dão nenhuma noção de existência contínua porque não podem operar além do domínio em que realmente operam Tampouco produ zem a opinião de uma existência distinta porque não podem oferecê la à mente nem como representada nem como original Para oferecêla como representada teriam de apresentar tanto um objeto como uma 2 Seção 5 224 Livro 1 Parte 4 Seção 2 imagem Para fazêla aparecer como original teriam de transmitir uma falsidade a qual teria de estar nas relações e na situação Para isso te riam de ser capazes de comparar o objeto conosco e mesmo nesse caso não nos enganariam nem seria possível que nos enganassem Podemos portanto concluir com segurança que a opinião de uma existência contínua e de uma existência distinta nunca provém dos sentidos 1 2 Para confirmar tal conclusão observemos que os sentidos nos transmitem três tipos diferentes de impressões O primeiro tipo com preende as impressões da figura volume movimento e solidez dos corpos O segundo as de cores sabores aromas sons calor e frio O terceiro compreende as dores e os prazeres resultantes da aplica ção dos objetos a nossos corpos por exemplo quando uma lâmina corta nossa carne e coisas semelhantes Tanto os filósofos como o vulgo supõem que as impressões do primeiro tipo possuem uma exis tência distinta e contínua Somente o vulgo considera as do segundo da mesma maneira Tanto os filósofos como o vulgo novamente con sideram que as do terceiro tipo são meras percepções e conseqüen temente existências descontínuas e dependentes 1 3 Ora é evidente que qualquer que seja nossa opinião filosófica as cores os sons o calor e o frio tais como aparecem aos sentidos exis tem da mesma maneira que o movimento e a solidez e que a diferen ça que fazemos entre aquelas qualidades e estas últimas não surge da mera percepção É tão forte o preconceito a favor da existência dis tinta e contínua das primeiras qualidades que quando os filósofos modernos propõem a opinião contrária as pessoas imaginam que podem refutála com base quase exclusivamente naquilo que sentem e em sua experiência e que seus próprios sentidos contradizem essa filosofia É também evidente que as cores os sons etc estão origi nalmente em pé de igualdade com a dor resultante de uma lâmina que nos corta e o prazer produzido pelo calor de uma lareira e que a dife rença entre eles não se funda nem na percepção nem na razão mas na imaginação Pois como se reconhece que tanto aqueles como estes 225 Tratado da natureza humana são apenas percepções derivadas das configurações e movimentos par ticulares das partes do corpo em que poderia consistir sua diferença De tudo isso portanto podemos concluir que até onde os sentidos podem julgar todas as percepções são iguais em seu modo de existir 14 Observemos também neste caso dos sons e das cores que pode mos atribuir uma existência distinta e contínua aos objetos sem ja mais consultar a RAZÃO ou avaliar nossas opiniões por meio de prin cípios filosóficos De fato por mais convincentes que sejam os argumentos que os filósofos imaginam poder produzir para estabele cer a crença nos objetos independentes da mente é óbvio que tais ar gumentos são conhecidos por muito poucas pessoas e que não é por meio deles que crianças camponeses e a maior parte da humanidade são induzidos a atribuir objetos a algumas impressões e negálos a ou tras Por conseguinte vemos que todas as conclusões do vulgo a esse respeito são diretamente contrárias àquelas que são sustentadas pe los filósofos Pois a filosofia nos informa que tudo que aparece à mente não é senão percepção e possui uma existência descontínua e depen dente da mente o vulgo ao contrário confunde percepções e objetos atribuindo uma existência distinta e contínua às próprias coisas que sente ou vê Essa opinião portanto por ser inteiramente irracional tem que proceder de uma outra faculdade que não o entendimento Podemos acrescentar que enquanto tomamos nossas percepções e objetos como a mesma coisa jamais podemos inferir a existência des tes da existência daquelas e tampouco formar um argumento baseado na relação de causa e efeito a única capaz de nos assegurar a respeito de questões de fato E veremos em breve que mesmo após distinguir mos nossas percepções de nossos objetos ainda somos incapazes de raciocinar partindo da existência daquelas para a destes Em suma nossa razão não nos fornece nenhuma certeza sobre a existência dis tinta e contínua dos corpos e jamais poderia fazêlo sob nenhuma hipótese Tal opinião deve ser atribuída inteiramente à IMAGINAÇÃO que será agora o objeto de nossa investigação 226 Livro 1 Parte 4 Seção 2 Como todas as impressões são existências internas e perecíveis e aparecem como tais a noção de sua existência distinta e contínua tem de surgir da concorrência de algumas de suas qualidades com aquelas da imaginação e como essa noção não se estende a todas elas deve vir de certas qualidades peculiares a algumas impressões Portan to será fácil descobrir essas qualidades se compararmos as impressões a que atribuímos uma existência distinta e contínua com aquelas que vemos como internas e perecíveis Observemos portanto que não é nem pela involuntariedade de certas impressões como se costuma supor nem por sua força e vio lência superiores que atribuímos a elas a realidade e existência contí nua que recusamos a outras impressões voluntárias ou fracas Pois é evidente que nossas dores e prazeres nossas paixões e afetos que nunca supomos possuir uma existência fora de nossa percepção agem com uma violência maior e são tão involuntárias quanto as im pressões de figura e extensão cor e som que vemos como seres per manentes Supomos que o calor do fogo quando moderado existe no fogo mesmo mas a dor que esse fogo causa quando demasiada mente próximo consideramos que não possui um ser senão em nos sa percepção Uma vez rejeitadas essas opiniões comuns portanto devemos buscar alguma outra hipótese que nos permita descobrir as qualida des peculiares de nossas impressões em virtude das quais atribuímos a estas uma existência distinta e contínua Após um breve exame descobriremos que todos os objetos a que atribuímos uma existência contínua possuem uma constância peculiar que os distingue das impressões cuja existência depende de nossa percepção Essas montanhas casas e árvores que estão agora diante de meus olhos sempre me apareceram na mesma ordem e se as per co de vista ao fechar os olhos ou virar a cabeça logo depois vejo que retornam a mim sem a menor alteração Minha cama e minha mesa meus livros e papéis se apresentam da mesma maneira uniforme e não mudam quando interrompo meu ato de ver ou percebêlos Isso se 22 7 Tratado da natureza humana passa com todas as impressões cujos objetos supomos ter uma exis tência externa e não se passa com nenhuma outra impressão suave ou violenta voluntária ou involuntária 19 Tal constância entretanto não é tão perfeita a ponto de não ad mitir exceções bastante consideráveis Os corpos freqüentemente mudam sua posição e qualidades e após uma pequena ausência ou interrupção podem se tornar quase irreconhecíveis Mas observemos que mesmo com essas mudanças eles preservam uma coerência e mantêm uma dependência regular uns em relação aos outros Isso serve de fundamento a uma espécie de raciocínio causal produzindo a opinião de sua existência contínua Quando retorno a meu aposen to após dele me ausentar por uma hora não encontro o fogo de mi nha lareira na mesma situação em que o deixara mas afinal estou acostumado a ver em outros exemplos uma alteração semelhante produzirse em um intervalo de tempo semelhante esteja eu presen te ou ausente próximo ou distante Essa coerência em suas mudan ças portanto é uma das características dos objetos externos ao lado de sua constância 20 Tendo descoberto que a opinião da existência contínua dos corpos depende da COERÊNCIA e da CONSTÂNCIA de certas impressões passo agora a examinar de que maneira essas qualidades dão origem a uma opinião tão extraordinária Comecemos pela coerência Pode mos observar que embora as impressões internas que vemos como fugazes e perecíveis também possuam uma certa coerência ou regu laridade em suas aparições essa coerência ou regularidade é de natu reza diferente da que descobrimos nos corpos Constatamos pela ex periência que nossas paixões apresentam uma mútua conexão e dependência mas em nenhum caso para preservar a mesma depen dência e conexão de que tivemos experiência é necessário supor que elas tenham existido e operado quando não eram percebidas Não é o que ocorre com os objetos externos Estes requerem uma existência contínua sem o que perdem em grande medida a regularidade de sua operação Aqui estou sentado em meu quarto com o rosto voltado 228 Livro 1 Parte 4 Seção 2 para a lareira e todos os objetos que tocam meus sentidos estão con tidos dentro de algumas jardas a meu redor É certo que minha me mória me informa da existência de muitos objetos mas essa informa ção não se estende além de sua existência passada nem meus sentidos nem minha memória me fornecem qualquer testemunho da continua ção de seu ser Estando assim sentado portanto remoendo esses pen samentos ouço de repente um barulho como que de uma porta giran do sobre seus gonzos pouco depois vejo um mensageiro que vem em minha direção Isso dá ocasião a várias novas reflexões e raciocínios Primeiramente jamais observei que esse barulho pudesse proceder de alguma coisa que não fosse o movimento de uma porta e portanto concluo que o presente fenômeno contradiz toda a experiência pas sada a menos que a porta que me recordo ter estado no outro lado do quarto ainda exista Novamente sempre observei que o corpo humano possuía a qualidade que chamo de gravidade a qual o impede de subir no ar como este mensageiro teria de ter feito para chegar até meu quarto a menos que a escada de que me lembro não tenha sido aniqui lada por minha ausência Mas isso não é tudo Recebo uma carta e ao abrila percebo pela letra e pela assinatura ter sido enviada por um amigo que diz estar a duzentas léguas de distância É evidente que eu não poderia dar conta desse fenômeno de maneira conforme à minha experiência de outros casos sem desdobrar em minha mente todo o mar e o continente que nos separam e sem supor os efeitos e a exis tência contínua dos correios e barcas de acordo com minha memó ria e observação Considerados de um certo ângulo esses fenômenos do mensageiro e da carta constituem contradições em relação à ex periência corrente e podem ser vistos como objeções àquelas máximas que formamos sobre as conexões de causas e efeitos Estou acostu mado a ouvir tal som e a ver ao mesmo tempo tal objeto em movimento Neste caso particular não obtive essas duas percepções Essas obser vações são contrárias a não ser que eu suponha que a porta ainda per manece e que foi aberta sem que eu o percebesse E tal suposição a princípio inteiramente arbitrária e hipotética adquire força e evidên 229 Tratado da natureza humana eia por ser a única que me permite resolver essas contradições Não há quase nenhum momento em minha vida em que não se me apre sente um exemplo similar e em que eu não tenha a ocasião de supor a existência contínua de certos objetos a fim de conectar suas apari ções passadas e presentes produzindo entre elas uma união que a experiência passada me mostrou ser adequada a suas naturezas e cir cunstâncias particulares Aqui portanto sou levado a ver o mundo como algo real e duradouro que preserva sua existência mesmo quan do não mais presente à minha percepção 21 Essa conclusão baseada na coerência das aparições parece ter a mesma natureza que nossos raciocínios concernentes a causas e efei tos por ser derivada do costume e regulada pela experiência passada Ao examinála entretanto veremos que esses dois tipos de raciocínios são no fundo consideravelmente diferentes e que a inferência basea da na coerência só resulta do entendimento e do costume de maneira indireta e oblíqua Pois admitirseá sem dificuldade que como nada jamais está realmente presente à mente além de suas percepções é impossível não apenas adquirirmos um hábito de outra forma que não seja pela sucessão regular dessas percepções como também que qual quer hábito jamais exceda tal grau de regularidade Por conseguinte nenhum grau de regularidade em nossas percepções pode jamais ser vir de fundamento para inferirmos um grau maior de regularidade em alguns objetos que não percebemos isso suporia uma contradi ção a saber um hábito adquirido de algo que nunca esteve presen te à mente Ora é evidente que sempre que inferimos a existência contínua dos objetos dos sentidos partindo de sua coerência e da fre qüência de sua união é com o objetivo de atribuir aos objetos uma re gularidade maior que a observada em nossas meras percepções No tamos uma conexão entre dois tipos de objetos em suas aparições passadas aos sentidos mas não somos capazes de observar se essa conexão é perfeitamente constante já que ao simplesmente virarmos a cabeça ou fecharmos os olhos ela pode se interromper O que su pomos neste caso portanto senão que esses objetos mantêm sua 230 Livro 1 Parte 4 Seção 2 conexão usual apesar de sua aparente descontinuidade e que as apa rições irregulares são unidas por alguma coisa a que somos insensí veis Mas como todos os raciocínios sobre questões de fato surgem unicamente do costume e como o costume só pode resultar de per cepções repetidas a extensão do costume e do raciocínio para além das percepções nunca poderia ser um efeito direto e natural da repetição e da conexão constantes devendo antes surgir da cooperação de alguns outros princípios 22 Ao examinar o fundamento da matemática observei3 que a ima ginação quando envolvida em uma cadeia de pensamentos tende a dar continuidade a ela mesmo na falta de seu objeto e como uma ga lera posta em movimento pelos remos segue seu curso sem qualquer novo impulso Afirmei ser essa a razão pela qual após considerar di versos critérios aproximados de igualdade e corrigilos uns pelos ou tros passamos a imaginar para essa relação um critério tão correto e exato que não é passível do menor erro ou variação O mesmo prin cípio faz com que formemos facilmente essa opinião da existência con tínua dos corpos Os objetos já possuem uma certa coerência assim como aparecem a nossos sentidos mas essa coerência será muito maior e uniforme se supusermos que têm uma existência contínua e como a mente já vem observando uma uniformidade entre esses ob jetos ela continua naturalmente até tornar a uniformidade o mais completa possível A simples suposição de sua existência contínua basta para esse propósito dandonos a noção de uma regularidade muito maior entre os objetos do que aquela que vemos quando não olhamos para além de nossos sentidos 23 Por maior que seja a força que atribuamos a esse princípio porém temo que ele seja fraco demais para sustentar sozinho um edifício tão vasto como o da existência contínua de todos os corpos externos para explicar satisfatoriamente essa opinião deveremos juntar à coerência a constância de sua aparição Mas como a explicação desta última me 3 Parte 2 Seção 4 23 1 Tratado da natureza humana conduzirá a um domínio considerável de raciocínios muito profundos creio ser apropriado para evitar qualquer confusão fazer um peque no esboço ou resumo de meu sistema antes de expor suas partes em toda sua extensão Essa inferência com base na constância de nossas percepções como a inferência precedente baseada em sua coerência dá origem à opinião da existência contínua dos corpos que é anterior à de sua existência distinta e produz este último princípio 24 Quando nos habituamos a observar uma constância em certas impressões quando constatamos por exemplo que a percepção do sol ou do oceano retorna a nós após uma ausência ou aniquilação com partes semelhantes e numa ordem semelhante à de sua primei ra aparição temos uma tendência a não considerar essas percepções intermitentes como diferentes o que na verdade são mas ao con trário como numericamente idênticas em virtude de sua semelhan ça Mas como essa descontinuidade de sua existência é contrária à sua perfeita identidade e nos faz ver a primeira impressão como tendo sido aniquilada e a segunda como se fosse uma nova criação encontramo nos de certo modo perdidos e envolvidos em uma espécie de contra dição Para nos livrar dessa dificuldade disfarçamos a descontinuidade tanto quanto possível ou antes eliminamola inteiramente supondo que essas percepções intermitentes estão conectadas por uma exis tência real à qual somos insensíveis Tal suposição ou idéia de existên cia contínua adquire força e vividez pela memória dessas impressões fragmentadas e pela propensão que estas nos dão a supor que são uma mesma coisa Ora de acordo com o raciocínio anterior a essência mesma da crença consiste na força e vividez da concepção 25 Para justificar esse sistema há quatro coisas a fazer Primeira expli car o principium individuationis ou seja o princípio de identidade Segunda encontrar a razão pela qual a semelhança de nossas percep ções fragmentadas e descontínuas nos leva a atribuirlhes uma iden tidade Terceira explicar a propensão produzida por essa ilusão a unir essas aparições fragmentadas por meio de uma existência con 232 Livro 1 Parte 4 Seção 2 tínua Quarta e última explicar a força e vividez da concepção resul tante da propensão 26 Primeiramente quanto ao princípio de individuação podemos ob servar que a visão de um objeto não é suficiente para nos transmitir a idéia de identidade Pois na proposição um objeto é o mesmo que ele próprio se a idéia expressa pela palavra objeto não se distinguisse de modo algum da idéia significada por ele próprio nossas palavras na verdade não teriam sentido e a proposição não conteria um predicado e um sujeito os quais entretanto estão implicados na afirmação Um objeto isolado transmite a idéia de unidade não a de identidade 27 Por outro lado uma multiplicidade de objetos por mais semelhan tes que eles sejam jamais poderia transmitir tal idéia A mente decreta sempre que um não é o outro e consideraos como formando dois três ou qualquer número determinado de objetos com existências intei ramente distintas e independentes 28 Uma vez que tanto a pluralidade como a unidade são incompatí veis com a relação de identidade portanto esta deve estar em algo dis tinto daquelas Mas para falar a verdade à primeira vista isso parece inteiramente impossível Entre a unidade e a pluralidade não pode ha ver meiotermo como não pode haver meiotermo entre a existência e a nãoexistência Após supormos que um objeto existe devemos su por ou que um outro também existe nesse caso temos a idéia de pluralidade ou que não existe e nesse caso o primeiro objeto per manece como uma unidade 29 Para resolver essa dificuldade recorramos à idéia de tempo ou duração Já observei4 que o tempo em sentido estrito implica a su cessão e só podemos aplicar sua idéia a um objeto imutável graças a uma ficção da imaginação pela qual supomos que o objeto imutável participa das mudanças dos objetos coexistentes em particular de nossas percepções Tal ficção da imaginação ocorre quase sem exce ção É por meio dela que um objeto singular situado diante de nós e 4 Parte 2 Seção 5 233 Tratado da natureza humana observado durante um certo tempo sem que nele descubramos ne nhuma interrupção ou variação é capaz de nos dar uma noção de identidade Porque quando consideramos dois pontos quaisquer des se tempo podemos vêlos por duas perspectivas diferentes podemos por um lado considerar a ambos exatamente no mesmo instante nesse caso eles nos dão a idéia de número tanto por si mesmos como pelo objeto que deve ser multiplicado para ser concebido de uma só vez como existindo nesses dois pontos diferentes do tempo Por ou tro lado podemos fazer acompanhar a sucessão do tempo por uma su cessão semelhante de idéias concebendo primeiro um momento jun tamente com o objeto então existente e depois imaginando uma mudança no tempo sem qualquer variação ou interrupção no objeto e nesse caso eles nos dão a idéia de unidade Eis aqui portanto uma idéia que é um meiotermo entre a unidade e a pluralidade ou mais corretamente falando é uma coisa ou outra conforme a perspectiva pela qual a consideremos É a essa idéia que chamamos idéia de iden tidade Falando de maneira apropriada não podemos dizer que um ob jeto é o mesmo que ele próprio a menos que com isso queiramos di zer que o objeto existente em um momento é o mesmo que ele próprio existente em outro momento Dessa forma fazemos uma diferença en tre a idéia significada pela palavra objeto e a significada por ele próprio Os editores da NNOPT corrigiram unidade para identidade dizendo que o exercí cio de imaginar que a sucessão no tempo ocorreu sem uma sucessão ou mudança no objeto já é a idéia de identidade meiotermo entre a unidade e o número David F Norton Mary Norton op cit Embora eu concorde que existe aqui um problema creio que a troca de unidade para identidade não se faz sem perdas Pois parece evidente que Hume estava aqui querendo estabelecer um contraste entre as idéias de pluralidade e de unidade Há dois modos de considerarmos os dois pontos no tempo Um nos dá a idéia de pluralidade o outro a de unidade ou ao menos é o que nos leva a crer a lógica e a estrutura do trecho A idéia de identidade será um meiotermo entre as duas ou em outras palavras é uma ou outra conforme a perspectiva pela qual a conside remos meu grifo Certamente portanto a idéia em questão já é a de identidade mas é também tanto a de pluralidade como a de unidade Ora é relativamente simples enten der como obtemos a idéia de pluralidade pela comparação dos dois pontos mas cabe perguntar como exatamente obtemos a idéia de unidade ou seja qual é essa outra perspectiva na qual a idéia de identidade é também a de unidade NT 234 Livro 1 Parte 4 Seção 2 sem nos estender até a pluralidade e ao mesmo tempo sem nos res tringir a uma unidade estrita e absoluta 30 Assim o princípio de individuação não é senão a invariabilidade e a ininterruptibilidade de um objeto ao longo de uma suposta variação do tempo pela qual a mente pode acompanhálo nos diferentes perío dos de sua existência sem nenhuma quebra na visão e sem ser obri gada a formar a idéia de multiplicidade ou número 3 1 Passo agora a explicar a segunda parte de meu sistema mostrarei por que a constância de nossas percepções nos faz atribuirlhes uma perfeita identidade numérica mesmo havendo longos intervalos en tre suas aparições e mesmo que elas tenham apenas uma das quali dades essenciais da identidade a saber a invariabilidade Para evitar qualquer ambigüidade e confusão sobre esse ponto saliento que es tou aqui explicando as opiniões e crenças do vulgo a respeito da exis tência dos corpos e por isso tenho de me conformar inteiramente com seu modo de pensar e de se expressar Ora já observamos que embora os filósofos possam distinguir entre os objetos e as percepções dos sentidos supondoos coexistentes e semelhantes a generalida de dos homens não compreendem essa distinção como percebem ape nas um ser jamais poderiam concordar com a opinião de uma dupla existência e representação As próprias sensações que entram pelo olho ou ouvido são para eles os verdadeiros objetos e não lhes é fácil conceber que esta pluma ou este papel que são imediatamente perce bidos representam outros diferentes porém semelhantes a eles Por tanto para me ajustar às suas noções começarei supondo que há ape nas uma única existência a que chamarei indiferentemente objeto ou percepção conforme pareça mais adequado a meu propósito entenden do por ambos os termos aquilo que todo homem comum entende por um chapéu um sapato uma pedra ou qualquer outra impressão trans mitida por seus sentidos Não deixarei de advertir quando retornar a um modo mais filosófico de falar e pensar A formulação correta deveria ser de uma dupla existência isto é do objeto e da repre sentação NT 235 Tratado da natureza humana 32 Dando início portanto à questão acerca da origem de nosso erro e engano a respeito da identidade que ocorre quando a atribuímos a nossas percepções semelhantes apesar de sua descontinuidade devo recordar algo que já provei e expliquei5 Nada tende mais a nos fazer confundir duas idéias que a existência de uma relação entre elas a qual as associa na imaginação fazendo que esta passe com facilidade de uma à outra De todas as relações a de semelhança é a mais eficaz sob esse aspecto pois causa não somente uma associação de idéias mas também de disposições levandonos a conceber uma idéia por um ato ou operação da mente similar ao ato pelo qual concebemos a outra Observei que essa circunstância é de grande importância E podemos estabelecer como regra geral que todas as idéias que põem a mente na mesma disposição ou em disposições similares têm grande tendência a ser confundidas A mente passa facilmente de uma à outra e não per cebe a mudança a não ser por uma rigorosa atenção da qual em ge ral é inteiramente incapaz 33 Para aplicar essa máxima geral devemos em primeiro lugar exa minar a disposição da mente quando observa um objeto que preser va uma identidade perfeita e então encontrar algum outro objeto que seja confundido com o primeiro por causar uma disposição similar Quando fixamos nosso pensamento em um objeto e supomos que continua o mesmo durante algum tempo é evidente que estamos su pondo que a mudança se dá apenas no tempo e nunca nos empenha mos em produzir uma nova imagem ou idéia do objeto As faculdades da mente como que repousam esforçandose apenas o necessário para dar continuidade à idéia que já possuíamos anteriormente e a qual sub siste sem qualquer variação ou interrupção A passagem de um mo mento a outro quase não é sentida e tampouco se distingue por uma percepção ou idéia diferente que poderia exigir uma direção diferen te dos espíritos animais para ser concebida 5 Parte 2 Seção 5 236 Livro 1 Parte 4 Seção 2 34 Ora que outros objetos além dos idênticos são capazes quan do considerados pela mente de colocála na mesma disposição e de causar a mesma passagem ininterrupta da imaginação de uma idéia a outra Tal questão é da maior importância Pois se formos capazes de encontrar tais objetos poderemos concluir com certeza pelo princí pio anterior que eles são muito naturalmente confundidos com ob jetos idênticos sendo considerados como tais na maioria de nossos raciocínios Mas embora a questão seja muito importante ela não é muito difícil nem sujeita a dúvidas Pois imediatamente respondo que uma sucessão de objetos relacionados coloca a mente nessa disposi ção sendo considerada por meio do mesmo progresso suave e ininterrupto da imaginação que acompanha a visão de um mesmo objeto invariável A própria natureza e essência da relação é conectar nossas idéias entre si e quando do aparecimento de uma facilitar a transição para sua correlata A passagem entre idéias relacionadas é portanto tão suave e fácil que produz pouca alteração na mente pa recendose com a continuação da mesma ação E como a continuação da mesma ação é um efeito da contemplação contínua do mesmo ob jeto atribuímos a mesmidade sameness a toda sucessão de objetos relacionados O pensamento desliza ao longo da sucessão com a mes ma facilidade com que considera um objeto único por isso confunde a sucessão com a identidade 35 Posteriormente veremos vários exemplos dessa tendência da re lação a nos fazer atribuir uma identidade a objetos diferentes mas por enquanto iremos nos limitar ao presente tema Descobrimos pela experiência que existe uma tal constância em quase todas as impressões dos sentidos que sua interrupção não produz nelas nenhuma altera ção nem as impede de retornar iguais em aparência e situação ao que eram em sua primeira existência Examino a mobília contida em meu aposento fecho os olhos abroos logo depois e constato que as no vas percepções se assemelham perfeitamente àquelas que antes atin giam meus sentidos Essa semelhança é observada em milhares de casos e naturalmente conecta nossas idéias dessas percepções in 23 7 Tratado da natureza humana termitentes pela mais forte relação conduzindo a mente por uma tran sição fácil de uma a outra Uma transição ou passagem fácil da imagi nação ao longo das idéias dessas percepções diferentes e descontínuas é uma disposição mental quase igual àquela pela qual consideramos uma percepção constante e ininterrupta É muito natural portanto confundirmos as duas 6 36 As pessoas que mantêm tal opinião a respeito da identidade de nossas percepções semelhantes são em geral toda a parte não pen sante e não filosófica da humanidade isto é todos nós em um mo mento ou em outro e conseqüentemente aquelas que supõem que suas percepções são seus únicos objetos jamais pensando em uma dupla existência interna e externa representante e representada A própria imagem que está presente aos sentidos é para nós o corpo real e é a essas imagens descontínuas que atribuímos uma perfeita iden tidade Mas como a descontinuidade da aparição parece contrária à identidade levandonos naturalmente a ver essas percepções seme lhantes como diferentes umas das outras encontramonos aqui per didos sobre como reconciliar opiniões tão opostas A passagem sua ve da imaginação pelas idéias das percepções semelhantes faz que atribuamos a elas uma identidade perfeita A maneira descontínua de sua aparição nos faz considerálas seres semelhantes porém distin tos que aparecem a intervalos A perplexidade resultante dessa con tradição produz uma propensão a unir essas aparições fragmentadas mediante a ficção de uma existência contínua o que constitui a ter ceira parte da hipótese que propus explicar 6 Há que se reconhecer que tal raciocínio é um pouco abstruso e difícil de compreender mas notemos que essa mesma dificuldade podese converter em prova do raciocínio Podemos observar que há duas relações ambas de semelhança que contribuem para confundirmos a sucessão de nossas percepções descontínuas com um objeto idêntico A primeira é a semelhança entre as percepções a segunda a semelhança entre o ato pelo qual a mente examina uma sucessão de objetos semelhantes e aquele pelo qual examina um objeto idêntico Ora essas semelhanças tendemos a confundilas uma com a outra e é natural que o façamos de acordo com esse mesmo raciocínio Mas mantenhamolas distintas e não encontraremos dificuldade em conceber o argumento anterior 238 Livro 1 Parte 4 Seção 2 37 Nada é mais certo pela experiência que o fato de qualquer con tradição em relação aos sentimentos ou às paixões produzir um sen sível desconforto quer essa contradição proceda de fora quer de den tro da oposição de objetos externos ou do combate entre princípios internos Ao contrário tudo que se harmoniza com as propensões naturais e favorece externamente sua satisfação ou concorre interna mente com seus movimentos produz com certeza um prazer sensí vel Ora como existe aqui uma oposição entre a noção da identidade de percepções semelhantes e as interrupções em sua aparição a mente deve se sentir desconfortável nessa situação e naturalmente procu ra obter alívio do desconforto E uma vez que esse desconforto nasce da oposição entre dois princípios contrários o alívio deverá ser bus cado no sacrifício de um princípio em benefício do outro Mas como é a passagem suave de nosso pensamento ao longo de nossas percep ções semelhantes que nos leva a atribuir a elas uma identidade jamais poderíamos sem relutância abrir mão de tal opinião Temos portanto de nos voltar para o outro lado supomos que nossas percepções não são mais interrompidas que preservam uma existência contínua e in variável e que por isso são inteiramente idênticas Mas as interrup ções na aparição dessas percepções são aqui tão longas e freqüentes que é impossível desprezálas e como a aparição de uma percepção na mente e sua existência parecem à primeira vista exatamente a mesma coisa podese duvidar de que algum dia sejamos capazes de concor dar com uma contradição tão palpável e supor que uma percepção exista sem estar presente à mente Para esclarecer essa questão e des cobrir como a interrupção na aparição de uma percepção não implica necessariamente uma interrupção em sua existência será convenien te tocar em alguns princípios que mais tarde teremos ocasião de ex plicar de maneira mais completa 7 38 Podemos começar observando que a dificuldade neste caso não diz respeito à questão de fato a saber se a mente forma uma tal conclu 7 Seção 6 239 Tratado da natureza humana são acerca da existência contínua de suas percepções mas apenas à maneira como a conclusão é formada e aos princípios de que deriva É certo que quase toda a humanidade e até os próprios filósofos du rante a maior parte de suas vidas tomam suas percepções como seus únicos objetos e supõem que o próprio ser que está intimamente presente à mente é o corpo real ou existência material É também certo que supomos que essa mesma percepção ou objeto tem uma existên cia contínua e ininterrupta e que não é nem aniquilada por nossa au sência nem trazida à existência por nossa presença Quando não estamos em sua presença dizemos que ela ainda existe mas que não a sentimos que não a vemos Quando estamos presentes dizemos que a sentimos ou vemos Duas questões portanto podem surgir aqui Primeiro como podemos admitir que uma percepção esteja ausente da mente sem ser aniquilada Segundo de que maneira concebemos que um objeto se torna presente à mente sem a criação de uma nova percep ção ou imagem e o que queremos dizer com esse ver sentir e perceber 39 Quanto à primeira questão podemos observar que aquilo que cha mamos uma mente não é senão um feixe ou coleção de diferentes per cepções unidas por certas relações e as quais supomos embora fal samente serem dotadas de uma perfeita simplicidade e identidade Ora como toda percepção é distinguível das outras e pode ser consi derada como existindo separadamente seguese de modo evidente que não é absurdo separar da mente uma percepção particular qualquer isto é romper todas as suas relações com essa massa conectada de percepções que constituem um ser pensante 40 O mesmo raciocínio fornecenos uma resposta à segunda questão Se o nome percepção não torna absurda e contraditória essa separação de uma mente o nome objeto que representa exatamente a mesma coisa jamais poderia tornar impossível sua conjunção Os objetos ex ternos são vistos sentidos e se tornam presentes à mente isto é ad quirem uma tal relação com um feixe conectado de percepções que in fluenciam consideravelmente a estas aumentando seu número com reflexões e paixões presentes e abastecendo a memória de idéias O 240 Livro 1 Parte 4 Seção 2 mesmo ser contínuo e ininterrupto pode portanto estar ora presen te à mente ora ausente sem nenhuma mudança real ou essencial no próprio ser Uma interrupção na aparição aos sentidos não implica necessariamente uma interrupção na existência A suposição da exis tência contínua dos objetos ou percepções sensíveis não envolve con tradição Podemos facilmente ceder à nossa inclinação para tal supo sição Quando a exata semelhança de nossas percepções nos faz atribuir a elas uma identidade podemos eliminar a aparente descon tinuidade fantasiando um ser contínuo capaz de preencher esses in tervalos e preservar uma identidade perfeita e integral em nossas percepções 41 Entretanto como aqui nós não apenas fantasiamos mas também cremos nessa existência contínua a questão é de onde surge tal crença E essa questão nos leva à quarta parte deste sistema Já provamos que a crença em geral não consiste senão na vividez de uma idéia e que uma idéia pode adquirir tal vividez por sua relação com alguma impressão presente As impressões são naturalmente as percepções mais vívidas da mente e essa qualidade é parcialmente transmitida pela relação a toda idéia conectada A relação causa uma passagem suave da im pressão à idéia e produz até mesmo uma propensão para essa passa gem A mente resvala tão facilmente de uma percepção a outra que quase não percebe a mudança retendo na segunda uma parcela con siderável da vividez da primeira Ela é estimulada pela impressão ví vida e essa vividez é transmitida à idéia relacionada sem que haja uma grande diminuição nessa passagem em razão da transição suave e da propensão da imaginação 42 Suponhamos porém que essa propensão surja de outros princí pios que não o da relação é evidente que ela deverá ter o mesmo efei to transmitindo a vividez da impressão à idéia Ora esse é exatamente o caso presente Nossa memória nos apresenta um grande número de exemplos de percepções perfeitamente semelhantes entre si que re tornam a diferentes intervalos de tempo e após interrupções consi deráveis Essa semelhança nos dá uma propensão a considerar essas 241 Tratado da natureza humana percepções intermitentes como uma mesma coisa e também uma propensão a conectálas por uma existência contínua para justificar essa identidade e evitar a contradição em que a aparição descontínua dessas percepções parece necessariamente nos envolver Temos aqui portanto uma propensão a fantasiar a existência contínua de todos os objetos sensíveis e como essa propensão deriva de certas impressões vívidas da memória ela concede uma vividez a tal ficção ou em ou tras palavras levanos a acreditar na existência contínua dos corpos Se às vezes atribuímos uma existência contínua a objetos que nos são perfeitamente novos e de cuja constância e coerência não tivemos ne nhuma experiência é porque a maneira como eles se apresentam a nossos sentidos se assemelha à dos objetos constantes e coerentes e essa semelhança é uma fonte de raciocínio e analogia levandonos a atribuir as mesmas qualidades aos objetos similares 43 Acredito que um leitor inteligente terá menos dificuldade em acei tar esse sistema que em compreendêlo de maneira completa e distin ta e após uma pequena reflexão admitirá que cada uma de suas par tes traz consigo sua própria prova De fato é evidente que como o vulgo pressupõe que suas percepções são seus únicos objetos e ao mes mo tempo crê na existência contínua da matéria devemos explicar a origem desta crença em razão de tal pressuposição Ora segundo tal pressuposição é falsa a opinião de que qualquer um de nossos obje tos ou percepções seja numericamente idêntico após uma interrup ção Conseqüentemente a opinião de sua identidade jamais poderia surgir da razão devendo antes ser derivada da imaginação A imagi nação só se vê atraída a uma tal opinião em virtude da semelhança de certas percepções pois constatamos que as únicas percepções que ten demos a considerar as mesmas são as semelhantes Essa inclinação a atribuir identidade a nossas percepções semelhantes produz a ficção de uma existência contínua pois essa ficção assim como a identida de é na verdade falsa como reconhecem todos os filósofos e não tem outro efeito senão remediar a descontinuidade de nossas percepções única circunstância contrária a sua identidade Em último lugar essa 242 Livro 1 Parte 4 Seção 2 inclinação causa a crença por meio das impressões presentes da me mória pois é claro que sem a lembrança de sensações anteriores nun ca depositaríamos uma crença na existência contínua dos corpos As sim ao examinar todas essas partes vemos que cada uma delas é sustentada pelas provas mais fortes e que todas juntas formam um sistema consistente e perfeitamente convincente Uma forte propen são ou inclinação sozinha sem uma impressão presente às vezes já basta para causar uma crença ou opinião quanto mais quando auxi liada por essa circunstância 44 Embora a propensão natural da imaginação nos leve a atribuir uma existência contínua a esses objetos ou percepções sensíveis que vemos assemelharse uns aos outros em sua aparição descontínua um pou co de reflexão e filosofia basta contudo para nos fazer perceber a fa lácia dessa opinião Já observei que existe uma conexão íntima entre o princípio de uma existência contínua e o de uma existência distinta ou independente e que tão logo estabelecemos um deles o outro se segue como uma conseqüência necessária É a opinião da existência contí nua que ocorre primeiro e sem muito estudo ou reflexão traz consi go a outra sempre que a mente segue sua tendência primeira e mais natural Mas quando comparamos experimentos e raciocinamos um pouco acerca deles rapidamente percebemos que a doutrina da exis tência independente de nossas percepções sensíveis é contrária à mais clara experiência Isso nos faz retornar sobre nossos passos para per ceber o erro de atribuir uma existência contínua a nossas percepções e dá origem a muitas opiniões bastante curiosas que tentaremos aqui explicar 45 Primeiramente será conveniente examinar alguns dos experimen tos que nos convencem de que nossas percepções não possuem uma existência independente Quando pressionamos um olho com o dedo percebemos imediatamente que todos os objetos se duplicam e me tade deles se afasta de sua posição comum e natural Mas como não atribuímos uma existência contínua a ambas as percepções embora tenham a mesma natureza percebemos com clareza que todas as nos 243 Tratado da natureza humana sas percepções dependem de nossos órgãos e da disposição de nos sos nervos e espíritos animais Essa opinião é confirmada pelo apa rente aumento ou diminuição no tamanho dos objetos segundo sua distância pelas aparentes alterações em sua forma pelas mudanças em suas cores e outras qualidades ocasionadas por nossas doenças e indisposições e por um número infinito de outros experimentos do mesmo tipo Tudo isso nos ensina que nossas percepções sensíveis não possuem uma existência distinta ou independente 46 A conseqüência natural desse raciocínio deveria ser que nossas percepções não possuem nem uma existência contínua nem uma existência independente De fato os filósofos tanto adotaram essa opinião que alteraram seu sistema passando a distinguir como fa remos daqui em diante entre percepções e objetos Assim supõem que aquelas são descontínuas perecíveis e diferentes cada vez que retornam e que estes últimos são ininterruptos e preservam uma existência contínua e uma identidade Entretanto por mais filosófi co que esse novo sistema possa ser considerado afirmo que consti tui um mero paliativo com todas as dificuldades do sistema vulgar e mais algumas outras que lhe são peculiares Nenhum princípio seja do entendimento seja da fantasia levanos diretamente a adotar essa opinião da dupla existência das percepções e dos objetos só podemos chegar até ela passando pela hipótese comum da identidade e conti nuidade de nossas percepções descontínuas Se não estivéssemos antes persuadidos de que nossas percepções são nossos únicos ob jetos e que continuam existindo mesmo quando não mais aparecem aos sentidos nunca seríamos levados a pensar que nossas percep ções são diferentes de nossos objetos e somente estes preservam uma existência contínua Essa segunda hipótese não possui ori ginalmente nada que a recomende nem à razão nem à imaginação adquirindo toda sua influência sobre a imaginação pela primeira hipótese Tal proposição contém duas partes que procuraremos provar da maneira mais distinta e clara que o permitem esses temas abstrusos 244 Livro 1 Parte 4 Seção 2 4 7 Quanto à primeira parte da proposição que essa hipótese filosófica não possui originalmente nada que a recomende nem à razão nem à ima ginação podemos rapidamente nos convencer dela no que concerne à razão pelas seguintes reflexões As únicas existências de que estamos certos são as percepções que por estarem imediatamente presentes a nós pela consciência exigem nosso mais forte assenti mento sendo o primeiro fundamento de todas as nossas conclusões Só podemos inferir a existência de uma coisa a partir de outra por meio da relação de causa e efeito que mostra que há uma conexão entre elas e que a existência de uma depende da existência da outra A idéia dessa relação é derivada da experiência passada pela qual descobrimos que dois seres possuem uma conjunção constante estando sempre presentes ao mesmo tempo à mente Mas como os únicos seres que jamais estão presentes à mente são as percepções seguese que po demos observar uma conjunção ou uma relação de causa e efeito en tre diferentes percepções mas nunca podemos observála entre per cepções e objetos Portanto é impossível que da existência ou de qualquer qualidade das percepções possamos jamais formar uma con clusão concernente à existência dos objetos e que jamais possamos satisfazer nossa razão acerca desse ponto 48 É igualmente certo que esse sistema filosófico não possui nada que o recomende à imaginação e que esta faculdade nunca teria por si mesma e por sua tendência original chegado a um tal princípio Reconheço que será um pouco difícil provar essa afirmação de um modo que convença plenamente o leitor porque ela implica uma ne gação e em muitos casos as negações não admitem uma prova posi tiva Se alguém se desse ao trabalho de examinar o problema e inven tasse um sistema para dar conta da origem direta dessa opinião na imaginação seríamos capazes de estudando tal sistema enunciar um juízo certo sobre o assunto presente Admitamos que nossas percepções são fragmentadas e descontínuas e mesmo semelhantes são diferen tes uma das outras Se alguma pessoa com base nessa suposição mos trar por que a fantasia direta e imediatamente passa a crer em uma 245 Tratado da natureza humana outra existência semelhante a essas percepções em sua natureza mas contínua ininterrupta e idêntica se fizer isso de um modo con vincente prometo renunciar a minha opinião presente Por enquan to não posso deixar de concluir pelo próprio caráter abstrato e difí cil da suposição inicial que este não é um tema próprio para ser trabalhado pela fantasia Quem quiser explicar a origem da opinião co mum a respeito da existência contínua e distinta dos corpos deve to mar a mente em sua situação comum procedendo com base na suposi ção de que nossas percepções são nossos únicos objetos e continuam a existir mesmo quando não são mais percebidas Embora falsa essa opinião é a mais natural de todas e a única que consegue se impor ori ginalmente à fantasia 49 Quanto à segunda parte da proposição que o sistema filosófico ad quire toda sua influência sobre a imaginação pelo sistema vulgar podemos observar que essa é uma conseqüência natural e inevitável da conclu são anterior de que ele não possui originalmente nada que o recomende nem para a razão nem para a imaginação Porque como o sistema filosófico segundo nos mostra a experiência domina muitas mentes em parti cular a daqueles que refletem por pouco que seja sobre esse assun to ele deve extrair toda sua autoridade do sistema vulgar uma vez que originalmente não possui autoridade própria A seguir explica remos de que modo esses dois sistemas se conectam embora sejam diretamente contrários 50 A imaginação percorre naturalmente esta cadeia de pensamentos nossas percepções são nossos únicos objetos percepções semelhan tes são uma mesma coisa ainda que sua aparição seja fragmentada ou interrompida essa interrupção aparente é contrária à sua identida de a interrupção conseqüentemente não se estende além da aparên Texto corrigido segundo a edição Norton Norton que diz however broken or interrupted in their appearance A edição SelbyBiggeNidditch punha however broken or uninterrupted in their appearance o que me parece sem sentido sobretudo pelo que diz a frase seguinte e porque a menção à ausência de interrupção é supérflua para o raciocínio NT 246 Livro 1 Parte 4 Seção 2 eia e a percepção ou objeto na realidade continua a existir mesmo quando longe de nossa presença portanto nossas percepções sensí veis possuem uma existência contínua e ininterrupta Mas uma peque na reflexão mostra que nossas percepções possuem uma existência dependente destruindo assim essa conclusão de que sua existência é contínua por isso seria natural esperar que rejeitássemos por com pleto a opinião de que existe na natureza alguma coisa como uma exis tência contínua preservada mesmo quando não aparece mais aos sen tidos Entretanto não é isso o que ocorre Os filósofos estão tão longe de rejeitar a opinião de uma existência contínua por terem rejeitado a da independência e continuidade de nossas percepções sensíveis que embora todas as escolas concordem com esta última posição a primeira que é de certa forma sua conseqüência necessária tem sido peculiar a uns poucos céticos extravagantes e estes afinal sustentam tal opinião apenas verbalmente e jamais foram capazes de acreditar nela com toda sinceridade 51 Há uma grande diferença entre as opiniões que formamos após uma reflexão serena e profunda e as que abraçamos por uma espécie de instinto ou impulso natural em virtude de sua adequação e con formidade com a mente Se essas opiniões se tornam contrárias não é difícil prever qual terá a precedência Enquanto nossa atenção está voltada para o assunto em questão o sistema filosófico e refletido pode prevalecer mas assim que relaxamos nossos pensamentos a nature za se revela trazendonos de volta à nossa primeira opinião Mais ain da a influência da natureza é tal que é capaz de deter nosso avanço mesmo no decorrer das reflexões mais profundas impedindonos de tirar todas as conseqüências de um sistema filosófico Assim embo ra percebamos claramente a dependência e a descontinuidade de nos sas percepções não vamos adiante e jamais rejeitamos por esse mo tivo a noção de uma existência independente e contínua Essa opinião cria raízes tão profundas na imaginação que é impossível erradicála e nem a mais forçada convicção metafísica da dependência de nossas percepções será suficiente para tal propósito 247 Tratado da natureza humana 52 Embora nossos princípios naturais e evidentes prevaleçam aqui sobre nossas reflexões mais cuidadosas é certo contudo que deve haver alguma luta e oposição ao menos enquanto essas reflexões mantêm alguma força ou vividez Para eliminar nosso desconforto acerca desse ponto fabricamos uma nova hipótese que parece com preender ambos os princípios da razão e da imaginação Tratase da hipótese filosófica da dupla existência das percepções e dos objetos que satisfaz nossa razão ao admitir que nossas percepções dependen tes são descontínuas e diferentes e ao mesmo tempo é agradável para a imaginação por atribuir uma existência contínua a outra coisa a que chamamos objetos Esse sistema filosófico portanto é o fruto mons truoso de dois princípios contrários que são abraçados ao mesmo tem po pela mente um não sendo capaz de destruir o outro A imagina ção nos diz que nossas percepções semelhantes têm uma existência contínua e ininterrupta e que não são aniquiladas quando estão au sentes A reflexão nos diz que mesmo nossas percepções semelhan tes são diferentes umas das outras e possuem uma existência des contínua A contradição entre essas opiniões nós a eludimos por meio de uma nova ficção conforme tanto à hipótese da reflexão quanto à da fantasia atribuindo essas qualidades contrárias a existências dife rentes a descontinuidade às percepções e a continuidade aos objetos A natureza é obstinada e não abandona o campo de batalha mesmo que vigorosamente atacada pela razão ao mesmo tempo a razão é tão clara sobre esse ponto que é impossível disfarçála Incapazes de reconciliar essas duas inimigas procuramos tanto quanto possível amenizar nos so desconforto dando sucessivamente a cada uma aquilo que ela pede e criando a ficção de uma dupla existência em que cada uma possa encontrar algo que contenha todas as condições desejadas Se estivés semos inteiramente convencidos de que nossas percepções semelhan tes são contínuas idênticas e independentes nunca formaríamos a opinião de uma dupla existência pois ficaríamos satisfeitos com nos sa primeira suposição sem precisar buscar nada além dela Nova mente se estivéssemos inteiramente convencidos de que nossas per 248 Livro 1 Parte 4 Seção 2 cepções são dependentes descontínuas e diferentes estaríamos igualmente pouco inclinados a abraçar a opinião de uma dupla exis tência pois nesse caso perceberíamos claramente o erro de nossa primeira suposição de uma existência contínua e nunca mais a leva ríamos em consideração Portanto essa opinião surge da situação in termediária da mente ou seja da adesão a esses princípios contrá rios de tal forma que nos vemos levados a buscar um pretexto que justifique nossa aceitação de ambos Felizmente acabamos encon trando esse pretexto no sistema de uma dupla existência 53 Outra vantagem desse sistema filosófico é sua similaridade em re lação ao sistema vulgar Isso nos permite comprazer momentaneamen te à nossa razão quando ela se torna inquieta e inoportuna mas a seu menor descuido ou desatençã podemos com facilidade retomar nos sas noções vulgares e naturais De fato vemos que os filósofos não des prezam essa vantagem tão logo deixam seu gabinete de estudos mis turamse ao resto da humanidade em suas opiniões desacreditadas de que nossas percepções são nossos únicos objetos e continuam idên tica e ininterruptamente as mesmas ao longo de todas as suas apari ções descontínuas 54 Há outras particularidades desse sistema em que podemos obser var de maneira bastante evidente sua dependência em relação à fan tasia Dentre elas examinarei as duas seguintes Primeiramente supo mos que os objetos externos se assemelham às percepções internas Já mostrei que a relação de causa e efeito nunca nos permitiria fazer uma inferência legítima da existência ou das qualidades de nossas percepções para a existência de objetos externos e contínuos Acres centarei que mesmo que permitisse tal inferência nunca teríamos razão para inferir que nossos objetos se assemelham a nossas per cepções Essa opinião portanto não é derivada senão da qualidade da fantasia que explicamos anteriormente ou seja que ela toma todas as suas idéias de algumas percepções anteriores Jamais podemos conce ber nada além de percepções e portanto temos de fazer tudo se as semelhar a elas 249 Tratado da natureza humana 55 Em segundo lugar assim como supomos que nossos objetos em geral se assemelham a nossas percepções assim também damos por suposto que cada objeto particular se assemelha à percepção por ele causada A relação de causa e efeito nos determina a acrescentar a ela a de semelhança ou seja como as idéias dessas existências já estão unidas na fantasia pela primeira relação nós naturalmente acrescentamos a segunda para completar a união Possuímos uma forte propensão a completar toda união entre idéias somando novas relações às primeiramente observadas como teremos ocasião de no tar em breve 8 56 Tendo assim explicado todos os sistemas tanto populares como filosóficos a respeito das existências externas não posso deixar de dar vazão a um certo sentimento que surge quando torno a examinar tais sistemas Iniciei este tema com a premissa de que deveríamos ter uma fé implícita em nossos sentidos e que essa é a conclusão que extrairia da totalidade de meu raciocínio Mas para ser franco sin tome neste momento possuído pelo sentimento contrário Estou mais inclinado a não ter fé alguma em meus sentidos ou antes imagina ção do que a depositar neles uma tal confiança implícita Não con sigo conceber como qualidades tão triviais da fantasia conduzidas por essas falsas suposições podem jamais nos levar a um sistema só lido e racional A coerência e a constância de nossas percepções é que produzem a opinião de sua existência contínua embora essas qua lidades das percepções não tenham nenhuma conexão perceptível com tal existência A constância de nossas percepções tem o efeito mais considerável e entretanto se faz acompanhar das maiores di ficuldades É uma grande ilusão supor que nossas percepções seme lhantes possuem uma identidade numérica e é essa ilusão que nos leva à opinião de que essas percepções são ininterruptas e existem mesmo quando não estão mais presentes aos sentidos Isso é o que ocorre com nosso sistema popular Quanto ao filosófico ele é pas 8 Seção 5 250 Livro 1 Parte 4 Seção 2 sível das mesmas dificuldades e além disso é sobrecarregado com o absurdo de a um só tempo negar e corrpborar a suposição vulgar Os filósofos negam que nossas percepções semelhantes sejam inin terruptas e numericamente idênticas entretanto têm tamanha pro pensão a crer que o sejam que inventam de modo arbitrário um no vo conjunto de percepções a que atribuem essas qualidades Digo um novo conjunto de percepções pois podemos perfeitamente su por em geral mas é impossível concebermos distintamente que os objetos tenham uma natureza que não seja exatamente a mesma que a das percepções O que poderíamos esperar portanto dessa confusão de opiniões infundadas e extraordinárias senão erro e a falsidade E como poderíamos justificar perante nós mesmos qualquer crença que nelas depositemos 57 Essa dúvida cética tanto em relação à razão como aos sentidos é uma doença que jamais pode ser radicalmente curada voltando sem pre a nos atormentar por mais que a afastemos e por mais que às ve zes pareçamos estar inteiramente livres dela É impossível com base em qualquer sistema defender seja nosso entendimento seja nossos sentidos Apenas os deixamos mais vulneráveis quando tentamos justificálos dessa maneira Como a dúvida cética nasce naturalmen te de uma reflexão profunda e intensa sobre esses assuntos ela cres ce quanto mais longe levamos nossas reflexões sejam estas confor mes ou opostas a ela Apenas o descuido e a desatenção podem nos trazer algum remédio Por essa razão confio inteiramente neles e estou seguro de que qualquer que seja a opinião do leitor neste mo mento presente daqui a uma hora estará convencido de que existe tanto um mundo externo como um interno Guiandome por essa cer teza pretendo examinar alguns sistemas gerais antigos e modernos que foram propostos a respeito de ambos os mundos antes de pas sar a uma investigação mais detalhada sobre nossas impressões Tal vez vejamos no final que esse tema não está muito distante de nos so propósito presente 251 Tratado da natureza humana Seção 3 Da filosofia antiga 1 Diversos moralistas recomendaram como um excelente método para conhecermos nossos próprios corações e avaliarmos nosso pro gresso na virtude que recordemos nossos sonhos pela manhã exami nandoos com o mesmo rigor com que examinaríamos nossas ações mais sérias e deliberadas Nosso caráter é sempre o mesmo dizem eles e aparece melhor lá onde o artifício o medo e a dissimulação não têm lugar e onde os homens não podem ser hipócritas consigo mes mos ou com os outros A generosidade ou a baixeza de nosso caráter nossa brandura ou crueldade nossa coragem ou pusilanimidade in fluenciam as ficções da imaginação com a liberdade mais irrestrita revelandose em suas cores mais brilhantes De maneira semelhante estou convencido de que muitas descobertas úteis podem ser feitas com base em uma crítica das ficções da filosofia antiga referentes a substâncias formas substanciais acidentes e qualidades ocultas que por mais irracionais e caprichosas possuem uma conexão íntima com os princípios da natureza humana 2 Os filósofos mais judiciosos admitem que nossas idéias dos cor pos não são mais que coleções formadas pela mente das idéias das diversas qualidades sensíveis distintas que compõem os objetos e que constatamos possuírem uma união constante umas com as outras Mas embora tais qualidades possam ser em si mesmas inteiramente distintas o certo é que costumamos considerar o composto que for mam como UMA coisa que continua a MESMA ao longo de alterações bastante consideráveis A reconhecida composição é evidentemente contrária a essa suposta simplicidade e a alteração à identidade Por isso talvez valha a pena considerar as causas que fazem com que quase sem exceção caiamos em contradições tão evidentes bem como os meios pelos quais tentamos ocultálas 3 É evidente que como as idéias das diversas qualidades distintas e sucessivas dos objetos são unidas por uma relação muito estreita a 252 Livro 1 Parte 4 Seção 3 mente ao percorrer a sucessão deverá ser levada de uma parte a ou tra por uma transição fácil e não perceberá a mudança mais que se estivesse contemplando o mesmo objeto imutável Essa transição fá cil é o efeito ou antes a essência da relação e como a imaginação toma imediatamente uma idéia por outra quando sua influência sobre a mente é similar assim acontece que qualquer sucessão de qualidades relacionadas é logo considerada como um único objeto contínuo existindo sem qualquer variação O curso suave e ininterrupto do pen samento sendo semelhante nos dois casos facilmente engana a men te e nos faz atribuir uma identidade à sucessão cambiante de qua lidades conectadas 4 Porém quando alteramos nosso modo de considerar a sucessão e em vez de acompanhála gradativamente ao longo dos pontos su cessivos do tempo contemplamos de uma só vez dois períodos dis tintos de sua duração comparando as diferentes condições das qua lidades sucessivas nesse caso as variações que eram imperceptíveis quando se davam de modo gradativo mostramse importantes e pa recem destruir por completo a identidade Surge assim uma espécie de contrariedade em nosso modo de pensar decorrente dos diferentes pontos de vista a partir dos quais examinamos o objeto bem como da proximidade ou do afastamento entre os instantes temporais que com paramos Quando seguimos gradativamente um objeto em suas suces sivas mudanças o progresso suave do pensamento nos faz atribuir uma identidade à sucessão porque é mediante um ato mental similar que contemplamos um objeto imutável Quando comparamos sua si tuação após uma mudança considerável o progresso do pensamento se quebra e conseqüentemente apresentasenos a idéia de diversi dade Para resolver essas contradições a imaginação tende a fantasiar algo desconhecido e invisível que supõe continuar o mesmo ao lon go dessas variações A esse algo ininteligível ela dá o nome de substân cia ou matéria primeira e original 5 Sustentamos uma noção similar a respeito da simplicidade das subs tâncias e por causas semelhantes Suponhamos que se nos apresente 253 Tratado da natureza humana um objeto perfeitamente simples e indivisível junto com um outro cujas partes coexistentes são conectadas por uma forte relação Nesse caso é evidente que as ações da mente ao considerar os dois objetos não são muito diferentes A imaginação concebe o objeto simples de uma só vez com facilidade por um esforço único de pensamento sem mudança ou variação A conexão entre as partes no objeto com posto tem quase o mesmo efeito e une internamente o objeto de tal maneira que a fantasia não sente a transição ao passar de uma parte a outra Assim a cor o sabor a forma a solidez e outras qualidades combinadas em um pêssego ou melão são concebidas como forman do uma coisa e isso em virtude de sua estreita relação que as faz afetar o pensamento como se o objeto não possuísse nenhuma composi ção Mas a mente não pára aqui Sempre que observa o objeto de ou tra perspectiva constata que essas qualidades são todas diferentes distinguíveis e separáveis entre si E essa perspectiva por destruir suas noções primeiras e mais naturais obriga a imaginação a fantasiar um algo desconhecido uma substância e matéria original como princí pio de união ou coesão entre essas qualidades capaz de dar ao ob jeto composto o direito de ser chamado de uma coisa apesar de sua diversidade e composição 6 A filosofia peripatética afirma que a matéria original é perfeitamen te homogênea em todos os corpos e considera que o fogo a água a terra e o ar em virtude de suas mudanças e transformações graduais uns nos outros são exatamente da mesma substância Ao mesmo tem po confere a cada uma dessas espécies de objetos uma forma substan cial distinta que supõe ser a fonte de todas aquelas diferentes quali dades que eles possuem e um novo fundamento de simplicidade e identidade para cada espécie particular Tudo depende de nossa manei ra de ver os objetos Quando acompanhamos as mudanças insensí veis dos corpos supomos que todos têm a mesma substância ou es sência Quando consideramos suas diferenças sensíveis atribuímos a cada um deles uma diferença substancial e essencial E para satisfa zer a esses nossos dois modos de considerar os objetos supomos que 254 Livro 1 Parte 4 Seção 3 todos os corpos possuem ao mesmo tempo uma substância e uma forma substancial 7 A noção de acidente é uma conseqüência inevitável desse modo de pensar a respeito de substâncias e formas substanciais Não podemos nos impedir de considerar cores sons sabores formas e outras proprie dades dos corpos como existências incapazes de subsistir separadamen te e que requerem um sujeito de inerência que as sustente e suporte Pois sempre que descobrimos alguma dessas qualidades sensíveis tam bém imaginamos pelas razões acima mencionadas a existência de uma substância e o mesmo hábito que nos faz inferir uma conexão entre causa e efeito levanos aqui a inferir que todas as qualidades dependem da substância desconhecida O costume de imaginar uma dependên cia tem o mesmo efeito que teria o costume de observála Mas essa ficção é tão irracional quanto as anteriores Como toda qualidade é uma coisa distinta pode ser concebida existindo separadamente e pode existir separadamente não apenas de todas as outras qualidades mas também dessa quimera ininteligível que é a substância 8 Porém esses filósofos levam ainda mais longe suas ficções quando falam de qualidades ocultas supondo ao mesmo tempo uma substância que sustenta e que eles não compreendem e um acidente sustentado do qual têm uma idéia igualmente imperfeita Todo o sistema portan to é completamente incompreensível e não obstante deriva de princí pios tão naturais quanto qualquer um dos acima explicados 9 Refletindo sobre este tema podemos observar uma gradação en tre três opiniões que se sucedem à medida que aqueles que as formam adquirem novos graus de razão e conhecimento Essas opiniões são as do vulgo da falsa filosofia e da verdadeira filosofia Ao examiná las veremos que a verdadeira filosofia se aproxima mais dos sentimen tos do vulgo que daqueles de um conhecimento equivocado É natu ral que os homens em seu modo comum e descuidado de pensar imaginem perceber uma conexão entre os objetos que constataram estar constantemente unidos e como o costume tornou difícil sepa rar as idéias eles tendem a imaginar que essa separação é em si mes 255 Tratado da natureza humana ma impossível e absurda Mas os filósofos que abstraem os efeitos do costume e comparam as idéias dos objetos percebem imediatamen te a falsidade dessas concepções vulgares descobrindo que não existe nenhuma conexão conhecida entre os objetos Cada objeto diferente lhes parece inteiramente distinto e separado e percebem que não é partindo de uma visão de sua natureza e qualidades que inferimos um objeto de outro mas apenas quando em diversos casos observamos que apresentaram uma conjunção constante No entanto tais filóso fos em vez de extrair dessa observação uma inferência legítima e con cluir que não possuímos nenhuma idéia de um poder ou princípio de ação separados da mente e pertencentes às causas buscam freqüen temente as qualidades em que esse princípio de ação consiste e ficam descontentes com todos os sistemas que sua razão lhes sugere para explicála Possuem suficiente perspicácia para se livrar do erro vulgar de que existiria uma conexão natural e perceptível entre as diversas qua lidades sensíveis e as ações da matéria mas não suficiente para se abs ter de procurar tal conexão na matéria ou nas causas Caso houvessem chegado à conclusão correta teriam retornado à situação do vulgo con siderando todas estas perquirições com descaso e indiferença No pre sente momento parecem estar em uma situação bastante lamentável da qual os poetas nos forneceram uma vaga noção em suas descrições das punições de Sísifo e de Tântalo Pois será possível imaginar tormen to maior que a busca voraz de algo que para sempre nos escapa e sua busca lá onde é impossível que possa vir a existir 10 A natureza parece ter guardado contudo uma espécie de justiça e compensação em todas as coisas e não se descuidou dos filósofos mais que do resto da criação ao contrário reservoulhes um conso lo em meio a todas as suas decepções e aflições Tal consolo consiste especialmente na invenção por parte dos filósofos das palavras f acui dade e qualidade oculta De fato após utilizarmos com freqüência ter mos realmente significativos e inteligíveis é comum omitirmos a idéia que pretendíamos exprimir por meio deles conservando apenas o costu me que nos permite evocar essa idéia a nosso belprazer por isso tam 256 Livro 1 Parte 4 Seção 4 bém é natural que após o uso freqüente de termos inteiramente ininteligíveis e sem significado imaginemos que eles se equiparam aos precedentes e que possuem um sentido secreto que poderíamos des cobrir por reflexão A semelhança de sua aparência engana a mente como é usual fazendonos imaginar uma perfeita semelhança e con formidade Desse modo esses filósofos se reconfortam e finalmente atingem graças a uma ilusão a mesma indiferença que as pessoas co muns adquirem por sua estupidez e os verdadeiros filósofos por seu ceticismo moderado Para isso basta que digam de qualquer fenôme no que os embarace que este deriva de uma faculdade ou de uma qua lidade oculta e acabamse todas as disputas e investigações sobre o assunto 1 1 Mas dentre todos os casos que nos mostram que os peripatéticos se deixam guiar por qualquer vã propensão da imaginação nenhum é mais digno de nota que suas simpatias antipatias e horror ao vácuo A natureza humana possui uma notável inclinação a atribuir aos obje tos externos as mesmas emoções que observa em si própria e a en xergar em todo lugar aquelas idéias que lhe estão mais presentes É verdade que essa inclinação se elimina por uma pequena reflexão e só persiste nas crianças nos poetas e nos filósofos antigos Nas crian ças aparece por exemplo em seu desejo de bater nas pedras que as ferem nos poetas na facilidade com que personificam todas as coi sas e nos filósofos antigos nessas ficções da simpatia e da antipatia Devemos perdoar as crianças porque têm pouca idade os poetas porque admitem seguir sem reservas as sugestões de sua fantasia Mas que desculpa encontraremos para justificar nossos filósofos em uma fraqueza tão evidente Seção 4 Da filosofia moderna 1 Podese aqui objetar que como a imaginação segundo eu mesmo admito é o juiz último de todos os sistemas filosóficos eu estaria sen 257 Tratado da natureza humana do injusto ao condenar os filósofos antigos por fazerem uso daquela faculdade e por se deixarem guiar inteiramente por ela em seus racio cínios Para me justificar devo fazer uma distinção na imaginação entre os princípios permanentes irresistíveis e universais tais como a transição costumeira das causas aos efeitos e dos efeitos às causas e os princípios variáveis fracos e irregulares como os que acabo de mencionar Os primeiros são o fundamento de todos os nossos pensamentos e ações de tal forma que se eliminados a natureza hu mana imediatamente pereceria e desapareceria Os últimos não são nem inevitáveis à humanidade nem necessários ou sequer úteis para a condução da vida ao contrário observase que só têm lugar em men tes fracas e como se opõem aos outros princípios do costume e do raciocínio podem facilmente ser anulados por um contraste e oposi ção adequados Por essa razão os primeiros são aceitos pela filosofia e os últimos rejeitados A pessoa que conclui que há alguém por per to quando ouve no escuro uma voz articulada raciocina de maneira correta e natural embora tal conclusão derive apenas do costume que fixa e dá mais vida à idéia de uma criatura humana em virtude de sua conjunção usual com a impressão presente Mas a pessoa que sem saber por que é atormentada pelo temor de espectros na escuridão desta também podemos dizer talvez que está raciocinando e racio cinando de uma maneira natural mas neste caso deve ser no mesmo sentido em que dizemos que uma doença é natural porque deriva de causas naturais apesar de ser contrária à saúde que é a situação mais agradável e mais natural do homem 2 As opiniões dos filósofos antigos suas ficções da substância e dos acidentes e seus raciocínios acerca de formas substanciais e qualida des ocultas são como os espectros na escuridão e derivam de princí pios que embora comuns não são nem universais nem inevitáveis na natureza humana A filosofia moderna pretende estar inteiramente li vre desse defeito e resultar exclusivamente dos princípios sólidos permanentes e consistentes da imaginação Devemos agora investigar qual o fundamento de tal pretensão 258 Livro 1 Parte 4 Seção 4 3 O princípio fundamental dessa filosofia é a opinião a respeito das cores sons sabores aromas calor e frio os quais afirma serem ape nas impressões na mente derivadas da operação dos objetos externos e sem qualquer semelhança com as qualidades dos objetos Ao exa minar essa opinião vejo que apenas uma das razões comumente apre sentadas para justificála é satisfatória a saber aquela que se baseia nas variações sofridas por essas impressões mesmo quando o objeto externo aparentemente continua o mesmo Tais variações depen dem de diversas circunstâncias Das diferentes condições de nossa saúde um homem doente sente um sabor desagradável na carne que antes lhe agradava mais Das diferentes compleições e constituições dos homens aquilo que para um parece amargo é doce para outro Da diferença em sua situação e posição externa as cores refletidas pelas nuvens mudam de acordo com a distância dessas nuvens e de acordo com o ângulo que formam com o olho e o corpo luminoso O fogo também comunica a sensação de prazer a uma certa distância e de dor a uma outra Exemplos dessa espécie são muito numerosos e freqüentes 4 A conclusão deles extraída é igualmente a mais satisfatória que se pode imaginar É certo que quando diferentes impressões do mesmo sentido surgem de um objeto nem todas elas podem ter uma quali dade semelhante existente no objeto Porque como o mesmo objeto não pode ser dotado simultaneamente de diferentes qualidades refe rentes ao mesmo sentido e como a mesma qualidade não pode se as semelhar a impressões inteiramente diferentes seguese evidente mente que muitas de nossas impressões não possuem um modelo ou arquétipo externo Ora de efeitos semelhantes presumimos causas semelhantes Admitese que muitas impressões de cor som etc não são mais que existências internas e resultam de causas que de ne nhum modo se assemelham a elas Essas impressões em sua apa rência não são nem um pouco diferentes das outras impressões de cor som etc Concluímos portanto que todas elas têm uma origem semelhante 259 Tratado da natureza humana 5 Uma vez admitido esse princípio todas as outras doutrinas des sa filosofia parecem se seguir facilmente Pois ao retirar sons cores calor e outras qualidades sensíveis da classe de existências contínuas e independentes ficamos reduzidos apenas às chamadas qualidades primárias como as únicas qualidades reais e de que temos uma noção adequada Essas qualidades primárias são a extensão e a solidez com suas diferentes combinações e modificações forma movimento gra vidade e coesão A geração o crescimento o envelhecimento e a cor rupção dos animais e vegetais são tãosomente mudanças na forma e no movimento o mesmo se aplica às operações de todos os corpos uns sobre os outros do fogo da luz da água do ar da terra e de todos os elementos e poderes da natureza Uma forma e um movimento pro duzem outra forma e outro movimento E não resta no universo ma terial nenhum outro princípio ativo ou passivo do qual possamos for mar a idéia mais distante 6 Acredito que se poderiam levantar muitas objeções a esse siste ma No momento porém irei me limitar a apenas uma que conside ro decisiva Afirmo que por meio desse sistema em vez de explicar mos as operações dos objetos externos acabamos aniquilando por completo todos esses objetos e ficamos reduzidos às opiniões que o ceticismo mais extravagante mantém a seu respeito Se cores sons sabores e aromas são somente percepções nada que possamos con ceber possui uma existência real contínua e independente sequer o movimento a extensão e a solidez que são as qualidades primárias em que mais se insiste 7 Comecemos com o exame do movimento É evidente que essa é uma qualidade que não pode de modo algum ser concebida isolada mente sem referência a algum outro objeto A idéia de movimento supõe necessariamente a de um corpo que se move Ora o que é nossa idéia do corpo que se move sem a qual o movimento é incompreen sível Ela deve se reduzir à idéia de extensão ou de solidez conseqüen temente a realidade do movimento depende da realidade dessas ou tras qualidades 260 Livro 1 Parte 4 Seção 4 8 Provei que essa opinião universalmente reconhecida quando se trata do movimento é também verdadeira no que diz respeito à exten são e mostrei que é impossível conceber esta última senão como com posta de partes dotadas de cor ou solidez A idéia de extensão é uma idéia composta mas como não é composta de um número infinito de partes ou idéias inferiores ela tem que afinal se resolver em partes per feitamente simples e indivisíveis Essas partes simples e indivisíveis não sendo idéias de extensão teriam que ser nãoentidades a menos que as concebamos como sendo coloridas ou sólidas A cor está ex cluída de qualquer existência real A realidade de nossa idéia de exten são portanto depende da realidade da idéia de solidez e a primeira não poderá ser legítima se esta última for quimérica Por isso voltemos nos sa atenção para o exame da idéia de solidez 9 A idéia de solidez é a de dois objetos que mesmo impelidos por uma força extrema não conseguem penetrar um no outro manten do ao contrário uma existência separada e distinta A solidez portan to é inteiramente incompreensível de maneira isolada sem a concep ção de alguns corpos sólidos que conservam essa existência separada e distinta Ora que idéia temos desses corpos As idéias de cores sons e outras qualidades secundárias estão excluídas A idéia de mo vimento depende da de extensão e a idéia de extensão da de solidez É impossível portanto que a idéia de solidez possa depender de qual quer uma das duas Isso seria andar em círculos e fazer uma idéia de pender de outra ao mesmo tempo que esta última depende da pri meira Nossa filosofia moderna assim não nos deixa com nenhuma idéia legítima ou satisfatória de solidez e conseqüentemente tam pouco de matéria 10 Todo aquele que compreender esse argumento irá considerálo inteiramente conclusivo mas como ele pode parecer abstruso e intrincado para a generalidade dos leitores peço que me perdoem por tentar tornálo mais evidente exprimindoo de outra maneira Para formar uma idéia de solidez temos de conceber dois corpos pressio nando um ao outro sem se penetrar é impossível chegar a essa idéia 261 Tratado da natureza humana se nos limitamos a um só objeto e mais ainda se não concebemos nenhum Duas nãoentidades não podem se excluir reciprocamente de seus lugares porque não ocupam lugar algum nem podem ser do tadas de nenhuma qualidade Agora pergunto que idéia formamos desses corpos ou objetos a que atribuímos solidez Dizer que os con cebemos meramente como sólidos seria uma regressão ao infinito Afirmar que os representamos como extensos seria reduzir tudo a uma idéia falsa ou então cair em um círculo A extensão tem que necessa riamente ser considerada quer como colorida o que é uma idéia fal sa quer como sólida o que nos traz de volta à primeira questão Po demos fazer a mesma observação a respeito da mobilidade e da forma e de tudo o que foi dito devemos concluir que com a exclusão das cores sons calor e frio da classe de existências externas não sobra nada que possa nos dar uma idéia legítima e consistente de corpo 1 1 Acrescentese a isso que para falar corretamente a solidez ou impenetrabilidade não é senão uma impossibilidade de aniquilação como já observamos9 Por essa razão é ainda mais necessário que formemos alguma idéia distinta daquele objeto cuja aniquilação su pomos impossível Uma impossibilidade de aniquilação não pode existir e jamais podemos conceber que exista por si mesma ela re quer necessariamente algum objeto ou existência real a que possa ser atribuída Ora ainda permanece a dificuldade sobre como formar uma idéia desse objeto ou existência sem recorrer às qualidades secundá rias e sensíveis 12 Tampouco devemos esquecer nesta ocasião nosso método cos tumeiro de examinar as idéias ou seja considerar as impressões de que elas derivam A filosofia moderna afirma que as impressões que penetram pela visão audição olfato ou paladar não se assemelham a nenhum objeto e conseqüentemente a idéia de solidez que se supõe real jamais poderia ser derivada de nenhum desses sentidos Resta o tato portanto como o único sentido capaz de transmitir a impressão 9 Parte 2 Seção 4 262 Livro 1 Parte 4 Seção 4 que dá origem à idéia de solidez e de fato imaginamos naturalmen te que sentimos a solidez dos corpos e precisamos apenas tocar um objeto para perceber essa qualidade Mas esse modo de pensar é mais popular que filosófico como o mostrarão as seguintes reflexões 13 Primeiramente é fácil observar que embora os corpos sejam sen tidos por meio de sua solidez a sensação do tato é algo bem diferente da solidez e não há a menor semelhança entre os dois Um homem com paralisia em uma das mãos adquire uma idéia tão perfeita de im penetrabilidade quando observa essa mão ser sustentada pela mesa como nas ocasiões em que sente a mesma mesa com a outra mão Um objeto que pressiona um de nossos membros encontra uma resistên cia e essa resistência pelo movimento que ocasiona nos nervos e es píritos animais transmite uma certa sensação à mente mas daí não se segue que a sensação o movimento e a resistência sejam de algum modo semelhantes 14 Em segundo lugar as impressões do tato são impressões simples exceto quando consideradas quanto a sua extensão o que não tem per tinência para nosso propósito presente Dessa simplicidade infiro que elas não representam nem a solidez nem qualquer objeto real Pois suponhamos dois casos o de um homem que pressiona com a mão uma pedra ou outro corpo sólido e o de duas pedras que pressionam uma à outra Todos admitirão imediatamente que esses dois casos não são semelhantes sob todos os aspectos pois no primeiro existe em con junção com a solidez um tato ou sensação que não aparece no se gundo Portanto para tornar esses dois casos semelhantes seria preci so eliminar alguma parte da impressão que o homem sente através de sua mão ou órgão da sensação mas como isso é impossível por se tratar de uma impressão simples somos obrigados a eliminar a impressão inteira o que prova que esta não possui nenhum arquétipo ou modelo nos objetos externos Podemos acrescentar ainda que a solidez supõe necessariamente dois corpos juntamente com a contigüidade e o choque e como isso constitui um objeto composto ela jamais po deria ser representada por uma impressão simples Sem mencionar 263 Tratado da natureza humana que embora a solidez continue sempre invariavelmente a mesma as impressões do tato mudam para nós a cada momento o que é uma prova clara de que estas últimas não são representações da primeira 15 Assim há uma oposição direta e total entre nossa razão e nossos sentidos ou mais propriamente falando entre as conclusões que for mamos a partir da causa e efeito e as que nos persuadem da existên cia contínua e independente dos corpos Quando raciocinamos a par tir da causa e efeito concluímos que nem a cor nem o som nem o sabor nem o aroma têm uma existência contínua e independente Quando excluímos essas qualidades sensíveis não resta nada no uni verso que possua tal existência Seção 5 Da imaterialidade da alma 1 Tendo encontrado tantas contradições e dificuldades em todos os sistemas concernentes aos objetos externos bem como na idéia de matéria que imaginávamos ser tão clara e precisa é natural esperar mos encontrar dificuldades e contradições ainda maiores nas hipóte ses acerca de nossas percepções internas e da natureza da mente que tendemos a imaginar muito mais obscuras e incertas Mas quanto a isso estamos enganados O mundo intelectual embora envolto em infinitas obscuridades não é embaraçado por nenhuma dessas con tradições que descobrimos no mundo natural Aquilo que conhecemos a seu respeito concorda consigo mesmo e aquilo que desconhecemos temos de nos conformar em deixar como está 2 É verdade que certos filósofos prometem diminuir nossa ignorân cia mas receio que se prestássemos ouvidos a eles arriscarnosía mos a cair em contradições das quais o assunto em si mesmo está isento Refirome aos filósofos que constroem raciocínios meticulo sos para mostrar que nossas percepções seriam inerentes a uma 264 Livro 1 Parte 4 Seção 5 substância material ou a uma substância imaterial Para pôr um termo nessas infindáveis cavilações de ambos os lados o melhor método que conheço é perguntar a tais filósofos em poucas palavras o que querem dizer com substância e inerência Apenas após terem respondido a essa questão e só então será razoável entrar seriamente na discussão 3 Vimos que era impossível responder a essa questão no caso da matéria e dos corpos Mas o caso da mente além de enfrentar as mes mas dificuldades é ainda sobrecarregado por outras peculiares a esse tema Como toda idéia é derivada de uma impressão precedente se tivéssemos uma idéia da substância de nossas mentes teríamos que ter dela também uma impressão o que é muito difícil senão impos sível de se conceber Pois como poderia uma impressão representar uma substância senão assemelhandose a ela E como poderia uma impressão se assemelhar a uma substância já que segundo essa filo sofia ela não é uma substância e não possui nenhuma das qualida des ou características peculiares de uma substância 4 Mas deixando de lado a questão sobre o que pode e o que não pode ser e substituindoa por esta outra o que realmente existe gostaria que aqueles filósofos que afirmam que possuímos uma idéia da substân cia de nossas mentes nos apontassem a impressão que produz essa idéia e que nos dissessem distintamente como tal impressão opera e de que objeto deriva É ela uma impressão de sensação ou de refle xão É agradável dolorosa ou indiferente Acompanhanos em todos os momentos ou só aparece a intervalos Se a intervalos em que momentos sobretudo aparece e que causas a produzem 5 Se em vez de responder a essas questões alguém quisesse esca par da dificuldade dizendo que uma substância se define como algu ma coisa que existe por si mesma e que essa definição deveria nos satis fazer se alguém o dissesse eu observaria que essa definição convém a tudo que se possa conceber e por isso nunca serviria para distinguir substância de acidente ou a alma de suas percepções Meu raciocínio é o seguinte Tudo que é concebido claramente pode existir e tudo que é concebido claramente de determinada maneira pode existir dessa 265 Tratado da natureza humana mesma maneira Esse é um princípio que já admitimos Mais ainda tudo que é diferente é distinguível e tudo que é distinguível é sepa rável pela imaginação Esse é outro princípio Desses dois princípios concluo que uma vez que todas as nossas percepções são diferentes umas das outras e de tudo mais no universo também elas são distin tas e separáveis e podem ser consideradas existindo separadamente e podem de fato existir separadamente sem necessitar de nada mais para sustentar sua existência São portanto substâncias até onde a definição acima explica o que é uma substância 6 Assim nem considerando a origem das idéias nem por meio de uma definição somos capazes de chegar a uma noção satisfatória de subs tância Isso me parece uma razão suficiente para abandonarmos por completo a discussão acerca da materialidade ou imaterialidade da alma e me faz condenar inteiramente a própria questão Não possuí mos idéia perfeita de nada senão de percepções Uma substância é absolutamente diferente de uma percepção Portanto não possuímos nenhuma idéia de uma substância A inerência a alguma coisa é su postamente necessária para sustentar a existência de nossas percep ções Nada parece necessário para sustentar a existência de uma per cepção Portanto não possuímos idéia alguma de inerência Como seria possível então responder à questão se as percepções são inerentes a uma substância material ou imaterial quando nem mesmo compreen demos o sentido da questão 7 Há um argumento comumente empregado a favor da imateriali dade da alma que me parece notável Tudo que é extenso é composto de partes e tudo que é composto de partes é divisível senão na reali dade ao menos na imaginação Mas é impossível haver uma conjunção entre uma coisa divisível e um pensamento ou uma percepção que é um ser inteiramente inseparável e indivisível Pois supondo que houvesse tal conjunção o pensamento indivisível existiria à esquerda ou à direita desse corpo extenso e divisível Na superfície ou no meio Atrás ou na frente dele Se o pensamento existir em conjunção com a extensão ele tem de estar em algum lugar dentro de suas dimensões Se existir den 266 Livro 1 Parte 4 Seção 5 tro de suas dimensões tem de estar ou numa parte em particular e então essa parte em particular é indivisível e a percepção existe em con junção apenas com ela não com a extensão ou se o pensamento está em todas as partes ele também tem de ser extenso separável e divisí vel tal como o corpo o que é inteiramente absurdo e contraditório Pois quem poderia conceber uma paixão com uma jarda de comprimento um pé de largura e uma polegada de espessura O pensamento e a ex tensão portanto são qualidades absolutamente incompatíveis e jamais poderiam se incorporar juntas em um objeto único 8 Esse argumento não afeta a questão concernente à substância da alma mas apenas aquela concernente à sua conjunção local com a ma téria Por isso talvez não seja fora de propósito considerar quais ob jetos em geral são ou não suscetíveis de uma conjunção local Essa é uma questão curiosa e pode nos levar a algumas descobertas de gran de importância 9 A primeira noção de espaço e extensão é derivada exclusivamen te dos sentidos da visão e do tato Apenas as coisas coloridas ou tan gíveis possuem partes dispostas de maneira a transmitir tal idéia Quando diminuímos ou aumentamos um sabor não o fazemos da mesma maneira pela qual diminuímos ou aumentamos um objeto vi sível E quando diversos sons atingem nossa audição ao mesmo tem po somente o costume e a reflexão nos fazem formar uma idéia dos graus de distância e contigüidade dos corpos de que esses sons deri vam Tudo aquilo cuja existência ocupa um lugar tem de ser ou bem extenso ou bem um ponto matemático sem partes nem composição Aquilo que é extenso tem de ter uma forma particular como por exem plo quadrada redonda triangular e nenhuma dessas convém a um de sejo nem aliás a qualquer impressão ou idéia exceto as desses dois sentidos acima mencionados Tampouco se deve considerar um dese jo embora indivisível como um ponto matemático Pois nesse caso seria possível pela adição de outros formar dois três quatro desejos dispostos de tal maneira que tivessem um comprimento uma largu ra e uma espessura determinados o que evidentemente é absurdo 267 Tratado da natureza humana 10 Assim não será surpreendente se eu enunciar uma máxima que é condenada por diversos metafísicos e considerada contrária aos prin cípios mais certos da razão humana Essa máxima é que um objeto pode existir sem entretanto estar em nenhum lugar e afirmo que não apenas isso é possível mas que a maior parte dos seres existem e têm de existir dessa maneira Podese dizer que um objeto não está em nenhum lu gar quando suas partes não estão situadas umas em relação às outras de modo a formar uma figura ou uma quantidade nem o todo está situado em relação a outros corpos de modo a responder a nossas noções de contigüidade ou distância Ora é evidente que é esse o caso de todas as nossas percepções e objetos exceto os da visão e do tato Uma reflexão moral não pode estar situada à direita ou à esquerda de uma paixão e um aroma ou um som não pode ter uma forma circular ou quadrada Esses objetos e percepções longe de demandarem um lu gar particular são absolutamente incompatíveis com qualquer lugar e nem a imaginação é capaz de lhos atribuir Quanto a se dizer que é ab surdo supor que não estão em nenhum lugar podemos observar que se as paixões e sentimentos aparecessem à percepção como tendo um lugar particular a idéia de extensão poderia ser derivada deles tanto quanto da visão e do tato o que contradiz o que já estabelecemos E se aparecem como não tendo nenhum lugar particular é possível que existam da mesma maneira já que tudo que concebemos é possível 1 1 Não será necessário provar agora que essas percepções simples e que não existem em nenhum lugar são incapazes de ter uma conjun ção espacial com a matéria ou com os corpos extensos e divisíveis pois só é possível fundar uma relação10 sobre uma qualidade comum Talvez valha mais a pena observar que essa questão da conjunção lo cal dos objetos não ocorre somente nos debates metafísicos a respeito Como o sentido do verbo appear me parece aqui mais discutível reproduzo a seguir o trecho em inglês if the passions and sentiments appear to the perception to have any particular place the idea of extension might be derived from them If they appear not to have any particular place they may possibly exist in the sarne manner Cf também nossa nota à p75 acima NT 10 Parte 1 Seção 5 268 Livro 1 Parte 4 Seção 5 da natureza da alma até mesmo na vida comum temos a todo momen to ocasião de observála Assim supondo que vejamos um figo sobre uma das extremidades de uma mesa e uma azeitona sobre a outra é evidente que ao formarmos as idéias complexas dessas substâncias uma das mais óbvias é a de seus diferentes sabores e é igualmente evidente que incorporamos e juntamos essas qualidades àquelas que são coloridas e tangíveis Supomos que o sabor amargo de uma e o doce da outra estão no próprio corpo visível e que estão separados um do outro por todo o comprimento da mesa Essa é uma ilusão tão notável e tão natural que talvez seja apropriado considerar os princípi os de que resulta 12 Embora um objeto extenso não possa ter uma conjunção espacial com outro objeto que existe sem lugar ou extensão os dois são sus cetíveis de muitas outras relações Assim o sabor e o aroma de uma fruta são inseparáveis de suas outras qualidades de cor e tangibilidade E não importa qual dessas qualidades é a causa ou o efeito o certo é que são sempre coexistentes e não são apenas coexistentes em ge ral mas também contemporâneas em seu aparecimento na mente É pela aplicação do corpo extenso a nossos sentidos que percebemos seu sabor e aroma particulares Portanto essas relações entre o objeto extenso e a qualidade que existe sem possuir um lugar particular a saber as relações de causalidade e contigüidade no momento de sua apari ção devem ter tal influência sobre a mente que quando um deles apa rece ela imediatamente dirige seu pensamento para a concepção do outro Mas isso não é tudo Nós não apenas dirigimos nosso pensa mento de um ao outro em virtude de sua relação mas além disso ten tamos lhes atribuir uma nova relação a de uma conjunção espacial para tornar a transição mais fácil e natural Porque a natureza humana apre senta essa qualidade que terei ocasião de observar com freqüência e que explicarei de maneira mais completa em seu devido lugar quando determinados objetos estão unidos por uma relação qualquer temos uma forte propensão a acrescentar a eles uma nova relação a fim de completar a união Quando ordenamos os corpos sempre colocamos 269 Tratado da natureza humana aqueles que são semelhantes em contigüidade uns com os outros ou ao menos em pontos de vista equivalentes Ora por que o faríamos senão porque sentimos uma satisfação em juntar a relação de conti güidade à de semelhança ou a semelhança de situação à de qualida des Já observamos11 os efeitos dessa propensão na semelhança que tão prontamente supomos existir entre impressões particulares e suas causas externas Mas seu efeito mais evidente se mostra no exemplo presente em que partindo de relações de causalidade e de contigüi dade temporal entre dois objetos fantasiamos também a de uma con junção no espaço com o propósito de fortalecer a conexão 13 No entanto quaisquer que sejam as noções confusas que possa mos formar de uma união espacial entre um corpo extenso como um figo e seu sabor particular é certo que após uma reflexão observa remos nessa união algo inteiramente ininteligível e contraditório Pois se fizéssemos a nós mesmos esta pergunta óbvia a saber se o sabor que concebemos como estando contido dentro do perímetro do corpo está em todas as partes desse corpo ou em apenas uma logo nos sen tiríamos perdidos e perceberíamos ser impossível encontrar uma res posta satisfatória Não podemos responder que está apenas em uma parte pois a experiência nos convence de que todas as partes têm o mesmo sabor Tampouco podemos responder que existe em todas as partes pois nesse caso teríamos de supor que possui figura e exten são o que é absurdo e incompreensível Vemonos aqui portanto in fluenciados por dois princípios diretamente contrários a saber a incli nação de nossa fantasia que nos determina a incorporar o sabor no objeto extenso e nossa razão que nos mostra a impossibilidade de tal união Divididos entre esses princípios opostos não renunciamos nem a um nem ao outro em vez disso envolvemos o assunto em tal confu são e obscuridade que não mais percebemos a oposição Supomos que o sabor existe dentro do perímetro do corpo mas de maneira a preen 1 1 Finai da Seção 2 270 Livro 1 Parte 4 Seção 5 cher o todo sem ser extenso e que existe inteiro em cada parte sem se dividir Em resumo em nosso modo mais familiar de pensar utili zamos aquele princípio escolástico que nos parece tão chocante quan do apresentado cruamente totum in tato totum in qualibet parte que é o mesmo que dizer que uma coisa está num certo lugar e en tretanto não está lá 14 Todo esse absurdo decorre do fato de tentarmos conceder um lu gar a algo que é inteiramente incapaz de ocupar um lugar e essa ten tativa por sua vez decorre de nossa inclinação para completar uma união fundada na causalidade e na contigüidade temporal atribuin do aos objetos uma conjunção no espaço Mas se a razão alguma vez tiver força suficiente para superar o preconceito é certo que ela deve prevalecer neste caso Pois só temos uma escolha ou supor que alguns seres existem sem estar em nenhum lugar ou supor que eles possuem figura e extensão ou ainda que quando se incorporam em objetos extensos o todo está no todo e o todo está em cada parte O absurdo das duas últimas suposições é uma prova suficiente da veracidade da primeira E não há uma quarta alternativa Pois quanto à suposição de que esses seres existem ao modo dos pontos matemáticos ela se re duz à segunda opinião supõe que diversas paixões podem estar dis postas de maneira a formar uma figura circular e que um certo nú mero de aromas em conjunção com um certo número de sons podem formar um corpo de doze polegadas cúbicas algo cuja mera menção soa ridícula 15 Segundo esse modo de ver as coisas não podemos deixar de con denar os materialistas que juntam todo pensamento com a extensão Entretanto um pouco de reflexão nos dará uma razão equivalente para condenar seus antagonistas que juntam todo pensamento com uma substância simples e indivisível A filosofia mais comum nos informa que a mente não pode conhecer nenhum objeto externo de maneira imediata sem a interposição de uma imagem ou percepção Aquela O todo está no todo e o todo está em cada parte NT 2 71 Tratado da natureza humana mesa que neste exato momento aparece diante de mim é apenas uma percepção e todas as suas qualidades são qualidades de uma percep ção Ora a mais evidente dentre todas essas qualidades é a extensão A percepção se compõe de partes Essas partes estão situadas de modo a nos fornecer a noção de distância e contigüidade de comprimento largura e espessura O limite dessas três dimensões é o que chama mos de figura Essa figura é móvel separável e divisível Mobilidade e separabilidade são as propriedades distintivas dos objetos externos E para acabar de vez com todas as disputas a idéia mesma de exten são é copiada tãosó de uma impressão e em conseqüência disso tem de corresponder perfeitamente a ela Dizer que a idéia de extensão cor responde a alguma coisa é dizer que ela é extensa 1 6 Agora o livrepensador j á pode também triunfar Tendo visto que há impressões e idéias realmente extensas ele pode perguntar a seus antagonistas como é possível que um sujeito simples e indivisível e uma percepção extensa se incorporem Todos os argumentos utiliza dos pelos teólogos podem agora se voltar contra estes O sujeito indivisível ou se quiserem a substância imaterial está à esquerda ou à direita da percepção Está nesta parte em particular ou naquela outra Estará em todas as partes sem ser extenso Ou estará inteiro em cada uma das partes sem abandonar as restantes É impossível dar a essas perguntas uma resposta que não seja ela própria absurda e que não explique ao mesmo tempo a união de nossas percepções indi visíveis com uma substância extensa 17 Isso nos dá a oportunidade de considerar novamente a questão acerca da substância da alma Embora eu tenha condenado essa ques tão como absolutamente ininteligível não posso deixar de propor mais algumas reflexões a esse respeito Afirmo que a doutrina da ima terialidade simplicidade e indivisibilidade de uma substância pensan te é um verdadeiro ateísmo e serve para justificar todos aqueles sen timentos pelos quais Spinoza é tão universalmente malvisto Espero tirar pelo menos um proveito desse assunto quando perceberem que Livro 1 Parte 4 Seção 5 seus arrazoados podem facilmente se voltar contra eles meus adversá rios não terão mais nenhum pretexto para difamar a presente doutrina 1 8 O princípio fundamental do ateísmo de Spinoza é a doutrina da simplicidade do universo e a unidade daquela substância a que ele supõe que tanto o pensamento como a matéria são inerentes Há ape nas uma substância no mundo diz ele e essa substância é perfeita mente simples e indivisível existindo em todos os lugares sem ne nhuma presença local Tudo que descobrimos externamente pela sensação tudo que sentimos internamente pela reflexão tudo isso não passa de modificações desse ser único simples e necessariamente existente e não possui existência separada ou distinta Todas as pai xões da alma todas as configurações da matéria por mais diferentes e diversas são inerentes à mesma substância preservando em si mes mas seus caracteres distintivos sem comunicálos àquele sujeito a que são inerentes O mesmo substratum se posso me exprimir assim sus tenta as mais diferentes modificações sem conter nenhuma diferen ça dentro de si mesmo e altera essas modificações sem sofrer qual quer alteração Nem o tempo nem o lugar nem toda a diversidade da natureza são capazes de produzir qualquer composição ou mudança em sua perfeita simplicidade e identidade 19 Acredito que essa breve exposição dos princípios desse famoso ateu serão suficientes para nosso propósito presente e que mesmo sem penetrar mais profundamente nessas regiões sombrias e obscuras serei capaz de mostrar que essa hipótese abominável é quase igual à da imaterialidade da alma que se fez tão popular Para tornar isso evidente lembremos12 que como toda idéia é derivada de uma percepção anterior é impossível que nossa idéia de uma percepção possa representar algo especificamente diferente daquilo que é re presentado pela idéia de um objeto ou existência externa Qualquer diferença que possamos supor entre elas é incompreensível para nós somos obrigados a conceber um objeto externo seja como uma mera 12 Parte 2 Seção 6 2 73 Tratado da natureza humana relação sem um correlato seja como a mesma coisa que uma percep ção ou impressão 20 A conseqüência que disso extrairei pode à primeira vista pare cer um mero sofisma mas o menor exame bastará para mostrar que é consistente e satisfatória Digo então que como podemos supor mas nunca conceber uma diferença específica entre um objeto e uma im pressão jamais poderemos saber com certeza se as conclusões que formamos a respeito da conexão ou incompatibilidade entre impres sões pode ser aplicada aos objetos em contrapartida qualquer que seja a conclusão que a esse respeito formemos acerca dos objetos ela será com toda certeza aplicável às impressões A razão disso não é difícil de se entender Como se supõe que um objeto é diferente de uma im pressão não podemos ter certeza de que a circunstância sobre a qual fundamos nosso raciocínio é comum a ambos supondo que formemos esse raciocínio partindo da impressão Ou seja é sempre possível que o objeto seja diferente da impressão quanto a essa circunstância par ticular Mas quando formamos nosso raciocínio com base primeira mente no objeto não há dúvida de que esse mesmo raciocínio deve se estender à impressão Isso porque a qualidade do objeto sobre a qual fundamos o argumento tem de ser ao menos concebida pela mente e não poderia ser concebida se não fosse comum a uma impressão já que não temos nenhuma idéia que não seja derivada dessa origem Assim podemos estabelecer como uma máxima certa que nenhum princípio jamais nos permitiria descobrir uma conexão ou incompa tibilidade entre objetos que não se estendesse também às impressões a menos que realizemos uma espécie irregular13 de raciocínio par tindo da experiência A proposição inversa entretanto pode não ser igualmente verdadeira a saber que todas as relações que podemos descobrir entre as impressões são comuns aos objetos 21 Apliquemos essa máxima ao caso presente Apresentamse dois sistemas diferentes de seres aos quais estou supondo ser necessário 13 Tal como o da Seção 2 baseado na coerência de nossas percepções 274 Livro 1 Parte 4 Seção 5 atribuir uma substância ou base de inerência Observo primeiro o universo dos objetos ou corpos o Sol a Lua e as estrelas a Terra os mares plantas animais homens navios casas e outras produções da arte ou da natureza Aqui aparece Spinoza dizendome que todas es sas coisas são apenas modificações cujo sujeito de inerência é simples sem composição e indivisível Em seguida considero o outro sistema de seres o universo do pensamento ou seja minhas impressões e idéias Ali observo um outro Sol uma outra Lua outras estrelas ou tra Terra e outros mares cobertos e habitados por plantas e animais cidades casas montanhas rios e em suma todas as coisas que pos so descobrir ou conceber no primeiro sistema Quando pergunto so bre essas coisas os teólogos se apresentam e me dizem que elas tam bém são modificações e modificações de uma substância única simples sem composição e indivisível E imediatamente sou ensur decido por centenas de vozes que tratam a primeira hipótese com execração e desprezo e a segunda com aplauso e veneração Dirijo minha atenção para essas hipóteses para descobrir qual a razão de ta manha parcialidade e vejo que ambas têm o mesmo defeito são ininteligíveis e até onde podemos compreendêlas são tão semelhan tes que é impossível descobrir em uma qualquer absurdo que não se aplique também à outra Todas as idéias que temos de uma qualida de em um objeto coincidem com uma qualidade em uma impressão e podem representála isso porque todas as nossas idéias são deriva das de nossas impressões Portanto jamais podemos encontrar uma incompatibilidade entre um objeto extenso enquanto modificação e uma essência simples e sem composição enquanto sua substância a menos que essa incompatibilidade tenha lugar igualmente entre a per cepção ou impressão desse objeto extenso e a mesma essência sem composição Toda idéia de uma qualidade de um objeto passa através de uma impressão e portanto toda relação perceptível seja de conexão seja de incompatibilidade tem de ser comum a objetos e impressões 22 Esse argumento considerado de maneira geral parece evidente e isento de qualquer dúvida e contradição Entretanto para tornálo 2 75 Tratado da natureza humana mais claro e compreensível examinemolo detalhadamente e vejamos se todos os absurdos que foram encontrados no sistema de Spinoza não podem ser encontrados também no dos teólogos14 23 Em primeiro lugar afirmouse contra Spinoza conforme à maneira escolástica de falar mais que de pensar que um modo por não ser uma existência distinta ou separada tem de ser exatamente o mesmo que sua substância e que em conseqüência disso a extensão do univer so deve ser de certa forma identificada com essa essência simples e sem composição a que o universo supostamente é inerente Mas isso podese dizer é absolutamente impossível e inconcebível a menos que a substância indivisível se expanda até corresponder à extensão ou que a extensão se contraia até se ajustar à substância indivisível Esse argumento parece correto até onde podemos compreendêlo E é claro que basta trocar os termos para aplicar o mesmo argumento a nossas percepções extensas e à essência simples da alma Pois as idéias dos objetos e as percepções são iguais sob to dos os aspectos apenas acompanhadas da suposição de uma diferen ça desconhecida e incompreensível 24 Em segundo lugar afirmouse que não temos nenhuma idéia de substância que não seja aplicável também à matéria ou nenhuma idéia de uma substância distinta que não seja aplicável a cada porção dis tinta de matéria A matéria portanto não é um modo mas uma subs tância e cada parte da matéria é não um modo distinto mas uma substância distinta Já provei que não possuímos uma idéia perfeita de substância mas que se a tomarmos como alguma coisa que pode exis tir por si mesma é evidente que cada percepção seria uma substância e cada parte distinta de uma percepção uma substância distinta Con seqüentemente as duas hipóteses enfrentam as mesmas dificuldades sob esse aspecto 25 Em terceiro lugar contra o sistema de uma substância simples no universo objetouse que essa substância sendo o suporte ou substrato 14 Ver o dicionário de Bayle artigo sobre Spinoza 2 76 Livro 1 Parte 4 Seção 5 de todas as coisas tem de ser exatamente no mesmo instante mo dificada em formas contrárias e incompatíveis As formas redonda e quadrada são incompatíveis na mesma substância ao mesmo tempo Como é possível então que a mesma substância possa simultanea mente ser modificada naquela mesa quadrada e nesta redonda Faço a mesma pergunta a respeito das impressões dessas mesas e cons tato que a resposta é igualmente insatisfatória nos dois casos 26 Parece portanto que para qualquer lado que nos voltemos encon tramos as mesmas dificuldades e não conseguimos avançar um só pas so no estabelecimento da simplicidade e da imaterialidade da alma sem preparar o terreno para um ateísmo perigoso e irreparável O mesmo aconteceria se em vez de chamar o pensamento de uma modificação da alma atribuíssemos a ele o nome mais antigo porém mais em voga de ação Por ação entendemos quase o mesmo que aquilo que se costuma chamar de modo abstrato ou seja alguma coisa que pro priamente falando não é nem distinguível nem separável de sua subs tância sendo concebida apenas por uma distinção de razão ou uma abstração Mas nada se ganha com essa substituição do termo modi ficação pelo termo ação Assim não nos livramos de uma dificuldade sequer o que ficará claro pelas duas reflexões seguintes 27 Em primeiro lugar observo que a palavra ação de acordo com essa explicação nunca poderia ser aplicada corretamente a uma percep ção sendo derivada de uma mente ou substância pensante Nossas per cepções são todas realmente diferentes separáveis e distinguíveis umas das outras e de tudo o mais que possamos imaginar e portanto é impossível conceber como elas poderiam ser a ação ou o modo abstra to de uma substância O exemplo do movimento que costuma ser utili zado para se mostrar de que maneira a percepção enquanto ação depen de de sua substância confunde mais que nos instrui O movimento ao que parece não acarreta nenhuma mudança real ou essencial nos corpos apenas alterando sua relação com outros objetos Mas entre uma pessoa que passeia de manhã pelo jardim com uma companhia agradável e uma pessoa à tarde presa em um calabouço e cheia de 277 Tratado da natureza humana terror desespero e ressentimento parece haver uma diferença radi cal e de um tipo bem distinto da que se produz em um corpo em vir tude de uma mudança de posição Assim como da distinção e sepa rabilidade das idéias dos objetos externos concluímos que esses objetos têm uma existência separada uns dos outros assim também quando tomamos essas próprias idéias como nossos objetos devemos extrair a mesma conclusão a respeito delas de acordo com o raciocí nio anterior Ao menos devese reconhecer que como não temos ne nhuma idéia da substância da alma é impossível dizer como ela pode admitir tais diferenças e mesmo contrariedades em suas percepções sem sofrer uma mudança fundamental conseqüentemente nunca poderemos dizer em que sentido as percepções são ações dessa subs tância Portanto o emprego da palavra ação em lugar de modificação quando não se faz acompanhar de nenhum sentido adicional não acrescenta nada a nosso conhecimento e não traz nenhum proveito para a doutrina da imaterialidade da alma 28 Em segundo lugar acrescento que se traz algum proveito para essa causa deve trazer igual proveito para a causa do ateísmo Pois será que nossos teólogos pretendem monopolizar a palavra ação e será que os ateus não podem também dela se apossar afirmando que as plan tas animais homens etc não são mais que ações particulares de uma única substância simples e universal que se exerce por uma necessi dade cega e absoluta Direis que isso é inteiramente absurdo Reco nheço que é ininteligível mas ao mesmo tempo afirmo em conformi dade com os princípios anteriormente mencionados que é impossível descobrir na suposição de que os diversos objetos da natureza são ações de uma única substância simples qualquer absurdo que não se aplique também a uma suposição semelhante acerca das impressões e idéias 29 Dessas hipóteses sobre a substância e a conjunção local de nossas per cepções podemos passar a uma outra que é mais inteligível que a pri meira e mais importante que a segunda a saber a hipótese sobre a cau sa de nossas percepções Costumase dizer nas escolas que a matéria 278 Livro 1 Parte 4 Seção 5 e o movimento por mais que se transformem são sempre matéria e movimento e produzem apenas uma diferença na posição e situação dos objetos Podeis dividir um corpo tantas vezes quantas quiserdes ele ainda será um corpo Podeis atribuir a ele qualquer figura o resul tado será sempre uma figura ou relação entre as partes Podeis movê lo de todas as maneiras encontrareis sempre um movimento ou mu dança de relação É absurdo imaginar que o movimento circular por exemplo seja unicamente um movimento circular ao passo que o movimento em outra direção como o elíptico seja também uma pai xão ou uma reflexão moral que o choque de duas partículas esféricas possa se tornar uma sensação de dor e que o encontro de duas partí culas triangulares produza um prazer Ora como esses diferentes choques transformações e combinações são as únicas mudanças de que a matéria é suscetível e como nunca poderiam nos proporcionar uma idéia de pensamento ou percepção concluise que é impossível que o pensamento possa ser causado pela matéria 30 Poucos foram capazes de resistir à aparente evidência desse argu mento entretanto nada no mundo é mais fácil que refutálo Basta nos refletir sobre o que já provamos detalhadamente a saber que ja mais somos sensíveis a nenhuma conexão entre causas e efeitos e que é apenas por nossa experiência de sua conjunção constante que pode mos alcançar um conhecimento dessa relação Ora como todos os objetos que não são contrários são suscetíveis de uma conjunção constante e como nenhum objeto real é contrário a outro 15 inferi des ses princípios que considerandose a questão a priori qualquer coisa pode produzir qualquer coisa e que jamais descobriremos uma razão pela qual um objeto qualquer pode ou não ser a causa de outro por maior ou menor que seja a semelhança entre eles Isso evidentemente destrói o raciocínio anterior a respeito da causa do pensamento ou da percepção Pois embora pareça não haver qualquer tipo de conexão entre movimento e pensamento o que se passa aqui é o mesmo que com to 15 Parte 3 Seção 1 5 2 79 Tratado da natureza humana das as outras causas e efeitos Colocai em uma das extremidades de uma alavanca um corpo pesando uma libra e na outra um outro cor po de mesmo peso nunca encontrareis nesses corpos nenhum prin cípio de movimento que dependa mais de suas distâncias em relação ao centro que do pensamento e da percepção Se pretendeis portan to provar a priori que uma tal posição dos corpos nunca poderá cau sar um pensamento porque de qualquer lado que a consideremos teremos somente uma posição de corpos deveis concluir pelo mes mo raciocínio que nunca poderá produzir movimento pois não existe uma conexão mais aparente em um caso que no outro No entanto esta última conclusão é evidentemente contrária à experi ência mais ainda é possível termos uma experiência semelhante nas operações da mente em que percebamos uma conjunção constan te entre pensamento e movimento Por isso vosso raciocínio é um tanto precipitado quando concluís considerando simplesmente as idéias que é impossível que o movimento jamais possa produzir o pensamento ou que uma posição diferente das partes possa dar ori gem a uma paixão ou reflexão diferente Melhor ainda não é apenas possível que tenhamos tal experiência é certo que a temos Pois todos podem perceber que as diferentes disposições de seus corpos mudam seus pensamentos e sentimentos E se acaso se disser que isso depende da união da alma e do corpo responderei que devemos separar a ques tão acerca da substância da mente daquela acerca da causa de seu pen samento Limitandonos a esta última questão descobrimos pela com paração entre suas idéias que pensamento e movimento são duas coisas diferentes e pela experiência que estão constantemente uni dos Sendo estas as únicas circunstâncias que entram na idéia de cau sa e efeito quando aplicada às operações da matéria podemos concluir com certeza que o movimento pode e de fato é a causa do pensamento e da percepção 3 1 Parece que nos resta assim uma única alternativa ou afirmar que uma coisa só pode ser causa de outra quando a mente é capaz de per ceber a conexão em sua idéia desses objetos ou sustentar que todos 280 Livro 1 Parte 4 Seção 5 os objetos que encontramos em conjunção constante devem por esse motivo ser considerados causas e efeitos Se escolhermos a primei ra possibilidade as conseqüências serão as seguintes Primeiramente na realidade afirmamos que não existe no universo algo como uma causa ou princípio produtivo nem mesmo Deus já que nossa idéia desse ser supremo é derivada de impressões particulares nenhuma das quais contém qualquer eficácia nem parece ter conexão com ne nhuma outra existência Quanto à objeção de que a conexão entre a idéia de um ser infinitamente poderoso e a de um efeito qualquer que seja objeto de sua vontade any effect which he wills é necessária e ine vitável respondo que não temos nenhuma idéia de um ser dotado de qualquer poder quanto menos de um ser dotado de poder infinito Se quisermos mudar nosso modo de falar porém o que podemos fazer é definir o poder pela conexão e então ao dizer que a idéia de um ser infinitamente poderoso está conectada com a de todo efeito que seja objeto de sua vontade na realidade não estamos fazendo mais que afir mar que um ser cuja volição está conectada com todo efeito está co nectado com todo efeito o que é uma proposição tautológica que não nos revela nada sobre a natureza desse poder ou conexão Mas em se gundo lugar supor que Deus seja o grande princípio eficaz que supre a deficiência de todas as causas nos levaria às mais crassas impiedades e absurdos Porque a razão que nos leva a recorrer a ele nas operações naturais e a afirmar que a matéria por si mesma não é capaz de co municar movimento ou de produzir pensamento é a inexistência de uma conexão aparente entre esses objetos e por essa mesma razão devemos reconhecer que Deus é o autor de todas as nossas volições e percepções já que elas tampouco possuem uma conexão aparente nem umas com as outras nem com a suposta mas desconhecida substância da alma Sabemos que diversos filósofos16 sustentaram esse poder ativo do ser supremo no que se refere a todas as ações da mente exceto a volição ou antes uma parte insignificante da volição 16 Como o Padre Malebranche e outros cartesianos 281 Tratado da natureza humana embora seja fácil perceber que essa exceção é uma mera desculpa para evitar as perigosas conseqüências dessa doutrina Se só aquilo que tem um poder aparente é ativo em nenhum caso o pensamento pode ser mais ativo que a matéria e se essa inatividade nos obriga a recor rer a uma divindade o ser supremo é a verdadeira causa de todas as nossas ações tanto as más como as boas as viciosas como as virtuosas 32 Assim ficamos necessariamente reduzidos à outra possibilidade que todos os objetos que encontramos em conjunção constante de vem apenas por esse motivo ser vistos como causas e efeitos Ora como todos os objetos que não são contrários são suscetíveis de uma conjunção constante e como nenhum objeto real é contrário a ou tro seguese que tanto quanto podemos determinar pelas meras idéias qualquer coisa pode ser a causa ou o efeito de qualquer coisa o que evidentemente dá a vantagem aos materialistas sobre seus an tagonistas 33 De tudo o que foi dito eis a conclusão final a questão acerca da substância da alma é absolutamente ininteligível Nem todas as nos sas percepções são suscetíveis de uma união local com o que é extenso ou com o que é inextenso pois algumas delas são extensas e outras inextensas E como a conjunção constante entre os objetos constitui a essência mesma da causa e efeito a matéria e o movimento podem em muitas ocasiões ser considerados as causas do pensamento até onde podemos ter alguma noção dessa relação 34 Tratase certamente de uma espécie de desonra para a filosofia cuja autoridade soberana deveria ser universalmente reconhecida obrigála a estar sempre pedindo desculpas por suas conclusões e se justificando perante todas as artes e ciências particulares que possam se sentir ofendidas por ela Isso nos faz pensar em um rei acusado de alta traição contra seus súditos Existe apenas uma ocasião em que a filosofia considera ser necessário e mesmo honroso justificarse quando a religião parece ter sido ofendida por menos que seja pois os direitos da religião são tão caros à filosofia quanto os seus próprios e de fato são os mesmos Portanto se alguém imagina que os argu 282 Livro 1 Parte 4 Seção 6 mentos anteriores representam algum perigo para a religião espe ro que a justificativa a seguir desfaça suas apreensões 35 A mente humana é incapaz de conceber um fundamento para qualquer conclusão a priori sobre as operações ou sobre a duração de um objeto Podemos imaginar acerca de qualquer objeto que ele se torna inteiramente inativo ou que é aniquilado em um instante E tratase de um princípio evidente que tudo que podemos imaginar é pos sível Ora isso é tão verdadeiro no que diz respeito à matéria quan to no que diz respeito ao espírito a uma substância extensa e com posta quanto a uma substância simples e inextensa Em ambos os casos os argumentos metafísicos a favor da imortalidade da alma são igualmente inconclusivos e em ambos os casos os argumentos mo rais e os derivados da analogia com fatos naturais são igualmente for tes e convincentes Se portanto minha filosofia não acrescenta nada aos argumentos favoráveis à religião tenho ao menos a satisfação de pensar que não lhes retira nada e que tudo permanece precisamen te como antes Seção 6 Da identidade pessoal 1 Há filósofos que imaginam estarmos em todos os momentos in timamente conscientes daquilo que denominamos nosso EU our SELF que sentimos sua existência e a continuidade de sua existên cia e que estamos certos de sua perfeita identidade e simplicidade com uma evidência que ultrapassa a de uma demonstração A sensa ção mais forte a paixão mais violenta dizem eles ao invés de nos dis trair dessa visão fixamna de maneira ainda mais intensa e por meio da dor ou do prazer que produzem levamnos a considerar a influência que exercem sobre o eu Tentar fornecer uma prova desse eu seria en fraquecer sua evidência pois nenhuma prova poderia ser derivada de um fato de que estamos tão intimamente conscientes e não há nada de que possamos estar certos se duvidarmos disso 283 Tratado da natureza humana 2 Lamentavelmente todas essas asserções positivas contradizem essa própria experiência que é invocada a seu favor e não possuímos nenhuma idéia de eu da maneira aqui descrita Pois de que impressão poderia ser derivada essa idéia É impossível responder a essa pergun ta sem produzir uma contradição e um absurdo manifestos e entre tanto se queremos que a idéia de eu seja clara e inteligível precisa mos necessariamente encontrar uma resposta para ela Toda idéia real deve sempre ser originada de uma impressão Mas o eu ou pessoa não é uma impressão e sim aquilo a que nossas diversas impressões e idéias supostamente se referem Se alguma impressão dá origem à idéia de eu essa impressão tem de continuar invariavelmente a mesma ao longo de todo o curso de nossas vidas pois é dessa maneira que o eu supostamente existe Mas não há qualquer impressão constante e in variável Dor e prazer tristeza e alegria paixões e sensações sucedem se umas às outras e nunca existem todas ao mesmo tempo Portan to a idéia de eu não pode ser derivada de nenhuma dessas impressões ou de nenhuma outra Conseqüentemente não existe tal idéia 3 Além disso segundo essa hipótese o que deve acontecer com todas as nossas percepções particulares Afinal elas são todas dife rentes distinguíveis e separáveis entre si podem ser consideradas separadamente e podem existir separadamente sem necessitar de algo que sustente sua existência De que maneira portanto perten ceriam ao eu e como estariam conectadas com ele De minha parte quando penetro mais intimamente naquilo que denomino meu eu sem pre deparo com uma ou outra percepção particular de calor ou frio luz ou sombra amor ou ódio dor ou prazer Nunca apreendo a mim mesmo em momento algum sem uma percepção e nunca consigo ob servar nada que não seja uma percepção Quando minhas percepções são suprimidas por algum tempo como ocorre no sono profundo du rante todo esse tempo fico insensível a mim mesmo e podese dizer ver dadeiramente que não existo E se a morte suprimisse todas as minhas percepções se após a dissolução de meu corpo eu não pudesse mais pensar sentir ver amar ou odiar eu estaria inteiramente aniquilado 284 Livro 1 Parte 4 Seção 6 pois não posso conceber o que mais seria preciso para fazer de mim um perfeito nada Se após uma reflexão séria e livre de preconceitos ainda houver alguém que pense possuir uma noção diferente de si mesmo confesso que não posso mais raciocinar com ele Posso ape nas concederlhe que talvez esteja certo tanto quanto eu e que somos essencialmente diferentes quanto a esse aspecto particular Talvez ele perceba alguma coisa simples e contínua que denomina seu eu mas estou certo de que não existe tal princípio em mim 4 À parte alguns metafísicos dessa espécie porém arriscome a afirmar que os demais homens não são senão um feixe ou uma cole ção de diferentes percepções que se sucedem umas às outras com uma rapidez inconcebível e estão em perpétuo fluxo e movimento Nossos olhos não podem girar em suas órbitas sem fazer variar nos sas percepções Nosso pensamento é ainda mais variável que nossa visão e todos os outros sentidos e faculdades contribuem para essa variação Não há um só poder na alma que se mantenha inalteravel mente o mesmo talvez sequer por um instante A mente é uma espé cie de teatro onde diversas percepções fazem sucessivamente sua aparição passam repassam esvaemse e se misturam em uma infi nita variedade de posições e situações Nela não existe propriamente falando nem simplicidade em um momento nem identidade ao longo de momentos diferentes embora possamos ter uma propensão na tural a imaginar essa simplicidade e identidade Mas a comparação com o teatro não nos deve enganar A mente é constituída unicamente pelas percepções sucessivas e não temos a menor noção do lugar em que essas cenas são representadas ou do material de que esse lugar é composto 5 O que é então que nos dá uma propensão tão forte a atribuir uma identidade a essas percepções sucessivas e a supor que possuímos uma existência invariável e ininterrupta durante todo o decorrer de nossas vidas Para responder a essa questão devemos distinguir a identidade pessoal enquanto diz respeito a nosso pensamento e ima ginação e enquanto diz respeito a nossas paixões ou ao interesse que 285 Tratado da natureza humana temos por nós mesmos A primeira é nosso tema presente e para compreendêla perfeitamente teremos de nos aprofundar bastante e explicar aquela identidade que atribuímos às plantas e animais pois há uma grande analogia entre esta e a identidade de um eu ou pessoa 6 Possuímos uma idéia distinta de um objeto que permanece inva riável e ininterrupto ao longo de uma suposta variação de tempo e a essa idéia denominamos identidade ou mesmidade Possuímos também uma idéia distinta de diversos objetos diferentes existindo em suces são e conectados entre si por uma relação estreita e essa idéia propor ciona para um olhar preciso uma noção tão perfeita de diversidade como se não houvesse nenhuma relação entre os objetos Mas embora essas idéias de identidade e de uma sucessão de objetos relacionados sejam em si mesmas totalmente distintas e até contrárias é certo que em nosso modo comum de pensar geralmente as confundimos A ação da imaginação pela qual consideramos o objeto ininterrupto e invariá vel e a ação pela qual refletimos sobre a sucessão de objetos relacio nados são sentidas de maneira quase igual are almost the sarne to the feeling não sendo preciso um esforço de pensamento muito maior neste último caso que no primeiro A relação facilita a transição da mente de um objeto ao outro e torna essa passagem tão suave como se contemplássemos um único objeto contínuo Tal semelhança é a causa de nossa confusão e erro fazendonos trocar a noção de obje tos relacionados pela de identidade Embora em um momento possa mos ver a sucessão relacionada como variável ou descontínua no momento seguinte certamente iremos atribuir a ela uma identidade perfeita considerandoa como invariável e ininterrupta Nossa pro pensão para esse erro é tão forte em virtude da semelhança já mencio nada que o cometemos antes de nos darmos conta disso E mesmo que nos corrijamos incessantemente pela reflexão retornando assim a um modo mais exato de pensar não conseguimos sustentar nossa filosofia por muito tempo nem libertar a imaginação dessa inclinação Nosso último recurso é ceder a esta última e afirmar ousadamente que esses diferentes objetos relacionados são de fato a mesma coisa não 286 Livro 1 Parte 4 Seção 6 obstante sua descontinuidade e variação Para justificar perante nós mesmos tal absurdo freqüentemente imaginamos algum princípio novo e ininteligível que conecte os objetos impedindo sua desconti nuidade ou variação É assim que criamos a ficção da existência con tínua das percepções de nossos sentidos com o propósito de eliminar a descontinuidade e chegamos à noção de uma alma um eu e uma subs tância para encobrir a variação Mas podemos observar além disso que mesmo quando não criamos tal ficção nossa propensão a confun dir a identidade com a relação é tão forte que tendemos a imaginar17 alguma coisa desconhecida e misteriosa conectando as partes além da relação Penso ser este o caso da identidade que atribuímos às plantas e animais E mesmo quando isso não ocorre ainda sentimos uma propensão a confundir essas idéias embora não consigamos nos convencer inteiramente quanto a esse ponto por não encontrar mos alguma coisa invariável e ininterrupta que justifique nossa no ção de identidade Assim a controvérsia em torno da identidade não é uma mera disputa de palavras Quando atribuímos identidade em um sentido impróprio a objetos variáveis e intermitentes nosso erro não se limita à maneira pela qual nos exprimimos ao contrário comumente se faz acompanhar de uma ficção seja de alguma coisa invariável e inin terrupta seja de algo misterioso e inexplicável ou ao menos de uma propensão para tais ficções Para provar essa hipótese de um modo que satisfaça a qualquer investigador imparcial bastanos mostrar partin do da experiência e observação diárias que os únicos objetos variáveis e descontínuos que supomos continuar os mesmos são os que consis tem em uma sucessão de partes conectadas por semelhança contigüi dade ou causalidade Porque como é evidente que uma tal sucessão 1 7 Se o leitor quiser saber como um grande gênio tanto quanto o mero vulgo é capaz de se deixar influenciar por esses princípios aparentemente triviais da imaginação pode ler os raciocínios de Lord Shaftesbury acerca do princípio unificador do universo e da identidade das plantas e animais Cf seu Moralists ou Philosophical rhapsody The Moralists a philoso phical rhapsody 1709 NT 287 Tratado da natureza humana corresponde a nossa noção de diversidade só pode ser por engano que lhe atribuímos uma identidade e como a relação das partes que nos leva a esse erro é na realidade apenas uma qualidade que produz uma associação de idéias e uma transição fácil da imaginação de uma idéia a outra esse erro só pode decorrer da semelhança entre esse ato da mente e aquele pelo qual contemplamos um único objeto contínuo Nossa principal tarefa portanto deve ser provar que todos os objetos a que atribuímos identidade sem ter observado sua invariabilidade e ininterruptibilidade são constituídos por uma sucessão de objetos relacionados 8 Para isso suponhamos diante de nós uma massa de matéria cujas partes são contíguas e conectadas É claro que iremos atribuir uma perfeita identidade a essa massa contanto que todas as suas par tes continuem ininterrupta e invariavelmente as mesmas apesar de qualquer movimento ou mudança de lugar que possamos observar no todo ou em alguma de suas partes Suponhamos porém que uma parte muito pequena ou insignificante seja adicionada à massa ou dela subtraída A rigor isso destrói por completo a identidade do todo entretanto como nunca pensamos de maneira tão precisa sempre que encontramos uma alteração tão insignificante não hesitamos em afirmar que a massa de matéria é a mesma A passagem do pensa mento do objeto antes da mudança para o objeto depois da mudan ça é tão suave e fácil que quase não percebemos a transição e ten demos a imaginar que se trata apenas do exame contínuo de um mesmo objeto 9 Esse experimento apresenta uma circunstância bastante interes sante embora a alteração de uma parte considerável de uma massa de matéria destrua a identidade do todo devemos medir a grandeza da parte não de maneira absoluta mas proporcionalmente ao todo A adi ção ou a subtração de uma montanha não seriam suficientes para pro duzir uma diversidade em um planeta mas a alteração de apenas al gumas polegadas poderia destruir a identidade de alguns corpos Será impossível explicar isso se não refletirmos que os objetos agem sobre 288 Livro 1 Parte 4 Seção 6 a mente e quebram ou interrompem a continuidade de suas ações não segundo sua grandeza real mas segundo suas proporções recíprocas Por isso como essa interrupção faz que um objeto deixe de parecer o mesmo é o progresso ininterrupto do pensamento que deve consti tuir a identidade imperfeita 10 Podemos confirmar essa afirmação por meio de um outro fenôme no A alteração de uma parte considerável de um corpo destrói sua identidade mas é de se notar que quando a alteração se produz de forma gradual e insensível nossa tendência a atribuir a ela esse mesmo efeito é menor É claro que a razão disso só pode ser o fato de que a mente ao acompanhar as mudanças sucessivas do corpo sente uma facilidade em passar da consideração de sua condição em um momento para a observação de sua condição em outro momento por isso em nenhum instante em particular percebe uma interrupção em suas ações É em decorrência dessa percepção contínua que a mente atri bui ao objeto uma existência contínua e uma identidade 1 1 Contudo por mais que tomemos a precaução de introduzir as mu danças de modo gradual fazendoas proporcionais ao todo o certo é que quando finalmente observamos que essas mudanças se tornaram consideráveis hesitamos em atribuir identidade a objetos tão diferen tes Outro artifício no entanto permitenos induzir a imaginação a avançar mais um passo produzir uma referência das partes umas às outras e uma combinação tendo em vista algum fim ou propósito co mum Um navio que teve uma parte considerável alterada por suces sivos consertos ainda é considerado o mesmo a diferença do material não nos impede de atribuir a ele uma identidade O fim comum para o qual as partes conspiram permanece o mesmo ao longo de todas as suas variações permitindo à imaginação realizar uma transição fácil de uma situação do corpo a outra 12 Mas isso é ainda mais notável quando a esse fim comum acrescen tamos uma simpatia entre as partes e supomos que elas mantêm en tre si a relação recíproca de causa e efeito em todas as suas ações e operações Esse é o caso de todos os animais e vegetais cujas diver 289 Tratado da natureza humana sas partes não apenas se referem a um propósito geral mas também apresentam uma mútua dependência ou conexão O efeito de uma re lação tão forte é que embora todos tenhamos de admitir que em pou cos anos tanto os vegetais como os animais sofrem uma total trans formação continuamos atribuindo a eles uma identidade ainda que sua forma tamanho e substância se alterem inteiramente Um carva lho que de uma pequena planta cresce até se transformar em uma grande árvore é sempre o mesmo carvalho embora nenhuma de suas partículas materiais nem a forma de suas partes continuem as mes mas Uma criança tornase um homem e ora engorda ora emagre ce sem sofrer nenhuma mudança em sua identidade 13 Consideremos também estes dois fenômenos notáveis em seu gê nero O primeiro é que embora comumente sejamos capazes de dis tinguir de forma bastante precisa entre a identidade numérica e a es pecífica algumas vezes as confundimos utilizando uma em lugar da outra em nossos pensamentos e raciocínios Assim um homem que ouve um barulho que pára e recomeça diversas vezes diz tratarse sem pre do mesmo barulho mas é evidente que os sons têm apenas uma semelhança ou identidade específica e a única coisa numericamente idêntica é a causa que os produziu De maneira análoga podese di zer sem nenhuma impropriedade de linguagem que tal igreja que antes era feita de tijolos foi destruída e que a paróquia reconstruiu a mesma igreja em pedra de cantaria seguindo a arquitetura moder na Aqui nem a forma nem o material são os mesmos e não há nada que seja comum aos dois objetos a não ser sua relação com os habi tantes da paróquia mas isso é suficiente para nos fazer dizer que es ses objetos são uma mesma coisa Observemos entretanto que em casos como esses o primeiro objeto é de algum modo aniquilado an tes que o segundo passe a existir dessa forma em nenhum momen to se nos apresenta a idéia de diferença e multiplicidade e por isso temos menos escrúpulos em dizer que são a mesma coisa 14 Em segundo lugar notemos que em uma sucessão de objetos re lacionados a preservação da identidade de certa forma exige que a 290 Livro 1 Parte 4 Seção 6 alteração das partes não seja repentina nem completa entretanto quando os objetos são mutáveis e inconstantes por sua própria natu reza admitimos uma transição mais súbita que aquela que de outro modo seria condizente com essa relação Assim como a natureza de um rio consiste no movimento e na mudança das partes embora em menos de vinte e quatro horas estas estejam totalmente alteradas isso não impede que o rio continue o mesmo durante várias gerações Aquilo que é natural e essencial a algo é de certo modo esperado e aqui lo que é esperado causa menos impressão e parece menos importante que aquilo que é insólito e extraordinário Uma mudança considerável do primeiro tipo parece realmente menor para a imaginação que a mais ínfima alteração do segundo tipo e por quebrar menos a continuida de do pensamento tem menor influência na destruição da identidade 1 5 Passemos agora à explicação da natureza da identidade pessoal que se tornou uma questão tão importante na filosofia especialmente nos últimos anos na Inglaterra onde se estudam as ciências mais abstrusas com um ardor e aplicação peculiares É evidente que aqui devemos dar continuidade ao mesmo método de raciocínio que nos permitiu expli car com tanto sucesso a identidade de plantas animais navios casas e todas as produções compostas e mutáveis da arte ou da natureza A identidade que atribuímos à mente humana é apenas fictícia e de um tipo semelhante à que atribuímos a vegetais e corpos animais Não pode portanto ter uma origem diferente devendo ao contrário pro ceder de uma operação semelhante da imaginação sobre objetos semelhantes 1 6 Porém caso esse argumento não convença o leitor embora em minha opinião seja inteiramente decisivo sugiro que considere o seguinte raciocínio que é ainda mais próximo e imediato É evidente que a identidade que atribuímos à mente humana por mais perfeita que possamos imaginála não é capaz de fundir as diversas percepções di ferentes em uma só fazendoas perder os caracteres distintivos e dife renciais que lhes são essenciais Continua sendo verdade que cada per cepção distinta que entra na composição da mente é uma existência 291 Tratado da natureza humana distinta e é diferente distinguível e separável de todas as demais per cepções contemporâneas ou sucessivas Mas apesar dessa distinção e separabilidade supomos que todo o curso de percepções está uni do pela identidade Por isso é natural que surja uma questão acerca dessa relação de identidade ela é algo que realmente vincula nossas diversas percepções ou apenas associa suas idéias na imaginação Em outras palavras quando fazemos uma afirmação sobre a identidade de uma pessoa observamos algum vínculo real entre suas percepções ou apenas sentimos um vínculo entre as idéias que formamos dessas per cepções Será fácil responder a essa questão se nos recordarmos do que já provamos detalhadamente a saber que o entendimento nun ca observa uma conexão real entre objetos e mesmo a união de cau sa e efeito quando rigorosamente examinada reduzse a uma asso ciação habitual de idéias Pois daí se segue evidentemente que a identidade não é alguma coisa que pertença realmente a essas diferen tes percepções e que as una umas às outras é apenas uma qualidade que lhes atribuímos quando refletimos sobre elas em virtude da união de suas idéias na imaginação Ora as únicas qualidades que podem dar às idéias uma união na imaginação são as três relações antes mencio nadas Essas relações são os princípios de união do mundo ideal e sem elas todo objeto distinto é separável pela mente pode ser considerado separadamente e não parece ter mais conexão com nenhum outro ob jeto do que se ambos estivessem separados pela maior diferença e dis tância Portanto é de uma ou mais dentre essas três relações de seme lhança contigüidade e causalidade que a identidade depende E como a essência mesma dessas relações é produzir uma transição fácil entre idéias seguese que nossas noções de identidade pessoal decorrem integralmente do progresso suave e ininterrupto do pensamento ao longo de uma cadeia de idéias conectadas de acordo com os princípios acima explicados 17 A única questão que resta portanto é saber que relações produ zem esse progresso ininterrupto de nosso pensamento quando con sideramos a existência sucessiva de uma mente ou pessoa pensante 292 Livro 1 Parte 4 Seção 6 E aqui é evidente que devemos nos limitar à semelhança e à causali dade deixando de lado a contigüidade que tem pouca ou nenhuma influência neste caso 18 Comecemos pela semelhança Suponhamos que pudéssemos ver claramente o íntimo de outrem e assim observar aquela sucessão de percepções que constitui sua mente ou princípio pensante suponha mos também que essa pessoa preserve sempre a memória de uma parte considerável das percepções passadas é evidente que nada con tribuiria mais para produzir uma relação nessa sucessão em meio a todas as suas variações Pois o que é a memória senão a faculdade pela qual despertamos as imagens de percepções passadas E como uma imagem necessariamente se assemelha a seu objeto a freqüente in serção dessas percepções semelhantes na cadeia de pensamento não deve conduzir a imaginação mais facilmente de um elo a outro fazendo o todo se parecer com a continuação de um objeto único Por esse as pecto portanto a memória não apenas revela a identidade mas tam bém contribui para sua produção ao produzir a relação de semelhança entre as percepções Isso ocorre quer consideremos a nós mesmos quer aos outros 19 Quanto à causalidade podemos observar que a verdadeira idéia de uma mente humana é a de um sistema de diferentes percepções ou di ferentes existências encadeadas pela relação de causa e efeito e que produzem destroem influenciam e modificamse umas às outras Nossas impressões originam suas idéias correspondentes e essas idéias por sua vez produzem outras impressões Um pensamento expulsa outro pensamento e arrasta consigo um terceiro que o exclui por sua vez Por esse aspecto a melhor comparação que eu poderia fazer da alma é com uma república ou comunidade a republic or commonwealth cujos diversos membros estão unidos por laços recíprocos de governo e subordinação gerando outras pessoas que propagam a mesma repú blica pela transformação incessante de suas partes E assim como a mesma república individual pode mudai não só seus membros mas também suas leis e constituições assim também a mesma pessoa pode 293 Tratado da natureza humana variar seu caráter e disposição bem como suas impressões e idéias sem perder sua identidade Por mais mudanças que sofra suas di versas partes estarão sempre conectadas pela relação de causalida de Vista dessa forma nossa identidade referente às paixões serve para corroborar aquela referente à imaginação ao fazer que nossas percepções distantes influenciem umas às outras e ao produzir em nós um interesse presente por nossas dores ou prazeres passados ou futuros 20 Como apenas a memória nos faz conhecer a continuidade e a ex tensão dessa sucessão de percepções devemos considerála sobretu do por essa razão como a fonte da identidade pessoal Se não tivés semos memória jamais teríamos nenhuma noção de causalidade e tampouco por conseguinte da cadeia de causas e efeitos que consti tui nosso eu ou pessoa Mas uma vez tendo adquirido da memória essa noção de causalidade podemos estender a mesma cadeia de cau sas e conseqüentemente a identidade de nossas pessoas para além de nossa memória e assim podemos fazêla abarcar tempos circuns tâncias e ações de que nos esquecemos inteiramente mas que em geral supomos terem existido Pois são muito poucas as ações pas sadas de que temos alguma memória Quem pode me dizer por exem plo quais foram seus pensamentos e ações nos dias 1 de janeiro de 1715 1 1 de março de 1719 e 3 de agosto de 1 733 Ou será que apenas por terse esquecido inteiramente dos incidentes ocorridos nesses dias afirmará que o eu presente não é a mesma pessoa que o eu da quele tempo destruindo assim todas as noções mais bem estabele cidas de identidade pessoal Desse ponto de vista portanto a memória não tanto produz mas revela a identidade pessoal ao nos mostrar a re lação de causa e efeito existente entre nossas diferentes percepções Cabe àqueles que afirmam que a memória produz integralmente nossa identidade pessoal explicar por que podemos estender desse modo nossa identidade para além de nossa memória 21 O conjunto dessa doutrina levanos a uma conclusão de grande importância para o presente tema a saber que todas as questões refi 294 Livro 1 Parte 4 Seção 6 nadas e sutis acerca da identidade pessoal nunca poderão ser resolvidas devendo ser vistas como dificuldades antes gramaticais que filosófi cas A identidade depende das relações entre as idéias e essas relações produzem a identidade por meio da transição fácil que ocasionam Mas como as relações e a facilidade da transição podem diminuir gradativa e insensivelmente não possuímos um critério exato que nos permita resolver qualquer controvérsia sobre o momento em que adquirem ou perdem o direito ao nome de identidade Todas as controvérsias acerca da identidade de objetos conectados são meramente verbais exceto enquanto a relação entre as partes gera alguma ficção ou algum prin cípio imaginário de união como já observamos 22 Aquilo que eu disse a respeito da origem e da incerteza de nossa noção de identidade enquanto aplicada à mente humana podese es tender com pequena ou nenhuma variação à noção de simplicidade Um objeto cujas diferentes partes coexistentes estão ligadas por uma re lação estreita atua sobre a imaginação quase da mesma maneira que um objeto perfeitamente simples e indivisível e não requer para ser concebido um esforço muito maior de pensamento Com base nes sa similaridade de operação atribuímos a ele uma simplicidade e fan tasiamos a existência de um princípio de união como suporte dessa simplicidade e centro de todas as diferentes partes e qualidades do objeto 23 Terminamos assim nosso exame dos diversos sistemas filosófi cos tanto sobre o mundo intelectual como sobre o da natureza A maneira heterogênea como raciocinamos nos levou a diversos tópicos que ou ilustram e confirmam alguma parte anterior deste discurso ou preparam o caminho para nossas próximas opiniões Tendo expli cado de forma completa a natureza de nosso juízo e entendimento é hora de retornar a um exame mais rigoroso de nosso tema e de dar continuidade à anatomia precisa da natureza humana Corrigido segundo o Apêndice p675 295 Tratado da natureza humana Seção 7 Conclusão deste livro 1 Antes de me lançar nessas imensas profundezas da filosofia que jazem diante de mim porém sintome inclinado a parar por um mo mento em meu posto presente a fim de ponderar sobre a viagem que ora empreendo e que sem dúvida requer o máximo de arte e aplica ção para ser conduzida a um termo feliz Sintome como um homem que após encalhar em vários bancos de areia e escapar por muito pouco do naufrágio ao navegar por um pequeno esteiro ainda tem a temeridade de fazerse ao mar na mesma embarcação avariada e mal tratada pelas intempéries levando sua ambição a tal ponto que pen sa em cruzar o globo terrestre sob circunstâncias tão desfavoráveis A memória de meus erros e perplexidades passados me faz desconfiar do futuro A condição desoladora a fraqueza e a desordem das facul dades que sou obrigado a empregar em minhas investigações aumen tam minhas apreensões E a impossibilidade de melhorar ou corrigir essas faculdades me reduz quase ao desespero fazendome preferir perecer sobre o rochedo estéril em que ora me encontro a me aventu rar por esse ilimitado oceano que se perde na imensidão Essa súbita visão do perigo a que estou exposto me enche de melancolia e como costumamos ceder a esta paixão mais que a todas as outras não posso me impedir de alimentar meu desespero com todas essas reflexões desalentadoras que o presente tema me proporciona em tamanha abundância 2 Em um primeiro momento sintome assustado e confuso com a solidão desesperadora em que me encontro dentro de minha filoso fia imaginome como um monstro estranho e rude que por incapaz de se misturar e se unir à sociedade foi expulso de todo relaciona mento com os outros homens e largado em total abandono e descon solo De bom grado aproximarmeia da multidão à procura de abri go e calor mas não consigo convencer a mim mesmo a me juntar a ela com tal deformidade Clamo a outros para que se juntem a mim 296 Livro 1 Parte 4 Seção 7 para formarmos um grupo à parte mas ninguém me dá ouvidos To dos mantêm distância temendo a tempestade que se abate sobre mim de todos os lados Expusme à inimizade de todos os metafísicos ló gicos matemáticos e mesmo teólogos como me espantar então com os insultos que devo sofrer Declarei que desaprovo seus sistemas como me surpreender se expressarem seu ódio a meu próprio siste ma e a minha pessoa Quando olho em redor prevejo por todos os lados disputas contradições ira calúnia e difamação Quando volto meu olhar para dentro de mim mesmo não encontro senão dúvida e ignorância O mundo inteiro unese contra mim e me contradiz mas minha fraqueza é tal que sinto todas as minhas opiniões se desagre garem e desmoronarem por si mesmas quando não suportadas pela aprovação alheia Cada passo que dou é com hesitação e a cada nova reflexão temo encontrar um erro e um absurdo em meu raciocínio 3 Pois com que confiança poderia eu me aventurar em empresas tão audaciosas quando além das inúmeras deficiências que me são pe culiares encontro tantas outras comuns à natureza humana Como posso estar seguro de que ao abandonar todas as opiniões estabe lecidas estou seguindo a verdade E por meio de que critério a distin guirei mesmo que a sorte finalmente me leve até ela Após o mais cuidadoso e exato de meus raciocínios ainda sou incapaz de dizer por que deveria assentir a ele sinto apenas uma forte propensão a consi derar fortemente os objetos segundo o ponto de vista em que me apa recem A experiência é um princípio que me instrui sobre as diversas conjunções de objetos no passado O hábito é um outro princípio que me determina a esperar o mesmo para o futuro e ambos atuando conjuntamente sobre a imaginação levamme a formar certas idéias de uma maneira mais intensa e vívida que outras que não se fazem acompanhar das mesmas vantagens Sem essa qualidade pela qual a mente aviva algumas idéias mais do que outras qualidade que aparen temente é tão insignificante e tão pouco fundada na razão nunca po deríamos dar nosso assentimento a nenhum argumento nem levar nosso olhar para além daqueles poucos objetos presentes a nossos 297 Tratado da natureza humana sentidos E mesmo a esses objetos nunca poderíamos atribuir nenhu ma existência senão a que depende de nossos sentidos e teríamos de incluílos integralmente dentro dessa sucessão de percepções que constitui nosso eu ou pessoa Mais ainda mesmo em relação a essa sucessão apenas poderíamos admitir as percepções imediatamen te presentes a nossa consciência as imagens vívidas que a memó ria nos apresenta nunca poderiam ser aceitas como retratos verda deiros de percepções passadas A memória os sentidos e o entendimento são todos portanto fundados na imaginação ou na vividez de nossas idéias 4 Não é de admirar que um princípio tão inconstante e falacioso nos leve ao erro quando seguido cegamente como deve ser em todas as suas variações É esse princípio que nos faz raciocinar partindo de cau sas e efeitos e é esse mesmo princípio que nos convence da existên cia contínua dos objetos externos quando ausentes dos sentidos Mas embora essas duas operações sejam igualmente naturais e necessárias à mente humana em algumas circunstâncias elas são18 diretamente contrárias énos impossível raciocinar de maneira correta e regular a partir de causas e efeitos e ao mesmo tempo acreditar na existência contínua da matéria Como portanto conciliaremos tais princípios Qual deles preferiremos Ou se não elegermos nenhum dos dois mas em vez disso dermos nosso assentimento a cada um sucessiva mente como é comum entre filósofos com que confiança poderemos depois reivindicar esse glorioso título tendo de modo consciente abra çado uma contradição manifesta 5 Essa19 contradição seria mais perdoável se fosse compensada por algum grau de solidez e convicção nas outras partes de nosso raciocí nio O que ocorre porém é exatamente o oposto Quando investiga mos os primeiros princípios do entendimento humano vemonos conduzidos a opiniões que parecem ridicularizar todo nosso esforço e trabalho passados e desencorajar nossas investigações futuras Nada 1 8 Seção 4 p264 19 Parte 3 Seção 14 298 Livro 1 Parte 4 Seção 7 é mais meticulosamente investigado pela mente humana que as cau sas de todos os fenômenos E não nos contentamos em saber as cau sas imediatas prosseguimos nossa busca até chegarmos ao princípio original e último Não queremos parar antes de conhecer na causa a energia que a faz agir sobre seu efeito o laço que os conecta e a quali dade eficaz de que esse laço depende Essa é nossa meta em todos os nossos estudos e reflexões E como devemos ficar desapontados quando descobrimos que essa conexão laço ou energia se encontra unicamente dentro de nós mesmos e não é mais que a determina ção da mente adquirida pelo costume que nos leva a fazer uma tran sição de um objeto àquele que usualmente o acompanha e da im pressão de um à idéia vívida do outro Tal descoberta não apenas desfaz toda esperança de algum dia alcançarmos uma perfeita convic ção mas chega a impedir nossos próprios desejos pois parece que ao dizer que desejamos conhecer o princípio operador último enquan to algo que residiria no objeto externo ou estamos nos contradizendo ou dizemos coisas sem sentido 6 Essa deficiência de nossas idéias é verdade não se percebe na vida comum não nos damos conta de que nas conjunções mais usuais de causa e efeito somos tão ignorantes sobre o princípio último que une a causa e o efeito quanto nas mais insólitas e extraordinárias Mas isso procede de uma mera ilusão da imaginação Ora a questão é até que ponto devemos ceder a essas ilusões Essa é uma questão muito di fícil e nos reduz a um dilema muito perigoso como quer que o solucionemos Porque se assentimos a todas as triviais sugestões da fantasia estas além de serem freqüentemente contrárias umas às outras levamnos a tais erros absurdos e obscuridades que acaba mos envergonhados de nossa credulidade Nada é mais perigoso para a razão que os vôos da imaginação a maior causa de erro entre os fi lósofos Os homens dotados de uma fantasia vivaz podem sob esse aspecto ser comparados àqueles anjos que a Escritura representa co brindo os olhos com suas asas Já vimos tantos exemplos disso que podemos nos poupar o trabalho de insistir mais sobre esse assunto 299 Tratado da natureza humana 7 Por outro lado se a consideração desses exemplos nos fizesse to mar a resolução de rejeitar todas as triviais sugestões da fantasia e se guir o entendimento isto é as propriedades mais gerais e estabelecidas da imaginação mesmo essa resolução se rigorosamente posta em prática seria perigosa e levaria às consequências mais fatais Pois já mostrei2 que o entendimento quando age sozinho e de acordo com seus princípios mais gerais destróise a si mesmo sem deixar subsistir o menor grau de evidência em nenhuma proposição seja na filosofia seja na vida comum O único meio de nos salvarmos desse ceticismo total é por meio dessa singular e aparentemente trivial propriedade da fantasia pela qual acedemos com dificuldade às visões remotas das coisas não sendo capazes de ter delas uma impressão tão sensível quanto aquela que temos das visões mais fáceis e naturais Estabele ceremos então como uma máxima geral que nunca se deve aceitar nenhum raciocínio sutil ou mais elaborado Consideremse bem as conseqüências de um tal princípio Desse modo acabaríamos de vez com toda ciência e filosofia procedendo com base em uma única qua lidade da imaginação teríamos de abraçar todas elas por uma paridade da razão E estaríamos expressamente incorrendo em uma contradi ção pois essa máxima tem de ser construída sobre o raciocínio ante rior que devemos admitir é bastante sutil e metafísico Que partido tomaremos portanto em meio a tais dificuldades Se adotarmos esse princípio e condenarmos todos os raciocínios sutis cairemos nos ab surdos mais manifestos Se o rejeitarmos em favor desses raciocínios arruinaremos por completo o entendimento humano Não nos resta escolha portanto senão entre uma falsa razão e razão nenhuma De minha parte não sei o que se deve fazer neste caso Posso apenas ob servar o que se costuma fazer ou seja que raramente ou nunca se pensa nessa dificuldade e mesmo quando ela já esteve alguma vez presente à mente é rapidamente esquecida deixando atrás de si ape nas uma leve impressão Reflexões muito sutis exercem pouca ou 20 Seção 1 p21 5ss 300 Livro 1 Parte 4 Seção 7 nenhuma influência sobre nós entretanto não estabelecemos e não podemos estabelecer como uma regra que não deveriam exercer ne nhuma influência o que implicaria uma contradição manifesta 8 Mas que foi que eu disse Que as reflexões muito sutis e me tafísicas exercem pouca ou nenhuma influência sobre nós Dificilmen te poderia deixar de me retratar e de condenar essa minha opinião com base em meu sentimento feeling e experiência presente A visão in tensa dessas variadas contradições e imperfeições da razão humana me afetou de tal maneira e inflamou minha mente a tal ponto que estou prestes a rejeitar toda crença e raciocínio e não consigo considerar uma só opinião como mais provável ou verossímil que as outras Onde estou o que sou De que causas derivo minha existência e a que con dição retornarei De quem o favor deverei cortejar a ira de quem devo temer Que seres me cercam Sobre quem exerço influência e quem exerce influência sobre mim Todas essas questões me confundem e começo a me imaginar na condição mais deplorável envolvido pela mais profunda escuridão e inteiramente privado do uso de meus membros e faculdades 9 Felizmente ocorre que sendo a razão incapaz de dissipar essas nu vens a própria natureza o faz e me cura dessa melancolia e delírio fi losóficos tornando mais branda essa inclinação da mente ou então fornecendome alguma distração e alguma impressão sensível mais vívida que apagam todas essas quimeras Janto jogo uma partida de gamão converso e me alegro com meus amigos após três ou quatro horas de diversão quando quero retomar essas especulações elas me parecem tão frias forçadas e ridículas que não me sinto mais disposto a leválas adiante 10 Encontrome aqui portanto absoluta e necessariamente deter minado a viver a falar e a agir como as outras pessoas nos assuntos da vida corrente Mas embora minha propensão natural e o curso de meus espíritos animais e de minhas paixões me deixem reduzido a esta crença indolente nas máximas gerais do mundo ainda sinto tantos resquícios de minha disposição anterior que estou pronto a lançar ao 301 Tratado da natureza humana fogo todos os meus livros e papéis e resolvo que nunca mais renun ciarei aos prazeres da vida em benefício do raciocínio e da filosofia Pois são esses meus sentimentos quando dominado como agora por esse humor irritadiço Posso ou antes tenho de ceder à corrente da natureza submetendome aos sentidos e ao entendimento e nessa cega submissão mostro ainda mais perfeitamente minha disposição e princípios céticos Mas seguirseá daí que devo lutar contra a cor rente da natureza que me conduz à indolência e ao prazer Que devo me isolar em alguma medida do comércio e da sociedade dos outros homens que me é tão agradável E tenho de torturar meu cérebro com sutilezas e sofisticarias no momento mesmo em que não sou capaz de me convencer da razoabilidade de uma aplicação tão peno sa nem tenho qualquer perspectiva tolerável de por seu intermédio chegar à verdade e à certeza Que obrigação tenho de fazer um tão mau uso de meu tempo E a que fim isso pode servir seja em prol da hu manidade seja em meu próprio interesse Não se tenho de ser insen sato como certamente o são todos aqueles que raciocinam ou crêem em alguma coisa que ao menos meus desatinos sejam naturais e agra dáveis Quando lutar contra minha inclinação terei uma boa razão para justificar minha resistência e não serei mais levado a vagar em meio a tão lúgubres solidões e atravessar mares tão bravios quanto os que até agora tenho encontrado 1 1 São esses os meus sentimentos de melancolia e indolência E na verdade devo confessar que a filosofia nada tem a opor a eles já que espera obter uma vitória mais pelo retorno de uma disposição séria e bemhumorada que pela força da razão e da convicção Em todos os incidentes da vida devemos sempre preservar nosso ceticismo Se acreditamos que o fogo aquece ou que a água refresca é somente por que é muito penoso pensar de outra maneira Mais ainda se somos filósofos deveria ser somente com base em princípios céticos e por sentirmos uma inclinação a assim empregar nossa vida Quando a ra zão é vívida e se combina com alguma propensão deve receber o assen timento Quando não o é não pode ter nenhum direito de atuar sobre nós 302 Livro 1 Parte 4 Seção 7 12 Assim no momento em que cansado de diversões e de compa nhia entregome a devaneios em meu aposento ou enquanto passeio solitário pela margem de um rio sinto minha mente inteiramente vol tada para si mesma e minha atenção se inclina naturalmente para aque les temas sobre os quais encontrei tantas discussões no decorrer de minhas leituras e conversas Não posso deixar de sentir curiosidade sobre os princípios morais do bem e do mal a natureza e o fundamento do governo e a causa das diversas paixões e inclinações que me mo vem e governam Sintome desconfortável ao pensar que aprovo um objeto e desaprovo um outro que chamo alguma coisa de bela e ou tra de feia que tomo decisões acerca da verdade e da falsidade da razão e da insensatez sem saber com base em que princípios o faço Preo cupome com a condição do mundo erudito envolto em uma ignorân cia tão deplorável acerca de todos esses pontos Sinto crescer em mim a ambição de contribuir para a instrução da humanidade e de con quistar um nome por minhas invenções e descobertas Tais senti mentos brotam naturalmente em minha disposição presente e se eu tentasse erradicálos dedicandome a qualquer outra tarefa ou di vertimento sinto que perderia no âmbito do prazer e esta é a origem de minha filosofia 13 Mesmo supondo contudo que essa curiosidade e ambição não me transportassem a especulações para além da esfera da vida comum o que necessariamente aconteceria é que minha própria fraqueza me le varia a tais investigações A superstição é certamente muito mais audaz em seus sistemas e hipóteses que a filosofia enquanto esta se contenta em atribuir novas causas e princípios aos fenômenos que aparecem no mundo visível aquela abre um mundo só seu apresentan donos cenas seres e objetos inteiramente novos Portanto como é quase impossível para a mente humana permanecer como a dos ani mais dentro desse estreito círculo de objetos que formam o tema das conversas e ações cotidianas o que temos a fazer é apenas deliberar sobre a escolha de nosso guia e dar nossa preferência àquele que é mais seguro e agradável Quanto a isso ouso recomendar a filosofia e não 303 Tratado da natureza humana hesito em escolhêla em lugar de à superstição de qualquer gênero ou nome Pois como a superstição surge de modo natural e fácil com base nas opiniões populares da humanidade apoderase da mente com mais força sendo com freqüência capaz de perturbar a conduta de nossas vidas e ações A filosofia ao contrário se legítima só pode nos oferecer sentimentos brandos e moderados e se falsa e extrava gante suas opiniões são objetos de uma mera especulação fria e ge ral e raramente chegam a interromper o curso de nossas propensões naturais Os CÍNICOS formam um exemplo extraordinário de filóso fos pois partindo de raciocínios puramente filosóficos cometeram extravagâncias de conduta tão grandes quanto as de qualquer MON GE ou DERVIXE que já tenha passado por este mundo Mas falando de maneira geral os erros da religião são perigosos os da filosofia ape nas ridículos 14 Estou ciente de que esses dois casos de força e fraqueza da men te não abarcam toda a humanidade e que particularmente na Ingla terra existem muitos cavalheiros honestos sempre ocupados com seus afazeres domésticos ou divertindose em recreações comuns e que por isso mesmo nunca levaram seus pensamentos muito além dos objetos que todos os dias apresentamse a seus sentidos E de fato não pretendo transformar pessoas como essas em filósofos não espero que se associem a estas pesquisas ou que prestem ouvidos a estas descobertas Fazem bem em se manter em sua situação presente Em vez de refinar tais pessoas tornandoas em filósofos seria muito melhor se pudéssemos comunicar a nossos fundadores de sistemas uma parcela dessa mistura bruta e terrena ingrediente que costuma lhes fazer tanta falta e que serviria para temperar aquelas partículas incandescentes de que eles se compõem Enquanto uma imaginação ardorosa for admissível em filosofia e enquanto se aceitar que hipó teses possam ser abraçadas meramente por especiosas e agradáveis jamais poderemos ter princípios firmes ou sentimentos adequados à prática e à experiência comuns Mas se algum dia essas hipóteses forem eliminadas poderemos então ter esperanças de estabelecer 304 Livro 1 Parte 4 Seção 7 um sistema ou um conjunto de opiniões que se não verdadeiras pois isso talvez seria esperar demais sejam ao menos satisfatórias para a mente humana e resistam à prova do exame mais crítico Os muitos sistemas quiméricos que sucessivamente emergiram e declinaram entre os homens não devem nos fazer perder as esperanças de alcan çar esse objetivo devemos considerar como foi breve o período em que essas questões foram tema de investigação e raciocínio Dois mil anos com interrupções tão longas e sob tão fortes desencorajamentos são um período pequeno para permitir um aperfeiçoamento tolerável das ciências e talvez estejamos ainda em uma época muito inicial do mun do para descobrir qualquer princípio que suporte o exame da poste ridade mais tardia De minha parte só espero poder contribuir um pouco para o avanço do conhecimento dando uma nova direção a al guns aspectos das especulações dos filósofos e apontando a estes de maneira mais distinta os únicos assuntos em que podem esperar ob ter certeza e convicção A Natureza Humana é a única ciência do ho mem entretanto até aqui tem sido a mais negligenciada A mim basta trazêla um pouco mais para a atualidade e a esperança de consegui lo serve para me recompor daquela melancolia e para resgatar meu hu mor daquela indolência que por vezes me dominam Se o leitor se en contra na mesma disposição favorável que me acompanhe em minhas especulações futuras Se não que siga sua inclinação e aguar de o retorno da aplicação e do bom humor A conduta de um homem que estuda filosofia desse modo descuidado é mais verdadeiramente cética que a daquele que mesmo sentindo dentro de si uma inclinação para esse estudo está a tal ponto soterrado por dúvidas e reservas que o rejeita inteiramente O verdadeiro cético desconfiará tanto de suas dúvidas filosóficas quanto de sua convicção filosófica e jamais em virtude de nenhuma delas recusará qualquer satisfação inocente que se ofereça 1 5 E não devemos apenas nos entregar em geral à nossa inclinação nas pesquisas filosóficas mais elaboradas apesar de nossos princípios céticos mas também ceder à propensão que nos inclina a ser confiantes 305 e seguros acerca de pontos particulares segundo a perspectiva como os examinemos naquele instante particular É mais fácil impedir todo exame e investigação que refrear uma inclinação tão natural e nos guardar daquela certeza que surge sempre que examinamos um objeto de maneira exata e completa Numa ocasião como essa tendemos a esquecer não apenas nosso ceticismo mas nossa modéstia também e empregamos expressões como é evidente é certo é inegável que uma devida consideração pelo público deveria talvez impedir A exemplo de outros também eu posso ter cometido essa falta mas faço aqui uma ressalva contra qualquer objeção que se possa apresentar a isso declaro que foi a visão presente do objeto que me forçou a usar tais expressões e que elas não refletem um espírito dogmático nem uma imagem presunçosa de meu próprio juízo sentimentos que sei não serem apropriados a ninguém muito menos a um cético Tratado da natureza humana Uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais Rara temporum felicitas ubi sentire quce velis quce sentias dicere licet Tacitus Livro 2 Das paixões Tácito Histórias 11 Rara felicidade de uma época em que se pode pensar o que se quer e dizer o que se pensa NT Seção 1 Divisão do tema Parte 1 Do orgulho e da humildade 1 Assim como todas as percepções da mente podem ser divididas em impressões e idéias assim também as impressões admitem uma outra divisão em originais e secundárias Essa divisão das impressões é a mes ma1 que utilizei anteriormente quando as distingui em impressões de sensação e de reflexão Impressões originais ou de sensação são as que surgem na alma sem nenhuma percepção anterior pela constituição do corpo pelos espíritos animais ou pela aplicação dos objetos sobre os órgãos externos As impressões secundárias ou reflexivas são as que procedem de algumas dessas impressões originais seja imedia tamente seja pela interposição de suas idéias Do primeiro tipo são todas as impressões dos sentidos e todas as dores e os prazeres cor porais do segundo as paixões e outras emoções semelhantes Livro 1 Parte 1 Seção 2 Reflective No livro 1 Hume utilizara exclusivamente o termo impressões de reflexão impressions of reflexion Vejase por exemplo 1 1 2 p32 NT 309 Tratado da natureza humana 2 É certo que a mente em suas percepções tem de começar de al gum lugar e uma vez que as impressões precedem suas idéias corres pondentes é preciso que algumas impressões apareçam na alma sem que nada as introduza Mas essas impressões dependem de causas naturais e físicas e seu exame me afastaria muito de meu tema pre sente levandome até as ciências da anatomia e filosofia da natureza Por essa razão limitarmeei aqui àquelas outras impressões que de nominei secundárias e reflexivas por surgirem das impressões origi nais ou de suas idéias Dores e prazeres físicos são fontes de muitas paixões seja quando sentidos seja quando considerados pela mente mas surgem na alma ou no corpo como se preferir originalmente sem nenhum pensamento ou percepção precedente Uma crise de gota produz uma longa série de paixões como pesar esperança medo mas não deriva imediatamente de nenhum afeto ou idéia 3 As impressões reflexivas podem ser divididas em dois tipos as cal mas e as violentas Do primeiro tipo são o sentimento sense do belo e do feio nas ações composições artísticas e objetos externos Do segun do são as paixões de amor e ódio pesar e alegria orgulho e humilda de Essa divisão está longe de ser exata O enlevo poético e musical atinge com freqüência grandes alturas enquanto aquelas outras im pressões chamadas propriamente de paixões podem se atenuar até se transformarem em emoções tão suaves que passam de alguma manei ra despercebidas Em geral porém as paixões são mais violentas que as emoções resultantes da beleza e da deformidade e por isso essas impressões têm sido comumente distinguidas umas das outras Como o tema da mente humana é copioso e variado tirarei partido aqui dessa divisão vulgar e cômoda para proceder de maneira mais ordenada Embora humildade para nós refirase antes a uma qualidade que a uma paixão não pude encontrar um termo melhor para traduzir a palavra humility Mesmo essa solu ção entretanto é problemática De fato causa estranheza ler como à página 323 que A sensação da humildade é desagradável como a do orgulho é agradável Por outro lado a vantagem dessa escolha é que a humildade como a humility é também considerada uma virtude por aquelas pessoas que estão acostumadas ao estilo das escolas e do púlpi to cf p33 12 NT 3 1 0 Livro 2 Parte 1 Seção 2 Tendo já dito tudo que pensei ser necessário dizer a respeito de nos sas idéias explicarei agora essas emoções violentas ou paixões sua na tureza origem causas e efeitos 4 Quando examinamos o conjunto das paixões ocorrenos dividi las em diretas e indiretas Por paixões diretas entendo as que surgem imediatamente do bem ou do mal da dor ou do prazer Por indiretas as que procedem dos mesmos princípios mas pela conjunção de ou tras qualidades Não posso agora justificar ou explicar essa distinção de maneira mais completa Posso apenas observar de modo geral que incluo entre as paixões indiretas o orgulho a humildade a ambição a vaidade o amor o ódio a inveja a piedade a malevolência a gene rosidade juntamente com as que delas dependem E entre as paixões diretas o desejo a aversão a tristeza a alegria a esperança o medo o desespero e a confiança Começarei pelas primeiras Seção 2 Do orgulho e da humildade seus objetos e suas causas 1 As paixões do ORGULHO e da HUMILDADE são impressões sim ples e uniformes e por isso não importa quantas palavras utilizemos é impossível fornecer uma definição precisa delas ou aliás de qual quer outra paixão O máximo que podemos almejar é descrevêlas enumerando as circunstâncias que as acompanham Mas como essas palavras orgulho e humildade são de uso geral e como as impressões que representam são as mais comuns cada qual por si mesmo será capaz de formar delas uma idéia correta sem perigo de se enganar Por essa razão para não perder tempo com preliminares passarei imedia tamente ao exame dessas paixões 2 É evidente que o orgulho e a humildade embora diretamente con trários têm o mesmo OBJETO Esse objeto é o eu ou seja aquela su cessão de idéias e impressões relacionadas de que temos uma memó ria e consciência íntima É aqui que se fixa nosso olhar sempre que somos movidos por uma dessas paixões Conforme nossa idéia de nós 3 1 1 Tratado da natureza humana mesmos seja mais ou menos favorável sentimos um desses afetos opostos sendo exaltados pelo orgulho ou abatidos pela humildade Qualquer outro objeto apreendido pela mente será sempre conside rado em sua relação conosco de outro modo jamais poderia excitar essas paixões ou sequer produzir nelas o menor aumento ou diminui ção Quando o eu não é levado em consideração não há lugar nem para o orgulho nem para a humildade 3 Embora essa sucessão conectada de percepções a que denomina mos o eu seja sempre o objeto dessas duas paixões é impossível po rém que seja também sua CAUSA e que por si só baste para as des pertar Pois como essas paixões são diretamente contrárias e têm o mesmo objeto em comum se esse objeto fosse também sua causa nunca poderia produzir um grau de uma das paixões sem ao mesmo tempo despertar um grau igual da outra e essa oposição e contrarie dade destruiria a ambas É impossível que um homem seja ao mesmo tempo orgulhoso e humilde e caso tenha uma razão diferente para cada uma dessas paixões como ocorre com freqüência ou estas se dão alternadamente ou se coincidem uma aniquila a outra na medida de sua força e apenas o que resta da paixão superior continua a atuar sobre a mente Mas no caso de que estamos tratando nenhuma das duas paixões poderia se tornar superior pois se supusermos que o que as despertou foi exclusivamente a visão de nós mesmos como essa visão é perfeitamente indiferente em relação a uma e à outra pai xão deve produzir exatamente o mesmo grau de ambas ou em ou tras palavras não pode produzir nenhuma Despertar uma paixão e ao mesmo tempo suscitar uma porção equivalente de sua antagonista é desfazer imediatamente o que se havia feito acabando por deixar a mente em total calma e indiferença 4 Temos de fazer uma distinção portanto entre a causa e o objeto dessas paixões entre a idéia que as excita e aquela a que dirigem seu olhar quando excitadas Orgulho e humildade uma vez despertados imediatamente levam nossa atenção para nós mesmos considerando 3 1 2 Livro 2 Parte 1 Seção 2 nos seu objeto último e final Contudo é preciso algo mais para des pertar essas paixões alguma coisa que seja peculiar a uma delas e que não produza as duas exatamente no mesmo grau A primeira idéia que se apresenta à mente é a da causa ou princípio produtivo Essa idéia des perta a paixão a ela conectada e essa paixão quando despertada di rige nosso olhar para uma outra idéia que é a idéia do eu Temos aqui portanto uma paixão situada entre duas idéias das quais uma a pro duz e a outra é produzida por ela A primeira idéia portanto represen ta a causa e a segunda o objeto da paixão 5 Comecemos com as causas do orgulho e da humildade Podemos observar que sua propriedade mais evidente e notável é a grande va riedade de sujeitos em que podem estar localizadas Toda qualidade mental de valor seja da imaginação do juízo da memória ou do tem peramento espírito bomsenso erudição coragem justiça integri dade todas são causas de orgulho e seus opostos de humildade E não é apenas a mente que é contemplada por essas paixões mas tam bém o corpo Um homem pode se orgulhar de sua beleza força agi lidade boa aparência talento para a dança equitação esgrima e de sua destreza em qualquer ocupação ou atividade manual Mas isso não é tudo As paixões vão ainda mais longe compreendendo qualquer ob jeto que tenha conosco a menor aliança ou relação Nosso país famí lia filhos parentes riquezas casas jardins cavalos cães roupas tudo isso pode se tornar causa de orgulho ou de humildade 6 O exame dessas causas nos mostra que é necessário fazer uma nova distinção nas causas da paixão a saber entre a qualidade operante e o sujeito em que essa qualidade está situada Por exemplo um homem se envaidece com uma bela casa que lhe pertence ou que ele próprio construiu e projetou Aqui o objeto da paixão é ele mesmo e a causa é a bela casa e essa causa por sua vez podese subdividir em duas par tes a qualidade que atua sobre a paixão e o sujeito a que tal qualida de é inerente A qualidade é a beleza e o sujeito é a casa considerada como sua propriedade ou criação Ambas as partes são essenciais e 3 1 3 Tratado da natureza humana a distinção não é vã nem quimérica A beleza considerada simples mente como tal nunca produziria orgulho ou vaidade a menos que situada em algo relacionado a nós e a mais forte relação por si só sem a beleza ou algo que a substitua tampouco exerceria qualquer influência sobre essa paixão Portanto como esses dois elementos podem ser facilmente separados e como é necessária sua conjunção para que a paixão se produza devemos considerálos partes componentes da causa e devemos imprimir em nossa mente uma idéia exata dessa distinção Seção 3 De onde derivam esses objetos e causas 1 Tendo já observado uma diferença entre o objeto das paixões e sua causa e tendo distinguido na causa entre a qualidade que opera sobre as paixões e o sujeito a que ela é inerente passaremos agora a exami nar o que determina cada um desses a ser o que é ou seja o que de signa para esses afetos um tal objeto qualidade e sujeito particulares Desse modo compreenderemos perfeitamente a origem do orgulho e da humildade 2 Em primeiro lugar é evidente que a propriedade que determina que essas paixões tenham como objeto o eu não é somente natural mas também original Dada a constância e a estabilidade de suas operações ninguém pode duvidar que essa propriedade seja natural O objeto do orgulho e da humildade é sempre o eu e quando essas paixões con templam algo além deste elas o fazem tendo sempre em vista a nós mesmos nenhuma pessoa ou objeto poderia exercer influência sobre nós se não fosse assim 3 Que isso procede de uma qualidade original ou impulso primário ficará igualmente evidente se considerarmos que tal é a característi ca distintiva dessas paixões Se a natureza não houvesse conferido à mente algumas propriedades originais esta jamais poderia ter qualida 3 1 4 Livro 2 Parte 1 Seção 3 des secundárias pois nesse caso não teria nenhum fundamento para a ação e jamais poderia começar a se exercer Ora essas qualidades que devemos considerar como originais são as mais inseparáveis da alma e não podem ser reduzidas a outras E assim é a qualidade que determina o objeto do orgulho e da humildade 4 Talvez possamos ampliar essa questão e perguntar se as causas que produzem a paixão são tão naturais quanto o objeto a que ela se diri ge e se toda essa imensa variedade se deve ao capricho ou decorre da constituição da mente Será fácil desfazer essa dúvida se dirigirmos nosso olhar para a natureza humana e considerarmos que em todas as nações e épocas são sempre os mesmos objetos que dão origem ao orgulho e à humildade mesmo no caso de um desconhecido podemos saber de maneira bastante aproximada o que aumentará ou diminui rá essas suas paixões Qualquer variação nesse ponto procede unica mente de uma diferença no temperamento e caráter dos homens e além do mais é bem insignificante Como imaginar que a natureza humana permanecendo a mesma os homens poderiam algum dia se tornar inteiramente indiferentes ao poder riqueza beleza ou mérito pessoais e seu orgulho e vaidade não fossem afetados por essas vantagens 5 Mas embora as causas do orgulho e da humildade sejam clara mente naturais veremos ao examinálas que não são originais e seria inteiramente impossível que cada uma delas se adaptasse a essas pai xões por um dispositivo particular e pela constituição primária da na tureza Além de seu número prodigioso muitas delas são efeitos da arte surgindo em parte do trabalho em parte do capricho e em parte da sorte dos homens O trabalho produz casas móveis e roupas O ca pricho determina suas espécies e qualidades particulares E a sorte freqüentemente contribui para tudo isso revelando os efeitos que resultam das diferentes misturas e combinações dos corpos Portan to é absurdo imaginar que cada uma dessas causas tenha sido prevista e providenciada pela natureza e que cada nova produção da arte que 3 1 5 Tratado da natureza humana causa orgulho ou humildade em vez de se adaptar à paixão partici pando de alguma qualidade geral que já opere naturalmente sobre a mente seja ela própria objeto de um princípio original até então ocul to na alma e revelado afinal apenas por acidente Assim o primeiro artesão que concebeu uma bela escrivaninha teria produzido orgulho naquele que se tornou seu proprietário mas por princípios diferen tes dos que fizeram o mesmo homem orgulhoso de possuir belas ca deiras ou mesas Ora isso parece obviamente ridículo e devemos con cluir que não é verdade que cada causa de orgulho e humildade se adapte a essas paixões por uma qualidade original distinta ao contrá rio existe uma ou mais circunstâncias comuns a todas elas das quais depende sua eficácia 6 Além disso constatamos que no curso da natureza embora os efeitos sejam muitos os princípios de que essas causas derivam são comumente poucos e simples um filósofo natural que recorresse a uma qualidade diferente para explicar cada operação diferente daria mostras de inabilidade Quão mais verdadeiro isso deve ser no que concerne à mente humana que sendo um objeto tão limitado pode com razão ser considerada incapaz de conter esse monstruoso amon toado de princípios que seriam necessários para despertar as paixões do orgulho e da humildade se cada causa distinta fosse ajustada à paixão mediante um conjunto distinto de princípios 7 Aqui portanto a filosofia moral está na mesma situação em que estava a filosofia da natureza em relação à astronomia antes do tem po de Copérnico Os antigos embora cientes da máxima de que a natu reza não faz nada em vão conceberam sistemas celestes tão complica dos que acabaram parecendo incompatíveis com a verdadeira filosofia dando lugar a algo mais simples e natural Inventar sem escrúpulos um novo princípio para cada novo fenômeno em vez de adaptálo ao Aqui como um pouco adiante ver nota seguinte a NNOPT corrigiu paixão para paixões porque The context indicates that Hume is here discussing two passions pride and humility and hence the plural form is required cf David F Norton Mary J Norton op cit Talvez mas penso que não necessariamente pois Hume pode estar se referindo à adaptação da causa ou objeto a um a só paixão ou orgulho ou humildade NT Cf nota anterior NT 3 1 6 Livro 2 Parte 1 Seção 4 princípio antigo sobrecarregar nossas hipóteses com tamanha varie dade são provas certas de que nenhum desses princípios é o legíti mo e que tudo que desejamos é um grande número de falsidades para encobrir nossa ignorância da verdade Seção 4 Das relações de impressões e de idéias 1 Estabelecemos assim duas verdades sem encontrar nenhum obstáculo ou dificuldade é a partir de princípios naturais que essas di versas causas excitam o orgulho e a humildade e não é por um princípio diferente que cada causa diferente se ajusta a sua paixão Passaremos agora a investigar como podemos reduzir esses princípios a um nú mero menor encontrando alguma coisa comum a todas essas causas de que dependa sua influência 2 Devemos para isso refletir sobre certas propriedades da nature za humana que embora tenham uma influência poderosa sobre todas as operações tanto do entendimento como das paixões não são mui to enfatizadas pelos filósofos A primeira é a associação de idéias que tantas vezes observei e expliquei É impossível à mente fixarse firme za sobre uma única idéia durante um tempo considerável nem o maior esforço lhe permitiria alcançar tal constância Nossos pensamentos porém por mais variáveis que possam ser não são inteiramente des providos de regras e de método em suas mudanças A regra segundo a qual procedem consiste em passar de um objeto àquele que lhe é semelhante ou contíguo ou que é produzido por ele Quando uma idéia está presente à imaginação qualquer outra idéia unida à primeira por essas relações seguea naturalmente e penetra com mais facilidade em virtude dessa introdução 3 A segunda propriedade que observarei na mente humana é uma as sociação parecida de impressões Todas as impressões semelhantes se conectam entre si e tão logo uma delas surge as demais imediatamente a seguem A tristeza e o desapontamento dão origem à raiva a raiva à 3 1 7 Tratado da natureza humana inveja a inveja à malevolência e a malevolência novamente à tristeza até que o círculo se complete Do mesmo modo nosso humor quando exaltado pela alegria entregase naturalmente ao amor à generosida de à piedade à coragem ao orgulho e a outros afetos semelhantes É difícil para a mente quando movida por uma paixão limitarse a essa paixão sem mudança ou variação alguma A natureza humana é de masiadamente inconstante para admitir tal regularidade A muta bilidade lhe é essencial E o que poderia ser mais natural que mudar para afetos ou emoções que condizem com o humor e se harmonizam com o conjunto de paixões então prevalecentes É evidente portan to que existe uma atração ou associação entre as impressões assim como entre as idéias embora com a importante diferença que as idéias se associam por semelhança contigüidade e causalidade e as impres sões apenas por semelhança 4 Em terceiro lugar observemos que essas duas espécies de associa ção se apóiam e favorecem uma à outra e a transição se realiza mais facilmente quando elas coincidem no mesmo objeto Assim um ho mem cujo humor foi fortemente perturbado e abalado por alguma ofensa é capaz de encontrar uma centena de motivos de descontenta mento impaciência medo e outras paixões desagradáveis sobretu do se puder descobrir esses motivos na pessoa que causou sua primei ra paixão ou em algo próximo a ela Os princípios que favorecem a transição entre as idéias concorrem aqui com os que agem sobre as paixões e unindose em uma única ação os dois conferem à mente um duplo impulso A nova paixão portanto deve surgir com uma vio lência proporcionalmente maior e a transição até ela deve se tornar igualmente mais fácil e natural 5 Aproveito a ocasião para citar a autoridade de um elegante escri tor que se exprime da seguinte maneira Como a fantasia se delei ta com tudo que é grande estranho ou belo e tanto mais se satisfaz quanto mais dessas perfeições encontra no mesmo objeto ela é capaz Joseph Addison 1 6721719 Spectator n412 NT 3 1 8 Livro 2 Parte 1 Seção 5 também de receber uma nova satisfação pela ajuda de um outro sen tido Assim um som contínuo como o canto dos pássaros ou uma queda d água desperta a todo instante a mente do espectador tornan doo mais atento às diversas belezas do lugar em que se encontra Se surge um doce aroma ou perfume ele eleva os prazeres da imagina ção fazendo até as cores e o verde da paisagem parecerem mais agra dáveis pois as idéias desses dois sentidos reforçamse mutuamente e juntas são mais agradáveis que quando penetram separadas na mente como as diferentes cores de um quadro quando bem situadas real çam umas às outras e ganham uma beleza adicional em virtude de sua situação favorável Nesse fenômeno podemos observar a associação tanto de impressões como de idéias bem como o auxílio mútuo en tre elas Seção 5 Da influência dessas relações sobre o orgulho e a humildade 1 Agora que já estabelecemos esses princípios com base em uma ex periência inquestionável passo a investigar como iremos aplicálos para isso farei uma reflexão acerca de todas as causas de orgulho e de humildade sejam elas vistas como as qualidades operantes ou como os sujeitos em que essas qualidades estão localizadas Ao examinar essas qualidades constato de imediato que muitas delas concorrem na produção da sensação de dor e de prazer independentemente desses afetos que procuro aqui explicar Assim a beleza de nosso corpo por si só e por sua aparência mesma dá prazer além de orgulho e sua feiúra produz dor além de humildade Um banquete suntuoso nos de leita e um banquete grosseiro nos desagrada Aquilo que descubro ser verdadeiro em alguns casos suponho que o seja em todos por isso dou por suposto neste momento sem mais provas que toda causa de or gulho por suas qualidades peculiares produz um prazer à parte e toda causa de humildade um malestar 3 1 9 Tratado da natureza humana 2 Por outro lado considerando os sujeitos a que essas qualidades se ligam faço uma nova suposição que também parece provável por se apoiar em exemplos numerosos e evidentes esses sujeitos são ou bem partes de nós mesmos ou alguma coisa estreitamente relacionada conosco Assim as boas e más qualidades de nossas ações e manei ras constituem virtudes e vícios determinando nosso caráter pessoal a coisa que mais fortemente atua sobre essas paixões De modo seme lhante é a beleza ou a fealdade de nosso corpo casas equipagem ou mobiliário que nos torna vaidosos ou humildes As mesmas qualida des quando transferidas a sujeitos que não têm relação conosco não influenciam em nada nenhum dos dois afetos 3 Supus assim de alguma maneira a existência de duas proprieda des das causas desses afetos a saber que as qualidades produzem uma dor ou um prazer separados e que os sujeitos em que se encontram es sas qualidades têm uma relação com o eu Agora passo a examinar as próprias paixões com o propósito de nelas encontrar algo que cor responda às propriedades que supus existirem em suas causas Primei ramente vejo que o objeto peculiar do orgulho e da humildade é determi nado por um instinto original e natural e é absolutamente impossível dada a constituição primitiva da mente que essas paixões jamais vi sem a algo além do eu ou seja da pessoa individual de cujas ações e sentimentos cada um de nós está intimamente consciente É aqui que nossa atenção termina sempre por se fixar quando somos movidos por uma das duas paixões nessa situação da mente nunca podemos perder de vista tal objeto Não pretendo dar uma razão para isso ao contrário considero essa direção peculiar do pensamento como uma qualidade original 4 A segunda qualidade que descubro nessas paixões e que também considero uma qualidade original são suas sensações ou seja as emoções peculiares que elas despertam na alma e que constituem seu próprio ser e essência Assim o orgulho é uma sensação prazerosa e a humildade uma sensação dolorosa retirandose o prazer e a dor não há na realidade nem orgulho nem humildade Aquilo mesmo que 320 Livro 2 Parte 1 Seção 5 sentimos nos convence disso e é vão raciocinar ou discutir aqui so bre o que ultrapassa os limites do que sentimos 5 Comparo portanto essas duas propriedades estabelecidas das pai xões a saber seu objeto que é o eu e sua sensação que é prazerosa ou dolorosa com as duas propriedades supostas das causas sua re lação com o eu e sua tendência a produzir dor ou prazer independen temente da paixão e imediatamente descubro que se considerar es sas duas suposições como sendo corretas o verdadeiro sistema se impõe a mim com uma evidência irresistível A causa que suscita a paixão está relacionada com o objeto que a natureza atribuiu à paixão a sensação que a causa produz separadamente está relacionada com a sensação da paixão Dessa dupla relação de idéias e impressões é que deriva a paixão Uma idéia convertese facilmente em sua idéia correlata e uma impressão naquela outra impressão que se assemelha e corresponde a ela Quão mais fácil não deve ser tal transição quan do esses movimentos se auxiliam um ao outro e quando a mente re cebe um duplo impulso das relações de suas impressões e idéias 6 Para compreendermos melhor isso temos de admitir que a natu reza conferiu aos órgãos da mente humana uma certa disposição própria para produzir uma impressão ou emoção peculiar que chamamos de orgulho a essa emoção atribuiu uma certa idéia a idéia de eu que se produz infalivelmente Esse dispositivo da natureza é fácil de se con ceber Temos vários exemplos de tal estado de coisas Os nervos do nariz e do palato são dispostos de maneira a transmitir à mente em determinadas circunstâncias sensações peculiares As sensações de fome e de desejo carnal sempre produzem em nós a idéia dos objetos peculiares que convêm a cada apetite Essas duas circunstâncias se unem no orgulho Os órgãos estão dispostos de maneira a produzir a paixão e a paixão uma vez produzida naturalmente produz uma de terminada idéia Nada disso precisa ser provado É evidente que jamais possuiríamos tal paixão se não houvesse uma disposição da mente apropriada para ela e é igualmente evidente que a paixão sempre di 321 Tratado da natureza humana rige nosso olhar para nós mesmos fazendonos pensar em nossas próprias qualidades e particularidades 7 Tendo compreendido perfeitamente esse ponto podemos agora perguntar se a natureza produz a paixão imediatamente por si mesma ou se precisa da cooperação de outras causas Pois observemos que sob esse as pecto particular sua conduta é diferente nas diferentes paixões e sen sações Para produzir um gosto qualquer o palato tem de ser excita do por um objeto externo a fome ao contrário nasce internamente sem o concurso de nenhum objeto externo Entretanto seja qual for o caso das outras paixões e impressões o orgulho certamente requer o auxílio de algum objeto estranho e os órgãos que o produzem não exercem como o coração e as artérias um movimento interno origi nal Pois em primeiro lugar a experiência cotidiana nos convence de que o orgulho requer determinadas causas para ser excitado e elan guesce quando não é sustentado por alguma excelência no caráter nos dons corporais vestimentas equipagem ou fortuna Em segundo lu gar é evidente gue se surgisse imediatamente da natureza o orgulho seria permanente pois seu objeto é sempre o mesmo e não existe uma disposição corporal que seja peculiar ao orgulho como no caso da sede e da fome Em terceiro lugar a situação da humildade é exata mente a mesma que a do orgulho por isso segundo essa suposição deve ou ser permanente também ou destruir a paixão contrária des de o primeiro instante de modo que nenhuma das duas poderia jamais aparecer Em suma podemos ficar satisfeitos com a conclusão ante rior que o orgulho tem de ter uma causa assim como um objeto e um não tem influência sem o outro 8 A única dificuldade portanto é descobrir essa causa e determi nar o que move inicialmente o orgulho acionando os órgãos natural mente aptos a produzir essa emoção Ao consultar a experiência com o intuito de resolver essa dificuldade descubro imediatamente uma centena de causas diferentes que produzem orgulho e ao examinar essas causas suponho algo que desde o início percebo ser provável a saber que todas coincidem em duas circunstâncias produzem por si 322 Livro 2 Parte 1 Seção 5 sós uma impressão aliada à paixão e encontramse em um sujeito aliado ao objeto da paixão Quando em seguida considero a nature za da relação e seus efeitos sobre as paixões e sobre as idéias não pos so mais ter dúvida baseado nessas suposições de que é o mesmo prin cípio que origina o orgulho e confere movimento a esses órgãos que naturalmente dispostos de forma a produzir esse afeto requerem ape nas um primeiro impulso para iniciar sua ação Qualquer coisa que proporcione uma sensação prazerosa e esteja relacionada ao eu des perta a paixão do orgulho que também é agradável e tem o eu como objeto 9 Tudo que eu disse acerca do orgulho é igualmente verdade em re lação à humildade A sensação da humildade é desagradável como a do orgulho é agradável por essa razão a sensação separada que de riva das causas deve ser invertida enquanto a relação com o eu per manece a mesma Embora o orgulho e a humildade sejam diretamente contrários em seus efeitos e em suas sensações eles possuem o mes mo objeto de forma que basta trocar a relação de impressões sem fazer nenhuma alteração na de idéias Assim constatamos que uma bela casa que nos pertence produz orgulho e a mesma casa ainda pertencendo a nós produz humildade quando por um acidente sua beleza se transforma em fealdade e com isso a sensação de prazer que correspondia ao orgulho é transformada em dor relacionada à humil dade A dupla relação entre as idéias e as impressões subsiste em am bos os casos e produz uma transição fácil de uma emoção à outra 1 O Em uma palavra a natureza conferiu uma espécie de atração a cer tas impressões e idéias pela qual uma delas ao aparecer introduz na turalmente sua correlata Se essas duas atrações ou associações de impressões e idéias concorrem no mesmo objeto elas se auxiliam mu tuamente e a transição dos afetos e da imaginação se faz com menos esforço e mais facilidade Quando uma idéia produz uma impressão relacionada a uma outra impressão conectada por sua vez com uma Ver nossa nota à p3 10 NT 323 Tratado da natureza humana idéia relacionada à primeira idéia essas duas impressões devem de al gum modo ser inseparáveis e em nenhum caso uma delas pode vir desacompanhada da outra É dessa maneira que se determinam as causas particulares do orgulho e da humildade A qualidade que ope ra sobre a paixão produz separadamente uma impressão semelhante a ela o sujeito a que essa qualidade se liga relacionase ao eu objeto da paixão Não é de admirar que a causa como um todo sendo cons tituída de uma qualidade e de um sujeito origine tão inevitavelmen te a paixão 1 1 Para ilustrar essa hipótese podemos comparála àquela pela qual expliquei a crença que acompanha nossos juízos baseados na causa lidade Observei que em todos os juízos desse gênero há sempre uma impressão presente e uma idéia relacionada e a impressão presente confere uma vividez à fantasia e a relação transmite essa vividez por uma transição fácil à idéia relacionada Sem a impressão presente a atenção não se fixa e os espíritos animais não são excitados Sem a relação essa atenção permanece em seu primeiro objeto sem mais conseqüências Há evidentemente uma grande analogia entre essa hipótese e nossa hipótese presente de uma impressão e uma idéia que se transfundem para uma outra impressão e idéia por meio de sua dupla relação E devemos admitir que tal analogia é uma prova nada desprezível de ambas as hipóteses Seção 6 Limitações desse sistema 1 Antes de seguir adiante nesse tema e de fazer um exame de cada causa particular de orgulho e humildade porém convém estabelecer algumas limitações ao sistema geral de que todos os objetos agradáveis relacionados a nós por uma associação de idéias e de impressões produzem or gulho e os objetos desagradáveis humildade Essas limitações resultam da natureza mesma do assunto 324 Livro 2 Parte 1 Seção 6 2 1 Suponhamos que um objeto agradável adquira uma relação com o eu a primeira paixão a aparecer então é a alegria e essa paixão se manifesta por ocasião de uma relação menos forte que a necessária para suscitar o orgulho e a vanglória Podemos sentir alegria por estar mos presentes em um banquete quando nossos sentidos se regalam com todo tipo de iguarias mas somente o anfitrião do banquete sen te além da mesma alegria a paixão adicional da autoaclamação e da vaidade É verdade que algumas vezes os homens se gabam pelo mero fato de terem estado presentes a uma grande festa e mesmo apoia dos em uma relação tão pequena convertem seu prazer em orgulho Entretanto há que se admitir que em geral a alegria nasce de uma relação menos importante que a vaidade e muitas coisas alheias de mais para produzir orgulho são não obstante capazes de nos dar um deleite e prazer A razão dessa diferença podese explicar da seguinte maneira Uma relação é necessária no caso da alegria para aproximar o objeto de nós e assim fazer que ele nos dê alguma satisfação Isso é algo comum às duas paixões no caso do orgulho porém a relação é necessária ainda para produzir uma transição de uma paixão à ou tra e assim converter a satisfação em vaidade Por ter uma dupla ta refa a realizar essa relação tem de ser dotada de uma redobrada força e energia A isso podemos acrescentar que nos casos em que os ob jetos agradáveis não mantêm uma relação muito estreita conosco eles comumente a mantêm com alguma outra pessoa e esta última relação não apenas supera mas até diminui e às vezes chega a des truir a primeira como veremos posteriormente2 3 Eis portanto a primeira limitação que devemos fazer à nossa po sição geral de que tudo que tem alguma relação conosco e produz prazer ou dor produz igualmente orgulho ou humildade É preciso haver não apenas uma relação mas uma relação estreita e mais estreita que aquela ne cessária para a alegria 2 Parte 2 Seção 4 325 Tratado da natureza humana 4 2 A segunda limitação é que o objeto agradável ou desagradável seja não apenas estreitamente relacionado mas também peculiar a nós ou ao menos comum a nós e a algumas poucas pessoas Podemos observar que a natureza humana possui esta qualidade que procura remos explicar mais adiante a saber que tudo que se apresenta com freqüência tudo com que há muito nos acostumamos perde seu va lor aos nossos olhos e em pouco tempo é desprezado e negligencia do De modo semelhante julgamos os objetos mais por comparação com outros que por seu mérito real e intrínseco e quando não somos capazes de realçar seu valor por esse contraste tendemos a negligen ciar até mesmo o que existe neles de essencialmente bom Essas qua lidades da mente têm um efeito tanto sobre a alegria como sobre o orgulho e é de se notar que os bens que são comuns a toda a huma nidade e que o costume tornou familiares a nós dãonos pouca sa tisfação embora sejam às vezes mais excelentes que aqueles a que atribuímos um valor mais alto em virtude de sua singularidade Mas embora essa circunstância atue sobre as duas paixões sua influência é bem maior no caso da vaidade Alegramonos com inúmeros bens que por muito freqüentes não nos dão orgulho A saúde quando retorna após uma longa ausência proporcionanos uma satisfação bastante sensível mas raramente é vista como motivo de vaidade por que a compartilhamos com um número muito amplo de pessoas 5 Penso que a razão pela qual o orgulho é tão mais exigente sob esse aspecto que a alegria é a seguinte Para suscitar o orgulho temos sem pre de contemplar dois objetos a causa ou seja o objeto que produz prazer e o eu que é o verdadeiro objeto da paixão Mas a alegria só necessita de um objeto para ser produzida a saber aquele que dá pra zer e embora esse objeto tenha de ter alguma relação com o eu esta só é requerida para tornálo agradável pois o eu não é propriamente falando o objeto dessa paixão Portanto como o orgulho tem por assim dizer dois objetos aos quais dirige nosso olhar seguese que quando nenhum dos dois possui qualquer singularidade a paixão deve 326 Livro 2 Parte 1 Seção 6 se tornar mais fraca que aquela que tem apenas um objeto Quando nos comparamos com os outros o que fazemos a todo momento ve mos que não nos distinguimos em nada e quando comparamos o objeto que possuímos descobrimos a mesma infeliz circunstância Com duas comparações tão desvantajosas a paixão se vê inteiramente destruída 6 3 A terceira limitação é que o objeto prazeroso ou doloroso deve ser facilmente discernível e evidente e isso não apenas para nós mas também para os outros Essa circunstância como as duas anteriores exerce uma influência tanto sobre a alegria como sobre o orgulho Imaginamonos mais felizes além de mais virtuosos ou belos quan do parecemos assim para os outros porém gostamos mais ainda de ostentar nossas virtudes que nossos prazeres Isso se deve a causas que tentarei explicar posteriormente 7 4 A quarta limitação resulta da inconstância da causa dessas paixões e da curta duração de sua conexão conosco Aquilo que é ca sual e inconstante nos dá pouca alegria e menos orgulho Não fica mos muito satisfeitos com a própria coisa e menos ainda tendemos a sentir novos graus de autosatisfação por sua causa Prevemos e an tecipamos sua mudança por meio de nossa imaginação o que nos tor na pouco satisfeitos com ela Comparamola conosco com nossa exis tência mais duradoura e isso faz sua inconstância parecer ainda maior Parece ridículo inferir uma excelência em nós com base em um obje to que tem uma duração tão mais curta e nos acompanha durante uma parte tão breve de nossa existência É fácil compreender por que essa causa não age com a mesma força na alegria que no orgulho é que a idéia do eu não é tão essencial à primeira quanto a esta última paixão 8 5 Posso acrescentar como uma quinta limitação ou antes alar gamento deste sistema que as regras gerais têm grande influência sobre o orgulho e a humildade bem como sobre todas as outras pai xões É com base nelas que formamos uma opinião das diferentes po sições sociais dos homens de acordo com seu poder ou riqueza e não mudamos essa opinião em virtude de peculiaridades da saúde ou do 32 7 Tratado da natureza humana temperamento das pessoas mesmo que essas peculiaridades possam impedilas de desfrutar plenamente de suas posses Isso se explica pelos mesmos princípios que explicaram a influência das regras ge rais sobre o entendimento O costume facilmente nos leva a ultra passar os justos limites em nossas paixões assim como em nossos raciocínios 9 Não é descabido observar nesta ocasião que a influência das re gras e máximas gerais sobre as paixões contribui muito para facilitar os efeitos de todos os princípios que explicaremos no decorrer deste tratado É evidente que se uma pessoa adulta e de natureza igual à nossa fosse subitamente transportada para nosso mundo ela ficaria bastante confusa com todos os objetos e não descobriria facilmente que grau de amor ou ódio orgulho ou humildade ou qualquer outra paixão deveria atribuir a eles As paixões freqüentemente variam por causa de princípios insignificantes e estes nem sempre atuam com uma regularidade perfeita sobretudo na primeira tentativa Mas o cos tume e a prática tornam claros todos esses princípios determinando o valor correto de cada coisa o que certamente contribui para a fácil produção dessas paixões e para nos guiar mediante máximas gerais estabelecidas acerca das proporções que devemos guardar ao prefe rir um objeto a outro Essa observação pode ser útil para afastar difi culdades que venham a surgir a respeito de determinadas causas que a seguir atribuirei a algumas paixões particulares e as quais poderiam ser consideradas demasiadamente sutis para operarem da forma tão universal e certa como o fazem 10 Concluirei este tema com uma reflexão derivada dessas cinco li mitações as pessoas mais orgulhosas e que aos olhos do mundo têm mais razões para seu orgulho nem sempre são as mais felizes e as mais humildes nem sempre são as mais infelizes como este sistema poderia nos levar a imaginar em um primeiro momento Um mal pode ser real ainda que sua causa não tenha relação conosco pode ser real sem nos ser peculiar pode ser real sem transparecer aos outros pode ser real sem ser constante e pode ser real sem cair sob regras gerais 328 Livro 2 Parte 1 Seção 7 Males como esses não deixarão de nos tornar infelizes embora tenham pouca tendência a diminuir nosso orgulho E talvez descubramos que os males mais reais e mais palpáveis da vida são dessa natureza Seção 7 Do vício e da virtude 1 Tendo em mente essas limitações passemos ao exame das cau sas do orgulho e da humildade e vejamos se podemos descobrir em todos os casos a dupla relação que lhes permite agir sobre nossas paixões Se descobrirmos que todas essas causas estão relacionadas ao eu e produzem um prazer ou desprazer separados dessa paixão não restará nenhuma reserva quanto ao presente sistema Esforçar nosemos principalmente para provar este último ponto já que o pri meiro é de certa forma autoevidente 2 Comecemos com o VÍCIO e a VIRTUDE que são as causas mais ób vias dessas paixões Seria inteiramente alheio a meu propósito presen te entrar na controvérsia que nos últimos anos vem despertando tanto a curiosidade do público se essas distinções morais se fundam em princípios naturais e originais ou se nascem do interesse e da educação Reservo o exa me dessa questão para o próximo livro por ora tentarei mostrar que meu sistema se sustenta em qualquer das duas hipóteses o que cons titui uma forte prova de sua solidez 3 De fato mesmo admitindo que a moralidade não tem fundamento na natureza devese reconhecer que o vício e a virtude seja por inte resse próprio seja pelos preconceitos da educação produzem em nós uma dor e um prazer reais e podemos notar que esse ponto é vigo rosamente sustentado pelos defensores dessa hipótese Toda paixão hábito ou traço de caráter dizem eles que tenda a nos trazer algum benefício ou prejuízo proporciona respectivamente um contentamen to ou um malestar e é daí que surge a aprovação ou a desaprovação Sempre ganhamos com a liberalidade dos outros mas corremos pe 329 Tratado da natureza humana rigo de perder por sua avareza a coragem nos protege mas a covar dia nos deixa expostos a qualquer ataque a justiça é a sustentação da sociedade mas a injustiça se não controlada rapidamente traria sua ruína a humildade nos enaltece mas o orgulho nos humilha Por es sas razões as primeiras qualidades são consideradas virtudes e as últimas vícios Ora como aqui ainda se continua admitindo que existe um contentamento ou um malestar acompanhando todos os tipos de mérito ou demérito isso é suficiente para meu propósito 4 Vou mais adiante contudo e observo que não apenas essa hipó tese moral concorda com meu presente sistema mas também o reco nhecimento de que aquela é correta constitui uma prova absoluta e irresistível deste último Pois se toda moralidade se funda na dor ou no prazer gerados pela perspectiva de algum prejuízo ou vantagem que possam resultar de nosso próprio caráter ou do caráter alheio todos os efeitos da moralidade têm de ser derivados da mesma dor ou pra zer entre eles as paixões do orgulho e da humildade A essência mesma da virtude segundo essa hipótese é produzir prazer e a do vício é causar dor Para suscitar orgulho ou humildade a virtude e o vício devem fazer parte de nosso caráter Ora que outra prova pode mos desejar para a dupla relação de impressões e de idéias 5 O mesmo argumento irrefutável pode ser extraído da opinião da queles que sustentam que a moralidade é algo real essencial e fundado na natureza A hipótese mais provável já proposta para explicar a dis tinção entre vício e virtude bem como a origem dos direitos e das obri gações morais é que por uma constituição primitiva da natureza certos caracteres e paixões só de vistos e contemplados produzem um des prazer e outros de maneira semelhante suscitam um prazer O despra zer e a satisfação não são apenas inseparáveis do vício e da virtude constituem sua própria natureza e essência Aprovar um caráter é sen tir um contentamento original diante dele Desaproválo é sentir um desprazer A dor e o prazer portanto sendo as causas originais do ví cio e da virtude devem ser também as causas de todos os seus efei tos e conseqüentemente do orgulho e da humildade que acompa nham de maneira inevitável essa distinção 330 Livro 2 Parte 1 Seção 7 6 Supondose no entanto que essa hipótese da filosofia moral seja considerada falsa ainda assim é evidente que a dor e o prazer se não são as causas do vício e da virtude são ao menos inseparáveis destes A mera consideração de um caráter generoso e nobre nos proporcio na uma satisfação e quando ele se apresenta a nós ainda que apenas em um poema ou romance nunca deixa de nos encantar e agradar Em contrapartida a crueldade e a traição nos desagradam por sua própria natureza é impossível aceitar essas qualidades estejam elas em nós mesmos ou em outros Assim a primeira hipótese moral é uma pro va inegável do sistema anterior e a segunda no pior dos casos con corda com ele 7 Porém o orgulho e a humildade não nascem somente daquelas qualidades da mente que segundo os sistemas vulgares de ética con sideramse partes do dever moral mas também de qualquer outra que tenha uma conexão com o prazer e o desprazer Nada gratifica tanto nossa vaidade quanto nosso talento de agradar aos outros pelo fato de termos um espírito agudo bom humor ou qualquer outro dom e nada nos provoca maior humilhação que o fracasso em qualquer tentativa dessa natureza Ninguém jamais foi capaz de dizer em que consiste o a espirituosidade nem de mostrar por que se deve denominar assim um de terminado sistema de pensamento e não outro Somente o gosto per mitenos tomar alguma decisão a esse respeito não possuímos ne nhum outro critério com base no qual possamos formar um juízo desse gênero Ora o que é esse gosto de que o verdadeiro e o falso espírito extraem sua existência e sem o qual nenhum pensamento tem direito a um ou outro desses nomes Evidentemente não é nada mais que uma sensação de prazer suscitada pelo verdadeiro espírito e de des prazer pelo falso sem que sejamos capazes de dar as razões desse pra zer ou desprazer O poder de gerar essas sensações opostas é portanto a essência mesma do verdadeiro e do falso espírito e conseqüente mente a causa do orgulho e da humildade que deles derivam 8 Algumas pessoas talvez acostumadas ao estilo das escolas e do púlpito nunca consideraram a natureza humana por outra perspec 331 Tratado da natureza humana tiva que não a delas próprias e por isso podem se surpreender por me ouvirem dizer que a virtude suscita o orgulho coisa que vêem corno um vício e que o vício produz a humildade que aprenderam a consi derar urna virtude Mas para não ficar discutindo acerca de palavras noto que entendo por orgulho aquela impressão agradável que surge na mente quando a visão de nossa virtude beleza riqueza ou poder nos faz ficar satisfeitos com nós mesmos e que com humildade re firome à impressão oposta É evidente que a primeira impressão nem sempre é um vício nem a última é sempre urna virtude Mesmo a mais rígida moral permite que sintamos prazer ao refletir sobre urna ação generosa e nenhuma considera que seja urna virtude sentir remorsos inúteis quando pensamos em ações vis e baixas que cometemos no passado Examinemos portanto essas impressões consideradas em si mesmas e investiguemos suas causas quer estejam localizadas na mente ou no corpo sem nos preocupar neste momento com o mérito ou a censura que as podem acompanhar Seção 8 Da beleza e da deformidade 1 Quer consideremos o corpo urna parte de nós mesmos quer con cordemos com aqueles filósofos que o vêem corno algo externo de vemos admitir que ele está conectado conosco de maneira estreita o bastante para formar urna daquelas duas relações que afirmei serem necessárias para causar orgulho e humildade Portanto sempre que pudermos encontrar a outra relação de impressões junto a essa re lação de idéias podemos esperar com segurança urna ou outra dessas paixões conforme a impressão seja agradável ou desagradável Ora a beleza de todos os tipos nos proporciona um deleite e urna satisfa ção peculiares assim corno a deformidade produz um desprazer qual quer que seja o sujeito em que esteja situada e quer seja observada em um objeto animado ou inanimado Se a beleza ou a deformidade 332 Livro 2 Parte 1 Seção 8 portanto estiver situada em nosso próprio corpo esse prazer ou esse malestar deve se converter em orgulho ou em humildade já que este caso contém todas as circunstâncias requeridas para produzir uma perfeita transição de impressões e idéias Essas sensações opostas estão relacionadas com as paixões opostas A beleza ou a deformida de têm uma relação estreita com o eu objeto de ambas as paixões Não é de admirar portanto que nossa própria beleza se torne um objeto de orgulho e nossa deformidade um objeto de humildade 2 Mas esse efeito das qualidades pessoais e corpóreas além de ser uma prova do presente sistema por mostrar que neste caso as paixões não surgiriam sem a presença de todas as circunstâncias que afirmei serem necessárias pode servir como um argumento mais forte e con vincente Se analisarmos as hipóteses já concebidas pela filosofia ou pela razão comum para explicar a diferença entre a beleza e a defor midade veremos que todas se reduzem a esta que a beleza é uma or denação e estrutura tal das partes que pela constituição primitiva de nossa natureza pelo costume ou ainda pelo capricho é capaz de dar prazer e satisfação à alma Esse é o caráter distintivo da beleza cons tituindo toda a diferença entre ela e a deformidade cuja tendência natural é produzir desprazer O prazer e o desprazer portanto não são apenas os concomitantes necessários da beleza e da deformidade mas constituem sua essência mesma De fato se considerarmos que uma grande parte da beleza que admiramos nos animais ou em outros ob jetos deriva da idéia de conveniência e utilidade não hesitaremos em concordar com essa opinião Em certo animal é bela a forma que pro duz força em outro aquela que indica agilidade A ordem e o conforto de um palácio não são menos essenciais a sua beleza que sua mera forma e aparência De maneira semelhante as regras da arquitetura exigem que o alto de uma pilastra seja mais estreito que sua base e isso porque tal forma nos transmite a idéia de segurança que é agra dável ao passo que a forma contrária nos dá apreensão e medo que é desagradável De inúmeros exemplos desse gênero bem como da consideração do fato de que a beleza como a espirituosidade não 333 Tratado da natureza humana pode ser definida sendo ao contrário discernida apenas por meio de um gosto ou sensação podemos concluir que a beleza não é mais que uma forma que produz prazer enquanto a deformidade é uma estrutura de partes que transmite desprazer e uma vez que o poder de produzir prazer e desprazer constitui assim a essência da beleza e da deformi dade todos os efeitos dessas qualidades devem ser derivados dessa sen sação entre eles o orgulho e a humildade que são seus efeitos mais comuns e notáveis 3 Considero esse argumento correto e decisivo Para conferir uma maior autoridade ao presente raciocínio porém suponhamos por um momento que seja falso e vejamos o que se segue Se o poder de pro duzir prazer e dor não constitui a essência da beleza e da deformida de ao menos é certo que essas sensações são inseparáveis dessas qua lidades sendo difícil até mesmo considerálas separadamente Ora a única coisa comum à beleza natural e à moral que são ambas cau sas de orgulho é esse poder de produzir prazer e como um efeito comum supõe sempre uma causa comum é claro que o prazer deve nos dois casos ser a causa real e influente da paixão Mais ainda a única coisa originalmente diferente entre a beleza de nossos corpos e a beleza dos objetos externos e estranhos a nós é que a primeira tem uma relação estreita conosco o que não ocorre com a segunda Essa diferença original portanto deve ser a causa de todas as suas demais diferenças entre elas a diferente influência que cada uma exerce sobre a paixão do orgulho que é despertado pela beleza de nosso cor po mas não é sequer minimamente afetado pela beleza dos objetos externos e estranhos a nós Reunindo portanto essas duas conclu sões constatamos que juntas elas formam o sistema precedente a saber que o prazer como impressão relacionada ou semelhante pro duz orgulho por uma transição natural quando localizado em um ob jeto relacionado e seu contrário produz humildade Esse sistema pa rece portanto suficientemente confirmado pela experiência embora ainda não tenhamos esgotado todos os nossos argumentos 334 Livro 2 Parte 1 Seção 8 4 Não é apenas a beleza do corpo que produz orgulho mas também sua força e vigor A força é um tipo de poder e por isso o desejo de so bressair em força deve ser considerado uma espécie inferior de ambi ção Por essa razão tal fenômeno será explicado de maneira suficien te quando tratarmos dessa paixão s Quanto a todos os outros dons corporais podemos observar em ge ral que tudo que há em nós de útil belo ou surpreendente é objeto de orgulho e seus contrários de humildade Ora é evidente que todas as coisas úteis belas ou surpreendentes concordam pelo fato de produzi rem um prazer separado e por nada mais O prazer portanto juntamen te com a relação com o eu há que ser a causa dessa paixão 6 Embora seja questionável se a beleza não é alguma coisa real e di ferente do poder de produzir prazer não pode haver dúvida de que sendo a surpresa apenas um prazer resultante da novidade ela não é rigorosamente falando uma qualidade de um objeto mas simples mente uma paixão ou impressão da alma Portanto deve ser dessa impressão que nasce o orgulho por uma transição natural E nasce de maneira tão natural que não há nada em nós ou pertencente a nós que produza surpresa e não desperte ao mesmo tempo essa outra paixão Assim por exemplo vangloriamonos das aventuras surpreendentes que vivemos de ter conseguido escapar delas e dos perigos a que es tivemos expostos Tal é a origem do hábito comum de mentir pois al guns homens sem nenhum interesse e por mera vaidade desfilam um grande número de eventos extraordinários que são ou bem ficções de seu cérebro ou então se verdadeiros não têm nenhuma conexão com eles Sua fértil capacidade inventiva abasteceos de uma grande varie dade de aventuras e quando lhes falta esse talento eles se apropriam das aventuras alheias a fim de satisfazer sua própria vaidade 7 Nesse fenômeno estão como que contidos dois experimentos curio sos que se comparados segundo as conhecidas regras para se julgar sobre causas e efeitos em anatomia filosofia da natureza e outras ciên cias fornecerão um argumento inegável a favor da influência das duplas 335 Tratado da natureza humana relações acima mencionadas Por um desses experimentos desco brimos que um objeto produz orgulho simplesmente pela interpo sição do prazer isso porque na realidade a qualidade pela qual pro duz orgulho é simplesmente o poder de produzir prazer Pelo outro experimento descobrimos que o prazer produz orgulho por uma transição ao longo de idéias relacionadas pois quando rompemos essa relação imediatamente destruímos a paixão Uma aventura sur preendente em que estivemos envolvidos tem relação conosco e des se modo produz orgulho Mas as aventuras alheias embora possam causar prazer nunca excitam aquela paixão justamente pela falta dessa relação de idéias Que outra prova se pode desejar para o pre sente sistema 8 Esse sistema concernente a nosso corpo comporta apenas uma ob jeção embora nada seja mais agradável que a saúde e nada mais dolo roso que a doença os homens comumente não se orgulham daquela nem se humilham por esta Isso se explica facilmente se considerar mos a segunda e a quarta limitações propostas a nosso sistema geral Observamos que nenhum objeto jamais produzirá orgulho ou humil dade se não tiver algo que seja peculiar a nós além disso toda causa des sas paixões precisa ter um certo grau de constância e ser razoavelmen te proporcional à duração de nosso eu que é seu objeto Ora como a saúde e a doença variam incessantemente em todos os homens e como ninguém se encontra somente ou certamente em uma das duas situa ções essas bênçãos e desgraças acidentais são em certo sentido sepa radas de nós e nunca as consideramos como conectadas com nosso ser e existência Que essa explicação é correta fica claro pelo fato de que sempre que uma doença de qualquer espécie está tão enraizada em nossa constituição que não temos mais esperanças de uma recupera ção a partir desse momento ela se torna um objeto de humildade como é evidente nos anciãos a quem nada humilha mais que a consi deração de sua idade e de suas enfermidades Esforçamse tanto quan to possível em esconder sua cegueira e surdez seu reumatismo e gota 336 Livro 2 Parte 1 Seção 9 e só com muita relutância e malestar confessam que sofrem dessas doenças E embora os jovens não se envergonhem de cada dor de ca beça ou resfriado que tenham nenhum assunto é mais apropriado para abater o orgulho humano e para nos dar uma opinião desfavo rável de nossa natureza que esse ou seja o fato de estarmos em to dos os momento de nossa vida sujeitos a tais enfermidades Isso prova suficientemente que a dor física e a doença são em si mesmas cau sas próprias da humildade embora o costume de avaliar todas as coi sas mais por comparação que por seu mérito e valor intrínsecos faça nos passar por cima de desgraças a que constatamos que todos estão sujeitos e nos leve a formar uma idéia de nosso mérito e caráter in dependentemente delas 9 Envergonhamonos das doenças que afetam os outros e que lhes são ou perigosas ou desagradáveis Da epilepsia porque causa horror a todos que a presenciam da sarna porque é infecciosa da escrófula porque costuma passar aos descendentes Os homens sempre levam em conta os sentimentos alheios quando julgam a si mesmos Isso ficou evidente em alguns dos raciocínios precedentes e ficará ainda mais evi dente adiante quando for explicado de maneira mais completa Seção 9 Das vantagens e desvantagens externas 1 Embora o orgulho e a humildade tenham como causas naturais e mais imediatas os atributos de nossa mente e corpo isto é do eu a ex periência nos mostra que há porém muitos outros objetos que produ zem esses afetos e que sua causa primária se vê em alguma medida obscurecida e perdida em meio à multiplicidade de causas estranhas e extrínsecas Casas jardins equipagem são motivos de vaidade além do mérito e de realizações pessoais E embora essas vantagens externas sejam em si mesmas bastante distantes do pensamento da 337 Tratado da natureza humana pessoa elas influenciam consideravelmente até mesmo uma paixão que se dirige a esta como a seu objeto último Isso acontece quando os objetos externos adquirem conosco uma relação particular sendo associados e conectados a nós Um belo peixe no oceano um animal no deserto qualquer coisa que não nos pertença nem tenha relação conosco não tem como influenciar a vaidade não importa quais sejam suas qualidades ou o grau de surpresa e admiração que possa natural mente ocasionar Para tocar o orgulho o objeto tem que estar associa do a nós de alguma forma Sua idéia de algum modo tem que depen der da idéia de nós mesmos e a transição de uma à outra tem que ser fácil e natural 2 Mas notemos que embora a relação de semelhança aja sobre a men te da mesma maneira que a de contigüidade e de causalidade isto é conduzindonos de uma idéia a outra ela raramente serve de funda mento para o orgulho ou a humildade Se somos semelhantes a uma pessoa por algum traço valioso de seu caráter devemos possuir em algum grau essa qualidade que nos torna semelhantes e quando to mamos essa qualidade como base para algum grau de vaidade sem pre preferimos considerála diretamente em nós mesmos e não por meio de seu reflexo na outra pessoa Desse modo embora uma seme lhança possa ocasionalmente produzir essa paixão ao sugerir uma idéia mais vantajosa de nós mesmos é nesta que nosso olhar acaba sempre se fixando e é nesta que a paixão encontra sua causa última e final 3 De fato há casos em que as pessoas se mostram envaidecidas por se assemelharem a um grande homem em sua aparência forma físi ca jeito ou outros pequenos detalhes que não contribuem em nada para sua reputação mas devese reconhecer que tal fato não tem gran de alcance nem grandes conseqüências no que diz respeito a esses From thought of a person em lugar de from thought or a person cf SBN seguindo sugestão dos editores da NNOPT cf David F Norton Mary Norton op cit Hume is contrasting as causes of pride and humility the qualities of the self with externai advantages Given this context and the singular to that a esta of the concluding clause we conclude that of is the correct reading NT 338 Livro 2 Parte 1 Seção 9 afetos A tal vaidade atribuo a seguinte razão Só podemos envaidecer nos por nos assemelharmos a uma pessoa em detalhes insignifican tes se ela for dotada de qualidades muito notáveis que nos causem res peito e veneração A rigor essas qualidades é que causam nossa vaidade mediante sua relação conosco Ora de que maneira se dá essa relação Essas qualidades são partes da pessoa que valorizamos e conseqüentemente estão conectadas com esses outros detalhes insig nificantes que também se supõem serem partes dela Esses detalhes estão conectados com as qualidades semelhantes que se encontram em nós e essas nossas qualidades sendo partes de nós estão conec tadas com o todo formase assim uma cadeia de vários elos entre nós e as qualidades excelentes da pessoa com quem nos parecemos No entanto esse grande número de relações deve enfraquecer a conexão além disso é evidente que o contraste deve fazer que a mente ao pas sar das qualidades notáveis às sem importância perceba melhor a in significância destas últimas e sinta certa vergonha pela comparação e pela semelhança 4 Basta portanto que haja uma relação de contigüidade ou de cau salidade entre a causa e o objeto do orgulho ou da humildade para que se originem essas paixões e essas relações não são mais que qualida des pelas quais a imaginação é conduzida de uma idéia à outra Con sideremos agora que efeitos elas podem ter sobre a mente e por que se tornam tão importantes para a produção dessas paixões É evi dente que a associação de idéias age de maneira tão silenciosa e im perceptível que quase não a sentimos descobrindoa antes por seus efeitos que por uma sensação feeling ou percepção imediata Ela não produz nenhuma emoção e não gera nenhuma nova impressão de espécie alguma apenas modificando aquelas idéias antes presentes na mente e que podem ser relembradas quando preciso Desse raciocí nio bem como de uma experiência indubitável podemos concluir que uma associação de idéias embora necessária não é suficiente para sozinha despertar uma paixão 339 Tratado da natureza humana 5 Portanto é evidente que quando a mente sente a paixão de or gulho ou de humildade diante do aparecimento de um objeto relacio nado existe além da relação ou transição do pensamento uma emo ção ou impressão original produzida por algum outro princípio A questão é saber se a emoção que é primeiramente produzida já é a pró pria paixão ou alguma outra impressão a ela relacionada Não demo raremos a encontrar a solução dessa questão Além de todas as outras evidências tão abundantes nesse assunto fica evidente que a relação de idéias que a experiência mostra ser uma circunstância tão impor tante para a produção da paixão seria inteiramente supérflua se não viesse reforçar uma relação de afetos facilitando a transição de uma impressão a outra Se a natureza produzisse imediatamente a paixão do orgulho ou da humildade esta paixão estaria completa em si mes ma sem precisar ser aumentada ou acrescida por nenhum outro afe to Mas supondose que a primeira emoção esteja apenas relacionada com o orgulho ou a humildade é fácil conceber para que pode servir a relação de objetos e como as duas associações diferentes de impres sões e de idéias unindo suas forças podem se auxiliar mutuamente em suas operações Isso não é apenas fácil de se conceber arrisco me mesmo a afirmar que é a única maneira de concebermos essa questão Uma transição fácil de idéias que por si só não causa ne nhuma emoção nunca poderia ser necessária ou sequer útil às pai xões se não favorecesse a transição entre algumas impressões rela cionadas Isto para não mencionarmos o fato de que o mesmo objeto causa um grau maior ou menor de orgulho proporcionalmente não só ao aumento ou à diminuição de suas qualidades mas também à distância ou à proximidade da relação o que constitui uma clara evidência de que existe uma transição de afetos juntamente com a re lação de idéias já que toda mudança na relação produz uma mudança proporcional na paixão Assim uma parte do sistema anterior concernente à relação de idéias é uma prova suficiente da outra par te concernente à relação de impressões e ela própria está fundada de maneira tão evidente na experiência que seria perda de tempo ten tar fornecer provas adicionais 340 Livro 2 Parte 1 Seção 9 6 Isso ficará ainda mais evidente por meio de exemplos Os homens vangloriamse da beleza de seu país de seu condado de sua paróquia Aqui a idéia de beleza produz claramente um prazer Esse prazer está relacionado ao orgulho O objeto ou causa desse prazer está por hi pótese relacionado ao eu ou seja ao objeto do orgulho Por essa du pla relação de impressões e de idéias realizase uma transição entre uma impressão e outra 7 Os homens também se vangloriam da amenidade do clima em que nasceram da fertilidade de seu solo natal da excelência dos vinhos das frutas ou dos outros alimentos nele produzidos da suavidade ou da força de sua língua materna além de outras particularidades des se tipo Esses objetos se referem claramente aos prazeres dos senti dos sendo originalmente considerados agradáveis ao tato ao paladar ou à audição Como poderiam então se tornar objetos de orgulho a não ser por meio da transição acima explicada 8 Há aqueles que manifestam uma vaidade de tipo oposto e são da dos a depreciar seu próprio país comparandoo com outros países que visitaram Tais pessoas acham que quando estão em sua terra cer cadas por seus conterrâneos a forte relação entre elas e sua nação é compartilhada com tantos outros que de certa forma se perde para elas ao passo que sua remota relação com um país estrangeiro for mada pelo fato de o terem visto e de nele terem vivido fica fortalecida quando consideram como são poucos os que fizeram a mesma coisa Por essa razão sempre admiram a beleza a utilidade e a raridade da quilo que há no estrangeiro em comparação com o que têm em seu próprio país 9 E como podemos nos envaidecer de um país clima ou qualquer objeto inanimado que tenha alguma relação conosco não é de admirar que nos envaideçamos das qualidades daqueles que estão conectados conosco por consangüinidade ou amizade De acordo com isso vemos que precisamente as mesmas qualidades que em nós causam orgulho produzem o mesmo afeto em menor grau quando aparecem em pes soas relacionadas a nós Os orgulhosos exibem cuidadosamente a 341 Tratado da natureza humana beleza a destreza o mérito a reputação e as honrarias de seus pa rentes como algumas das mais importantes fontes de sua vaidade 10 Assim como nos orgulhamos de nossas riquezas assim também para satisfazer nossa vaidade desejamos que todos que têm alguma conexão conosco também sejam ricos e envergonhamonos se algum de nossos amigos ou parentes for pobre ou de condição inferior Por essa razão afastamos os pobres de nós tanto quanto possível Embo ra não possamos evitar a pobreza de alguns parentes colaterais distan tes nossos antepassados são considerados nossos parentes mais pró ximos de modo que nós todos nos damos ares de ser de boa família e de descender de uma longa sucessão de ancestrais ricos e honrados 1 1 Observei várias vezes que as pessoas que se gabam da antiguidade de suas famílias ficam contentes quando podem acrescentar a essa an tiguidade o fato de seus ancestrais terem sido sem interrupção e ao longo de várias gerações proprietários da mesma porção de terra e de sua família nunca terse desfeito de suas posses nem terse mudado para outros condados ou províncias Observei também que elas têm um motivo adicional de vaidade quando podem se gabar do fato de essas posses terem sido transmitidas por uma linha de descendência exclusivamente masculina e de os títulos e a fortuna jamais terem passado pelas mãos de uma mulher Vamos tentar explicar esses fe nômenos pelo sistema anterior 12 É evidente que quando uma pessoa se gaba da antiguidade de sua família os motivos de sua vaidade não são simplesmente o longo tem po e o grande número de ancestrais mas também sua riqueza e repu tação que supostamente refletem sobre ela um lustre em virtude de sua relação com eles Essa pessoa considera primeiro esses objetos que a afetam de um modo agradável então pela relação entre pais e filhos voltase para si mesma e se vê enaltecida pela paixão do orgu lho por meio da dupla relação de impressões e idéias Portanto como a paixão depende dessas relações tudo que fortalece uma dessas re lações deve aumentar também a paixão e tudo que enfraquece as rela ções deve diminuíla Ora é certo que a identidade das posses reforça 342 Livro 2 Parte 1 Seção 9 a relação de idéias resultante da consangüinidade e do parentesco conduzindo a fantasia com mais facilidade de uma geração a outra dos ancestrais mais remotos à sua posteridade isto é àqueles que são ao mesmo tempo seus herdeiros e seus descendentes Em virtude dessa facilidade a impressão é transmitida mais íntegra e excita um grau superior de orgulho e vaidade 13 O mesmo acontece com a transmissão de títulos e fortunas por meio de uma sucessão masculina sem passar por mulheres Uma qua lidade da natureza humana que consideraremos mais adiante 3 é que a imaginação naturalmente se volta para tudo que é importante e sig nificativo e quando se apresentam dois objetos um pequeno e um grande ela em geral se afasta do primeiro e se concentra inteiramente no segundo Na sociedade matrimonial o sexo masculino tem prima zia sobre o feminino e por isso é o marido quem primeiro chama nossa atenção e quer o consideremos diretamente ou cheguemos a ele ape nas após passar por objetos relacionados o pensamento se detém so bre ele com maior satisfação e chega até ele com maior facilidade que até sua consorte É fácil ver que essa propriedade deve fortalecer a re lação da criança com o pai e enfraquecer sua relação com a mãe Pois como toda relação é somente uma propensão a passar de uma idéia a outra tudo que fortalece a propensão fortalece a relação e uma vez que temos uma propensão mais forte a passar da idéia dos filhos à idéia do pai que da mesma idéia à da mãe devemos considerar a primeira relação mais próxima e mais significativa Essa é a razão por que os filhos costumam levar o nome do pai e são considerados como tendo tido um berço mais ou menos nobre segundo a família deste Mesmo que a mãe seja dotada de um espírito e um talento superiores aos do pai como muitas vezes acontece a regra geral prevalece apesar da ex ceção conforme a doutrina exposta E mesmo que a superioridade em determinada qualidade seja tão grande ou que outras razões tenham tal efeito a ponto de fazer que os filhos representem antes a família da 3 Parte 2 Seção 2 343 Tratado da natureza humana mãe que a do pai a regra geral ainda conserva uma tal eficácia que en fraquece a relação criando uma espécie de ruptura na linha de ances trais A imaginação não a percorre com facilidade sendo incapaz de transferir a honra e a reputação dos ancestrais aos descendentes de mes mo nome e família tão rapidamente como quando a transição se dá em conformidade com as regras gerais passando de pai para filho ou de irmão para irmão Seção 1 O Da propriedade e da riqueza 1 Porém a relação considerada mais estreita e dentre todas a que mais comumente produz a paixão do orgulho é a de propriedade Não poderei explicar completamente essa relação antes de tratar da justi ça e das outras virtudes morais Neste momento basta observar que a propriedade pode ser definida como aquele tipo de relação entre uma pessoa e um objeto que permite a essa pessoa mas proíbe a todas as outras o livre uso e posse desse objeto sem violação das leis da justiça e da equidade moral Se for verdade portanto que a justiça é uma virtude com uma influência natural e original sobre a mente humana a propriedade pode ser vista como uma espécie particular de causalidade quer consi deremos a liberdade que ela dá ao proprietário de agir como bem qui ser sobre o objeto quer os benefícios que ele extrai desse objeto O mesmo ocorrerá se a justiça de acordo com o sistema de certos filó sofos for considerada uma virtude artificial e não natural Pois nes se caso a honra o costume e o direito civil ocupariam o lugar da cons ciência moral natural natural conscience e produziriam em um certo grau os mesmos efeitos Seja como for o certo é que a menção da pro priedade leva naturalmente nosso pensamento ao proprietário e a do proprietário à propriedade Isso prova que existe uma perfeita relação de idéias o que é suficiente para nosso propósito presente Uma rela ção de idéias juntamente com a de impressões sempre produz uma transição de afetos e portanto sempre que um prazer ou uma dor 344 Livro 2 Parte 1 Seção 1 0 resulta de um objeto conectado conosco pela propriedade podemos estar certos de que ou o orgulho ou a humildade resultarão dessa con junção de relações se o sistema anterior for consistente e satisfatório E se ele é de fato satisfatório ou não é fácil sabêlo pelo exame mais superficial da vida humana 2 Tudo que um vaidoso possui é do bom e do melhor A seu ver suas casas equipagem móveis roupas cavalos e cães sobressaem a todos os outros e sempre que algum desses objetos apresenta a menor su perioridade observamos que ele logo extrai daí um novo motivo de orgulho e vaidade A se acreditar no que diz seu vinho tem um sabor mais delicado que qualquer outro sua cozinha é mais requintada sua mesa mais bem posta seus criados mais eficientes o ar em que vive mais saudável o solo que cultiva é mais fértil seus frutos amadure cem mais cedo e mais perfeitamente tal coisa é notável por sua novi dade tal outra por sua antiguidade isto é obra de um artista famo so aquilo já pertenceu a um certo príncipe ou grande homem Em suma todos os objetos úteis belos ou surpreendentes ou que têm alguma relação com esses podem por meio da propriedade desper tar aquela paixão Ora todos esses objetos concordam pelo fato de dar prazer e por nada mais Apenas isso lhes é comum e portanto tem de ser a qualidade que produz a paixão que é seu efeito comum Como cada novo exemplo é um novo argumento e como os exemplos são aqui incontáveis ouso afirmar que praticamente nenhum sistema foi provado de modo tão completo pela experiência quanto este que propus 3 Se a propriedade de alguma coisa que dá prazer por sua utilida de beleza ou novidade produz também orgulho por uma dupla rela ção de impressões e idéias não devemos nos surpreender pelo fato de que o poder de adquirir essa propriedade tenha o mesmo efeito Ora a riqueza deve ser considerada o poder de adquirir a proprieda de daquilo que nos apraz e é somente enquanto tal que ela exerce in fluência sobre as paixões Em muitas ocasiões os títulos financeiros podem ser considerados uma riqueza porque dão o poder de adquirir 345 Tratado da natureza humana dinheiro e o dinheiro é urna riqueza não por ser um metal dotado de certas qualidades por exemplo solidez peso e fusibilidade mas por ter urna relação com os prazeres e as comodidades da vida Uma vez aceito isso aliás tratase de algo por si mesmo bastante eviden te podemos extrair daí um dos argumentos mais fortes que já em preguei para provar a influência das duplas relações sobre o orgulho e a humildade 4 Ao tratarmos do entendimento observamos que a distinção que às vezes se faz entre um poder e seu exercício é inteiramente inútil e não devemos pensar que o homem ou qualquer outro ser possua uma ca pacidade a menos que esta seja exercida e posta em ação Entretan to embora isso seja rigorosamente verdade segundo um modo pre ciso e filosófico de pensar essa certamente não é a filosofia de nossas paixões de fato muitas coisas atuam sobre elas por meio da idéia e da suposição de um poder independentemente de seu exercício efe tivo Ficamos satisfeitos quando adquirimos a capacidade de propor cionar um prazer e não gostamos quando outra pessoa adquire um poder de provocar dor A experiência mostra isso de maneira eviden te mas para darmos uma explicação correta desse fato e para com preendermos essa satisfação e esse desprazer devemos pesar as se guintes reflexões 5 É evidente que o erro de distinguir o poder de seu exercício não se deve inteiramente à doutrina escolástica do livrearbítrio na ver dade esta não tem muito espaço na vida comum exercendo pouca influência sobre nosso modo vulgar e popular de pensar Segundo essa doutrina os motivos não nos privam de nosso livrearbítrio nem retiram nosso poder de realizar ou de nos abster de realizar uma ação Mas de acordo com as noções comuns um homem não possui ne nhum poder se motivos muito importantes se colocam entre ele e a satisfação de seus desejos obrigandoo a se abster daquilo que que ria realizar Não penso estar em poder de meu inimigo quando o vejo passar por mim na rua com uma espada na algibeira enquanto eu não carrego nenhuma arma Sei que o medo do juiz é uma coibição tão forte 346 Livro 2 Parte 1 Seção 1 O quanto o ferro e que estou tão seguro como se ele estivesse acor rentado ou aprisionado Mas quando uma pessoa adquire sobre mim uma autoridade tal que não somente não há obstáculos externos às suas ações mas além disso ela pode me punir ou me recompensar como quiser sem medo de ser ela própria punida por isso nesse caso atribuolhe um total poder e me considero seu súdito ou vassalo 6 Ora se compararmos estes dois casos a saber o de uma pessoa que tem motivos muito fortes de interesse ou segurança para se abs ter de uma determinada ação e o de outra pessoa que não se encon tra sob tal obrigação veremos conforme a filosofia exposta no livro anterior que a única diferença conhecida entre eles está em que no primeiro concluímos com base na experiência passada que a pessoa jamais irá realizar aquela ação e no segundo que ela possível ou pro vavelmente irá realizála Nada é mais flutuante e inconstante que a vontade do homem como podemos observar em muitas ocasiões e apenas a existência de motivos muito fortes pode nos dar uma certe za absoluta quando nos pronunciamos acerca de uma de suas ações futuras Quando vemos que uma pessoa está livre de tais motivos supomos que existe a possibilidade tanto de ela agir como de se abs ter e embora em geral possamos concluir que ela se acha determi nada por motivos e causas isso não elimina a incerteza de nosso juízo acerca dessas causas e tampouco a influência dessa incerteza sobre as paixões Portanto uma vez que atribuímos o poder de realizar uma ação a todo aquele que não tenha um motivo muito poderoso para se abster dela e o negamos àqueles que têm tal motivo é com razão que se pode concluir que o poder sempre se refere a seu exercício seja este real ou provável e que consideramos que uma pessoa é dotada de uma determinada capacidade quando constatamos pela experiência pas sada que é provável ou ao menos possível que ela a exerça De fato como nossas paixões sempre consideram a existência real dos obje tos e como sempre julgamos acerca dessa realidade com base em ca sos passados nada pode ser mais verossímil por si só e sem a necessi dade de um raciocínio adicional que o fato de o poder consistir na 347 Tratado da natureza humana possibilidade ou probabilidade de uma ação tal como fica manifesto pela experiência e pela prática da vida 7 Ora é evidente que sempre que uma pessoa está em uma tal si tuação em relação a mim que não há nenhum motivo muito poderoso que a impeça de me prejudicar sendo portanto incerto se ela irá ou não me prejudicar sintome desconfortável com essa situação e preo cupome sensivelmente sempre que considero essa possibilidade ou probabilidade As paixões não são afetadas apenas pelos acontecimen tos certos e infalíveis mas também em menor grau por aqueles que são possíveis e contingentes E mesmo que eu jamais venha de fato a ser prejudicado e acabe descobrindo que filosoficamente falando a pes soa nunca teve o poder de me prejudicar já que não o exerceu isso não impede meu malestar em decorrência da incerteza anterior As pai xões agradáveis podem operar neste caso assim como as desagradá veis produzindo um prazer quando percebo que um bem se torna pos sível ou provável pela possibilidade ou probabilidade de que outra pessoa mo proporcione se forem removidos os fortes motivos que podem ter anteriormente impedido que ela o fizesse 8 Mas podemos observar ainda que essa satisfação aumenta quan do um certo bem é tão próximo que está em nosso próprio poder tomá lo ou ignorálo e quando não há nenhum impedimento físico ou ne nhum motivo muito forte impedindo que dele desfrutemos Como todos os homens desejam o prazer nada pode ser mais provável que sua existência quando não há obstáculos externos à sua produção e quando os homens não temem seguir suas inclinações Nesse caso sua imaginação antecipa facilmente a satisfação transmitindo a mesma alegria que transmitiria se estivessem persuadidos de sua existência real e efetiva 9 Isso não é suficiente porém para explicar a satisfação que acom panha a riqueza Um avaro tem prazer com seu dinheiro isto é com o poder que este lhe dá de obter todos os prazeres e as comodidades da vida mesmo sabendo que durante quarenta anos esteve de posse 348 Livro 2 Parte 1 Seção 1 0 de suas riquezas sem delas ter jamais usufruído e portanto não pos sa concluir por nenhuma espécie de raciocínio que a existência real desses prazeres está mais próxima que se fosse inteiramente privado de todas as suas posses Embora não possa formar uma tal conclusão por meio de um raciocínio acerca da maior proximidade do prazer é certo que ele imagina que esse prazer está mais próximo sempre que todos os obstáculos externos são eliminados juntamente com os mo tivos mais poderosos de interesse e de segurança que a ele se opõem Para uma explicação mais satisfatória desse ponto devo remeter o lei tor à minha análise da vontade em que4 tratarei da falsa sensação de liberdade que nos faz imaginar que podemos realizar qualquer coisa que não seja muito perigosa ou destrutiva Sempre que uma outra pes soa não esteja sob uma forte obrigação de interesse que a afaste de al gum prazer julgamos por experiência que esse prazer irá existir e essa pessoa provavelmente o obterá Mas quando nós mesmos estamos nessa situação julgamos por uma ilusão da fantasia que o prazer é ain da mais próximo e imediato A vontade parece se mover facilmente em todas as direções projetando uma sombra ou imagem de si pró pria até mesmo onde não se estabeleceu Em virtude dessa imagem o contentamento parece ficar mais próximo de nós e nos dá uma sa tisfação tão viva como se fosse inteiramente certo e inevitável 10 Agora será fácil tirar uma conclusão de todo esse raciocínio e pro var que quando a riqueza produz orgulho ou vaidade naqueles que a possuem o que nunca deixa de fazer isso se dá apenas por uma du pla relação de impressões e idéias A essência mesma da riqueza con siste no poder de proporcionar os prazeres e as comodidades da vida A essência desse poder consiste na probabilidade de seu exercício e em nos fazer antecipar por um raciocínio verdadeiro ou falso a existência real do prazer Tal antecipação do prazer é nela mesma um prazer considerável e como sua causa é algum bem ou propriedade de que 4 Parte 3 Seção 2 349 Tratado da natureza humana desfrutamos e que por isso tem uma relação conosco vemos aqui cla ramente todos os elementos do sistema anterior desenharemse dian te de nós com plena exatidão e distinção 1 1 A mesma razão que faz que a riqueza cause prazer e orgulho e a pobreza suscite o desprazer e a humildade deve fazer que o poder pro duza aquelas emoções e a escravidão estas últimas O poder ou a au toridade sobre outrem tornanos capazes de satisfazer todos os nos sos desejos já a escravidão ao nos sujeitar à vontade alheia deixanos expostos a milhares de privações e humilhações 12 Cabe aqui observar que a vaidade do poder bem como a vergonha da escravidão cresce muito quando consideramos as pessoas sobre as quais exercemos nossa autoridade ou que a exercem sobre nós Caso se pudesse fabricar estátuas dotadas de um mecanismo tão admirável que fossem capazes de se mover e agir ao comando da vontade é evi dente que sua posse daria prazer e orgulho mas não no mesmo grau que quando a mesma autoridade se exerce sobre criaturas sensíveis e racionais cuja condição comparada à nossa faz que esta pareça mais agradável e honrosa A comparação é sempre um modo seguro de au mentar nossa estima por alguma coisa Um homem rico sente melhor a felicidade de sua condição quando a opõe à de um mendigo Mas o poder possui ainda uma vantagem peculiar decorrente do contraste que de certa maneira se nos apresenta entre nós e a pessoa que coman damos A comparação é evidente e natural a imaginação a encontra no próprio objeto a passagem do pensamento à sua concepção é suave e fácil e essa circunstância tem um efeito considerável ao aumentar sua influência como ficará manifesto mais adiante quando examinar mos a natureza da malevolência e da inveja Seção 1 1 Do amor à boa reputação 1 Além dessas causas originais do orgulho e da humildade porém existe uma causa secundária com igual influência sobre os afetos 350 Livro 2 Parte 1 Seção 1 1 as opiniões alheias Nossa reputação nosso caráter nosso bom nome são considerações de grande peso e importância e mesmo as outras causas de orgulho a virtude a beleza e a riqueza têm pouca influên cia quando não amparadas pelas opiniões e sentimentos alheios Para dar conta desse fenômeno será necessário fazer um pequeno desvio e explicar primeiramente a natureza da simpatia 2 Não há na natureza humana qualidade mais notável tanto em si mesma como por suas conseqüências que nossa propensão a simpa tizar com os outros e a receber por comunicação suas inclinações e sentimentos por mais diferentes ou até contrários aos nossos Isso é evidente não apenas nas crianças que aceitam sem pestanejar qual quer opinião que lhes seja proposta mas também em homens de gran de discernimento e inteligência que têm muita dificuldade em seguir sua própria razão ou inclinação quando esta se opõe à de seus amigos ou companheiros do diaadia É a esse princípio que devemos atribuir a grande uniformidade observável no temperamento e no modo de pensar das pessoas de uma mesma nação é muito mais provável que essa semelhança resulte da simpatia que de uma influência do solo ou do clima os quais mesmo que continuem invariavelmente iguais são incapazes de manter o caráter de uma nação igual por todo um sécu lo Um homem afável rapidamente assume o humor de seu grupo de amigos e até os mais orgulhosos e mais intratáveis vêemse impreg nados pelas cores de seus conterrâneos e conhecidos Uma expressão alegre inspira uma sensível satisfação e serenidade a minha mente ao passo que uma expressão raivosa ou triste causame um súbito desa lento Ódio ressentimento apreço amor coragem alegria e melan colia todas essas paixões eu as sinto mais por comunicação que por meu próprio temperamento e disposição natural Um fenômeno tão notável merece nossa atenção e deve ser investigado até descobrirmos seus primeiros princípios 3 Quando um afeto se transmite por simpatia nós a princípio o co nhecemos apenas por seus efeitos e pelos signos externos presentes na expressão do rosto ou nas palavras e que dele nos fornecem uma 351 Tratado da natureza humana idéia Essa idéia imediatamente se converte em uma impressão adqui rindo um tal grau de força e vividez que acaba por se transformar na própria paixão produzindo uma emoção equivalente a qualquer afe to original Por mais instantânea que possa ser essa transformação da idéia em uma impressão ela procede de certas considerações e refle xões que não escaparão ao exame rigoroso do filósofo embora pos sam escapar à pessoa mesma 4 É evidente que a idéia ou antes a impressão de nós mesmos está sempre presente em nosso íntimo e que nossa consciência nos pro porciona uma concepção tão viva de nossa própria pessoa que é im possível imaginar algo que a supere quanto a esse aspecto Qualquer objeto que esteja relacionado conosco portanto deve ser concebido com uma vividez de concepção semelhante de acordo com os princí pios anteriores e mesmo que essa relação não seja tão forte quanto a de causalidade ainda assim ela deve ter uma influência considerá vel A semelhança e a contigüidade não são relações desprezíveis so bretudo quando por uma inferência de causa e efeito e pela observa ção de signos externos somos informados da existência real do objeto semelhante ou contíguo 5 Ora é óbvio que a natureza preservou uma grande semelhança entre todas as criaturas humanas e qualquer paixão ou princípio que observemos nas outras pessoas podem encontrar em algum grau um paralelo em nós mesmos O que se passa com a trama da mente é o mesmo que ocorre com o corpo Embora as partes possam diferir em sua forma ou tamanho sua estrutura e composição são em geral as mesmas Uma notável semelhança mantémse em meio a toda sua diversidade e essa semelhança deve contribuir muito para nos fazer penetrar nos sentimentos alheios abraçandoos com facilidade e pra zer Assim segundo constatamos sempre que além da semelhan ça geral de nossas naturezas existe alguma similaridade peculiar em nossas maneiras caráter país ou linguagem isso facilita a simpatia Quanto mais forte for a relação entre nós e um objeto mais facilmente a imaginação realizará a transição e transmitirá à idéia relacionada a 352 Livro 2 Parte 1 Seção 1 1 vividez daquela concepção com que formamos a idéia de nossa própria pessoa 6 Mas a semelhança não é a única relação que tem esse efeito ao contrário ela é reforçada por outras relações que podem acompanhá la Os sentimentos das outras pessoas têm pouca influência quando elas estão muito afastadas de nós pois a relação de contigüidade é necessária para que eles se comuniquem integralmente As relações de consangüinidade sendo uma espécie de causalidade podem às vezes contribuir para o mesmo efeito como também a convivência que opera do mesmo modo que a educação e o costume como vere mos melhor posteriormente 5 Todas essas relações quando unidas levam a impressão ou consciência de nossa própria pessoa à idéia dos sentimentos ou paixões das outras pessoas fazendo com que os con cebamos da maneira mais forte e vívida 7 No início deste tratado observamos que todas as idéias são tira das de impressões e que essas duas espécies de percepções diferem apenas nos graus de força e vividez com que atingem a alma As par tes componentes das idéias e impressões são exatamente semelhantes A maneira e a ordem como aparecem podem ser as mesmas Os dife rentes graus de sua força e vividez são portanto a única particulari dade que as distingue E como essa diferença pode ser eliminada em certa medida pela existência de uma relação entre as impressões e as idéias não é de espantar que a idéia de um sentimento ou paixão possa desse modo ser avivada a ponto de se tornar o próprio sentimento ou paixão A idéia vívida de um objeto sempre se aproxima de sua impres são e certamente podemos sentir malestar e dor pela mera força da imaginação e até mesmo tornar real uma doença de tanto pensar nela Isso é mais notável porém nas opiniões e nos afetos e é sobretudo ali que uma idéia vívida se converte em uma impressão Nossos afe tos dependem de nós mesmos e das operações internas da mente mais que qualquer outra impressão é por essa razão que surgem mais na 5 Parte 2 Seção 4 353 Tratado da natureza humana turalmente da imaginação e das idéias vívidas que deles formemos Tal é a natureza e a causa da simpatia e é desse modo que penetramos tão profundamente nas opiniões e sentimentos alheios sempre que os descobrimos 8 O mais notável de tudo isso é que esses fenômenos confirmam fortemente o sistema anterior concernente ao entendimento e por conseguinte também o sistema presente concernente às paixões já que os dois são análogos De fato é evidente que quando simpatiza mos com as paixões e sentimentos alheios de início esses movimen tos aparecem em nossa mente como meras idéias e nós os concebe mos como pertencendo a uma outra pessoa assim como concebemos qualquer outro fato Também é evidente que as idéias dos afetos alheios se convertem nas próprias impressões que elas representam e que as paixões nascem em conformidade com as imagens que delas forma mos Tudo isso é objeto da mais clara experiência e não depende de ne nhuma hipótese da filosofia A esta ciência só cabe explicar os fenô menos embora ao mesmo tempo devamos reconhecer que estes são em si mesmos tão claros que temos poucas ocasiões de empregála Pois para além da relação de causa e efeito que nos convence da rea lidade da paixão com que simpatizamos precisamos das relações de semelhança e contigüidade para sentir a simpatia em sua plenitude E como essas relações podem converter inteiramente uma idéia em uma impressão transmitindo a vividez desta para aquela de maneira tão perfeita que nada se perde na transição podemos facilmente conceber como a relação de causa e efeito pode sozinha servir para fortalecer e avivar uma idéia Na simpatia existe uma conversão evidente de uma idéia em uma impressão Essa conversão resulta da relação dos objetos conosco Nosso eu está sempre intimamente presente a nós Compa remos todas essas circunstâncias e veremos que a simpatia cor responde exatamente às operações de nosso entendimento e contém mesmo algo de mais surpreendente e extraordinário 9 Agora é o momento de desviar nosso olhar dessas considerações gerais sobre a simpatia para sua influência sobre o orgulho e a humil 354 Livro 2 Parte 1 Seção 1 1 dade nos casos em que essas paixões surgem do elogio e da censura da boa e da má reputação Podemos observar que sempre que uma pessoa é elogiada por possuir determinada qualidade tal qualidade se real produz por si mesma um orgulho nessa pessoa Os elogios giram em torno de seu poder riqueza família ou virtude e tudo isso é mo tivo de vaidade como já examinamos e explicamos É certo pois que se uma pessoa se considerasse sob a mesma perspectiva sob a qual aparece a seu admirador obteria primeiramente um prazer separado e depois orgulho ou autosatisfação de acordo com a hipótese acima Ora nada é mais natural que abraçarmos neste ponto as opiniões dos outros tanto pela simpatia que torna todos seus sentimentos intima mente presentes a nós como pelo raciocínio que nos faz considerar seu julgamento uma espécie de argumento em favor daquilo que afir mam Esses dois princípios da autoridade e da simpatia influenciam quase todas as nossas opiniões mas têm uma influência especial quando julgamos acerca de nosso próprio valor e caráter Tais julga mentos sempre se fazem acompanhar de uma paixão6 e nada é mais propício a perturbar nosso entendimento e a nos precipitar em toda sorte de opiniões mesmo as mais irracionais que sua conexão com a paixão já que esta se difunde pela imaginação dando uma força adi cional a toda idéia relacionada A isso podemos acrescentar que como temos consciência de ser bastante parciais para conosco ficamos par ticularmente satisfeitos com tudo que confirma a boa opinião que te mos de nós mesmos e ofendemonos facilmente com tudo que se opõe a ela 10 Tudo isso parece bastante provável em teoria mas para conferir plena certeza a este raciocínio devemos examinar os fenômenos das paixões e ver se estão de acordo com ele 1 1 Entre esses fenômenos existe um que podemos considerar bastante favorável a nossa tese presente a saber que embora a boa fama seja em geral agradável obtemos uma satisfação muito maior da aprova 6 Livro 1 Parte 3 Seção 10 355 Tratado da natureza humana ção daqueles que nós mesmos estimamos e aprovamos do que daque les que odiamos e desprezamos Da mesma maneira o que nos des gosta é sobretudo o desprezo das pessoas a cujo julgamento damos algum valor ao passo que a opinião do resto da humanidade nos é em grande medida indiferente Mas se fosse algum instinto original que produzisse na mente o desejo da boa fama e a aversão pela má fama a boa e a má fama nos influenciariam indistintamente e toda opinião conforme fosse favorável ou desfavorável excitaria igualmente esse desejo ou aversão O julgamento de um tolo é o julgamento de outrem tanto quanto o de um sábio o é e só é inferior a este em sua influên cia sobre nosso próprio julgamento 12 E não apenas agradanos mais a aprovação de um sábio que a de um tolo mas obtemos uma satisfação adicional do primeiro quando ela resulta de uma longa familiaridade e intimidade Isso se explica da mesma maneira 13 Os elogios dos outros nunca nos dão muito prazer se não coinci dem com nossa própria opinião e se não nos exaltam sobretudo por aquelas qualidades pelas quais nos distinguimos Um simples sol dado pouco valoriza o atributo da eloqüência um civil o atributo da coragem um bispo o do humor e um comerciante o da erudição Qualquer que seja o apreço de um homem por uma qualidade consi derada abstratamente quando tem consciência de que não a possui nem a opinião favorável do mundo inteiro a esse respeito lhe dará muito prazer porque jamais será capaz de influenciar sua própria opinião 14 Nada é mais comum que homens de boa família mas de poucos recursos deixarem os amigos e o país natal preferindo buscar entre estranhos os meios de sua subsistência em trabalhos humildes e su balternos ao invés de permanecer entre aqueles que estão familiari zados com sua linhagem e educação Seremos desconhecidos dizem no lugar aonde iremos Ninguém suspeitará de que família viemos Estaremos longe de todos os nossos amigos e conhecidos e desse modo nossa pobreza e inferioridade nos serão mais fáceis de suportar Ao 356 Livro 2 Parte 1 Seção 1 1 examinar tais sentimentos vejo que fornecem muitos argumentos bastante convincentes em apoio à minha tese presente 1 5 E m primeiro lugar deles podemos inferir que o desprazer que surge quando somos desprezados depende da simpatia e a simpatia depende da relação dos objetos a nós Pois sentimonos mal sobretu do quando desprezados por pessoas que estão relacionadas conosco tanto por consangüinidade como por uma contigüidade no espaço Assim procuramos diminuir essa simpatia e esse malestar desfazen do essas relações e colocandonos em contigüidade com estranhos ao mesmo tempo que nos distanciamos de nossos parentes 1 6 Em segundo lugar podemos concluir que as relações são neces sárias à simpatia não absolutamente isto é quando consideradas sim plesmente como relações mas por influírem na conversão de nossas idéias dos sentimentos dos outros nesses próprios sentimentos me diante a associação entre a idéia que temos de suas pessoas e a da nos sa própria Pois aqui tanto a relação de parentesco quanto a de conti güidade subsistem mas como não estão unidas nas mesmas pessoas contribuem para a simpatia apenas em menor grau 17 Em terceiro lugar essa circunstância mesma da diminuição da simpatia pela separação de parentes e amigos merece nossa atenção Suponhamos que eu me encontre em uma condição humilde em meio a estrangeiros e conseqüentemente seja tratado com desconside ração apesar disso sintome mais confortável nessa situação do que quando era todos os dias exposto ao desprezo de meus familiares e compatriotas Sofro aqui um duplo desprezo de meus parentes e dos que me cercam mas aqueles estão ausentes e estes me são estranhos E embora esse duplo desprezo seja fortalecido pelas duas relações de parentesco e de contigüidade como as pessoas que estão conectadas comigo por uma e por outra relação não são as mesmas a diferença entre essas duas idéias separa as impressões resultantes do desprezo impedindoas de se unir O desprezo de meus vizinhos tem uma cer ta influência e também o de meus parentes Mas essas influências são distintas e nunca se unem como ocorria quando o desprezo procedia 357 Tratado da natureza humana de pessoas que eram ao mesmo tempo meus vizinhos e meus paren tes Esse fenômeno é análogo ao sistema do orgulho e da humildade anteriormente exposto e qual pode parecer tão extraordinário ao en tendimento comum 18 Em quarto lugar uma pessoa nessa situação naturalmente escon de as condições de seu nascimento daqueles entre os quais vive e sen tese muito mal se alguém suspeita que ela pertence a uma família de condições muito superiores no que se refere à riqueza e a seu modo de vida Tudo neste mundo é julgado por comparação O que é uma imensa fortuna para um cavalheiro particular é esmola para um prín cipe Um camponês considerariaseia feliz se possuísse o mesmo que para um cavalheiro não compraria sequer suas necessidades básicas Quando um homem está habituado a um modo de vida mais refina do ou acredita ter direito a tal por nascimento e posição social tudo que é inferior lhe desagrada e até envergonha e é com o maior empe nho que esconde suas pretensões a uma melhor sorte Neste caso ele conhece seu próprio infortúnio mas como aqueles com quem vive o ig noram essa reflexão e essa comparação desagradável lhe são sugeridas apenas por seus pensamentos e não por simpatia com os demais o que deve contribuir muito para seu bemestar e satisfação 19 Se houver objeções a esta hipótese de que o prazer que obtemos com o elogio surge de uma comunicação de sentimentos seu exame nos mostra rá que quando devidamente consideradas elas servem antes para confirmála A popularidade pode ser agradável até mesmo para um homem que despreza as pessoas comuns mas isso ocorre porque o grande número dessas pessoas confere a sua opinião um peso e auto ridade adicionais Os plagiadores deliciamse com elogios que têm consciência de não merecer mas estão construindo castelos no ar sua imaginação brinca com suas próprias ficções e se esforça para torná las firmes e estáveis por uma simpatia com os sentimentos alheios Os orgulhosos são os que mais se abatem quando desprezados mesmo que não concordem imediatamente com o motivo desse desprezo mas isso se deve à oposição entre sua paixão natural e a que recebem 358 Livro 2 Parte 1 Seção 12 por simpatia De maneira semelhante um amante apaixonado fica muito ofendido quando censuramos e condenamos seu amor mas é evidente que nossa oposição não pode ter nenhum efeito se não tiver influência sobre ele e se ele não tiver uma simpatia conosco Se nos despreza ou se perceber que estamos brincando nada que lhe diga mos terá qualquer efeito sobre ele Seção 1 2 Do orgulho e da humildade dos animais 1 Assim seja qual for a perspectiva pela qual examinemos esse as sunto podemos observar que as causas do orgulho e da humildade satisfazem exatamente a nossa hipótese nada pode despertar essas paixões a menos que esteja relacionado conosco e além disso pro duza um prazer ou dor independentes dessa paixão Provamos não apenas que uma tendência a produzir prazer ou dor é comum a todas as causas do orgulho ou da humildade mas também que essa é a úni ca coisa comum a elas e conseqüentemente é a qualidade pela qual operam Provamos além disso que as causas mais importantes des sas paixões não são na realidade senão o poder de produzir sensações agradáveis ou desagradáveis e portanto todos os seus efeitos entre eles o orgulho e a humildade derivam exclusivamente dessa origem Princípios tão simples e naturais fundados em provas tão sólidas não podem deixar de ser aceitos pelos filósofos a menos que me tenha es capado alguma objeção 2 Os anatomistas costumam acrescentar a suas observações e ex perimentos sobre o corpo humano os que eles realizam sobre os ani mais e da concordância entre esses experimentos derivam um argu mento adicional em favor de uma hipótese particular qualquer De fato é certo que nos casos em que a estrutura das partes é a mesma nos animais e nos homens e em que a operação dessas partes também é a mesma as causas dessa operação não podem ser diferentes isso 359 Tratado da natureza humana nos permite concluir sem hesitar que tudo aquilo que descobrimos ser verdadeiro a propósito de uma espécie é certo também para a outra Assim embora seja correto presumir que a mistura dos humores e a composição das partículas seja um pouco diferente nos homens e nos animais e que portanto nem sempre os experimentos que fazemos sobre os efeitos de certos medicamentos em um caso se aplicam ao ou tro entretanto como a estrutura das veias e dos músculos a consti tuição e a localização do coração dos pulmões do estômago do fíga do e de outras partes são iguais ou quase iguais em todos os animais a mesma hipótese que explica o movimento muscular a progressão do quilo e a circulação do sangue em uma espécie deve ser aplicável também às outras Assim conforme essa hipótese concorde ou não com os experimentos que fizermos em uma espécie qualquer teremos uma prova de sua verdade ou falsidade Apliquemos pois este mé todo de investigação que se tem mostrado tão correto e útil nos racio cínios sobre o corpo à nossa anatomia da mente e vejamos que des cobertas nos permite fazer 3 Para isso temos primeiramente que mostrar a correspondência entre as paixões nos homens e nos animais e em seguida comparar as causas que produzem essas paixões 4 É claro que em quase todas as espécies de criaturas mas sobre tudo nas mais nobres há muitas e evidentes marcas de orgulho e hu mildade O próprio porte e o andar de um cisne um peru ou um pa vão mostram a altiva idéia que têm de si mesmos e seu desprezo para com os outros Isso é ainda mais notável porque nestas duas últimas espécies de animais o orgulho sempre acompanha a beleza e só apa rece no macho A vaidade e a emulação dos rouxinóis em seu canto tem sido observada com freqüência e também a do cavalo em sua ra pidez dos cães de caça em sua sagacidade e olfato do touro e do galo em sua força e de todos os outros animais em suas excelências pró prias Acrescentese a isso que todas as espécies que se aproximam do homem com tal freqüência que chegam a adquirir com ele uma fa miliaridade mostram um evidente orgulho por sua aprovação e com 360 Livro 2 Parte 1 Seção 12 prazemse com seus elogios e carinhos independentemente de qualquer outra consideração E não é o carinho de todos sem distinção que lhes provoca essa vaidade mas especialmente o das pessoas que conhe cem e amam exatamente como ocorre quando essa paixão é desperta da no homem Todas essas são provas evidentes de que o orgulho e a humildade não são paixões meramente humanas estendendose antes por todo o reino animal 5 As causas dessas paixões também são muito semelhantes nos ani mais e em nós ressalvando naturalmente nosso conhecimento e in teligência superiores Assim os animais têm pouco ou nenhum sen tido de virtude ou de vício perdem rapidamente de vista as relações de consangüinidade e são incapazes de estabelecer as do direito e de propriedade Por essa razão as causas de seu orgulho e humildade têm de estar exclusivamente em seu corpo e nunca em sua mente ou nos objetos externos Mas no que diz respeito ao corpo as qualidades que causam orgulho no animal são as mesmas que na espécie humana ou seja essa paixão se funda sempre na beleza força rapidez ou em al guma outra qualidade útil ou agradável 6 A próxima questão é saber se uma vez que essas paixões são as mesmas e surgem das mesmas causas em toda a criação a maneira pela qual as causas operam também é a mesma De acordo com todas as re gras da analogia é correto esperar que isso se dê e se ao fazermos um teste descobrirmos que a explicação que utilizamos para dar conta des ses fenômenos em uma espécie não se aplica às outras podemos pre sumir que essa explicação embora atraente é na verdade infundada 7 Para resolver essa questão consideremos que existe evidentemente a mesma relação de idéias e derivada das mesmas causas na mente dos animais e dos homens Um cachorro que escondeu um osso com fre qüência esquece o lugar onde o escondeu mas quando o trazemos a esse lugar seu pensamento passa facilmente àquilo que havia escon dido pela contigüidade que produz uma relação entre as idéias As sim também quando foi duramente castigado em um determinado local tremerá ao se aproximar dali mesmo que não descubra nenhum 361 Tratado da natureza humana sinal de perigo imediato Os efeitos da semelhança não são tão notá veis mas como essa relação constitui um ingrediente importante da causalidade da qual todos os animais mostram uma apreciação tão evidente podemos concluir que as três relações de semelhança con tigüidade e causalidade operam da mesma maneira sobre os animais e sobre as criaturas humanas 8 Há também exemplos da relação de impressões suficientes para nos convencer de que existe uma união entre certos afetos nas espé cies inferiores de criaturas tanto quanto nas superiores e que sua mente é freqüentemente conduzida ao longo de uma série de emoções interconectadas Um cachorro quando tomado pela alegria tornase naturalmente amoroso e afável seja para com seu dono seja para com o sexo oposto De modo semelhante quando cheio de dor e tristeza ele se torna bravo e irritadiço e à menor oportunidade a paixão que de início era de tristeza convertese em raiva 9 Assim todos os princípios internos necessários para produzir em nós o orgulho ou a humildade são comuns a todas as criaturas e como as causas que despertam essas paixões são também as mesmas po demos legitimamente concluir que essas causas operam da mesma maneira em todo o reino animal Minha hipótese é tão simples e su põe tão pouca reflexão e juízo que pode ser aplicada a todas as cria turas sensíveis isso não apenas deve ser considerado uma prova con vincente de sua veracidade mas ainda e tenho plena confiança disso servirá como objeção contra qualquer outro sistema 362 Seção 1 Parte 2 Do amor e do ódio Dos objetos e das causas do amor e do ódio 1 É absolutamente impossível definir o amor e o ódio porque essas paixões produzem apenas uma impressão simples e não comportam nenhuma mistura ou composição Seria igualmente inútil tentar descrevêlas tomando por base sua natureza origem causas e obje tos porque esses são justamente os temas de nossa investigação pre sente e porque essas paixões por si mesmas já são suficientemente conhecidas por nosso sentimento feeling e experiência comuns Já havíamos observado isso a respeito do orgulho e da humildade ago ra o estamos repetindo a propósito do amor e do ódio De fato é tão grande a semelhança entre esses dois pares de paixões que seremos obrigados a começar por uma espécie de resumo de nossos raciocínios concernentes às primeiras a fim de explicar estas últimas 2 Enquanto o objeto imediato do orgulho e da humildade é o eu ou seja aquela pessoa idêntica de cujos pensamentos ações e sensações 363 Tratado da natureza humana somos intimamente conscientes o objeto do amor e do ódio é algu ma outra pessoa de cujos pensamentos ações e sensações não te rnos consciência Isso fica bastante evidente pela experiência Nosso amor e ódio sempre se dirigem a algum ser sensível exterior a nós quando falamos em amor a si próprio não o fazemos em sentido es trito pois a sensação que essa paixão produz não tem nada em co mum com aquela terna emoção despertada por um amigo ou pela mulher amada O mesmo ocorre com o ódio Podemos nos sentir hu milhados por nossas próprias faltas e loucuras mas só sentimos raiva ou ódio quando prejudicados por outrem 3 Mas embora o objeto do amor e do ódio seja sempre alguma ou tra pessoa é claro que rigorosamente falando esse objeto não é a causa dessas paixões e tampouco por si só é suficiente para despertá las Pois urna vez que o amor e o ódio são diretamente contrários em sua sensação e têm em comum o mesmo objeto se esse objeto fosse também sua causa ele produziria essas paixões opostas no mesmo grau e assim desde o primeiro instante elas se destruiriam mutua mente e nenhuma das duas jamais poderia aparecer Portanto tem de haver alguma causa diferente do objeto 4 Se considerarmos as causas do amor e do ódio veremos que são bastante diversificadas e que não têm muito em comum urnas com as outras A virtude o conhecimento a espirituosidade o bom senso e o bom temperamento de urna pessoa produzem amor e apreço e as qualidades contrárias produzem ódio e desprezo As mesmas pai xões nascem de dotes físicos corno beleza força rapidez destreza e seus contrários e também das vantagens e desvantagens externas corno família posses roupas país e clima Cada um desses objetos por suas diferentes qualidades pode produzir amor e apreço ou ódio e desprezo 5 Do exame dessas causas podemos derivar urna nova distinção entre a qualidade operante e o sujeito em que essa qualidade se encon tra Um príncipe que possui um palácio magnífico obtém o apreço de seu povo por este motivo primeiro pela beleza do palácio e segundo 364 Livro 2 Parte 2 Seção 1 pela relação de propriedade que os conecta A supressão de qualquer um desses fatores destrói a paixão o que é uma prova evidente de que a causa é composta 6 Seria entediante refazer a propósito das paixões do amor e do ódio todas as observações que fizemos a respeito do orgulho e da humildade e que são igualmente aplicáveis aos dois pares de paixões Basta notar em geral que o objeto do amor e do ódio é evidentemente alguma pessoa pensante e a sensação da primeira paixão é sempre agradável ao passo que a da segunda é desagradável Podemos também supor com alguma pretensão de probabilidade que a causa de ambas as paixões está sempre relacionada com um ser pensante e que a causa da primeira produz separadamente um prazer e a da segunda um malestar 7 A primeira suposição que a causa do amor e do ódio para pro duzir essas paixões tem de estar relacionada com uma pessoa ou ser pensante é não apenas provável mas evidente demais para ser con testada A virtude e o vício quando considerados em abstrato a be leza e a fealdade quando residem em objetos inanimados a pobreza e a riqueza quando atributos de uma terceira pessoa não excitam grau algum de amor ou de ódio de apreço ou de desprezo por aqueles que não têm nenhuma relação com tais coisas Uma pessoa olha pela ja nela e me vê passando na rua atrás de mim vê um belo palácio que não tem nada a ver comigo Creio que ninguém irá afirmar que essa pessoa terá por mim o mesmo respeito que teria se fosse eu o dono do palácio 8 Mas que essas paixões precisem de uma relação de impressões isso não é algo tão imediatamente evidente porque na transição uma impressão se confunde a tal ponto com a outra que elas se tornam de certa forma indistinguíveis Mas como no caso do orgulho e da humildade pudemos facilmente fazer tal separação e provar que toda causa dessas paixões produz uma dor ou um prazer separados eu poderia seguir aqui o mesmo método e com o mesmo sucesso exa minando cada causa particular de amor e de ódio Entretanto tenho pressa em fornecer uma prova completa e decisiva desses sistemas e 3 65 Tratado da natureza humana por esse motivo adiarei esse exame por um momento Enquanto isso tentarei converter à minha tese presente todos os meus raciocínios concernentes ao orgulho e à humildade por meio de um argumento fundado sobre uma experiência inquestionável 9 Poucas pessoas estando satisfeitas com seu próprio caráter ta lento ou fortuna não desejarão se exibir ao mundo e ganhar o amor e a aprovação da humanidade Ora é evidente que exatamente as mes mas qualidades e circunstâncias que causam orgulho ou autoestima causam também vaidade ou o desejo de uma boa reputação e que sempre exibimos aos outros as peculiaridades com as quais nós pró prios estamos mais satisfeitos Mas se o amor e o apreço não fossem produzidos pelas mesmas qualidades que o orgulho conforme es sas qualidades estejam relacionadas conosco ou com os outros esse modo de proceder seria inteiramente absurdo pois os homens não poderiam esperar encontrar uma correspondência entre seus próprios sentimentos e os de todas as outras pessoas É verdade que poucos são capazes de construir sistemas exatos sobre as paixões ou refletir acerca de sua natureza geral e suas semelhanças Mas mesmo sem esse avanço na filosofia não estamos sujeitos a muitos erros quanto a este ponto pois somos suficientemente guiados pela experiência corrente bem como por uma espécie de présensação que nos permite saber o que se passa com os outros com base no que sentimos ime diatamente em nós mesmos Portanto como as mesmas qualidades que produzem orgulho ou humildade causam amor ou ódio todos os argumentos que utilizamos para provar que as causas daquelas paixões geram uma dor ou um prazer independentes da paixão po derão ser aplicados com igual evidência às causas destas últimas Seção 2 Experimentos que confirmam este sistema 1 Após considerar devidamente esses argumentos ninguém he sitará em concordar com a conclusão que deles extraí a respeito da 366 Livro 2 Parte 2 Seção 2 transição entre impressões e idéias relacionadas sobretudo por se tratar de um princípio em si mesmo tão fácil e natural Mas para que possamos isentar este sistema de qualquer dúvida tanto em relação ao amor e ao ódio como em relação ao orgulho e à humilda de convém fazer alguns novos experimentos acerca de todas essas paixões e ao mesmo tempo recordar algumas das observações antes esboçadas 2 Para realizar tais experimentos suponhamos que eu esteja na companhia de uma pessoa por quem anteriormente não nutria ne nhum sentimento de amizade ou inimizade Tenho neste caso dian te de mim o objeto natural e último dessas quatro paixões Eu mes mo sou o objeto próprio do orgulho ou da humildade e a outra pessoa do amor ou do ódio 3 Examinemos agora atentamente a natureza dessas paixões e sua situação recíproca É evidente que temos aqui quatro afetos dispos tos como em um quadrado de forma que ao mesmo tempo que es tão conectados mantêm entre si uma distância regular As paixões de orgulho e humildade bem como as de amor e ódio conectamse pela identidade de seu objeto que no caso do primeiro par de pai xões é o eu e no do segundo alguma outra pessoa Essas duas li nhas de comunicação ou conexão formam dois lados opostos do qua drado Mais ainda orgulho e amor são paixões agradáveis ódio e humildade desagradáveis Essa similitude de sensação entre o orgu lho e o amor e entre a humildade e o ódio constitui uma nova cone xão e podemos considerar que ela forma os dois outros lados do qua drado Em resumo o orgulho está conectado com a humildade e o amor com o ódio por meio de seus objetos ou idéias e o orgulho está conectado com o amor e a humildade com o ódio por meio de suas sensações ou impressões 4 Digo então que nada poderá produzir uma dessas paixões se não mantiver com ela uma dupla relação uma relação de idéias com o objeto da paixão e de sensação com a própria paixão É isso que te mos de provar por meio de nossos experimentos 367 Tratado da natureza humana 5 Primeiro experimento Para proceder da forma mais ordenada pos sível nesses experimentos suponhamos primeiramente que estan do eu na situação acima mencionada isto é na companhia de algu ma outra pessoa apresentese a nós um objeto sem nenhuma relação de impressões ou de idéias com nenhuma dessas paixões Suponha mos por exemplo que nós dois estejamos olhando para uma pedra qualquer ou outro objeto corriqueiro que não pertence a nenhum de nós e que não causa por si mesmo nenhuma emoção ou seja nenhuma dor ou prazer independentes É evidente que tal objeto não produzirá nenhuma dessas quatro paixões Façamos um teste com cada uma delas sucessivamente Apliquemolo ao amor ao ódio à humildade e ao orgulho nenhum deles é despertado sequer no mí nimo grau imaginável Troquemos de objeto tantas vezes quantas de sejarmos contanto que escolhamos sempre um que não tenha ne nhuma dessas duas relações Repitamos o experimento em todas as disposições de que a mente é capaz Nenhum objeto em meio à imensa variedade da natureza e em nenhuma disposição irá produzir qual quer paixão sem essas relações 6 Segundo experimento Já que um objeto que careça dessas duas relações nunca poderá produzir uma paixão vamos conferir a ele ape nas uma dessas relações e observar o que acontece Suponhamos assim que eu olhe para uma pedra ou para algum objeto corriqueiro que pertença a mim ou a meu companheiro e adquira desse modo uma relação de idéias com o objeto das paixões É claro que conside randose a questão a priori não é razoável esperar nenhum tipo de emoção Pois a relação de idéias além de operar de forma secreta e calma sobre a mente confere a esta um impulso equivalente em di reção às paixões opostas de orgulho e de humildade de amor e de ódio conforme o objeto pertença a nós ou a outrem e essa oposição entre as paixões deve destruílas deixando a mente completamente livre de qualquer afeto ou emoção Esse raciocínio a priori se confir ma pela experiência Nenhum objeto trivial ou comum que não cau se nem dor nem prazer independentes da paixão jamais será capaz 368 Livro 2 Parte 2 Seção 2 por sua relação de propriedade conosco ou com os outros ou por qualquer outra relação de produzir os afetos do orgulho ou da hu mildade do amor ou do ódio 7 Terceiro experimento É evidente portanto que uma relação de idéias não é capaz de sozinha gerar esses afetos Suprimamos agora essa relação e em seu lugar coloquemos uma relação de impressões apresentando um objeto que seja agradável ou desagradável mas que não tenha nenhuma relação conosco ou com nosso companheiro e observemos as conseqüências Considerandose a questão primei ramente a priori como no experimento anterior podemos concluir que o objeto terá uma conexão pequena mas incerta com essas pai xões É verdade que além de essa relação não ser fria e imperceptí vel ela não tem o inconveniente da relação de idéias nos dirige com a mesma força para duas paixões contrárias as quais por sua oposi ção destroemse mutuamente Mas se considerarmos por outro lado que essa transição da sensação ao afeto não é auxiliada por nenhum princípio que produza uma transição de idéias e que ao contrário embora uma das impressões seja facilmente transfundida para a ou tra a troca dos objetos é supostamente contrária a todos os princípios que causam uma transição desse tipo podemos inferir daí que aqui lo que está conectado com uma paixão apenas por uma relação de impressões nunca poderá ser uma causa firme ou duradoura dessa paixão Comparando esses argumentos nossa razão concluiria por analogia que um objeto que produz prazer ou desprazer mas que não tem nenhuma conexão conosco ou com os outros pode impri mir uma tal direção a nossa disposição que a faça inclinarse natu ralmente para o orgulho ou para o amor para a humildade ou para o ódio e buscar outros objetos sobre os quais por uma dupla relação possa fundar esses afetos mas um objeto que tenha apenas uma des sas relações ainda que seja a mais favorável nunca poderá gerar uma paixão constante e firme 8 Felizmente constatamos que todo esse raciocínio é exatamente conforme à experiência e aos fenômenos das paixões Suponhamos 369 Tratado da natureza humana que eu estivesse viajando com um companheiro por um país em que nós dois fôssemos completos desconhecidos é evidente que se a paisagem fosse bela a estrada agradável e as estalagens confortáveis isso talvez me pusesse num alegre estado de espírito tanto em rela ção a mim mesmo quanto a meu companheiro de viagem Mas como estamos supondo que esse país não tem nenhuma relação nem comi go nem com meu amigo ele nunca poderia ser causa imediata de or gulho ou de amor e portanto se eu não fundamentar a paixão em algum outro objeto que mantenha com um de nós uma relação mais estreita minhas emoções deverão ser consideradas antes como trans bordamentos de uma disposição nobre ou generosa que como uma paixão estabelecida O mesmo acontece quando o objeto produz um malestar 9 Quarto experimento Havendo descoberto que se um objeto não tem nenhuma relação de idéias ou impressões ou se tem apenas uma relação nunca poderá causar orgulho ou humildade nem amor ou ódio a razão por si só pode nos convencer sem mais experimentos que tudo que possua uma dupla relação deve necessariamente desper tar essas paixões pois é evidente que elas têm de ter alguma causa Mas para deixar o menor espaço possível para dúvidas vamos refazer nossos experimentos e ver se o que acontece nesse caso corresponde às nossas expectativas Escolho um objeto como por exemplo a virtude que causa uma satisfação separada A esse objeto atribuo uma rela ção com o eu e constato que essa situação gera imediatamente uma paixão Mas que paixão Precisamente a do orgulho com que esse objeto mantém uma dupla relação Sua idéia está relacionada à do eu objeto da paixão e a sensação que causa se assemelha à sensação da paixão Para assegurarme de que não estou enganado acerca deste experimento suprimo primeiro uma relação e depois a outra e vejo que cada supressão destrói a paixão deixando a mente inteira mente indiferente Mas não me contento com isso e faço um novo teste em vez de suprimir a relação apenas a substituo por outra de um tipo diferente Suponho que a virtude pertence a meu companhei 3 70 Livro 2 Parte 2 Seção 2 ro e não a mim e observo o que se segue dessa alteração Percebo imediatamente que os afetos mudam de direção afastandose do orgulho em que existe apenas uma relação de impressões e vol tandose para o lado do amor a que são atraídos por uma dupla re lação de impressões e idéias Se repetir o mesmo experimento tro cando novamente a relação de idéias reconduzo os afetos de volta ao orgulho e se o repetir ainda mais uma vez novamente os dirijo para o amor ou afeição Plenamente convencido da influência des sa relação experimento os efeitos da outra troco a virtude pelo ví cio e assim converto a impressão agradável decorrente da primeira em uma impressão desagradável procedente deste último O efeito ainda corresponde à expectativa Quando reside em outra pessoa o vício desperta por meio de sua dupla relação a paixão do ódio em lugar do amor que pela mesma razão decorre da virtude Continu ando o experimento mudo novamente a relação de idéias e suponho que o vício pertence a mim O que acontece O de costume uma trans formação subseqüente da paixão de ódio em humildade Essa hu mildade eu converto em orgulho alterando novamente a impressão e constato que afinal completei o círculo e que por meio dessas tro cas trouxe a paixão de volta à mesma situação em que a encontrei pela primeira vez 10 Mas para tornar esse ponto ainda mais certo altero o objeto em vez do vício e da virtude faço o teste com a beleza e a fealdade a rique za e a pobreza o poder e a servidão Se formos trocando suas relações cada um desses objetos percorre o círculo das paixões da mesma maneira E seja qual for a ordem em que procedamos do orgulho ao amor ao ódio e à humildade ou da humildade ao ódio ao amor e ao orgulho o experimento se mantém inalterado É verdade que em algumas ocasiões o apreço e o desprezo surgem em lugar do amor e do ódio mas tratase no fundo das mesmas paixões apenas diver sificadas por algumas causas que explicaremos posteriormente 1 1 Quinto experimento Para conferir maior autoridade a esses ex perimentos alteremos a situação tanto quanto possível apresentando 3 71 Tratado da natureza humana as paixões e os objetos em todas as diferentes posições de que são suscetíveis Suponhamos além das relações já mencionadas que a pessoa com a qual realizo todos esses experimentos esteja estreita mente conectada a mim por consangüinidade ou amizade Suponha mos que seja meu filho ou irmão ou que esteja unida a mim por uma longa familiaridade Suponhamos em seguida que a causa da paixão adquira uma dupla relação de impressões e de idéias com essa pessoa Vejamos quais os efeitos dessas complicadas atrações e relações 12 Antes de considerarmos quais são de fato esses efeitos determi nemos quais deveriam ser de acordo com minha hipótese É claro que conforme a impressão seja agradável ou desagradável terá de ser de amor ou ódio a paixão dirigida à pessoa conectada com a causa da impressão por meio dessa dupla relação que afirmei esse tempo todo ser necessária A virtude de um irmão deve me fazer amálo e seu vício ou má reputação despertará a paixão contrária Mas a se julgar apenas pelo estado de coisas eu não deveria esperar que os afetos se detivessem aí e nunca se transfundissem em outras impressões Já que aqui existe uma pessoa que por meio de uma dupla relação é objeto de minha paixão o mesmo raciocínio me leva a pensar que a paixão irá mais adiante A pessoa segundo nossa suposição tem co migo uma relação de idéias a paixão da qual ela é objeto sendo agra dável ou desagradável tem uma relação de impressões com o orgu lho ou a humildade É evidente então que uma dessas paixões tem de resultar do amor ou ódio 13 Esse é o raciocínio que formo em conformidade com minha hi pótese e fico feliz ao descobrir quando o ponho à prova que tudo se dá exatamente como eu esperava A virtude ou o vício de um filho ou irmão não só despertam amor ou ódio mas por uma nova transição decorrente de causas similares geram orgulho ou humildade Nada nos causa maior vaidade que o fato de nossos parentes possuírem alguma qualidade notável ao contrário nada nos humilha mais que seu vício ou descrédito Essa exata conformidade da experiência com 3 72 Livro 2 Parte 2 Seção 2 nosso raciocínio é uma prova convincente da solidez da hipótese com base na qual raciocinamos 14 Sexto experimento Essa evidência será ainda maior se inverter mos o experimento conservando as mesmas relações mas começando com uma paixão diferente Suponhamos que em vez da virtude ou vício de um filho ou irmão que causa primeiramente amor ou ódio e em seguida orgulho ou humildade atribuamos a nós mesmos essas duas qualidades boa e má que não teriam nenhuma conexão imediata com a pessoa relacionada a nós A experiência nos mostra que em virtude dessa mudança de situação toda a cadeia se quebra e a mente não é mais conduzida de uma paixão à outra como no exem plo anterior Nunca amamos ou odiamos um filho ou irmão pela vir tude ou vício que discernimos em nós mesmos mas é evidente que essas mesmas qualidades quando neles situadas produzem em nós um orgulho ou humildade bastante sensíveis À primeira vista pode se pensar que isso é contrário à minha hipótese pois as relações de impressões e idéias são em ambos os casos precisamente iguais Or gulho e humildade são impressões relacionadas ao amor e ao ódio Eu mesmo tenho uma relação com a pessoa Portanto como causas semelhantes têm de produzir efeitos semelhantes seria de esperar que uma transição perfeita surgisse da dupla relação como em to dos os outros casos Podemos facilmente resolver essa dificuldade pelas seguintes reflexões 15 É evidente que como estamos em todos os momentos intima mente conscientes de nós mesmos de nossos sentimentos e paixões as idéias destes devem nos tocar com maior vividez que as idéias dos sentimentos e paixões de qualquer outra pessoa Mas tudo que nos toca com vividez e aparece sob uma luz forte e plena como que se impõe a nossa consideração fazendose presente à mente à menor sugestão e à mais leve relação Pela mesma razão uma vez presente prende a aten ção impedindoa de se desviar para outros objetos por mais forte que seja a relação destes com nosso primeiro objeto A imaginação passa fa cilmente das idéias obscuras às vívidas mas tem dificuldade em passar 373 Tratado da natureza humana das vívidas às obscuras No primeiro caso a relação é auxiliada por um outro princípio no segundo é contrariada por ele 16 Ora observei que essas duas faculdades da mente a imaginação e as paixões auxiliamse mutuamente em suas operações quando suas propensões são similares e quando agem sobre o mesmo objeto A mente sempre apresenta uma propensão a passar de uma paixão a qualquer outra que esteja relacionada com ela e essa propensão é favorecida quando o objeto de uma das paixões tem uma relação com o objeto da outra Os dois impulsos coincidem tornando toda a tran sição mais suave e fácil Mas se acontecesse à relação de idéias que mesmo continuando estritamente a mesma não mais causasse uma transição da imaginação é evidente que sua influência sobre as pai xões também teria de cessar já que depende inteiramente dessa tran sição É por essa razão que o orgulho ou a humildade não se transfor mam em amor ou ódio com a mesma facilidade com que estas últimas paixões se transformam nas primeiras Se um homem é meu irmão eu também sou seu irmão Mas embora as relações sejam recípro cas elas têm efeitos muito diferentes sobre a imaginação A passa gem é suave e livre quando se faz da consideração de uma pessoa re lacionada conosco à de nossa própria pessoa de quem estamos a todo momento conscientes Mas uma vez os afetos tendo sido dirigidos a nós a fantasia não passa com a mesma facilidade deste objeto para outra pessoa por mais estreita que seja sua relação conosco Essa tran sição fácil ou difícil da imaginação atua sobre as paixões facilitando ou retardando sua transição e isso constitui uma clara prova de que essas duas faculdades paixões e imaginação são interconectadas e que as relações de idéias exercem uma influência sobre os afetos Inumeráveis experimentos provam essa afirmação Além disso cons tatamos aqui que mesmo quando a relação permanece se alguma circunstância particular a impede de exercer sobre a fantasia seu efeito usual ou seja de produzir uma associação ou transição de idéias fica também impedido seu efeito usual sobre as paixões que é conduzir nos de uma à outra 3 74 Livro 2 Parte 2 Seção 2 17 Talvez alguns vejam uma contradição entre esse fenômeno e o da simpatia em que a mente passa facilmente da idéia de nós mesmos à de qualquer outro objeto relacionado conosco Mas essa dificuldade desaparecerá se considerarmos que na simpatia nossa própria pessoa não é objeto de nenhuma paixão e não há nada que fixe nossa atenção sobre nós mesmos como ocorre no caso presente em que por supo sição somos movidos pelo orgulho ou pela humildade Nosso eu sem a percepção de outros objetos na realidade não é nada Por essa razão devemos voltar nosso olhar para os objetos externos e é natural que consideremos com maior atenção aqueles que nos são contíguos ou semelhantes Mas quando o eu é objeto de alguma paixão não é na tural deixar de considerálo até que a paixão se esgote caso em que a dupla relação de impressões e idéias não pode mais operar 1 8 Sétimo experimento Para testar mais uma vez todo esse raciocínio façamos um novo experimento Como já vimos os efeitos das relações de paixões e idéias suponhamos agora uma identidade de paixões jun tamente com uma relação de idéias e examinemos os efeitos dessa nova situação É evidente que temos toda razão de esperar aqui uma transi ção das paixões de um objeto ao outro pois estamos supondo que a relação de idéias continua e uma identidade de impressões tem de pro duzir uma conexão mais forte que a mais perfeita semelhança que se possa imaginar Se portanto uma dupla relação de impressões e idéias é capaz de produzir uma transição de uma à outra quanto mais uma identidade de impressões juntamente com uma relação de idéias Cons tatamos assim que quando amamos ou odiamos uma pessoa as pai xões raramente se mantêm em seus limites iniciais ao contrário es tendemse em direção aos objetos contíguos incluindo os amigos e parentes daquele que amamos ou odiamos Nada é mais natural que sentir afeição por alguém apenas em virtude de nossa amizade por seu Sobretudo nesta seção e mais adiante na Seção 7 da Parte 3 pareceme mais natural ler contiguous como próximo e não como contíguo Entretanto em razão da impor tância da contigüidade em Hume como um dos princípios de associação procurei sem pre que possível manter a tradução mais literal NT 3 75 Tratado da natureza humana irmão sem examinar mais a fundo seu próprio caráter Uma desaven ça com uma pessoa nos faz odiar toda a sua família mesmo que esta seja inteiramente inocente da razão de nosso desagrado Exemplos desse tipo encontramse em toda parte 19 Há apenas uma dificuldade neste experimento que teremos de resolver antes de passarmos adiante É evidente que embora todas as paixões passem facilmente de um objeto a outro a ele relacionado essa transição se faz com mais facilidade quando o objeto mais im portante se apresenta primeiro sendo seguido pelo menos importante do que quando essa ordem é invertida e o menos importante prece de o primeiro Assim é mais natural amarmos o filho por causa do pai que o pai por causa do filho o criado por causa do senhor que o senhor por causa do criado o súdito por causa do príncipe que o prín cipe por causa do súdito De maneira semelhante é mais fácil con trairmos um ódio por toda uma família quando nossa primeira desa vença foi com seu chefe do que quando foi um filho um criado ou algum outro membro inferior quem nos ofendeu Em suma para nossas paixões como para outros objetos é mais fácil descer que subir 20 Para compreendermos em que consiste a dificuldade de explicar esse fenômeno devemos considerar que precisamente a mesma ra zão que determina a imaginação a passar dos objetos distantes aos contíguos com mais facilidade que dos contíguos aos distantes tam bém faz com que ela mude mais facilmente do menor para o maior que do maior para o menor Aquilo que tem maior influência se nota mais e aquilo que se nota mais se apresenta mais prontamente à ima ginação Qualquer que seja o assunto temos uma tendência maior a negligenciar aquilo que é trivial do que aquilo que parece mais impor tante sobretudo se este último precede aquele e atrai primeiro nossa atenção Assim por exemplo se acidentalmente somos levados a consi derar os satélites de Júpiter nossa fantasia se vê naturalmente determi nada a formar a idéia desse planeta mas se pensarmos primeiro no planeta principal é mais natural negligenciarmos os que o acompa nham A menção das províncias de um império conduz nosso pensa 3 76 Livro 2 Parte 2 Seção 2 mento ao centro deste mas a fantasia não retorna com a mesma fa cilidade para a consideração das províncias A idéia do criado nos faz pensar em seu amo a do súdito leva nossa visão até o príncipe Mas a mesma relação não tem igual influência para nos trazer de volta Esse é o fundamento da acusação de Cornélia a seus filhos de que de veriam se envergonhar por ela ser mais conhecida como filha de Cipião que como mãe dos Gracos Em outras palavras Cornélia exortavaos a se tornar tão ilustres e famosos quanto seu avô pois senão a ima ginação do povo ao partir dela que ocupava uma posição intermediá ria e igualmente relacionada ao pai e aos filhos sempre se desviaria destes designandoa pelo nome daquele que era mais importante e digno de consideração Sobre o mesmo princípio baseiase o costu me comum de dar às esposas o nome de seus maridos em vez de aos maridos o nome de suas esposas como também a formalidade de dar precedência àqueles que honramos e respeitamos Poderíamos en contrar muitos outros exemplos para confirmar esse princípio se ele já não fosse suficientemente evidente 21 Ora como a fantasia encontra a mesma facilidade para passar do menor ao maior que do distante ao contíguo por que essa transição fácil entre idéias não auxilia a transição das paixões no primeiro caso assim como no segundo As virtudes de um amigo ou irmão produ zem primeiro amor e depois orgulho porque nesse caso a imaginação passa do distante ao contíguo de acordo com sua inclinação Nossas próprias virtudes não produzem primeiro orgulho e então amor por um amigo ou irmão porque a passagem nesse caso seria do contíguo ao distante contrariando a propensão da imaginação Mas o amor ou o ódio por um inferior não causa prontamente uma paixão pelo superior embora essa seja a propensão natural da imaginação ao passo que o amor ou ódio por um superior causa uma paixão pelo inferior contrariamente à sua propensão Em resumo a mesma facilidade de transição não atua da mesma maneira em relação ao superior e ao inferior que em relação ao contíguo e ao distante Esses dois fenômenos parecem contraditó rios e requerem alguma atenção para serem conciliados 3 77 Tratado da natureza humana 22 Como a transição de idéias aqui se faz em direção contrária à da tendência natural da imaginação essa faculdade deve ser sobrepujada por algum princípio mais forte de outro tipo e como nada jamais está presente à mente senão impressões e idéias esse princípio deve es tar necessariamente nas impressões Ora já observamos que as im pressões ou paixões só se conectam por sua semelhança e quando duas paixões põem a mente na mesma disposição ou em disposições similares ela passa muito naturalmente de uma à outra e ao contrá rio uma incompatibilidade entre as disposições produz uma dificul dade na transição das paixões Notemos porém que essa incompa tibilidade pode nascer de uma diferença de graus assim como de espécie experimentamos a mesma dificuldade em passar subitamente de um pequeno grau de amor a um pequeno grau de ódio quanto em passar de um pequeno a um alto grau de apenas um desses afetos Quando um homem está calmo ou apenas moderadamente agitado ele é tão diferente sob todos os aspectos daquilo que é quando aba lado por uma paixão violenta que não poderia haver duas pessoas mais dessemelhantes e não é fácil passar de um extremo ao outro sem um intervalo considerável entre os dois 23 A dificuldade não é menor se é que não é ainda maior em passar da paixão forte à fraca que da fraca à forte contanto que uma das pai xões ao aparecer destrua a outra e as duas não existam ao mesmo tempo Mas o caso é inteiramente diferente quando as paixões se unem e atuam ao mesmo tempo na mente A adição de uma paixão fraca a uma forte não provoca uma mudança tão considerável na disposição quanto a adição de uma paixão forte a uma fraca por essa razão existe uma conexão mais estreita do grau maior ao menor que do menor ao maior 24 O grau de uma paixão depende da natureza de seu objeto um afeto dirigido a uma pessoa que é importante para nós ocupa e se apodera da mente muito mais que um afeto cujo objeto seja uma pessoa que consideramos menos importante Mostrase aqui portanto a con tradição entre as propensões da imaginação e da paixão Quando diri 3 78 Livro 2 Parte 2 Seção 2 gimos nosso pensamento para um objeto grande e outro pequeno a imaginação encontra uma facilidade maior em passar do pequeno ao grande que do grande ao pequeno mas os afetos encontram uma maior dificuldade E como estes últimos constituem um princípio mais poderoso que a imaginação não é de admirar que prevaleçam sobre ela puxando a mente em sua direção Apesar da dificuldade de pas sar da idéia do que é grande para a do que é pequeno uma paixão dirigida ao primeiro sempre produz uma paixão similar pelo segun do quando o grande e o pequeno estão relacionados A idéia do criado conduz nosso pensamento mais rapidamente à do senhor mas o ódio ou o amor pelo senhor produz com mais facilidade raiva ou benevo lência em relação ao criado Neste caso a paixão mais forte tem a precedência e como a adição da mais fraca não provoca uma mudança considerável na disposição a passagem entre elas se torna desse modo mais fácil e natural 25 No experimento anterior vimos que quando uma relação de idéias por uma circunstância particular qualquer deixa de produzir seu efeito usual de facilitar a transição de idéias ela também deixa de atuar sobre as paixões Assim também neste experimento encon tramos a mesma propriedade nas impressões Dois graus diferentes da mesma paixão certamente estão relacionados mas se o menor se apresentar primeiro terá pouca ou nenhuma tendência a introduzir o maior isso porque a adição do maior ao menor produz uma altera ção mais sensível em nosso humor que a adição do menor ao maior Esses fenômenos quando corretamente examinados constituem pro vas convincentes da presente hipótese 26 Poderemos confirmar essas provas se considerarmos a maneira pela qual a mente resolve a contradição que observei existir entre as pai xões e a imaginação A fantasia passa com mais facilidade do menor ao maior que do maior ao menor mas é mais fácil uma paixão violenta produzir uma fraca que uma paixão fraca produzir uma violenta Nes sa oposição a paixão acaba prevalecendo sobre a imaginação mas nor malmente ela o faz condescendendo com esta e buscando uma outra 3 79 Tratado da natureza humana qualidade que possa contrabalançar esse princípio de que resulta a oposição Quando amamos o pai ou o chefe de uma família quase não pensamos em seus filhos ou criados Mas quando estes se encontram em nossa presença ou quando está em nosso poder ajudálos neste caso a proximidade ou contigüidade aumenta sua magnitude ou ao menos suprime a oposição da fantasia à transição dos afetos Se a ima ginação encontra dificuldade em passar do maior ao menor encontra uma facilidade equivalente em passar do distante ao contíguo o que equilibra as coisas deixando livre o caminho de uma paixão à outra 27 Oitavo experimento Já observei que a transição do amor ou ódio ao orgulho ou humildade é mais fácil que a do orgulho ou humilda de ao amor ou ódio e a dificuldade que a imaginação encontra ao passar do contíguo ao distante explica por que não temos quase ne nhum exemplo desta última transição de afetos Entretanto tenho de abrir uma exceção a saber quando a própria causa do orgulho e da humildade se encontra em outra pessoa Pois aqui a imaginação é compelida a considerar a pessoa e não lhe é possível confinar sua visão em nós mesmos Assim nada produz mais facilmente ternura e afei ção por uma pessoa que sua aprovação de nossa conduta e caráter em contrapartida nada nos inspira maior ódio do que sua censura ou desprezo É evidente que aqui a paixão original é o orgulho ou a hu mildade cujo objeto é o eu e essa paixão se transforma em amor ou ódio cujo objeto é alguma outra pessoa não obstante a regra que já estabeleci a saber que a imaginação passa com dificuldade do contíguo ao distante Mas a transição neste caso não se faz apenas em virtude da relação entre nós e a pessoa e sim porque essa mesma pessoa é a verdadeira causa de nossa primeira paixão e em conseqüência disso está intimamente conectada com esta É sua aprovação que produz orgulho e sua desaprovação humildade Não é de espantar portan to que a imaginação retorne a essa causa acompanhada das paixões relacionadas do amor e do ódio Isso não é uma contradição mas uma exceção à regra e uma exceção que resulta da mesma razão que a pró pria regra 380 Livro 2 Parte 2 Seção 3 28 Uma tal exceção é portanto antes uma confirmação da regra De fato se considerarmos os oito experimentos que acabo de expor veremos que o mesmo princípio aparece em todos eles e é por meio de uma transição resultante de uma dupla relação de impressões e idéias que se produzem o orgulho e a humildade o amor e o ódio Um objeto sem1 relação ou2 com apenas uma relação nunca produz nenhuma dessas paixões e constatamos3 que a paixão sempre varia em conformidade com a relação Além disso podemos observar que quando a relação por alguma circunstância particular não tem seu efeito usual de produzir uma transição de4 idéias ou de impressões ela deixa de atuar sobre as paixões não produzindo nem orgulho nem amor nem humildade nem ódio Constatamos que essa regra se man tém 5 mesmo quando o que ocorre parece contrariála Assim freqüen temente temos a experiência de uma relação que não produz nenhum efeito ao examinála porém descobrimos que isso se deve a algu ma circunstância particular que impede a transição e por outro lado nos casos em que essa circunstância embora presente não impede a transição descobrimos que isso se deve à presença de alguma outra circunstância que a contrabalança Desse modo não apenas as varia ções se reduzem ao princípio geral mas também as variações dessas variações Seção 3 Solução das dificuldades 1 Após tantas provas inegáveis extraídas da experiência e da ob servação diárias parece supérfluo examinar agora uma por uma todas as causas do amor e do ódio Por esse motivo utilizarei o res 1 Primeiro experimento 2 Segundo e terceiro experimentos 3 Quarto experimento 4 Sexto experimento 5 Sétimo e oitavo experimentos 381 Tratado da natureza humana tante desta parte para em primeiro lugar eliminar algumas dificulda des concernentes às causas particulares dessas paixões e em segun do lugar examinar os afetos compostos resultantes da mistura do amor e do ódio com outras emoções 2 Nada é mais evidente que o fato de que as pessoas obtêm nossa afeição ou se expõem à nossa má vontade na proporção direta do pra zer ou desprazer que delas recebemos e que as paixões mantêm exa tamente o mesmo ritmo que as sensações em todas as suas mudan ças e variações Aquele que encontra uma maneira de se tornar útil ou agradável a nós seja por meio de seus serviços sua beleza ou sua adulação pode estar certo de que terá nossa afeição Ao contrário aquele que nos prejudica ou desagrada sempre despertará nossa raiva ou ódio Quando nossa nação está em guerra com outra detestamos todos os membros desta última acusandoos de cruéis pérfidos in justos e violentos a nós e a nossos aliados porém consideramos sem pre justos moderados e dementes Se o general de nossos inimigos consegue leválos à vitória dificilmente reconhecemos nele um ca ráter ou traços humanos É um feiticeiro tem parte com o demônio como se dizia de Oliver Cromwell e do Duque de Luxemburgo é san guinário tem prazer em matar e destruir Mas se a vitória é nossa então nosso comandante tem todas as qualidades opostas é um modelo de virtude bem como de coragem e boa conduta A sua trai ção chamamos estratégia sua crueldade é um mal inseparável da guer ra Em suma procuramos atenuar cada uma de suas faltas ou então dignificála dandolhe o nome da virtude que dela se aproxima É evidente que o mesmo método de pensamento está presente em toda a vida comum 3 Alguns acrescentam uma outra condição afirmam que não ape nas a outra pessoa deve produzir em nós uma dor ou um prazer mas deve produzilos conscientemente com um propósito e uma intenção particulares Um homem que nos fere e prejudica aciden talmente não se torna nosso inimigo só por essa razão e tampouco pensamos estar obrigados por laços de gratidão a alguém que nos 382 Livro 2 Parte 2 Seção 3 presta um serviço da mesma maneira É pela intenção que julgamos as ações conforme seja boa ou má as ações se tornam causas de amor ou de ódio 4 Aqui devemos porém fazer uma distinção Se a qualidade que nos agrada ou desagrada em alguém for constante e inerente a sua pessoa e caráter causará amor ou ódio independentemente da inten ção se não for assim serão necessários um conhecimento e uma in tenção para dar origem a essas paixões Uma pessoa cuja feiúra ou insensatez nos é desagradável se torna objeto de nossa aversão em bora seja evidente que ela não tem a menor intenção de nos descon tentar por essas qualidades Mas se o desagrado não provém de uma qualidade e sim de uma ação que se produz e é aniquilada em um instante ele precisa ser derivado de uma premeditação e de um pro pósito particular para produzir alguma relação e uma conexão forte o suficiente entre essa ação e a pessoa Não basta que a ação derive da pessoa e tenha nela sua causa imediata e seu autor Tal relação por si só é demasiadamente fraca e inconstante para ser o fundamento des sas paixões Não alcança a parte sensível e pensante e tampouco pro cede de algo duradouro na pessoa não deixa nada atrás de si esvaise em um instante e é como se não houvesse existido Por outro lado uma intenção mostra certas qualidades que permanecendo após a rea lização da ação conectam essa ação com a pessoa e facilitam a tran sição de idéias de uma à outra Não podemos pensar nessa pessoa sem refletir sobre essas qualidades a menos que o arrependimento e uma mudança de vida tenham produzido uma alteração a esse respeito mas nesse caso também a paixão se altera Esta é uma razão por tanto que explica por que é preciso uma intenção para excitar o amor ou o ódio 5 Mas devemos ainda considerar que uma intenção além de forta lecer a relação de idéias é freqüentemente necessária para produzir uma relação de impressões e para gerar prazer e desprazer Pois obser vemos que a principal parte de um agravo é o desprezo e o ódio que revela na pessoa que nos prejudica o simples dano sem isso nos dá 383 Tratado da natureza humana um desprazer menos sensível De maneira semelhante um benefício é agradável sobretudo porque satisfaz nossa vaidade e é uma prova da afeição e do apreço da pessoa que o realiza A supressão da inten ção suprime a humilhação em um caso e a vaidade no outro e é claro deve causar uma diminuição considerável nas paixões do amor e do ódio 6 Admito que a supressão da intenção diminui o grau das relações de impressões e de idéias mas não é capaz de suprimilas inteiramen te Mas então pergunto se a supressão da intenção é capaz de suprimir inteiramente as paixões do amor e do ódio Estou seguro de que a experiência nos informa do contrário nada é mais certo que o fato de que os homens com freqüência se encolerizam violentamente por so frerem danos que eles próprios reconhecem serem inteiramente involuntários e acidentais É verdade que essa emoção não pode du rar por muito tempo mas é suficiente para mostrar que existe uma conexão natural entre o desprazer e a raiva e que a relação de impres sões pode operar partindo de uma relação de idéias bem fraca No entanto assim que a violência da impressão se ameniza um pouco a deficiência da relação começa a se fazer sentir com mais intensidade e como esses danos casuais e involuntários não dizem respeito de forma alguma ao caráter de uma pessoa raramente mantemos uma inimizade duradoura por causa disso 7 Para ilustrar essa doutrina mediante um caso análogo podemos observar que não é apenas o desprazer que resulta acidentalmente de outra pessoa que tem pouca força para excitar nossa paixão mas tam bém o que resulta de uma necessidade e um dever reconhecidos Se alguém tem realmente a intenção de nos prejudicar mas não por ódio ou má vontade e sim por um desejo de justiça e eqüidade essa pes soa não desperta nossa cólera se formos um pouco razoáveis e en tretanto ela é não apenas a causa mas a causa consciente de nossos sofrimentos Examinemos rapidamente esse fenômeno 8 Em primeiro lugar é evidente que essa circunstância não é deci siva pois embora seja capaz de diminuir as paixões raramente pode 384 Livro 2 Parte 2 Seção 4 suprimilas por completo São poucos os criminosos que não sen tem rancor por quem os acusou ou pelo juiz que os condenou mes mo estando conscientes de que seu castigo foi merecido Do mesmo modo costumamos considerar nosso adversário em uma questão ju dicial e nosso concorrente na disputa por algum cargo como nossos inimigos embora se pensarmos um pouco devamos reconhecer que seus motivos são tão justificáveis quanto os nossos 9 Além disso consideremos que quando sofremos algum mal por parte de uma pessoa tendemos a imaginar que ela é criminosa e é com extrema dificuldade que admitimos sua justiça e inocência Isso é uma prova clara de que independentemente da opinião de que houve iniqüidade qualquer dano ou desprazer tem uma tendência natural a despertar nosso ódio e de que só posteriormente buscamos razões para justificar e fundamentar a paixão Neste caso a idéia do dano não produz a paixão mas se origina dela 10 E não é de estranhar que a paixão produza a opinião de que hou ve um dano pois de outro modo ela sofreria uma diminuição consi derável coisa que todas as paixões evitam tanto quanto possível A supressão do dano pode suprimir a raiva sem que isso prove que a raiva deriva apenas do dano O mal que sofremos e a justiça são dois objetos contrários dos quais o primeiro tem uma tendência a produ zir ódio e o segundo amor E é de acordo com seus diferentes graus e com a índole particular de nosso pensamento que um ou outro pre valece despertando sua paixão própria Seção 4 Do amor pelos parentes e amigos 1 Agora que já explicamos por que diversas ações que causam um prazer ou um desprazer reais não despertam nenhum grau ou des pertam apenas um pequeno grau das paixões do amor ou do ódio por Parentes e amigos por relations NT 385 Tratado da natureza humana seus agentes é preciso mostrar em que consiste o prazer ou o des prazer de muitos objetos que pela experiência vemos produzir es sas paixões 2 De acordo com o sistema anterior para produzir amor ou ódio é preciso haver sempre entre a causa e o efeito uma dupla relação de impressões e de idéias Embora isso seja universalmente verdadeiro porém é de notar que a paixão do amor pode ser excitada por apenas uma relação de um tipo diferente a saber a relação entre nós e o obje to ou mais propriamente falando que essa relação sempre se faz acompanhar pelas outras duas Qualquer pessoa que esteja unida a nós por meio de alguma conexão pode ter certeza de que receberá uma parcela de nosso amor proporcional ao grau da conexão sem que pre cisemos saber quais são suas outras qualidades Assim a relação de consangüinidade produz no caso do amor dos pais pelos filhos o laço mais forte de que a mente é capaz e produz um grau cada vez menor do mesmo afeto conforme a relação vai diminuindo E não é apenas a consangüinidade que tem esse efeito mas qualquer outra relação sem exceção Amamos nossos conterrâneos nossos vizinhos aque les que exercem o mesmo ofício ou profissão que nós e até os que têm o mesmo nome Todas essas relações são consideradas como constituindo vínculos e dão direito a uma parte de nossa afeição 3 Há um outro fenômeno análogo a esse a familiaridade sem ne nhum tipo de parentesco também gera amor e afeição Quando nos acostumamos e adquirimos uma intimidade com uma pessoa mes mo que essa convivência não nos tenha revelado nela nenhuma qua lidade de valor não podemos deixar de preferila a outras pessoas de cujo mérito superior estamos plenamente convencidos mas que são estranhas a nós Esses dois fenômenos os efeitos do parentesco e da familiaridade esclarecemse mutuamente e ambos podem ser expli cados pelo mesmo princípio 4 Aqueles que se comprazem em lançar invectivas contra a nature za humana observaram que o homem é inteiramente incapaz de se bastar a si mesmo e se desfizermos todos os laços que mantém com 386 Livro 2 Parte 2 Seção 4 os objetos externos ele imediatamente mergulhará na mais profun da melancolia e desespero É por isso dizem eles que estamos con tinuamente à procura de diversão seja no jogo na caça ou nos negó cios por meio dessas atividades tentamos esquecer de nós mesmos e resgatar nossos espíritos animais daquele torpor em que caem quando não são mantidos por alguma emoção enérgica e vivaz Es tou de acordo com esse modo de pensar pois reconheço que a mente é insuficiente para entreter a si mesma e por isso busca naturalmen te objetos estranhos que possam produzir uma sensação vivaz e agi tar seus espíritos animais Quando um desses objetos aparece a mente desperta como que de um sonho o sangue flui mais veloz o coração se exalta e o homem como um todo adquire um vigor de que é inca paz em seus momentos de solidão e calma Por isso a companhia alheia é naturalmente tão prazerosa por apresentar o mais vívido de todos os objetos um ser racional e pensante como nós que nos comunica todas as ações de sua mente confianos seus sentimentos e afetos mais íntimos e permite que vislumbremos no momento mesmo em que se produzem todas as emoções causadas por um objeto Toda idéia vívi da é agradável mas sobretudo a de uma paixão pois uma tal idéia se torna uma espécie de paixão conferindo à mente uma agitação mais sensível que a resultante de qualquer outra imagem ou concepção 5 Uma vez admitido isso todo o resto é fácil Pois assim como a companhia de estranhos nos é agradável pelo curto período em que aviva nosso pensamento assim também a companhia de nossos pa rentes e amigos deve ser particularmente agradável porque tem esse mesmo efeito em um grau ainda maior possuindo uma influência mais duradoura Tudo que se relaciona conosco é concebido de ma neira vívida em virtude da fácil transição de nós ao objeto relaciona do Também o costume ou familiaridade facilita a entrada de qualquer objeto e fortalece sua concepção O primeiro caso é análogo a nossos raciocínios por causa e efeito o segundo à educação Ora como a Aqui e na frase seguinte spirits Ver nossa nota à p 128 NT 387 Tratado da natureza humana única coincidência entre o raciocínio e a educação é o fato de ambos produzirem uma idéia vívida e forte de um objeto esse também é o único ponto comum ao parentesco e à familiaridade devendo ser por tanto a qualidade em virtude da qual ambos exercem uma influên cia e que é responsável pela produção de todos os seus efeitos comuns E visto que o amor ou afeição é um desses efeitos essa paixão tem de ser derivada da força e vividez da concepção Tal concepção é particu larmente agradável e nos faz sentir uma consideração afetuosa por tudo que a produz quando é objeto adequado de ternura e benevolência 6 É evidente que as pessoas se associam de acordo com seus tem peramentos e disposições particulares os homens de temperamento alegre naturalmente amam as pessoas alegres os de temperamento sé rio sentem afeição pelas pessoas sérias Isso acontece não somente quando percebem essa semelhança entre eles e os outros mas tam bém pelo curso natural de sua disposição e por uma certa simpatia que sempre nasce entre temperamentos similares Quando os homens percebem a semelhança ela atua como uma relação isto é produ zindo uma conexão de idéias Quando não a percebem ela age por meio de algum outro princípio e se este princípio for similar ao primei ro teremos de ver nele uma confirmação do raciocínio anterior 7 A idéia de nosso eu está sempre intimamente presente a nós e transmite um sensível grau de vividez à idéia de qualquer objeto com que estejamos relacionados Essa idéia vívida se transforma gradual mente em uma impressão real pois esses dois tipos de percepção são em grande medida iguais diferindo apenas em seus graus de for ça e vividez Mas essa transformação deve se produzir ainda com mais facilidade pelo fato de nosso temperamento natural nos tornar pro pensos à mesma impressão que observamos nas outras pessoas fa zendo que essa impressão surja à menor ocasião Nesse caso a se melhança converte a idéia em uma impressão não apenas por meio da relação transferindo a vividez original para a idéia relacionada mas também por apresentar um material que se incendeia à menor fagu lha E como nos dois casos a semelhança gera amor ou afeição pode 388 Livro 2 Parte 2 Seção 4 mos aprender com isso que uma simpatia com os demais só é agra dável por proporcionar uma emoção aos espíritos animais uma vez que uma simpatia fácil e emoções correspondentes são as únicas coi sas comuns ao parentesco à familiaridade e à semelhança 8 A forte propensão dos homens ao orgulho pode ser vista como um fenômeno similar Após termos vivido durante um bom tem po em determinada cidade de que inicialmente não gostávamos é comum acontecer que conforme vamos convivendo com os objetos e adquirimos uma familiaridade ainda que apenas com suas ruas e prédios a aversão gradativamente diminui até se transformar na paixão oposta A mente encontra satisfação e conforto na visão de ob jetos a que está acostumada e naturalmente os prefere a outros que conhece menos embora estes possam ter mais valor em si próprios A mesma qualidade da mente nos faz ter uma boa opinião de nós mesmos e de todos os objetos que nos pertencem Estes nos apare cem com mais intensidade que todos os outros são mais agradáveis e conseqüentemente mais adequados para se tornar objetos de or gulho e vaidade 9 Já que estamos tratando da afeição que sentimos por nossos ami gos e parentes não será fora de propósito observar alguns fenôme nos bastante curiosos que a acompanham Em nossa vida corrente notamos freqüentemente que os filhos consideram que a relação com sua mãe se enfraquece bastante quando ela se casa uma segunda vez e não a vêem mais com os mesmos olhos com que a veriam se conti nuasse em sua situação de viuvez Isso não ocorre apenas quando o se gundo casamento lhes causou algum inconveniente ou quando o novo marido é muito inferior a ela ocorre mesmo sem nenhuma conside ração desse tipo simplesmente porque sua mãe se tornou parte de outra família O mesmo se dá com o segundo casamento de um pai mas em grau bem menor os laços de sangue certamente não se afrou xam tanto neste caso quanto no caso do casamento de uma mãe Es ses dois fenômenos já são notáveis por si mesmos porém mais ain da quando comparados um com o outro 389 Tratado da natureza humana 10 Para que se produza uma relação perfeita entre dois objetos é preciso não apenas que a imaginação seja conduzida de um ao outro por semelhança contigüidade ou causalidade mas também que ela retorne do segundo ao primeiro com o mesmo conforto e facilidade À primeira vista isso pode parecer uma conseqüência necessária e inevitável Se um objeto é semelhante a outro este último tem de ser necessariamente semelhante ao primeiro Se um objeto é causa de outro o segundo é seu efeito O mesmo vale para a contigüidade Portanto como a relação é sempre recíproca podemos pensar que a volta da imaginação do segundo termo ao primeiro tem de ser sem pre tão natural quanto sua passagem do primeiro ao segundo Mas um exame mais completo nos mostrará facilmente que estamos er rados Pois supondose que o segundo objeto além de sua relação recíproca com o primeiro mantenha também uma forte relação com um terceiro neste caso embora a relação permaneça a mesma o pen samento após passar do primeiro objeto ao segundo não retorna com a mesma facilidade ao invés disso segue rapidamente para o tercei ro objeto por meio da nova relação que se apresenta e que dá um novo impulso à imaginação Essa nova relação portanto enfraquece o laço entre o primeiro e o segundo objetos Por sua própria natureza a fan tasia é instável e inconstante e considera que a relação entre dois objetos é mais forte quando o movimento nos dois sentidos é igual mente fácil do que quando ele só é fácil em apenas um dos sentidos O duplo movimento é uma espécie de duplo vínculo ligando os obje tos da maneira mais estreita e íntima 1 1 O segundo casamento de uma mãe não quebra a relação entre ela e seu filho e essa relação é suficiente para transportar a imaginação do filho de si mesmo até ela com o maior conforto e facilidade Mas ao chegar a esse ponto a imaginação encontra seu objeto cercado por tantas outras relações todas elas disputando sua atenção que fica sem saber qual deve preferir e a que novo objeto se dirigir Os laços de interesse e dever ligam minha mãe a uma outra família impedindo que a fantasia retorne dela a mim o que entretanto é necessário para 390 Livro 2 Parte 2 Seção 5 manter a união O pensamento não tem mais aquela oscilação neces sária para deixálo perfeitamente à vontade e satisfazer sua inclinação à mudança Ele vai com facilidade mas volta com dificuldade e por causa dessa obstrução considera a relação muito mais fraca do que seria se a passagem fosse fácil e desimpedida nos dois sentidos 12 Agora para explicar por que esse efeito não se dá com a mesma intensidade por ocasião do segundo casamento de um pai podemos refletir sobre algo que já provamos a saber que embora a imagina ção passe facilmente da visão de um objeto menos importante para a de um mais importante ela não volta do segundo ao primeiro com a mesma facilidade Quando minha imaginação vai de mim a meu pai ela não passa tão imediatamente dele a sua segunda esposa nem o considera como fazendo parte de uma família diferente mas sim como continuando o chefe da família de que eu mesmo faço parte Sua su perioridade impede a transição fácil do pensamento dele para sua consorte mas ainda mantém a passagem aberta para que retorne até mim pela mesma relação entre pai e filho A figura de meu pai não é encoberta pela nova relação que ele adquiriu por isso o duplo movi mento ou a oscilação do pensamento é ainda fácil e natural E como a fantasia ainda pode dar vazão a sua inconstância o laço entre pai e filho preserva sua plena força e influência 13 Uma mãe não pensa que o vínculo com seu filho fica enfraqueci do só porque o compartilha com seu marido e um filho tampouco pensa isso de seu vínculo com seus pais por compartilhálos com um irmão O terceiro objeto está aqui relacionado ao primeiro tanto quan to ao segundo desse modo a imaginação vai e vem de um ao outro com a maior facilidade Seção 5 De nossa estima pelos ricos e poderosos 1 Nada possui maior tendência a produzir nosso apreço por uma pessoa que seu poder e riqueza ou a produzir nosso desprezo que 391 Tratado da natureza humana sua pobreza ou inferioridade E uma vez que apreço e desprezo devem ser considerados espécies de amor e de ódio convém explicar agora esses fenômenos 2 Ocorre aqui felizmente que a maior dificuldade não é descobrir um princípio capaz de produzir tal efeito mas escolher entre diver sos princípios que se apresentam o fundamental e predominante A satisfação que experimentamos com a riqueza alheia e o apreço que sentimos por seu proprietário podem ser atribuídos a três causas di ferentes Em primeiro lugar aos objetos possuídos como casas jar dins e carruagens os quais sendo agradáveis em si mesmos produ zem necessariamente um sentimento de prazer em todos que os consideram ou examinam Em segundo lugar à expectativa de obter vantagens dos ricos e poderosos compartilhando de seus bens Em terceiro lugar à simpatia que nos faz participar da satisfação de todos que estão próximos de nós Todos esses princípios podem concorrer para a produção do presente fenômeno A questão é a qual deles de vemos sobretudo atribuílo 3 O primeiro princípio ou seja a reflexão acerca de objetos agra dáveis tem certamente uma influência maior do que poderíamos imaginar à primeira vista Raramente pensamos no que é belo ou feio agradável ou desagradável sem sentir uma emoção de prazer ou desprazer e embora essas sensações não apareçam com muita fre qüência no modo indolente como usualmente pensamos é fácil desco brilas na leitura ou na conversação As pessoas espirituosas sempre dirigem a conversa para assuntos que sejam agradáveis à imaginação e os poetas nunca apresentam objetos de natureza diferente dessa O Sr Philips colheu a sidra como tema de um excelente poema A cer veja não teria sido tão apropriada já que não é tão agradável nem ao paladar nem aos olhos Mas ele certamente teria preferido o vinho se seu país natal lhe houvesse proporcionado esse tão agradável li cor Podemos concluir daí que tudo que é agradável aos sentidos agrada John Philips 1 676 1 708 Hume se refere a seu poema didático Cyder NT 392 Livro 2 Parte 2 Seção 5 também em alguma medida à fantasia transmitindo ao pensamen to uma imagem daquela satisfação que produz quando realmente aplicado aos órgãos do corpo 4 Mas embora essas razões possam nos levar a incluir esse requin te da imaginação entre as causas do respeito que mostramos pelos ri cos e poderosos há muitas outras razões que podem nos impedir de vêlo como a única ou principal causa Pois como as idéias de prazer só podem nos influenciar por meio de sua vividez que as aproxima das impressões é mais natural que tenham essa influência as idéias favorecidas pelo maior número de circunstâncias e que por isso têm uma tendência natural a se tornar fortes e vívidas como é o caso de nossas idéias das paixões e sensações de qualquer criatura humana Toda criatura humana se assemelha a nós e por isso leva vantagem sobre qualquer outro objeto em sua operação sobre a imaginação 5 Além disso se considerarmos a natureza dessa faculdade e a forte influência que todas as relações exercem sobre ela poderemos fa cilmente nos convencer de que embora as idéias das amenidades de que desfrutam os ricos como vinhos músicas ou jardins pos sam se tornar vívidas e agradáveis a fantasia não se limita a elas dirigindo seu olhar também para os objetos relacionados particular mente para quem os possui O mais natural é que a idéia ou ima gem prazerosa produza neste caso uma paixão pela pessoa mediante sua relação com o objeto desse modo é inevitável que essa pessoa entre na concepção original por ser objeto da paixão derivada Mas se ela entra na concepção original e se consideramos que usufrui des ses objetos agradáveis então é a simpatia que é propriamente a cau sa do afeto e portanto o terceiro princípio é mais poderoso e univer sal que o primeiro 6 Acrescentese a isso que a riqueza e o poder por si sós ainda que não sejam empregados causam naturalmente estima e respeito por conseguinte essas paixões não surgem da idéia de objetos belos ou agradáveis É verdade que o dinheiro implica uma espécie de repre sentação desses objetos porque nos dá o poder de obtêlos e por 393 Tratado da natureza humana essa razão podese considerálo apropriado para transmitir essas ima gens agradáveis capazes de gerar a paixão Mas como tal perspectiva é muito distante é mais natural que tomemos um objeto contíguo a saber a satisfação que esse poder proporciona à pessoa que o possui Ficaremos mais convencidos disso se considerarmos que a riqueza só representa os bens da vida em virtude da vontade de quem dela faz uso e portanto implica por sua própria natureza uma idéia da pessoa não podendo ser considerada sem uma espécie de simpatia para com suas sensações e prazeres 7 Podemos confirmar o que acabamos de dizer por uma reflexão que alguns talvez considerem demasiadamente sutil e refinada Já ob servei que o poder quando distinto de seu exercício ou não tem ne nhum sentido ou não passa de uma possibilidade ou probabilidade de existência pela qual um determinado objeto se torna mais próxi mo da realidade produzindo uma influência sensível sobre a mente Observei também que por uma ilusão da fantasia essa proximidade da realidade parece muito maior quando somos nós que possuímos o poder e não uma outra pessoa No primeiro caso os objetos pare cem tocar a fronteira mesma da realidade transmitindonos quase a mesma satisfação que sentiríamos se de fato os possuíssemos Afirmo agora que quando estimamos uma pessoa por sua riqueza devemos entrar nesse sentimento do proprietário e que sem essa simpatia a idéia dos objetos agradáveis que a riqueza lhe dá o poder de produzir teria apenas uma fraca influência sobre nós Um homem avaro é res peitado por seu dinheiro embora não tenha praticamente nenhum poder ou seja embora não haja praticamente nenhuma probabilidade ou sequer possibilidade de que venha a empregar seu dinheiro para adquirir os prazeres e as comodidades da vida Apenas para ele esse poder parece perfeito e íntegro devemos portanto receber seus senti mentos por simpatia antes que possamos ter uma idéia forte e intensa desses prazeres ou estimálo por causa deles 8 Vimos assim que o primeiro princípio a idéia agradável dos objetos de que a riqueza nos permite desfrutar reduzse em grande medida ao ter 394 Livro 2 Parte 2 Seção 5 ceiro transformandose em urna simpatia pela pessoa que estimamos ou amamos Examinemos agora o segundo princípio a saber a agradá vel expectativa de obter alguma vantagem e vejamos que força podemos rigorosamente atribuir a ele 9 É evidente que embora a riqueza e a autoridade indubitavelmente proporcionem à pessoa que os possui um poder de nos beneficiar esse poder não deve ser considerado corno equivalente ao poder que essa pessoa tem de agradar a si mesma e satisfazer a seus próprios apeti tes No segundo caso o amor a si próprio aproxima muito o poder de seu exercício mas para que se produza um efeito similar no primei ro caso ternos de supor a conjunção da riqueza com a amizade e a boa vontade Sem essa circunstância é difícil conceber em que pode mos fundamentar nossa esperança de tirar vantagem da riqueza dos outros embora não haja dúvida de que nós naturalmente estimamos e respeitamos os ricos antes mesmo de descobrir neles urna tal dis posição favorável para conosco 10 Mas isso não é tudo Observo também que respeitamos os ricos e poderosos não apenas quando não mostram nenhuma inclinação para nos favorecer mas ainda quando estamos tão fora da esfera de sua atuação que sequer podemos supor que eles tenham esse poder Os prisioneiros de guerra são sempre tratados com um respeito con dizente com sua condição e a riqueza certamente tem um grande pa pel na determinação da condição de urna pessoa Se o nascimento e a posição social também contribuem para essa determinação isso nos fornece mais um argumento do mesmo tipo Pois o que é isso que cha mamos de um homem bemnascido senão alguém que descende de urna longa linhagem de ancestrais ricos e poderosos que ganha nossa estima em virtude de sua relação com pessoas a quem estimamos Seus ancestrais portanto mesmo estando mortos são respeitados em alguma medida graças a sua riqueza e conseqüentemente sem que esperemos nada deles 1 1 Não precisamos porém ir buscar tão longe nos prisioneiros de guerra e nos mortos os exemplos desse apreço desinteressado pela 395 Tratado da natureza humana riqueza observemos com um pouco de atenção os fenômenos que ocorrem conosco na vida corrente e no comércio humano Quando um homem dotado de razoável fortuna está em companhia de estra nhos trataos naturalmente com diferentes graus de respeito e defe rência conforme seja informado de suas diferentes fortunas e condi ções financeiras no entanto é impossível que pretenda obter e talvez sequer aceitasse da parte deles qualquer benefício Um viajante en contra ou não uma boa recepção e é tratado com mais ou menos cor tesia conforme sua comitiva e equipagem transmitam a imagem de um homem abastado ou humilde Em suma as diferentes posições sociais dos homens são em grande parte reguladas pela riqueza e isso no que diz respeito tanto aos superiores como aos inferiores aos estranhos como aos conhecidos 12 Existe é verdade uma resposta a esses argumentos extraída da influência das regras gerais Podese afirmar que acostumados a espe rar auxílio e proteção dos ricos e poderosos e a estimálos por esse motivo estendemos os mesmos sentimentos a pessoas que se asse melham a eles por sua fortuna mas de quem jamais podemos espe rar obter nenhum benefício A regra geral prevalece e por imprimir uma inclinação à imaginação arrasta consigo a paixão como se seu objeto próprio existisse e fosse real 13 Mas esse princípio não tem lugar aqui o que ficará evidente se considerarmos que para estabelecer uma regra geral e estendêla para além de seus limites apropriados é preciso haver uma certa unifor midade em nossa experiência e que o número de casos conformes à regra seja muito superior ao número de casos contrários Ora o que ocorre aqui é muito diferente Entre uma centena de homens de consideração e fortuna que encontro talvez não haja um sequer de quem eu possa esperar alguma vantagem de forma que é impossível que qualquer costume prevaleça no caso presente 14 De tudo o que foi dito concluímos que não resta nada que possa produzir em nós uma estima pelo poder e riqueza e um desprezo pela inferioridade e pobreza exceto o princípio da simpatia por meio do 396 Livro 2 Parte 2 Seção 5 qual penetramos nos sentimentos de ricos e pobres e compartilha mos seu prazer e desprazer A riqueza dá uma satisfação a seu proprietário e essa satisfação é transmitida ao observador pela ima ginação que produz uma idéia semelhante à impressão original em força e vividez Essa idéia ou impressão agradável está conectada com o amor que é uma paixão agradável E procede de um ser pensante e consciente que é o objeto mesmo do amor A paixão nasce dessa relação de impressões e dessa identidade de idéias de acordo com minha hipótese 1 5 O melhor meio de nos convencermos dessa opinião é examinar o conjunto do universo e observar a força da simpatia em todo o reino animal e a facilidade com que os sentimentos se comunicam de um ser pensante a outro Em todas as criaturas não predadoras e que não são agitadas por paixões violentas manifestase um notável desejo de companhia que faz com que se associem umas às outras sem que possam pretender tirar qualquer proveito dessa união Isso é ainda mais visível no homem que é dentre todas as criaturas do universo a que tem o desejo mais ardente de sociedade e está preparada para ela pelo maior número de circunstâncias favoráveis Somos incapa zes de formar um desejo sequer que não se refira à sociedade A com pleta solidão é talvez a maior punição que podemos sofrer Todo pra zer elanguesce quando gozado sem companhia e toda dor se torna mais cruel e intolerável Quaisquer que sejam as outras paixões que possam nos mover orgulho ambição avareza curiosidade vingança ou luxúria a alma ou princípio que anima a todas elas é a simpatia não teriam força alguma se fizéssemos inteira abstração dos pensamen tos e sentimentos alheios Ainda que todos os poderes e os elementos da natureza se unam para servir e obedecer a um só homem ainda que o sol nasça e se ponha a seu comando que os rios e mares se movam conforme a sua vontade e a terra forneça espontaneamente tudo que lhe possa ser útil ou agradável ainda assim ele será infe liz enquanto não lhe dermos ao menos uma pessoa com quem pos sa dividir sua felicidade e de cuja estima e amizade possa gozar 397 Tratado da natureza humana 1 6 Essa conclusão extraída de uma visão geral da natureza huma na pode ser confirmada por meio de exemplos particulares em que a força da simpatia é bastante notável A maior parte dos diferentes ti pos de beleza tem essa origem Mesmo que nosso primeiro objeto seja um simples pedaço de matéria inanimada e insensível raramente nos limitamos a ele ao contrário dirigimos nosso olhar também para sua influência sobre as criaturas sensíveis e racionais Um homem que nos mostra uma casa ou um edifício toma um cuidado especial entre outras coisas em salientar a comodidade dos aposentos as vantagens de sua localização e o pequeno espaço ocupado pelas escadas ante salas e corredores e de fato é evidente que a beleza consiste sobre tudo nesses detalhes A observação da comodidade dános prazer pois a comodidade é um tipo de beleza Mas de que maneira nos dá pra zer Certamente nosso interesse pessoal não entra em consideração neste caso e como essa é uma beleza de interesse e não de forma por assim dizer deve ser por mera comunicação que ela nos agrada e por simpatizarmos com o proprietário da moradia Entramos em seu interesse pela força da imaginação e sentimos a mesma satisfação que esses objetos naturalmente nele ocasionam 1 7 Essa observação se estende a mesas cadeiras escrivaninhas la reiras carruagens selas arados e a todo produto da indústria hu mana pois é uma regra universal que sua beleza deriva sobretudo de sua utilidade e adequação ao propósito a que se destinam Mas essa é uma vantagem que diz respeito apenas ao proprietário e somente pela simpatia pode interessar ao espectador 1 8 É evidente que nada torna um campo mais agradável que sua ferti lidade e poucas vantagens de ordem ornamental ou de localização serão equiparáveis a essa beleza O que ocorre com o campo ocorre tam bém com as árvores e as plantas particulares que nele crescem Uma planície invadida pelo tojo e pela giesta pode bem ser em si mesma tão bela quanto uma colina coberta de parreiras e oliveiras mas ela assim não parecerá a quem estiver familiarizado com o valor de cada uma dessas plantas Entretanto essa beleza se origina meramente da 398 Livro 2 Parte 2 Seção 5 imaginação sem fundamento naquilo que aparece aos sentidos A fertilidade e o valor referemse claramente ao uso e este à riqueza ao gozo e à abundância e mesmo que não tenhamos esperança de usufruir destes entramos neles por meio da vivacidade da fantasia partilhandoos em certo grau com o proprietário 19 Não há na arte da pintura regra mais razoável que a do equilíbrio das figuras e de sua localização da maneira mais exata possível em seus centros de gravidade próprios Uma figura mal equilibrada é desagradável porque transmite as idéias de sua queda ferimento e dor as quais se tornam dolorosas quando adquirem por simpatia algum grau de força e vividez 20 Acrescentese a isso que a parte principal da beleza de uma pes soa é um ar de saúde e vigor e uma formação tal dos membros que prometa força e atividade Essa idéia de beleza não pode ser explicada por outra coisa senão pela simpatia 21 Podemos observar em geral que as mentes dos homens são como espelhos umas das outras não apenas porque cada uma refle te as emoções das demais mas também porque as paixões sentimen tos e opiniões podem se irradiar e reverberar várias vezes deterio randose gradual e insensivelmente Assim o prazer que um homem rico obtém com seus bens projetado sobre o observador causa nes te prazer e apreço estes sentimentos por sua vez sendo objetos de percepção e simpatia aumentam o prazer do proprietário e sendo mais uma vez refletidos tornamse um novo fundamento de prazer e apreço no observador Há certamente uma satisfação original na ri queza derivada do poder que nos proporciona de desfrutar de todos os prazeres da vida e como essa é sua natureza mesma e sua essência deve ser a fonte primeira de todas as paixões que dela resultam Dentre essas paixões uma das mais consideráveis é a do amor ou apreço por parte dos demais que procede portanto de uma simpatia com os prazeres do proprietário Mas o proprietário tem ainda uma satisfa ção secundária com a riqueza resultante do amor e do apreço que adquire por meio dela e essa satisfação não passa de um segundo re 399 Tratado da natureza humana flexo daquele prazer original que procedia dele mesmo Essa satisfa ção ou vaidade secundária se torna um dos principais atrativos da ri queza sendo a razão fundamental por que a desejamos para nós mes mos ou a apreciamos nos outros Temos aqui portanto uma terceira reverberação do prazer original depois disso fica difícil distinguir entre imagens e reflexos em virtude de sua palidez e confusão Seção 6 Da benevolência e da raiva 1 As idéias podemse comparar à extensão e à solidez da matéria e as impressões especialmente as reflexivas às cores sabores odores e outras qualidades sensíveis As idéias nunca admitem uma união total ao contrário são dotadas de uma espécie de impenetrabilidade que faz com que se excluam mutuamente de modo que só são ca pazes de formar um composto por meio de sua conjunção e não por sua mistura As impressões e as paixões por sua vez são suscetí veis de uma união completa como as cores podem se misturar tão perfeitamente que cada uma delas desaparece e apenas contribui para modificar a impressão uniforme resultante do conjunto Alguns dos fenômenos mais curiosos da mente humana decorrem dessa proprie dade das paixões 2 Ao examinar os ingredientes capazes de se unir ao amor e ao ódio começo a me dar conta de uma vicissitude a que estão sujeitos to dos os sistemas filosóficos que o mundo já conheceu Quando explicamos as operações da natureza mediante uma hipótese parti cular é comum descobrirmos que em meio a um certo número de experimentos que se enquadram perfeitamente dentro dos princí pios que tentamos estabelecer há sempre um fenômeno mais obs tinado que não se dobra tão facilmente a nosso propósito Não deve mos nos surpreender que isso aconteça na filosofia da natureza A 400 Livro 2 Parte 2 Seção 6 essência e a composição dos corpos externos é tão obscura que em nossos raciocínios ou antes conjeturas a seu respeito envolvemo nos necessariamente em contradições e absurdos Mas como as per cepções da mente são perfeitamente conhecidas e como tomei todo o cuidado imaginável ao formar conclusões a seu respeito sempre esperei me manter livre das contradições que acompanham todos os outros sistemas Assim sendo a dificuldade que ora tenho em vista não é de modo algum contrária a meu sistema constitui apenas um pequeno afastamento daquela simplicidade que até aqui constituiu sua principal força e beleza 3 As paixões do amor e do ódio são sempre seguidas pela benevo lência e pela raiva ou antes ocorrem sempre em conjunção com es tas últimas É sobretudo essa conjunção que distingue tais afetos do orgulho e da humildade Pois o orgulho e a humildade são puras emoções da alma não são acompanhados de nenhum desejo e não nos impelem imediatamente à ação O amor e o ódio ao contrário não se completam em si mesmos não se detêm naquela emoção que produzem mas levam a mente a algo além dela O amor é sempre seguido por um desejo da felicidade da pessoa amada e uma aversão por sua infelicidade e o ódio produz um desejo da infelicidade e uma aversão pela felicidade da pessoa odiada Uma diferença tão notável entre esses dois pares de paixões de orgulho e humildade e de amor e ódio que não obstante se correspondem mutuamente em tantos outros aspectos merece nossa atenção 4 A conjunção desse desejo e aversão com o amor e o ódio pode ser explicada por duas hipóteses diferentes A primeira é que amor e ódio não têm apenas uma causa que os excita a saber o prazer e a dor e um objeto a que se dirigem a saber uma pessoa ou ser pensante têm também um fim que buscam atingir ou seja a felicidade ou infelici dade da pessoa amada ou odiada e a mistura de todas essas conside rações forma uma única paixão De acordo com esse sistema o amor não é senão um desejo da felicidade de outra pessoa e o ódio um desejo de sua infelicidade O desejo e a aversão constituem a própria 401 Tratado da natureza humana natureza do amor e do ódio Não são apenas inseparáveis destes mas a mesma coisa 5 Ora é evidente que isso contradiz a experiência É certo que nunca amamos uma pessoa sem desejar sua felicidade e nunca a odiamos sem querer sua infelicidade entretanto esses desejos só surgem quando a imaginação nos apresenta as idéias da felicidade ou infelicidade de nosso amigo ou inimigo não sendo absolutamente essenciais ao amor e ao ódio São os sentimentos mais evidentes e naturais desses afe tos mas não os únicos As paixões podem se expressar de uma cen tena de maneiras diferentes e podem subsistir por um período de tempo considerável sem pensarmos na felicidade ou na infelici dade de seus objetos isso prova claramente que esses desejos não são a mesma coisa que o amor ou o ódio e não constituem uma parte essencial destes 6 Podemos inferir portanto que a benevolência e a raiva são pai xões diferentes do amor e do ódio e só aparecem em conjunção com estes em virtude da constituição original da mente Assim corno a na tureza concedeu ao corpo certos apetites e inclinações que ela au menta diminui ou muda de acordo com a situação dos fluidos e dos sólidos procedeu da mesma maneira em relação à mente Conforme estejamos possuídos pelo amor ou pelo ódio o desejo corresponden te da felicidade ou da infelicidade da pessoa que é objeto dessas pai xões surge na mente e varia a cada variação dessas paixões opostas Essa ordem das coisas considerada abstratamente não é necessária O amor e o ódio poderiam não ser acompanhados de nenhum desejo desse tipo ou sua conexão particular poderia ser inteiramente inver tida Se a natureza assim o quisesse o amor poderia ter o mesmo efeito que o ódio e o ódio o mesmo efeito que o amor Não vejo nenhuma contradição em supor que um desejo de produzir a infelicidade fosse vinculado ao amor e um desejo de produzir a felicidade fosse vin culado ao ódio Se as sensações da paixão e do desejo fossem opos tas a natureza poderia ter alterado a sensação sem alterar a tendên cia do desejo tornandoos assim compatíveis 402 Livro 2 Parte 2 Seção 7 Seção 7 Da compaixão 1 Embora o desejo da felicidade ou infelicidade daqueles que ama mos ou odiamos seja um instinto arbitrário e original implantado em nossa natureza vemos no entanto que em muitas ocasiões ele pode ser imitado e surgir de princípios secundários A piedade é uma preo cupação com a infelicidade alheia e a malevolência um júbilo diante da mesma infelicidade sem que nenhuma amizade ou inimizade oca sione essa preocupação ou esse júbilo Temos pena até mesmo de es tranhos que nos são absolutamente indiferentes e quando nossa má vontade para com outrem procede de algum dano ou ofensa que so fremos não se trata propriamente de malevolência mas sim de dese jo de vingança Se examinarmos porém esses afetos da piedade e da malevolência veremos que são secundários e derivam de afetos ori ginais modificados por alguma inclinação particular do pensamento e imaginação 2 É fácil explicar a paixão da piedade com base no raciocínio anterior concernente à simpatia Temos uma idéia viva de tudo que tem rela ção conosco Todas as criaturas humanas estão relacionadas conosco pela semelhança Portanto suas existências seus interesses suas pai xões suas dores e prazeres devem nos tocar vivamente produzindo em nós uma emoção similar à original pois uma idéia vívida se con verte facilmente em uma impressão Se isso é verdade em geral quanto mais no que diz respeito à aflição e à tristeza que exercem uma in fluência mais forte e duradoura que qualquer prazer ou satisfação 3 O espectador de uma tragédia atravessa uma longa cadeia de af e tos de pesar terror indignação e outros que o poeta representa em seus personagens Como muitas tragédias têm um final feliz e como toda boa tragédia deve conter alguns reveses de fortuna o especta dor deve simpatizar com todas essas mudanças experimentando não só uma alegria fictícia mas todas as outras paixões Portanto a me 403 Tratado da natureza humana nos que se afirme que cada paixão distinta é comunicada por uma qualidade original distinta e não é derivada do princípio geral da sim patia acima explicado devese reconhecer que todas surgem desse princípio Abrir exceção para uma em particular seria muito pouco razoável Pois como todas estão primeiro presentes na mente de uma pessoa e depois aparecem na mente de outra pessoa e como sempre aparecem do mesmo modo isto é primeiro como idéia e depois como impressão a transição tem de derivar do mesmo princípio Ao menos estou seguro de que essa maneira de raciocinar seria considerada cor reta tanto na filosofia da natureza como na vida corrente 4 Acrescentese a isso que a piedade depende em grande parte da contigüidade e mesmo da visão direta do objeto o que prova que ela deriva da imaginação Isso sem mencionar que mulheres e crianças são mais dadas à piedade porque são preponderantemente guiadas por essa faculdade A mesma fragilidade que as faz desmaiar à sim ples visão de uma espada desembainhada ainda que esta se encontre nas mãos de seu melhor amigo faz que se compadeçam enormemente daqueles que passam por algum desgosto ou aflição Os filósofos que derivam essa paixão de não sei que sutis reflexões sobre a instabili dade do destino e sobre o fato de estarmos sujeitos aos mesmos infor túnios que observamos nos demais descobrirão que essa observação os contradiz assim como muitas outras que poderíamos facilmente apresentar 5 Falta apenas chamar a atenção para um fenômeno bastante inte ressante que ocorre com essa paixão às vezes a paixão comunicada por simpatia adquire força pela fraqueza da paixão original e pode até mesmo surgir por uma transição com base em afetos que não exis tem Assim por exemplo quando uma pessoa recebe um cargo de honra ou herda uma grande fortuna alegramonos tão mais com sua prosperidade quanto menos noção sense ela parece ter da mesma e quanto maior for a equanimidade e a indiferença com que a desfruta De maneira semelhante lastimamos o homem a quem os infortúnios não conseguem abater em virtude de sua resignação e se essa virtude 404 Livro 2 Parte 2 Seção 7 chega ao ponto de suprimir inteiramente todo sofrimento all sense of uneasiness ela aumenta ainda mais nossa compaixão Quando uma pes soa de mérito se vê atingida pelo que se costuma considerar uma grande desgraça formamos uma noção de sua condição e levando nossa fan tasia da causa até seu efeito usual concebemos primeiramente uma idéia vívida de seu pesar e em seguida sentimos sua impressão desprezando completamente a grandeza de espírito que põe essa pessoa acima de tais emoções ou considerando essa virtude apenas o suficiente para aumentar nossa admiração amor e ternura por ela A experiência nos mostra que um tal grau de paixão ocorre usual mente em conjunção com um tal infortúnio e mesmo que haja uma exceção no caso presente a imaginação se vê afetada pela regra geral fazendonos conceber uma idéia vívida da paixão ou antes fazen donos sentir a própria paixão exatamente como se a pessoa esti vesse de fato sendo movida por ela Pelos mesmos princípios enrubescemos pela conduta daqueles que se comportam de manei ra tola diante de nós mesmo que não mostrem nenhum senso de vergonha nem pareçam ter consciência de sua estupidez Tudo isso resulta da simpatia mas de uma simpatia parcial que vê apenas um lado de seus objetos sem considerar o outro que tem um efeito con trário e que destruiria inteiramente aquela emoção resultante da pri meira aparência 6 Temos também casos em que uma indiferença e insensibilidade diante do infortúnio aumenta nossa preocupação por aquele que o pa dece mesmo que tal indiferença não proceda de uma virtude ou mag nanimidade O fato de um assassinato ser cometido contra pessoas que se encontravam adormecidas e sentindose em plena segurança é considerado um agravante de modo semelhante os historiadores observam que um príncipe infante mantido prisioneiro nas mãos de seus inimigos será tão mais digno de compaixão quanto menos cons ciência tiver de sua infeliz condição Como nós de nosso lado co nhecemos a situação lamentável em que a pessoa se encontra isso nos dá uma idéia vívida e uma sensação de tristeza que é a paixão que geral 405 Tratado da natureza humana mente acompanha tal situação e essa idéia se torna ainda mais viva e a sensação mais violenta pelo contraste com a segurança e a indife rença exibidas pela própria pessoa Um contraste seja de que tipo for nunca deixa de afetar a imaginação sobretudo quando apresentado pelo próprio objeto e a piedade depende inteiramente da imaginação 6 Seção 8 Da malevolência e da inveja 1 Devemos agora explicar a paixão da malevolência cujos efeitos imi tam os do ódio como os da piedade imitam os do amor e que nos proporciona um contentamento diante do sofrimento e da infelicidade dos demais sem que tenhamos sofrido qualquer ofensa ou dano de sua parte 2 Os homens são tão pouco governados pela razão em seus senti mentos e opiniões que julgam os objetos mais por comparação que por seu mérito e valor intrínsecos Quando a mente considera um de terminado grau de perfeição ou está acostumada a ele tudo aquilo que não atinge esse grau ainda que de fato seja digno de apreço terá sobre as paixões o mesmo efeito que se fosse defeituoso e mau Essa é uma qualidade original da alma similar à que experimentamos to dos os dias em nosso corpo Se um homem aquecer uma mão e esfriar a outra a mesma água lhe parecerá simultaneamente fria e quente segundo as diferentes disposições de seus órgãos Um baixo grau de uma qualidade qualquer sucedendose a um grau mais alto dá a 6 Para evitar qualquer ambigüidade devo observar que quando oponho a imaginação à me mória refirome em geral à faculdade que apresenta nossas idéias mais fracas Em todos os outros casos e particularmente quando a oponho ao entendimento entendo por imagi nação a mesma faculdade excluíndo nossos raciocínios demonstrativos e prováveis Esta nota estava contida na edição original do Tratado Hume posteriormente a ampliou reco mendando que fosse retirada deste local e reinserida no final de 139 cf David F Norton Mary Norton op cit e o texto da NNOPT p5 1 5 Embora a edição de SBN tenha entendido que deveria manter esta nota a verdade é que a outra mais longa parece têla tornado redundante exceto pelo uso ali da palavra razão onde aqui está entendimen to NT 406 Livro 2 Parte 2 Seção 8 sensação de ser inferior ao que realmente é chegando por vezes a produzir a sensação da qualidade oposta Uma leve dor que sobre vém a uma dor violenta parece não ser nada ou antes tornase um prazer ao contrário uma dor violenta sucedendo a uma dor suave é duplamente penosa e desconfortável 3 Ninguém pode duvidar disso no que diz respeito a nossas pai xões e sensações Mas pode surgir alguma dificuldade no caso de nossas idéias e objetos Quando ao ser comparado com outros um objeto aumenta ou diminui para o olho ou para a imaginação a ima gem e a idéia do objeto continuam as mesmas e ocupam a mesma extensão na retina e no cérebro ou órgão da percepção Os olhos re fratam os raios de luz e os nervos óticos conduzem as imagens ao cé rebro da mesma maneira quer o objeto precedente tenha sido gran de ou pequeno e a imaginação tampouco altera as dimensões de seu objeto em virtude de sua comparação com outros A questão portanto é saber como partindo da mesma impressão e da mesma idéia pode mos formar juízos tão diferentes a respeito do mesmo objeto ora ad mirando seu tamanho ora desdenhando de sua pequenez Essa varia ção em nossos juízos deve certamente proceder de uma variação em alguma percepção mas como a variação não está na impressão ime diata ou na idéia do objeto ela tem de estar em alguma outra impres são que o acompanha 4 Para explicar essa questão mencionarei brevemente dois princí pios dos quais um será mais bem explicado no decorrer deste tratado e o outro já foi considerado Creio que se pode estabelecer seguramente como uma máxima geral que todo objeto que se apresenta aos sen tidos e toda imagem que se forma na fantasia são acompanhados de alguma emoção ou movimento proporcional dos espíritos animais e por mais que o costume nos torne insensíveis a essa sensação e nos faça confundila com o objeto ou com a idéia será fácil separálos e distinguilos por meio de experimentos cuidadosos e precisos Para citar apenas os casos da extensão e do número é evidente que qual quer objeto muito grande como por exemplo o oceano uma extensa 407 Tratado da natureza humana planície uma vasta cadeia de montanhas uma imensa floresta ou qualquer coleção muito numerosa de objetos como um exército uma frota ou uma multidão desperta na mente uma sensível emoção e que a admiração que nasce com a aparição de tais objetos é um dos prazeres mais intensos que a natureza humana é capaz de experimen tar Ora como essa admiração aumenta ou diminui com o aumento ou a diminuição dos objetos podemos concluir de acordo com os prin cípios anteriores7 que ela é um efeito composto procedente da con junção de diversos efeitos cada um dos quais decorre de uma parte da causa Portanto cada parte da extensão bem como cada unidade numérica quando concebida pela mente vem acompanhada de uma emoção separada Essa emoção nem sempre é agradável entretanto por sua conjunção com outras e porque agita os espíritos animais no grau adequado contribui para produzir a admiração que é sempre agradável Se admitimos isso no que diz respeito à extensão e ao nú mero não poderemos ter dificuldade quanto à virtude e ao vício à inteligência e à estupidez à riqueza e à pobreza à felicidade e à infe licidade e a outros objetos dessa espécie que são sempre acompa nhados de uma evidente emoção 5 O segundo princípio que assinalarei é o de nossa adesão a regras gerais que tão poderosa influência exerce sobre as ações e o entendi mento e é capaz de se impor aos próprios sentidos Quando vemos pela experiência que um objeto está sempre acompanhado de outro todas as vezes em que o primeiro aparece ainda que tenha sofrido transformações importantes apressamonos naturalmente a conce ber o segundo e a formar dele uma idéia tão viva e forte como se houvéssemos inferido sua existência mediante a conclusão mais le gítima e autêntica de nosso entendimento Nada pode desfazer essa ilusão nem mesmo nossos sentidos os quais em vez de corrigir esse falso juízo são freqüentemente pervertidos por ele e parecem mes mo autorizar seus erros 7 Livro 1 Parte 3 Seção 15 408 Livro 2 Parte 2 Seção 8 6 A conclusão que extrairei desses dois princípios assim como da influência da comparação que mencionei anteriormente é bastante breve e decisiva Todo objeto se faz acompanhar de alguma emoção proporcional a ele um objeto grande de uma emoção grande e um objeto pequeno de uma emoção pequena Portanto um objeto grande que sucede a um pequeno faz com que uma grande emoção suceda a uma pequena Ora uma grande emoção sucedendo a uma pequena tornase ainda maior ultrapassando sua proporção usual Mas como costuma haver um grau determinado de emoção acompanhando cada magnitude de um objeto quando a emoção aumenta imaginamos naturalmente que o objeto também aumentou O efeito leva nossa atenção para sua causa usual ou seja passamos de um determinado grau de emoção para uma determinada magnitude do objeto e não consideramos que a comparação pode mudar a emoção sem mudar nada no objeto Aqueles que estão familiarizados com a parte me tafísica da óptica e sabem como transferimos aos sentidos os juízos e conclusões do entendimento compreenderão facilmente toda essa operação 7 Mas deixando de lado essa nova descoberta de que eiste uma impressão acompanhando secretamente cada idéia temos de admi tir ao menos o princípio do qual surgiu tal descoberta que os objetos pa recem maiores ou menores pela comparação com outros Temos tantos exem plos disso que é impossível duvidar de sua veracidade Ora é desse princípio que derivo as paixões da malevolência e da inveja 8 É evidente que devemos obter uma satisfação ou um desprazer maior ou menor ao refletir sobre nossa própria condição e sobre as circunstâncias que nos cercam conforme estas pareçam mais ou menos felizes ou infelizes e proporcionalmente aos graus de rique za poder mérito e reputação que pensamos possuir Ora como rara mente julgamos os objetos por seu valor intrínseco como ao con trário as noções que deles formamos resultam de uma comparação com outros objetos seguese que avaliamos nossa própria felicida de ou infelicidade segundo observemos uma porção maior ou menor 409 Tratado da natureza humana de felicidade ou de infelicidade nos demais e é em conseqüência disso que sentimos dor ou prazer A infelicidade de outrem nos dá uma idéia mais viva de nossa própria felicidade e sua felicidade de nossa infeli cidade A primeira portanto produz satisfação e a última desprazer 9 Eis aqui portanto uma espécie de piedade às avessas caracteri zada pelo surgimento no observador de sensações contrárias às ex perimentadas pela pessoa que ele considera Podemos observar em geral que em qualquer tipo de comparação o primeiro objeto sem pre nos faz obter do segundo com o qual é comparado uma sensa ção contrária à que surge quando ele próprio é considerado direta e imediatamente Um objeto pequeno faz um grande parecer ainda maior Um objeto grande faz um pequeno parecer menor A feiúra em si mesma produz desprazer mas nos faz obter um novo prazer por seu contraste com um objeto belo cuja beleza ela aumenta ao contrário a beleza que por si mesma produz prazer faz com que ex perimentemos uma dor maior por seu contraste com algo feio cuja deformidade ela aumenta O mesmo deve se passar portanto com a felicidade e a infelicidade A observação direta do prazer de outrem naturalmente nos dá prazer e em conseqüência disso produz dor quando esse prazer é comparado com o nosso A dor alheia consi derada em si mesma é dolorosa para nós mas aumenta a idéia de nossa própria felicidade dandonos prazer 1 O Não é de se estranhar que possamos experimentar uma sensação inversa partindo da felicidade e da infelicidade dos demais Pois ve mos que a mesma comparação pode nos proporcionar uma espécie de malevolência contra nós mesmos fazendo que nos alegremos com nossas dores e nos entristeçamos com nossos prazeres Assim quando estamos satisfeitos com nossa situação presente a lembrança de dores passadas é agradável em contrapartida nossos prazeres passados nos provocam um malestar quando no presente não temos nada equi valente Uma vez que a comparação é do mesmo tipo que aquela que fazemos quando refletimos sobre os sentimentos alheios ela deve vir acompanhada dos mesmos efeitos 4 1 0 Livro 2 Parte 2 Seção 8 1 1 Mais ainda Uma pessoa pode estender essa malevolência contra si mesma também à sua sorte presente chegando ao ponto de pro positadamente buscar a aflição e aumentar suas dores e tristezas Isso pode ocorrer em duas ocasiões Primeira quando do sofrimento e in fortúnio de um amigo ou ente querido Segunda quando sente remor sos por um crime de que é culpada É do princípio de comparação que surgem esses dois apetites irregulares pelo mal Uma pessoa que se entrega a um prazer enquanto seu amigo passa por momentos de afli ção sente a dor de seu amigo nela refletida ainda mais sensivelmente pela comparação com seu próprio prazer original É verdade que esse contraste também deveria avivar o prazer presente Mas como aqui supostamente a tristeza é a paixão predominante qualquer adição passa para o seu lado é engolida por ela sem influenciar em nada o afeto contrário O mesmo se passa com as penitências que os ho mens infligem a si mesmos por seus pecados e erros passados Quan do um criminoso pensa na punição que merece a idéia de tal punição é ampliada pela comparação com seu conforto e satisfação presen tes o que o força de alguma maneira a procurar o desconforto a fim de evitar um contraste tão desagradável 12 Esse raciocínio explica também a origem da inveja além da male volência A única diferença entre essas paixões é que a inveja é des pertada por uma satisfação presente por parte de outrem a qual por comparação diminui nossa idéia de nossa própria satisfação ao pas so que a malevolência é o desejo não provocado de causar mal a al guém a fim de extrair um prazer da comparação A satisfação que é objeto de inveja é em geral superior à nossa A superioridade do ou tro parece naturalmente nos obscurecer apresentandonos uma com paração desagradável Mesmo que haja inferioridade porém deseja mos uma distância maior que possa aumentar ainda mais a idéia de nós mesmos Quando essa distância diminui a comparação é menos vantajosa para nós e conseqüentemente nos dá menos prazer sen do até mesmo desagradável É daí que surge aquela espécie de inveja que os homens sentem quando percebem que seus inferiores deles 41 1 Tratado da natureza humana se aproximam ou com eles se emparelham na perseguição da glória ou da felicidade Um homem que se compara com seu inferior extrai um prazer dessa comparação e quando a inferioridade decresce pela elevação do inferior aquilo que deveria ter sido apenas uma diminui ção do prazer se torna uma verdadeira dor em virtude de uma nova comparação com sua condição anterior 13 Vale observar a respeito dessa inveja que decorre de uma superio ridade nos demais que não é a grande desproporção entre nós e a outra pessoa que a produz mas ao contrário nossa proximidade Um sol dado raso não sente de seu general a mesma inveja que sente de seu sargento ou cabo um escritor ilustre não encontra tanta inveja por parte de reles escrevinhadores de encomenda quanto de autores de nível semelhante ao seu Podese pensar é verdade que quanto maior a desproporção maior deverá ser o desconforto resultante da com paração Mas podemos considerar por outro lado que uma grande desproporção corta a relação e nos impede de comparar a nós mes mos com aquilo que está distante de nós ou ao menos diminui os efeitos da comparação A semelhança e a proximidade sempre pro duzem uma relação de idéias e quando esses laços são destruídos por mais que outros acidentes possam reunir as duas idéias como elas não possuem um vínculo ou qualidade que as conecte na imagi nação é impossível que permaneçam unidas por muito tempo ou que exerçam uma influência considerável uma sobre a outra 14 Ao considerar a natureza da ambição observei que os poderosos extraem um duplo prazer da autoridade quando comparam sua pró pria condição com a de seus servos e que essa comparação tem uma dupla influência porque é natural e proposta pelo próprio objeto Quando ao realizar uma comparação a fantasia não passa facilmen te de um objeto ao outro a ação da mente em grande parte se inter rompe e a fantasia para considerar o segundo objeto tem de reco meçar como se fosse do zero Nesse caso a impressão que acompanha todo objeto não parece maior por suceder a uma impressão menor do mesmo tipo ao contrário essas duas impressões são distintas e 412 Livro 2 Parte 2 Seção 8 produzem efeitos distintos sem comunicação entre si A falta de rela ção nas idéias quebra a relação das impressões e tal separação impe de sua operação e influência mútuas 1 5 Para confirmar isso podemos observar que a proximidade nos graus de mérito não é suficiente para despertar a inveja devendo ser auxiliada por outras relações Um poeta não é dado a invejar um filó sofo ou sequer um poeta de outro gênero ou de um país ou época diferentes Todas essas diferenças impedem ou enfraquecem a com paração e conseqüentemente a paixão 1 6 Essa também é a razão por que os objetos só parecem maiores ou menores quando comparados a outros da mesma espécie Aos nossos olhos uma montanha não aumenta nem diminui um cavalo mas quando vemos um cavalo flamengo junto de um galês um parece maior e o outro menor que quando vistos separadamente 1 7 Tal princípio permitenos explicar ainda aquela observação dos historiadores de que numa guerra civil um partido sempre prefere assumir o risco de apelar para um inimigo estrangeiro a ter de se sub meter a seus concidadãos Guicciardini aplica essa observação às guer ras da Itália onde as relações entre os diferentes estados não são propriamente falando senão relações de nome língua e contigüidade No entanto mesmo essas relações quando conjugadas com a superio ridade tornam a comparação mais natural e por isso também mais penosa fazendo que os homens busquem alguma outra superiori dade que não seja acompanhada de nenhuma relação e que assim influencie menos sensivelmente a imaginação A mente rapidamente percebe suas diversas vantagens e desvantagens e vendo que sua situação é mais desconfortável nos casos em que a superioridade se dá em conjunção com outras relações procura se tranqüilizar ao máxi mo separandoas e quebrando aquela associação de idéias que torna a comparação tão mais natural e eficaz Quando não é capaz de quebrar a associação sente um desejo mais forte de suprimir a superioridade Francesco Guicciardini 14831 540 Istoria dItalia 34 NT 4 1 3 Tratado da natureza humana É por essa razão que os viajantes costumam ser tão pródigos em seus elogios aos chineses e persas ao passo que depreciam as nações vizi nhas capazes de rivalizar com seu país natal 18 Esses exemplos extraídos da história e da experiência cotidiana são ricos e interessantes Mas podemos encontrar exemplos análo gos e igualmente notáveis nas artes Se acaso um autor escrevesse um tratado do qual uma parte fosse séria e profunda e a outra leve e en graçada todos condenariam uma mistura tão estranha e o acusariam de desprezar todas as regras da arte e da crítica Essas regras da arte se fundam nas qualidades da natureza humana e a qualidade da na tureza humana que requer que toda obra possua uma coerência é o que torna a mente incapaz de passar muito rapidamente de uma pai xão e disposição a outras muito diferentes Entretanto isso não nos faz censurar o Sr Prior por reunir seus dois poemas Alma e Solomon em um mesmo volume embora esse admirável poeta tenha sido igual mente bemsucedido na alegria do primeiro e na melancolia do se gundo Mesmo que uma pessoa lesse cuidadosamente essas duas composições uma em seguida à outra sentiria pouca ou nenhuma dificuldade em trocar de paixão E por quê Porque considera essas duas obras inteiramente diferentes e essa ruptura entre as idéias in terrompe o progresso dos afetos impedindo que um influencie e con tradiga o outro 1 9 Um quadro que unisse um motivo heróico e outro burlesco seria monstruoso no entanto não hesitamos nem temos nenhuma difi culdade em colocar dois quadros de gêneros tão diferentes no mes mo aposento e até perto um do outro 20 Em resumo duas idéias nunca poderão afetar uma à outra seja por comparação seja pelas paixões que produzem separadamente a menos que estejam unidas por alguma relação capaz de causar uma transição fácil entre as duas idéias e conseqüentemente entre as emo ções ou impressões que as acompanham e capaz de preservar uma das Matthew Prior 1 6641 721 Poeta e diplomata inglês As obras que Hume cita são Ama or the progress of the mind e Solomon ar the vanity of the world em Poems on severa occasions NT 4 1 4 Livro 2 Parte 2 Seção 9 impressões na passagem da imaginação ao objeto da outra Esse prin cípio é bastante notável porque é análogo ao que observamos tanto a respeito do entendimento quanto das paixões Suponhamos que se apresentem a mim dois objetos que não estão conectados por nenhum tipo de relação Suponhamos que cada um desses objetos separada mente produza uma paixão e que essas duas paixões sejam contrá rias uma à outra Descobrimos pela experiência que a falta de rela ção nos objetos ou nas idéias impede a natural contrariedade das paixões e a interrupção da transição do pensamento afasta os afetos uns dos outros impedindo sua oposição O mesmo se passa também com a comparação e com base nesses dois fenômenos podemos con cluir com segurança que a relação de idéias deve auxiliar a transição entre as impressões já que sua simples ausência é capaz de impedi la e de separar coisas que naturalmente deveriam ter atuado uma sobre a outra Quando a ausência de um objeto ou qualidade supri me um efeito usual ou natural podemos concluir com certeza que sua presença contribui para a produção do efeito Seção 9 Da mistura da benevolência e da raiva com a compaixão e a malevolência Procuramos explicar assim a piedade e a malevolência Esses dois afetos surgem da imaginação de acordo com a perspectiva pela qual ela considera seu objeto Quando nossa fantasia considera diretamente os sentimentos alheios e penetra profundamente neles tornanos sensíveis a todas as paixões que observa particularmente ao pesar e à tristeza Ao contrário quando comparamos os sentimentos alheios aos nossos temos uma sensação diretamente oposta à original a sa ber sentimos uma alegria pela tristeza dos demais e uma tristeza por sua alegria Mas estes são apenas os primeiros fundamentos dos afe tos da piedade e da malevolência Em seguida outras paixões se mistu 41 5 Tratado da natureza humana ram a eles Existe sempre uma mistura de amor ou de ternura com a piedade e de ódio ou de raiva com a malevolência Devo reconhecer que essa mistura parece à primeira vista contradizer meu sistema Pois como a piedade é um desconforto e a malevolência uma alegria derivados da infelicidade alheia a piedade deveria naturalmente como em todos os outros casos produzir ódio e a malevolência amor Ten tarei solucionar essa contradição da seguinte maneira 2 Para causar uma transição das paixões é preciso uma dupla rela ção de impressões e de idéias pois uma só relação não basta para produzir esse efeito Para que possamos compreender plenamente a força dessa dupla relação no entanto devemos considerar que não é apenas a sensação presente a dor ou o prazer momentâneos que determinam o caráter de uma paixão mas sim a totalidade de sua inclinação ou tendência do início ao fim Uma impressão pode estar relacionada com outra não somente quando suas sensações são se melhantes como supusemos ao longo de todos os casos anteriores mas também quando seus impulsos ou direções são similares e cor respondentes Isso não pode ocorrer no caso do orgulho e da humil dade porque estas são apenas puras sensações sem direção nem ten dência à ação Só devemos buscar exemplos dessa relação peculiar de impressões portanto naqueles afetos que são acompanhados de um certo apetite ou desejo como as paixões do amor e do ódio 3 A benevolência ou apetite que acompanha o amor é um desejo da felicidade da pessoa amada e uma aversão por sua infelicidade assim como a raiva ou apetite que acompanha o ódio é um desejo da infelicidade da pessoa odiada e uma aversão por sua felicidade Portanto o desejo da felicidade de outrem e a aversão por sua infeli cidade são similares à benevolência e o desejo de sua infelicidade e a aversão por sua felicidade são correspondentes à raiva Ora a pieda de é um desejo da felicidade de outrem e uma aversão por sua infeli cidade e a malevolência é o apetite contrário A piedade portanto está relacionada à benevolência e a malevolência à raiva E como já constatamos que a benevolência está conectada com o amor por uma 4 1 6 Livro 2 Parte 2 Seção 9 qualidade natural e original e a raiva com o ódio concluímos que é por essa cadeia que as paixões da piedade e da malevolência se co nectam com o amor e o ódio 4 Essa hipótese está suficientemente fundamentada na experiência Quando uma pessoa por algum motivo toma a resolução de realizar uma ação ela naturalmente se lança em direção a todos os outros mo tivos ou considerações que possam fortalecer essa resolução conferin dolhe assim autoridade e influência sobre a mente Para reforçar nosso propósito buscamos motivos extraídos do interesse da honra ou do dever Não é de espantar portanto que a piedade e a benevolência ou que a malevolência e a raiva que são os mesmos desejos vindos de prin cípios diferentes misturemse a ponto de se tornar indistinguíveis Quanto à conexão entre a benevolência e o amor ou entre a raiva e o ódio como é original e primária não admite dificuldade 5 Podemos acrescentar a esse um outro experimento a saber que a benevolência e a raiva e conseqüentemente o amor e o ódio sur gem quando nossa felicidade ou infelicidade dependem de algum modo da felicidade ou da infelicidade de outra pessoa sem necessi dade de outra relação Estou certo de que a singularidade desse expe rimento parecerá uma boa justificativa para que nos detenhamos por um momento a examinálo 6 Suponhamos que duas pessoas de mesma profissão procurem em prego em uma cidade que não tem capacidade de absorver a ambas é claro que o sucesso de uma é inteiramente incompatível com o da outra e tudo que é do interesse de uma é contrário ao de sua rival e viceversa Suponhamos em seguida que dois comerciantes embo ra vivendo em partes diferentes do mundo formem uma sociedade nesse caso todos os ganhos e perdas de um se convertem imediata mente em ganhos e perdas para seu parceiro e a sorte de ambos é necessariamente a mesma Ora é evidente que no primeiro caso a contrariedade de interesses sempre produz o ódio ao passo que no segundo a união dos interesses gera o amor Vejamos a que princípios podemos atribuir essas paixões 41 7 Tratado da natureza humana 7 É claro que elas não resultam da dupla relação de impressões e idéias se considerarmos apenas a sensação presente Tomemos por exemplo o primeiro caso da rivalidade O prazer e a vantagem de um adversário são necessariamente desvantajosos e dolorosos para mim entretanto para contrabalançar sua dor e desvantagem me causam prazer e me favorecem e caso ele fracasse posso extrair daí um grau superior de satisfação Da mesma maneira o sucesso de um parcei ro me alegra mas seus infortúnios me afligem na mesma propor ção e é fácil imaginar que em muitos casos este último sentimen to possa preponderar Mas quer a sorte de um rival ou parceiro seja boa quer seja má sempre odeio o primeiro e amo o segundo 8 Esse amor que sinto por meu parceiro não pode proceder da re lação ou conexão entre nós como ocorre no caso de meu amor por um irmão ou compatriota Um rival guarda comigo uma relação qua se tão estreita quanto um parceiro pois assim como o prazer deste último me causa prazer e sua dor me causa dor assim também o pra zer do primeiro me causa dor e sua dor me causa prazer Portanto a conexão de causa e efeito é a mesma nos dois casos E se em um de les a causa e o efeito têm também a relação de semelhança no outro têm a de contrariedade que sendo também uma espécie de seme lhança deixa tudo equilibrado 9 Assim a única explicação que podemos dar para esse fenômeno é derivada do princípio acima mencionado de uma direção paralela dos afetos Nossa preocupação com nosso próprio interesse nos dá um prazer pelo prazer e uma dor pela dor de um parceiro do mesmo modo que pela simpatia sentimos uma sensação correspondente às que aparecem em qualquer pessoa que esteja em nossa presença Por ou tro lado a mesma preocupação com nosso interesse nos faz sentir dor pelo prazer e prazer pela dor de um rival e em suma a mesma con trariedade de sentimentos que surge da comparação e da malevolência Portanto como uma direção paralela dos afetos procedente do interes se pode gerar benevolência ou raiva não é de admirar que a mesma 4 1 8 Livro 2 Parte 2 Seção 9 direção paralela resultante da simpatia e da comparação tenha o mes mo efeito 10 Podemos observar em geral que é impossível fazer o bem a ou tras pessoas por qualquer motivo que seja sem sentir por elas uma ponta de ternura e afeição assim como quando prejudicamos alguém causamos ódio não apenas na pessoa que é prejudicada mas em nós mesmos Esses fenômenos sem dúvida podem ser parcialmente ex plicados por outros princípios 1 1 Surge aqui porém uma objeção importante que precisaremos examinar antes de passar adiante Procurei provar que o poder e a ri queza ou a pobreza e a inferioridade que geram amor e ódio sem pro duzir um prazer ou desprazer originais atuam sobre nós por meio de uma sensação secundária derivada de uma simpatia com a dor e com a satisfação que produzem na própria pessoa Da simpatia com seu prazer nasce o amor e com seu desprazer o ódio Mas uma máxima que acabei de estabelecer e a qual é absolutamente necessária para explicar os fenômenos da piedade e da malevolência diz que não é a sensação presente a dor e o prazer momentâneos o que determina o caráter de uma paixão mas sim a inclinação ou tendência geral dessa paixão do começo ao fim Por essa razão a piedade ou seja uma simpatia com a dor produz amor porque nos dá um interesse pela sorte dos outros boa ou má produzindo em nós uma sensação se cundária correspondente à primária e assim tem a mesma influên cia que o amor e a benevolência Se essa regra vale em um caso por tanto por que não prevalece em todos e por que a simpatia com o desprazer algumas vezes produz uma paixão além da boa vontade e da ternura Acaso convém a um filósofo alterar seu modo de racioci nar saltando de um princípio a seu contrário de acordo com o fenô meno particular que deseja explicar 12 Mencionei duas causas diferentes das quais pode resultar uma transição entre as paixões uma dupla relação de idéias e de impres sões e o que é semelhante uma conformidade entre a tendência e direção de dois desejos quaisquer derivados de princípios diferentes 4 1 9 Tratado da natureza humana Afirmo agora que quando a simpatia com o desprazer é fraca ela produz ódio ou desprezo pela primeira causa quando é forte pro duz amor ou ternura pela segunda Essa é a solução da dificuldade acima mencionada que parece tão premente E esse princípio está fun dado em argumentos tão evidentes que teríamos de estabelecêlo mes mo que não fosse necessário para a explicação de nenhum fenômeno 13 É certo que a simpatia nem sempre se limita ao momento pre sente Freqüentemente sentimos por comunicação dores e prazeres alheios que ainda não existem mas que antecipamos pela força da imaginação Suponhamos que eu visse uma pessoa inteiramente des conhecida dormindo sobre a relva correndo perigo de ser pisoteada por cavalos eu imediatamente correria para ajudála e ao fazêlo estaria sendo movido pelo mesmo princípio da simpatia que faz com que me preocupe com a aflição presente de um desconhecido A sim ples menção disso é suficiente Como a simpatia não é senão uma idéia vívida convertida em uma impressão é evidente que ao consi derar a situação futura possível ou provável de uma pessoa qualquer podemos entrar nessa situação mediante uma concepção tão viva que chegamos a fazer dela nosso próprio interesse desse modo tornamo nos sensíveis a dores e prazeres que não nos pertencem nem têm uma existência real no instante presente 14 Mas embora possamos estar pensando no futuro ao simpatizar com alguém a extensão de nossa simpatia depende em grande par te da noção sense que temos de sua situação presente Já é preciso um grande esforço de imaginação para formar mesmo dos sentimen tos presentes das outras pessoas idéias tão vivas que cheguemos a sentir nós próprios esses sentimentos mas estender essa simpatia ao futuro sem a ajuda de alguma circunstância no presente que nos to que de maneira vívida sernosia impossível Quando a infelicidade presente de uma pessoa exerce uma forte influência sobre mim a vividez da concepção não se limita apenas a seu objeto imediato ao contrário espalha sua influência por todas as idéias relacionadas pro porcionandome uma noção vívida de todas as circunstâncias que en 420 Livro 2 Parte 2 Seção 9 volvem essa pessoa sejam passadas presentes ou futuras possíveis prováveis ou certas Por meio dessa noção vívida interessome por essas circunstâncias participo delas e sinto em meu peito um movi mento simpático conforme a tudo que imagino se passar no seu Se diminuo a vividez da primeira concepção diminuo também a das idéias relacionadas como ocorre com os canos que não podem transpor tar mais água que aquela que brota da fonte Com essa diminuição destruo a perspectiva futura necessária para que eu me interesse com pletamente pela sorte alheia Posso sentir a impressão presente mas não levo minha simpatia adiante e em nenhum momento transmito a força da primeira concepção para minhas idéias dos objetos relacio nados Se for a infelicidade do outro o que se me apresenta dessa maneira tão fraca eu a recebo por comunicação e sou afetado por todas as paixões relacionadas a ela mas como não me interesso tan to a ponto de me preocupar igualmente com a boa e a má sorte dessa pessoa nunca sinto a simpatia extensa e tampouco as paixões com ela relacionadas 1 5 Agora para saber que paixões têm relação com esses diferentes tipos de simpatia devemos considerar que a benevolência é um pra zer original derivado do prazer da pessoa amada e uma dor proce dente de sua dor dessa correspondência entre as impressões surge um desejo subseqüente de seu prazer e uma aversão por sua dor Por tanto para fazer que uma paixão tenha uma direção paralela à da be nevolência precisamos sentir essas duplas impressões corresponden tes às da pessoa que consideramos uma impressão apenas seria insuficiente para esse propósito Quando simpatizamos somente com uma impressão e esta é dolorosa essa simpatia se relaciona com a raiva e o ódio em virtude do desprazer que nos transmite Mas como o caráter extenso ou restrito da simpatia depende da força da primeira simpatia seguese que a paixão do amor ou do ódio depende do mes mo princípio Uma impressão forte quando comunicada imprime uma dupla tendência às paixões a qual se relaciona com a benevo lência e o amor pela similaridade de suas direções por mais dolorosa 42 1 Tratado da natureza humana que possa ter sido a primeira impressão Uma impressão fraca e doloro sa relacionase com a raiva e o ódio pela semelhança de suas sensações Portanto a benevolência surge de um alto grau de infelicidade ou de qualquer grau com que simpatizemos fortemente o ódio ou desprezo surge de um baixo grau ou de um grau com que simpatizemos pouco o que vem a ser o princípio que eu pretendia provar e explicar 1 6 Não é apenas a razão que nos permite confiar nesse princípio mas também a experiência Um determinado grau de pobreza produz des prezo mas um grau a mais causa compaixão e benevolência Pode mos dar pouco valor a um camponês ou a um criado mas quando a infelicidade de um mendigo parece muito grande ou é retratada em cores muito vivas simpatizamos com ele em suas aflições e senti mos em nosso coração sinais evidentes de piedade e benevolência O mesmo objeto causa paixões contrárias segundo seus diferentes graus As paixões portanto devem depender de princípios que atuam nesses graus precisos de acordo com minha hipótese O aumento da simpatia tem evidentemente o mesmo efeito que o aumento da in felicidade 1 7 Uma região árida e desolada sempre parece repulsiva e desagra dável e comumente nos inspira desprezo por seus habitantes Entre tanto tal repulsa procede em grande parte de uma simpatia com os habitantes como já observamos só que de uma simpatia fraca que não vai além da sensação imediata que é desagradável A visão de uma cidade em cinzas traz sentimentos benevolentes porque entra mos tão profundamente nos interesses de seus infelizes habitantes que desejamos sua prosperidade ao mesmo tempo que sentimos sua adversidade 18 Mas embora a força da impressão geralmente produza piedade e benevolência é certo que se for levada longe demais deixa de ter esse efeito Talvez valha a pena examinar esse ponto Quando o desprazer é ele mesmo pequeno ou quando está longe de nós não prende a imaginação sendo incapaz de transmitir uma igual preocupação com o bem futuro e contingente que com o mal presente e real Quando 422 Livro 2 Parte 2 Seção 9 adquire mais força ficamos tão preocupados com os interesses da pessoa que nos tornamos sensíveis tanto a sua boa como a sua má sorte e dessa simpatia completa nascem a piedade e a benevolên cia Mas é fácil imaginar que quando o mal presente nos toca com uma força maior que a usual ele pode absorver inteiramente nossa atenção impedindo aquela dupla simpatia acima mencionada Assim por exemplo vemos que todas as pessoas mas sobretudo as mulhe res tendem a se enternecer com criminosos que vão para o cadafalso e logo imaginam que eles são extraordinariamente belos e bemapes soados entretanto quem presencia a cruel execução do suplício não sente essas emoções suaves ao contrário enchese de horror e não tem nem tempo para moderar essa sensação desagradável por meio de uma simpatia oposta 19 Mas o exemplo que mais claramente confirma minha hipótese é aquele em que ao mudar de objeto separamos a dupla simpatia até mesmo de um grau mediano da paixão e nesse caso vemos que a piedade ao invés de produzir o amor e a ternura como de costume engendra sempre o afeto contrário Quando observamos uma pessoa que sofre uma adversidade somos afetados pela piedade e pelo amor mas o autor dessa adversidade se torna objeto de nosso ódio mais profundo e é tão mais detestado quanto maior for nossa compaixão Ora por que razão deveria a mesma paixão da piedade produzir amor pela pessoa que sofre a adversidade e ódio pela pessoa que a causou senão porque neste último caso o autor mantém uma relação ape nas com a adversidade ao passo que ao considerar aquele que a pa dece olhamos para todos os lados e desejamos seu bemestar além de sentir sua aflição 20 Antes de terminar este tema observarei apenas que esse fenô meno da dupla simpatia e de sua tendência para produzir amor pode contribuir para a produção daquela afeição que naturalmente senti mos por nossos parentes e amigos O costume e a relação de paren tesco fazemnos entrar profundamente nos sentimentos das pessoas e seja qual for a sorte que imaginemos que lhes caiba ela se torna 423 Tratado da natureza humana presente a nós pela imaginação agindo como se fosse originalmente nossa Alegramonos com seus prazeres e entristecemonos com suas aflições pela mera força da simpatia Nada que lhes interesse nos é indiferente e como essa correspondência de sentimentos acom panha naturalmente o amor ela produz facilmente esse afeto Seção 1 O Do respeito e do desprezo 1 Resta agora explicar as paixões do respeito e do desprezo juntamente com o afeto amoroso com isso teremos compreendido todas as pai xões que contêm alguma mistura de amor ou de ódio Comecemos com o respeito e o desprezo 2 Ao considerar as qualidades e as particularidades das outras pes soas podemos vêlas como são em si mesmas ou comparálas com nossas próprias qualidades e particularidades ou ainda podemos conjugar essas duas maneiras de as considerar Do primeiro ponto de vista as boas qualidades alheias produzem amor do segundo humil dade e do terceiro respeito que é uma mistura dessas duas paixões Suas más qualidades do mesmo modo causam ódio orgulho ou des prezo segundo a perspectiva pela qual as examinemos 3 Que há um pouco de orgulho no desprezo e de humildade no res peito é algo que julgo tão evidente pela própria aparência ou sensa ção feeling dessas paixões que não há necessidade de provas E não é menos evidente que essa mistura resulta de uma comparação tácita entre nós e a pessoa que desprezamos ou respeitamos O mesmo homem pode causar respeito amor ou desprezo por sua condição e seus talentos conforme a pessoa que o considera passe de seu inferior para seu igual ou superior Ao mudar o ponto de vista mesmo que o objeto permaneça o mesmo sua proporção conosco se altera com pletamente e é isso que causa a alteração nas paixões Essas paixões portanto surgem por observarmos a proporção ou seja surgem por uma comparação 424 Livro 2 Parte 2 Seção 1 0 4 Já notei que a mente tem uma propensão muito mais forte para o orgulho que para a humildade e procurei estabelecer a causa desse fenômeno partindo dos princípios da natureza humana Quer se aceite ou não meu raciocínio o fenômeno está fora de dúvida e se manifes ta em diversos casos Por exemplo é ele a razão de haver uma porção muito maior de orgulho no desprezo que de humildade no respeito e também de nos sentirmos mais enaltecidos pela visão de alguém que está abaixo de nós que humilhados pela presença de alguém que está acima de nós O desprezo ou desdém está tão impregnado de orgulho que raramente se pode discernir nele outras paixões ao passo que no apreço ou respeito o amor é um ingrediente de mais peso que a humildade A paixão da vaidade é tão pronta que desperta à me nor chamada a humildade ao contrário requer um impulso mais forte para se exercer 5 Mas alguém poderia aqui perguntar de forma bastante razoável por que essa mistura só ocorre em alguns casos não aparecendo em todas as ocasiões Todos os objetos que causam amor quando situados em outra pessoa tornamse causas de orgulho quando transferidos para nós conseqüentemente quando pertencem a outros e são ape nas comparados aos que nos pertencem deveriam ser causa de hu mildade assim como de amor Da mesma forma toda qualidade que produz ódio quando diretamente considerada deveria sempre gerar orgulho por comparação e pela mistura dessas paixões do ódio e do orgulho deveria despertar desprezo ou desdém A dificuldade por tanto é saber por que alguns objetos algumas vezes causam amor ou ódio puros e nem sempre produzem as paixões mistas do respeito e do desprezo 6 Até aqui supus que as paixões do amor e do orgulho como tam bém as da humildade e do ódio são similares em suas sensações e que como que as duas primeiras são sempre agradáveis enquanto as últimas são penosas Embora isso seja universalmente verdadeiro con tudo podese observar que tanto as duas paixões agradáveis como as duas penosas apresentam algumas diferenças e mesmo contrariedades 425 Tratado da natureza humana que as distinguem Nada revigora e exalta a mente tanto quanto o orgulho e a vaidade ao mesmo tempo o amor ou a ternura antes a enfraquecem e debilitam Observase a mesma diferença entre as pai xões desagradáveis A raiva e o ódio conferem mais força a todos os nossos pensamentos e ações enquanto a humildade e a vergonha nos deprimem e desencorajam Será preciso formar uma idéia distinta des sas qualidades das paixões Lembremos que o orgulho e o ódio for talecem a alma e o amor e a humildade a enfraquecem 7 Seguese daí que embora a conformidade entre o amor e o orgu lho pelo caráter agradável de suas sensações faça que essas duas pai xões sejam despertadas pelos mesmos objetos essa outra contrarie dade é a razão pela qual elas são excitadas em graus muito diferentes A inteligência e a erudição são objetos prazerosos e eminentes sendo ade quados ao orgulho e à vaidade por essas duas características mas só têm relação com o amor pelo prazer que produzem A ignorância e a parvoíce são desagradáveis e desprezíveis o que lhes dá de maneira se melhante uma dupla conexão com a humildade e uma conexão única com o ódio Podemos portanto ter como certo que embora o mes mo objeto sempre produza amor e orgulho ou humildade e ódio se gundo suas diferentes situações ele raramente produz as duas pri meiras ou as duas últimas paixões na mesma proporção 8 É neste ponto que devemos procurar uma solução para a dificul dade antes mencionada por que certos objetos algumas vezes pro duzem amor ou ódio puros e nem sempre produzem respeito ou desprezo pela mistura de humildade ou orgulho Nenhuma qualidade alheia gera humildade por comparação a menos que produza orgulho caso se situe em nós e viceversa nenhum objeto desperta orgulho por comparação a menos que produza humildade se observado diretamente em nós Isto é evidente a sensação que os objetos produzem por com paração é sempre diretamente contrária à sua sensação original Su ponhamos portanto que se nos apresente um objeto particularmente apto a produzir amor mas não perfeitamente adequado para produ zir orgulho Esse objeto por pertencer a outra pessoa origina direta 426 Livro 2 Parte 2 Seção 1 O mente um alto grau de amor mas por comparação gera apenas um fraco grau de humildade em conseqüência disso esta última paixão quase não se faz sentir dentro do composto sendo incapaz de trans formar o amor em respeito Tal é o caso da boa índole do bom hu mor da docilidade da generosidade da beleza e de muitas outras qualidades que têm uma aptidão peculiar para produzir amor pelos demais mas não a mesma tendência para despertar orgulho em nós mesmos Por essa razão a visão dessas qualidades quando perten cem a outra pessoa produz amor puro com apenas uma leve mistu ra de humildade e respeito É fácil estender o mesmo raciocínio às paixões opostas 9 Antes de passarmos a outro assunto cabe explicar um fenôme no um tanto curioso por que comumente nos mantemos distantes daqueles que desprezamos e não permitimos que nossos inferiores cheguem muito perto de nós sequer no sentido espacial Já notamos que quase todos os tipos de idéias são acompanhados de alguma emoção inclusive as de número e de extensão e mais ainda as dos objetos considerados importantes para a vida e que por isso pren dem nossa atenção Não podemos ficar inteiramente indiferentes ao observar um homem rico ou pobre sempre sentimos ao menos uma ponta de respeito no primeiro caso e de desprezo no segundo Es sas duas paixões são contrárias mas só sentiremos essa contrarieda de se os objetos estiverem relacionados de alguma maneira de outro modo os afetos ficam totalmente separados e distintos sem jamais se encontrar Ora sempre que as pessoas se aproximam umas das ou tras a relação se estabelece e essa é a razão por que em geral senti mos um desconforto ao ver objetos tão desproporcionais como um homem rico e um homem pobre um nobre e um criado nessa situa ção de contigüidade 10 Esse desconforto comum a todos que observam tal situação deve ser ainda mais sensível para o superior pois a aproximação do inferior é vista como falta de educação e mostra que este não é sensível à desproporção nem é afetado por ela O sentimento sense da superio 42 7 Tratado da natureza humana ridade de um homem gera em todos os outros uma inclinação a se manter distantes dele e a redobrar os sinais de respeito e reverência caso se vejam obrigados a se aproximar quando não observam essa conduta isso prova que não se dão conta da superioridade do outro É por isso também que uma diferença grande nos graus de uma qua lidade qualquer é denominada distância tratase de uma metáfora co mum que por mais trivial que possa parecer fundamentase em prin cípios naturais da imaginação Uma grande diferença inclinanos a produzir uma distância as idéias de distância e diferença estão por tanto conectadas e idéias conectadas são facilmente tomadas uma pela outra Essa é em geral a origem da metáfora como teremos oca sião de observar posteriormente Seção 1 1 Da paixão amorosa ou amor entre os sexos 1 De todas as paixões compostas resultantes da mistura do amor e do ódio com outros afetos a que mais merece nossa atenção é o amor entre os sexos e isso tanto por sua força e violência como pelos curio sos princípios filosóficos em favor dos quais nos fornece um argu mento incontestável É claro que esse afeto em seu estado mais na tural deriva da conjunção de três impressões ou paixões diferentes a sensação agradável resultante da beleza o apetite carnal pela gera ção e uma afeição generosa ou benevolência O modo como a beleza origina a ternura pode ser explicado com base no raciocínio anterior A questão é saber como ela excita o apetite carnal 2 O apetite de geração quando se dá em um grau limitado é evi dentemente de uma espécie agradável e tem forte conexão com to das as emoções agradáveis Alegria júbilo vaidade e ternura todas incentivam esse desejo assim como a música a dança o vinho e a boa mesa Em contrapartida a tristeza a melancolia a pobreza e a humildade o destroem Graças a essa sua qualidade é fácil conceber por que esse desejo está conectado com o sentimento sense do belo 428 Livro 2 Parte 2 Seção 1 1 3 Há porém outro princípio que contribui para o mesmo efeito Observei que a direção paralela dos desejos constitui uma verdadeira relação e tanto quanto a semelhança de suas sensações produz uma conexão entre eles Para compreendermos plenamente o alcance dessa relação devemos considerar que qualquer desejo principal pode ser acompanhado de desejos subordinados e conectados com ele e se outros desejos têm uma direção paralela à desses desejos subordina dos isso os torna relacionados também ao desejo principal Assim a fome pode freqüentemente ser considerada uma inclinação primária da alma e o desejo de se acercar do alimento uma inclinação secun dária já que é absolutamente necessário para satisfazer àquele apetite Portanto se um objeto por meio de qualidades próprias produz em nós uma inclinação a nos aproximarmos de um prato de comida ele naturalmente aumenta nosso apetite ao contrário tudo que nos incli na a afastar de nós os alimentos contraria a fome diminuindo assim nossa inclinação em direção a eles Ora a beleza tem claramente o primeiro tipo de efeito e a fealdade o segundo E é por essa razão que aquela nos dá um apetite mais aguçado por nossos alimentos enquan to esta última é suficiente para provocar nossa repugnância diante do prato mais saboroso já inventado pela arte culinária Tudo isso se aplica facilmente ao apetite de geração 4 Dessas duas relações a saber a semelhança e um desejo parale lo resulta uma tal conexão entre o sentimento sense do belo o ape tite carnal e a benevolência que estes se tornam de certo modo inseparáveis E constatamos pela experiência que não faz diferença qual deles surge primeiro pois é quase certo que qualquer um esta rá acompanhado dos afetos relacionados Um homem cheio de dese jo sente ao menos uma afeição momentânea por aquela que é objeto desse desejo e ao mesmo tempo a imagina mais bela que de costume mas há também muitos que começam sentindo afeição e apreço pelo talento e mérito da pessoa passando destas às outras paixões O gê nero mais comum de amor é porém aquele que surge inicialmente da beleza e em seguida se difunde em afeição e apetite carnal A afei 429 Tratado da natureza humana ção ou apreço e o apetite de geração são paixões distantes demais para se unirem facilmente Aquela é talvez a paixão mais refinada da alma esta a mais grosseira e vulgar O amor pela beleza situase exatamente no meio das duas participando da natureza de ambas E é justamente por isso que é tão apropriado para produzir a ambas 5 Essa explicação do amor não é própria de meu sistema é inevitá vel em qualquer hipótese Os três afetos que compõem essa paixão são evidentemente diversos e cada um tem seu objeto distinto É cer to portanto que somente por meio de sua relação podem produzir uns aos outros Mas a mera relação das paixões ainda não é suficien te Também é necessária uma relação de idéias A beleza de uma pes soa nunca nos inspira amor por outra pessoa o que é uma prova sen sível da dupla relação de impressões e idéias Esse exemplo é bastante evidente e tomandoo por base podemos formar um juízo sobre os demais 6 Visto de outro ângulo esse caso também pode servir para ilus trar algo que salientei acerca da origem do orgulho e da humildade do amor e do ódio Observei que embora o eu seja o objeto do pri meiro par de paixões e uma outra pessoa o objeto do segundo tais objetos sozinhos não podem ser as causas dessas paixões pois cada um está relacionado com dois afetos contrários os quais desde o primeiro instante teriam de se destruir mutuamente Eis portanto a situação da mente tal como já a descrevi Ela possui determinados órgãos naturalmente aptos a produzir uma paixão essa paixão quan do produzida naturalmente dirige a atenção para um determinado objeto Mas como isso não é suficiente para produzir a paixão é pre ciso haver alguma outra emoção que por uma dupla relação de im pressões e idéias possa acionar esses princípios conferindolhes o impulso inicial Essa situação é ainda mais notável no caso do apeti te de geração O sexo oposto não é somente o objeto mas também a causa do apetite Ou seja não apenas dirigimos nosso olhar para ele quando movidos por esse apetite basta pensar nele para excitar o 430 Livro 2 Parte 2 Seção 12 apetite Entretanto como essa causa perde sua força por ser muito freqüente precisa ser estimulada por um novo impulso e esse im pulso constatamos que surge da beleza da pessoa isto é de uma du pla relação de impressões e de idéias Uma vez que essa dupla rela ção é necessária nos casos em que o afeto tem tanto um objeto distinto como uma causa distinta ela o será ainda mais nos casos em que o afeto tem apenas um objeto distinto sem nenhuma causa de terminada Seção 1 2 Do amor e ódio dos animais 1 Mas passando das paixões do amor e do ódio bem como de suas misturas e combinações tais como aparecem nos homens para os mesmos afetos tais como se manifestam nos animais podemos ob servar não apenas que o amor e o ódio são comuns a todas as criatu ras sensíveis como também que suas causas acima explicadas têm uma natureza tão simples que se pode facilmente supor que operam nos meros animais Não é necessária nenhuma capacidade de refle xão ou penetração Tudo é guiado por mecanismos e princípios que não são peculiares nem aos homens nem a qualquer espécie animal A conclusão que extraímos dessas observações favorece claramente o sistema anterior 2 O amor dos animais não tem por objeto somente indivíduos da mesma espécie ao contrário estendese a quase todo ser sensível e pensante É natural que um cão ame mais a um homem que a um membro de sua própria espécie e é muito comum que em troca re ceba a mesma afeição 3 Como os animais são pouco suscetíveis dos prazeres ou das do res da imaginação só podem julgar os objetos pelo bem ou mal sensí vel que estes produzem e é a partir desse bem ou mal que devem regu lar sua afeição pelos objetos Vemos assim que conforme tratemos bem ou mal um animal qualquer produzimos seu amor ou ódio se o 43 1 Tratado da natureza humana alimentarmos e lhe dermos carinho rapidamente obteremos sua afei ção ao contrário se batermos nele e o maltratarmos certamente des pertaremos sua inimizade e rancor 4 Nos animais o amor não é causado pelo parentesco tanto quan to em nossa espécie porque seus pensamentos não são tão ágeis a ponto de descobrir essas relações a não ser em casos muito óbvios Entretanto é muito fácil notar que em certas ocasiões elas exercem uma influência considerável sobre eles Assim a familiaridade que tem o mesmo efeito que o parentesco gera sempre amor nos animais seja pelos homens seja por outros animais Pela mesma razão qual quer semelhança entre eles é fonte de afeição Um boi fechado no pasto com cavalos se reunirá naturalmente a estes em busca de companhia se posso me exprimir assim mas sempre que tiver escolha irá aban donálos para desfrutar da companhia de sua própria espécie 5 Nos animais como em nossa espécie a afeição dos pais pelos fi lhos procede de um instinto peculiar 6 É evidente que a simpatia ou comunicação das paixões ocorre entre os animais tanto quanto entre os homens Medo raiva coragem e outros afetos comunicamse freqüentemente de um animal a ou tro sem que eles tenham conhecimento da causa que produziu a pai xão original Também a tristeza é recebida por simpatia e tem quase as mesmas conseqüências e desperta as mesmas emoções que em nossa espécie Os uivos e lamentos de um cão produzem uma sensí vel inquietação em seus companheiros E é notável que embora quase todos os animais ao brincar empreguem a mesma parte do corpo que usam para lutar e ajam quase da mesma maneira o leão o tigre e o gato usam suas garras o boi seus chifres o cão seus dentes o cavalo seus cascos eles evitam cuidadosamente ferir seu compa nheiro mesmo sem temer sua reação Isso é uma prova evidente do sentido que os animais têm das dores e dos prazeres uns dos outros 7 Todo mundo já observou que os cães ficam muito mais anima dos quando caçam em matilhas que quando perseguem sua presa so zinhos e é evidente que isso só pode resultar da simpatia Os caça 432 Livro 2 Parte 2 Seção 12 dores também sabem perfeitamente que esse efeito ocorre em um grau maior e até em um grau demasiado quando duas matilhas es tranhas se encontram Talvez nos fosse difícil explicar esse fenôme no se não tivéssemos experiência de um fenômeno semelhante em nós mesmos 8 A inveja e a malevolência são paixões muito notáveis nos animais São talvez mais comuns que a piedade porque requerem um esfor ço menor de pensamento e imaginação 433 Seção 1 Parte 3 Da vontade e das paixões diretas Da liberdade e da necessidade 1 Passaremos agora a explicar as paixões diretas ou seja as impres sões que resultam imediatamente do bem ou do mal da dor ou do prazer Desse tipo são as paixões de desejo e aversão tristeza e alegria esperança e medo 2 Dentre todos os efeitos imediatos da dor e do prazer o mais no tável é a VONTADE Embora rigorosamente falando a vontade não se inclua entre as paixões a plena compreensão de sua natureza e pro priedades é necessária para explicar as paixões por isso iremos tomá la aqui como tema de nossa investigação Desejo observar que entendo por vontade simplesmente a impressão interna que sentimos e de que temos consciência quando deliberadamente geramos um novo movimento em nosso corpo ou uma nova percepção em nossa mente É impossível definir essa impressão e inútil descrevêla com mais detalhe exatamente como ocorria com as impressões de orgulho e humildade ou amor e ódio Por essa razão evitaremos todas aquelas definições e distinções com 435 Tratado da natureza humana que os filósofos costumam confundir mais que esclarecer esse tema Entraremos diretamente no assunto examinando uma questão que há muito vem sendo objeto de discussão e que ocorre tão natural mente quando se trata da vontade a questão acerca da liberdade e da necessidade 3 Todos reconhecem que as operações dos corpos externos são ne cessárias e que na comunicação de seu movimento e em sua atra ção e coesão mútuas não há nenhum traço de indiferença ou liber dade Todo objeto é determinado por um destino absoluto a um certo grau e uma certa direção de movimento sendo tão incapaz de se afas tar dessa linha precisa em que se move quanto de se transformar em um anjo um espírito ou qualquer substância superior Portanto as ações da matéria devem ser vistas como exemplos de ações necessá rias e tudo que por esse aspecto estiver na mesma situação que a matéria deverá ser admitido como necessário Para saber se é este o caso das ações da mente começaremos examinando a matéria e ana lisando qual o fundamento da idéia de uma necessidade em suas ope rações e por que concluímos que um corpo ou ação é a causa infalí vel de outro corpo ou ação 4 Já observei que não há um só caso em que a conexão última en tre os objetos pudesse ser descoberta por nossa razão ou por nossos sentidos e que somos incapazes de penetrar tão profundamente na essência e estrutura dos corpos a ponto de perceber o princípio de que depende sua influência mútua Só temos conhecimento de sua união constante e é dessa união constante que deriva a necessidade Se os objetos não possuíssem entre si uma conjunção uniforme e re gular jamais chegaríamos a uma idéia de causa e efeito e com tudo isso a necessidade contida nessa idéia não é mais que uma determi nação da mente a passar de um objeto àquele que comumente o acom panha e a inferir a existência de um da existência do outro Eis aqui portanto dois pontos que devemos considerar essenciais à necessi dade a união constante e a inferência da mente onde quer que os des cubramos teremos de admitir uma necessidade Ora como a única 436 Livro 2 Parte 3 Seção 1 necessidade existente nas ações da matéria é a que deriva dessas cir cunstâncias e como não é por meio de uma visão direta insight da essência dos corpos que descobrimos sua conexão a ausência dessa visão insight enquanto a união e a inferência se mantêm nunca em nenhum caso eliminará a necessidade É a observação da união que produz a inferência por essa razão poderíamos considerar que basta provar a existência de uma união constante nas ações da mente para estabelecer a inferência juntamente com a necessidade dessas ações Mas para conferir mais força a meu raciocínio examinarei separa damente esses pontos provarei em primeiro lugar pela experiên cia que nossas ações possuem uma união constante com nossos motivos temperamentos e com as circunstâncias que nos envolvem e em seguida considerarei as inferências que extraímos dessa união 5 Um exame ligeiro e geral do curso comum dos assuntos huma nos será suficiente para tal fim Como quer que examinemos esses assuntos esse princípio se confirma Quer consideremos os homens segundo suas diferenças de sexo idade governo condição ou méto do de educação podemos discernir a mesma uniformidade e regula ridade na operação dos princípios naturais Causas semelhantes sem pre produzem efeitos semelhantes do mesmo modo que na ação mútua dos elementos e poderes da natureza 6 Diferentes árvores produzem regularmente frutos de sabores di ferentes essa regularidade é reconhecida como exemplo de necessi dade e da existência de causas nos corpos externos Mas serão os produtos de Guienne e de Champagne mais regularmente diferentes que os sentimentos as ações e as paixões dos dois sexos dos quais um se distingue por sua força e maturidade e o outro por sua sutile za e suavidade 7 Serão as transformações de nosso corpo da infância à velhice mais regulares e certas que as de nossa mente e conduta E alguém que esperasse que uma criança de quatro anos de idade levantasse um peso de trezentas libras seria por acaso mais ridículo que alguém que es 43 7 Tratado da natureza humana perasse de uma criança da mesma idade um raciocínio filosófico ou uma ação prudente e bem planejada 8 Devemos certamente admitir que a coesão das partes da matéria decorre de princípios naturais e necessários por mais que tenhamos dificuldade em explicálos Ora por uma razão semelhante devemos admitir que a sociedade humana se funda em princípios semelhan tes e nossa razão neste último caso é ainda melhor que no primei ro porque não apenas observamos que os homens sempre buscam a sociedade mas além disso podemos explicar os princípios em que se funda essa propensão universal Pois será o ajuste de duas placas de mármore mais certo que a cópula de dois jovens selvagens de sexo oposto Será que essa cópula gera filhos mais uniformemente que gera um cuidado por parte dos pais com sua segurança e preservação E após os filhos terem alcançado a idade da razão graças ao cuidado dos pais serão os inconvenientes de sua separação mais certos que sua previsão desses inconvenientes e seu cuidado em evitálos por meio de uma forte união e associação 9 A pele os poros os músculos e os nervos de um trabalhador são diferentes daqueles de um homem de qualidade assim também seus sentimentos ações e maneiras As diferentes condições sociais influen ciam toda a constituição externa e interna e essas diferentes condi ções decorrem necessária porque uniformemente dos princípios ne cessários e uniformes da natureza humana Os homens não podem viver sem sociedade e não podem se associar sem governo O gover no cria distinções de propriedade e estabelece as diferentes classes de homens Isso produz a indústria o comércio manufaturas ações judiciais guerras ligas alianças travessias viagens cidades frotas de navios portos e todas as outras ações e objetos que causam uma tal diversidade e ao mesmo tempo mantêm uma tal uniformidade na vida humana 10 Se um viajante regressando de um país distante nos dissesse ter visto um clima a cinqüenta graus de latitude norte onde todas as frutas amadurecem e atingem seu pleno desenvolvimento no inver 438 Livro 2 Parte 3 Seção 1 no deteriorandose no verão do mesmo modo como na Inglaterra elas se produzem e se deterioram nas estações contrárias encontra ria poucas pessoas crédulas o bastante para acreditarem nele Incli nome a pensar que tampouco encontraria muito crédito um viajante que nos informasse da existência de pessoas exatamente com o mes mo caráter que as descritas na República de Platão ou então no Leviatã de Hobbes Existe um curso geral da natureza nas ações humanas as sim como nas operações do Sol e do clima Existem também caracteres peculiares a diferentes nações e a diferentes pessoas e outros que são comuns a toda a humanidade O conhecimento desses caracteres fun dase na observação da uniformidade das ações deles decorrentes e essa uniformidade constitui a própria essência da necessidade 1 1 Só posso imaginar um modo de eludir esse argumento negar aqui lo que o fundamenta ou seja a uniformidade das ações humanas Enquanto as ações tiverem uma união e conexão constante com a si tuação e o temperamento dos agentes nós de fato admitiremos a exis tência de uma necessidade por mais que em palavras nos recusemos a reconhecêla Mas talvez alguém encontre um pretexto para negar essa união e conexão regular Pois o que é mais caprichoso que as ações humanas O que é mais inconstante que os desejos do homem E que criatura se afasta mais não somente da boa razão mas de seu pró prio caráter e disposição Uma hora um instante é suficiente para fazêlo passar de um extremo ao outro e destruir aquilo que custou tanto esforço e trabalho para Construir A necessidade é regular e cer ta A conduta humana é irregular e incerta Esta portanto não proce de daquela 12 A isso respondo que ao julgar as ações humanas devemos pro ceder com base nas mesmas máximas que quando raciocinamos acerca dos objetos externos Quando dois fenômenos se apresentam em uma conjunção constante e invariável adquirem uma tal conexão na ima ginação que esta passa de um ao outro sem qualquer dúvida ou hesi tação Abaixo desse porém há diversos graus inferiores de evidên cia e probabilidade uma única contrariedade na experiência não 439 Tratado da natureza humana destrói inteiramente nosso raciocínio A mente pesa as experiências contrárias e subtraindo as inferiores das superiores procede segundo o grau de segurança ou evidência que resta Mesmo quando essas ex periências contrárias são exatamente equivalentes não suprimimos a noção de causas e de necessidade supomos que a contrariedade usual decorre da operação secreta de causas contrárias e concluímos que o acaso ou indiferença se deve a nosso conhecimento imperfeito e está apenas em nosso julgamento não nas próprias coisas as quais são igualmente necessárias em todos os casos ainda que não apare çam de maneira igualmente constante ou certa Nenhuma união pode ser mais constante e certa que a de algumas ações com determinados motivos e caracteres se em outros casos a união é incerta essa in certeza não é maior que a de algumas operações dos corpos Não po demos extrair do primeiro tipo de irregularidade uma conclusão que não se siga igualmente do outro 13 Costumase dizer que os loucos não têm liberdade A julgar por suas ações porém estas são menos regulares e constantes que as ações das pessoas lúcidas e conseqüentemente estão mais afastadas da ne cessidade Nosso modo de pensar sobre este ponto é portanto abso lutamente incoerente mas tratase de uma conseqüência natural des sas idéias confusas e da falta de definição dos termos que comumente empregamos em nossos raciocínios sobretudo neste assunto 14 Devemos mostrar agora que assim como a união entre os moti vos e as ações tem a mesma constância que a união entre quaisquer operações naturais assim também sua influência sobre o entendimen to é a mesma determinandonos a inferir a existência de uns da exis tência dos outros Se for assim não haverá nenhuma circunstância conhecida que faça parte da conexão e produção das ações da maté ria e não se encontre também em todas as operações da mente por conseguinte será um absurdo manifesto atribuir necessidade àque las e recusála a estas 15 Não há nenhum filósofo cujo juízo esteja tão preso a esse siste ma imaginário da liberdade que não reconheça a força da evidência mo 440 Livro 2 Parte 3 Seção 1 ral e não a tome como um fundamento razoável para suas ações tan to na especulação como na prática Ora a evidência moral não é mais que uma conclusão acerca das ações dos homens derivada da consi deração de seus motivos temperamentos e situações Assim quan do vemos certos caracteres e figuras traçados sobre o papel inferi mos que a pessoa que os produziu queria afirmar certos fatos a morte de César o sucesso de Augusto a crueldade de Nero e lembrandonos de muitos outros testemunhos coincidentes concluímos que um dia tais fatos realmente existiram e que tantas pessoas sem nenhum interesse nunca se uniriam para nos enganar sobretudo porque ao tentar fazêlo afirmando que esses fatos eram recentes e univer salmente conhecidos apenas se exporiam ao escárnio de todos os seus contemporâneos O mesmo tipo de raciocínio está presente na política na guerra no comércio na economia de fato está tão com pletamente entranhado na vida humana que é impossível agir ou sequer subsistir um só momento sem recorrer a ele O príncipe que impõe uma taxa a seus súditos espera sua aquiescência O general que co manda um exército conta com um certo grau de coragem O comer ciante confia na lealdade e na habilidade de seu gerente O homem que dá ordens para seu jantar não duvida da obediência de seus cria dos Em suma como nada nos interessa tanto quanto nossas próprias ações e as dos outros a maior parte de nossos raciocínios é empre gada em juízos a respeito delas Ora afirmo que quem raciocina des sa maneira crê ipso facto que os atos da vontade decorrem da necessi dade e se o nega não sabe o que diz 16 Considerados em si mesmos todos os objetos que chamamos de causas e efeitos são tão distintos e separados uns dos outros quanto de qualquer outra coisa na natureza jamais poderíamos nem sequer pelo exame mais rigoroso inferir a existência de um da existência do outro Somente pela experiência e observação de sua união constante somos capazes de fazer essa inferência e assim mesmo a inferência não passa de um efeito do costume sobre a imaginação Não devemos aqui nos contentar em dizer que a idéia de causa e efeito decorre de 441 Tratado da natureza humana objetos constantemente unidos temos de afirmar que ela é a mesma coisa que a idéia desses objetos e a conexão necessária não é descober ta por uma conclusão do entendimento sendo apenas uma percep ção da mente Portanto sempre que observamos a mesma união e sempre que a união age da mesma maneira sobre a crença e a opinião temos uma idéia de causas e de necessidade ainda que às vezes possa mos evitar essas expressões Em todos os casos passados que pudemos observar o movimento de um corpo é seguido por impacto do movi mento de outro corpo É impossível à mente penetrar além disso Dessa união constante ela forma a idéia de causa e efeito e por sua influên cia sente a necessidade Ora como há a mesma constância e a mesma influência naquilo que denominamos evidência moral não precisamos de mais nada O que resta só pode ser pura discussão verbal 1 7 De fato quando consideramos quão adequadamente as evidên cias naturais e morais se aglutinam formando uma cadeia única de ar gumentação não hesitaremos em admitir que têm a mesma natureza e derivam dos mesmos princípios O prisioneiro que não tem dinheiro ou influência descobre a impossibilidade de sua fuga tanto pela obs tinação do carcereiro quanto pelos muros e barras que o cercam e em todas as suas tentativas de alcançar a liberdade prefere trabalhar a pedra e o ferro destes à natureza inflexível daquele O mesmo pri sioneiro quando conduzido ao cadafalso prevê sua morte com igual certeza pela constância e fidelidade de seus sentinelas como pela ope ração do machado ou da roda Sua mente percorre uma certa seqüên cia de idéias a recusa dos soldados a consentir em sua fuga a ação do carrasco a separação da cabeça e do corpo o sangramento os movimentos convulsivos a morte Temos aqui uma cadeia em que se conectam causas naturais e ações voluntárias mas a mente não sente nenhuma diferença entre elas ao passar de um elo ao outro e não está menos certa do resultado futuro que se este estivesse co nectado com as impressões presentes da memória e dos sentidos por uma cadeia de causas aglutinadas por aquilo que costumamos chamar uma necessidade física A experiência da mesma união tem o mesmo 442 Livro 2 Parte 3 Seção 2 efeito sobre a mente quer os objetos unidos sejam motivos volições e ações quer sejam figuras e movimentos Podemos mudar os no mes das coisas mas sua natureza e sua operação sobre o entendimento nunca mudam 18 Ouso afirmar com toda segurança que ninguém há de tentar re futar esses raciocínios a menos que altere minhas definições e atri bua um sentido diferente aos termos causa efeito necessidade liberdade e acaso De acordo com minhas definições a necessidade é parte es sencial da causalidade conseqüentemente a liberdade ao suprimir a necessidade suprime também as causas e é o mesmo que o acaso Como normalmente se pensa que o acaso implica uma contradição ou ao menos que é diretamente contrário à experiência os mesmos argumentos podem sempre ser utilizados contra a liberdade ou livre arbítrio Se alguém alterar as definições não posso pretender argu mentar antes de conhecer o sentido que atribui a esses termos Seção 2 Continuação do mesmo tema 1 Creio que podemos dar três razões para a prevalência da doutri na da liberdade por mais absurda que ela possa ser em um sentido e ininteligível em outro Primeira razão Após termos realizado uma ação mesmo que reconheçamos ter sido influenciados por conside rações e motivos particulares é difícil persuadirmos a nós mesmos de que fomos governados pela necessidade e de que nos teria sido inteiramente impossível agir de forma diferente pois a idéia de ne cessidade parece implicar algo de força violência e constrangimento coisas de que não temos consciência ao agir Poucos são capazes de fazer uma distinção entre a liberdade de espontaneidade como é cha mada na escolástica e a liberdade de indiferença ou seja entre aquilo que se opõe à violência e aquilo que significa uma negação da neces sidade e das causas O primeiro sentido da palavra é o mais comum e uma vez que é somente essa espécie de liberdade que nos interessa 443 Tratado da natureza humana preservar nossos pensamentos têmse voltado sobretudo para ela confundindoa quase sempre com a outra 2 Em segundo 1 ugar há até mesmo uma falsa sensação ou experiência da liberdade de indiferença que é vista como um argumento em fa vor de sua existência real A necessidade de uma ação seja da maté ria seja da mente não é rigorosamente falando uma qualidade do agente mas sim de algum ser pensante ou inteligente que possa con siderar de fora a ação consistindo na determinação de seu pensamento a inferir a existência dessa ação a partir de objetos preexistentes Em contrapartida a liberdade ou o acaso não é senão a falta dessa deter minação e uma certa indefinição looseness que sentimos em passar ou não passar da idéia desses objetos à idéia da ação Pois bem pode mos observar que embora ao refletir sobre as ações humanas nós raramente sintamos uma tal indefinição ou indiferença é muito co mum acontecer que ao realizarmos nossas próprias ações sejamos sensíveis a algo semelhante E como todos os objetos relacionados ou semelhantes são facilmente tomados uns pelos outros isso tem sido utilizado como uma prova demonstrativa ou mesmo intuitiva da liberdade humana Sentimos que nossas ações na maioria das ve zes estão submetidas a nossa vontade e imaginamos sentir que a von tade ela mesma não está submetida a nada porque quando diante da negação disso vemonos incitados a pôlo à prova sentimos que nossa vontade se move facilmente em todas as direções produzindo uma imagem de si própria até mesmo ali onde não se estabeleceu Convencemonos de que essa imagem ou movimento fraco poderia terse completado na própria coisa porque se isso também for nega do descobrimos ao tentar uma segunda vez que este é realmente o caso Mas esse esforço é todo em vão Por mais caprichosas e irregu lares que sejam as ações que então pratiquemos como o desejo de mostrar nossa liberdade é seu único motivo nunca podemos nos liber tar das amarras da necessidade Podemos imaginar que sentimos uma liberdade dentro de nós mas um espectador comumente será capaz de inferir nossas ações de nossos motivos e de nosso caráter E mesmo 444 Livro 2 Parte 3 Seção 2 quando não pode fazêlo em geral conclui que o poderia caso esti vesse perfeitamente familiarizado com todas as circunstâncias de nossa situação e temperamento e com os mecanismos mais secretos de nossa constituição e disposição Ora tal é a essência mesma da necessidade conforme a doutrina anterior 3 Uma terceira razão por que a doutrina da liberdade é em geral mais bemaceita que a doutrina antagônica provém da religião que tem sido desnecessariamente envolvida nessa questão Em discussões filosófi cas não há método de raciocínio mais comum mas também mais con denável que tentar refutar uma hipótese a pretexto de suas conseqüên cias perigosas para a religião e a moral Quando uma opinião nos leva a absurdos é certamente falsa mas não é certo que uma opinião seja falsa porque tem conseqüências perigosas Argumentos como esse portanto deveriam ser rigorosamente evitados porque não ajudam em nada na descoberta da verdade servindo apenas para tornar odiosa a pessoa do adversário Faço essa observação de maneira geral sem pre tender tirar dela nenhuma vantagem Exponhome francamente a um exame desse tipo e ouso afirmar que a doutrina da necessidade se gundo minha explicação é não apenas inocente mas vantajosa para a religião e a moral 4 Defino a necessidade de duas maneiras de acordo com as duas definições de causa da qual ela é um componente essencial Situo a necessidade seja na união e conjunção constante de objetos seme lhantes seja na inferência da mente de um ao outro Ora em ambos os sentidos a necessidade tem sido universalmente embora tacita mente reconhecida nas escolas no púlpito e na vida comum como caracterizando a vontade do homem Ninguém jamais pretendeu ne gar que podemos fazer inferências concernentes às ações humanas e que tais inferências se fundam na experiência da união constante de ações semelhantes com motivos e circunstâncias semelhantes Só há duas maneiras de alguém discordar de mim ou recusandose a chamar a isso de necessidade mas enquanto compreendermos seu sentido a palavra assim espero não pode causar mal algum ou então afir 445 Tratado da natureza humana mando que há algo mais nas operações da matéria Ora se de fato é assim ou não isso não tem nenhuma relevância para a religião mes mo que seja importante para a filosofia da natureza Posso estar erra do ao afirmar que não temos idéia de nenhuma outra conexão nas ações dos corpos e ficaria contente de aprender um pouco mais so bre isso Mas tenho certeza de que não atribuo nada às ações da men te além do que se deve prontamente admitir Que ninguém portan to venha deturpar minhas palavras dizendo de maneira simplista que afirmo a necessidade das ações humanas e as coloco no mesmo pla no das operações da matéria insensível Não atribuo à vontade essa necessidade ininteligível que se supõe existir na matéria Ao contrá rio atribuo à matéria essa qualidade inteligível quer a chamemos ou não de necessidade que até a mais rígida ortodoxia reconhece ou deve reconhecer como existindo na vontade Portanto não estou alteran do nada nos sistemas estabelecidos no que diz respeito à vontade mas apenas no que se refere aos objetos materiais 5 E vou além Afirmo que essa espécie de necessidade é tão essen cial à religião e à moral que sua ausência acarretaria a total ruína de ambas e qualquer outra suposição destruiria por completo todas as leis divinas e humanas De fato como todas as leis humanas estão fun dadas em recompensas e punições admitese certamente como um princípio fundamental que esses motivos exercem uma influência sobre a mente produzindo boas ações e impedindo as más Podemos dar a essa influência o nome que bem entendermos mas como usual mente ela ocorre em conjunção com a ação o bom senso requer que a consideremos uma causa e a vejamos como um exemplo dessa ne cessidade que pretendo estabelecer 6 Esse raciocínio se mostra igualmente sólido quando aplicado às leis divinas enquanto se considerar Deus um legislador que supos tamente impõe punições e concede recompensas com o propósito de suscitar obediência Mas afirmo também que mesmo quando Deus não age na qualidade de magistrado quando o vemos como puro vin gador de crimes em virtude do caráter odioso e repulsivo destes seria 446 Livro 2 Parte 3 Seção 2 impossível sem a conexão necessária de causa e efeito nas ações hu manas não apenas que as punições infligidas fossem compatíveis com a justiça e a eqüidade moral mas também que algum ser sensato ja mais pensasse em infligilas O objeto constante e universal do ódio ou da raiva é uma pessoa uma criatura dotada de pensamento e cons ciência e quando uma ação criminosa ou nociva desperta essa pai xão ela o faz somente por sua relação ou conexão com essa pessoa De acordo com a doutrina da liberdade ou acaso porém tal conexão se reduz a nada e os homens são tão pouco responsáveis pelas ações planejadas e premeditadas quanto pelas mais casuais e acidentais As ações são por natureza temporárias e perecíveis e quando não pro cedem de alguma causa no caráter e na disposição do agente não se implantam firmemente nele nem podem redundar em sua honra quando boas ou descrédito quando más A ação em si mesma pode ser condenável pode ser contrária a todas as regras da moral e da reli gião mas a pessoa não é responsável por ela E como a ação não re sultou de nada duradouro ou constante na pessoa nem deixou atrás de si nada dessa natureza é impossível que por causa da ação a pes soa possa se tornar objeto de punição ou vingança Segundo a doutrina da liberdade portanto um homem continua tão puro e imaculado após ter cometido o mais terrível dos crimes como no momento de seu nas cimento suas ações não atingem em nada seu caráter pois não deri vam dele de modo que a perversidade das ações não pode ser usada como prova da depravação do caráter Somente segundo os princípios da necessidade alguém pode adquirir mérito ou demérito por suas ações por mais que a opinião comum se incline para a afirmação contrária Os homens entretanto são tão incoerentes consigo mesmos que embora afirmem com freqüência que a necessidade destrói intei ramente todo mérito e demérito perante a humanidade ou perante os poderes superiores continuam a raciocinar com base nesses mes mos princípios da necessidade em todos os seus juízos relativos a esse assunto As pessoas não são condenadas por aquelas más ações que praticam sem saber e casualmente sejam quais forem suas conseqüên 447 Tratado da natureza humana cias Por quê Porque as causas dessas ações são apenas momentâ neas e se esgotam nessas mesmas ações As pessoas são condenadas menos pelas más ações que praticam apressadamente e sem preme ditação que por aquelas que resultam de reflexão e deliberação Por que razão Porque a impetuosidade embora seja uma causa constante na mente opera apenas a intervalos e não contamina todo o caráter Mais ainda O arrependimento apaga por completo qualquer crime sobretu do se acompanhado de uma evidente reforma na vida e nos hábitos Como explicar isso Afirmando que as ações só tomam uma pessoa criminosa por serem provas da presença de paixões ou princípios criminosos na mente e quando por alguma alteração desses princípios deixam de ser provas legítimas deixam também de ser criminosas De acordo com a doutrina da liberdade ou acaso porém elas nunca chegaram a ser pro vas legítimas conseqüentemente nunca foram criminosas 8 Voltome agora portanto para meu adversário e peçolhe que libere seu próprio sistema dessas conseqüências odiosas antes de acu sar os outros Ou se preferir resolver essa questão junto aos filóso fos por meio de argumentos legítimos em vez de tentar convencer o povo pela retórica peçolhe que torne a considerar aquilo que apre sentei para provar que a liberdade e o acaso são sinônimos e tam bém o que eu disse a respeito da natureza da evidência moral e da regularidade das ações humanas Quando tiver examinado cuidado samente esses raciocínios sem dúvida alguma há de me conceder a vitória Portanto tendo provado que todas as ações da vontade têm causas particulares passo agora a explicar quais são essas causas e como elas operam Seção 3 Dos motivos que influenciam a vontade 1 Nada é mais comum na filosofia e mesmo na vida corrente que falar no combate entre a paixão e a razão dar preferência à razão e afirmar que os homens só são virtuosos quando se conformam a seus 448 Livro 2 Parte 3 Seção 3 preceitos Afirmase que toda criatura racional é obrigada a regular suas ações pela razão e se qualquer outro motivo ou princípio dispu ta a direção de sua conduta a pessoa deve se opor a ele até subjugálo por completo ou ao menos até tornálo conforme àquele princípio superior A maior parte da filosofia moral seja antiga ou moderna parece estar fundada nesse modo de pensar E não há campo mais vas to tanto para argumentos metafísicos como para declamações popu lares que essa suposta primazia da razão sobre a paixão A eternida de a invariabilidade e a origem divina da razão têm sido retratadas nas cores mais vantajosas a cegueira a inconstância e o caráter en ganoso da paixão foram salientados com o mesmo vigor Para mos trar a falácia de toda essa filosofia procurarei provar primeiramente que a razão sozinha não pode nunca ser motivo para uma ação da vontade e em segundo lugar que nunca poderia se opor à paixão na direção da vontade 2 O entendimento se exerce de dois modos diferentes conforme julgue por demonstração ou por probabilidade isto é conforme con sidere as relações abstratas entre nossas idéias ou as relações entre os objetos que só conhecemos pela experiência Acredito que dificil mente se afirmará que a primeira espécie de raciocínio pode ser sozi nha a causa de uma ação Como seu domínio próprio é o mundo das idéias e como a vontade sempre nos põe no mundo das realidades a demonstração e a volição parecem estar por esse motivo inteiramente separadas uma da outra É verdade que a matemática é útil nas opera ções mecânicas e a aritmética em quase todas as artes e profissões Mas não é por si mesmas que elas têm influência A mecânica é a arte de regular os movimentos dos corpos para alguma finalidade ou propó sito e a única razão de empregarmos a aritmética para determinar as proporções dos números é porque com ela podemos descobrir as pro porções da influência e operação destes O comerciante deseja conhe cer a soma total de suas contas com alguém E por quê Porque as sim poderá saber que soma ao pagar sua dívida e ir ao mercado terá os mesmos efeitos que todas as parcelas individuais tomadas em conjunto 449 Tratado da natureza humana O raciocínio abstrato ou demonstrativo portanto só influencia nos sas ações enquanto dirige nosso juízo sobre causas e efeitos Isso nos leva à segunda operação do entendimento 3 É evidente que quando temos a perspectiva de vir a sentir dor ou prazer por causa de um objeto sentimos em conseqüência disso uma emoção de aversão ou de propensão e somos levados a evitar ou a abraçar aquilo que nos proporcionará esse desprazer ou essa sa tisfação Também é evidente que tal emoção não se limita a isso ao contrário faz que olhemos para todos os lados abrangendo qualquer objeto que esteja conectado com o original pela relação de causa e efei to É aqui portanto que o raciocínio tem lugar ou seja para desco brir essa relação e conforme nossos raciocínios variam nossas ações sofrem uma variação subseqüente Mas é claro que neste caso o im pulso não decorre da razão sendo apenas dirigido por ela É a pers pectiva de dor ou prazer que gera a aversão ou propensão ao objeto e essas emoções se estendem àquilo que a razão e a experiência nos apontam como as causas e os efeitos desse objeto Nunca teríamos o menor interesse em saber que tais objetos são causas e tais outros são efeitos se tanto as causas como os efeitos nos fossem indiferen tes Quando os próprios objetos não nos afetam sua conexão jamais pode lhes dar uma influência e é claro que como a razão não é senão a descoberta dessa conexão não pode ser por meio dela que os obje tos são capazes de nos afetar 4 Uma vez que a razão sozinha não pode produzir nenhuma ação nem gerar uma volição infiro que essa mesma faculdade é igualmen te incapaz de impedir uma volição ou de disputar nossa preferência com qualquer paixão ou emoção Essa é uma conseqüência necessá ria A única possibilidade de a razão ter esse efeito de impedir a voli ção seria conferindo um impulso em direção contrária à de nossa pai xão e esse impulso se operasse isoladamente teria sido capaz de produzir a volição Nada pode se opor ao impulso da paixão ou retar dálo senão um impulso contrário e para que esse impulso contrá rio pudesse alguma vez resultar da razão esta última faculdade teria 450 Livro 2 Parte 3 Seção 3 de exercer uma influência original sobre a vontade e ser capaz de cau sar bem como de impedir qualquer ato volitivo Mas se a razão não possui uma influência original é impossível que possa fazer frente a um princípio com essa eficácia ou que possa manter a mente em sus penso por um instante sequer Vemos portanto que o princípio que se opõe a nossa paixão não pode ser o mesmo que a razão sendo as sim denominado apenas em um sentido impróprio Quando nos re ferimos ao combate entre paixão e razão não estamos falando de uma maneira filosófica e rigorosa A razão é e deve ser apenas a escrava das paixões e não pode aspirar a outra função além de servir e obede cer a elas Como essa opinião pode parecer um tanto extraordinária talvez seja apropriado confirmála por meio de outras considerações 5 Uma paixão é uma existência original ou se quisermos uma mo dificação de existência não contém nenhuma qualidade representa tiva que a torne cópia de outra existência ou modificação Quando tenho raiva estou realmente possuído por essa paixão e com essa emoção não tenho mais referência a um outro objeto do que quando estou com sede ou doente ou quando tenho mais de cinco pés de altura Portanto é impossível haver uma oposição ou contradição en tre essa paixão e a verdade ou a razão pois tal contradição consiste na discordância entre certas idéias consideradas como cópias e os objetos que elas representam 6 A princípio o que se pode pensar sobre esse ponto é que uma vez que nada pode ser contrário à verdade ou à razão exceto o que se refira a ela de alguma maneira e uma vez que somente os juízos de nosso entendimento o fazem devese seguir que as paixões só po dem ser contrárias à razão enquanto estiverem acompanhadas de al gum juízo ou opinião De acordo com esse princípio que é tão evi dente e natural um afeto só pode ser dito contrário à razão em dois sentidos Primeiro quando uma paixão como a esperança ou o medo Em toda esta seção traduzo unreasonable como contrário à razão Notese que Hum e utiliza esta última expressão contrary to reason diversas vezes neste mesmo parágrafo NT 451 Tratado da natureza humana a tristeza ou a alegria o desespero ou a confiança está fundada na suposição da existência de objetos que não existem realmente Segun do quando ao agirmos movidos por uma paixão escolhemos meios insuficientes para o fim pretendido e nos enganamos em nossos juízos de causas e efeitos Quando uma paixão não está fundada em falsas suposições nem escolhe meios insuficientes para sua finalidade o entendimento não pode nem justificála nem condenála Não é con trário à razão eu preferir a destruição do mundo inteiro a um arranhão em meu dedo Não é contrário à razão que eu escolha minha total destruição só para evitar o menor desconforto de um índio ou de uma pessoa que me é inteiramente desconhecida Tampouco é contrário à razão eu preferir aquilo que reconheço ser para mim um bem menor a um bem maior ou sentir uma afeição mais forte pelo primeiro que pelo segundo Um bem trivial pode graças a certas circunstâncias produzir um desejo superior ao que resulta do prazer mais intenso e valioso E não há nisto nada mais extraordinário que ver em mecâni ca um peso de uma libra suspender outro de cem libras pela vanta gem de sua situação Em suma uma paixão tem de ser acompanhada de algum juízo falso para ser contrária à razão e mesmo então não é propriamente a paixão que é contrária à razão mas o juízo 7 As conseqüências disso são evidentes Como uma paixão não pode nunca em nenhum sentido ser dita contrária à razão a não ser que esteja fundada em uma falsa suposição ou que escolha meios insufi cientes para o fim pretendido é impossível que razão e paixão pos sam se opor mutuamente ou disputar o controle da vontade e das ações Assim que percebemos a falsidade de uma suposição ou a in suficiência de certos meios nossas paixões cedem à nossa razão sem nenhuma oposição Posso desejar uma fruta que julgo possuir um sa bor excelente mas se me convencerem de meu engano meu desejo cessa Posso querer realizar certas ações como meio de obter um bem desejado mas como minha vontade de realizar essas ações é apenas secundária e se baseia na suposição de que elas são as causas do efeito pretendido logo que descubro a falsidade dessa suposição tais ações devem se tornar indiferentes para mim 452 Livro 2 Parte 3 Seção 3 8 É natural que as pessoas que não examinam os objetos com um olhar estritamente filosófico imaginem que se duas ações da men te não produzem sensações diferentes e não podem ser de imediato distinguidas pela sensação feeling e pela percepção elas são exata mente as mesmas O exercício da razão por exemplo não produz nenhuma emoção sensível e exceto nas indagações filosóficas mais sublimes ou nas frívolas sutilezas escolásticas quase nunca trans mite prazer ou desconforto É por isso que toda ação da mente que opera com a mesma calma e tranqüilidade é confundida com a ra zão por todos aqueles que julgam as coisas por seu primeiro aspec to e aparência Ora é certo que há determinadas tendências e dese jos calmos que embora sejam verdadeiras paixões produzem pouca emoção na mente sendo conhecidos mais por seus efeitos que pelo sentimento ou sensação imediata que produzem Esses desejos são de dois tipos ou bem são certos instintos originalmente implanta dos em nossas naturezas tais como a benevolência e o ressentimen to o amor à vida e a ternura pelas crianças ou então são o apetite geral pelo bem e a aversão ao mal considerados meramente enquan to tais Quando alguma dessas paixões é calma e não causa nenhu ma desordem na alma é facilmente confundida com as determina ções da razão e supomos que procede da mesma faculdade que a que julga sobre a verdade e a falsidade Supomos que sua natureza e seus princípios são os mesmos porque suas sensações não são evi dentemente diferentes 9 Além dessas paixões calmas que com freqüêmcoa determinam a vontade há certas emoções violentas da mesma espécie que também têm grande influência sobre essa faculdade Quando alguém me cau sa algum dano freqüentemente sinto uma paixão violenta de ressen timento que me faz desejar seu mal e punição independentemente de qualquer consideração de prazer e vantagem que eu possa obter com isso Quando sou diretamente ameaçado por um mal opressivo meus medos apreensões e aversões se intensificam produzindo uma emoção sensível 453 Tratado da natureza humana 1 O O erro comum dos metafísicos tem sido atribuir a direção da von tade exclusivamente a um desses princípios e supor que o outro não tem nenhuma influência Os homens com freqüência agem conscien temente contra seus próprios interesses por essa razão a perspecti va do maior bem possível nem sempre os influencia Os homens muitas vezes se contrapõem a uma paixão violenta ao perseguir seus interesses e objetivos não é apenas o desprazer presente portanto que os determina Observamos em geral que ambos os princípios atuam sobre a vontade e quando são contrários um dos dois pre valece segundo o caráter geral ou a disposição presente da pessoa O que se chama de firmeza de caráter strength of mind implica o predomínio das paixões calmas sobre as violentas mas é fácil ob servar que não há ninguém que possua essa virtude de forma tão constante que nunca em nenhuma ocasião ceda às solicitações da paixão e do desejo A essas variações de temperamento devese a grande dificuldade em se decidir acerca das ações e resoluções hu manas quando existe qualquer contrariedade de motivos e paixões Seção 4 Das causas das paixões violentas 1 Não há na filosofia objeto de especulação mais sutil que esse tema das diferentes causas e efeitos das paixões calmas e violentas É evi dente que as paixões não influenciam a vontade na mesma propor ção de sua violência ou da desordem que ocasionam no humor ao contrário uma vez que uma paixão se estabelece como um princípio de ação e se torna a inclinação predominante da alma ela comumente não produz mais nenhuma agitação sensível Como a repetição o costume e sua própria força fazem tudo se submeter a ela a paixão dirige as ações e a conduta sem essa oposição e essa emoção que tão naturalmente acompanham cada explosão momentânea de paixão Temos pois de diferenciar paixões calmas de paixões fracas e pai xões violentas de paixões fortes Apesar disso o certo é que se que 454 Livro 2 Parte 3 Seção 4 remos governar um homem e induzilo a praticar uma ação geralmen te a melhor estratégia é trabalhar as paixões violentas em vez das cal mas e dominálo antes por sua inclinação que por aquilo que vul garmente se chama sua razão Devemos dispor os objetos em situações que sejam apropriadas para aumentar a violência da paixão Pois ob servemos que tudo depende da situação do objeto e que qualquer va riação nesse ponto particular será capaz de transformar as paixões cal mas em violentas e viceversa Ambas as espécies de paixões perseguem o bem e evitam o mal e ambas aumentam ou diminuem com o aumento ou diminuição do bem ou do mal A diferença entre elas consiste em que o mesmo bem quando próximo causará uma paixão violenta e quando distante produzirá apenas uma paixão calma Como este assunto faz par te da presente questão concernente à vontade iremos aqui examinálo a fundo considerando algumas das circunstâncias e situações dos objetos que tornam uma paixão calma ou violenta 2 A natureza humana possui essa notável propriedade que qual quer emoção que acompanhe uma paixão se converte facilmente nes sa paixão ainda que suas naturezas sejam originalmente diferentes ou até contrárias É verdade que para se estabelecer uma união per feita entre as paixões é preciso sempre uma dupla relação de im pressões e de idéias uma só relação é insuficiente para esse fim Mas embora essa afirmação se confirme por uma experiência indubitável devemos entendêla com suas devidas limitações e considerar a dupla relação como necessária apenas para fazer com que uma paixão produza outra Quando duas paixões já foram produzidas separa damente por suas respectivas causas e estão ambas presentes na mente misturamse e se unem facilmente mesmo que mantenham entre si apenas uma relação e às vezes nenhuma A paixão predo minante absorve a inferior e a transforma em si própria Os espíritos animais uma vez despertados sofrem facilmente uma mudança em sua direção e é natural imaginar que essa mudança virá do afeto pre dominante A conexão entre duas paixões é em muitos aspectos mais estreita que a conexão entre uma paixão e a indiferença 455 Tratado da natureza humana 3 Quando um homem já está amando profundamente constatamos que as pequenas faltas e caprichos de sua amada os ciúmes e as brigas a que seu relacionamento está tão sujeito por mais desagradáveis que sejam e não obstante sua relação com a raiva e o ódio conferem uma força adicional à paixão predominante Um artifício comum entre os políticos quando querem fazer que alguém se interesse muito por algum fato sobre o qual desejam lhe informar é despertar primeiro sua curiosidade adiar ao máximo a satisfação dessa curiosidade e as sim aumentar sua ansiedade e impaciência ao extremo antes de lhe revelar todo o assunto Sabem que sua curiosidade o precipitará na paixão que pretendem despertar auxiliando o objeto em sua influên cia sobre a mente O soldado que avança para a guerra enchese na turalmente de coragem e confiança ao pensar em seus amigos e com panheiros de batalha e é tomado pelo medo e terror ao pensar no inimigo Portanto qualquer nova emoção que proceda daqueles na turalmente aumenta a coragem e a mesma emoção quando procede deste último aumenta o medo pela relação de idéias e pela conver são da emoção inferior na predominante É assim que na disciplina militar a homogeneidade e o esplendor de nossos uniformes a re gularidade de nossas evoluções e movimentos juntamente com toda a pompa e a majestade da guerra encorajam a nós e aos nossos alia dos mas os mesmos objetos em si próprios agradáveis e belos en chemnos de terror quando se encontram em nossos inimigos 4 Uma vez que as paixões apesar de independentes transformam se naturalmente umas nas outras quando estão presentes ao mes mo tempo seguese que quando o bem ou o mal estão situados de maneira a causar uma emoção particular além de sua paixão direta de desejo ou aversão esta última paixão deve adquirir mais força e violência 5 Isso acontece entre outros casos sempre que um objeto desper ta paixões contrárias Pois observase que a oposição entre duas pai xões causa comumente uma nova emoção nos espíritos animais pro duzindo mais desordem que o concurso de dois afetos de força igual 456 Livro 2 Parte 3 Seção 4 Essa nova emoção se converte facilmente na paixão predominante e eleva sua violência para além do grau que esta teria alcançado se não houvesse sofrido nenhuma oposição Assim nós naturalmente dese jamos o que é proibido e temos prazer em praticar ações simples mente por serem ilícitas A noção do dever quando oposta às paixões quase nunca é capaz de sobrepujálas e quando não o consegue ten de antes a aumentálas por produzir uma oposição em nossos moti vos e princípios 6 O mesmo efeito ocorre quer a oposição resulte de motivos in ternos quer de obstáculos externos A paixão comumente adquire nova força e violência nos dois casos O esforço que a mente realiza para superar o obstáculo excita os espíritos animais e aviva a paixão 7 A incerteza tem a mesma influência que a oposição A agitação do pensamento sua rápida passagem de uma perspectiva a outra a variedade das paixões que se sucedem segundo as diferentes perspec tivas tudo isso produz uma agitação na mente e se transfere para a paixão predominante 8 Em minha opinião a única causa natural que faz a segurança di minuir as paixões é que ela suprime a incerteza que as aumenta A mente quando entregue a si mesma imediatamente enlanguesce para preservar seu ardor tem de ser mantida a todo momento por um novo fluxo de paixão Pela mesma razão o desespero embora con trário à segurança tem uma influência semelhante 9 É certo que nada estimula mais poderosamente um afeto que ocul tar parte de seu objeto projetando uma espécie de sombra sobre ele a qual ao mesmo tempo em que mostra o bastante para nos predis por em favor do objeto deixa ainda algum trabalho para a imagina ção Além de a obscuridade estar sempre acompanhada por uma es pécie de incerteza o esforço que a fantasia realiza para completar a idéia eleva os espíritos animais conferindo uma força adicional à paixão 1 O Assim como o desespero e a segurança embora mutuamente con trários produzem os mesmos efeitos assim também se observa que 457 Tratado da natureza humana a ausência tem efeitos contrários e em diferentes circunstâncias aumenta ou diminui nossos afetos O Duque de La Rochefoucauld ob servou muito bem que a ausência destrói as paixões fracas mas au menta as fortes assim como o vento apaga uma vela mas atiça uma fogueira Uma longa ausência naturalmente enfraquece nossa idéia e diminui a paixão mas quando a idéia é forte e viva o bastante para sustentarse a si mesma o desprazer resultante da ausência aumenta a paixão dandolhe nova força e violência Seção 5 Dos efeitos do costume 1 Porém nada é mais propício a aumentar e a diminuir nossas pai xões a converter prazer em dor e dor em prazer que o costume e a re petição O costume tem dois efeitos originais sobre a mente confere a ela uma facilidade para realizar uma ação ou para conceber um objeto e posteriormente uma tendência ou inclinação a fazêlo Com base nes ses dois efeitos podemos explicar todos os outros por mais extraor dinários que sejam 2 Quando a alma se aplica na realização de uma ação ou na con cepção de um objeto a que não está acostumada há uma certa infle xibilidade por parte das faculdades e uma dificuldade dos espíritos animais em se mover em sua nova direção Como essa dificuldade excita os espíritos gera admiração surpresa e todas as emoções de correntes da novidade e ela própria é muito agradável como tudo que aviva a mente em um grau moderado Mas embora a surpresa seja agradável em si mesma ao produzir uma agitação nos espíritos não aumenta apenas nossos afetos agradáveis mas também os doloro sos de acordo com o princípio anterior de que toda emoção que precede ou acompanha uma paixão se converte facilmente nessa mesma paixão Por isso tudo que é novo nos afeta mais e nos proporciona mais prazer ou mais dor que aquilo que estritamente falando seria condizente La Rochefoucauld 16131680 Maximes 276 NT 458 Livro 2 Parte 3 Seção 5 com sua natureza Quando nos aparece reiteradamente a novidade se desgasta as paixões declinam a agitação dos espíritos animais tem fim e contemplamos os objetos com mais tranqüilidade 3 Gradativamente a repetição produz uma facilidade que é um outro princípio muito poderoso da mente humana e fonte infalível de prazer quando não ultrapassa um certo grau É de se notar que o prazer oriundo de uma facilidade moderada não tem a mesma ten dência que tem o prazer resultante da novidade de aumentar os afe tos dolorosos assim como os agradáveis O prazer da facilidade não consiste tanto em uma fermentação dos espíritos animais quanto em seu movimento ordenado o qual é por vezes tão poderoso que che ga a transformar a dor em prazer proporcionandonos com o decor rer do tempo um gosto por coisas que de início eram bastante amar gas e desagradáveis 4 Mais ainda assim como a facilidade converte a dor em prazer fre qüentemente converte também o prazer em dor a saber quando é grande demais e torna as ações mentais tão fracas e lânguidas que não são mais capazes de afetar e ocupar a mente De fato quase ne nhum objeto se torna desagradável pelo costume exceto os que se fazem naturalmente acompanhar de alguma emoção ou afeto que é destruído pela repetição demasiado freqüente Podemos contemplar repetidamente as nuvens o céu as árvores e as pedras sem jamais sentir nenhuma aversão Mas quando o belo sexo a música a boa mesa ou qualquer coisa que naturalmente deveria ser agradável se torna indiferente produz facilmente o afeto oposto 5 Entretanto o costume não cria apenas uma facilidade para realizar uma ação como também uma inclinação e tendência a realizála quan do essa ação não é inteiramente desagradável e não é incapaz de se tornar objeto de inclinação Essa é razão por que o costume au menta todos os hábitos ativos mas diminui os passivos como obser vou recentemente um eminente filósofo A facilidade retira parte da força dos hábitos passivos ao tornar o movimento dos espíritos ani Joseph Butler 1 6921 752 em Analogy of Religion I 52 NT 459 Tratado da natureza humana mais fraco e lânguido Mas como nos hábitos ativos os espíritos se mantêm suficientemente a si mesmos a tendência da mente lhes dá uma nova força inclinandoos mais fortemente à ação Seção 6 Da influência da imaginação sobre as paixões 1 É importante notar que a imaginação e os afetos mantêm entre si uma união estreita e nada que afeta aquela poderá ser inteiramente indiferente a estas Sempre que nossas idéias de bem ou de mal ad quirem uma nova vividez as paixões se tornam mais violentas e acom panham o passo da imaginação em todas as suas variações Não me pronunciarei quanto à questão de saber se isso se deve ao princípio acima mencionado que qualquer emoção concomitante se converte facil mente na predominante Para meu objetivo presente basta que tenha mos muitos exemplos que confirmem essa influência da imaginação sobre as paixões 2 A perspectiva de um prazer com que estejamos familiarizados nos afeta mais que qualquer outro que reconheçamos ser superior mas cuja natureza desconheçamos completamente Podemos formar uma idéia particular e determinada do primeiro mas concebemos este último apenas sob a noção geral de prazer e certamente quan to mais gerais e universais nossas idéias menos influência têm so bre a imaginação Uma idéia geral embora seja somente uma idéia particular considerada de um certo ângulo costuma ser mais obs cura porque nenhuma idéia particular pela qual representamos uma idéia geral é fixa ou determinada podendo ao contrário ser facil mente trocada por outras idéias particulares que servirão igualmen te para a representação 3 Há uma passagem famosa na história da Grécia que pode servir a nosso propósito presente Temístocles disse aos atenienses que havia con cebido um plano de enorme utilidade para o público mas que era impossível contarlhes qual era esse plano sem arruinar sua execução 460 Livro 2 Parte 3 Seção 6 já que seu sucesso dependia inteiramente do sigilo com que seria conduzido Os atenienses em vez de lhe dar total poder para agir como julgava adequado ordenaramlhe que comunicasse seu plano a Aristides em cuja discrição confiavam plenamente estando decididos a se submeter cegamente a sua opinião O plano de Temístocles era in cendiar em segredo toda a frota das repúblicas gregas que estava reu nida em um porto vizinho para com essa destruição dar aos atenienses o domínio soberano do mar Aristides voltou à assembléia e disselhes que nada poderia ser mais vantajoso que o plano de Temístocles mas que ao mesmo tempo nada poderia ser mais injusto Em vista disso o povo rejeitou unanimemente o projeto 4 Recentemente um famoso historiador1 expressou sua admiração por essa passagem da história antiga como uma das mais singulares já encontradas Aqui diz ele quem decide que o interesse nunca deveria pre valecer sobre a justiça não são os filósofos em suas escolas para os quais é fácil estabelecer as máximas mais sutis e sublimes da moral É todo um povo interessado na proposta que lhe é feita que a considera importante para o bem público mas que não obstante rejeitaa unanimemente sem hesitação ape nas porque é contrária à justiça De minha parte não vejo nada de tão extraordinário nessa maneira de proceder dos atenienses As mesmas razões que tornam tão fácil aos filósofos estabelecer essas máximas sublimes tendem em parte a diminuir o mérito de uma tal conduta naquele povo Os filósofos nunca hesitam entre o benefício e a ho nestidade porque suas decisões são gerais e nem suas paixões nem suas imaginações têm interesse pelos objetos No caso em questão a vantagem para os atenienses era imediata entretanto como era conhe cida apenas sob a noção geral de vantagem e não concebida por meio de uma idéia particular deve ter tido uma influência menos conside rável sobre sua imaginação e ter constituído uma tentação menos vio lenta que se estivessem a par de todas as circunstâncias envolvidas Monsieur Rollin Charles Rollin 16611741 Hume referese a seu livro Histoire Ancienne 62 13 NT 461 Tratado da natureza humana De outro modo injustos e violentos como os homens costumam ser é difícil conceber que um povo inteiro aderisse de maneira tão unâni me à justiça e rejeitasse qualquer vantagem considerável 5 Qualquer satisfação que tenhamos experimentado recentemen te e a qual ainda esteja fresca e nova na memória atua sobre a vontade com mais violência que aquela cujos traços estão enfraquecidos e quase apagados A que atribuir tal coisa senão ao fato de que a me mória no primeiro caso auxilia a fantasia dando uma força e um vi gor adicionais a suas concepções A imagem do prazer passado sen do forte e violenta confere essas qualidades à idéia do prazer futuro conectada a ela pela relação de semelhança 6 Um prazer condizente com o modo de vida que levamos excita mais nossos desejos e apetites que aquele que lhe é estranho Esse fenômeno pode ser explicado pelo mesmo princípio 7 Nada é mais propício a infundir uma paixão na mente que a elo qüência que representa os objetos nas cores mais fortes e vivas Po demos reconhecer por nós mesmos que um certo objeto é valioso e um outro odioso mas enquanto um orador não estimular nossa ima ginação reforçando essas idéias elas exercerão apenas uma fraca in fluência sobre a vontade ou sobre os afetos 8 Nem sempre no entanto a eloqüência é necessária A mera opi nião alheia sobretudo quando reforçada pela paixão fará com que uma idéia de bem ou de mal que de outro modo seria inteiramente negligenciada passe a ter uma influência sobre nós Isso se deve ao princípio da simpatia ou comunicação pois a simpatia como já ob servei não é senão a conversão de uma idéia em uma impressão pela força da imaginação 9 Notese que as paixões vívidas comumente acompanham uma imaginação vívida Sob esse aspecto entre outros a força da paixão depende tanto do temperamento da pessoa quanto da natureza ou si tuação do objeto 10 Já observei que a crença é somente uma idéia vívida relacionada com uma impressão presente Essa vividez é uma circunstância neces sária para despertar todas as nossas paixões tanto as calmas como 462 Livro 2 Parte 3 Seção 7 as violentas meras ficções da imaginação não exercem uma influên cia considerável sobre elas São fracas demais para cativar a mente ou para se fazer acompanhar de uma emoção Seção 7 Da contigüidade e da distância no espaço e no tempo 1 Existe uma razão fácil para explicar por que tudo que nos é con tíguo no espaço ou no tempo é concebido com uma força e vividez peculiar e supera qualquer outro objeto em sua influência sobre a ima ginação Nosso eu está intimamente presente a nós e tudo que é rela cionado ao eu deve partilhar dessa qualidade Mas quando um objeto está tão afastado que já perdeu a vantagem dessa relação talvez seja necessário um exame mais detalhado para entendermos por que se ele se afasta mais ainda sua idéia se torna ainda mais fraca e obscura 2 É evidente que a imaginação nunca pode se esquecer totalmente da localização de nossa existência no espaço e no tempo recebe in formações tão freqüentes desta pelas paixões e sentidos que por mais que volte sua atenção para objetos alheios e remotos a todo momen to se vê obrigada a pensar nos presentes Podese notar igualmente que ao conceber os objetos que consideramos reais e existentes nós os tomamos em sua ordem e situação próprias nunca saltamos de um objeto a outro que lhe seja distante sem percorrer ao menos su perficialmente todos os objetos interpostos entre eles Portanto quando pensamos em um objeto distante de nós somos obrigados não apenas para chegar primeiro até ele a passar por todo o espaço intermediário entre nós e o objeto como também a renovar nosso percurso a todo momento já que a todo momento somos chama dos a pensar novamente em nós mesmos e em nossa situação pre sente É fácil conceber que essa interrupção deve enfraquecer a idéia ao romper a ação da mente impedindo assim que a concepção seja tão intensa e contínua como nas ocasiões em que refletimos acerca de um objeto mais próximo Quanto menos passos são necessários para 463 Tratado da natureza humana chegar ao objeto e quanto mais suave o caminho até ele menos sen timos a diminuição da vivi dez mas esta ainda poderá ser mais ou me nos notada proporcionalmente aos graus de distância e dificuldade 3 Devemos pois considerar aqui dois tipos de objetos os contíguos e os remotos aqueles por meio de sua relação conosco aproximam se das impressões em força e vividez estes últimos em razão da inter rupção em nosso modo de concebêlos aparecem de maneira mais fra ca e imperfeita Esse é seu efeito sobre a imaginação E se meu raciocínio estiver correto devem ter um efeito proporcional sobre a von tade e as paixões Os objetos contíguos devem ter uma influência mui to superior à dos distantes e remotos Assim vemos na vida corrente que os homens se importam sobretudo com os objetos que não es tão tão afastados no espaço ou no tempo desfrutando o presente e deixando o que está longe aos cuidados do acaso e da sorte Se falar mos a uma pessoa sobre sua situação daqui a trinta anos ela não nos dará ouvidos Mas se lhe falarmos sobre o que está para acontecer amanhã ela prestará atenção Preocupamonos mais com um espe lho que se quebra em nosso lar do que com uma casa que se incen deia em um outro país a centenas de léguas de nós 4 Além disso embora tanto a distância no espaço quanto a no tempo tenham um efeito considerável sobre a imaginação e por meio desta também sobre a vontade e as paixões as conseqüências de um afasta mento no espaço são muito inferiores às de um afastamento no tempo Vinte anos constituem certamente uma distância de tempo bem cur ta em comparação com o que a história nos apresenta ou até mesmo com o que a memória de algumas pessoas lhes dá a conhecer mas duvido que mil léguas ou sequer a maior distância espacial que o glo bo terrestre pode admitir sejam capazes de enfraquecer tanto nossas idéias e diminuir tão consideravelmente nossas paixões Um comer ciante das Índias Ocidentais vos dirá que se preocupa com o que aconte Ver as considerações sobre a propriedade da manutenção dessa expressão ao invés de sua correção para Índias Orientais que entretanto pareceria a mais correta em David F Norton Mary J Norton op cit NT 464 Livro 2 Parte 3 Seção 7 ce na jamaica mas poucos estenderão seu olhar até um futuro tão distante a ponto de temer acidentes muitos remotos s A causa desse fenômeno deve estar evidentemente nas diferen tes propriedades do espaço e do tempo Sem precisar recorrer à metafísica qualquer um pode facilmente observar que o espaço ou extensão consiste em um certo número de partes coexistentes dis postas em uma certa ordem e capazes de estar presentes ao mesmo tempo à visão ou ao tato Ao contrário o tempo ou sucessão embo ra também seja constituído de partes nunca nos apresenta mais de uma ao mesmo tempo é impossível que duas partes do tempo coe xistam Essas qualidades dos objetos têm um efeito correspondente sobre a imaginação As partes da extensão sendo suscetíveis de uma união para os sentidos adquirem uma união também na fantasia e como o aparecimento de uma não exclui as outras a transição ou pas sagem do pensamento ao longo das partes contíguas se torna assim mais suave e fácil Em contrapartida a incompatibilidade das partes do tempo em sua existência real separaas na imaginação tornando mais difícil para esta faculdade acompanhar longas sucessões ou séries de eventos Cada parte deve aparecer só e isolada e não pode entrar regu larmente na fantasia sem banir a parte que se supõe imediatamente anterior Desse modo uma distância no tempo causa no pensamento uma interrupção maior que a mesma distância no espaço e em conse qüência disso enfraquece mais consideravelmente a idéia e por con seguinte também as paixões que dependem em grande medida da imaginação segundo meu sistema 6 Há outro fenômeno de natureza semelhante ao anterior a saber a mesma distância quando no futuro tem efeitos superiores aos que exerce quando no passado Essa diferença se explica facilmente no que diz respeito à vontade Como nenhuma de nossas ações pode alterar o passado não é estranho que este nunca determine a vontade Mas a The superior effects of the sarne distance in futurity above that in the past Comparese esta última à afirmação da página 4668 1 618 A small degree of distance in the past has therefore a greater effect in interrupting and weabening the conception than a much greater in the future Cf também p468 145 NT 465 Tratado da natureza humana questão ainda permanece no que diz respeito às paixões e merece ser examinada 7 Além da propensão a percorrer gradualmente os pontos do espa ço e do tempo nossa maneira de pensar tem outra peculiaridade que concorre para a produção desse fenômeno Sempre seguimos a su cessão do tempo ao ordenar nossas idéias e passamos mais facilmente da consideração de um objeto para aquele que ocorre imediatamente depois do que para aquele que o precedeu Um exemplo disso entre outros é a ordem que sempre se observa nas narrativas históricas Somente uma absoluta necessidade pode obrigar um historiador a quebrar a ordem do tempo em sua narrativa dando precedência a um acontecimento que na realidade era posterior a outro 8 Isso se aplicará facilmente à questão de que estamos tratando se refletirmos sobre algo que já observei antes que a situação da imagi nação é sempre a situação presente da pessoa e é dela que partimos para conceber um objeto distante Quando o objeto está no passado a progressão do pensamento do presente até ele é contrária à nature za pois passa de um ponto do tempo a um ponto anterior e deste a outro ponto anterior em oposição ao curso natural da sucessão Em contrapartida quando dirigimos nosso pensamento para um objeto futuro nossa fantasia flui conforme o fluxo do tempo chegando ao objeto por uma ordem que parece mais natural porque sempre pas sa de um ponto do tempo a outro imediatamente posterior Essa pro gressão fácil das idéias favorece a imaginação fazendoa conceber seu objeto de um modo mais forte e mais pleno que quando sofremos uma contínua oposição em nossa passagem e somos obrigados a superar as dificuldades decorrentes da propensão natural da fantasia Um pe queno grau de distância no passado tem portanto um efeito maior no interromper e enfraquecer a concepção que uma distância muito maior no futuro Desse seu efeito sobre a imaginação deriva sua in fluência sobre a vontade e as paixões 9 Há outra causa que contribui para o mesmo efeito e procede da mesma qualidade da fantasia que nos determina a acompanhar a su 466 Livro 2 Parte 3 Seção 8 cessão do tempo por uma sucessão similar de idéias Quando a par tir do instante presente consideramos dois pontos do tempo igual mente distantes no futuro e no passado é evidente que tomadas abs tratamente suas relações com o presente são quase iguais Assim como o futuro se tornará presente em algum momento assim também o passado foi presente uma vez Portanto se pudéssemos suprimir essa qualidade da imaginação uma distância igual no passado e no futuro teria uma influência similar Isso é verdade não apenas quando a fan tasia permanece fixa e do instante presente considera o futuro e o passado mas também quando muda sua situação colocandonos em diferentes períodos do tempo Pois assim como por um lado ao supor que existimos em um ponto do tempo interposto entre o instante pre sente e o objeto futuro vemos o objeto futuro se aproximar de nós e o passado retroceder tornandose mais distante assim também por outro lado ao supor que existimos em um ponto do tempo localizado entre o presente e o passado o passado se aproxima de nós e o futuro se torna mais distante Ora em virtude da propriedade da fantasia ante riormente mencionada escolhemos antes fixar nosso pensamento no ponto do tempo situado entre o presente e o futuro que no situado entre o presente e o passado Preferimos avançar a retardar nossa exis tência e seguindo o que parece ser a sucessão natural do tempo pro cedemos do passado ao presente e do presente ao futuro Desse modo concebemos o futuro aproximandose cada vez mais de nós e o passado se afastando Portanto uma distância igual no passado e no futuro não tem o mesmo efeito sobre a imaginação já que consideramos a pri meira como aumentando continuamente e a segunda diminuindo A fantasia antecipa o curso das coisas e considera o objeto na condi ção para a qual ele tende bem como na que é vista como presente Seção 8 Continuação do mesmo tema 1 Desse modo explicamos três fenômenos que parecem bastante notáveis por que a distância enfraquece a concepção e a paixão por 467 Tratado da natureza humana que a distância no tempo tem um efeito maior que a distância no espa ço e por que a distância no passado tem um efeito ainda maior que a distância no futuro Devemos agora examinar três fenômenos que parecem ser de alguma forma o reverso desses por que uma distân cia muito grande aumenta nossa estima e admiração por um objeto por que as aumenta mais quando ocorre no tempo que quando ocor re no espaço e por que quando ocorre no passado mais que no futu ro A curiosidade do assunto espero fará que o leitor me desculpe por me demorar um pouco sobre essas questões 2 Começando com o primeiro fenômeno ou seja por que uma gran de distância aumenta nossa estima e admiração por um objeto é evi dente que a mera visão e contemplação de uma grandeza seja ela sucessiva ou extensa alarga a alma dandolhe um sensível deleite e prazer Uma vasta planície o oceano a eternidade uma sucessão de várias épocas todos esses são objetos cativantes e superam todas as coisas por mais belas que sejam cuja beleza não se faça acompanhar de uma grandeza apropriada Ora quando um objeto muito distante se apresenta à imaginação pensamos naturalmente na distância en tre nós e desse modo concebendo algo grande e imponente obte mos a satisfação usual Mas como a fantasia passa facilmente de uma idéia a outra que esteja relacionada com ela e transfere à segunda todas as paixões despertadas pela primeira a admiração dirigida à distância se difunde naturalmente para o objeto distante Constata mos assim que não é necessário que o objeto esteja de fato distante de nós para causar nossa admiração basta que pela associação natu ral das idéias ele dirija nosso olhar para qualquer distância conside rável Um grande viajante ainda que no mesmo aposento que nós passará por uma pessoa extraordinária e uma medalha grega mesmo guardada em nossa estante de colecionador é sempre considerada uma valiosa curiosidade Nesses casos o objeto por uma transição natu ral conduz nosso olhar para a distância e a admiração decorrente dessa distância por outra transição natural retorna ao objeto 468 Livro 2 Parte 3 Seção 8 3 Mas embora toda grande distância produza uma admiração pelo objeto distante uma distância no tempo tem um efeito mais significa tivo que uma no espaço Inscrições e bustos antigos são mais valoriza dos que mesas de laca do Japão e sem mencionar os gregos e roma nos certamente vemos com mais veneração os antigos caldeus e egípcios que os chineses e persas modernos e despendemos mais esforço ten tando inutilmente esclarecer a história e a cronologia dos primeiros do que o que nos custaria para fazer uma viagem e obter informações seguras acerca do caráter dos conhecimentos e da forma de governo dos segundos Serei obrigado a fazer uma digressão para explicar esse fenômeno 4 Tratase de uma qualidade facilmente observável na natureza hu mana que qualquer oposição que não nos desencoraje e intimide in teiramente tem antes um efeito contrário inspirandonos uma gran deza e magnanimidade maior que a ordinária Ao reunir forças para superar a oposição revigoramos nossa alma dandolhe uma eleva ção que ela de outra forma nunca conheceria A complacência por tornar desnecessária nossa força deixanos insensíveis a ela mas a oposição a desperta e lhe dá uma utilidade 5 O inverso também é verdadeiro Não é apenas a oposição que alar ga a alma também a alma quando cheia de coragem e grandeza de um certo modo busca a oposição Spumantemque dari pecara inter inertia votis Optat aprum aut fulvum descendere monte leonem 6 Tudo que sustenta e preenche as paixões nos agrada ao contrá rio tudo que as enfraquece e debilita nos desagrada Como a oposi ção tem o primeiro efeito e a facilidade o segundo não é de admirar que a mente em certas disposições deseje a primeira e sinta aversão pela segunda E anela que um javardo surda espumante dentre o bando inerte ou que fulvo leão da ser ra desça Virgílio Eneida IV v 1 589 Tradução de António Feliciano de Castilho e Ma nuel Odorico Mendes São Paulo W M Jackson Inc 1964 NT 469 Tratado da natureza humana 7 Esses princípios têm um efeito tanto sobre a imaginação como sobre as paixões Para nos convencermos disso basta considerarmos a influência das altitudes e das profundidades sobre aquela faculdade Um lugar muito elevado comunica uma espécie de orgulho ou subli midade de imaginação dandonos uma fantasiosa superioridade so bre os que estão abaixo de nós e viceversa uma imaginação subli me e forte transmite a idéia de ascensão e elevação É por isso que de alguma maneira associamos a idéia de tudo que é bom com a de al tura e a do que é mau com a de baixeza Supomos que o céu está no alto e o inferno embaixo Um grande gênio é dito altivo e sublime Atque udam spernit humum fugiente penna Ao contrário uma inteligên cia vulgar e trivial é designada indiferentemente como baixa ou me díocre A prosperidade é denominada ascensão a adversidade que da Reis e príncipes são considerados no topo da escala humana ao passo que camponeses e trabalhadores dizse estão nas camadas mais baixas Essa nossa maneira de pensar e de nos expressar não é tão sem importância quanto pode parecer à primeira vista 8 É evidente tanto para o senso comum como para os filósofos que não há diferença natural ou essencial entre o alto e o baixo e que essa distinção resulta somente da gravitação da matéria a qual produz um movimento de cima para baixo Exatamente a mesma direção que nesta parte do globo é chamada de ascendente é denominada descen dente em nossos antípodas o que só pode resultar da tendência con trária dos corpos Ora é certo que a tendência dos corpos agindo conti nuamente sobre nossos sentidos deve produzir por costume uma tendência semelhante na fantasia e quando consideramos um obje to situado em um aclive a idéia de seu peso nos dá uma tendência a transportálo do lugar em que está situado ao lugar imediatamente abai xo e assim por diante até chegarmos ao chão que pára igualmente o Horácio Odes livro III ode II v234 O verso citado é o final de uma passagem assim traduzida A virtude abrindo o céu aos heróis dignos da imortalidade atirase com vôo rápido por veredas inacessíveis desprezando o comércio do vulgo e o lodo em que se atola Tradução de FranciscoAntonio Picot Librairieslmprimeries Réunies Paris 1 893 NT 470 Livro 2 Parte 3 Seção 8 corpo e nossa imaginação Por uma razão semelhante sentimos difi culdade em subir e é com relutância que passamos do inferior ao que está situado acima dele como se nossas idéias adquirissem de seus objetos uma espécie de gravidade Como prova disso não vemos que a característica de facilidade que é tão estudada na música e na poe sia chamase cadência da harmonia ou do verso ou seja que a idéia de facilidade nos comunica a de descida do mesmo modo que a descida produz uma facilidade 9 Portanto uma vez que a imaginação ao passar do baixo ao alto encontra uma oposição em suas qualidades e princípios internos e uma vez que a alma quando elevada pela alegria e pela coragem de certa forma busca a oposição abraçando com entusiasmo qualquer cena de pensamento ou de ação em que sua coragem encontre maté ria para se alimentar e se tornar útil seguese que tudo aquilo que ao tocar as paixões ou a imaginação revigora e aviva a alma transmi te naturalmente à fantasia essa inclinação a se elevar e a determina a ir contra o curso natural de seus pensamentos e concepções Tal pro gressão ascendente da imaginação concorda com a disposição presente da mente e a dificuldade ao invés de extinguir seu vigor e veemên cia tem o efeito contrário preservandoos e ampliandoos Virtude talento poder e riqueza são por essa razão associados com a altura e o sublime ao passo que pobreza servidão e insensatez são conju gadas com o declínio e a baixeza Se nosso caso fosse como o dos anjos para quem segundo Milton os representa a descida é adversa e não é possível cair sem esforço e coação essa ordem das coisas seria inteiramente invertida Vêse portanto que a própria natureza da ascensão e da queda é derivada da dificuldade e da propensão e conseqüentemen te todos os seus efeitos procedem dessa origem The fali or cadency Cf Norton Norton em sua nota à frase de Hume op cit p530 Musical or poetic compositions attain a sense of closure by ending on a note lower than those preceding This downward cadence is called a fali NT Paradise Lost 1667 II 1 02133 NT 471 Tratado da natureza humana 10 Tudo isso se aplica facilmente à questão presente ou seja por que uma distância considerável no tempo produz uma veneração maior pelos objetos distantes do que uma distância semelhante no espaço A imaginação movese com mais dificuldade ao passar de uma por ção do tempo a outra que ao transitar ao longo das partes do espaço isso porque o espaço ou extensão aparece unido a nossos sentidos enquanto o tempo ou sucessão é sempre entrecortado e dividido Essa dificuldade quando conjugada com uma pequena distância in terrompe e enfraquece a fantasia mas tem um efeito contrário quan do o afastamento é grande A mente elevada pela vastidão de seu objeto elevase ainda mais pela dificuldade da concepção e sendo obrigada a todo momento a renovar seus esforços para passar de uma parte a outra do tempo sente uma disposição mais vigorosa e subli me que ao percorrer as partes do espaço quando as idéias fluem com facilidade e conforto Nessa disposição a imaginação passa como de costume da consideração da distância à consideração dos objetos dis tantes e assim nos dá uma veneração proporcional por esses obje tos É por essa razão que todas as relíquias da Antiguidade são tão preciosas para nós e parecem mais valiosas que objetos trazidos das partes mais remotas do mundo 1 1 O terceiro fenômeno que assinalei irá confirmar integralmente o que foi dito Nem todo afastamento no tempo tem o efeito de pro duzir veneração e estima Não tendemos a imaginar que nossa pos teridade nos ultrapassará ou se igualará a nossos ancestrais Esse fe nômeno é ainda mais notável porque uma distância no futuro não enfraquece tanto nossas idéias quanto um igual afastamento no pas sado Embora um afastamento no passado quando muito grande au mente nossas paixões mais que um afastamento igual no futuro um pequeno afastamento favorece antes sua diminuição 12 Em nosso modo comum de pensar situamonos em uma espécie de posição intermediária entre o passado e o futuro e como nossa imaginação encontra uma espécie de dificuldade em voltar ao primeiro e uma facilidade em seguir o curso do segundo a dificuldade trans 472 Livro 2 Parte 3 Seção 8 mite a noção de ascensão e a facilidade a noção contrária Assim imaginamos que nossos ancestrais estão como se fosse acima de nós e nossa posteridade está abaixo Nossa fantasia não chega até aque les sem esforço mas alcança facilmente esta última Esse esforço en fraquece a concepção nos casos em que a distância é pequena mas amplia e eleva a imaginação quando esta se acompanha de um objeto correspondente por sua vez a facilidade auxilia a fantasia no caso de um pequeno afastamento mas retira parte de sua força quando ela contempla uma distância considerável 13 Antes de deixarmos este tema da vontade talvez não seja ina propriado resumir em poucas palavras tudo o que foi dito a seu res peito a fim de apresentar o conjunto mais distintamente ao leitor Aquilo que comumente entendemos por paixão é uma emoção vio lenta e sensível da mente que ocorre quando se apresenta um bem ou um mal ou qualquer objeto que pela formação original de nossas faculdades seja propício a despertar um apetite Com a palavra razão referimonos a afetos exatamente da mesma espécie que os anterio res mas que operam mais calmamente sem causar desordem no tem peramento essa tranqüilidade faz que nos enganemos a seu respei to vendoos exclusivamente como conclusões de nossas faculdades intelectuais Tanto as causas como os efeitos dessas paixões violentas e calmas são bastante variáveis dependendo em grande parte do temperamento e da disposição peculiar de cada indivíduo Falando de maneira geral as paixões violentas exercem uma influência mais poderosa sobre a vontade mas constatamos freqüentemente que as calmas quando corroboradas pela reflexão e auxiliadas pela resolu ção são capazes de controlálas em seus movimentos mais impetuo sos O que torna tudo isso mais incerto é que uma paixão calma pode facilmente se tornar violenta seja por uma mudança no humor da pessoa ou na situação e nas circunstâncias que envolvem o objeto seja por extrair força de uma paixão concomitante pelo costume ou por excitar a imaginação De tudo isso podemos concluir que é esse combate entre paixão e razão como é chamado que diversifica a vida 473 Tratado da natureza humana humana e torna os homens tão diferentes não apenas uns dos ou tros mas também de si mesmos em momentos diferentes A filoso fia pode explicar apenas alguns dos maiores e mais sensíveis eventos dessa guerra mas tem que abrir mão de todas as revoltas menores e mais delicadas por dependerem de princípios demasiadamente sutis e diminutos para sua compreensão Seção 9 Das paixões diretas 1 É fácil observar que as paixões tanto as diretas como as indiretas estão fundadas na dor e no prazer e para produzir um afeto de qual quer espécie basta apresentar um bem ou um mal A supressão da dor ou do prazer tem como conseqüência a imediata supressão do amor e do ódio do orgulho e da humildade do desejo e da aversão assim como da maior parte de nossas impressões reflexivas ou secundárias 2 As impressões que decorrem do bem e do mal de maneira mais natural e sem preparação são as paixões diretas de desejo e aversão tristeza e alegria esperança e medo juntamente com a volição A mente por um instinto original tende a se unir ao bem e a evitar o mal mesmo que os conceba meramente como idéias e os considere como existindo apenas em algum período futuro 3 Supondose porém que exista uma impressão imediata de pra zer ou dor e essa impressão seja decorrente de um objeto relacionado conosco ou com outrem isso não impede a propensão ou a aversão com suas conseqüentes emoções ao contrário combinandose com certos princípios latentes da mente humana desperta as novas im pressões de orgulho ou humildade amor ou ódio A propensão que nos une ao objeto ou dele nos separa continua a operar mas em con junção com as paixões indiretas que resultam de uma dupla relação de impressões e idéias 474 Livro 2 Parte 3 Seção 9 4 Por sua vez as paixões indiretas sendo sempre agradáveis ou de sagradáveis dão uma força adicional às paixões diretas e aumentam nosso desejo e aversão pelo objeto Assim uma vestimenta elegante produz prazer por sua beleza e esse prazer produz as paixões dire tas ou impressões de volição e desejo Além disso quando conside ramos essas roupas como pertencendo a nós a dupla relação nos transmite o sentimento de orgulho que é uma paixão indireta e o prazer que acompanha essa paixão reincide sobre os afetos diretos dando nova força a nosso desejo ou volição alegria ou esperança 5 Quando o bem é certo ou provável produz a ALEGRIA Quando é o mal que se encontra nessa situação surge a TRISTEZA ou o PESAR 6 Quando o bem ou o mal são incertos dão origem ao MEDO ou à ESPERANÇA segundo os graus de incerteza de um lado ou de outro 7 O DESEJO resulta do bem considerado simplesmente enquanto tal e a AVERSÃO deriva do mal A VONTADE se exerce quando ou o bem ou a ausência de mal podem ser alcançados por meio de uma ação da mente ou do corpo 8 Além do bem e do mal ou em outras palavras da dor e do pra zer as paixões diretas surgem freqüentemente de um impulso natu ral ou instinto inteiramente inexplicável Desse gênero é o desejo da punição de nossos inimigos e da felicidade de nossos amigos e tam bém a fome o desejo carnal e alguns outros apetites corpóreos Es sas paixões rigorosamente falando produzem o bem e o mal e não procedem deles como os outros afetos 9 Nenhum dos afetos diretos parece merecer nossa atenção espe cial exceto a esperança e o medo que tentaremos aqui explicar É evidente que exatamente o mesmo acontecimento que se fosse cer to produziria tristeza ou alegria dá origem ao medo ou à esperança quando apenas provável e incerto Portanto para entendermos a ra zão pela qual essa circunstância faz uma diferença tão considerável temos de refletir acerca do que já expus no livro anterior a respeito da natureza da probabilidade 475 Tratado da natureza humana 10 A probabilidade surge de uma oposição de chances ou causas con trárias que não permite que a mente se fixe em nenhum dos lados fazendo que ela seja jogada incessantemente de um ao outro ora de terminada a considerar um objeto como existindo ora o contrário A imaginação ou entendimento como se queira chamálo flutua entre as considerações opostas e embora possa freqüentemente se voltar mais para um lado que para outro élhe impossível permanecer em um deles em razão da oposição das causas ou chances O pró e o contra da questão prevalecem alternadamente e a mente ao consi derar o objeto em seus princípios opostos encontra tal contrarieda de que toda certeza e opinião estabelecida ficam destruídas 1 1 Suponhamos então que o objeto de cuja realidade temos dúvi das seja objeto quer de desejo quer de aversão é evidente que con forme a mente se volte para um lado ou para o outro deverá sentir uma impressão momentânea de alegria ou de tristeza Um objeto cuja existência desejamos nos dá satisfação quando pensamos nas causas que o produzem pela mesma razão desperta tristeza ou desconforto pela consideração oposta Desse modo assim como o entendimento em todas as questões prováveis dividese entre pontos de vista contrá rios assim também os afetos devem se dividir entre emoções opostas 12 Ora se considerarmos a mente humana veremos que no que diz respeito às paixões sua natureza não é a de um instrumento de so pro que quando percorridas suas notas perde imediatamente o som assim que cessa a respiração assemelhase antes a um instrumento de cordas em que após cada toque as vibrações continuam retendo algum som que se extingue gradual e insensivelmente A imagina ção é extremamente rápida e ágil mas as paixões são lentas e obsti nadas Por essa razão quando se apresenta um objeto que fornece uma variedade de visões para aquela e de emoções para estas embora a fantasia possa mudar suas visões com grande rapidez cada toque não produzirá uma nota clara e distinta de paixão ao contrário uma pai xão irá sempre se misturar e se confundir com a outra Conforme a probabilidade se incline para o bem ou para o mal a paixão de alegria 476 Livro 2 Parte 3 Seção 9 ou de tristeza predomina no composto Pois a natureza da probabili dade é dispor um número superior de visões ou chances de um lado ou o que é o mesmo um número superior de reincidências de uma paixão ou ainda já que as paixões dispersas são reunidas em uma só um grau superior dessa paixão Em outras palavras a tristeza e a ale gria misturandose em virtude das visões contrárias da imaginação produzem por sua união as paixões da esperança e do medo 13 Neste ponto podese levantar uma questão muito curiosa a pro pósito da contrariedade das paixões que é nosso tema presente Ob servase que quando os objetos das paixões contrárias se apresen tam simultaneamente além do aumento da paixão predominante que já foi explicado e que comumente surge quando de seu pri meiro choque ou embate às vezes acontece que as duas paixões se sucedem uma à outra a breves intervalos às vezes elas se destroem reciprocamente e nenhuma tem lugar e às vezes ambas perma necem unidas na mente Podese perguntar portanto por meio de que teoria explicamos essas variações e a que princípio geral se pode reduzilas 14 Quando as paixões contrárias provêm de objetos inteiramente di ferentes elas se dão alternadamente já que a falta de relação entre as idéias separa as impressões impedindo sua oposição Assim por exemplo quando um homem está aflito com a perda de uma causa judicial e alegre pelo nascimento de um filho a mente ao passar do objeto agradável ao desastroso por maior que seja a velocidade com que faça esse movimento dificilmente conseguirá moderar um afeto pelo outro e permanecer entre eles em um estado de indiferença 15 Essa situação de calma é alcançada com mais facilidade quando o mesmo acontecimento é de natureza mista contendo algo de adverso e algo de favorável em suas diferentes circunstâncias Pois nesse caso ambas as paixões misturandose por meio da relação tornamse mu tuamente destrutivas e deixam a mente em perfeita tranqüilidade 1 6 Mas suponhamos em terceiro lugar que o objeto não seja um com posto de bem e mal mas sim que seja considerado provável ou im 477 Tratado da natureza humana provável em um determinado grau Nesse caso afirmo que as pai xões contrárias estarão presentes ao mesmo tempo na alma e em vez de se destruírem e moderarem mutuamente subsistirão juntas pro duzindo com essa união uma terceira impressão ou afeto Paixões con trárias não são capazes de se destruir reciprocamente a menos que seus movimentos contrários coincidam exatamente e se oponham em sua direção bem como na sensação que produzem Esse confronto exato depende das relações das idéias de que essas paixões derivam e será mais ou menos perfeito conforme o grau da relação No caso da probabilidade as chances contrárias estão relacionadas enquanto determinam a existência ou inexistência do mesmo objeto Mas essa relação está longe de ser perfeita já que algumas das chances estão do lado da existência e outras do lado da inexistência que são obje tos inteiramente incompatíveis É impossível considerar as chances opostas e os eventos delas dependentes por meio de um único olhar firme a imaginação tem de passar alternadamente de uma à outra Cada visão da imaginação produz sua paixão própria que se extin gue gradativamente e é seguida de uma vibração sensível que perma nece após cada toque A incompatibilidade das visões impede as pai xões de se chocar em linha direta se posso me exprimir assim entretanto sua relação é suficiente para misturar suas emoções mais fracas É desse modo que a esperança e o medo surgem das diferen tes misturas dessas paixões opostas de tristeza e alegria e de sua união e conjunção imperfeita 17 Em suma paixões contrárias sucedemse uma à outra quando de correm de objetos diferentes destroemse mutuamente quando pro cedem de partes diferentes do mesmo objeto e subsistem juntas misturandose quando são derivadas das chances ou possibilidades contrárias e incompatíveis de que depende um objeto Podese ver claramente a influência das relações de idéias em todos esses casos Se os objetos das paixões contrárias são totalmente diferentes as pai xões são como dois licores opostos mantidos em garrafas diferentes sem nenhuma influência um sobre o outro Se os objetos estão inti mamente conectados as paixões são como um álcali e um ácido que 478 Livro 2 Parte 3 Seção 9 ao se misturarem destroemse um ao outro Se a relação é mais im perfeita e consiste em visões contraditórias do mesmo objeto as paixões são como óleo e vinagre que por mais que se misturem nun ca se unem e se incorporam perfeitamente 1 8 Como a hipótese concernente à esperança e ao medo traz consigo sua própria evidência seremos mais concisos em nossas provas Uns poucos argumentos fortes valem mais que muitos argumentos fracos 19 As paixões de medo e esperança podem surgir quando as chances são iguais dos dois lados e não se pode descobrir qualquer superio ridade de um sobre o outro Aliás nessa situação as paixões têm sua maior força já que é nela que a mente tem menos base de apoio sen do jogada de um lado para o outro com a maior incerteza Acrescentai um grau superior de probabilidade do lado da tristeza e imediata mente vereis a paixão se difundir por toda a composição tingindoa de medo Aumentai a probabilidade e dessa forma também a triste za e o medo prevalecerá mais e mais até se transformar de modo imperceptível em pura tristeza enquanto a alegria diminui continua mente Após obterdes essa situação diminuí a tristeza do mesmo modo como a aumentastes diminuindo a probabilidade de seu lado vereis a paixão se apagar aos poucos até se transformar insensi velmente em esperança esta por sua vez e do mesmo modo se trans forma pouco a pouco em alegria conforme aumentais essa parte do composto ao aumentar a probabilidade Não serão estas provas cla ras de que as paixões do medo e da esperança são misturas de triste za e alegria assim como em óptica a prova de que um raio de sol colorido que passa através de um prisma é uma composição de dois outros raios é obtida quando diminuís ou aumentais a quantidade de um deles e descobris que ele prevalece proporcionalmente mais ou menos na composição Estou certo de que nem a filosofia da nature za nem a filosofia moral admitem provas mais fortes 20 Há dois tipos de probabilidades quando o objeto em si mesmo é realmente incerto e a ser determinado pelo acaso ou quando embora o objeto já seja certo é incerto para nosso juízo que encontra um determinado número de provas de cada lado da questão Esses dois 479 Tratado da natureza humana tipos de probabilidades causam medo e esperança o que só pode ser devido à propriedade em que concordam a saber a incerteza e flu tuação que conferem à imaginação pela contrariedade de visões que é comum a ambas 21 É o bem ou mal provável que comumente produz esperança ou medo porque a probabilidade sendo um modo oscilante e inconstante de considerar um objeto causa naturalmente uma semelhante mis tura e incerteza das paixões Mas podemos observar que sempre que essa mistura pode ser produzida por outras causas as paixões do medo e da esperança surgem ainda que não haja probabilidade e isso deve se reconhecer é uma prova convincente da presente hipótese 22 Constatamos que um mal concebido meramente como possível al gumas vezes também produz medo sobretudo se for muito grande Um homem não pode pensar em dores e torturas extremas sem tre mer se corre o menor perigo de sofrêlas O pequeno grau da proba bilidade é compensado pela grandeza do mal de modo que a sensa ção é tão viva como se o mal fosse mais provável Um único vislumbre ou visão de um grande mal tem o mesmo efeito que vários vislum bres de um pequeno 23 Mas não são apenas males possíveis que causam medo até alguns reconhecidamente impossíveis o causam por exemplo quando treme mos à beira de um precipício mesmo sabendo que estamos em perfei ta segurança cabendo a nós a escolha entre avançar mais um passo ou não Isso se deve à presença imediata do mal que influencia a imaginação da mesma maneira que a certeza desse mal o faria mas que sendo confrontada pela reflexão sobre nossa segurança imedia tamente se retrai causando o mesmo tipo de paixão que quando se pro duzem paixões contrárias em virtude de uma contrariedade de chances 24 Males certos têm às vezes o mesmo efeito de produzir medo que males possíveis ou impossíveis Assim um homem em uma prisão segura e bem vigiada sem a menor possibilidade de escapar treme ao pensar no suplício a que está sentenciado Isso só ocorre quando o mal certo é terrível e abominável nesse caso a mente o rejeita conti 480 Livro 2 Parte 3 Seção 9 nuamente com horror ao mesmo tempo que ele pressiona continua mente o pensamento O mal é aqui firme e estabelecido mas a men te não pode suportar fixarse sobre ele dessa flutuação e incerteza surge uma paixão de aparência muito semelhante à do medo 25 O medo ou a esperança surgem no entanto não apenas quando o bem ou o mal são incertos quanto a sua existência mas também quan to a seu tipo Se uma pessoa recebesse de alguém de cuja veracidade não pode duvidar a notícia de que um de seus filhos foi subitamente morto é evidente que a paixão que esse evento ocasionaria não se estabeleceria como pura tristeza enquanto ela não obtivesse uma in formação certa de qual de seus filhos perdeu Neste caso há um mal certo mas seu tipo é incerto conseqüentemente o medo que senti mos nessa ocasião não tem qualquer mistura de alegria decorrendo unicamente da flutuação da fantasia entre seus objetos E embora todos os lados da questão produzam aqui a mesma paixão essa paixão não pode se estabelecer recebendo antes da imaginação um movimento trêmulo e instável assemelhandose em sua causa como em sua sen sação à mistura e ao combate entre tristeza e alegria 26 Com base nesses princípios podemos explicar um fenômeno das paixões que à primeira vista parece um tanto extraordinário a saber que a surpresa tende a se transformar em medo e que tudo que é ines perado nos amedronta A conclusão mais óbvia desse princípio é que a natureza humana é em geral pusilânime pois diante da súbita apa rição de um objeto concluímos imediatamente tratarse de um mal e sem esperar até podermos examinar se sua natureza é boa ou má somos logo tomados pelo medo Essa conclusão digo é a mais ób via mas um exame mais profundo nos mostrará que o fenômeno deve ser explicado de outro modo O caráter súbito e a estranheza de uma aparição causam naturalmente uma comoção na mente como todas as coisas para as quais não estamos preparados e a que não estamos acostumados Essa comoção por sua vez produz naturalmente uma curiosidade ou interesse que sendo muito violentos em virtude do forte e súbito impulso do objeto tornamse desconfortáveis asseme 481 Tratado da natureza humana lhandose em sua flutuação e incerteza à sensação do medo ou seja das paixões misturadas de tristeza e alegria Essa imagem do medo se converte naturalmente na coisa mesma causando em nós uma apreensão real pelo mal uma vez que a mente sempre forma seus juízos mais a partir de sua disposição presente do que da natureza de seus objetos 27 Assim todos os tipos de incerteza têm uma forte conexão com o medo mesmo que não causem uma oposição de paixões pelas visões e considerações opostas que nos apresentam Uma pessoa que dei xou seu amigo doente sentirá uma ansiedade maior que aquela que sentiria se estivesse ao seu lado ainda que talvez fosse incapaz não só de lhe prestar assistência mas também de julgar sobre o resulta do de sua doença Nesse caso embora o objeto principal da paixão a vida ou a morte de seu amigo seja igualmente incerto para ela quer esteja presente quer ausente há milhares de pequenas circunstâncias que envolvem a situação e a condição de seu amigo cujo conhecimento fixa a idéia impedindo aquela flutuação e incerteza tão estreitamen te ligadas ao medo É verdade que a incerteza é em um certo sentido tão estreitamente ligada à esperança quanto ao medo já que consti tui uma parte essencial também da composição daquela paixão mas a razão por que a mente não se inclina para esse lado é que a incerteza sozinha é desagradável e tem uma relação de impressões com as pai xões desagradáveis 28 É assim que nossa incerteza acerca de qualquer pequeno detalhe relacionado a uma pessoa aumenta nossa apreensão por sua morte ou infortúnio Horácio notou esse fenômeno Ut assidens implumibus pullus avis Serpentium allapsus timet Magis relictis non ut adsit auxili Latura plus presentibus Horácio Epodos livro I v 1 922 Assim a ave velando por seus filhotes implumes receia mais o ataque sorrateiro das serpentes quando se ausenta do ninho embora a sua presen ça de pouco lhes possa valer NT 482 Livro 2 Parte 3 Seção 9 29 Levando um pouco mais adiante porém esse princípio da cone xão do medo com a incerteza observarei que qualquer dúvida pro duz essa paixão mesmo que só nos apresente em todos os lados coisas boas e desejáveis Uma virgem em sua noite de núpcias enca minhase para o leito cheia de medos e apreensões embora não es pere senão prazer da mais alta espécie que há tanto desejava A novi dade e a magnitude do acontecimento a confusão de desejos e alegrias embaraçam a tal ponto a mente que esta não sabe em que paixão se fixar isso gera nos espíritos animais uma inquietude e ins tabilidade que sendo em alguma medida desconfortáveis degeneram muito naturalmente em medo 30 Continuamos constatando portanto que tudo que causa uma flu tuação ou mistura nas paixões juntamente com algum grau de des conforto sempre produz medo ou ao menos uma paixão tão seme lhante a ele que quase não se pode distinguilas 3 1 Limiteime aqui ao exame da esperança e do medo em sua situa ção mais simples e natural sem considerar todas as variações que podem sofrer com a mistura de diferentes considerações e reflexões Terror consternação espanto ansiedade e outras paixões desse gênero são apenas diferentes espécies e graus de medo É fácil imaginar como uma situação diferente do objeto ou um modo diferente de pensar pode mudar até mesmo a sensação de uma paixão e isso em geral pode explicar todas as subdivisões particulares dos outros afe tos além do medo O amor pode se mostrar em forma de ternura amizade intimidade apreço e benevolência e ter ainda muitas outras aparên cias no fundo todas são o mesmo afeto e decorrem das mesmas cau sas embora com pequenas variações não sendo necessário explicá las caso a caso É por essa razão que me limitei todo esse tempo à paixão principal 32 O mesmo cuidado em evitar a prolixidade me faz deixar de lado o exame da vontade e das paixões diretas tais como aparecem nos animais pois nada é mais evidente que o fato de que são da mesma natureza e despertadas pelas mesmas causas que nas criaturas hu 483 Tratado da natureza humana manas Deixarei essa observação aos cuidados do próprio leitor su gerindolhe que considere ao mesmo tempo a força adicional que isso confere ao presente sistema Seção 1 0 Da curiosidade ou o amor à verdade 1 Mas pareceme que fomos um pouco negligentes ao passar em revista tantas partes diferentes da mente humana e examinar tantas paixões sem levar uma só vez em consideração aquele amor à verdade que é a fonte originária de rodas as nossas investigações Será por tanto conveniente antes de abandonarmos este tema dedicar algu mas reflexões a essa paixão e mostrar sua origem na natureza humana Tratase de um afeto de um tipo tão peculiar que teria sido impossí vel considerálo em qualquer dos itens que examinamos sem risco de obscuridade e confusão 2 A verdade pode ser de dois tipos consistindo quer na descoberta das proporções das idéias consideradas enquanto tais quer na con formidade de nossas idéias dos objetos com a existência real destes É certo que a primeira espécie de verdade não é desejada meramente enquanto verdade e não é apenas a correção de nossas conclusões que nos dá prazer Pois essas conclusões são tão corretas se desco brimos a igualdade de dois corpos utilizando um compasso quanto se a conhecemos por meio de uma demonstração matemática Em bora no segundo caso as provas sejam demonstrativas e no primeiro apenas sensíveis a mente de maneira geral aquiesce com igual se gurança nos dois casos E em uma operação aritmética em que tan to a verdade quanto a certeza têm a mesma natureza que na mais com plexa equação algébrica o prazer é bastante insignificante quando não se transforma em dor Isso é uma prova evidente de que a satis fação que algumas vezes obtemos com a descoberta da verdade não procede dessa verdade considerada meramente enquanto tal mas so mente se dotada de certas qualidades 484 Livro 2 Parte 3 Seção 1 0 3 A primeira e mais importante circunstância requerida para tor nar a verdade agradável é a inteligência e a capacidade empregadas em sua invenção e descoberta Nunca valorizamos o que é fácil e ób vio e até o que é em si mesmo difícil se chegamos a conhecêlo sem dificuldade e sem um extremo esforço de pensamento ou juízo é pouco considerado Adoramos seguir as demonstrações dos matemá ticos mas obteríamos pouca satisfação de alguém que apenas nos informasse acerca das proporções de linhas e ângulos ainda que de positássemos a maior confiança em seu julgamento e em sua veraci dade De fato nesse caso basta ter ouvidos para aprender a verdade Não somos obrigados a concentrar nossa atenção ou a exercitar nos sa inteligência o que dentre todos os exercícios da mente é o mais prazeroso e agradável 4 Mas embora o exercício da inteligência seja a principal fonte da satisfação que extraímos das ciências duvido que seja por si só sufi ciente para nos dar um prazer considerável A verdade que descobri mos também tem de ter alguma importância É fácil multiplicar ao infinito problemas algébricos e é infindável a descoberta das propor ções das seções cônicas poucos matemáticos porém têm prazer nessas investigações preferindo dirigir seus pensamentos para coi sas mais úteis e importantes Ora a questão é de que maneira essa utilidade e importância agem sobre nós A dificuldade está em que muitos filósofos consumiram seu tempo destruíram sua saúde e des prezaram sua riqueza na busca de verdades que consideravam impor tantes e úteis para o mundo embora toda sua conduta e comporta mento deixasse claro que não eram dotados de qualquer espírito público e tampouco tinham preocupação alguma pelos interesses da humanidade Se estivessem convencidos de que suas descobertas eram irrelevantes perderiam por completo todo gosto por seus estudos muito embora suas conseqüências lhes fossem inteiramente indife rentes o que parece constituir uma contradição 5 Para resolver essa contradição temos de considerar que existem certos desejos e inclinações que não vão além da imaginação sendo 485 Tratado da natureza humana antes pálidas sombras e imagens de paixões que afetos reais Assim suponhamos um homem que examina as fortificações de uma cida de considera sua força e vantagens naturais ou adquiridas observa a disposição e o mecanismo dos baluartes trincheiras minas e ou tros dispositivos militares é claro que conforme estes se mostrem adequados para cumprir suas finalidades ele obterá um prazer e uma satisfação proporcionais Como esse prazer decorre da utilidade e não da forma dos objetos não pode consistir senão em uma simpatia com os habitantes em prol de cuja segurança toda essa arte foi emprega da entretanto é possível que esse homem por ser estrangeiro ou ini migo não sinta em seu coração nenhuma afeição por eles ou guar delhes mesmo um certo ódio 6 Podese objetar é verdade que uma simpatia tão remota é um fundamento muito frágil para uma paixão e tanto trabalho e aplica ção como os que freqüentemente observamos nos filósofos nunca poderiam ter uma origem tão insignificante Mas aqui volto ao que salientei há pouco a saber que o prazer do estudo consiste especial mente na ação da mente e no exercício da inteligência e do entendimento para descobrir ou compreender uma verdade Se é preciso que a verda de seja importante para que o prazer se complete não é porque essa importância traga uma adição considerável para nossa satisfação mas somente porque é em alguma medida necessária para fixar nossa atenção Quando estamos descuidados e desatentos essa mesma ação do entendimento não tem efeito sobre nós sendo incapaz de trans mitir a satisfação que transmite quando nos encontramos em outra disposição 7 Mas além da ação da mente que é o principal fundamento do prazer é também necessário um certo grau de sucesso na realização de nosso objetivo ou seja a descoberta da verdade que examinamos A esse respeito farei uma observação geral que poderá ser útil em muitas ocasiões quando a mente busca um fim com paixão mesmo que essa paixão não derive originalmente do fim mas apenas da ação e da busca adquirimos graças ao curso natural dos afetos um inte 486 Livro 2 Parte 3 Seção 1 O resse pelo próprio fim e sentimos um desconforto se nossa busca fracassa Isso se deve à relação e à direção paralela das paixões de que falamos anteriormente 8 Para ilustrar tudo isso por meio de um exemplo familiar obser varei que não pode haver duas paixões mais semelhantes que as da caça e da filosofia por maior que seja a desproporção que à primeira vista pareça existir entre elas É evidente que o prazer da caça consis te na ação da mente e do corpo no movimento na atenção na difi culdade e na incerteza Também é evidente que essas ações têm de ser acompanhadas de uma idéia de utilidade para ter um efeito sobre nós Um homem de enorme fortuna e o mais distante possível de qual quer avareza ainda que tenha prazer em caçar perdizes e faisões não sente satisfação alguma ao atirar em corvos e gralhas porque consi dera as duas primeiras aves próprias para a mesa e as outras duas inteiramente inúteis Aqui certamente a utilidade ou a importância por si mesmas não causam nenhuma paixão real sendo requeridas apenas para dar sustentação à imaginação e a mesma pessoa que des preza uma vantagem dez vezes maior em qualquer outro domínio tem prazer em trazer para casa meia dúzia de galinholas ou lavandeiras após ter gasto várias horas a caçálas Para completar o paralelo entre a caça e a filosofia observemos que embora em ambos os casos pos samos desprezar o fim mesmo de nossa ação concentramonos tanto nele no calor dessa ação que nos sentimos muito mal quando desa pontados e ficamos tristes se perdemos nossa presa ou se cometemos um erro em nosso raciocínio 9 Se quisermos um outro paralelo com esses afetos poderemos con siderar a paixão do jogo que proporciona um prazer pelos mesmos princípios que a caça e a filosofia Observouse que o prazer do jogo Similar na edição de SBN corrigido para familiar seguindo as razões dos editores da NNOPT cf David F Norton Mary J Norton op cit l no similar instance pre cedes the one Hume goes on to mention 2 assuming Hume did not mistakenly write similar when he meant familiar the compositor could easily enough have misread the manuscript and made the error 3 the comparison of hunting and philosophy had been made familiar by Eramus popular The Praise of Foi NT 487 Tratado da natureza humana não decorre apenas do interesse pois muitos abrem mão de um ganho certo por essa diversão Tampouco deriva apenas do jogo pois essas mesmas pessoas não sentem nenhuma satisfação quando não jogam por dinheiro Procede antes da união dessas duas causas embora sozinhas elas não tenham nenhum efeito Ocorre aqui o mesmo que em certos preparados químicos em que a mistura de dois líquidos incolores e transparentes produz um terceiro que é opaco e colorido 10 O interesse que temos por um jogo atrai nossa atenção sem o que não teríamos nenhum prazer nessa ou em qualquer outra ação Uma vez atraída a atenção a dificuldade a variedade e os súbitos re vezes da sorte fazem que nos interessemos ainda mais e é desse inte resse que resulta nossa satisfação A vida humana é uma cena tão en fadonha e os homens em geral são tão indolentes que tudo que os diverte ainda que por uma paixão mesclada com a dor no essencial lhes dá um prazer perceptível Esse prazer aumenta ainda mais nes te caso pela natureza dos objetos que sendo sensíveis e de âmbito limitado são concebidos com facilidade e agradam à imaginação 1 1 A mesma teoria que explica o amor à verdade na matemática e na álgebra podese estender à moral à política à filosofia da natureza e a outros estudos em que não consideramos as relações abstratas das idéias mas suas conexões reais e sua existência Mas além do amor pelo sa ber que se mostra nas ciências existe implantada na natureza huma na uma certa curiosidade que é uma paixão derivada de um princípio bem diferente Algumas pessoas têm um desejo insaciável de conhe cer as ações e os detalhes da vida de seus vizinhos mesmo que não tenham nenhum interesse nisso e mesmo que dependam inteiramen te dos outros para obter sua informação caso em que não há lugar para estudo ou aplicação Investiguemos a causa desse fenômeno 12 Já provamos suficientemente que a influência da crença é ao mes mo tempo avivar e fixar uma idéia na imaginação e impedir qual quer hesitação e incerteza a seu respeito Ambas as circunstâncias são favoráveis Mediante a vividez da idéia criamos um interesse por parte da fantasia e produzimos embora em menor grau o mesmo prazer 488 Livro 2 Parte 3 Seção 1 0 que surge de uma paixão moderada Assim como a vividez da idéia dá prazer assim também sua certeza impede o desconforto ao fixar na mente uma idéia em particular impedindoa de oscilar na escolha de seus objetos Tratase de uma qualidade da natureza humana que se manifesta em muitas ocasiões e é comum tanto à mente como ao corpo que uma mudança demasiadamente brusca e violenta nos é desagradável e mesmo objetos em si mesmos indiferentes produzem um malestar se alterados Como a natureza da dúvida é causar uma variação no pensamento e transportarnos subitamente de uma idéia a outra ela deve conseqüentemente ser ocasião de dor Essa dor ocorre sobretudo quando o interesse a relação ou a magnitude e a novidade de um acontecimento nos dão um interesse por ele Não é sobre qualquer questão de fato que temos curiosidade tampouco te mos curiosidade apenas sobre aquelas que são de nosso interesse co nhecer É suficiente que a idéia nos toque com tal força e nos concirna tão de perto que sua instabilidade e inconstância nos causem um des conforto Para um estrangeiro que chega pela primeira vez a uma ci dade pode ser totalmente indiferente conhecer a história e as aven turas de seus habitantes mas conforme vai se familiarizando com as pessoas e após viver algum tempo entre elas adquire a mesma curio sidade que os que ali nasceram Quando estamos lendo a história de uma nação podemos ter um grande desejo de esclarecer uma dúvida ou dificuldade que se apresente mas nos descuidamos dessas inves tigações quando as idéias desses acontecimentos se vêem em grande medida obliteradas 489 Tratado da natureza humana Uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais Durce semper virtutis amator Qucere quid est virtus et posce exemplar honestí Lucanus Livro 3 Da moral Com um Apêndice em que algumas passagens dos volumes precedentes são ilustradas e explicadas Lucano Farsália IX v562563 Tu que desde sempre foste amante da austera virtude pergunta em que consiste essa virtude indaga qual o modelo da honradez NT Advertência julgo conveniente informar ao público que embora este seja um terceiro volume do Tratado da natureza humana ele é de certo modo independente dos outros dois e não requer que o leitor considere todos os raciocínios abstra tos neles contidos Espero que o leitor comum possa compreendêlo sem pre cisar dedicar a ele uma atenção maior que aquela que se costuma conceder a qualquer livro que envolva algum raciocínio Observese apenas que conti nuo a empregar os termos impressões e idéias no mesmo sentido que an teriormente e que por impressões refirome às nossas percepções mais for tes tais como nossas sensações afetos e sentimentos e por idéias às percepções mais fracas ou cópias daquelas na memória e na imaginação 493 Seção 1 Parte 1 Da virtude e do vício em geral As distinções morais não são derivadas da razão 1 Todo raciocínio abstruso apresenta um mesmo inconveniente pode silenciar o antagonista sem convencêlo e para nos darmos conta de sua força precisamos dedicarlhe um estudo tão intenso quanto o que foi necessário para sua invenção Quando deixamos nosso gabi nete de estudos e nos envolvemos com os afazeres da vida corrente suas conclusões parecem se apagar como os fantasmas noturnos à chegada da manhã e é difícil mantermos até mesmo aquela convicção que havíamos adquirido com tanto esforço Isso é ainda mais mani festo no caso de longas cadeias de raciocínio em que temos de pre servar até o final a evidência das primeiras proposições e freqüen temente perdemos de vista todas as máximas mais bem estabelecidas da filosofia ou da vida corrente Entretanto ainda tenho a esperança de que o presente sistema filosófico ganhará nova força conforme vá avançando e que nossos raciocínios a respeito da moral irão corrobo rar o que foi dito a respeito do entendimento e das paixões A moral é 495 Tratado da natureza humana um tema que nos interessa mais que qualquer outro Imaginamos que a paz da sociedade está em jogo a cada decisão que tomamos a seu respeito e é evidente que essa preocupação deve fazer nossas especulações parecerem mais reais e sólidas do que quando o assunto nos é em boa parte indiferente Se algo nos afeta concluímos que não pode ser uma quimera e como nossa paixão se envolve em um lado ou em outro pensamos naturalmente que a questão está ao alcance da compreensão humana ao passo que em outros casos dessa natu reza tendemos a ter dúvidas a tal respeito Sem essa vantagem jamais teriame aventurado a escrever um terceiro volume de uma filosofia tão abstrusa em uma época em que a maioria dos homens parece concor dar em fazer da leitura uma diversão rejeitando tudo que requeira um grau considerável de atenção para ser compreendido 2 Já observamos que nada jamais está presente à mente senão suas percepções e todas as ações como ver ouvir julgar amar odiar e pen sar incluemse sob essa denominação Qualquer ação exercida pela mente pode ser compreendida sob o termo percepção conseqüentemen te esse termo não se aplica menos aos juízos pelos quais distingui mos entre o bem e o mal morais que a qualquer outra operação da mente Aprovar um caráter e condenar outro são apenas duas percep ções diferentes 3 Ora como as percepções se reduzem a dois tipos impressões e idéias essa distinção gera uma questão com que abriremos a presente in vestigação a respeito da moral Será por meio de nossas idéias ou impres sões que distinguimos entre o vício e a virtude e declaramos que uma ação é condenável ou louvável A resposta a essa questão dará imediatamente fim a todos os discursos vagos e grandiloqüentes atendonos a uma abordagem exata e precisa sobre o assunto presente 4 Aqueles sistemas que afirmam que a virtude não passa de uma conformidade com a razão que existe uma eterna adequação e ina dequação das coisas e esta é a mesma para todos os seres racionais que as consideram que os critérios imutáveis do que é certo e do que é errado impõem uma obrigação não apenas às criaturas humanas 496 Livro 3 Parte 1 Seção 1 mas também à própria Divindade todos esses sistemas concordam que a moralidade como a verdade é discernida meramente por meio das idéias de sua justaposição e comparação Portanto para julgar mos esses sistemas basta considerar se é possível pela simples ra zão distinguir entre o bem e o mal morais ou se é preciso a concor rência de outros princípios que nos capacitem a fazer essa distinção 5 Se a moralidade não tivesse naturalmente nenhuma influência so bre as paixões e as ações humanas seria inútil fazer tanto esforço para inculcála e nada seria mais vão que aquela profusão de regras e pre ceitos tão abundantes em todos os moralistas A filosofia comumente se divide em especulativa e prática Como a moral se inclui sempre nesta última divisão supõese que influencie nossas paixões e ações e vá além dos juízos calmos e impassíveis do entendimento Isso se con firma pela experiência corrente que nos informa que os homens são freqüentemente governados por seus deveres abstendose de deter minadas ações porque as julgam injustas e sendo impelidos a outras porque julgam tratarse de uma obrigação 6 Como a moral portanto tem uma influência sobre as ações e os afetos seguese que não pode ser derivada da razão porque a razão sozinha como já provamos nunca poderia ter tal influência A moral desperta paixões e produz ou impede ações A razão por si só é in teiramente impotente quanto a esse aspecto As regras da moral por tanto não são conclusões de nossa razão 7 Creio que ninguém irá negar a legitimidade dessa inferência e não há outra maneira de evitála senão negando o princípio que a fundamenta Enquanto se admitir que a razão não tem influência sobre nossas paixões ou ações será inútil afirmar que a moralidade é descoberta apenas por uma dedução racional Um princípio ativo nunca pode estar fundado em um princípio inativo e se a razão é em si mesma inativa terá de permanecer assim em todas as suas formas e aparências quer se exerça nos assuntos naturais ou nos morais quer considere os poderes dos corpos externos ou as ações dos seres racionais 497 Tratado da natureza humana 8 Seria enfadonho repetir agora todos os argumentos que empre guei para provar1 que a razão é inteiramente inerte jamais podendo impedir ou produzir qualquer ação ou afeto É fácil lembrar o que foi dito sobre esse assunto Retomarei aqui apenas um desses argu mentos e tentarei tornálo ainda mais concludente e mais aplicável ao tema presente 9 A razão é a descoberta da verdade ou da falsidade A verdade e a falsidade consistem no acordo e no desacordo seja quanto à relação real de idéias seja quanto à existência e aos fatos reais Portanto aquilo que não for suscetível desse acordo ou desacordo será incapaz de ser verdadeiro ou falso e nunca poderá ser objeto de nossa razão Ora é evidente que nossas paixões volições e ações são incapazes de tal acor do ou desacordo já que são fatos e realidades originais completos em si mesmos e não implicam nenhuma referência a outras paixões volições e ações É impossível portanto declarálas verdadeiras ou falsas contrárias ou conformes à razão 10 Esse argumento é duplamente vantajoso para nosso propósito presente Pois prova diretamente que as ações não extraem seu mérito de uma conformidade com a razão nem seu caráter censurável de uma contrariedade em relação a ela e prova a mesma verdade mais indire tamente ao nos mostrar que como a razão nunca pode impedir ou pro duzir imediatamente uma ação contradizendoa ou aprovandoa tampouco pode ser a fonte da distinção entre o bem e o mal morais os quais constatamos que têm tal influência As ações podem ser lou váveis ou condenáveis mas não podem ser racionais ou irracionais Louvável ou condenável portanto não é a mesma coisa que racional ou irracional O mérito e o demérito das ações freqüentemente contra dizem e às vezes controlam nossas propensões naturais Mas a ra zão não tem tal influência As distinções morais portanto não são frutos da razão A razão é totalmente inativa e nunca poderia ser a fonte de um princípio ativo como a consciência ou sentido moral Livro 2 Parte 3 Seção 3 498 Livro 3 Parte 1 Seção 1 1 1 Mas talvez se diga que embora nenhuma vontade ou ação possa contradizer imediatamente a razão tal contradição pode ser encontrada em alguns dos concomitantes da ação a saber em suas causas ou efei tos A ação pode causar um juízo ou pode ser obliquamente causada por um juízo quando este coincide com uma paixão em virtude disso por um abuso de linguagem que a filosofia dificilmente admitirá a mesma contrariedade pode ser atribuída à ação Cabe agora considerar até que ponto essa verdade ou falsidade pode ser a fonte da moral 12 Já observamos que a razão em sentido estrito e filosófico só pode influenciar nossa conduta de duas maneiras despertando uma pai xão ao nos informar sobre a existência de alguma coisa que é um ob jeto próprio dessa paixão ou descobrindo a conexão de causas e efei tos de modo a nos dar meios de exercer uma paixão qualquer Esses são os únicos tipos de juízos que podem acompanhar nossas ações ou que se pode dizer que as produzem de alguma maneira e é preci so reconhecer que esses juízos podem freqüentemente ser falsos e er rôneos Uma pessoa pode ser afetada por uma paixão ao supor que um objeto comporta dor ou prazer quando na verdade esse objeto não tem nenhuma tendência a produzir qualquer das duas sensações ou produz a sensação contrária à que ela imaginava Uma pessoa tam bém pode tomar medidas erradas para atingir um certo fim e assim por sua conduta descabida pode retardar em vez de favorecer a execu ção de um determinado projeto Podese pensar que esses juízos falsos afetam as paixões e as ações a eles conectadas e segundo um modo figurado e impróprio de falar podese mesmo dizer que eles as tornam contrárias à razão Mas ainda que se reconheça tal coisa é fácil obser var que esses erros estão longe de ser a fonte de toda imoralidade tan to mais que costumam ser muito inocentes não trazendo nenhuma espécie de culpabilidade à pessoa que teve o infortúnio de os come ter Não vão além de um erro de fato que em geral os moralistas não consideram um crime porque é inteiramente involuntário Quando me engano quanto ao poder que certos objetos teriam de produzir dor ou prazer ou se não conheço os meios adequados de satisfazer 499 Tratado da natureza humana meus desejos sou antes digno de pena que de censura Ninguém ja mais pode considerar tais erros um defeito em meu caráter moral Por exemplo se vejo ao longe uma fruta que na realidade é desagradável posso por um engano imaginar que é agradável e deliciosa Eis aqui um erro Escolho certos meios para alcançar essa fruta mas esses meios são inadequados para meu objetivo Eis aqui um segundo erro Mas não existe um terceiro erro possível em raciocínios concernentes a ações Pergunto portanto se um homem nessa situação e culpado desses dois erros deve ser visto como vicioso e criminoso por mais inevitáveis que esses erros possam ter sido Ou se é possível imaginar que tais erros são a fonte de toda a imoralidade 13 Talvez seja bom observar neste ponto que se as distinções mo rais fossem derivadas da verdade ou falsidade desses juízos elas te riam de ocorrer toda vez que os formássemos não haveria nenhuma diferença entre a questão dizer respeito a uma maçã ou a um reino ou entre o erro poder ou não ter sido evitado Como se está supondo que a própria essência da moralidade consiste em um acordo ou em um desacordo com a razão as outras circunstâncias seriam inteira mente arbitrárias jamais podendo conferir a uma ação o caráter de virtuosa ou viciosa ou privála desse caráter A isso podemos acres centar que como esse acordo ou desacordo não admite graus todas as virtudes e vícios seriam obviamente iguais 14 Se se afirmasse que embora um erro de fato não seja um crime um erro de direito freqüentemente o é e este último pode ser a fonte da imoralidade eu responderia que é impossível que um tal erro possa jamais ser a fonte original da imoralidade pois supõe a existência real de um certo e um errado isto é a existência real de uma distinção mo ral independente desses juízos Um erro de direito portanto pode se tornar uma espécie de imoralidade mas apenas secundária fundada em alguma outra imoralidade que lhe seja anterior 15 Quanto aos juízos que são efeitos de nossas ações e quando fal sos dão ocasião para que se declarem as ações contrárias à verdade e à razão podemos observar que nossas ações jamais causam nenhum juízo seja verdadeiro ou falso em nós mesmos e só têm tal efeito 500 Livro 3 Parte 1 Seção 1 nas outras pessoas Certamente há muitas ocasiões em que uma ação pode gerar falsas conclusões por parte dos outros assim se uma pessoa olhando pela janela vê um comportamento lascivo entre mim e a mulher de meu vizinho pode ingenuamente imaginar que esta é com certeza minha esposa Sob esse aspecto minha ação assemelhase um pouco a uma mentira ou falsidade com uma única mas importante diferença neste caso não estou realizando a ação com a intenção de gerar um falso juízo em outra pessoa mas unicamente para satisfa zer minha lascívia e paixão Entretanto ela causa acidentalmente um erro e um falso juízo e a falsidade de seus efeitos pode ser atribuída se falamos de uma maneira bizarramente figurada à própria ação Ainda assim não consigo ver nisso razão para se afirmar que a ten dência a causar um erro seja a fonte primeira ou princípio originá rio de toda a imoralidade 2 1 6 Em resumo portanto é impossível que a distinção entre o bem e o mal morais possa ser feita pela razão já que essa distinção influencia nossas ações coisa de que a razão por si só é incapaz A razão e o juízo 2 Poderseia pensar que essa prova é inteiramente supérflua se um autor recente que teve a sorte de ganhar alguma reputação William Wollaston 16591724 The Religion of Nature Delineated 1 39 N T não houvesse afirmado seriamente que uma tal falsidade é o fun damento de toda falta e deformidade moral Para descobrir a falácia dessa hipótese te mos apenas de considerar que uma ação só pode gerar uma falsa conclusão em virtude de uma obscuridade nos princípios naturais que faz com que uma causa seja secretamente interrompida em sua operação por causas contrárias tornando a conexão entre dois ob jetos incerta e variável Ora como uma incerteza e uma variedade semelhante nas causas têm lugar até mesmo nos objetos naturais produzindo um erro semelhante em nosso juízo se essa tendência a produzir o erro fosse a própria essência do vício e da imoralidade deverseia seguir daí que mesmo objetos inanimados poderiam ser viciosos e imorais 2 É inútil alegar que os objetos inanimados agem sem liberdade ou escolha Pois como a liberdade e a escolha não são necessárias para que uma ação produza em nós uma con clusão errônea não podem ser sob nenhum aspecto essenciais à moralidade E não me é fácil perceber como segundo esse sistema poderiam jamais ser levadas em consideração por ela Se a tendência a causar erro pudesse ser a origem da imoralidade essa tendência e a imoralidade seriam sempre inseparáveis 3 Acrescentese a isso que se eu tivesse tomado a precaução de fechar as janelas enquanto me entregava a tais liberdades com a esposa de meu vizinho não teria sido culpado de ne nhuma imoralidade isso porque minha ação sendo feita inteiramente às escondidas não te ria tido a menor tendência a produzir uma falsa conclusão 4 Pela mesma razão um ladrão que entrasse em uma casa por uma escada encostada à janela e tomasse todo cuidado imaginável para não fazer nenhum ruído não estaria de modo 501 Tratado da natureza humana podem é verdade ser a causa mediara de uma ação estimulando ou dirigindo uma paixão não pretendemos afirmar porém que um juízo dessa espécie seja acompanhado em sua verdade ou falsidade de vir tude ou de vício Quanto aos juízos causados por nossas ações eles são ainda menos capazes de conferir essas qualidades morais às ações que são suas causas 17 Mas para sermos mais precisos mostrando que a boa filosofia não pode defender a existência dessas eternas e imutáveis adequações e inadequações das coisas podemos avaliar as seguintes considerações 18 Se o pensamento e o entendimento sozinhos fossem capazes de fixar os limites do certo e do errado a qualidade de virtuoso ou vicio algum cometendo uma ação criminosa Porque ou não seria percebido ou se o fosse não poderia produzir um erro já que ninguém ao vêlo nessa situação iria tomálo por quem ele não é realmente 5 Bem sabemos que as pessoas estrábicas fazem os outros se enganarem facilmente pois imaginamos que estão cumprimentando ou falando com uma pessoa quando na verdade estão se dirigindo a outra Seriam elas então por essa razão imorais 6 Além disso podemos facilmente observar que em todos esses argumentos existe um evidente círculo vicioso Uma pessoa que se apossa dos bens de outra e os usa como se fossem seus de uma certa maneira declara que esses bens são seus e essa falsidade é a fonte da imoralidade da injustiça Mas serão a propriedade o direito ou a obrigação inte ligíveis sem uma moralidade antecedente 7 Um homem que mostra ingratidão por seu benfeitor está de certa maneira afirman do que jamais recebeu favores dele Mas de que maneira Será porque é seu dever ser gra to Mas isso supõe que exista anteriormente uma regra do dever e da moral Será porque a natureza humana é geralmente grata o que nos leva a concluir que um homem que causa algum dano nunca recebeu nenhum favor da pessoa a quem causou esse dano Mas a natureza humana não é geralmente tão grata a ponto de justificar tal conclusão E se o fosse será a exceção a uma regra geral sempre criminosa exclusivamente por ser uma exceção 8 O que talvez seja suficiente para destruir inteiramente esse sistema extravagante é que ele nos deixa com a mesma dificuldade tanto para explicar por que razão a verdade é vir tuosa e a falsidade viciosa quanto para dar conta do mérito ou da torpeza de qualquer outra ação Admitirei se assim o desejardes que toda imoralidade deriva dessa suposta falsidade na ação contanto que me forneçais uma razão plausível que explique por que tal falsidade é imoral Se considerardes corretamente a questão vereis que vos encontrais ante a mesma dificuldade inicial 9 Este último argumento é bastante concluente De fato se não houver um mérito ou torpeza evidentes vinculados a essa espécie de verdade ou falsidade ela nunca poderá influir em nossas ações Pois quem jamais pensou em se abster de uma ação só porque outras pessoas poderiam tirar dela falsas conclusões Ou quem jamais realizou uma ação ape nas para poder gerar conclusões verdadeiras 502 Livro 3 Parte 1 Seção 1 so teria de estar em algumas relações de objetos ou então ser uma questão de fato descoberta por nosso raciocínio Tratase de uma con seqüência evidente Como as operações do entendimento humano se dividem em dois tipos a comparação de idéias e a inferência de ques tões de fato se a virtude fosse descoberta pelo entendimento teria de ser objeto de uma dessas operações pois não há um terceiro tipo de operação do entendimento capaz de descobrila Certos filósofos pro pagaram persistentemente a opinião de que a moralidade é passível de demonstração E embora ninguém jamais tenha sido capaz de dar um único passo nessas demonstrações dáse por suposto que essa ciência pode alcançar uma certeza igual à da geometria ou da álgebra Segundo essa suposição o vício e a virtude devem consistir em cer tas relações já que todos admitem que nenhuma questão de fato é sus cetível de demonstração Comecemos portanto examinando essa hi pótese e tentemos se possível determinar as qualidades morais que há tanto têm sido objeto de nossas vãs investigações Designemos dis tintamente as relações que constituem a moralidade ou obrigação para sabermos em que consistem e de que maneira devemos julgálas 19 Se afirmardes que o vício e a virtude consistem em relações sus cetíveis de certeza e demonstração devereis vos limitar àquelas qua tro relações que admitem tal grau de evidência e nesse caso incor rereis em absurdos dos quais nunca vos conseguireis livrar Pois como fazeis a própria essência da moralidade repousar nas relações e como todas essas relações são aplicáveis não apenas a objetos irracionais mas também a objetos inanimados seguese que mesmo tais objetos deveriam ser suscetíveis de mérito e demérito Semelhança contrarie dade graus de qualidade e proporções de quantidade e número todas essas relações se aplicam com tanta propriedade à matéria quanto às nos sas ações paixões e volições É inquestionável portanto que a moralidade não se encontra em nenhuma dessas relações nem o sen tido da moralidade está em sua descoberta3 3 Como prova de quão confusa costuma ser nossa maneira de pensar acerca desse assunto podemos observar que aqueles que afirmam que a moralidade é demonstrável não dizem 503 Tratado da natureza humana 20 Caso se afirme que o sentido da moralidade consiste na desco berta de alguma relação distinta dessas e nossa enumeração não foi completa quando reduzimos todas as relações demonstrativas a quatro tipos diferentes não saberei o que responder enquanto alguém não tiver a bondade de me apontar essa nova relação É impossível refu tar um sistema que ainda não foi explicado Lutando assim no escuro damos golpes no ar e freqüentemente os acertamos onde o inimigo não está 21 Neste momento pois devo me contentar em exigir de quem quiser tentar esclarecer esse sistema as duas condições seguintes Primeiro como o bem e o mal morais se aplicam apenas às ações da mente e derivam de nossa situação quanto aos objetos externos as relações de que resultam essas distinções morais têm de se encon trar apenas entre ações internas e objetos externos e não podem ser aplicáveis nem a ações internas comparadas entre si nem a objetos externos quando opostos a outros objetos externos Porque como a moralidade supostamente acompanha certas relações se essas rela ções pudessem estar contidas nas ações internas consideradas isola damente seguirseia que poderíamos ser culpados de crimes em nós mesmos e independentemente de nossa situação quanto ao resto do universo de maneira semelhante se essas relações morais pudes sem ser aplicadas aos objetos externos seguirseia que mesmo obje tos inanimados seriam suscetíveis de beleza e deformidade morais Ora parece difícil imaginar que comparandose nossas paixões volições que ela está nas relações e que as relações são distinguíveis pela razão Dizem apenas que a razão pode descobrir que uma determinada ação em determinadas relações é virtuosa e tal outra é viciosa Dirseia que consideram suficiente introduzir a palavra Relação na proposição sem se preocupar em saber se ela vem ou não a propósito Mas eis aqui creio um claro argumento A razão demonstrativa descobre apenas relações No entanto essa mesma razão segundo essa hipótese descobre também o vício e a virtude Essas quali dades morais portanto têm de ser relações Quando condenamos uma ação em uma dada situação a totalidade do complexo objeto composto da ação e da situação tem de formar certas relações e é nisso que consiste a essência do vício Não há outro modo de se compreender essa hipótese Pois o que a razão descobre ao declarar que uma ação é viciosa Descobre uma relação ou uma questão de fato Essas perguntas são decisivas e não devem ser eludidas 504 Livro 3 Parte 1 Seção 1 e ações com os objetos externos possamos descobrir alguma rela ção que não pertença nem às paixões e volições nem a esses objetos externos comparados entre si 22 Será ainda mais difícil porém satisfazer à segunda condição requeri da para justificar esse sistema De acordo com os princípios daqueles que afirmam a existência de uma diferença abstrata e racional entre o bem e o mal morais e a existência de uma adequação e inadequação naturais das coisas não apenas se supõe que essas relações sendo eternas e imutáveis são as mesmas para todas as criaturas humanas que as consideram mas também que seus efeitos são necessariamen te os mesmos e concluise que elas não influenciam menos ou an tes influenciam mais a direção da vontade de Deus que o governo dos indivíduos racionais e virtuosos de nossa própria espécie Mas esses dois pontos são evidentemente distintos Uma coisa é conhe cer a virtude e outra conformar a vontade com ela Portanto para provar que os critérios do certo e do errado são leis eternas obrigató rias para toda mente racional não basta mostrar as relações que os fundamentam temos de mostrar também a conexão entre a relação e a vontade e temos de provar que essa conexão é tão necessária que deve ter lugar e exercer sua influência em toda mente bem intencio nada ainda que a diferença entre essas mentes seja sob outros as pectos imensa e até infinita Ora além de já termos provado que mes mo na natureza humana nenhuma relação sozinha pode produzir uma ação além disso digo mostramos ao tratar do entendimento que não existe nenhuma conexão de causa e efeito tal como se a compreen de ou seja que possa ser descoberta de outro modo que não seja pela experiência e da qual possamos pretender ter alguma certeza pela mera consideração dos objetos Todos os seres do universo conside rados em si mesmos aparecem como inteiramente desligados e in dependentes uns dos outros Apenas pela experiência conhecemos sua influência e conexão e essa influência não deveríamos jamais estendê la para além da experiência 23 Assim é impossível satisfazer à primeira condição exigida do sis tema que defende a existência de medidas eternas e racionais do cer 505 Tratado da natureza humana to e do errado porque é impossível mostrar as relações em que tal distinção poderia estar fundada E é igualmente impossível satisfa zer à segunda condição pois não podemos provar a priori que essas re lações se realmente existissem e fossem percebidas seriam univer salmente impositivas e obrigatórias 24 Mas para tornar essas reflexões gerais mais claras e convincen tes podemos ilustrálas por meio de alguns exemplos em que esse caráter de bem ou mal morais é mais universalmente reconhecido De todos os crimes que as criaturas humanas são capazes de come ter o mais terrível e antinatural é a ingratidão sobretudo quando é cometida contra os pais e quando se mistura aos crimes mais flagran tes que são a violência física e a morte Isso todos os homens reco nhecem tanto os filósofos como o povo apenas os filósofos levan tam a questão de saber se a culpabilidade e a depravação moral dessa ação podem ser descobertas por um raciocínio demonstrativo ou são sentidas por um sentido interno felt by an internai sense e por meio de algum sentimento ocasionado naturalmente pela reflexão sobre tal ação A solução dessa questão invalidará rapidamente a primeira opi nião se pudermos mostrar a existência das mesmas relações em ou tros objetos que não sejam acompanhados pela noção de alguma fal ta ou iniqüidade A razão ou ciência consiste apenas na comparação de idéias e na descoberta de suas relações Se as mesmas relações ti verem características diferentes devese seguir evidentemente que essas qualidades não são descobertas unicamente pela razão Por tanto para pôr tudo isso à prova escolhamos um objeto inanimado qualquer como um carvalho ou um olmo e suponhamos que ao deixar cair suas sementes ele produza logo abaixo de si um broto que crescendo gradativamente acaba por encobrir e destruir a árvo remãe Pergunto pois se neste caso falta alguma relação que pos sa ser descoberta no parricídio ou na ingratidão A primeira árvore não é a causa da existência da segunda e esta última a causa da des truição da primeira do mesmo modo que um filho quando mata seu pai Não basta responder que aqui falta uma escolha ou uma vontade 506 Livro 3 Parte 1 Seção 1 Pois no caso do parricídio a vontade não dá origem a nenhuma rela ção diferente sendo apenas a causa de que deriva a ação e conseqüen temente produz as mesmas relações que no caso do carvalho ou do olmo surgem de outros princípios É a vontade ou escolha que de termina um homem a matar seu pai e são as leis da matéria e do movimento que determinam um broto a destruir o carvalho que o gerou Aqui portanto as mesmas relações têm causas diferentes mas as relações ainda são as mesmas E como sua descoberta não se faz acompanhar de uma noção de imoralidade em ambos os casos se guese que tal noção não surge dessa descoberta 25 Mas para tomar um exemplo em que a semelhança é ainda maior eu gostaria de perguntar por que o incesto na espécie humana é um crime e por que a mesma ação e as mesmas relações quando ocor rem nos animais não apresentam a menor depravação ou deformi dade moral Se me responderem que essa ação é inocente nos animais porque estes não têm razão suficiente para descobrir sua torpeza mas que como o homem é dotado dessa faculdade a qual deveria restrin gilo a seu dever a mesma ação instantaneamente se torna criminosa para ele se isso me for respondido replicarei que há aqui evidente mente uma argumentação circular Pois antes que a razão possa per ceber essa torpeza a torpeza tem de existir por conseguinte ela é independente das decisões de nossa razão sendo mais propriamente seu objeto que seu efeito De acordo com esse sistema portanto todo animal dotado de sentido apetite e vontade isto é todo animal tem de ser suscetível exatamente das mesmas virtudes e vícios que nos levam a elogiar ou censurar as criaturas humanas Toda a diferença consiste em que nossa razão superior pode servir para descobrir o vício ou a virtude aumentando assim a censura ou o elogio Mas mesmo essa descoberta supõe uma existência separada dessas distinções morais existência essa que depende somente da vontade e do ape tite e que tanto em pensamento como na realidade é possível distin guir da razão Os animais entre si são suscetíveis das mesmas rela ções que a espécie humana e portanto também seriam capazes da 507 Tratado da natureza humana mesma moralidade se a essência da moralidade consistisse nessas relações O fato de não possuírem um grau suficiente de razão pode impedilos de perceber os deveres e obrigações da moral mas nun ca poderia impedir esses deveres de existir uma vez que para se rem percebidos eles têm de existir previamente A razão deve encontrálos mas não pode nunca produzilos Esse argumento me rece ser levado em conta pois em minha opinião é inteiramente decisivo 26 Esse raciocínio não prova apeas que a moralidade não consiste em relações que são objetos da ciência se devidamente examinado prova com igual certeza que ela não consiste em nenhuma questão de fato que possa ser descoberta pelo entendimento Esta é a segunda parte do argumento Se pudermos tornála evidente poderemos concluir que a moralidade não é um objeto da razão Mas haverá alguma difi culdade em se provar que o vício e a virtude não são questões de fato cuja existência possamos inferir pela razão Tomemos qualquer ação reconhecidamente viciosa o homicídio voluntário por exemplo Examinemola sob todos os pontos de vista e vejamos se podemos encontrar o fato ou a existência real que chamamos de vício Como quer que a tomemos encontraremos somente certas paixões motivos volições e pensamentos Não há nenhuma outra questão de fato neste caso O vício escapanos por completo enquanto consideramos o ob jeto Não o encontraremos até dirigirmos nossa reflexão para nosso próprio íntimo e darmos com um sentimento de desaprovação que se forma em nós contra essa ação Aqui há um fato mas ele é objeto de sentimento feeling não de razão Está em nós não no objeto Desse modo quando declaramos que uma ação ou caráter são vicio sos tudo que queremos dizer é que dada a constituição de nossa na tureza experimentamos uma sensação ou sentimento a feeling or sentiment de censura quando os contemplamos O vício e a virtude portanto podem ser comparados a sons cores calor e frio os quais segundo a filosofia moderna não são qualidades nos objetos mas percepções na mente E essa descoberta da moral como aquela da 508 Livro 3 Parte 1 Seção 2 física deve ser vista como um progresso considerável nas ciências especulativas embora exatamente como aquela tenha pouca ou ne nhuma influência na prática Nada pode ser mais real ou nos interes sar mais que nossos próprios sentimentos de prazer e desprazer e se estes forem favoráveis à virtude e desfavoráveis ao vício nada mais pode ser preciso para a regulação de nossa conduta e comportamento 27 Não posso deixar de acrescentar a esses raciocínios uma obser vação que talvez se mostre de alguma importância Em todo sistema de moral que até hoje encontrei sempre notei que o autor segue du rante algum tempo o modo comum de raciocinar estabelecendo a existência de Deus ou fazendo observações a respeito dos assuntos humanos quando de repente surpreendome ao ver que em vez das cópulas proposicionais usuais como é e não é não encontro uma só proposição que não esteja conectada a outra por um deve ou não deve Essa mudança é imperceptível porém da maior importância Pois como esse deve ou não deve expressa uma nova relação ou afirmação esta precisaria ser notada e explicada ao mesmo tempo seria preci so que se desse uma razão para algo que parece inteiramente incon cebível ou seja como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes Mas já que os autores não costumam usar essa precaução tomarei a liberdade de recomendála aos leitores es tou persuadido de que essa pequena atenção seria suficiente para sub verter todos os sistemas correntes de moralidade e nos faria ver que a distinção entre vício e virtude não está fundada meramente nas re lações dos objetos nem é percebida pela razão Seção 2 As distinções morais são derivadas de um sentido moral 1 Assim o curso de nossa argumentação levanos a concluir que uma vez que o vício e a virtude não podem ser descobertos unicamente pela razão ou comparação de idéias deve ser por meio de alguma im pressão ou sentimento por eles ocasionados que somos capazes de 509 Tratado da natureza humana estabelecer a diferença entre os dois Nossas decisões a respeito da retidão e da depravação morais são evidentemente percepções e como todas as percepções são ou impressões ou idéias a exclusão de umas é um argumento convincente em favor das outras A moralidade portan to é mais propriamente sentida que julgada embora essa sensação ou sentimento seja em geral tão brando e suave que tendemos a confun dilo com uma idéia de acordo com nosso costume corrente de con siderar tudo que é muito semelhante como se fosse uma só coisa 2 A próxima questão é qual a natureza dessas impressões e de que maneira atuam sobre nós Não podemos hesitar por muito tempo quanto à resposta devemos afirmar que a impressão derivada da vir tude é agradável e a procedente do vício é desagradável A cada instan te a experiência nos convence disso Não há espetáculo mais belo e formoso que uma ação nobre e generosa e nenhum gera em nós maior repulsa que uma ação cruel e traiçoeira Nenhum prazer se iguala à satisfação que obtemos com a companhia daqueles que amamos e es timamos mas a maior de todas as punições é sermos obrigados a pas sar o resto de nossas vidas com aqueles que odiamos ou despreza mos Mesmo uma peça de teatro ou um romance podem nos oferecer exemplos desse prazer que a virtude nos transmite bem como dessa dor que resulta do vício 3 Ora como as impressões distintivas que nos permitem conhe cer o bem e o mal morais não são senão dores e prazeres particulares seguese que em todas as investigações acerca dessas distinções morais bastará mostrar os princípios que nos fazem sentir uma sa tisfação ou um malestar ao considerar um certo caráter para nos con vencer por que esse caráter é louvável ou censurável Por que uma ação sentimento ou caráter é virtuoso ou vicioso Porque sua visão causa um prazer ou desprazer de um determinado tipo Portanto ao dar a razão desse prazer ou desprazer estamos explicando de manei ra suficiente o vício ou a virtude Ter o sentido da virtude é simples mente sentir uma satisfação de um determinado tipo pela contempla ção de um caráter O próprio sentimento feeling constitui nosso 5 1 0 Livro 3 Parte 1 Seção 2 elogio ou admiração Não vamos além disso nem investigamos a cau sa da satisfação Não inferimos que um caráter é virtuoso porque nos agrada ao sentirmos que nos agrada dessa maneira particular nós de fato sentimos que é virtuoso Ocorre aqui o mesmo que em nossos juízos acerca de todo tipo de beleza gostos e sensações Nossa apro vação está implícita no prazer imediato que estes nos transmitem 4 Como objeção ao sistema que estabelece critérios racionais e eter nos do certo e do errado afirmei que é impossível mostrar nas ações das criaturas racionais qualquer relação que não se encontre também nos objetos externos e por isso se a moralidade sempre acompanhas se essas relações também a matéria inanimada poderia se tornar vir tuosa ou viciosa De maneira semelhante podese agora objetar ao presente sistema que se a virtude e o vício são determinados pelo prazer e pela dor tais sensações devem sempre gerar essas qualida des conseqüentemente qualquer objeto animado ou inanimado racional ou irracional poderia se tornar moralmente bom ou mau contanto que pudesse despertar uma satisfação ou um desprazer Mas embora essa objeção pareça exatamente igual à anterior não tem de forma alguma a mesma força Em primeiro lugar é evidente que sob o termo prazer compreendemos sensações muito diferentes que não apresentam mais que uma distante semelhança umas com as outras suficiente apenas para fazer que sejam expressas pelo mesmo termo abstrato Uma boa composição musical e uma garrafa de um bom vi nho produzem igualmente um prazer mais ainda sua excelência é determinada unicamente pelo prazer Mas diremos por isso que o vi nho é harmonioso ou que a música é saborosa De maneira seme lhante tanto um objeto inanimado quanto o caráter ou os senti mentos de uma pessoa podem nos dar satisfação contudo como a satisfação é diferente isso nos impede de confundir nossos senti mentos relativos a cada um deles e nos faz atribuir a virtude à pes soa mas não ao objeto Além disso nem todo sentimento de prazer ou dor derivado de um caráter ou ação é do tipo peculiar que nos faz 5 1 1 Tratado da natureza humana louvar ou condenar As boas qualidades de um inimigo são penosas para nós mas ainda assim podem merecer nossa estima e respeito É somente quando um caráter é considerado em geral sem referência a nosso interesse particular que causa essa sensação ou sentimento em virtude do qual o denominamos moralmente bom ou mau É ver dade que temos naturalmente uma tendência a confundir e misturar os sentimentos devidos ao interesse e os devidos à moral Raramen te deixamos de pensar que um inimigo é vicioso e raramente somos capazes de distinguir entre sua oposição a nosso interesse e sua vila nia ou baixeza reais Isso não impede porém que esses sentimentos sejam distintos neles mesmos um homem dotado de serenidade e discernimento pode se proteger dessas ilusões Do mesmo modo embora seja correto que a voz melodiosa é apenas uma voz que nos dá naturalmente um tipo particular de prazer é difícil alguém se dar conta de que a voz de seu inimigo é agradável ou admitir sua musi calidade Mas uma pessoa de audição refinada e com autodomínio é capaz de separar esses sentimentos feelings e conferir seus elogios a quem os merece 5 Em segundo lugar podemos recordar o sistema das paixões ante riormente apresentado a fim de salientar uma diferença ainda mais considerável entre nossas dores e prazeres Orgulho e humildade amor e ódio são despertados quando se apresenta a nós alguma coisa que ao mesmo tempo mantém uma relação com o objeto da paixão e produz separadamente uma sensação relacionada à sensação da pai xão Ora a virtude e o vício acompanhamse dessas circunstâncias Devem necessariamente se situar em nós ou em outrem e excitar prazer ou desprazer devem portanto gerar uma dessas quatro pai xões o que os distingue claramente do prazer e da dor resultantes de objetos inanimados que freqüentemente não têm conosco nenhu ma relação Esse é talvez o efeito mais importante da virtude e do vício sobre a mente humana 6 Podese agora perguntar em geral a propósito dessa dor e desse prazer que distinguem o bem e o mal morais de que princípios derivam e como surgem na mente humana A isso respondo em primeiro lugar 512 Livro 3 Parte 1 Seção 2 que é absurdo imaginar que em cada caso particular esses sentimen tos se produzam por uma qualidade original e uma constituição primi tiva Pois como o número de nossos deveres é por assim dizer infinito é impossível que nossos instintos originais se estendam a cada um deles e desde nossa primeira infância imprimam na mente humana toda essa multiplicidade de preceitos contidos nos mais completos siste mas éticos Essa maneira de proceder não é conforme às máximas que usualmente conduzem a natureza onde uns poucos princípios pro duzem toda aquela variedade que observamos no universo e tudo é realizado da maneira mais fácil e simples É necessário portanto re duzir o número desses impulsos primários e encontrar alguns princí pios mais gerais que fundamentem todas as nossas noções morais 7 Em segundo lugar porém se acaso alguém perguntar se devemos procurar esses princípios na natureza ou se temos de buscar para eles alguma outra origem eu diria que nossa resposta a essa questão de pende da definição da palavra Natureza que vem a ser a mais ambí gua e equívoca que existe Se se opõe natureza a milagre não apenas a distinção entre vício e virtude é natural mas também qualquer acon tecimento que já tenha ocorrido no mundo excetuandose os milagres em que se fundamenta nossa religião Ao dizer portanto que os sentimen tos do vício e da virtude são naturais nesse sentido não estamos fa zendo nenhuma descoberta extraordinária 8 Mas natureza também pode se opor a raro e inabitual neste sentido da palavra que é o mais comum freqüentemente surgem discussões acerca do que é ou não natural e podese afirmar de maneira geral que não possuímos nenhum critério preciso que nos permita decidir essa questão O que é freqüente e o que é raro depende do número de casos que observamos e como esse número pode aumentar ou diminuir gradativamente é impossível fixar limites exatos entre os dois Sobre isso podemos apenas afirmar que se alguma vez houve algo que pudesse ser dito natural nesse sentido tal é certamente o caso dos sentimentos morais pois nunca houve no mundo uma só nação e nunca houve em nenhuma nação uma só pessoa que fosse 5 1 3 Tratado da natureza humana inteiramente desprovida desses sentimentos e nunca em caso algum tenha mostrado a menor aprovação ou reprovação de uma condu ta Tais sentimentos estão tão enraizados em nossa constituição e caráter que a menos que a mente humana esteja completamente transtornada pela doença ou loucura seria impossível extirpálos e destruílos 9 Mas também se pode opor natureza a artifício além de a raro e a inabitual e neste sentido podese questionar se as noções de virtu de são ou não naturais Esquecemos facilmente que os desígnios pro jetos e objetivos dos homens são princípios tão necessários em sua operação quanto o calor e o frio o úmido e o seco Em vez disso con sideramos que são livres e cabem exclusivamente a nós por isso é comum estabelecermos uma oposição entre eles e os demais princí pios da natureza Portanto se alguém me perguntar se o sentido da virtude é natural ou artificial penso que me seria impossível neste momento dar uma resposta precisa Talvez mais adiante vejamos que nosso sentido de algumas virtudes é artificial e o de outras natural A discussão dessa questão será mais apropriada quando entrarmos em uma descrição detalhada de cada vício e de cada virtude em particular 4 10 Enquanto isso talvez não seja fora de propósito observar com base nessas definições de natural e nãonatural que nada pode ser me nos filosófico que aqueles sistemas que afirmam que virtude é o que é natural e vício o mesmo que nãonatural Pois se tomarmos a pa lavra Natureza em seu primeiro sentido ou seja como oposta a mi lagres tanto o vício como a virtude são igualmente naturais e no se gundo sentido como oposta ao que é inabitual talvez vejamos que a virtude é o que há de menos natural Ao menos devese reconhecer que a virtude heróica sendo inabitual é tão pouco natural quanto a barbárie mais brutal Quanto ao terceiro sentido da palavra é certo que tanto o vício quanto a virtude são igualmente artificiais e estra 4 Na exposição a seguir natural também se opõe algumas vezes a civil e outras a moral A oposição sempre deixará claro o sentido em que o termo está sendo tomado 5 1 4 Livro 3 Parte 1 Seção 2 nhos à natureza Pois por mais que se questione se a noção do mé rito ou demérito de certas ações é natural ou artificial é evidente que as próprias ações são artificiais sendo realizadas com um certo pro pósito e intenção de outro modo nunca poderiam ser classificadas sob uma dessas denominações Em nenhum sentido portanto a dis tinção entre o natural e o nãonatural pode marcar as fronteiras en tre vício e virtude 1 1 Assim voltamos a nossa primeira posição ou seja que a virtude se distingue pelo prazer e o vício pela dor produzidos em nós pela mera visão ou contemplação de uma ação sentimento ou caráter Essa conclusão é muito conveniente pois nos reduz a esta simples ques tão por que uma ação ou sentimento quando são contemplados ou considera dos de uma forma geral produzem em nós uma certa satisfação ou desconforto É a resposta a essa questão que nos permitirá mostrar a origem da re tidão ou da depravação morais dessa ação ou sentimento sem pre cisar buscar relações e qualidades incompreensíveis que jamais exis tiram na natureza e nem sequer em nossa imaginação como objetos de uma concepção clara e distinta Orgulhome de ter realizado boa parte de meu propósito presente mediante a exposição de um estado da questão que me parece tão livre de ambigüidades e obscuridades 5 1 5 Seção 1 Parte 2 Da justiça e da injustiça justiça uma virtude natural ou artificial 1 Já aludi ao fato de que nosso sentido de virtude não é natural em todos os casos ao contrário existem algumas espécies de virtudes que produzem prazer e aprovação mediante um artifício ou invenção resultante das particularidades e necessidades da humanidade Afir mo agora que a justiça é uma virtude dessa espécie e procurarei de fender essa opinião por meio de um argumento curto mas espero convincente antes de examinar a natureza do artifício de que deriva o sentido dessa virtude 2 É evidente que quando elogiamos uma determinada ação consi deramos apenas os motivos que a produziram e tomamos a ação co mo signo ou indicador de certos princípios da mente e do caráter A realização externa não tem nenhum mérito Temos de olhar para o interior da pessoa para encontrar a qualidade moral Ora como não podemos fazêlo diretamente fixamos nossa atenção na ação como signo externo Mas a ação é considerada apenas um signo o objeto último de nosso elogio e aprovação é o motivo que a produziu 5 1 7 Tratado da natureza humana 3 Do mesmo modo sempre que exigimos que uma pessoa realize uma ação ou a censuramos por não realizála estamos supondo que alguém nessa situação deveria ser influenciado pelo motivo próprio dessa ação e consideramos vicioso que o tenha desconsiderado Se após investigarmos melhor a situação descobrimos que o motivo vir tuoso estava presente em seu coração embora sua operação tenha sido impedida por alguma circunstância que nos era desconhecida retira mos nossa censura e passamos a ter pela pessoa a mesma estima que teríamos se houvesse de fato realizado a ação que dela exigíamos 4 Vemos portanto que todas as ações virtuosas derivam seu méri to unicamente de motivos virtuosos sendo tidas apenas como sig nos desses motivos Desse princípio concluo que o primeiro motivo virtuoso que confere mérito a uma ação nunca pode ser uma consi deração pela virtude dessa ação devendo ser antes algum outro mo tivo ou princípio natural Supor que a mera consideração pela virtu de da ação possa ser o primeiro motivo que produziu a ação e a tornou virtuosa é um raciocínio circular Para que possamos ter tal conside ração a ação tem de ser realmente virtuosa e essa virtude tem de ser derivada de algum motivo virtuoso conseqüentemente o motivo vir tuoso precisa ser diferente da consideração pela virtude da ação É preciso um motivo virtuoso para que uma ação se torne virtuosa Uma ação tem de ser virtuosa para que possamos ter consideração por sua virtude Portanto algum motivo virtuoso tem de anteceder essa consideração 5 Isso não é mera sutileza metafísica está presente em todos os raciocínios de nossa vida corrente embora às vezes não consigamos exprimilo em uma linguagem filosófica tão distinta Censuramos um pai que negligencia seu filho E por quê Porque isso mostra uma fal ta de afeição natural que é dever de todo pai Se a afeição natural não fosse um dever o cuidado com os filhos tampouco o seria e seria impossível que tivéssemos em vista o dever ao darmos atenção a nossa Regard no contexto da moral foi traduzido ora como consideração ora como res peito NT 5 1 8 Livro 3 Parte 2 Seção 1 prole Nesse caso portanto todos os homens supõem que a ação possui um motivo diferente de um sentido do dever 6 Suponhamos um homem que pratica muitas boas ações alivia os sofredores reconforta os aflitos e leva sua bondade até os mais des conhecidos Nenhum caráter poderia ser mais amável e virtuoso Ve mos essas ações como provas de um grande sentimento humanitá rio Esse sentimento humanitário confere um mérito às ações O respeito pelo mérito é portanto uma consideração secundária deri vada do princípio antecedente do sentimento humanitário que é meritório e louvável 7 Em resumo podemos estabelecer como uma máxima indubitável que nenhuma ação pode ser virtuosa ou moralmente boa a menos que haja na natureza humana algum motivo que a produza distinto do sentido de sua moralidade 8 Mas será que o sentido da moralidade ou do dever não pode pro duzir uma ação sem qualquer outro motivo Respondo que sim mas que isso não constitui uma objeção à presente doutrina Quando um motivo ou princípio virtuoso é comum na natureza humana uma pessoa que sente seu coração desprovido desse motivo pode odiar a si mesma por essa razão e pode realizar a ação sem o motivo apenas por um certo sentido do dever com o intuito de adquirir pela prática esse princípio virtuoso ou ao menos para disfarçar para si mesma tanto quanto possível sua carência Um homem que não sente de fato nenhuma gratidão em seu íntimo pode apesar disso ter prazer em praticar certos atos de gratidão pensando desse modo ter realizado seu dever As ações inicialmente são consideradas somente como sig nos de motivos mas o que costuma ocorrer nesse caso e em todos os demais é que acabamos fixando nossa atenção apenas nos signos negligenciando em parte a coisa significada Entretanto embora possa haver ocasiões em que uma pessoa realiza uma ação simplesmente por uma consideração para com sua obrigação moral mesmo isso supõe que haja na natureza humana alguns princípios distintos ca pazes de produzir a ação e cuja beleza moral torne a ação meritória 5 1 9 Tratado da natureza humana 9 Agora apliquemos tudo isso ao caso presente Suponhamos que uma pessoa tenhame emprestado uma soma de dinheiro sob a con dição de que eu lhe restituísse essa soma em alguns dias suponha mos também que no fim do prazo combinado ela me peça o dinheiro de volta Pergunto que razão ou motivo tenho para devolverlhe o dinhei ro Dirseá talvez que meu respeito pela justiça e minha repulsa à vilania e à desonestidade são para mim razões suficientes se pos suo um mínimo de honestidade ou sentido do dever e da obrigação Sem dúvida essa resposta é correta e satisfatória para o homem em seu estado de civilização e quando formado segundo uma certa dis ciplina e educação Mas em sua condição rude e mais natural se quereis chamar de natural uma tal condição essa resposta seria re jeitada como completamente ininteligível e sofística Pois uma pes soa que se encontrasse nessa situação imediatamente vos pergun taria em que consistem essa honestidade e justiça que encontrais na restituição de um empréstimo e na abstenção da propriedade alheia Cer tamente não está na ação externa Por conseguinte tem de estar no motivo de que essa ação externa foi derivada Esse motivo nunca poderia ser a consideração pela honestidade da ação pois é uma clara falácia dizer que é preciso um motivo virtuoso para tornar uma ação honesta e ao mesmo tempo que a consideração pela honestidade é o motivo da ação Só podemos ter consideração pela virtude de uma ação se a ação já for de antemão virtuosa Ora uma ação só pode ser virtuosa se procede de um motivo virtuoso Um motivo virtuoso por tanto deve anteceder a consideração pela virtude é impossível que o motivo virtuoso e a consideração pela virtude sejam a mesma coisa 10 É preciso encontrar portanto para os atos de justiça e honesti dade algum motivo distinto de nossa consideração pela honestida de e é nisso que está a grande dificuldade Porque se disséssemos que a preocupação com nosso interesse privado ou com nossa repu tação é o motivo legítimo de todas as ações honestas seguirseia que sempre que cessa tal preocupação a honestidade não poderia mais ter lugar Mas é certo que o amor a si próprio quando age livremente 520 Livro 3 Parte 2 Seção 1 em vez de nos levar a ações honestas é fonte de toda injustiça e vio lência e ninguém pode corrigir esses vícios sem corrigir e restringir os movimentos naturais desse apetite 1 1 Caso se afirmasse ao contrário que a razão ou motivo de tais ações é uma consideração pelo interesse público ao qual nada é mais con trário que haver exemplos de injustiça e de desonestidade eu proporia que se prestasse atenção às três considerações seguintes Em primeiro lugar o interesse público não está naturalmente ligado à observância das regras da justiça conectase a ela apenas em virtude de uma con venção artificial para o estabelecimento dessas regras como mostra rei mais detalhadamente adiante Em segundo lugar se supusermos que o empréstimo foi sigiloso e que é do interesse do prestador que o dinheiro seja restituído da mesma maneira por exemplo se quer ocultar sua riqueza nesse caso não há mais exemplaridade e o pú blico não tem mais interesse pelas ações do prestatário entretanto suponho que nenhum moralista iria afirmar que isso elimina o dever ou a obrigação Em terceiro lugar a experiência prova de maneira sufi ciente que os homens em seu comportamento cotidiano não pen sam em algo tão distante quanto o interesse público quando pagam a seus credores cumprem suas promessas e se abstêm de roubar sa quear ou cometer todo tipo de injustiça Esse é um motivo demasiada mente remoto e sublime para afetar a generalidade dos homens e para influir com alguma força em ações tão contrárias ao interesse priva do como são freqüentemente os atos de justiça e as ações comuns de honestidade 12 Em geral podese afirmar que não há na mente dos homens uma paixão como o amor à humanidade concebida meramente enquanto tal independentemente de qualidades pessoais de favores ou de uma relação da outra pessoa conosco É verdade que não existe uma só criatura humana ou sequer uma criatura sensível cuja felicidade ou infelicidade não nos afete em alguma medida quando está perto de nós ou é representada em cores vivas Mas isso se deve meramente à simpatia e não prova que haja uma tal afeição universal pela huma 52 1 Tratado da natureza humana nidade uma vez que essa preocupação se estende para além de nos sa própria espécie A afeição entre os sexos é uma paixão evidente mente implantada na natureza humana e essa paixão se mostra não apenas por seus sintomas peculiares mas também por inflamar to dos os outros princípios de afeição despertando pela beleza inteli gência e bondade de uma pessoa um amor mais forte que aquele que de outro modo resultaria dessas qualidades Ora se houvesse um amor universal entre todas as criaturas humanas esse amor se mostraria da mesma maneira Um grau determinado de uma boa qualidade cau saria uma afeição mais forte que o ódio causado pelo mesmo grau de uma má qualidade mas o que descobrimos pela experiência é o con trário disso Os homens têm temperamentos diferentes alguns têm uma propensão para afetos mais ternos outros para afetos mais ás peros mas no essencial podemos afirmar que o homem em geral ou a natureza humana é apenas o objeto tanto do amor quanto do ódio sendo preciso alguma outra causa que por uma dupla relação de impressões e idéias possa excitar essas paixões Seria inútil ten tar eludir essa hipótese Nenhum fenômeno aponta para a existência dessa terna afeição pelos homens independentemente de seu mérito ou de qualquer outra circunstância Gostamos de companhia em ge ral mas é do mesmo modo como gostamos de qualquer outra diver são Um inglês na Itália é um amigo na China é um europeu e quem sabe pudéssemos amar um homem simplesmente como homem caso o encontrássemos na Lua Mas isso se deve apenas à relação conosco que nesses casos ganha força por estar limitada a poucas pessoas 1 3 Portanto s e a benevolência pública ou uma consideração pelos interesses da humanidade não pode ser o motivo original da justiça muito menos a benevolência privada ou seja uma consideração pelos inte resses do outro Pois e se este for meu inimigo e me tiver dado um bom motivo para odiálo E se for um homem maligno que merece o ódio de toda a humanidade E se for um sovina incapaz de usar aquilo de que eu pretendia priválo E se for um libertino e devasso para quem 522 Livro 3 Parte 2 Seção 1 a posse de uma grande fortuna seria mais prejudicial que benéfica E se eu estiver passando por necessidades ou tiver motivos urgentes para obter algo para minha família Em todos esses casos o motivo original para a justiça desapareceria e conseqüentemente a própria justiça e com ela toda propriedade direito e obrigação 14 O rico tem uma obrigação moral de dar aos necessitados uma par te do que lhe é supérfluo Mas se a benevolência privada fosse o motivo original da justiça ninguém seria obrigado a deixar que os outros ficas sem com mais que aquilo que é obrigado a lhes dar Ou ao menos a diferença seria insignificante As pessoas em geral ligamse afetiva mente mais àquilo que possuem que àquilo de que nunca chegaram a desfrutar Por essa razão seria mais cruel despojar um homem de alguma coisa que não lhe dar essa coisa Mas quem iria querer afir mar que esse é o único fundamento da justiça 1 5 Além disso devemos considerar que a principal razão de os ho mens se prenderem tanto aos bens que possuem é que os vêem como sua propriedade assegurada de um modo inviolável pelas leis da so ciedade Essa é porém uma consideração secundária que depende das noções precedentes de justiça e propriedade 1 6 Supomos que a propriedade de cada um está protegida contra todos os outros mortais em todos os casos possíveis Mas a benevo lência privada para com o proprietário é e deve ser mais fraca em algumas pessoas que em outras e em muitas pessoas ou antes na maioria delas está absolutamente ausente A benevolência privada portanto não é o motivo original da justiça 17 Seguese de tudo isso que não temos naturalmente nenhum motivo real ou universal para observar as leis da eqüidade exceto a própria eqüidade e o mérito dessa observância e uma vez que nenhu ma ação pode ser justa ou meritória se não pode surgir de algum moti vo separado existe aqui um evidente sofisma e um raciocínio cir cular Portanto a menos que admitamos que a natureza estabeleceu um sofisma e o tornou necessário e inevitável temos de admitir que 523 Tratado da natureza humana o sentido de justiça e injustiça não deriva da natureza surgindo an tes artificialmente embora necessariamente da educação e das con venções humanas 1 8 Como corolário a esse raciocínio acrescentarei que já que ne nhuma ação pode ser louvável ou condenável sem motivos ou pai xões que as impulsionem e sejam distintos desse sentidoo da mo ralidade essas paixões distintas devem ter uma grande influência sobre tal sentido É de acordo com sua força geral na natureza hu mana que condenamos ou louvamos Ao julgar a beleza dos corpos animais sempre levamos em consideração a economia de uma cer ta espécie quando os membros e os traços observam a proporção que é comum àquela espécie nós os declaramos graciosos e belos De modo semelhante sempre consideramos a força natural e usual das paixões ao emitir juízos acerca do vício e da virtude e se as pai xões se afastam muito das medidas comuns de um lado ou de ou tro nós as desaprovamos como viciosas Os homens naturalmente amam seus filhos mais que seus sobrinhos seus sobrinhos mais que seus primos seus primos mais que estranhos nos casos em que to das as outras circunstâncias são iguais É daí que surgem nossas regras comuns do dever que nos fazem preferir uns aos outros Nosso sentido do dever segue sempre o curso usual e natural de nos sas paixões 19 Para que ninguém se sinta ofendido devo aqui observar que quando nego que a justiça seja uma virtude natural estou empregan do a palavra natural como significando exclusivamente o oposto de artificial Em outra acepção da palavra assim como nenhum princí pio da mente humana é mais natural que um sentido da virtude as sim também nenhuma virtude é mais natural que a justiça O homem é uma espécie inventiva e quando uma invenção é evidente e absolu tamente necessária é tão correto considerála natural quanto tudo que proceda imediatamente de princípios originais sem a interven ção do pensamento ou reflexão Embora as regras da justiça sejam ar tificiais não são arbitrárias Tampouco é impróprio utilizar a expressão 524 Livro 3 Parte 2 Seção 2 Leis Naturais para caracterizálas se entendermos por natural aqui lo que é comum a uma espécie qualquer ou mesmo se restringirmos seu sentido apenas ao que é inseparável dessa espécie Seção 2 Da origem da justiça e da propriedade 1 Passamos agora a examinar duas questões sobre o modo como as regras da justiça são estabelecidas pelo artifício dos homens e sobre as razões que nos determinam a atribuir à observância ou à desobediência dessas regras uma beleza ou uma deformidade morais Mais adiante veremos que essas questões são distintas Começaremos com a primeira 2 De todos os animais que povoam nosso planeta à primeira vista parece ser o homem aquele contra o qual a natureza foi mais cruel dadas as inúmeras carências e necessidades com que o cobriu e os escassos meios que lhe forneceu para aliviar essas necessidades Em outras criaturas esses dois pontos em geral se compensam mutua mente Se considerarmos que o leão é um animal voraz e carnívoro descobriremos facilmente que é cheio de necessidades mas se pres tarmos atenção em sua constituição e temperamento sua agilidade sua coragem suas armas e sua força veremos que nele as vantagens são proporcionais às carências O carneiro e o boi carecem de todas essas vantagens mas seus apetites são moderados e seu alimento é fácil de obter Apenas no homem se pode observar em toda sua per feição essa conjunção antinatural de fragilidade e necessidade Não somente o alimento necessário para sua subsistência escapa a seu cerco e aproximação ou ao menos exige trabalho para ser produzi do como além disso o homem precisa de roupas e abrigo para se de fender das intempéries Entretanto considerado apenas em si mesmo Laws of Nature Essa expressão será traduzida quer por leis naturais quer por direito natural ou ainda por leis do direito natural A primeira alternativa só será usada quando o contexto como neste caso não deixar nenhuma margem à confusão entre essas leis e as leis físicas NT 525 Tratado da natureza humana ele não possui armas força ou qualquer outra habilidade natural que seja em algum grau condizente com suas necessidades 3 Somente pela sociedade ele é capaz de suprir suas deficiências igualandose às demais criaturas e até mesmo adquirindo uma su perioridade sobre elas Pela sociedade todas as suas debilidades são compensadas embora nessa situação suas necessidades se multi pliquem a cada instante suas capacidades se ampliam ainda mais dei xandoo em todos os aspectos mais satisfeito e feliz do que jamais poderia se tornar em sua condição selvagem e solitária Quando cada indivíduo trabalha isoladamente e apenas para si mesmo sua força é limitada demais para executar qualquer obra considerável tem de empregar seu trabalho para suprir as mais diferentes necessidades e por isso nunca atinge a perfeição em nenhuma arte particular e como sua força e seu sucesso não são iguais o tempo todo a menor falha em um dos dois deve inevitavelmente trazer para ele a ruína e a infe licidade A sociedade fornece um remédio para esses três inconvenien tes A conjunção de forças amplia nosso poder a divisão de trabalho aumenta nossa capacidade e o auxílio mútuo nos deixa menos expos tos à sorte e aos acidentes É por essa força capacidade e segurança adicio nais que a sociedade se torna vantajosa 4 Mas para que a sociedade se forme não basta que ela seja vanta josa os homens também têm de se dar conta de suas vantagens Entretanto em seu estado selvagem e inculto e apenas pelo estudo e reflexão é impossível que os homens alguma vez cheguem a adquirir esse conhecimento Felizmente junto com essas necessidades cujos remédios são remotos e obscuros existe uma outra necessidade que por ter um remédio mais imediato e evidente pode ser legitimamen te considerada o princípio primeiro e original da sociedade humana Essa necessidade não é outra senão aquele apetite natural que existe entre os sexos unindoos e preservando sua união até o surgimento de um outro laço ou seja a preocupação com sua prole comum Essa nova preocupação também se torna um princípio de união entre os pais e os filhos formando uma sociedade mais numerosa em que os 526 Livro 3 Parte 2 Seção 2 pais governam em virtude da superioridade de sua força e sabedoria e ao mesmo tempo têm o exercício de sua autoridade limitado pela afeição natural que sentem por seus filhos Em pouco tempo o cos tume e o hábito agindo sobre as tenras mentes dos filhos tomam nos sensíveis às vantagens que podem extrair da sociedade além de gradualmente formálos para essa sociedade aparando as duras ares tas e afetos adversos que impedem sua coalizão 5 Porque é preciso admitir que embora as condições da natureza humana possam tomar necessária uma união e embora essas paixões do desejo carnal e da afeição natural pareçam tomála inevitável há outras particularidades em nosso temperamento natural e nas circuns tâncias externas em que nos encontramos que são muito inconvenien tes e até contrárias à requerida conjunção Entre as primeiras pode mos justificadamente considerar que a mais importante é nosso egoísmo Estou consciente de que falando de maneira geral tem havido muito exagero na representação dessa qualidade alguns filósofos se deleitam em fornecer sobre esse aspecto da humanidade descrições tão afasta das da natureza quanto as narrativas sobre monstros que encontra mos em fábulas e romances Estou longe de pensar que os homens não sentem afeição por nada além de si mesmos ao contrário sou da opinião de que embora seja raro encontrar alguém que ame uma pes soa sequer mais que a si mesmo é igualmente raro encontrar alguém em quem todos os afetos benévolos considerados em conjunto não superem os egoístas Consultai a experiência corrente Não vedes que embora em geral todos os gastos de uma família estejam sob o con trole de seu senhor poucos há que não destinem a maior parte de suas fortunas ao prazer de suas esposas e à educação de seus filhos reser vando a menor parte para seu próprio uso e entretenimento É o que observamos nas pessoas que se encontram unidas por esses vínculos afetivos e podemos presumir que o mesmo ocorreria com todas se estivessem em situação semelhante 6 Entretanto embora devamos reconhecer em honra da natureza humana a existência dessa generosidade podemos ao mesmo tempo 527 Tratado da natureza humana observar que essa paixão tão nobre em vez de preparar os homens para a vida em grandes sociedades é quase tão contrária a estas quanto o mais acirrado egoísmo Pois enquanto cada pessoa amar a si mes ma mais que a qualquer outro e em seu amor pelos demais sentir maior afeição por seus parentes e amigos essa situação deve neces sariamente produzir uma oposição de paixões e conseqüentemente uma oposição de ações e para uma união recémestabelecida isso só pode ser perigoso 7 Notese entretanto que essa contrariedade de paixões seria pou co perigosa se não coincidisse com uma peculiaridade nas circunstân cias externas que dá a ela oportunidade de se exercer Os bens que pos suímos podem ser de três espécies diferentes a satisfação interior do espírito as qualidades exteriores de nosso corpo e a fruição dos bens que adquirimos com nosso trabalho e nossa boa sorte Podemos usu fruir dos primeiros com plena segurança Os segundos podem nos ser tomados mas não beneficiam em nada a quem deles nos priva Ape nas os últimos estão expostos à violência alheia e ao mesmo tempo podem ser transferidos sem sofrer nenhuma perda ou alteração além disso não existem em quantidade suficiente para suprir os desejos e as necessidades de todas as pessoas Por isso assim como o aperfei çoamento desses bens é a principal vantagem da sociedade assim tam bém a instabilidade de sua posse juntamente com sua escassez é seu maior impedimento 8 Seria inútil buscar na natureza inculta um remédio para tal incon veniente ou esperar encontrar um princípio não artificial da mente humana que pudesse controlar essa afeição parcial fazendonos ven cer as tentações decorrentes das circunstâncias que nos envolvem A idéia de justiça nunca poderia servir para esse fim não podemos considerála um princípio natural capaz de inspirar aos homens uma conduta justa para com os demais Homens rudes e selvagens não poderiam sequer sonhar com essa virtude tal como agora a com preendemos Pois a noção de dano ou injustiça implica uma imorali dade ou uma conduta viciosa contra uma outra pessoa e como toda 528 Livro 3 Parte 2 Seção 2 imoralidade é derivada de alguma deficiência ou algum desequilíbrio das paixões e como essa deficiência deve ser julgada em grande par te pelo curso ordinário da natureza na constituição da mente será fácil saber se somos culpados de alguma imoralidade em relação aos outros bastando para isso considerar a força natural e usual dos di versos afetos a eles dirigidos Ora é manifesto que na estrutura ori ginal de nossa mente nosso maior grau de atenção se dirige a nós mesmos logo abaixo está a atenção que dirigimos a nossos parentes e amigos e só o mais leve grau se volta para os estranhos e as pessoas que nos são indiferentes Essa parcialidade portanto e essa afeição desigual têm de influenciar não somente nosso comportamento e conduta social mas também nossas idéias de vício e de virtude para nos fazer considerar como viciosa e imoral qualquer transgressão sig nificativa desses graus de parcialidade seja por uma intensificação exagerada seja por uma restrição da afeição Podese observar esse fato nos juízos que formamos comumente sobre as ações quando censuramos uma pessoa que concentra todas as suas afeições em sua família ou que a despreza a ponto de no caso de uma oposição de interesses dar preferência a um desconhecido ou a alguém que co nheceu apenas casualmente Seguese de tudo isso que nossas idéias naturais e incultas da moral em vez de remediar a parcialidade de nossos afetos antes se conformam a essa parcialidade dandolhe mais força e influência 9 O remédio portanto não vem da natureza mas do artifício ou mais corretamente falando a natureza fornece no juízo e no enten dimento um remédio para o que há de irregular e inconveniente nos afetos Porque quando os homens em sua primeira educação na so ciedade tornaramse sensíveis às infinitas vantagens que dela resul tam e além disso adquiriram um novo gosto pelo convívio e pela conversação e quando observaram que a principal perturbação da sociedade se deve a esses bens que denominamos externos a sua mobilidade e à facilidade com que se transmitem de uma pessoa a outra então precisam buscar um remédio que ponha esses bens tanto 529 Tratado da natureza humana quanto possível em pé de igualdade com as vantagens firmes e cons tantes da mente e do corpo Ora o único meio de realizar isso é por uma convenção de que participam todos os membros da sociedade para dar estabilidade à posse desses bens externos permitindo que todos gozem pacificamente daquilo que puderam adquirir por seu tra balho ou boa sorte Desse modo cada qual sabe aquilo que pode pos suir com segurança e as paixões têm restringidos seus movimentos parciais e contraditórios Tal restrição não é contrária às paixões se o fosse jamais poderia ser feita nem mantida É contrária apenas a seu movimento cego e impetuoso Em vez de abrir mão de nossos interes ses próprios ou do interesse de nossos amigos mais próximos abs tendonos dos bens alheios não há melhor meio de atender a ambos que por essa convenção porque é desse modo que mantemos a socie dade tão necessária a seu bemestar e subsistência como também aos nossos 10 Essa convenção não tem a natureza de uma promessa pois mes mo as promessas como veremos posteriormente dependem das con venções humanas A convenção é apenas um sentido geral do interesse comum que todos os membros da sociedade expressam mutuamente e que os leva a regular sua conduta segundo certas regras Observo que será de meu interesse deixar que outra pessoa conserve a posse de seus bens contanto que ela aja da mesma maneira em relação a mim Ela tem consciência de um interesse semelhante em regular sua con duta Quando esse sentido comum do interesse se exprime mutuamente e é conhecido por ambos produz uma resolução e um comportamento adequados E isso pode muito apropriadamente ser denominado uma convenção ou acordo entre nós embora sem a interposição de uma pro messa pois as ações de cada um de nós reportamse às do outro e são realizadas com base na suposição de que outras ações serão realiza das daquele lado Dois homens que estão a remar um mesmo barco fazemno por um acordo ou convenção embora nunca tenham pro metido nada um ao outro E o fato de que a regra concernente à esta bilidade da posse surge gradualmente adquirindo força por um len to progresso e por nossa repetida experiência dos inconvenientes de 530 Livro 3 Parte 2 Seção 2 sua transgressão não a torna menos derivada das convenções hu manas Ao contrário essa experiência nos assegura ainda mais que o sentido do interesse se tornou comum a todos os nossos compa nheiros dandonos confiança na regularidade futura de sua condu ta e é somente na expectativa dessa regularidade que está fundada nossa moderação e abstinência De maneira semelhante as diversas línguas se estabelecem gradualmente pelas convenções humanas sem nenhuma promessa E assim também o ouro e a prata tornam se as medidas correntes da troca sendo considerados um pagamen to suficiente por coisas que têm um valor até cem vezes maior 1 1 Uma vez firmada essa convenção sobre a abstinência dos bens alheios e uma vez todos tendo adquirido uma estabilidade em suas posses surgem imediatamente as idéias de justiça e de injustiça bem como as de propriedade direito e obrigação Estas últimas são absoluta mente ininteligíveis sem a compreensão das primeiras Nossa pro priedade não é senão aqueles bens cuja posse constante é estabelecida pelas leis da sociedade isto é pelas leis da justiça Portanto aqueles que utilizam as palavras propriedade direito ou obrigação sem ter antes explicado a origem da justiça ou que fazem uso daquelas para expli car esta última estão cometendo uma falácia grosseira mostrando se incapazes de raciocinar sobre um fundamento sólido A proprie dade de uma pessoa é algum objeto a ela relacionado essa relação não é natural mas moral e fundada na justiça É absurdo portanto imaginar que podemos ter uma idéia de propriedade sem compreen der completamente a natureza da justiça e mostrar sua origem no artifício e na invenção humana A origem da justiça explica a da pro priedade Ambas são geradas pelo mesmo artifício Como nosso pri meiro e mais natural sentimento moral está fundado na natureza de nossas paixões e dá preferência a nós e a nossos amigos sobre estra nhos é impossível que exista naturalmente algo como um direito ou uma propriedade estabelecida enquanto as paixões opostas dos ho mens os impelem em direções contrárias e não são restringidas por nenhuma convenção ou acordo 53 1 Tratado da natureza humana 1 2 Não há dúvida de que a convenção para a distinção das proprie dades e para a estabilidade da posse é a circunstância mais necessária para o estabelecimento da sociedade humana e após realizado o acor do para se fixar e observar essa regra resta pouco ou nada a fazer para o estabelecimento de uma perfeita harmonia ou concórdia Todas as outras paixões à parte esta do interesse são facilmente restringidas ou não têm conseqüências tão perniciosas A vaidade deve ser antes considerada uma paixão social constituindo um elo de união entre os homens A piedade e o amor devem ser vistos do mesmo modo Quanto à inveja e à vingança embora nocivas elas agem apenas es poradicamente e se dirigem contra pessoas determinadas a quem consideramos nossos superiores ou inimigos Apenas essa avidez de obter bens e posses para nós e para nossos amigos mais íntimos é insaciável infindável universal e diretamente destrutiva para a so ciedade Não há praticamente ninguém que não seja movido por ela e não há ninguém que não tenha razão para temêla quando ela atua sem restrições entregue a seus movimentos primeiros e mais na turais De modo geral portanto devemos considerar que as difi culdades para o estabelecimento da sociedade são maiores ou meno res segundo as dificuldades que temos para regular e restringir essa paixão 13 É certo que nenhum afeto da mente humana tem ao mesmo tempo a força suficiente e a direção adequada para contrabalançar a ganân cia e para tornar os homens bons membros da sociedade fazendo que se abstenham das posses alheias A benevolência para com os estra nhos é fraca demais para isso quanto às outras paixões elas antes inflamam essa avidez quando observamos que quanto mais possuí mos mais capacidade temos de satisfazer nossos apetites Não há uma só paixão portanto capaz de controlar a afeição motivada pelo inte resse exceto essa própria afeição por uma alteração de sua direção Ora tal alteração deve necessariamente ocorrer à menor reflexão pois é evidente que a paixão se satisfaz muito melhor se a contemos que se a deixamos agir livremente preservando a sociedade favorecemos 532 Livro 3 Parte 2 Seção 2 muito mais a aquisição de bens que quando reduzidos à condição solitária e desolada que deve se seguir à violência e a uma permissivi dade generalizada Por isso a questão de saber se a natureza humana é boa ou má não tem a menor importância para essa outra questão acerca da origem da sociedade e não há nada a considerar senão os graus de sagacidade ou estupidez dos homens Porque se a paixão do interesse próprio é considerada um vício ou uma virtude tanto faz já que apenas ela mesma pode se restringir Desse modo se for virtuo sa os homens se tornam sociais por sua virtude se for viciosa é seu vício que tem esse efeito 14 Ora uma vez que é pela instituição da regra para a estabilidade das posses que essa paixão se restringe a si própria se tal regra fosse mui to abstrusa e difícil de inventar a sociedade deveria ser considerada de certa maneira como acidental e efeito de muitas gerações Mas se cons tatarmos que nada pode ser mais simples e evidente que essa regra que todo pai para preservar a paz entre os filhos tem de estabelecêla e que esses primeiros rudimentos de justiça devem se aprimorar a cada dia conforme a sociedade vaise ampliando se tudo isso se mostrar evidente como certamente deve ser poderemos concluir que é abso lutamente impossível que os homens permaneçam um tempo significa tivo naquela condição selvagem que antecede a sociedade ao contrá rio seu primeiro estado e situação pode legitimamente ser considerado já social Entretanto isso não impede que os filósofos se assim o qui serem estendam seu raciocínio a um pretenso estado de natureza contanto que reconheçam tratarse de uma mera ficção filosófica que nunca teve e nunca poderia ter realidade A natureza humana se com põe de duas partes principais requeridas para todas as suas ações ou seja os afetos e o entendimento e certamente os movimentos ce gos daqueles sem a direção deste incapacitam o homem para a socie dade Mas podemos considerar separadamente os efeitos resultantes das operações de cada uma dessas duas partes que compõem a men te Podese conceder aos filósofos morais a mesma liberdade conce dida aos filósofos naturais estes últimos muito freqüentemente consi 533 Tratado da natureza humana deram um movimento qualquer como composto e consistindo em duas partes separadas embora ao mesmo tempo reconheçam que em si mesmo esse movimento é simples e indivisível 15 Esse estado de natureza portanto deve ser visto como uma sim ples ficção não muito diversa da ficção de uma Idade de Ouro inven tada pelos poetas com a única diferença que aquele é descrito como cheio de guerras violência e injustiça ao passo que esta nos é pinta da como a condição mais encantadora e pacífica que se pode imaginar A se acreditar nos poetas as estações naquela primeira idade da na tureza eram tão temperadas que os homens não necessitavam de roupas e casas para se proteger da violência do calor e do frio Os rios corriam cheios de vinho e leite os carvalhos davam mel e a natureza produzia espontaneamente as melhores iguarias Mas essas não eram as principais vantagens daquela época feliz Tormentas e tempesta des não eram inexistentes apenas na natureza também se desconhe ciam aquelas tempestades mais furiosas que hoje causam tamanha comoção e engendram tal confusão nos corações humanos Avareza ambição crueldade egoísmo nunca se ouvira falar de tais coisas As únicas emoções com que a mente humana estava familiarizada eram a afeição cordial a compaixão a simpatia Até mesmo a distinção entre meu e teu estava excluída do seio daquela feliz raça de mortais e com ela as noções mesmas de propriedade e obrigação justiça e injustiça 16 Sem dúvida tudo isso é vã ficção entretanto é uma ficção que merece nossa atenção porque nada é capaz de mostrar com mais evi dência a origem dessas virtudes que são o objeto de nossa investiga ção presente Já observei que a justiça nasce das convenções huma nas e que estas têm como objetivo remediar alguns inconvenientes procedentes da concorrência de certas qualidades da mente humana com a situação dos objetos externos Tais qualidades da mente são o egoísmo e a generosidade restrita e a situação dos objetos externos é a facilidade de sua troca juntamente com sua escassez em comparação com as ne cessidades e os desejos dos homens Mas embora os filósofos pos sam terse perdido em meio a essas especulações os poetas têm sido 534 Livro 3 Parte 2 Seção 2 guiados de maneira mais infalível por um certo gosto ou instinto co mum que em muitos tipos de raciocínios vai mais longe que qual quer arte ou filosofia que já conhecemos Logo perceberam que se todo homem tivesse uma afetuosa consideração pelos demais ou se a natureza satisfizesse abundantemente todas as nossas neces sidades e desejos os conflitos de interesse que a justiça pressu põe não poderiam mais ocorrer e não haveria mais ocasião para se estabelecerem aquelas distinções e limites de posse e propriedade que hoje se usam entre os homens Aumentai até um grau suficiente a benevolência dos homens ou a generosidade da natureza e torna reis a justiça inútil preenchendo seu lugar com virtudes muito mais nobres e bênçãos mais valiosas O egoísmo humano é atiçado pela escassez de nossos bens quando comparados às nossas necessi dades e é para restringir esse egoísmo que os homens se viram obrigados a se separar da comunidade e a distinguir entre seus pró prios bens e os dos outros 17 Mas não precisamos recorrer às ficções poéticas para aprender tudo isso Razões à parte podemos descobrir a mesma verdade pela experiência corrente e pela observação É fácil observar que a afeição cordial torna tudo comum entre amigos em especial pessoas casa das abrem mão de sua propriedade uma em favor da outra desconhe cendo a distinção entre meu e teu coisa tão necessária e entretanto causa de tamanha perturbação na sociedade humana Esse mesmo efeito decorre de qualquer alteração nas circunstâncias em que os ho mens vivem por exemplo quando algo é abundante o bastante para satisfazer a todos os desejos dos homens Nesse caso a distinção de propriedade desaparece inteiramente e tudo passa a ser comum a to dos Podemos observar essa situação com respeito ao ar e à água que entretanto são os mais valiosos dentre todos os objetos externos E podemos facilmente concluir que se os homens dispusessem de tudo com a mesma abundância ou se todos tivessem por todos a mesma afeição e terna consideração que têm por si mesmos a justiça e a injus tiça seriam igualmente desconhecidas dos homens 535 Tratado da natureza humana 1 8 Eis aqui portanto uma proposição que acredito pode ser tida como certa a justiça tira sua origem exclusivamente do egoísmo e da genero sidade restrita dos homens em conjunto com a escassez das provisões que a natureza ofereceu para suas necessidades Se olharmos para trás veremos que essa proposição confere uma força adicional a algumas das ob servações que já fizemos sobre este assunto 1 9 Primeiramente dela podemos concluir que um respeito pelo inte resse público ou uma benevolência forte e irrestrita não é nosso pri meiro motivo ou o motivo original para observar as regras da justiça já que se admite que se os homens fossem dotados de tal benevo lência essas regras jamais teriam sido imaginadas 20 Em segundo lugar podemos concluir do mesmo princípio que o sentido da justiça não se funda na razão isto é na descoberta de cer tas conexões e relações de idéias eternas imutáveis e universalmen te obrigatórias Pois como se reconhece que uma alteração tal como a acima mencionada no temperamento dos homens e nas circunstân cias em que se encontram alteraria completamente todos os nossos deveres e obrigações tornase necessário pelo sistema comum de que o sentido da virtude é derivado da razão mostrar a mudança que isso produziria nas relações e idéias É evidente porém que a única causa pela qual uma irrestrita generosidade humana e a perfeita abundância de todas as coisas destruiriam a própria idéia de justiça é que a tornariam inútil e por outro lado uma benevolência restrita e a condição de carência só dão origem àquela virtude por tornála ne cessária ao interesse público bem como ao interesse de todo indiví duo Foi portanto uma preocupação com nosso próprio interesse e com o interesse público que nos fez estabelecer as leis da justiça e nada pode ser mais certo que o fato de que não é uma relação de idéias o que nos dá essa preocupação mas nossas impressões e senti mentos sem os quais tudo na natureza nos seria inteiramente indife rente e incapaz de nos afetar por menos que fosse O sentido de justi ça portanto não se funda em nossas idéias mas em nossas impressões 536 Livro 3 Parte 2 Seção 2 21 Em terceiro lugar podemos ainda confirmar a proposição anterior de que as impressões que dão origem a esse sentido de justiça não são natu rais à mente do homem surgindo antes do artifício e das convenções humanas Porque como qualquer alteração considerável no temperamento e nas circunstâncias destrói igualmente a justiça e a injustiça e como tal alteração só tem esse efeito por alterar nosso interesse bem como o interesse público seguese que o estabelecimento inicial das regras da justiça depende desses diferentes interesses Mas se os homens perseguissem o interesse público naturalmente com uma sincera de voção nunca teriam sonhado em se impor restrições mútuas por meio dessas regras e se perseguissem seu próprio interesse sem nenhuma precaução mergulhariam diretamente em todo tipo de injustiça e vio lência Essas regras portanto são artificiais e buscam seu fim de uma maneira oblíqua e indireta o interesse que as engendra não é do tipo que poderia ser perseguido pelas paixões naturais e não artificiais dos homens 22 Para que esse ponto fique mais evidente consideremos que em bora as regras da justiça sejam estabelecidas simplesmente por inte resse sua conexão com o interesse é algo singular diferente do que se observa em outras ocasiões Um único ato de justiça é com fre qüência contrário ao interesse público se permanecesse isolado se não fosse seguido por outros atos poderia ser em si mesmo bastante prejudicial à sociedade Quando um homem de mérito e de disposi ção benfazeja devolve uma grande fortuna a um avarento ou a um fa nático traiçoeiro está agindo de maneira justa e louvável mas na rea lidade o público sofre com essa ação De maneira semelhante nem todo ato isolado de justiça considerado separadamente é favorável ao interesse privado é fácil conceber de que maneira um homem pode se empobrecer em virtude de um ato exemplarmente íntegro e pode ter razão para desejar que em relação àquele ato em particular as leis da justiça tivessem sido momentaneamente suspensas do universo Mas embora atos isolados de justiça possam ser contrários ao interes se público ou privado certamente a totalidade do plano ou esquema é 53 7 Tratado da natureza humana altamente propícia e mesmo absolutamente necessária tanto à ma nutenção da sociedade quanto ao bemestar de cada indivíduo É impossível separar o bem do mal A propriedade tem de ser estável e determinada por regras gerais Ainda que em um caso isolado o público em geral possa sofrer esse mal momentâneo é amplamente compensado pela firme execução da regra e pela paz e ordem que esta estabelece na sociedade E mesmo cada indivíduo ao fazer as contas deverá perceber que saiu ganhando pois sem justiça a sociedade imediatamente se dissolveria e todos cairiam naquela condição sel vagem e solitária que é infinitamente pior que a pior situação que se possa supor na sociedade Portanto quando os homens já adquiri ram experiência bastante para observar que seja qual for a conse qüência de um ato singular de justiça realizado por uma única pes soa a totalidade do sistema de ações em que concorre toda a sociedade é infinitamente vantajosa para o conjunto e para cada parte quando isso acontece a justiça e a propriedade não tardam a se estabelecer Cada membro da sociedade é sensível a esse interesse Cada um ex pressa esse sentimento sense para seus companheiros juntamente com a resolução que tomou de conformar suas ações com ele com a condição de que os outros façam o mesmo Nada mais é preciso para induzir qualquer um deles a realizar um ato de justiça à primeira opor tunidade Esse ato se torna um exemplo para os demais E assim a justiça se estabelece por uma espécie de convenção ou acordo isto é por um sentido do interesse que se supõe comum a todos e em que cada ato é realizado na expectativa de que as outras pessoas agirão de maneira semelhante Sem essa convenção ninguém sequer teria so nhado que havia uma virtude como a justiça ou teria sido levado a conformar suas ações com ela Considerandose um ato singular mi nha justiça pode ser perniciosa sob todos os aspectos é apenas pela suposição de que os outros devem imitar meu exemplo que posso ser levado a abraçar essa virtude pois nada a não ser essa combinação pode tornar a justiça vantajosa ou me dar motivos para me confor mar com suas regras 538 Livro 3 Parte 2 Seção 2 23 Chegamos agora à segunda questão que propusemos por que vin culamos a idéia de virtude à de justiça e a de vício à de injustiça Essa ques tão não irá nos deter por muito tempo após os princípios que já esta belecemos Tudo que sobre ela podemos dizer neste momento será concluído em poucas palavras para uma explicação mais satisfatória o leitor deverá aguardar até chegarmos à terceira parte deste livro A obrigação natural da justiça ou seja o interesse já foi explicada em sua totalidade quanto à obrigação moral ou sentimento do que é certo ou errado será preciso primeiramente examinar as virtudes naturais antes que possamos fornecer uma explicação completa e satisfatória 24 Quando os homens descobrem pela experiência que o livre exer cício de seu egoísmo e de sua generosidade limitada os torna total mente incapacitados para a sociedade e ao mesmo tempo observam que a sociedade é necessária para a satisfação dessas próprias paixões são naturalmente levados a se submeter à restrição de regras que pos sam tornar seu comércio mais seguro e cômodo Portanto inicialmente eles são levados a se impor e a observar essas regras tanto em geral como em cada caso particular apenas por interesse e esse motivo quando da formação da sociedade é suficientemente forte e impera tivo Mas quando a sociedade cresce e se torna numerosa transfor mandose em uma tribo ou nação esse interesse se faz mais remoto os homens não percebem tão facilmente como ocorria em uma socie dade mais limitada e reduzida que cada violação dessas regras tem como conseqüência a desordem e a confusão Entretanto embora em nossas próprias ações possamos com freqüência perder de vista esse interesse que temos na manutenção da ordem e embora possamos seguir um interesse presente e menos importante nunca deixamos de observar como somos prejudicados direta ou indiretamente pela injustiça alheia pois nesse caso não somos cegados pela paixão nem predispostos por uma tentação contrária Mais ainda mesmo quan do a injustiça é tão distante que não afeta nosso interesse ela ainda nos desagrada pois a consideramos prejudicial à sociedade huma na e perniciosa para todas as pessoas que se aproximam do culpado 539 Tratado da natureza humana de têla cometido Participamos por simpatia do desprazer dessas pes soas e como tudo que produz um desprazer nas ações humanas exa minado de maneira geral é denominado vício e tudo que produz sa tisfação da mesma maneira é dito virtude essa é a razão por que o sentido do bem e do mal morais resulta da justiça e da injustiça E embora no caso presente esse sentido seja derivado unicamente da contemplação das ações alheias não deixamos de estendêlo a nos sas próprias ações A regra geral ultrapassa os casos que lhe deram origem ao mesmo tempo simpatizamos naturalmente com os senti mentos que as outras pessoas têm sobre nós Assim o interesse pró prio é o motivo original para o estabelecimento da justiça mas uma simpatia com o interesse público é a fonte da aprovação moral que acompanha essa virtude Este último princípio da simpatia é fraco demais para controlar nossas paixões mas tem força suficiente para influenciar nosso gosto e para nos dar os sentimentos de aprovação ou de condenação 25 Embora esse progresso dos sentimentos seja natural e até neces sário ele certamente se vê favorecido pelo artifício dos políticos que com o intuito de governar mais facilmente os homens e preservar a paz na sociedade humana buscaram produzir um apreço pela justiça e uma aversão pela injustiça Sem dúvida esse artifício deve surtir efeito É evidente porém que a questão foi levada longe demais por certos moralistas que parecem ter empregado todos os seus esfor ços para extirpar da humanidade qualquer sentido de virtude Um ar tifício dos políticos pode ajudar a natureza a produzir esses sentimen tos que ela nos sugere e em algumas ocasiões pode até produzir sozinho uma aprovação ou apreço por uma ação particular mas é impossível que seja a única causa da distinção que fazemos entre o vício e a virtude Pois se a natureza não nos ajudasse quanto a isso seria em vão que os políticos falariam em honroso ou desonroso louvá vel ou condenável Essas palavras seriam inteiramente ininteligíveis não estariam vinculadas a nenhuma idéia como se pertencessem a uma lín 540 Livro 3 Parte 2 Seção 2 gua completamente desconhecida por nós O máximo que os políti cos podem fazer é estender os sentimentos naturais para além de seus limites originais mas a natureza ainda tem de fornecer a matériapri ma dandonos alguma noção das distinções morais 26 Assim como o elogio e a condenação pública aumentam nosso apreço pela justiça assim também a educação e a instrução privada contribuem para o mesmo efeito Os pais observam facilmente que uma pessoa é tão mais útil para si mesma e para os demais quanto maior for o grau de probidade e honra de que seja dotada e que esses princípios têm mais força quando o costume e a educação auxiliam o interesse e a reflexão por essa razão são levados a inculcar em seus filhos desde a mais tenra infância os princípios da probidade e ensinamlhes a ver a observância das regras que mantêm a socie dade como algo honroso e louvável e sua violação como vil e des prezível Desse modo os sentimentos de honra podem criar raízes em suas mentes delicadas adquirindo uma tal firmeza e solidez que não ficam muito aquém dos princípios mais essenciais à nossa natureza emais profundamente enraizados em nossa constituição interna 27 Algo que também contribui para aumentar a solidez desses sen timentos é o interesse por nossa reputação uma vez firmemente estabelecida entre os homens a opinião de que um mérito ou demérito acompanha a justiça ou a injustiça Nada nos toca mais de perto que nossa reputação e esta depende sobretudo de nossa conduta em relação à propriedade alheia Por essa razão todos os que tenham algum cui dado com sua reputação ou que pretendam viver em bons termos com a humanidade devem fixar para si mesmos como uma lei inviolável que nunca seja qual for a tentação irão violar esses princípios que são essenciais a um homem de probidade e honradez 28 Farei apenas mais uma observação antes de abandonar este tema embora eu afirme que no estado de natureza ou seja naquele estado imaginário anterior à sociedade não havia nem justiça nem injusti ça não afirmo que em tal estado era permitido violar a propriedade 541 Tratado da natureza humana alheia Sustento apenas que não havia algo como a propriedade e con seqüentemente não poderia haver algo como justiça ou injustiça Te rei a oportunidade de fazer uma reflexão semelhante a respeito das promessas quando tratar desse assunto e espero que essa reflexão quan do devidamente considerada seja suficiente para eliminar qualquer aver são pelas opiniões precedentes a respeito da justiça e da injustiça Seção 3 Das regras que determinam a propriedade 1 Embora a instituição da regra concernente à estabilidade da pos se seja não apenas útil mas absolutamente necessária à sociedade hu mana não poderá servir a propósito nenhum enquanto permanecer em termos tão gerais Devese estabelecer algum método que nos per mita distinguir que bens particulares devem ser atribuídos a cada pes soa particular ao passo que o resto da humanidade fica excluído de sua posse e usufruto Nossa próxima tarefa portanto deve ser des cobrir as razões que modificam essa regra geral adaptandoa ao uso e à prática comum dos homens 2 É óbvio que essas razões não são derivadas de uma utilidade ou vantagem que uma pessoa particular ou o público em geral pudessem extrair desse usufruto de bens particulares e a qual seria maior que a resultante de sua posse por alguma outra pessoa Sem dúvida seria bem melhor que todos possuíssem tudo que lhes fosse mais adequado e apropriado para seu uso Mas além de essa relação de adequação po der ser comum a várias pessoas ao mesmo tempo ela está sujeita a tantas controvérsias as quais os homens julgam de maneira tão par cial e passional que uma regra tão vaga e incerta seria absolutamente incompatível com a paz da sociedade humana A convenção sobre a estabilidade das posses é feita justamente para eliminar qualquer oca sião de discórdia e polêmica e essa finalidade nunca seria alcançada se nos fosse permitido aplicar essa regra diferentemente em cada caso de acordo com a utilidade particular que pudéssemos descobrir em 542 Livro 3 Parte 2 Seção 3 tal aplicação A justiça em suas decisões nunca leva em conta a ade quação ou a inadequação dos objetos às pessoas particulares sendo ao contrário conduzida por considerações mais amplas Quer um ho mem seja generoso quer seja avaro é igualmente contemplado por ela obtendo com a mesma facilidade uma decisão a seu favor mes mo quanto a algo que lhe é inteiramente inútil 3 Seguese portanto que a regra geral de que a posse deve ser estável não se aplica por meio de juízos particulares mas mediante outras regras gerais que devem se estender a toda a sociedade sem se dei xar influenciar nem pelo despeito nem pelo favor Como ilustração proponho o seguinte exemplo Primeiramente considero os homens em sua condição selvagem e solitária e suponho que sensíveis aos sofrimentos decorrentes desse estado e prevendo as vantagens que resultariam da sociedade eles busquem a companhia uns dos outros oferecendo sua mútua proteção e assistência Suponho também que esses homens são dotados de tal sagacidade que percebem imediata mente que o maior impedimento a esse projeto de sociedade e parce ria está na avidez e no egoísmo de seu temperamento natural para remediar tal coisa formam uma convenção para a estabilidade da posse e para sua mútua restrição e abstenção Bem sei que esse modo de proceder não é inteiramente natural mas estou aqui apenas su pondo que essas reflexões se formam de uma só vez quando na ver dade elas nascem pouco a pouco imperceptivelmente Além disso é bem possível haver diversas pessoas que tendo sido separadas por diferentes acidentes das sociedades a que antes pertenciam vejam se obrigadas a formar entre si uma nova sociedade e neste caso sua situação é exatamente como a que descrevi acima 4 É evidente que sua primeira dificuldade nessa situação após a convenção geral para o estabelecimento da sociedade e para a cons tância da posse é saber como separar seus bens e designar a cada um sua porção particular de que deverá usufruir inalteradamente dali em diante Mas essa dificuldade não os deterá por muito tempo Imedia tamente deve ocorrer a esses homens como o expediente mais natu 543 Tratado da natureza humana ral que cada qual continue a gozar daquilo que possui no presente e que a propriedade ou posse constante deve se unir à posse imediata O costume não tem apenas o efeito de nos acomodar às coisas de que usufruímos por muito tempo gera também em nós uma afeição por elas de modo que acabamos preferindo essas coisas a outros obje tos talvez mais valiosos porém menos conhecidos Aquilo que há muito está sob nossos olhos e tem sido freqüentemente usado em nosso benefício é isso que mais relutamos em abandonar mas pode mos facilmente viver sem os bens de que nunca usufruímos e a que não estamos acostumados É evidente portanto que os homens as sentiriam facilmente a esse expediente ou seja que todos continuem a gozar daquilo que possuem no presente e é por essa razão que estariam tão naturalmente de acordo com essa solução1 Nenhuma questão filosófica é tão difícil quanto estabelecer dentre um grande número de causas que se apresentam para um mesmo fenômeno qual a principal e predominan te Raramente existe um argumento preciso o bastante para determinar nossa escolha e temos de nos contentar em nos guiar por uma espécie de gosto ou inclinação baseado na analogia e em uma comparação com exemplos similares Assim no caso presente não há dúvida de que existem motivos de interesse público para a maioria das regras que deter minam a propriedade mesmo assim suspeito que essas regras são fixadas sobretudo pela imaginação ou seja pelas propriedades mais frívolas de nosso pensamento e concepção Continuarei a explicar essas causas deixando que o próprio leitor se decida entre as deri vadas da utilidade pública ou as derivadas da imaginação Começaremos com o direito do possuidor atual 2 Uma qualidade que já observei Livro 1 Parte 4 Seção S na natureza humana é que quando dois objetos apresentam uma relação estreita a mente tende a atribuirlhes uma relação adicional para completar a união e essa inclinação é tão forte que freqüentemente nos leva a cometer erros como o da conjunção entre pensamento e matéria se descobri mos que estes podem servir a tal propósito Muitas de nossas impressões são incapazes de ocupar um lugar ou ter uma posição no espaço entretanto supomos que essas mesmas impressões têm uma conjunção local com as impressões da visão e do tato simplesmente porque apresentam uma conjunção causal e já estão unidas na imaginação Portanto uma vez que para completar uma união podemos fantasiar uma nova relação mesmo absurda é fácil imaginar que se houver alguma relação que dependa da mente esta irá facilmente conjugála com qualquer relação anterior unindo por um novo laço aqueles objetos que já têm uma união na fantasia Assim por exemplo quando arrumamos determinados cor pos nunca deixamos de pôr os semelhantes em contigüidade uns com os outros ou ao menos em posições correspondentes porque sentimos uma satisfação em juntar a relação de conti güidade à de semelhança ou a semelhança de situação à de qualidades Isso se explica facil mente pelas conhecidas propriedades da natureza humana Quando a mente se vê deter minada a juntar certos objetos mas permanece indeterminada quanto à escolha dos objetos 544 Livro 3 Parte 2 Seção 3 5 Podemos observar no entanto que embora a regra que atribui a propriedade ao possuidor atual seja natural e por isso mesmo útil sua utilidade não ultrapassa a formação inicial da sociedade e nada seria mais pernicioso que sua observância constante que levaria à ex clusão da restituição bem como à autorização e mesmo à recompen sa de todo tipo de injustiça Portanto devemos buscar outras circuns tâncias que possam dar origem à propriedade após a sociedade já terse estabelecido E entre essas considero as quatro seguintes como as mais importantes a ocupação o usucapião a acessão e a sucessão Exa minaremos brevemente cada uma delas começando pela ocupação 6 A posse de todo bem externo é cambiável e incerta o que consti tui um dos maiores impedimentos ao estabelecimento da sociedade sendo a razão pela qual por um acordo geral expresso ou tácito os homens impõem restrições uns aos outros por meio daquilo que hoje chamamos de regras de justiça e eqüidade A penúria da condição que antecede essa restrição é a razão de nos submetermos a esse remédio o mais rapidamente possível e isso por sua vez permite que expli quemos facilmente por que vinculamos a idéia de propriedade à de primeira posse ou ocupação Os homens relutam em deixar sua pro priedade em suspenso mesmo por um curto período ou em deixar o menor espaço à violência e à desordem A isso podemos acrescentar que a primeira posse sempre atrai mais a atenção caso a desprezás particulares é natural que volte seu olhar para aqueles que estão relacionados Estes já estão unidos pela mente apresentamse ao mesmo tempo à concepção e sua conjunção não precisa de uma nova razão ao contrário seria preciso uma razão muito poderosa para nos fazer desprezar essa afinidade natural Mais adiante quando tratarmos da beleza te remos ocasião de explicar esse fato de maneira mais completa Por ora podemos nos sa tisfazer com a observação de que o mesmo amor pela ordem e pela uniformidade que nos faz arrumar os livros em uma biblioteca e as cadeiras em uma sala contribui para a forma ção da sociedade e para o bemestar da humanidade ao modificar a regra geral concernente à estabilidade da posse Como a propriedade estabelece uma relação entre uma pessoa e um objeto é natural fundála em alguma relação anterior e como a propriedade não é senão a posse constante assegurada pelas leis sociais é natural acrescentála à posse atual que é uma relação semelhante pois isso também tem sua influência Se é natural conju gar todo tipo de relação é mais natural ainda juntar relações que são semelhantes e estão elas próprias relacionadas 545 Tratado da natureza humana semos não haveria sombra de razão para atribuir a propriedade a uma posse subseqüente2 7 Resta apenas determinar com exatidão o que se quer dizer com posse e isso não é tão fácil quanto se pode imaginar à primeira vista Dizemos estar de posse de alguma coisa não apenas quando a tocamos imediatamente mas também quando estamos situados de tal forma em relação a ela que temos o poder de usála movêla alterála ou destruíla conforme nosso agrado ou conveniência presente Essa relação então é uma espécie de causa e efeito e como a propriedade não é mais que uma posse estável derivada das regras de justiça ou das convenções humanas deve ser considerada uma relação da mesma espécie Mas aqui cabe observar que como o poder de usar um obje to se torna mais ou menos certo segundo sejam mais ou menos pro váveis as interrupções que possamos sofrer e como essa probabili dade pode aumentar gradativa e imperceptivelmente em muitos casos é impossível determinar quando a posse começa ou termina e não há nenhum critério certo que nos permita resolver tais controvérsias Se um javali cai em nossa armadilha considerase que está em nossa posse quando é impossível que escape Mas o que queremos dizer com impossível Como separar essa impossibilidade de uma impro babilidade E como distinguir exatamente esta última de uma probabi lidade Como marcar os limites precisos de uma e de outra e qual o critério que nos permite decidir todas as disputas que possam surgir e que como vemos na experiência surgem de fato e com freqüência sobre essa questão3 2 Alguns filósofos explicam o direito de ocupação dizendo que cada pessoa tem a proprie dade de seu próprio trabalho e quando a pessoa une esse trabalho a algo isso lhe dá a propriedade do conjunto Mas 1 Há diversos tipos de ocupação em que não se pode di zer que unimos nosso trabalho ao objeto adquirido por exemplo quando possuímos um prado porque nosso gado pasta ali 2 Essa explicação recorre à acessão o que constitui um desvio desnecessário 3 Somente em sentido figurado se pode dizer que unimos nos so trabalho a algo Rigorosamente falando o trabalho apenas altera o objeto o que esta belece uma relação entre este e nós e é daí que surge a propriedade de acordo com os princípios anteriores 3 Se buscarmos a solução dessas dificuldades na razão e no interesse público nunca a encon traremos e se a buscarmos na imaginação é evidente que as qualidades que agem sobre 546 Livro 3 Parte 2 Seção 3 essa faculdade se misturam tão gradativa e tão insensivelmente umas com as outras que é impossível estabelecer seus limites ou suas fronteiras precisas As dificuldades quanto a esse ponto devem crescer quando consideramos que nosso juízo se altera de maneira bastante perceptível segundo o assumo e que o mesmo poder e a mesma proximidade é considerada posse em um caso mas não em outro Uma pessoa que caçou uma lebre até a exaustão consideraria uma injustiça que alguém se adiantasse para pegar sua presa Mas essa mesma pessoa dirigindose para colher uma maçã que está ao seu alcance não tem razão em reclamar se outra pessoa mais alerta passa à sua frente e se apossa da maçã Qual a razão dessa diferença senão que a imobilidade não sendo algo natural à lebre mas sim efeito do esforço estabelece naquele caso uma relação mais forte com o caçador que está ausente no outro caso 2 Vêse aqui portanto que freqüentemente um poder certo e infalível de usufruir de algum objeto não produz a propriedade se não houver um toque ou alguma outra relação sensível Além disso observo que uma relação sensível sem um poder presente às vezes é suficiente para dar direito a um certo objeto A visão de uma coisa ao contrário rara mente é uma relação considerável e só é tida como tal quando o objeto está oculto ou é muito obscuro nesse caso constatamos que sua mera visão confere propriedade confor me à máxima de que mesmo um continente inteiro pertence à primeira nação que o descobriu Note se porém que tanto no caso da descoberta quanto no da posse aquele que primeiro des cobre ou possui o objeto tem de juntar à relação uma intenção de se tornar proprietário de outro modo a relação não terá efeito porque a conexão em nossa fantasia entre a pro priedade e a relação não é tão grande precisando ser auxiliada por essa intenção 3 Por todas essas circunstâncias é fácil ver quão complicadas podem se tornar várias querelas acerca da aquisição de propriedade por ocupação o menor esforço de pensamento deve nos proporcionar casos que não comportam uma decisão racional Se preferirmos exemplos reais em lugar de exemplos hipotéticos poderemos considerar o seguinte que se encontra em quase todos os autores que tratam do direito natural 4 Dois grupos de colonos gregos deixando seu país natal em busca de novos assenta mentos receberam a informação de que uma cidade próxima havia sido abandonada por seus habitantes Para confirmar a verdade desse relato enviaram imediatamente dois men sageiros um de cada colônia estes ao se aproximarem do local descobriram que a infor mação era verdadeira e iniciaram uma corrida com a intenção de tomar posse da cidade cada qual em nome de seus conterrâneos Um desses mensageiros vendo que não era tão veloz quanto o outro atirou uma lança contra os portões da cidade e teve a sorte de cravá la antes que seu companheiro ali chegasse Isso produziu uma discussão entre as duas colônias para saber qual das duas era a proprietária da cidade deserta e essa discussão permanece até hoje entre os filósofos De minha parte penso que é impossível resolver a controvérsia pois toda a questão depende da fantasia que neste caso não possui um cri tério preciso ou determinado com base no qual possa formular sua sentença 5 Para que isso fique evidente consideremos que se essas duas pessoas tivessem sido simplesmente membros das colônias e não mensageiros ou delegados suas ações seriam irrelevantes pois nesse caso sua relação com as colônias seria fraca e imperfeita Acres centese que nada as obrigava a correr em direção aos portões em vez de em direção aos muros ou a qualquer outra parte da cidade senão o fato de que os portões sendo a parte mais óbvia e fácil de se notar são mais satisfatórios para a fantasia podendo ser tomados pelo conjunto da cidade vemos a mesma coisa nos poetas que utilizam freqüentemente portões como imagem e metáfora Além disso consideremos que o fato de um dos men sageiros tocar ou ter um contato direto com os portões não constitui propriamente pos se não mais que o ato de neles cravar uma lança apenas constitui uma relação Ora no outro caso também existe uma relação igualmente evidente embora talvez não tão forte Qual dessas relações portanto confere um direito e uma propriedade ou se alguma delas é suficiente para tanto deixo essa decisão a cabo de quem é mais sagaz que eu 547 Tratado da natureza humana 8 Disputas como essas surgem porém não apenas quanto à exis tência real da propriedade e da posse mas também quanto a sua extensão e freqüentemente não podem resolvidas ou podem sêlo unicamente pela faculdade da imaginação Alguém que desembarca na praia de uma pequena ilha deserta e não cultivada é considerado seu possuidor desde o primeiro momento adquirindo a proprieda de de toda a ilha porque o objeto nesse caso é limitado e circuns crito na fantasia sendo ao mesmo tempo proporcional ao novo pos suidor Mas se a mesma pessoa aportasse numa ilha deserta que fosse grande como a GrãBretanha sua propriedade não se estenderia além de sua posse imediata já um grande número de colonos seriam considerados proprietários de toda a ilha desde o momento de seu desembarque 9 Freqüentemente entretanto o título decorrente da primeira posse fica obscurecido com o tempo e muitas controvérsias que surgem a esse respeito são impossíveis de resolver Nesse caso sobrevém na turalmente a posse prolongada ou usucapião que dá à pessoa uma propriedade suficiente sobre o bem de que ela já desfruta A natureza da sociedade humana não admite uma precisão muito grande e nem sempre podemos retroceder até a origem das coisas para determinar sua condição presente Qualquer intervalo de tempo considerável põe os objetos a uma tal distância que eles parecem perder sua realidade exercendo tão pouca influência sobre a mente como se jamais hou vessem existido O direito de um homem claro e certo no presente parecerá obscuro e duvidoso dali a cinqüenta anos mesmo que os fatos em que está fundado sejam provados com a maior evidência e certe za Os mesmos fatos não têm a mesma influência após um intervalo de tempo tão longo Essa observação pode ser aceita como um argu mento convincente em favor de nossa doutrina precedente a respeito da propriedade e da justiça A posse durante um longo período de tempo confere um direito sobre um objeto qualquer Mas o certo é que embora tudo se produza no tempo nada de real se produz pelo tempo por isso como a propriedade é produzida pelo tempo ela não 548 Livro 3 Parte 2 Seção 3 é algo real nos objetos mas fruto dos sentimentos a única coisa so bre a qual o tempo tem alguma influência4 10 Adquirimos a propriedade sobre os objetos por acessão quando estão estreitamente conectados com outros objetos que já são de nossa propriedade e ao mesmo tempo são inferiores a estes Assim por exemplo os frutos de nosso jardim as crias de nosso gado e o traba lho de nossos escravos todos são considerados nossa propriedade antes mesmo de os possuirmos Quando os objetos estão conectados na imaginação tendemos a pôlos em pé de igualdade e comumente supomos que são dotados das mesmas qualidades Passamos facil mente de um ao outro sem fazer diferença em nossos juízos a seu respeito sobretudo se os últimos forem inferiores aos primeiros 5 4 A posse atual é claramente uma relação entre uma pessoa e um objeto mas não é suficiente para contrabalançar a relação de primeira posse a menos que seja longa e ininterrupta Nesse caso a relação se fortalece do lado da posse atual pela extensão do tempo e se enfraquece do lado da primeira posse pela distância Essa mudança na relação produz uma mudança subseqüente na propriedade 5 Essa fonte de propriedade só pode ser explicada pela imaginação e podese afirmar que aqui as causas são simples Passaremos a explicálas mais detalhadamente ilustrandoas por meio de exemplos extraídos da experiência e da vida corrente 2 Observamos acima que a mente tem uma propensão natural a juntar relações sobre tudo relações semelhantes encontrando uma espécie de adequação e uniformidade nes sa união É dessa propensão que derivam as leis do direito natural que estabelecem que quando da formação inicial da sociedade a propriedade segue sempre a posse atual e em seguida decorre da primeira posse ou de uma posse prolongada Ora podemos facilmente observar que a relação não se limita a um único grau partindo de um objeto relacionado conosco adqui rimos uma relação com qualquer outro objeto que seja relacionado com ele e assim por diante até o pensamento perder o fio da meada em virtude da progressão demasiadamente longa Embora a relação possa se enfraquecer a cada recuo ela não é imediatamente destruída com freqüência conecta dois objetos por meio de um objeto intermediário re lacionado aos dois Esse princípio tem tanta força que gera o direito de acessão fazendo nos adquirir a propriedade não apenas dos objetos que possuímos imediatamente mas também dos que estão estreitamente conectados a eles 3 Suponhamos que um alemão um francês e um espanhol sic NT entrem em uma sala onde sobre a mesa estão colocadas três garrafas de vinho do Reno da Borgonha e do Porto e suponhamos que comecem a discutir sobre como distribuílas Para mostrar sua imparcialidade uma pessoa escolhida como árbitro iria naturalmente dar a cada um o pro duto de seu próprio país e isso por um princípio que em certa medida é a fonte das leis do direito natural que atribuem a propriedade à ocupação ao usucapião e à acessão 4 Em todos esses casos particularmente o da acessão existe primeiro uma união natu ral entre a idéia da pessoa e a do objeto e em seguida uma nova união moral produzida pelo direito ou propriedade que conferimos à pessoa Mas aqui ocorre uma dificuldade 549 Tratado da natureza humana que merece nossa atenção e que poderá nos dar a oportunidade de testar o método sin gular de raciocínio que utilizamos para este assunto Já observei que a imaginação passa com mais facilidade do pequeno ao grande que do grande ao pequeno sendo a transição de idéias sempre mais fácil e suave no primeiro caso que no segundo Ora como o direito de acessão surge da facilidade com que se dá a transição de idéias que conecta os objetos relacionados seria natural imaginar que esse direito fosse tão mais forte quanto mais fá cil a transição de idéias Podese pensar portanto que quando adquirimos a propriedade de um objeto pequeno consideramos facilmente qualquer objeto grande relacionado ao primeiro como uma acessão e pertencente ao proprietário do pequeno pois a transição nesse caso é muito fácil já que vai do objeto pequeno ao grande devendo conectálos da maneira mais estreita Mas de fato constatamos que nunca é assim O domínio da Grã Bretanha parece trazer consigo o domínio das Órcadas das Hébridas da Ilha de Man e da Ilha de Wight mas a autoridade sobre essas ilhas menores não implica naturalmente ne nhum direito sobre a GrãBretanha Em suma um objeto pequeno segue naturalmente um objeto grande como sua acessão mas nunca supomos que um objeto grande perten ça ao proprietário de um objeto pequeno a ele relacionado simplesmente por causa dessa propriedade e relação Entretanto neste último caso a transição entre as idéias é mais suave porque vai do proprietário ao objeto pequeno que é sua propriedade e do objeto pequeno ao grande ao passo que no primeiro caso ela vai rio proprietário ao objeto grande e deste ao objeto pequeno Podese pensar portanto que esses fenômenos cons tituem objeções à hipótese anterior de que a atribuição de propriedade à acessão não é senão um efeito das relações de idéias bem como da transição suave da imaginação 5 Para eliminarmos essa objeção basta considerarmos a agilidade e a instabilidade da imaginação que continuamente considera seus objetos de diferentes pontos de vista Quando atribuímos a alguém a propriedade sobre dois objetos nem sempre passamos da pessoa a um dos objetos e deste ao objeto relacionado Como os dois objetos aqui devem ser considerados propriedades dessa pessoa tendemos a reunilos e vêlos pela mesma pers pectiva Suponhamos portanto dois objetos relacionados um grande e um pequeno se uma pessoa tiver uma forte relação com o objeto grande também terá uma forte relação com o conjunto dos dois objetos já que sua relação é com a parte principal Se ao contrá rio só tiver relação com o objeto pequeno não terá uma forte relação com os dois ao mesmo tempo pois sua relação é só com a parte mais insignificante que não é capaz de nos afetar em um grau considerável quando consideramos o conjunto Essa é a razão por que objetos pequenos se tornam acessões de objetos grandes mas não o contrário 6 É opinião geral de filósofos e juristas que o mar não pode se tornar propriedade de nenhuma nação isso porque é impossível dele se apossar ou com ele formar uma relação distinta o bastante para fundamentar a propriedade Quando essa razão desaparece a pro priedade imediatamente tem lugar Assim os mais ferrenhos defensores da liberdade dos mares admitem sem exceção que esteiros e baías pertencem naturalmente como acessão aos proprietários do continente circundante Esses acidentes propriamente falando não têm mais vínculo ou união com a terra que o Oceano Pacífico poderia ter mas como estão uni dos na fantasia e ao mesmo tempo são menores são naturalmente vistos como acessões 7 A propriedade dos rios pelas leis da maioria das nações e pelo feitio natural de nosso pensamento é atribuída aos proprietários de suas margens excetuandose rios longos como o Reno ou o Danúbio que parecem à imaginação extensos demais para se seguirem co mo acessões à propriedade dos campos vizinhos Entretanto mesmo esses rios são conside rados propriedades da nação por cujos domínios passam pois a idéia de uma nação é de um tamanho adequado ao dos rios mantendo com eles essa relação na fantasia 8 Os juristas dizem que as acessões às terras que margeiam os rios seguem a propriedade dessas terras com a condição de que sejam formadas pelo que chamam de aluvião isto é de maneira insensível e imperceptível pois essas circunstâncias auxiliam muito a imagi nação a realizar a conjunção Quando uma parte considerável é arrastada de uma só vez 550 Livro 3 Parte 2 Seção 3 de uma margem não se torna propriedade daquele em cuja terra vai parar até que se una de fato a essa terra até que as árvores ou plantas tenham deitado suas raízes em ambas An tes que isso aconteça a imaginação não as une suficientemente 9 Há outros casos que se assemelham um pouco a esse caso da acessão mas que no fundo são consideravelmente diferentes merecendo por isso nossa atenção Um deles é a conjunção das propriedades de diferentes pessoas de maneira a não mais admitir sepa ração A questão que se coloca é a de saber a quem deve pertencer o conjunto após a união 10 Quando essa conjunção se dá de modo a admitir uma divisão mas não separação a deci são é natural e fácil Devese supor que toda a massa é comum aos proprietários das di versas partes e em seguida dividila proporcionalmente a essas partes Mas aqui não pos so deixar de mencionar uma notável sutileza do direito romano que distingue entre a confusão e a comistão Confusão é uma união de dois corpos como dois líquidos diferentes em que as partes se tornam absolutamente indistinguíveis Comistão é a mistura de dois corpos tais como dois alqueires de trigo em que as partes permanecem separadas de uma ma neira evidente e visível Neste último caso a imaginação não descobre uma união tão perfeita quanto no primeiro sendo ao contrário capaz de determinar e de preservar uma idéia distinta da propriedade de cada uma delas por essa razão o direito civil embora estabeleça uma perfeita comunhão no caso da confusão seguida de uma divisão proporcio nal supõe no caso da comistão que cada proprietário mantém um direito distinto embo ra a necessidade possa acabar forçandoos a se submeter à mesma divisão 1 1 Quod si frumentum Titii frumento tuo mistum fuerit siquidem ex voluntate vestra commune est quia singula corpora id est singula grana quce cujusque propria fuerunt ex consensu vestro communicata sunt Quod si casu id mistum fuerit vel Titius miscuerit sine tua voluntate non videtur commune esse quia singula corpora in sua substantia durant Sed nec magis istis casibus commune sit frumentum quam grex intelligitur esse communis si pecora Titii tuis pecoribus mista fuerint Sed si ab alterutro vestrúm totum id frumentum retineatur in rem quidem actio pro modo frumenti cujusque competit Arbítrio autem judieis continetur ut ipse cestimet quale cujusque frumentum fuerit Inst Lib II Tit 1 28 12 Se propriedades de duas pessoas estão unidas de tal maneira que não admitem nem divisão nem separação como quando uma constrói uma casa no terreno da outra o con junto nesse caso deve pertencer a apenas um dos proprietários E aqui afirmo que é na tural conceberse que pertence ao proprietário da parte mais importante Porque embora o objeto composto possa ter uma relação com as duas pessoas diferentes conduzindo nosso olhar a ambas ao mesmo tempo é sobretudo a parte mais importante que capta nossa atenção e por meio da união estreita arrasta consigo a inferior por isso o conjunto pas sa a ter uma relação com o proprietário dessa parte sendo visto como sua propriedade A única dificuldade é saber qual parte desejamos chamar de mais importante e mais atraen te para a imaginação 1 3 Essa qualidade depende de diversas circunstâncias diferentes que têm pouca cone xão entre si Uma parte de um objeto composto pode se tornar mais importante que a outra porque é mais constante e duradoura porque tem mais valor porque é mais evidente e fácil de notar porque é mais extensa ou porque sua existência é mais separada e inde pendente É fácil conceber que como essas circunstâncias podem ser reunidas e opostas de todas as maneiras e em todos os graus imagináveis haverá muitos casos em que as ra zões de ambos os lados serão tão perfeitamente equilibradas que nos será impossível tomar uma decisão satisfatória É portanto tarefa do direito interno determinar aquilo que 0s princípios da natureza humana deixaram indeterminado 14 A superfície submetese ao solo diz o direito civil a escrita ao papel a tela à pintura Essas decisões não concordam muito bem umas com as outras sendo uma prova da contrarie dade dos princípios de que derivam 15 De todas as questões desse gênero porém a mais curiosa é a que durante tantos sé culos dividiu os discípulos de Próculo e de Sabino Suponhamos que uma pessoa fabrique 551 Tratado da natureza humana 1 1 O direito de sucessão é um direito muito natural em virtude do suposto consentimento do pai da mãe ou de um parente próximo e em virtude igualmente do interesse geral da humanidade que requer que nossas posses passem para os que nos são mais queridos a fim de nos tornar mais laboriosos e frugais É possível que essas causas sejam favorecidas pela influência da relação ou associação de idéias que nos leva naturalmente a considerar o filho após a morte do pai e a atribuirlhe um direito sobre os bens deste Esses bens têm de se tornar propriedade de alguém mas a questão é de quem Ora é evi dente que os filhos da pessoa falecida naturalmente se apresentam à mente e como já estão conectados a essas posses por intermédio do parente morto tendemos a conectálos ainda mais pela relação de propriedade Há muitos exemplos análogos a este6 um cálice com o metal de outra ou construa um navio com sua madeira e suponhamos que o proprietário do metal ou da madeira reclame seus bens A questão é saber se ele adquire um direito ao cálice ou ao navio Sabino dizia que sim e afirmava que a substân cia ou matéria é o fundamento de todas as qualidades por ser incorruptível e imortal e por isso superior à forma que é acidental e dependente Próculo por sua vez observou que a forma é a parte mais evidente e manifesta e é com base nela que os corpos são ditos dessa ou daquela espécie particular Poderia ter acrescentado que a matéria ou substân cia em muitos corpos é tão flutuante e incerta que é inteiramente impossível acompanhá la ao longo de todas as suas mudanças De minha parte não sei que princípios poderiam solucionar com segurança uma controvérsia como essa Contentarmeei portanto em observar que a decisão de Triboniano me parece bastante engenhosa que o cálice pertence ao proprietário do metal porque este pode ser trazido de volta à sua forma inicial mas que o navio pertence ao autor de sua forma pela razão contrária No entanto por mais en genhosa que pareça essa explicação ela depende claramente da fantasia que pela possi bilidade de uma tal redução vê uma conexão e relação mais estreita entre um cálice e o proprietário de seu metal que entre um navio e o proprietário de sua madeira cuja subs tância é mais fixa e inalterável Se o trigo de Tício for misturado com o teu por vontade de ambos tornase comum porque todos os corpos isto é todos os grãos que foram próprios de cada um se confun diram por vosso consentimento Se porém foi misturado por acaso ou Tício misturouos sem teu conhecimento não parece tornarse comum porque cada grão permanece em sua substância e nestes casos não fica o trigo mais comum do que o rebanho quando os gados de Tício se misturassem com os teus E se algum de vós retém todo esse trigo com pete ao outro uma ação real proporcionada à quantidade do seu Ao arbítrio do juiz cabe apreciar a qualidade do trigo de cada um Triboniano Institutas do Imperador Justiniano livro II tít 1 28 Tradução de Clovis Natalini de Oliveira NT 6 Quando examinarmos as diferentes pretensões à autoridade governamental encontrare mos muitas razões que nos convencerão de que o direito de sucessão depende em gran de parte da imaginação Enquanto isso contentarmeei em chamar a atenção para um exemplo que diz respeito ao assunto presente Suponhamos que uma pessoa morra sem 552 Livro 3 Parte 2 Seção 4 Seção 4 Da transferência da propriedade pelo consentimento 1 A estabilidade da posse por mais útil ou mesmo necessária que possa ser à sociedade humana apresenta graves inconvenientes A relação de adequação ou conveniência nunca deveria ser levada em consideração na distribuição das propriedades entre os homens ao con trário devemos nos guiar por regras de aplicação mais geral e mais livres de dúvidas e incertezas Uma dessas regras é a da posse atual que tem lugar quando se estabelece pela primeira vez a sociedade e mais tarde a ocupação o usucapião a acessão e a sucessão Mas como es tas dependem em grande parte do acaso freqüentemente entram em contradição com as necessidades e os desejos dos homens desse modo amiúde pessoas e posses não se ajustam muito bem Esse é um grande inconveniente que precisa ser remediado Mas aplicar um remédio diretamente permitindo que cada pessoa tome pela violência aquilo que julga bom para si mesma destruiria a sociedade por isso as regras da justiça buscam um meiotermo entre a rígida estabilida de e esse ajuste variável e incerto E não há melhor meiotermo que este bastante evidente que a posse e propriedade deveria ser sem pre estável exceto quando o proprietário concorda em transferila a outra pessoa Essa regra não pode ter conseqüências nocivas nem oca sionar guerras ou discórdias pois o consentimento do proprietário que é o único interessado acompanha a alienação Ao contrário pode servir a muitos bons propósitos adequando as propriedades às pes soas Diferentes partes do mundo produzem diferentes mercadorias deixar filhos e que surja uma disputa entre seus parentes acerca da herança é evidente que se sua riqueza for oriunda em parte de seu pai e em parte de sua mãe o modo mais natural de resolver a questão é dividir suas posses destinando cada parte à família de que procedeu Ora como supostamente a pessoa foi um dia proprietária plena e integral des ses bens pergunto o que mais nos faria encontrar uma certa eqüidade e razão natural nessa partilha senão a imaginação O afeto da pessoa por essas famílias não dependia de suas posses por essa razão nunca se poderia presumir que consentiria inteiramente com tal partilha Quanto ao interesse público este não parece ter sido levado em consideração nem de um lado nem de outro 553 Tratado da natureza humana E não apenas isso Também diferentes homens são por natureza qua lificados para diferentes ocupações ao mesmo tempo que se aperfei çoam mais em uma ocupação quando se dedicam apenas a ela Tudo isso exige uma troca e um comércio mútuos por essa razão a transfe rência de propriedade por consentimento se funda em uma lei do direi to natural como ocorria com sua estabilidade sem tal consentimento 2 Até aqui tudo é determinado por um claro interesse e utilidade Talvez seja por razões mais triviais porém que a entrega ou transfe rência material do objeto é comumente exigida pelo direito civil e tam bém pelo direito natural segundo a maioria dos autores como circunstância necessária para a transferência da propriedade A pro priedade de um objeto tomada como algo real sem referência à mo ralidade ou aos sentimentos da mente é uma qualidade absolutamen te insensível e mesmo inconcebível não somos capazes de formar uma noção distinta nem de sua estabilidade nem de sua transferên cia Essa imperfeição de nossas idéias é menos perceptível no que diz respeito a sua estabilidade já que esta atrai menos nossa atenção e é facilmente menosprezada pela mente sem um exame cuidadoso Mas como a transferência da propriedade de uma pessoa a outra é um acon tecimento mais notável a deficiência de nossas idéias se torna mais sensível nessa ocasião obrigandonos a vasculhar todos os cantos em busca de um remédio Ora como nada aviva mais uma idéia que uma impressão presente e uma relação entre essa impressão e a idéia é natural que busquemos erroneamente uma luz nessas paragens Para auxiliar a imaginação a conceber a transferência da propriedade to mamos o objeto sensível e transferimos realmente sua posse à pes soa a quem queremos conferir a propriedade A suposta semelhança entre as ações e a presença dessa entrega visível enganam a mente fazendo que imagine estar concebendo a misteriosa transferência da propriedade Que essa explicação é correta fica claro pelo fato de que os homens inventaram uma entrega simbólica para satisfazer à fanta sia quando a entrega real é impraticável Assim a entrega das chaves de um celeiro é entendida como a cessão do trigo nele contido a en trega de uma pedra e de um punhado de terra representa a cessão de 554 Livro 3 Parte 2 Seção 5 um domínio Essa é uma espécie de prática supersticiosa do direito civil e do direito natural semelhante às superstições encontradas na religião católica romana Assim como os católicos romanos tornam os mistérios inconcebíveis da religião cristã mais presentes à mente re presentandoos por meio de uma vela de um hábito ou de gesticula ções que supostamente se assemelham a eles assim também os ju ristas e moralistas pela mesma razão lançaram mão de invenções semelhantes buscando dessa forma satisfazer a si mesmos no que diz respeito à transferência da propriedade por consentimento Seção 5 Da obrigatoriedade das promessas 1 Que a regra moral que impõe o cumprimento de promessas não é natural ficará suficientemente manifesto por estas duas proposições que provarei a seguir que uma promessa não seria inteligível antes de ser estabelecida pelas convenções humanas e que mesmo que fosse inteligível não viria acompanhada de nenhuma obrigação moral 2 Digo em primeiro lugar que uma promessa não é naturalmente inteligível nem é anterior às convenções humanas e um homem que não estivesse familiarizado com a vida em sociedade nunca poderia se comprometer perante outro homem ainda que ambos fossem ca pazes de perceber por intuição os pensamentos um do outro Se as promessas fossem naturais e inteligíveis deveria haver algum ato mental acompanhando as palavras eu prometo e é desse ato mental que a obrigação dependeria Examinemos pois todas as faculdades da alma e vejamos qual delas exercemos em nossas promessas 3 O ato mental expresso por uma promessa não consiste na resolu ção de realizar alguma coisa pois essa resolução por si só jamais impõe uma obrigação Tampouco é o desejo de realizála já que pode mos nos comprometer sem esse desejo ou mesmo com uma aversão declarada e confessa Também não consiste em querer a ação que pro metemos realizar pois uma promessa se refere sempre a um tempo futuro e a vontade só influencia ações presentes Seguese portanto que como o ato mental que faz parte de uma promessa e produz sua 555 Tratado da natureza humana obrigatoriedade não consiste nem em resolver nem em desejar nem em querer realizar algo em particular ele tem de consistir necessaria mente em querer a obrigação decorrente da promessa Essa conclusão não é apenas filosófica ao contrário é inteiramente conforme a nos so modo corrente de pensar e nos exprimir como nas ocasiões em que dizemos que nos comprometemos por nosso próprio consenti mento e que a obrigação decorre de nossa simples vontade e prazer A única questão que se coloca é saber se não há um evidente absur do em supor esse ato mental e um absurdo tal que só poderia ser cometido por alguém cujas idéias estivessem perturbadas pelo pre conceito e por um uso falacioso da linguagem 4 Toda moralidade depende de nossos sentimentos quando uma ação ou qualidade da mente nos agrada de uma determinada maneira dizemos que é virtuosa e quando o descuido ou a não realização des sa ação nos desagrada de maneira semelhante dizemos que temos obri gação de realizála Uma mudança na obrigação supõe uma mudança no sentimento e a criação de uma nova obrigação supõe o surgimento de um novo sentimento Mas é certo que naturalmente não pode mos mudar nossos próprios sentimentos não mais que os movimen tos celestes tampouco podemos por um simples ato de nossa von tade isto é por uma promessa tornar agradável ou desagradável moral ou imoral uma ação que sem esse ato da vontade teria produ zido impressões contrárias ou teria sido dotada de qualidades dife rentes Seria absurdo portanto querer uma nova obrigação isto é um novo sentimento de dor ou prazer ninguém poderia cometer na turalmente tamanho absurdo Portanto uma promessa é naturalmente algo ininteligível e a ela não corresponde nenhum ato mental 7 7 Se a moralidade fosse descoberta pela razão e não pelo sentimento seria ainda mais evidente que as promessas não poderiam produzir nela nenhuma alteração Supostamen te a moralidade consistiria em uma relação Toda nova imposição moral portanto teria de surgir de alguma nova relação dos objetos por conseguinte a vontade não poderia produzir imediatamente nenhuma mudança na moral só poderia ter esse efeito produ zindo uma mudança nos objetos Mas como a obrigação moral de uma promessa é puro efeito da vontade e não corresponde à menor alteração em parte alguma do universo seguese que as promessas não implicam qualquer obrigação natural 556 Livro 3 Parte 2 Seção 5 5 Mas em segundo lugar se houvesse um ato mental corresponden te à promessa ele não poderia produzir naturalmente uma obrigação Isso fica evidente pelo raciocínio anterior Uma promessa cria uma nova obrigação Uma nova obrigação supõe o surgimento de novos sentimentos A vontade nunca cria novos sentimentos Portanto uma promessa jamais poderia gerar naturalmente uma nova obri gação mesmo supondose que a mente pudesse cometer o absurdo de querêla 6 Podese provar essa mesma verdade de forma ainda mais eviden te por meio do raciocínio pelo qual provamos que a justiça em geral é uma virtude artificial Nenhuma ação pode ser exigida de nós como um dever a menos que haja implantada na natureza humana alguma paixão impulsora ou algum motivo capaz de produzir essa ação Ora esse motivo não pode ser o sentido do dever O sentido do dever su põe uma obrigação prévia e se uma ação não é exigida por nenhuma paixão natural ela não pode ser exigida por nenhuma obrigação na tural uma vez que é possível omitila sem que isso revele um defeito ou imperfeição na mente ou no caráter e conseqüentemente sem que haja um vício Ora é evidente que não temos nenhum motivo im pelindonos a cumprir nossas promessas distinto de um senso do de ver Se pensássemos que as promessas não implicam uma obrigação moral jamais sentiríamos uma inclinação a cumprilas Isso não acon tece com as virtudes naturais Mesmo que não tivéssemos obrigação de confortar os sofredores nosso humanitarismo nos levaria a isso e 2 Caso se dissesse que esse ato da vontade sendo de fato um novo objeto produz novas relações e novos deveres eu responderia que isso é puro sofisma e uma pequena dose de precisão e exatidão basta para detectálo Querer uma nova obrigação é querer uma nova relação de objetos portanto se essa nova relação de objetos fosse constituída pela própria volição nós de fato quereríamos a volição o que é claramente absurdo e impossível A vontade aqui não tem um objeto ao qual pudesse tender ao contrário tem de retornar sobre si mesma ao infinito A nova obrigação depende de novas relações As novas relações dependem de uma nova volição A nova volição tem como objeto uma nova obrigação e conseqüentemente novas relações e conseqüentemente uma nova vo lição e essa volição por sua vez tem em vista uma nova obrigação relação e volição infindavelmente Portanto seria impossível querer uma nova obrigação em conseqüên cia disso seria impossível que a vontade alguma vez acompanhasse uma promessa ou que produzisse uma nova obrigação moral 557 Tratado da natureza humana se faltarmos a esse dever essa omissão será imoral por provar que carecemos dos sentimentos humanitários naturais Um pai sabe que é seu dever cuidar de seus filhos mas também tem uma inclinação na tural a fazêlo E se nenhuma criatura humana tivesse essa inclinação ninguém poderia estar sujeito a uma obrigação semelhante Mas como não existe naturalmente uma inclinação ao cumprimento de promes sas que seja distinta de um sentido de sua obrigação seguese que a fidelidade não é uma virtude natural e que as promessas não têm uma força anterior às convenções humanas 7 Se alguém não estiver de acordo com isso terá de fornecer uma prova regular destas duas proposições Que existe um ato mental peculiar vinculado às promessas e que como conseqüência desse ato surge uma inclinação a cumprilas distinta de um sentido do dever Presumo que seja impossível provar qualquer desses dois pontos por isso arriscome a concluir que as promessas são invenções humanas fundadas nas necessidades e nos interesses da sociedade 8 Para descobrir essas necessidades e interesses temos de consi derar as mesmas qualidades da natureza humana que conforme cons tatamos dão origem às leis da sociedade antes mencionadas Como os homens são naturalmente egoístas ou dotados de uma generosi dade apenas limitada não se convencem facilmente a agir no interes se de estranhos a não ser quando têm em vista alguma vantagem re cíproca que não tinham esperanças de conseguir senão por meio dessa ação Ora com freqüência essas ações mútuas não podem ser con cluídas ao mesmo tempo e por isso é necessário que uma das partes se contente em permanecer na incerteza confiando na gratidão da ou tra para lhe devolver o benefício Há porém tanta corrupção entre os homens que em geral essa garantia é muito frágil e como aqui se supõe que o benfeitor prestou um favor tendo em vista seu pró prio interesse isso libera o outro da obrigação e ao mesmo tempo estabelece um exemplo de egoísmo o verdadeiro pai da ingratidão Portanto se seguíssemos o curso natural de nossas paixões e inclina ções realizaríamos poucas ações em benefício dos demais de modo 558 Livro 3 Parte 2 Seção 5 desinteressado porque nossa bondade e afeição são naturalmente muito restritas e realizaríamos igualmente poucas ações desse tipo por interesse porque não podemos confiar na gratidão alheia Assim a troca de bons ofícios entre os homens acabaria de alguma maneira se perdendo e cada qual estaria reduzido à sua própria habilidade e trabalho para promover seu bemestar e subsistência A invenção no direito natural da lei sobre a estabilidade da posse já tornou os ho mens toleráveis uns aos outros a da transferência da propriedade e da posse por consentimento começou a tornálos mutuamente vantajo sos Mas essas leis ainda que rigidamente observadas não são sufi cientes para tornálos tão prestativos uns para os outros quanto se podem tornar por natureza Mesmo que a posse seja estável com fre qüência os homens não podem tirar dela muito proveito enquanto possuírem determinados bens em quantidade maior do que necessi tam ao mesmo tempo que sofrem com a falta de outros A transferên cia da propriedade que é o remédio apropriado para esse inconvenien te não é capaz de remediálo por completo pois só pode ser utilizada no caso de objetos presentes e individuais mas não no caso de objetos ausentes ou gerais Não se pode transferir a propriedade de uma casa particular que fica a vinte léguas de distância porque aqui o consen timento não pode se fazer acompanhar da entrega que é uma circuns tância necessária Tampouco se pode transferir a propriedade de dez alqueires de trigo ou de cinco barris de vinho pela simples expres são do consentimento pois estes são apenas termos gerais sem rela ção direta com qualquer monte de trigo ou barril de vinho em parti cular Além disso o comércio entre os homens não se limita à permuta de bens materiais podendo se estender a serviços e ações que tro camos tendo em vista nosso mútuo interesse e benefício Teu milho está maduro hoje o meu o estará amanhã É vantajoso para nós dois que hoje eu trabalhe contigo e que me ajudes amanhã Mas não sinto afeição por ti e sei que tampouco sentes afeição por mim Por isso não farei por ti nenhum esforço se trabalhasse contigo por mi nha própria conta esperando obter um retorno sei que seria desapon 559 Tratado da natureza humana tado e em vão confiaria em tua gratidão Por isso deixo que traba lhes sozinho tu me tratas do mesmo modo As estações mudam e ambos perdemos nossas colheitas por falta de confiança e certeza mútuas 9 Tudo isso é efeito dos princípios e das paixões naturais e ineren tes à natureza humana e como essas paixões e esses princípios são inalteráveis podese pensar que nossa conduta que depende deles também deva sêlo e que é inútil que moralistas ou políticos se metam em nossa vida ou tentem mudar o curso usual de nossas ações com vistas ao interesse público De fato se o sucesso de seus propósitos dependesse de seu sucesso em corrigir o egoísmo e a ingratidão dos homens jamais fariam nenhum progresso a não ser com o auxílio da onipotência divina a única coisa capaz de remodelar a mente hu mana e de transformar seu caráter em pontos tão fundamentais O máximo que podem pretender é redirecionar essas paixões naturais ensinandonos que satisfaremos melhor nossos apetites de maneira oblíqua e artificial e não por meio de seu movimento impulsivo e impetuoso Assim aprendo a prestar um serviço a outra pessoa mes mo que não sinta uma afeição real por ela pois prevejo que devolverá meu favor na expectativa de obter outro do mesmo tipo e também para manter a mesma reciprocidade de bons préstimos comigo ou com outros De acordo com isso após eu lhe ter prestado um serviço e estando ela já de posse da vantagem resultante de minha ação essa pessoa é levada a cumprir sua parte por prever as conseqüências de sua recusa 10 Mas embora esse comércio humano guiado pelo interesse pró prio comece a ter lugar e a predominar na sociedade ele não abole in teiramente o intercâmbio mais generoso e nobre da amizade e dos bons préstimos Ainda posso prestar serviços a pessoas que amo e com quem estou mais particularmente familiarizado sem nenhuma perspectiva de me beneficiar com isso e elas podem me devolver esse favor da mesma maneira sem ter em vista senão me recompensar por meus serviços passados Portanto para distinguir esses dois tipos 560 Livro 3 Parte 2 Seção 5 diferentes de intercâmbio o devido ao interesse e o desinteressado inventouse para o primeiro uma certa fórmula verbal pela qual nos comprometemos a realizar uma ação Essa fórmula verbal constitui o que chamamos de promessa que é a sanção do intercâmbio entre os homens quando realizado por interesse Quando alguém diz que pro mete alguma coisa exprime de fato a resolução de realizála ao mesmo tempo ao utilizar essa fórmula verbal submetese à penalidade de nunca mais receber a confiança alheia se não a cumprir Uma resolu ção é o ato mental natural expresso pela promessa mas se não hou vesse aqui mais que uma resolução as promessas declarariam ape nas nossos motivos prévios sem criar um novo motivo ou obrigação São as convenções humanas que criam um novo motivo uma vez que a experiência nos ensinou que os assuntos humanos seriam conduzi dos de maneira muito mais vantajosa para todos nós se fossem insti tuídos certos símbolos ou signos pelos quais pudéssemos dar garantia uns aos outros de nossa conduta em qualquer situação particular Após a instituição desses signos aquele que os utiliza fica imediatamente obrigado por seu próprio interesse a cumprir seus compromissos e caso se recuse a fazer o que prometeu nunca mais deve esperar rece ber a confiança alheia 1 1 Não se deve considerar que o conhecimento necessário para tor nar os homens sensíveis a esse interesse pela instituição e pelo cumpri mento de promessas seja superior à capacidade da natureza humana ainda que selvagem e inculta Um mínimo de prática do mundo bas ta para percebermos todas essas conseqüências e vantagens A mais curta experiência da vida em sociedade as torna visíveis a qualquer mortal e quando cada indivíduo percebe que todos os seus companhei ros têm o mesmo sentido de interesse cumpre imediatamente sua parte do contrato seguro de que os outros não deixarão de cumprir a sua Todos em concerto entram em um programa de ações calculado para o benefício comum e concordam em honrar sua palavra para for mar esse concerto ou convenção basta que tenham o sentido de seu interesse no leal cumprimento de seus compromissos e expressem 561 Tratado da natureza humana esse sentido a outros membros da sociedade Isso imediatamente faz que esse interesse atue sobre eles e o interesse é a primeira obriga ção ao cumprimento de promessas 12 Em seguida um sentimento de moralidade concorre com o inte resse tornandose uma nova obrigação para a humanidade Esse sen timento da moralidade que acompanha o cumprimento de promes sas surge dos mesmos princípios que o sentimento que acompanha a abstinência da propriedade alheia O interesse público a educação e os arti fícios dos políticos têm o mesmo efeito nos dois casos As dificuldades que se nos apresentam quando supomos que uma obrigação moral acompanharia as promessas nós as superamos ou simplesmente eludimos Por exemplo não se costuma considerar obrigatório expres sar uma resolução e não é fácil conceber como o emprego de uma certa fórmula verbal poderia ser capaz de produzir uma diferença im portante Por isso fantasiamos aqui um novo ato mental que deno minamos querer uma obrigação e supomos que é dele que a moralidade depende Já provamos porém que esse ato não existe e que conse qüentemente as promessas não impõem uma obrigação natural 13 Para confirmar isso podemos acrescentar algumas outras refle xões a respeito daquela vontade que se supõe fazer parte de uma pro messa causando sua obrigação Evidentemente nunca se supõe que a vontade sozinha cause a obrigação para impor um vínculo a alguém ela deve antes ser expressa em palavras ou signos Uma vez introduzida como um instrumento da vontade entretanto a expressão logo se torna a parte principal da promessa quando um homem empenha sua pa lavra seu compromisso será sempre o mesmo ainda que secretamente dê uma direção diferente a sua intenção e se abstenha tanto de uma resolução como de querer uma obrigação Mas embora a expressão em muitos casos constitua a totalidade da promessa nem sempre é assim se alguém utiliza uma expressão cujo sentido não compreende e sem intenção de se comprometer certamente não está comprometi do por ela E mesmo que saiba o que significa se a utilizar apenas por brincadeira dando sinais evidentes de que não tem a séria intenção 562 Livro 3 Parte 2 Seção 5 de se comprometer tampouco estará obrigado a cumprir sua pala vra Para que haja obrigação é necessário que as palavras sejam a perfeita expressão da vontade sem sinais contrários E mesmo isso não devemos levar ao ponto de imaginar que uma pessoa que graças a nossa perspicácia e baseandonos em certos sinais presumimos ter a intenção de nos enganar não está comprometida por sua pa lavra ou promessa verbal se aceitamos essa promessa devemos li mitar essa conclusão aos casos em que os sinais são de um tipo di ferente daqueles que mostram a intenção de enganar Todas essas contradições se explicarão facilmente se compreendermos a obri gação das promessas simplesmente como uma invenção humana visando à conveniência da sociedade mas jamais se explicarão se essa obrigação for tida como algo real e natural decorrente de uma ação da mente ou do corpo 14 Observarei ainda que uma vez que cada nova promessa impõe uma nova obrigação moral à pessoa que promete se essa nova obri gação surgisse de sua vontade teríamos aqui uma das mais misterio sas e incompreensíveis operações que se possa imaginar comparável inclusive à transubstanciação ou ao sacramento da ordem 8 nos quais uma certa fórmula verbal juntamente com uma certa intenção muda in teiramente a natureza de um objeto externo e até mesmo de uma cria tura humana Entretanto embora haja uma tal semelhança entre es ses mistérios é bastante evidente que eles diferem amplamente sob outros aspectos e essa diferença pode ser vista como uma forte pro va da diferença de suas origens Como a obrigatoriedade das promes sas é uma invenção no interesse da sociedade toma tantas formas quantas esse interesse requer chegando a cair em contradições para não perder de vista seu objeto Quanto a essas outras doutrinas mons truosas como são meras invenções eclesiásticas e não têm em vista o interesse público têm seu progresso menos perturbado por novos 8 Quero dizer enquanto se supõe que a ordem produz o caráter indelével Em outros aspec tos tratase apenas de uma qualificação legal 563 Tratado da natureza humana obstáculos e devese reconhecer que após seu primeiro absurdo se guem mais diretamente a corrente da razão e do bom senso Os teó logos perceberam claramente que a fórmula verbal é apenas externa um mero som e por isso precisa de uma intenção para ter eficácia e uma vez que se considere essa intenção como uma circunstância ne cessária sua ausência deve impedir a produção do efeito seja ela con fessa ou secreta seja a intenção sincera ou falsa Desse modo determinaram de maneira geral que a intenção do sacerdote faz o sa cramento e quando ele secretamente retira sua intenção tornase altamente culpado de um crime interior além de destruir o batismo a comunhão ou a ordem As terríveis conseqüências dessa doutrina não foram capazes de impedir seu estabelecimento ao passo que o inconveniente de uma doutrina similar a respeito das promessas im pediu que esta doutrina se estabelecesse Os homens sempre se pre ocupam mais com sua vida presente que com a futura e tendem a considerar o menor mal que diga respeito à primeira como mais im portante que o maior mal concernente à segunda 15 A mesma conclusão a respeito da origem das promessas pode ser extraída da força que supostamente invalida qualquer contrato e livranos de sua obrigação Esse princípio prova que as promessas não implicam uma obrigação natural sendo meros dispositivos artificiais que visam à conveniência e ao favorecimento da sociedade Se considerarmos corretamente a questão veremos que a força não é essencialmente diferente de nenhum outro motivo de esperança ou de medo que possa nos levar a empenhar nossa palavra submetendo nos a uma obrigação Um homem gravemente ferido que promete a um cirurgião uma grande soma de dinheiro para que o cure certa mente estaria obrigado a cumprir sua promessa entretanto esse caso não seria assim tão diferente do daquela pessoa que promete uma soma de dinheiro a um ladrão a ponto de produzir uma diferença tão grande em nossos sentimentos morais a menos que esses sentimentos sejam construídos inteiramente com base no interesse público e na conveniência 564 Livro 3 Parte 2 Seção 6 Seção 6 Algumas outras reflexões sobre a justiça e a injustiça 1 Examinamos assim as três leis fundamentais do direito natu ral a da estabilidade da posse a de sua transferência por consentimento e a do cumprimento de promessas A paz e a segurança da sociedade huma na dependem inteiramente da estrita observância dessas três leis não há nenhuma possibilidade de se estabelecerem boas relações entre os homens quando elas são desprezadas A sociedade é absolutamente necessária ao bemestar dos homens e essas leis são igualmente ne cessárias à sustentação da sociedade Sejam quais forem as restrições que elas possam impor às paixões humanas na realidade são frutos dessas paixões sendo apenas um meio mais artificial e refinado de satisfazêlas Nada é mais vigilante e inventivo que nossas paixões e nada é mais evidente que a convenção para observar essas regras A natureza portanto confiou essa tarefa inteiramente à conduta huma na não pôs na mente nenhum princípio original peculiar que nos de terminasse a realizar um conjunto de ações já que os outros princí pios de nossa estrutura e constituição são suficientes para nos guiar até elas Para nos convencermos mais completamente dessa verdade podemos nos deter por um momento neste ponto faremos uma re visão dos raciocínios precedentes e partindo deles extrairemos no vos argumentos para provar que essas leis embora necessárias são inteiramente artificiais produtos da invenção humana e que conse qüentemente a justiça é uma virtude artificial e não natural 2 1 O primeiro argumento que utilizarei se baseia na definição co mum de justiça Costumase definir a justiça como a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que lhe é devido Nessa definição estáse supondo a existência do direito e da propriedade como coisas inde pendentes da justiça e anteriores a ela e que essas coisas existiriam mesmo que os homens jamais tivessem sonhado em praticar tal virtude Já observei de maneira superficial a falácia dessa opinião agora irei 565 Tratado da natureza humana manifestar de um modo um pouco mais distinto o que penso sobre o assunto 3 Começarei observando que essa qualidade que denominamos propriedade é como muitas qualidades imaginárias da filosofia peri patética desaparecendo diante de um exame mais minucioso quan do considerada separada de nossos sentimentos morais Evidentemen te a propriedade não consiste em nenhuma das qualidades sensíveis do objeto pois estas podem continuar invariavelmente iguais enquan to a propriedade muda A propriedade portanto tem de consistir em alguma relação do objeto Mas não em sua relação com outros obje tos externos e inanimados pois estes também podem continuar in variavelmente iguais enquanto muda a propriedade Essa qualidade portanto consiste nas relações dos objetos com seres inteligentes e racionais Não é no entanto a relação externa e corpórea que forma a essência da propriedade pois essa relação pode existir igualmente entre objetos inanimados ou com respeito aos animais embora nes tes casos não forme uma propriedade Portanto a propriedade con siste em alguma relação interna isto é em alguma influência que as relações externas dos objetos exercem sobre a mente e as ações As sim não se imagina que a relação externa que chamamos de ocupação ou primeira posse seja por si mesma a propriedade do objeto mas apenas que produz sua propriedade Ora é evidente que essa relação externa não produz nada nos objetos externos apenas influencia a mente ao despertar em nós o sentido do dever de nos abster desse objeto e de restituílo ao primeiro possuidor Essas ações são propria mente o que chamamos justiça conseqüentemente a natureza da pro priedade depende dessa virtude e não a virtude da propriedade 4 Se alguém afirmasse portanto que a justiça é uma virtude natural e a injustiça um vício natural deveria afirmar também que abstrain dose das noções de propriedade direito e obrigação uma certa conduta e uma certa série de ações em certas relações externas de objetos apresentam naturalmente uma beleza ou deformidade morais e cau sam um prazer ou um desconforto original Assim restituir os bens 566 Livro 3 Parte 2 Seção 6 de uma pessoa seria considerado um ato de virtude não porque a natureza teria vinculado um certo sentimento de prazer a uma tal con duta em relação à propriedade alheia mas sim porque teria vincula do esse sentimento a uma tal conduta em relação àqueles objetos externos dos quais outras pessoas tiveram a primeira posse ou uma posse prolongada ou que outras pessoas receberam por consenti mento daqueles que tiveram sua primeira posse ou uma posse prolon gada Se a natureza não nos tivesse proporcionado esse sentimento não haveria naturalmente ou anteriormente às convenções humanas nada semelhante à propriedade Ora embora este exame conciso e preciso do presente assunto pareça ter deixado suficientemente evi dente que a natureza não vinculou nenhum prazer ou sentimento de aprovação a essa conduta acrescentarei alguns outros argumentos para confirmar minha opinião de modo a deixar o menor espaço pos sível para dúvidas 5 Em primeiro lugar se a natureza nos tivesse proporcionado um prazer desse gênero ele seria tão evidente e discernível nesta como em todas as outras ocasiões e não teríamos encontrado nenhuma difi culdade para perceber que a consideração dessas ações em uma tal situação proporciona um certo prazer e um sentimento de aprova ção Não teríamos sido obrigados a recorrer às noções de proprieda de para definir a justiça e ao mesmo tempo utilizar as noções de justi ça para definir a propriedade Esse método falacioso de raciocinar é uma clara prova de que este assunto contém obscuridades e dificul dades que não somos capazes de superar e das quais tentamos esca par por meio desse artifício 6 Em segundo lugar as regras que determinam a propriedade o di reito e a obrigação não levam nelas mesmas nenhuma marca de uma origem natural mas muitas marcas de artifício e invenção são nu merosas demais para terem procedido da natureza podem ser alte radas pelas leis humanas e todas mostram uma tendência direta e evidente para o bem público e para a manutenção da sociedade Esta última circunstância é notável por duas razões Primeiro porque ainda 567 Tratado da natureza humana que a causa do estabelecimento dessas leis tivesse sido uma conside ração pelo bem público sendo este bem público sua tendência natu ral elas ainda seriam artificiais porque concebidas e dirigidas para um certo fim Segundo porque se os homens fossem dotados de uma consideração assim tão forte pelo bem público jamais teriase obri gado por meio dessas regras desse modo as leis da justiça surgem de princípios naturais de um modo ainda mais oblíquo e artificial Sua verdadeira origem é o amor por si mesmo e como o amor que uma pessoa tem por si mesma é naturalmente contrário ao das outras pes soas essas diversas paixões interessadas são obrigadas a se ajustar umas às outras de maneira a concorrer para algum sistema de condu ta e comportamento Esse sistema portanto que compreende o in teresse de cada indivíduo é certamente vantajoso para o público ainda que não tenha sido esse o propósito de seus inventores 7 2 Em segundo lugar podemos observar que vícios e virtudes de todos os tipos mudamse insensivelmente uns nos outros podendo se aproximar por graus tão imperceptíveis que se torna difícil senão absolutamente impossível determinar quando o vício termina e co meça a virtude ou viceversa dessa observação podemos extrair um novo argumento em favor do princípio precedente Pois seja qual for o caso dos vícios e virtudes é certo que os direitos as obrigações e a propriedade não admitem essa gradação insensível uma pessoa ou tem a propriedade plena e completa de algo ou não tem essa proprie dade ou é inteiramente obrigada a realizar uma ação ou não tem qualquer obrigação Por mais que o direito civil possa falar de um do mínio pleno ou parcial é fácil observar que se trata de uma ficção sem fundamento na razão que jamais poderia estar presente em nossas noções de justiça e eqüidade natural Um homem que aluga um ca valo mesmo que só por um dia tem um direito tão pleno de utilizá lo durante esse tempo quanto aquele que chamamos de seu proprie tário o tem durante qualquer outro dia e é evidente que embora esse uso possa ser limitado em duração ou em grau o próprio direito não 568 Livro 3 Parte 2 Seção 6 admite gradação sendo absoluto e íntegro em toda sua extensão As sim podemos observar que esse direito nasce e desaparece de um momento para outro que uma pessoa adquire inteiramente a proprie dade de um objeto por ocupação ou pelo consentimento do proprietá rio e a perde por seu próprio consentimento sem nada daquela gra dação insensível que se pode notar em outras qualidades e relações Portanto como é isso que ocorre com a propriedade os direitos e as obrigações eu vos pergunto o que ocorre com a justiça e a injusti ça Seja qual for vossa resposta caireis em dificuldades insuperáveis Se responderdes que a justiça e a injustiça admitem graus transfor mandose insensivelmente uma na outra estareis contradizendo ex pressamente a posição anterior de que a obrigação e a propriedade não são suscetíveis de tal gradação A obrigação e a propriedade de pendem inteiramente da justiça e da injustiça acompanhandoas em todas as suas variações Se a justiça é plena a propriedade também é plena se a justiça é imperfeita a propriedade também tem que ser im perfeita E viceversa se a propriedade não admite tais variações es tas também devem ser incompatíveis com a justiça Se concordardes portanto com esta última proposição e afirmardes que a justiça e a injustiça não são passíveis de graus estareis de fato afirmando que elas não são naturalmente nem um vício nem uma virtude visto que vício e virtude bem e mal morais e aliás todas as qualidades naturais mudamse insensivelmente umas nas outras sendo em muitos ca sos indistinguíveis 8 Talvez valha a pena observar neste ponto que embora o racio cínio abstrato e as máximas gerais da filosofia e do direito estabeleçam a posição de que a propriedade o direito e a obrigação não admitem graus em nosso modo comum e descuidado de pensar temos grande di ficuldade para manter essa opinião e secretamente abraçamos o princí pio contrário Um objeto tem de ser possuído por uma pessoa ou por outra Uma ação tem de ou ser realizada ou não A necessidade de se escolher um lado desses dilemas e a freqüente impossibilidade de se encontrar o justo meio entre os dois nos obriga quando refleti 569 Tratado da natureza humana mos sobre o assunto a reconhecer que toda propriedade e toda obri gação é plena Mas por outro lado quando consideramos a origem da propriedade e da obrigação e constatamos que dependem da uti lidade pública e às vezes das propensões da imaginação que quase nunca se inclinam inteiramente para um só lado vemonos natural mente propensos a imaginar que essas relações morais admitem uma gradação insensível É assim que nos casos de arbitragens em que as duas partes concordam em dar aos árbitros total poder de decisão é comum estes descobrirem tal eqüidade e justiça de ambos os lados que são levados a tirar uma média e a dividir a diferença entre os dois Os juízes que não têm essa liberdade sendo ao contrário obrigados a dar uma sentença decisiva a favor de apenas uma das partes fre qüentemente sentemse confusos sem saber como determinar a ques tão tendo então de proceder com base nas mais frívolas razões desse mundo Os meiosdireitos e as meiasobrigações que parecem tão naturais na vida corrente são completos absurdos para seus tribu nais por essa razão tais juízes são freqüentemente obrigados a con siderar meiosargumentos como argumentos completos para deci dir a questão de uma maneira ou de outra 9 3 O terceiro argumento dessa espécie que utilizarei pode ser ex plicado da seguinte maneira Se considerarmos o curso ordinário das ações humanas veremos que a mente não se restringe mediante re gras gerais e universais ao contrário age na maioria dos casos tal como a determinam seus motivos e inclinações presentes Como cada ação é um acontecimento particular e individual tem de provir de princí pios particulares e de nossa situação imediata quanto a nós mesmos e quanto ao resto do universo Se em alguns casos estendemos nos sos motivos para além dessas mesmas circunstâncias que os geraram e formamos algo como regras gerais para nossa conduta é fácil ob servar que essas regras não são totalmente inflexíveis admitindo ao contrário muitas exceções Portanto como é esse o curso ordinário das ações humanas podemos concluir que as leis da justiça sendo 570 Livro 3 Parte 2 Seção 6 universais e absolutamente inflexíveis nunca poderiam ser deriva das da natureza nem ser fruto imediato de um motivo ou de uma inclinação natural Nenhuma ação pode ser moralmente boa ou má a menos que haja alguma paixão ou motivo natural impelindonos em sua direção ou fazendo que nos abstenhamos de realizála por isso é evidente que a moralidade tem de ser suscetível exatamente das mesmas variações que são naturais à paixão Duas pessoas bri gam por uma propriedade uma é rica estúpida e solteira a outra é pobre sensata e tem uma família numerosa A primeira é minha ini miga a segunda minha amiga Quer eu seja movido neste caso pela perspectiva do interesse público ou privado pela amizade ou inimiza de devo ser levado a fazer o máximo para dar a propriedade à segun da Nenhum respeito pelo direito e pela propriedade das pessoas se ria capaz de me restringir se eu fosse impulsionado unicamente por motivos naturais e não tivesse formado qualquer combinação ou con venção com os outros homens Porque se toda propriedade depende da moralidade e se toda moralidade depende do curso ordinário de nossas paixões e ações as quais por sua vez são dirigidas unicamente por motivos particulares é evidente que essa conduta parcial deve ser adequada à mais rígida moralidade e jamais poderia ser uma viola ção de propriedade Se os homens portanto tomassem a liberdade de agir com respeito às leis da sociedade como agem relativamente a qualquer outra questão iriam se conduzir na maioria dos casos por meio de juízos particulares levando em consideração os caracteres e as circunstâncias em que se encontram as pessoas bem como a na tureza geral da questão É fácil observar no entanto que isso produ ziria uma confusão infinita na sociedade humana e que a avidez e a parcialidade dos homens rapidamente trariam a desordem para o mun do se não fossem restringidas por certos princípios gerais e inflexí veis Portanto foi tendo em vista esse inconveniente que os homens estabeleceram esses princípios e concordaram em se autorestringir por meio de regras gerais que não se deixam influenciar nem pelo des peito nem pelo favor e não podem ser alteradas por considerações 571 Tratado da natureza humana particulares de interesse privado ou público Essas regras portanto são inventadas artificialmente com um certo propósito sendo con trárias aos princípios comuns da natureza humana que se adaptam às circunstâncias e não possuem um método estabelecido e invariá vel de operação 1 O Não vejo como poderia estar enganado a esse respeito Percebo com clareza que quando um homem impõe a si mesmo regras gerais infle xíveis para regular sua conduta perante os demais considera certos objetos como suas propriedades que supõe serem sagradas e invio láveis Mas não há proposição mais evidente que aquela que diz que a propriedade é completamente ininteligível sem a prévia suposição da justiça e da injustiça e que essas qualidades morais são igualmente ininteligíveis a menos que tenhamos motivos independentes da moralidade impelindonos às ações justas e desviandonos das injus tas Portanto sejam quais forem esses motivos eles têm de se adaptar às circunstâncias e têm de admitir todas as variações que os assuntos humanos em suas revoluções incessantes podem sofrer São portan to fundamentos muito pouco apropriados para regras tão inflexíveis e rígidas quanto as leis do direito natural é evidente portanto que es sas leis só podem ser derivadas das convenções humanas estabelecidas quando os homens perceberam as desordens que resultam quando seguem seus princípios naturais e variáveis 1 1 Em suma devemos considerar que essa distinção entre a justiça e a injustiça tem dois fundamentos diferentes o do interesse próprio quan do os homens observam que é impossível viver em sociedade sem se restringir por meio de certas regras e o da moralidade quando já se ob servou que esse interesse próprio é comum a toda a humanidade e os homens passam a ter prazer em contemplar ações que favorecem a paz da sociedade sentindo um desconforto diante daquelas que são con trárias a ela É a convenção voluntária e o artifício dos homens que faz que o primeiro interesse ocorra e portanto essas leis da justiça devem sob esse aspecto ser consideradas artificiais Uma vez estabelecido e 572 Livro 3 Parte 2 Seção 7 reconhecido esse interesse o sentido da moralidade diante da obser vância dessas regras seguese naturalmente por si só embora certa mente ele possa se ampliar por um novo artifício os ensinamentos públicos dos políticos e a educação privada fornecida pelos pais contri buem para nos proporcionar um sentido de honra e dever na regulação estrita de nossas ações concernentes à propriedade alheia Seção 7 Da origem do governo 1 Nada é mais certo que o fato de que os homens são em grande medida governados pelo interesse e mesmo quando estendem suas preocupações para além de si mesmos não as levam muito longe na vida corrente não é muito comum olhar para além dos amigos mais próximos e dos conhecidos É igualmente certo que o meio mais efi caz que os homens têm de levar em conta seu próprio interesse é pela observância inflexível e universal das regras da justiça única coisa que lhes permite preservar a sociedade impedindoos de cair naquela condição miserável e selvagem comumente representada como o es tado de natureza E como esse interesse que todo homem tem pela pre servação da sociedade e pela observância das regras da justiça é muito grande tornase palpável e evidente até mesmo para os membros mais rudes e incultos da raça humana é quase impossível que alguém que tenha tido experiência da sociedade se engane quanto a isso Portanto uma vez que os homens são tão sinceramente apegados a seu inte resse uma vez que seu interesse está tão ligado à observância da jus tiça e é tão certo e explícito podese perguntar como é possível o surgimento de qualquer desordem no seio da sociedade e que prin cípio haverá na natureza humana que seja tão poderoso a ponto de sub jugar uma paixão tão forte ou que seja tão violento que acabe obs curecendo um conhecimento tão claro 2 Quando tratamos das paixões observamos que os homens são poderosamente governados pela imaginação e proporcionam seus 573 Tratado da natureza humana afetos mais à perspectiva pela qual um objeto lhes aparece do que a seu valor real e intrínseco Aquilo que lhes toca com uma idéia forte e vívida comumente prevalece sobre o que é obscuro sendo preciso ter um valor muito superior para compensar essa desvantagem Ora como todo objeto que nos é contíguo no tempo ou no espaço toca nos com uma idéia desse tipo ele exerce um efeito proporcional sobre a vontade e as paixões e comumente atua com mais força que qual quer objeto mais distante e obscuro Mesmo que estejamos plena mente convencidos de que este último objeto supera o primeiro não somos capazes de regular nossas ações por esse juízo cedemos às so licitações de nossas paixões que sempre intercedem em favor de tudo que é próximo e contíguo 3 É por essa razão que os homens com tanta freqüência agem em contradição com seu reconhecido interesse em particular é por essa razão que preferem qualquer vantagem trivial mas presente à manu tenção da ordem na sociedade que depende em tão grande medida da observância da justiça As conseqüências de cada violação da eqüi dade parecem muito remotas não sendo capazes de contrabalançar as vantagens imediatas que se podem extrair dessa violação A dis tância entretanto não as torna menos reais e como todos os homens estão em algum grau sujeitos à mesma fraqueza acontece necessa riamente que as violações da eqüidade acabam se tornando muito fre qüentes na sociedade e o relacionamento entre os homens desse modo se torna mais perigoso e incerto Tu tens como eu a mesma propensão para o que está contíguo em detrimento do que está distante Por tanto és naturalmente levado a cometer atos de injustiça tanto quanto eu Teu exemplo me impele nessa mesma direção por imitação e ao mesmo tempo me dá mais uma razão para violar a eqüidade ao me mostrar que eu seria um tolo se me ativesse à minha integridade se fosse o único a impor a si mesmo severas restrições em meio à licen ciosidade de todos os demais Ver nossa nota à p375 NT 574 Livro 3 Parte 2 Seção 7 4 Essa qualidade da natureza humana portanto não apenas é muito perigosa para a sociedade mas também parece vista de maneira apres sada impossível de remediar O remédio só pode vir do consentimento dos homens e se os homens por si mesmos são incapazes de pre ferir o distante ao contíguo nunca consentirão em nada que os obri gue a uma tal escolha e que contradiga de maneira tão sensível seus princípios e propensões naturais Aquele que escolhe os meios es colhe também os fins e se nos é impossível preferir o distante énos igualmente impossível nos submeter a qualquer necessidade que nos obrigue a um tal modo de agir 5 O que se observa aqui porém é que essa deficiência da natureza humana se torna seu próprio antídoto e que a providência que to mamos contra nossa negligência para com os objetos remotos proce de exatamente de nossa inclinação natural a negligenciálos Quan do consideramos os objetos à distância suas pequenas distinções desaparecem e sempre damos preferência àquele que é em si mes mo preferível sem considerar sua situação e as circunstâncias que o cercam Isso gera o que em um sentido impróprio chamamos razão que é um princípio freqüentemente contraditório em relação às pro pensões que se manifestam quando nos aproximamos do objeto Ao refletir sobre uma ação que devo realizar daqui a doze meses sempre prefiro o bem maior sem me importar se então ele será mais próxi mo ou mais distante uma diferença quanto a esse ponto não produz nenhuma diferença em minhas intenções e resoluções presentes Minha distância da determinação final faz todas essas minúsculas di ferenças desaparecerem e não sou afetado senão pelas qualidades mais gerais e discerníveis do bem e do mal Mas conforme voume aproximando dessa determinação as circunstâncias que de início des prezei começam a aparecer influenciando minha conduta e meus afe tos Nasce uma nova inclinação para o bem presente e passo a ter dificuldade em continuar aderindo inflexivelmente a meu primeiro propósito e resolução Posso lamentar muito essa fraqueza natural e esforçarme de todas as maneiras para me libertar dela Posso re 575 Tratado da natureza humana correr ao estudo e à reflexão interior ao conselho de amigos à medi tação freqüente e a repetidas resoluções Ao perceber porém quão ineficaz é tudo isso abraço com prazer qualquer outro expediente que me permita impor a mim mesmo uma restrição protegendome des sa fraqueza 6 A única dificuldade portanto é descobrir esse expediente por meio do qual os homens curam sua fraqueza natural submetendo se à necessidade de observar as leis da justiça e da eqüidade não obstante sua violenta propensão a preferir o que é contíguo ao que é remoto É evidente que esse remédio nunca poderia ser eficaz sem corrigir essa propensão e como é impossível mudar ou corrigir algo importante em nossa natureza o máximo que podemos fazer é trans formar nossa situação e as circunstâncias que nos envolvem tornan do a observância das leis da justiça nosso interesse mais próximo e sua violação nosso interesse mais remoto Mas como isso é imprati cável com respeito a toda a humanidade só pode funcionar relativa mente a umas poucas pessoas em quem criamos um interesse ime diato pela execução da justiça São essas pessoas que chamamos de magistrados civis reis e seus ministros nossos governantes e diri gentes que por serem indiferentes à maior parte da sociedade não têm nenhum interesse ou têm apenas um remoto interesse em qual quer ato de injustiça e que estando satisfeitos com sua condição pre sente e com seu papel na sociedade têm um interesse imediato em cada cumprimento da justiça tão necessária para a manutenção da sociedade Eis portanto a origem do governo e da obediência civil Os homens não são capazes de curar radicalmente em si mesmos ou nos outros a estreiteza de alma que os faz preferir o presente ao remoto Não podem mudar suas naturezas Tudo que podem fazer é mudar sua situação tornando a observância da justiça o interesse imediato de algumas pessoas particulares e sua violação seu interesse mais remoto Essas pessoas portanto são levadas não apenas a observar essas regras em sua própria conduta mas também a compelir os outros a observar uma regularidade semelhante e a reforçar os pre 576 Livro 3 Parte 2 Seção 7 ceitas da eqüidade em toda a sociedade E caso seja necessário po dem também fazer que outras pessoas se interessem mais imediata mente pela execução da justiça criando um certo número de funcio nários civis e militares para auxiliálos em seu governo 7 Mas essa execução da justiça embora seja a principal vantagem do governo não é a única Assim como a violência da paixão impede que os homens vejam distintamente o interesse que têm em um com portamento justo para com os demais impedeos também de ver a própria justiça dandolhes uma notável parcialidade em favor de si próprios Esse inconveniente é corrigido da mesma maneira que o anterior As mesmas pessoas que executam as leis da justiça também decidirão todas as controvérsias a seu respeito e sendo indiferentes à maior parte da sociedade suas decisões serão mais justas que aquelas que cada qual tomaria em seu próprio caso 8 Por meio dessas duas vantagens que se encontram na execução e na decisão da justiça os homens adquirem segurança contra a fraque za e as paixões dos demais e também contra as suas próprias e sob a proteção de seus governantes começam a saborear confortavelmente a parte doce da sociedade e da assistência mútua Mas o governo vai mais longe em sua influência benéfica não contente em proteger os homens nessas convenções que eles próprios fazem em vista de seu interesse mútuo freqüentemente os obriga a estabelecer tais conven ções e os força a buscar seu próprio benefício cooperando para al gum fim ou propósito comum Nenhuma qualidade da natureza hu mana causa tantos erros fatais em nossa conduta quanto a que nos leva a preferir o que é presente ao que é distante e remoto e nos faz desejar os objetos mais de acordo com sua situação do que com seu valor intrínseco Dois vizinhos podem concordar em drenar um pra do que possuem em comum porque é fácil para cada um saber o que o outro pensa e cada um deve perceber que a consequência imediata da falha na execução de sua parte é o abandono de todo o projeto Mas é muito difícil e na verdade até impossível que mil pessoas se ponham de acordo em uma ação desse tipo pois é difícil conceberem juntas 577 Tratado da natureza humana um plano tão complicado e ainda mais difícil executálo quando ca da uma busca um pretexto para se livrar do trabalho e dos custos e gostaria de jogar toda a carga sobre as outras A sociedade política remedeia facilmente esses dois inconvenientes Os magistrados en contram um interesse imediato em defender o interesse de qualquer parte considerável de seus súditos Não precisam consultar ninguém além de si mesmos para formar um plano que o promova E como o fracasso na execução de uma parte está conectado embora não imedia tamente com o de todo o conjunto eles impedem esse fracasso por que não vêem nenhum interesse nele seja imediato seja remoto As sim por todo canto constroemse pontes abremse portos erguemse muralhas fazemse canais equipamse esquadras e disciplinamse exércitos graças aos cuidados do governo que embora composto por homens sujeitos a todas as fraquezas humanas tornase por meio de uma das mais refinadas e sutis invenções imagináveis uma com posição em certa medida isenta de todas essas fraquezas Seção 8 Da fonte da obediência civil 1 Embora o governo seja uma invenção muito vantajosa e mesmo em algumas circunstâncias absolutamente necessária para a huma nidade ele não é necessário em todas as circunstâncias não é impos sível preservar a sociedade durante algum tempo sem recorrer a essa invenção É verdade que os homens mostramse sempre muito incli nados a preferir o interesse presente ao distante e remoto não lhes é fácil resistir à tentação de uma vantagem da qual podem gozar ime diatamente pela apreensão de um mal que ainda está longe Mas essa fraqueza é menos manifesta quando os bens e os prazeres da vida são poucos e de pouco valor como sempre ocorre na infância da socie dade Um índio não se sente muito tentado a se apossar da cabana de outro ou a roubar seu arco porque já possui esses mesmos benefícios quanto a qualquer riqueza superior que possa advir a um deles na caça ou na pesca será apenas casual e temporária e não terá uma tendên 578 Livro 3 Parte 2 Seção 8 eia muito grande a perturbar a sociedade Estou tão longe de concor dar com certos filósofos que dizem que os homens são inteiramente incapazes de viver em uma sociedade sem governo que afirmo que os primeiros rudimentos do governo surgem de disputas entre ho mens não da mesma sociedade mas de sociedades diferentes Um grau menor de riqueza que o necessário para produzir o primeiro efeito bastará para produzir o segundo A única coisa que os homens temem da guerra e da violência pública é a resistência que encontram e nes te caso como a partilham com todos da mesma sociedade essa re sistência parece menos terrível e além disso porque vem de pessoas estranhas parece ter conseqüências menos nocivas que quando cada um está exposto sozinho a um outro cujo relacionamento lhe é van tajoso e sem cuja companhia fica impossível sobreviver Ora a guer ra externa quando se abate sobre uma sociedade sem governo pro duz necessariamente uma guerra civil Se introduzirmos uma quantidade considerável de bens entre os homens eles começarão ins tantaneamente a brigar cada qual tentando se apossar daquilo que lhe agrada sem se importar com as conseqüências Em uma guerra externa o que está em jogo é o mais importante de todos os bens a vida e a integridade física e como todos evitam as posições perigo sas apossamse das melhores armas usam como desculpa os feri mentos mais leves as regras da sociedade que podem ter sido muito bem observadas quando havia tranqüilidade não têm mais lugar agora que os homens passam por tamanha comoção 2 Verificamos tal fato nas tribos americanas onde os homens vivem em mútua harmonia e amizade sem que haja um governo estabele cido e nunca se submetem a nenhum de seus companheiros exceto em tempos de guerra quando seu chefe goza de leve autoridade a qual perdem quando retornam do campo de batalha e restabelecem a paz com as tribos vizinhas Essa autoridade entretanto é suficiente para lhes mostrar as vantagens do governo e ensinalhes a recorrer a ele quan do sua riqueza e seus bens obtidos seja por pilhagem em guerras seja pelo comércio ou por qualquer invenção fortuita tornamse tão 579 Tratado da natureza humana consideráveis a ponto de fazêlos esquecer nas situações de emer gência o interesse que têm na preservação da paz e da justiça Sendo assim podemos dar uma razão plausível entre outras para explicar por que todos os governos são inicialmente monárquicos sem ne nhuma mistura ou variedade e por que as repúblicas surgem exclusivamente dos abusos da monarquia e do poder despótico Os acampamentos guerreiros são o verdadeiro pai das cidades e como em razão da urgência de cada situação a guerra não pode ser admi nistrada sem que a autoridade esteja concentrada em uma pessoa é natural que o mesmo tipo de autoridade reapareça no governo civil que sucede o militar Considero essa explicação mais natural que a comumente extraída do governo patriarcal ou da autoridade do pai que ocorreria primeiro na família acostumando seus membros à au toridade de uma só pessoa O estado da sociedade sem governo é um dos estados mais naturais do homem podendo subsistir mesmo após a conjunção de várias famílias e até muito depois da primeira gera ção Nada a não ser um aumento da riqueza e dos bens poderia obri gar os homens a abandonálo e tão bárbaras e incultas são todas as sociedades quando de sua formação inicial que muitos anos devem se passar antes que esses bens possam aumentar a ponto de pertur bar a paz e a harmonia dos homens 3 Entretanto embora os homens possam manter uma sociedade pequena e inculta sem governo não podem manter nenhum tipo de sociedade sem justiça e sem observar aquelas três leis fundamentais concernentes à estabilidade da posse à sua transferência por consen timento e ao cumprimento das promessas Essas leis portanto são anteriores ao governo e supõese que impõem uma obrigação antes mesmo que se tenha pensado pela primeira vez no dever de obediên cia aos magistrados civis E direi ainda mais seria natural supor que o governo quando se estabelece pela primeira vez deriva sua obrigação desse direito natural particularmente da lei concernente ao cumpri mento de promessas Uma vez os homens tendo percebido a neces sidade do governo para manter a paz e fazer cumprir a justiça eles 580 Livro 3 Parte 2 Seção 8 naturalmente se reuniriam escolheriam seus magistrados determi nariam seu poder e lhes prometeriam obediência Como por suposi ção a promessa é um vínculo ou garantia já em uso que se acompa nha de uma obrigação moral devese considerála a sanção original do governo e a fonte da primeira obrigação à obediência Esse racio cínio parece tão natural que se tornou o fundamento do sistema po lítico hoje em voga entre nós sendo de certa maneira o credo de um de nossos partidos cujos membros se orgulham com razão da cor reção de sua filosofia e de sua liberdade de pensamento Todos os ho mens dizem eles nascem livres e iguais o governo e a superioridade só podem se estabelecer pelo consentimento o consentimento dos homens quan do estabelecem o governo impõelhes uma nova obrigação desconhecida do direito natural Os homens portanto só são obrigados a obedecer a seus magistrados porque assim o prometeram se não tivessem expressa ou tacita mente dado sua palavra de manter a obediência esta nunca se teria tornado parte de seu dever moral Essa conclusão entretanto quando compreen dida de modo a incluir o governo em todas as suas épocas e situa ções é inteiramente errônea O que afirmo é que embora o dever da obediência civil se baseie inicialmente no da obrigação das promes sas e seja sustentado durante algum tempo por essa obrigação tão logo as vantagens do governo são plenamente conhecidas e reconhe cidas ele imediatamente cria raízes próprias passando a implicar uma obrigação e autoridade originais independentes de qualquer contra to Este é um princípio importante que devemos examinar com cui dado e atenção antes de prosseguirmos 4 É razoável que esses filósofos que afirmam ser a justiça uma vir tude natural e anterior às convenções humanas reduzam toda obediên cia civil à obrigação decorrente de uma promessa e afirmem que so mente nosso consentimento nos obriga a nos submeter à magistratura Pois como todo governo é claramente uma invenção humana e como a origem da maior parte dos governos é um fato histórico conhecido será necessário retroceder ainda mais para encontrar a fonte de nossos deveres políticos se quisermos afirmar que implicam uma obrigação 581 Tratado da natureza humana moral natural Esses filósofos portanto rapidamente observam que a sociedade é tão antiga quanto a espécie humana e aquelas três leis fundamentais do direito natural tão antigas quanto a sociedade Desse modo aproveitandose da antiguidade e da origem obscura dessas leis eles primeiro negam que elas sejam invenções humanas artifi ciais e voluntárias e em seguida procuram enxertar nelas aqueles outros deveres que são mais claramente artificiais Mas quando per cebermos que isto é um engano e virmos que a justiça natural as sim como a civil tem origem nas convenções humanas rapidamente descobriremos como é inútil reduzir uma à outra ou seja buscar nas leis naturais um fundamento para nossos deveres políticos que seja mais forte que o interesse e as convenções humanas quando estas mesmas leis são construídas com base no mesmo fundamento De qualquer lado que examinemos este assunto veremos que essas duas espécies de deveres são exatamente equivalentes e tanto no que diz respeito a sua invenção como no que concerne a sua obriga ção moral ambas têm a mesma origem São concebidas para reme diar inconvenientes semelhantes e adquirem sua sanção moral da mesma maneira ou seja do fato de remediarem esses inconvenien tes Esses são dois pontos que procuraremos provar da maneira mais distinta possível 5 Já mostramos que os homens inventaram essas três leis fundamen tais do direito natural quando observaram a necessidade da socieda de para sua subsistência e descobriram que seria impossível manter uma harmonia comum sem algum tipo de restrição a seus apetites naturais Portanto o mesmo amor a si próprios que torna os homens tão incômodos uns para os outros toma uma direção nova e mais con veniente produz as regras da justiça e passa a ser o primeiro motivo para que as observemos Mas quando os homens percebem que em bora as regras da justiça sejam suficientes para manter uma sociedade eles são todavia incapazes por si sós de observar essas regras em so ciedades maiores e mais sofisticadas instauram o governo como uma nova invenção para alcançar seus fins preservando as antigas vanta 582 Livro 3 Parte 2 Seção 8 gens ou possibilitando novas por meio de uma aplicação mais rígi da da justiça É neste sentido portanto que nossos deveres civis es tão conectados com nossos deveres naturais ou seja porque aqueles foram inventados especialmente em benefício destes e porque o prin cipal objetivo do governo é forçar os homens a observar o direito na tural Entretanto sob esse aspecto a lei natural concernente ao cum primento de promessas devese compreender juntamente com as outras devese considerar sua estrita observância um efeito da institui ção do governo em lugar de se considerar a obediência ao governo um efeito da obrigação de se cumprir uma promessa Embora o obje tivo de nossos deveres civis seja reforçar nossos deveres naturais o primeiro9 motivo da invenção bem como do cumprimento de ambos é unicamente o interesse próprio E uma vez que na obediência ao governo existe um interesse independente do interesse pelo cumpri mento das promessas temos de admitir também a existência em cada um de uma obrigação distinta Obedecer aos magistrados civis é ne cessário para a preservação da ordem e da harmonia social Cumprir as promessas é necessário para promover a segurança e a confiança mútua nas tarefas comuns da vida Os meios assim como os fins são perfeitamente distintos e uns não se subordinam aos outros 6 Para que isso fique mais evidente consideremos que os homens freqüentemente se comprometem por meio de promessas a realizar ações que teriam interesse em realizar independentemente dessas promessas por exemplo quando querem dar à outra pessoa uma ga rantia maior e por isso acrescentam uma nova obrigação de interes se àquela a que já estavam sujeitos O interesse pelo cumprimento de promessas além de sua obrigação moral é geral explícito e da maior importância para a vida Outros interesses podem ser mais particulares e duvidosos tendemos a duvidar mais de que os homens possam dar vazão a seus humores e paixões agindo contra eles Aqui 9 Primeiro no tempo e não em dignidade ou em força 583 Tratado da natureza humana portanto é natural que as promessas entrem em jogo sendo com fre qüência requeridas para proporcionar maior satisfação e segurança Quando se supõe contudo que esses outros interesses são tão ge rais e explícitos quanto o interesse pelo cumprimento de uma pro messa eles passam a ser tratados em pé de igualdade e os homens começam a depositar neles a mesma confiança Ora é exatamente isso que se passa com nossos deveres civis ou seja com a obediência aos magistrados sem a qual nenhum governo poderia sobreviver e nenhu ma paz ou ordem poderia se manter em grandes sociedades nas quais por um lado há tantos bens e por outro tantas necessidades reais ou imaginárias Nossos deveres civis portanto logo devem se des vincular de nossas promessas adquirindo uma força e uma influên cia independentes O interesse nos dois casos é exatamente do mes mo tipo é geral explícito e prevalece em todos os tempos e lugares Por isso não pode haver nenhum pretexto racional para fundarmos um sobre o outro já que cada um tem seu fundamento próprio Se reduzimos a obrigação da obediência civil à de uma promessa bem poderíamos reduzir a esta também a obrigação de se abster das posses alheias Os interesses não são mais distintos em um caso que no outro O respeito pela propriedade não é mais necessário à sociedade natural que a obediência o é à sociedade civil ou ao governo e o primeiro tipo de sociedade tampouco é mais necessário à existência da humanidade que esta última o é a seu bemestar e felicidade Em resumo se o cum primento das promessas é vantajoso a obediência ao governo também o é se aquele interesse é geral este também o é se aquele é evidente e explícito este também o é E como essas duas regras estão fundadas em obrigações semelhantes de interesse cada qual tem de ter uma autoridade própria e independente da outra 7 Porém não são apenas as obrigações naturais motivadas pelo in teresse que são distintas nas promessas e na obediência civil mas também as obrigações morais impostas pela honra e consciência de modo que o mérito ou demérito de umas não depende em nada do 584 Livro 3 Parte 2 Seção 8 das outras De fato se considerarmos a estreita conexão que existe entre as obrigações naturais e as morais veremos que essa conclu são é absolutamente inevitável Nosso interesse está sempre do lado da obediência aos magistrados só uma grande vantagem presente pode nos levar à rebelião ao nos fazer menosprezar o interesse re moto que temos pela preservação da paz e da ordem na sociedade Mas o interesse presente embora possa nos tornar cegos para as con seqüências de nossas próprias ações não intervém no caso das ações alheias não impede que elas apareçam em suas verdadeiras cores ou seja como altamente prejudiciais a nosso próprio interesse ou ao menos ao interesse público de que participamos por simpatia Isso naturalmente produz em nós um malestar quando consideramos essas ações sediciosas e desleais levandonos a vincular a elas a idéia de vício e deformidade moral É o mesmo princípio que nos faz desa provar todo tipo de injustiça privada particularmente a quebra de pro messas Censuramos toda traição e quebra de confiança porque con sideramos que a liberdade e a extensão do interrelacionamento humano dependem inteiramente da fidelidade às promessas Censu ramos toda deslealdade aos magistrados porque percebemos que a observação da justiça na estabilidade da posse em sua transferência por consentimento e no cumprimento de promessas é impossível sem a submissão a um governo Como aqui existem dois interesses intei ramente distintos entre si eles devem gerar duas obrigações morais igualmente separadas e independentes Mesmo que jamais tivesse havido no mundo algo semelhante a uma promessa o governo ainda seria necessário em todas as sociedades extensas e civilizadas e se as promessas tivessem apenas sua própria obrigação sem receber inde pendentemente a sanção do governo seriam pouco eficazes nessas sociedades Isso separa as fronteiras entre nossos deveres públicos e privados e mostra que estes dependem mais daqueles que aqueles destes A educação e o artifício dos políticos concorrem para proporcio nar uma moralidade adicional à lealdade e para estigmatizar toda re belião com um maior grau de culpa e infâmia Nem é de admirar que 585 Tratado da natureza humana os políticos se esforcem tanto para inculcar tais noções já que seu interesse está tão particularmente em jogo 8 Para o caso de esses argumentos não parecerem inteiramente concludentes como penso que são recorrerei à autoridade e pro varei partindo do consentimento universal dos homens que a obri gação de submissão ao governo não é derivada de uma promessa por parte dos súditos Ninguém precisa estranhar que até aqui eu tenha tentado estabelecer meu sistema com base na pura razão sem quase nunca citar sequer a opinião de filósofos ou de historiadores e agora passe a apelar para a autoridade popular opondo as opiniões da plebe ao raciocínio filosófico Devese observar que as opiniões dos homens neste caso carregam consigo uma autoridade peculiar sendo em gran de medida infalíveis A distinção entre o bem e o mal morais se fun da no prazer ou na dor que resultam da contemplação de um sen timento ou um caráter e como esse prazer ou essa dor não podem ser desconhecidos da pessoa que os sente seguese10 que em cada caráter há tanto vício ou tanta virtude quanto cada um põe nele é impossível nos enganarmos quanto a isso E embora nossos juízos concernentes à origem de um vício ou de uma virtude não sejam tão certos quanto os que se referem a seus graus como o problema aqui não diz respeito à origem filosófica de uma obrigação mas a uma sim ples questão de fato não é fácil conceber como poderíamos cometer um erro Um homem que reconhece seu compromisso de dar a outro uma certa soma de dinheiro certamente deve saber se foi ele ou seu pai que se comprometeu se o fez simplesmente por benevolência ou porque tomou esse dinheiro emprestado e sob que condições e com que objetivo assumiu esse compromisso De maneira semelhante assim como é certo que temos a obrigação moral de nos submeter ao governo porque todos pensam assim deve ser igualmente certo que 1 O Essa proposição tem de ser rigorosamente verdadeira para toda qualidade determinada apenas pelo sentimento Consideraremos posteriormente em que sentido se pode falar de um gosto correto ou errado no que diz respeito à moral à retórica ou à beleza Enquanto isso podemos observar que existe tal uniformidade nos sentimentos gerais da humanida de que essas questões se tornam pouco importantes 586 Livro 3 Parte 2 Seção 8 essa obrigação não resulta de uma promessa já que ninguém cujo juízo não tenha sido desviado por uma adesão demasiadamente rígida a um sistema filosófico jamais sonhou em atribuirlhe essa origem Nem magistrados nem súditos têm essa idéia de nossos deveres civis 9 Constatamos que os magistrados estão tão longe de derivar sua autoridade e a obrigação de obediência por parte de seus súditos de uma promessa ou contrato original que tanto quanto possível escon dem de seu povo sobretudo do vulgo que seria essa sua origem Se fosse esse o fundamento da sanção dada ao governo nossos gover nantes nunca a receberiam tacitamente sendo ela o máximo que se poderia desejar pois aquilo que é concedido de maneira tácita e imper ceptível nunca pode ter sobre as pessoas a mesma influência que aquilo que se realiza de maneira expressa e aberta Uma promessa é tácita quando a vontade é significada por signos mais difusos que os da fala mas sempre supõe uma vontade e esta nunca pode deixar de ser notada pela pessoa que a exerce mesmo que o faça tácita ou silencio samente Mas se perguntásseis à grande maioria dos membros de uma nação se alguma vez deram seu consentimento à autoridade de seus dirigentes ou se prometeram obedecerlhes eles provavelmente fariam de vós uma idéia bem estranha por certo responderiam que a questão não depende de seu consentimento e que já nasceram submetidos a essa obediência Em conseqüência dessa opinião vemos que fre qüentemente consideram como seus dirigentes naturais pessoas que naquele momento estão desprovidas de qualquer poder e autoridade e as quais ninguém por mais estúpido que fosse escolheria voluntaria mente e isso apenas porque essas pessoas pertencem à linhagem daqueles que antes governaram e encontramse hierarquicamente na posição que costuma tomar a sucessão mesmo que o intervalo de tempo entre eles seja tão grande que não haja praticamente ne nhum homem ainda vivo que possa ter prometido obediência Será então que um governo não tem nenhuma autoridade sobre essas pes soas só porque elas nunca lhe deram seu consentimento e considera riam a própria tentativa de tal escolha voluntária prova de arrogância e 587 Tratado da natureza humana impiedade Ora a experiência nos mostra que o governo as pune li vremente pelo que chama de traição e rebelião mas tal prática de acor do com esse sistema parece reduzirse a um ato comum de injustiça Se disserdes que permanecendo em seus domínios as pessoas de fato dão seu consentimento ao governo estabelecido responderei que isso só poderia ocorrer se elas pensassem que a questão depende de sua escolha coisa que poucos ou ninguém além desses filósofos jamais imaginou Nunca se alegou em defesa de um rebelde que a primeira coisa que fez após atingir a idade da razão foi declarar guerra contra o soberano do Estado que enquanto era criança não podia se compro meter por seu próprio consentimento e ao se tornar um adulto mos trou claramente por esse primeiro ato que realizou que não tinha a intenção de impor a si mesmo nenhuma obrigação à obediência Ao contrário o que vemos é que o direito civil pune esse crime na mesma idade que qualquer outro que seja criminoso por si mesmo indepen dentemente de um consentimento a saber assim que a pessoa atin ge o uso pleno da razão e no entanto segundo essa hipótese o mais justo seria admitir para esse crime um tempo intermediário em que se supusesse ao menos um consentimento tácito A isso podemos acrescentar que nesse caso um homem que vive sob um governo absolutista não deveria a ele nenhuma obediência já que por sua própria natureza esse governo não depende do consentimento Mas como esse é um governo tão natural e comum quanto qualquer outro certamente deve ocasionar algum tipo de obrigação e a experiência deixa claro que os homens que a ele se submetem sempre pensam dessa forma Isso é uma prova clara de que comumente não conside ramos que nossa obediência seja derivada de nosso consentimento ou promessa Outra prova disso encontrase no fato de que quando por algum motivo nossa promessa é feita de modo explícito sempre distinguimos precisamente entre as duas obrigações e acreditamos que uma reforça a outra diferentemente do que ocorreria se apenas estivéssemos repetindo a mesma promessa Quando nenhuma promes sa é feita um homem não considera que por causa de uma rebelião 588 Livro 3 Parte 2 Seção 9 seu compromisso quanto a questões privadas esteja quebrado ao contrário mantém esses dois deveres da honra e da obediência civil completamente distintos e separados Ora como esses filósofos vêem a união desses dois deveres como uma invenção muito sutil essa é uma prova convincente de sua falsidade pois ninguém pode fazer uma promessa ou ser constrangido por sua sanção e obrigação sem ter conhecimento disso Seção 9 Das regras da obediência civil 1 Os tratadistas políticos que recorreram à hipótese de uma pro messa ou contrato original como fonte de nossa obediência ao gover no pretendiam estabelecer um princípio perfeitamente justo e razoá vel mas o raciocínio com base no qual procuraram estabelecêlo era falacioso e sofístico Pretendiam provar que nossa submissão ao go verno admite exceções e um excesso de tirania por parte dos go vernantes é suficiente para liberar os súditos de todo vínculo de obe diência Afirmam que como os homens entram em sociedade e se submetem a um governo por seu consentimento livre e voluntário devem ter em vista certas vantagens que se propõem a extrair desse governo e em nome das quais de bom grado abrem mão de sua liber dade original Portanto há um compromisso recíproco assumido pelo magistrado a saber dar proteção e segurança e é apenas por dar es peranças de proporcionar essas vantagens que pode persuadir as pes soas a se submeterem a ele Mas quando em vez de proteção e se gurança essas pessoas encontram tirania e opressão ficam liberadas de suas promessas como acontece em todo contrato condicional retornando àquele estado de liberdade que precede a instituição do governo Os homens nunca seriam tão estúpidos a ponto de assu mir compromissos que pudessem ser vantajosos apenas aos outros sem nenhuma perspectiva de melhorar sua própria condição Quem se propõe a tirar algum proveito de nossa submissão tem de se com 589 Tratado da natureza humana prometer expressa ou tacitamente a nos proporcionar alguma van tagem com sua autoridade e não deve esperar que continuemos a lhe obedecer se não cumpre sua parte 2 Repito a conclusão é correta mas os princípios são falsos e or gulhome de poder estabelecer a mesma conclusão com base em prin cípios mais razoáveis Para estabelecer nossos deveres políticos não afirmarei que os homens percebem as vantagens do governo que ins tituem o governo tendo em vista essas vantagens que essa institui ção requer uma promessa de obediência a qual impõe uma obrigação moral até um certo ponto mas que sendo condicional deixa de ser obrigatória sempre que o outro contratante não cumpre sua parte Vejo que a própria promessa surge unicamente de convenções humanas e é inventada em vista de um certo interesse Por isso procuro um interesse que esteja mais imediatamente conectado com o governo e possa ser ao mesmo tempo o motivo original de sua instituição e a fonte de nossa obediência a ele Constato que esse interesse consiste na segurança e proteção de que desfrutamos na sociedade política que nunca poderíamos alcançar quando inteiramente livres e inde pendentes Como o interesse portanto é a sanção imediata do gover no um não pode durar mais que o outro e sempre que o magistrado civil leva sua opressão ao ponto de tornar sua autoridade intolerável não temos mais obrigação de nos submeter a ele A causa cessa o efeito portanto também deve cessar 3 Até aqui no que se refere à obrigação natural da obediência civil a conclusão é imediata e direta Quanto à obrigação moral podemos observar que seria falsa a máxima de que quando a causa cessa o efeito também deve cessar Pois existe um princípio na natureza humana que notamos diversas vezes que diz que os homens se prendem fortemen te a regras gerais e que freqüentemente estendemos nossas máximas além das razões que nos levaram a estabelecêlas pela primeira vez Quando os casos são similares em muitas circunstâncias tendemos a tratálos em pé de igualdade sem considerar que diferem nas cir cunstâncias mais importantes sendo a semelhança mais aparente que 590 Livro 3 Parte 2 Seção 9 real Podese pensar portanto que no caso da obediência civil nossa obrigação moral derivada do dever não deixa de existir mesmo se a obrigação natural derivada do interesse que é sua causa não mais existir e que os homens podem ser obrigados por sua consciência a se submeter a um governo tirânico contra seu próprio interesse e o do público De fato reconheço a força desse argumento enquanto admito que as regras gerais comumente se estendem além dos prin cípios em que se baseiam e raramente fazemos a elas qualquer ex ceção a menos que essa exceção tenha as qualidades de uma regra geral e seja fundada em exemplos muitos numerosos e comuns Ora afirmo que é exatamente esse o caso presente Quando os homens se submetem à autoridade alheia fazemno para proporcio nar a si mesmos alguma segurança contra a maldade e a injustiça dos outros homens que são perpetuamente levados por suas pai xões desregradas e por seu interesse presente e imediato a violar todas as leis da sociedade Mas como essa imperfeição é inerente à natureza humana sabemos que deve acompanhar os homens em to dos os seus estados e condições e aqueles que escolhemos como nossos governantes não adquirem imediatamente uma natureza superior à do resto da humanidade simplesmente por adquirirem um poder e uma autoridade superiores O que esperamos deles depende de uma mudança não em sua natureza mas em sua situação que ocorre quando adquirem um interesse mais imediato pela preserva ção da ordem e pelo cumprimento da justiça Mas além do fato de esse interesse só ser mais imediato no caso do cumprimento da jus tiça entre seus súditos e não no caso de disputas entre eles próprios e seus súditos além disso digo freqüentemente podemos esperar dada a irregularidade da natureza humana que esses governantes irão desconsiderar até mesmo esse interesse imediato e que suas paixões os levarão a todos os excessos da crueldade e da ambição Nosso co nhecimento geral da natureza humana nossa observação da história passada da humanidade nossa experiência dos tempos presentes todas essas causas devem nos levar a abrir espaço para exceções e 591 Tratado da natureza humana devem nos fazer concluir que podemos resistir aos exemplos mais violentos do poder supremo sem cometer por isso nenhum crime ou injustiça 4 De acordo com isso podemos observar que tal é ao mesmo tem po a prática geral e o princípio da humanidade e que nenhuma nação que tenha podido lançar mão de algum remédio continuou sofrendo os cruéis estragos de um tirano ou foi censurada por ter resistido a eles Os homens que pegaram em armas contra Dionísio Nero ou Felipe II têm a simpatia de todos aqueles que lêem sua história só a mais violenta perversão do bom senso poderia nos levar a condenálos É certo portanto que em nenhuma de nossas noções morais sustenta mos um tamanho absurdo como o da obediência passiva ao contrá rio permitimos a resistência nos casos mais flagrantes de tirania e opressão A opinião geral dos homens tem alguma autoridade em todos os casos mas no caso da moral é absolutamente infalível E não é menos infalível apenas porque os homens não conseguem expli car distintamente os princípios em que se baseia Poucas pessoas são capazes de formar esta cadeia de raciocínios o governo é uma mera invenção humana no interesse da sociedade quando a tirania do governante contraria esse interesse suprime a obrigação natural da obediência A obrigação moral fundase na natural e portanto tem que deixar de existir quando esta acaba sobretudo quando o assunto é tal que nos leva a entrever muitas ocasiões em que a obrigação natural pode acabar e nos faz formar uma espécie de regra geral para regular nossa conduta em tais circunstâncias Mas embora essa cadeia de raciocínios seja demasiadamente sutil para as pessoas comuns o certo é que todos os homens têm dela uma noção implícita percebem que só devem obediência ao governo em virtude do interesse público e ao mesmo tempo que a natureza humana está sujeita a tantas fra quezas e paixões que pode facilmente perverter essa instituição trans formando seus governantes em tiranos e inimigos públicos Se o sen tido do interesse não fosse nosso motivo original para a obediência eu perguntaria que outro princípio há na natureza humana capaz de 592 Livro 3 Parte 2 Seção 1 0 subjugar a ambição natural dos homens forçandoos a se subme ter A imitação e o costume não são suficientes pois a questão reaparece que motivo produz esses primeiros exemplos de submis são que imitamos e essa série de ações que produz o costume É evi dente que não há outro princípio além do interesse e se é o interesse que gera primeiramente a obediência ao governo a obrigação de obe decer tem de cessar toda vez que cessa o interesse em um grau sig nificativo e em um número considerável de casos Seção 1 O Dos objetos da obediência civil 1 Embora em certas ocasiões resistir ao poder supremo possa ser justificável tanto para a boa política como para a moral é certo entre tanto que no curso comum dos assuntos humanos nada pode ser mais nocivo e criminoso pois além das convulsões que sempre acom panham as revoluções tal prática tende diretamente a subverter todo governo e a produzir uma anarquia e confusão universal entre os ho mens Assim como as sociedades numerosas e civilizadas não podem subsistir sem governo assim também o governo é inteiramente inú til sem uma estrita obediência Devemos sempre pesar as vantagens que extraímos da autoridade e suas desvantagens desse modo sere mos mais cuidadosos antes de pôr em prática a doutrina da resistên cia A regra comum exige a submissão e somente em casos de uma tirania e opressão atroz pode ter lugar a exceção 2 Portanto uma vez que comumente devemos uma cega submissão à magistratura a próxima questão é a quem devemos tal submissão quem devemos considerar nossos magistrados legítimos Para responder a essa questão relembremos o que já foi estabelecido a respeito da origem do governo e da sociedade política Uma vez tendo os homens expe rimentado a impossibilidade de preservar uma ordem estável na so ciedade enquanto cada um é dono de si próprio violando ou obser vando as leis da sociedade de acordo com seu interesse presente ou a 593 Tratado da natureza humana seu belprazer eles naturalmente inventam o governo e tanto quan to possível põem fora de seu próprio alcance o poder de transgredir as regras da justiça O governo portanto surge da convenção volun tária dos homens e evidentemente a mesma convenção que estabe lece o governo também determinará as pessoas que devem governar eliminando toda dúvida e ambigüidade a esse respeito O consenti mento voluntário dos homens deve ser neste caso ainda mais eficaz já que a autoridade do magistrado se fundamenta inicialmente em uma promessa por parte dos súditos pela qual estes se comprometem a obedecer como ocorre em qualquer outro contrato ou compromis so A mesma promessa portanto que os obriga a obedecer submete os a uma pessoa particular e a torna objeto de sua lealdade 3 Mas quando o governo já está estabelecido sobre essa base há um tempo considerável e o interesse distinto que temos pela submissão já produziu um sentimento distinto de moralidade tudo se modifi ca a promessa não é mais capaz de determinar o magistrado parti cular pois não é mais considerada o fundamento do governo Supo mos naturalmente que nascemos sob a submissão e imaginamos que tais pessoas particulares têm o direito de comandar enquanto nós por nosso lado temos de obedecer Essas noções de direito e obriga ção derivam unicamente da vantagem que vemos no governo o que nos dá uma aversão pela idéia de praticarmos nós mesmos a resis tência e nos faz sentir um desprazer quando outros a praticam No entanto devese notar aqui que nesse novo estado de coisas não admi timos que a sanção original do governo que é o interesse determine a quem devemos obedecer como era o caso da sanção original quando tudo se baseava numa promessa A promessa fixa e determina as pessoas sem dar lugar a incertezas Mas evidentemente se os homens regu lassem sua conduta quanto a esse aspecto pela perspectiva de um in teresse peculiar fosse ele público ou privado envolverseiam em con fusões intermináveis o que tornaria qualquer governo em grande parte sem efeito Cada pessoa tem um interesse privado diferente e embora o interesse público em si próprio seja sempre o mesmo gera 594 Livro 3 Parte 2 Seção 1 O grandes dissensões em razão das diferentes opiniões que as pessoas particulares têm dele Portanto o mesmo interesse que nos leva a nos submeter à magistratura faz que renunciemos a ele próprio ao esco lhermos nossos magistrados submetendonos a uma certa forma de governo e a uma pessoa particular sem poder aspirar à completa per feição em uma ou em outra O que se passa aqui é o mesmo que ocorre no caso daquela lei do direito natural concernente à estabilidade da posse É altamente vantajoso e mesmo absolutamente necessário à sociedade que a posse seja estável é isso que nos leva a estabelecer essa regra Mas constatamos que buscando obter a mesma vantagem se atribuíssemos posses particulares a pessoas particulares apenas frustraríamos nosso objetivo e perpetuaríamos a confusão que essa regra pretende impedir Portanto devemos proceder com base em regras gerais e regular a nós mesmos por interesses gerais modifi cando a lei natural concernente à estabilidade da posse E não temos por que temer que nossa adesão a essa lei diminua em virtude da apa rente futilidade dos interesses que a determinam O impulso da mente é derivado de um interesse muito forte e os interesses menores ser vem apenas para direcionar o movimento sem nada acrescentar a ele ou dele retirar O mesmo se passa com o governo Nada é mais vantajoso para a sociedade que essa invenção e esse interesse é suficiente para nos fazer abraçála com ardor e entusiasmo mas posteriormente somos obrigados a regular e a direcionar nossa devoção ao governo por meio de diversas considerações que não têm a mesma importância escolhendo nossos magistrados sem ter em vista nenhuma vantagem particular que possamos obter com essa escolha 4 O primeiro princípio que analisarei como fundamento do direito de magistratura é aquele que dá autoridade a quase todos os gover nos estabelecidos no mundo Refirome à posse prolongada em uma determinada forma de governo ou sucessão de príncipes Certamente se retrocedermos até a origem de cada nação descobriremos que não há quase nenhuma linhagem de reis ou comunidade política que 595 Tratado da natureza humana não tenha sido primeiro fundada na usurpação e na rebelião e cujo direito não tenha sido de início mais que duvidoso e incerto Só o tem po dá solidez a esse direito e agindo de modo gradativo sobre a men te dos homens levaos a aceitar qualquer autoridade que acaba por lhes parecer justa e razoável Nada faz um sentimento ter sobre nós maior influência e nada dirige nossa imaginação mais fortemente para um objeto determinado que o costume Quando estamos há muito tempo acostumados a obedecer a um certo grupo de pessoas o instin to ou tendência geral que temos a supor que existe uma obrigação moral acompanhando a obediência civil toma facilmente essa direção e esco lhe esse grupo como seu objeto É o interesse que produz o instinto geral mas é o costume que imprime a ele uma direção particular 5 Cabe aqui observar que o mesmo período de tempo tem influên cias diferentes em nossos sentimentos morais de acordo com suas diferentes influências sobre a mente Nós naturalmente julgamos tudo por comparação e uma vez que ao considerar o destino de reis e repúblicas percorremos um longo período uma curta duração não tem nesse caso a mesma influência em nossos sentimentos que quando consideramos outros objetos Um período de tempo bem curto basta para que uma pessoa pense ter adquirido direito sobre um cavalo ou um conjunto de roupas mas em geral nem todo um século é suficiente para estabelecer um novo governo ou para eli minar qualquer hesitação dos súditos a seu respeito Acrescentese a isso que para um príncipe adquirir um direito sobre qualquer po der adicional que possa vir a usurpar basta um período mais curto que o necessário para consolidar seu direito quando todo o poder que ele adquiriu é produto de usurpação Os reis da França não estão de posse de um poder absoluto há mais de dois reinados entretanto nada parecerá mais estranho aos franceses que falar de suas liberda des Se considerarmos o que dissemos sobre a acessão será fácil ex plicar esse fenômeno 6 Quando não há uma forma de governo estabelecida por uma posse prolongada a posse atual preenche seu lugar podendo por isso ser vis 596 Livro 3 Parte 2 Seção 1 0 ta como a segunda fonte de toda a autoridade pública O direito à au toridade não é senão a posse constante da autoridade mantida pelas leis da sociedade e pelos interesses dos homens e nada pode ser mais natural que acrescentar essa posse constante à posse atual de acor do com os princípios acima mencionados Se os mesmos princípios não tiveram influência no caso da propriedade privada foi porque eram então contrabalançados por considerações muito fortes de interes se foi assim que observamos que isso impediria qualquer restitui ção e autorizaria e mesmo protegeria toda e qualquer violência Embora os mesmos motivos possam parecer ter força no caso da au toridade pública eles sofrem a oposição de um interesse contrário que consiste em preservar a paz e impedir todas as mudanças que ainda que não causem dificuldades nos assuntos privados vêm ine vitavelmente acompanhadas de desordem e derramamento de san gue no caso do interesse público 7 Se uma pessoa vendo a impossibilidade de explicar o direito do possuinte presente por meio dos sistemas éticos estabelecidos re solvesse negar por completo esse direito e afirmasse que ele não é autorizado pela moral seria considerada com razão como alguém que defende um extravagante paradoxo que choca o bom senso e o senso comum dos homens Não há máxima mais conforme à pru dência bem como à moral que aquela que diz que devemos nos sub meter pacificamente ao governo que encontramos já estabelecido no país em que nos coube viver sem nos perguntarmos demasiado curiosamente sobre sua origem e formação Poucos governos re sistirão a um exame tão rigoroso Quantos reinos existem hoje no mundo e quantos mais encontramos na história cujos governantes não têm melhor fundamento para sua autoridade que a posse atual Para nos restringirmos apenas ao império grecoromano não é evi dente que a longa sucessão de imperadores desde a dissolução das liberdades públicas de Roma até a extinção final desse império pelos Ver nossa nota à p1 78 NT 597 Tratado da natureza humana turcos não poderia sequer ter a pretensão de dar uma outra justifica tiva para o direito a seu império A eleição pelo senado era uma mera formalidade e sempre seguia a escolha das legiões ora estas esta vam quase sempre divididas nas diferentes províncias e nada a não ser a espada podia acabar com tais diferenças Era pela espada por tanto que todo imperador adquiria e defendia seu direito Assim ou dizemos que todo o mundo conhecido durante tantos anos não possuía nenhum governo e não devia obediência a ninguém ou te mos de admitir que na esfera pública o direito do mais forte deve ser aceito como legítimo sendo autorizado pela moral quando não se opõe a nenhum outro direito 8 O direito de conquista pode ser considerado uma terceira fonte do direito de soberania Esse direito se parece muito com o da posse atual porém tem uma força superior uma vez que é apoiado pelas noções de glória e honra que atribuímos aos conquistadores em vez dos sen timentos de ódio e execração que acompanham os usurpadores Os homens são naturalmente favoráveis aos que amam por isso apresen tam maior tendência a atribuir um direito à violência bemsucedida de um soberano sobre outro que a uma rebelião bemsucedida de um súdito contra seu soberano 9 Quando não existe nem posse prolongada nem posse atual nem conquista como ocorre quando morre o soberano que fundou uma determinada monarquia nesse caso o direito de sucessão prevalece naturalmente e os homens em geral são levados a colocar no trono o filho de seu falecido monarca supondo que ele herda a autoridade do pai O presumível consentimento do pai a imitação do processo de sucessão em famílias privadas o interesse do Estado em escolher a pessoa mais poderosa e com o maior número de seguidores todas 1 1 Não estou afirmando aqui que a posse atual ou a conquista são suficientes para conferir um direito contra a posse prolongada e o direito positivo Digo apenas que têm alguma força e serão capazes de decidir a questão quando os direitos são iguais em todos os outros as pectos sendo por vezes até suficientes para consagrar o direito mais fraco É difícil deter minar qual seu grau de força Acredito que quem for razoável admitirá que elas têm uma grande força em todas as disputas concernentes aos direitos dos príncipes 598 Livro 3 Parte 2 Seção 1 O essas razões fazem que os homens prefiram o filho de seu exmonar ca a qualquer outra pessoa12 10 Essas razões têm algum peso mas estou convencido de que qual quer pessoa que considerar a questão de maneira imparcial verá que alguns princípios da imaginação concorrem com essas considerações de justiça e interesse A autoridade real parece estar conectada com o jovem príncipe mesmo durante a vida de seu pai em virtude da transi ção natural do pensamento e mais ainda após sua morte Desse modo nada é mais natural que completar essa união por meio de uma nova relação conferindo ao príncipe de fato a posse daquilo que parece lhe pertencer tão naturalmente 1 1 Para confirmar essa afirmação podemos examinar os seguintes fenômenos bastante curiosos em seu gênero Nas monarquias ele tivas o direito de sucessão não é admitido nem pelas leis nem pelo costume adquirido entretanto sua influência é tão natural que é im possível excluílo inteiramente da imaginação e tornar os súditos indi ferentes ao filho de seu exmonarca Assim em alguns governos desse tipo a escolha comumente recai sobre algum membro da família real e em outros tais membros são todos excluídos Esses fenômenos con trários decorrem do mesmo princípio A exclusão da família real se dá por uma sutileza política que faz as pessoas se darem conta de sua propensão a escolher um soberano nessa família isso lhes dá um zelo por sua liberdade de escolha por temor de que seu novo monarca auxiliado por essa propensão estabeleça sua família no poder des truindo a liberdade de eleição no futuro 12 A história de Artaxerxes e do jovem Ciro pode nos permitir algu mas reflexões com o mesmo propósito Ciro alegava ter mais direito ao trono que seu irmão mais velho por ter nascido após a ascensão de seu pai Não pretendo afirmar que essa razão seja válida Apenas infiro dela que Ciro nunca teria utilizado tal pretexto se não fosse pelas 1 2 Para evitar malentendidos devo observar que este caso de sucessão não é o mesmo que o das monarquias hereditárias em que o costume fixa o direito de sucessão Essas mo narquias dependem do princípio da posse prolongada acima explicado 599 Tratado da natureza humana qualidades da imaginação já mencionadas em virtude das quais vemo nos naturalmente inclinados a unir por meio de uma nova relação aqueles objetos que encontramos já unidos Artaxerxes tinha uma van tagem sobre seu irmão por ser o primogênito e o primeiro na linha de sucessão Ciro tinha porém uma relação mais próxima com a auto ridade real por ter sido gerado quando seu pai já estava investido dessa autoridade 13 Caso se afirme que considerações de conveniência podem ser a fonte de todo direito de sucessão e que os homens se aproveitam de bom grado de qualquer regra que lhes permita fixar o sucessor de seu falecido soberano e assim impedir a anarquia e confusão que acom panham toda nova eleição responderei que talvez esse motivo con tribua parcialmente para esse efeito mas que sem um outro princí pio é impossível que o próprio motivo tivesse lugar O interesse de uma nação requer que a sucessão à coroa seja determinada de uma maneira ou de outra mas é indiferente a esse interesse de que modo ela é determinada Assim se a relação de consangüinidade não tives se um efeito independente do interesse público jamais teria sido le vada em conta sem um direito positivo e teria sido impossível que direitos positivos de tantas nações diferentes jamais pudessem ter as mesmas considerações e intenções 14 Isso nos leva ao exame da quinta fonte de autoridade a saber o direito positivo que ocorre quando a legislação estabelece uma certa forma de governo e de sucessão dos príncipes À primeira vista pode se pensar que essa fonte deve se reduzir a algum dos direitos de auto ridade anteriormente mencionados O poder legislativo de que deri va o direito positivo tem de ter sido estabelecido por um contrato original pela posse prolongada pela posse atual pela conquista ou pela sucessão conseqüentemente a força do direito positivo deve derivar de algum desses princípios Mas notase aqui que embora um direito positivo só possa derivar sua força desses princípios não ad quire toda a força do princípio de que deriva mas perde uma parte considerável dessa força na transição como seria natural imaginar 600 Livro 3 Parte 2 Seção 1 O Por exemplo um certo governo se estabeleceu por muitos séculos com base em um determinado sistema de leis formas e métodos de suces são Subitamente o poder legislativo estabelecido por essa longa su cessão muda todo o sistema de governo e introduz em seu lugar uma nova constituição Creio que poucos súditos se sentirão obrigados a consentir nessa alteração a menos que ela tenha uma tendência evi dente a promover o bem público do contrário sentirseão livres para retornar ao antigo governo A isso se deve a noção de leis fundamen tais que são consideradas inalteráveis pela vontade do soberano Na França entendese que a lei sálica é dessa natureza Nenhum gover no determina até onde vão essas leis nem seria possível fazêlo Exis te uma gradação tão insensível das leis mais importantes às mais triviais e das mais antigas às mais modernas que seria impossível estabelecer limites ao poder legislativo e determinar até que ponto ele pode inovar nos princípios do governo Essa tarefa cabe mais à ima ginação e à paixão que à razão 15 Quem examinar a história das diversas nações do mundo suas revoluções conquistas ascensões e declínios a maneira pela qual estabelecem seus governos particulares e transmitem o direito de su cessão de uma pessoa a outra logo aprenderá a não dar tanta impor tância às disputas concernentes aos direitos dos príncipes e se conven cerá de que uma rígida adesão a regras gerais e a obediência estrita a pessoas e famílias particulares a que alguns dão tanto valor são vir tudes que têm menos de razão que de fanatismo e superstição Por esse aspecto o estudo da história confirma os raciocínios da verda deira filosofia que ao nos mostrar as qualidades originais da natureza humana ensinanos a ver as controvérsias políticas como impossí veis de solucionar na maioria dos casos e como inteiramente subor dinadas aos interesses da paz e da liberdade Quando o berp público não exige claramente uma mudança é certo que a concorrência de todos esses direitos contrato original posse prolongada posse atual sucessão e direito positivo forma o mais forte direito à soberania sendo corretamente visto como sagrado e inviolável Mas quando esses di 601 Tratado da natureza humana reitos se misturam e se opõem em diferentes graus freqüentemente causam perplexidade e são menos suscetíveis de ser solucionados pelos argumentos de juristas e filósofos que pela espada dos solda dos Quem poderá me dizer por exemplo se era Germânico ou Druso que deveria suceder Tibério caso este houvesse morrido enquanto am bos estavam vivos sem ter nomeado um deles como seu sucessor O direito obtido por adoção deveria ser aceito como equivalente ao da consangüinidade em uma nação em que aquele tinha o mesmo efei to que este dentro das famílias e em que já havia ocorrido em dois casos na vida pública Deveria Germânico ser considerado o filho mais velho por ter nascido antes de Druso ou o mais jovem por ter sido adotado após o nascimento de seu irmão Deveria o direito do mais velho ser levado em conta em uma nação onde o primogênito não tinha nenhum privilégio nas sucessões privadas Deveríamos con siderar que o império romano de então era hereditário porque houve ra dois casos de sucessão hereditária ou deveríamos considerálo mesmo então como pertencendo ao mais forte ou ao possuinte presente já que havia sido fundado sobre uma usurpação tão re cente Seja qual for o princípio que tomemos como base para res ponder a essas questões e a outras semelhantes temo que nunca conseguiremos convencer um investigador imparcial que não tome partido nas controvérsias políticas e não se satisfaça com nada a não ser a boa razão e a filosofia 16 Mas neste ponto o leitor inglês tenderá a perguntar a respeito daquela famosa revolução que teve uma influência tão feliz sobre nos so sistema político e conseqüências tão importantes Já observamos que no caso de uma tirania e opressão atroz é legítimo pegar em armas mesmo contra o poder supremo e que como o governo é uma mera invenção humana com o objetivo de proporcionar um mútuo benefício e segurança às pessoas deixa de impor uma obrigação na tural ou moral quando não tem mais essa tendência Mas embora esse princípio geral seja sancionado pelo senso comum e pela prática de todos os tempos é certamente impossível que as leis ou sequer a 602 Livro 3 Parte 2 Seção 1 0 filosofia estabeleçam regras particulares que nos permitam saber quando a resistência é legítima e resolver todas as controvérsias que possam surgir a respeito Isso não acontece apenas no caso do poder supre mo também em alguns sistemas políticos em que o poder legislativo não está alojado em uma única pessoa é possível haver um magistra do tão eminente e poderoso que obrigue as leis a silenciarem sobre essa questão Esse silêncio não seria efeito apenas de seu respeito mas também de sua prudência pois é certo que em meio à imensa varie dade de circunstâncias que se apresentam em todos os governos um exercício particular do poder por um magistrado tão importante pode ser ora benéfico para o público ora nocivo e tirânico Mas não obstante esse silêncio das leis nas monarquias constitucionais é certo que o povo conserva o direito à resistência pois é impossível priválo desse direito mesmo nos governos mais despóticos A mesma necessidade de autopreservação e o mesmo motivo do bem público lhe dá igual liberdade nos dois casos E podemos também observar que nesses governos mistos os casos em que a resistência é legíti ma devem ser muito mais freqüentes que nos governos arbitrários devendo haver uma tolerância muito maior para com os súditos que se defendem pela força das armas Não apenas quando o magistrado supremo toma medidas em si mesmas extremamente nocivas para o público mas também quando pretende usurpar as prerrogativas de outras autoridades e estender seu poder para além dos limites legais é permitido resistir a ele e depôlo embora essa resistência e violên cia possam no teor geral das leis ser consideradas ilegais e subversi vas Porque além de nada ser mais essencial ao interesse público que preservar a liberdade pública é evidente que uma vez que se supo nha que um tal governo misto esteja estabelecido toda parte ou mem bro da sociedade política deve ter direito à autodefesa e a manter seus antigos limites contra a usurpação de qualquer outra autoridade Assim como a matéria teria sido criada em vão se fosse desprovida de um poder de resistência sem o qual nenhuma de suas partes pode ria preservar uma existência distinta fundindose todas em um único 603 Tratado da natureza humana ponto assim também é um grande absurdo supor em qualquer gover no um direito sem restrição ou admitir que o poder supremo é par tilhado com o povo sem admitir ao mesmo tempo que é legítimo o povo defender sua parte contra todo usurpador Portanto aqueles que afirmam respeitar a liberdade de nosso governo mas negam o direito de resistência renunciam a qualquer pretensão ao bom senso e não merecem uma resposta séria 17 Não faz parte de meu propósito presente mostrar que esses prin cípios gerais são aplicáveis à recente revolução e que todos os direi tos e privilégios que deveriam ser sagrados para uma nação livre cor riam naquele momento um perigo extremo Prefiro abandonar esse tema controverso se é que ele realmente admite controvérsia e en tregarme a algumas reflexões filosóficas suscitadas naturalmente por esse importante acontecimento 18 Em primeiro lugar observemos que se os lordes e os comuns em nosso sistema político sem nenhum motivo de interesse público de pusessem o rei ainda em vida ou então após sua morte excluíssem o príncipe que pelas leis ou pelo costume deveria sucedêlo ninguém consideraria seu procedimento legítimo nem pensaria estar obriga do a concordar com ele Mas se o rei em razão de suas práticas injus tas ou de suas tentativas de estabelecer um poder tirânico e despóti co perdesse merecidamente o direito a sua autoridade legal nesse caso não apenas se tornaria moralmente legítimo e conforme à na tureza da sociedade política destronálo mas além disso tendería mos também a pensar que os membros restantes da sociedade políti ca adquirem o direito de excluir seu herdeiro próximo e de escolher como seu sucessor quem lhes agrade Isso se baseia em uma qualida de bastante singular de nosso pensamento e imaginação Quando um rei perde seu direito à autoridade seu herdeiro deveria naturalmente ficar na mesma situação em que estaria se o rei fosse afastado por morte a menos que tivesse tomado parte na tirania perdendo assim ele também sua autoridade Mas embora isso possa parecer razoável nós facilmente adotamos a opinião contrária A deposição de um rei em 604 Livro 3 Parte 2 Seção 1 O um governo como o nosso é certamente um ato que ultrapassa toda autoridade comum pois supõe que se assuma ilegalmente em vista do bem público um poder que no curso normal do governo não pode caber a nenhum membro da sociedade política Quando o bem pú blico é tão grande e evidente a ponto de justificar tal ação a louvável utilização dessa prerrogativa faz que naturalmente atribuamos ao parlamento o direito de tomar outras liberdades e uma vez os anti gos limites legais tendo sido transgredidos com a aprovação geral tendemos a não mais nos confinar tão rigidamente a seus limites pre cisos É de maneira natural que a mente dá continuidade a qualquer série de ações já iniciada e em geral não hesitamos acerca de nosso dever após termos realizado uma ação seja de que tipo for Assim na revolução ninguém que tenha considerado justificável a deposição do pai pensava estar agora limitado a seu filho infante mas se o infeliz monarca houvesse morrido inocente e se seu filho por um acidente qualquer houvesse sido levado para alémmar não há dúvida de que teria sido escolhida uma regência provisória até que ele atingisse a maioridade e pudesse ser restaurado a seus domínios Como as mais insignificantes propriedades da imaginação exercem um efeito sobre o juízo dos homens é prova da sabedoria das leis e do parlamento tirar vantagem dessas propriedades e escolher os magistrados den tro ou fora da linha de sucessão conforme o vulgo atribua mais na turalmente uma autoridade e um direito a um ou a outro 19 Em segundo lugar embora a subida ao trono do Príncipe de Orange possa de início ter dado ocasião a muitas disputas e ainda que seu título possa ter sido contestado agora seu direito não deveria mais parecer duvidoso tendo já adquirido uma autoridade suficiente em virtude dos três príncipes que o sucederam no mesmo título Nada é mais comum embora à primeira vista nada pareça menos razoável que esse modo de pensar Os príncipes com freqüência parecem ad quirir um direito de seus sucessores bem como de seus antepassa dos e um rei que durante sua vida poderia merecidamente ser con siderado um usurpador será visto pela posteridade como um príncipe 605 Tratado da natureza humana legítimo por ter tido a sorte de estabelecer sua família no trono e por ter transformado inteiramente a antiga forma de governo Júlio César é considerado o primeiro imperador romano ao passo que Sila e Mário que possuíam na realidade os mesmos direitos que ele são tratados como usurpadores e tiranos O tempo e o costume conferem autori dade a todas as formas de governo e a todas as dinastias de príncipes e o poder que de início se fundava apenas na injustiça e na violência se torna com o tempo legítimo e obrigatório Mas a mente não pára aqui retornando sobre seus passos ela transfere a seus predecessores e antepassados o direito que atribui naturalmente à posteridade por estarem relacionados e unidos na imaginação O atual rei da França faz de Hugo Capeta um príncipe mais legítimo que Cromwell assim como a liberdade estabelecida entre os holandeses é uma boa desculpa para sua obstinada resistência contra Felipe II Seção 1 1 Do direito internacional 1 Uma vez que um governo civil se estabeleceu entre a maior parte dos homens e uma vez que diferentes sociedades se formaram umas ao lado das outras surge um novo conjunto de deveres entre os Esta dos vizinhos apropriado à natureza do comércio que mantêm entre si Os autores de escritos políticos dizemnos que em todo tipo de intercâmbio um corpo político deve ser considerado como uma pes soa Essa afirmação é correta um certo ponto de fato nações dife rentes como as pessoas privadas necessitam de uma assistência mú tua ao mesmo tempo em que seu egoísmo e ambição são fontes perpétuas de guerras e discórdias Mas embora quanto a esse pon to particular as nações se assemelhem a indivíduos elas são muito diferentes destes sob outros aspectos e não é de admirar que sejam reguladas por máximas diferentes e criem um novo conjunto de re gras que denominamos de direito internacional Entre estas podemos incluir a imunidade dos embaixadores a declaração de guerra a 606 Livro 3 Parte 2 Seção 1 1 abstenção de armas envenenadas e outros deveres do mesmo gêne ro que são evidentemente projetados para o relacionamento peculiar entre diferentes sociedades 2 Mas embora essas regras se acrescentem ao direito natural não o abolem inteiramente podese afirmar com segurança que as três regras fundamentais da justiça a estabilidade da posse sua transfe rência por consentimento e o cumprimento das promessas são de veres tanto de príncipes como de súditos O mesmo interesse produz igual efeito em ambos os casos Ali onde a posse não tem estabilida de certamente haverá uma guerra perpétua Onde a propriedade não é transferida por consentimento não pode haver comércio Onde as promessas não são cumpridas ligas ou alianças não podem existir As vantagens da paz do comércio e do auxílio mútuo portanto fa zemnos estender aos diferentes reinos as mesmas noções de justiça que têm lugar entre os indivíduos 3 Existe uma máxima muito comum em nosso mundo que pou cos políticos querem admitir mas que é referendada pela prática de todas as épocas que há um sistema de moral concebido especialmente para os príncipes e muito mais livre que aquele que deve governar as pessoas priva das É evidente que não se deve com isso entender que a aplicação dos deveres e das obrigações públicas tenha naquele caso uma me nor extensão ninguém pode ser tão extravagante a ponto de afirmar que os tratados mais solenes não deveriam ter valor algum entre prín cipes Pois como estes de fato firmam tratados uns com os outros devem propor a obtenção de algum benefício por seu cumprimento e a perspectiva desse benefício futuro deve leválos a cumprir sua parte estabelecendo essa lei natural O sentido dessa máxima políti ca é portanto que embora a moral dos príncipes tenha a mesma ex tensão não tem a mesma força que a das pessoas privadas podendo ser legitimamente transgredida por um motivo mais fútil Por mais chocante que essa proposição possa parecer a certos filósofos é fácil defendêla com base nos princípios que nos permitiram explicar a origem da justiça e da eqüidade 607 Tratado da natureza humana 4 Uma vez os homens tendo descoberto por experiência que é impossível sobreviver sem a sociedade e é impossível manter a socie dade enquanto dão plena liberdade a seus apetites um interesse tão urgente rapidamente restringe suas ações e impõe a obrigação de observar aquelas leis que chamamos de leis da justiça Mas essa obri gação motivada pelo interesse não fica por aqui em virtude do cur so necessário das paixões e sentimentos ela gera a obrigação moral do dever que ocorre quando aprovamos as ações que tendem a pro mover a paz da sociedade e desaprovamos as que tendem a perturbá la A mesma obrigação natural movida pelo interesse tem lugar entre reinos independentes e origina a mesma moral de modo que ninguém pode ser moralmente tão corrupto a ponto de aprovar um rei que por sua própria vontade e consentimento quebra sua palavra ou viola um tratado Mas aqui podemos observar que embora o intercâmbio en tre diferentes Estados seja vantajoso e às vezes até necessário não é tão necessário nem tão vantajoso quanto o intercâmbio entre os indi víduos sem o qual é inteiramente impossível à natureza humana sub sistir Portanto como a obrigação natural à justiça entre diferentes Estados não é tão forte quanto a existente entre os indivíduos a obri gação moral dela decorrente deve partilhar de sua fraqueza e deve mos necessariamente ser mais indulgentes com um príncipe ou com um ministro que engana um outro do que com um cavalheiro que quebra sua palavra de honra 5 Caso se perguntasse qual a proporção entre essas duas espécies de moralidade eu responderia que essa é uma questão a que jamais po deremos responder com precisão pois é impossível reduzir a números a proporção que devemos manter entre elas Podese afirmar com se gurança que essa proporção se encontra por si própria sem a neces sidade de arte ou estudo por parte dos homens como podemos obser var em muitos outros casos A vida prática vai mais longe ao nos ensinar quais os graus de nosso dever que a mais sutil filosofia já inventada Isso pode servir como uma prova convincente de que todos os homens têm uma noção implícita do fundamento dessas regras morais con 608 Livro 3 Parte 2 Seção 1 2 cernentes à justiça natural e civil e percebem que elas derivam uni camente das convenções humanas e do interesse que temos na preservação da paz e da ordem Porque de outro modo a diminui ção do interesse nunca produziria um relaxamento da moral nem nos faria aceitar mais facilmente as transgressões da justiça ocorri das entre príncipes e repúblicas que as ocorridas nas relações priva das entre súditos Seção 1 2 Da castidade e da modéstia 1 Se este sistema concernente ao direito natural e ao direito inter nacional apresentar alguma dificuldade será em relação à aprovação ou à censura universal que acompanham sua observância ou trans gressão e que alguns podem pensar não ter sido suficientemente ex plicadas com base nos interesses gerais da sociedade Para eliminar tanto quanto possível qualquer dúvida desse gênero examinarei aqui um outro par de virtudes a saber a modéstia e a castidade que convêm ao belo sexo Estou seguro de que essas virtudes mostrarseão exem plos ainda mais evidentes da operação daqueles princípios sobre os quais tanto insisti 2 Alguns filósofos atacam com grande veemência as virtudes femi ninas e imaginam ter feito um grande progresso na descoberta dos erros populares quando podem mostrar que não há um fundamento natural para toda aquela modéstia exterior que exigimos nas expres sões no modo de vestir e no comportamento do belo sexo Creio que posso me poupar o trabalho de insistir em um assunto tão óbvio por isso passarei sem mais preâmbulos ao exame da maneira como es sas noções decorrem da educação das convenções voluntárias dos homens e do interesse da sociedade 3 Quem quer que considere a grande duração e a fragilidade da in fância humana juntamente com a preocupação que ambos os sexos mostram por seus filhos perceberá facilmente que deve haver uma 609 Tratado da natureza humana união entre o homem e a mulher na educação dos jovens e que essa união deve ter uma duração considerável Mas para que os homens se convençam a impor a si mesmos essa restrição e suportem alegre mente todo o trabalho e sacrifício a que ela os submete têm de acreditar que os filhos são seus e quando dão vazão a seu amor e ternura que seu instinto natural não está sendo direcionado para o objeto errado Ora se examinarmos a estrutura do corpo humano veremos que essa segurança é muito difícil de se alcançar de nosso lado e como durante a cópula o princípio da geração passa do homem para a mulher é fácil ocorrer um erro do lado do primeiro embora isso seja inteiramente impossível no caso desta última É dessa banal observação anatômica que deriva a ampla diferença na educação e nos deveres dos dois sexos 4 Se um filósofo examinasse a questão a priori raciocinaria da se guinte maneira Os homens são levados a trabalhar para o sustento e a educação de seus filhos por estarem persuadidos de que esses fi lhos são de fato seus por isso é razoável e mesmo necessário dar a eles alguma segurança quanto a isso Essa segurança não pode vir ex clusivamente da imposição de severas punições a toda transgressão da fidelidade conjugal por parte da esposa uma vez que essas puni ções públicas só podem ser aplicadas com provas legais que são difí ceis de se obter nesse caso Que restrição portanto imporemos às mulheres para contrabalançar sua tão grande tentação à infidelida de Parece que a única restrição possível é a punição da má fama e reputação punição esta que tem grande influência sobre a mente hu mana e ao mesmo tempo pode ser aplicada com base em suspeitas conjeturas e provas que nunca seriam aceitas em um tribunal Por tanto para impor a devida restrição ao sexo feminino temos de vincu lar um grau determinado de vergonha a sua infidelidade superior ao que decorre unicamente da injustiça desta ao mesmo tempo fazemos elogios proporcionais a sua castidade 5 Embora este seja um motivo bastante forte para a fidelidade po rém nosso filósofo rapidamente descobriria que por si só ele seria insuficiente para esse propósito Todas as criaturas humanas sobretu 61 0 Livro 3 Parte 2 Seção 12 do as do sexo feminino tendem a menosprezar motivos remotos em favor de qualquer tentação presente Ora neste caso a tentação é a mais forte que se possa imaginar suas investidas são imperceptíveis e sedutoras e as mulheres facilmente descobrem ou têm a ilusão de que descobrirão meios certos de assegurar sua boa reputação bem como de evitar todas as perniciosas conseqüências de seus prazeres Portanto é necessário que além da má fama que acompanha tais li cenciosidades haja algum retraimento ou temor que possa impedir já suas primeiras tentações dando ao sexo feminino uma repulsa por todas as expressões atitudes e liberdades que tenham uma relação imediata com esse prazer 6 Assim seriam os raciocínios de nosso filósofo especulativo Mas estou convencido de que se não tivesse um conhecimento perfeito da natureza humana ele tenderia a vêlos como meras especulações quiméricas e consideraria a desonra que acompanha a infidelidade bem como a relutância em aceitar suas investidas como princípios que deveríamos antes desejar que esperar encontrar no mundo Pois como persuadir os homens diria ele de que as transgressões do de ver conjugal são mais desonrosas que qualquer outro tipo de injusti ça quando é evidente que são mais perdoáveis em razão da força da tentação E como seria possível produzir uma relutância em relação às investidas de um prazer para o qual a natureza nos deu uma incli nação tão forte e uma inclinação que afinal é absolutamente neces sário satisfazer pelo bem da conservação da espécie 7 Mas os raciocínios especulativos que tanto esforço custam aos filósofos com freqüência são formados naturalmente pelas pessoas sem necessitar de reflexão assim como na prática vencemse facil mente dificuldades que parecem insuperáveis na teoria Aqueles que têm interesse na fidelidade das mulheres desaprovam naturalmente sua infidelidade e tudo que leva a ela Os que não têm interesse vão com a corrente e também tendem a sentir uma simpatia pelo interes se geral da sociedade A educação se apossa das maleáveis mentes do belo sexo desde sua infância E quando uma regra geral desse tipo se 61 1 Tratado da natureza humana estabelece os homens tendem a estendêla para além dos princípios que a originaram Assim por exemplo os homens solteiros por mais depravados que sejam não podem deixar de se sentir chocados diante de exemplos de indecência e atrevimento nas mulheres E embora todas essas máximas tenham uma clara relação com a geração as mulheres que já passaram da idade de procriar não têm quanto a isso mais privilégio que aquelas que se encontram na flor de sua juventude e beleza Os homens possuem indubitavelmente uma noção implícita de que todas essas idéias de modéstia e decência têm uma relação com a geração pois não impõem as mesmas leis com a mesma força ao sexo masculino ao qual essa razão não se aplica A exceção nesse caso é evidente e aplicável a todos os homens e se funda em uma diferença facilmente apreciável que produz uma clara separação e disjunção entre as idéias Mas não é este o caso do que ocorre com as diferentes idades das mulheres e por essa razão embora os homens saibam que essas noções estão fundadas no interesse público a regra geral nos leva a ultrapassar o princípio original fazendonos estender as noções de modéstia para a totalidade do sexo feminino desde sua mais tenra infân cia até a mais extrema velhice e enfermidade 8 A coragem que é o ponto de honra entre os homens extrai seu mérito em grande medida do artifício assim como a castidade das mulheres embora também tenha algum fundamento na natureza como veremos adiante 9 Quanto às obrigações que pesam sobre o sexo masculino com rela ção à castidade podemos observar que de acordo com as noções ge rais das pessoas essas obrigações mantêm aproximadamente a mesma proporção em relação às das mulheres que as obrigações do direito internacional mantêm em relação às do direito natural É contrário ao interesse da sociedade civil que os homens tenham total liberdade de satisfazer seus apetites venéreos Mas como esse interesse é mais fra co que no caso do sexo feminino a obrigação moral dele decorrente deve ser proporcionalmente mais fraca Para provar essa afirmação basta recorrer à prática e aos sentimentos de todas as épocas e nações 612 Seção 1 Parte 3 Das outras virtudes e vícios Da origem das virtudes e dos vícios naturais 1 Passamos agora ao exame daquelas virtudes e vícios que são in teiramente naturais e independentes do artifício e da invenção dos homens Seu exame concluirá este sistema da moral 2 O principal motor ou princípio de ação da mente humana é o prazer e a dor e quando essas sensações são retiradas de nosso pensamento e sentimento feeling ficamos em grande medida incapazes de pai xão ou ação de desejo ou volição Os efeitos mais imediatos do prazer e da dor são os movimentos de propensão e de aversão da mente que se diversificam em volição em desejo e aversão tristeza e alegria es perança e medo conforme o prazer ou a dor vão mudando de situação e se tornando prováveis ou improváveis certos ou incertos ou confor me os consideremos como estando fora de nosso alcance no momen to presente Quando porém juntamente com isso os objetos que cau sam prazer ou dor adquirem uma relação conosco ou com outros eles ao mesmo tempo que continuam a excitar desejo e aversão tristeza e 6 1 3 Tratado da natureza humana alegria causam também as paixões indiretas de orgulho ou humil dade amor ou ódio que nesse caso têm uma dupla relação de im pressões e de idéias com a dor ou com o prazer 3 Já observamos que as distinções morais dependem inteiramente de certos sentimentos peculiares de dor e prazer e que toda qualidade mental existente em nós ou nos outros que nos dê uma satisfação quando a consideramos ou refletimos sobre ela será naturalmente virtuosa assim como toda coisa dessa natureza que nos provoque um desconforto será viciosa Ora uma vez que toda qualidade que dá pra zer produz orgulho quando localizada em nós e amor quando loca lizada nos outros e toda qualidade que produz desconforto desperta humildade quando localizada em nós e ódio quando nos outros se guese que esses dois pontos devem ser considerados equivalentes no que diz respeito às nossas qualidades mentais a virtude equivale ao poder de produzir amor ou orgulho e o vício ao poder de produzir humildade ou ódio Em todos os casos portanto devemos julgar a virtude ou o vício por esse poder assim podemos declarar que uma qualidade da mente é virtuosa quando causa amor ou orgulho e viciosa quando causa ódio ou humildade 4 Se uma ação é virtuosa ou viciosa é apenas enquanto signo de alguma qualidade ou caráter Tem que depender de princípios men tais duradouros que se estendem por toda a conduta compondo parte do caráter pessoal As ações que não procedem de nenhum princípio constante não influenciam o amor ou o ódio o orgulho ou a humil dade e conseqüentemente nunca são levadas em conta na moral 5 Essa reflexão é autoevidente e merece ser levada em conta por ser da maior importância neste assunto Em nossas investigações acer ca da origem da moral nunca devemos considerar uma ação isolada mas apenas a qualidade ou caráter dos quais a ação procede Apenas estes são duradouros o bastante para afetar nossos sentimentos sobre a pessoa É verdade que as ações são melhores indicadores de um ca ráter que as palavras ou mesmo que desejos ou sentimentos mas é 614 Livro 3 Parte 3 Seção 1 só enquanto indicadores que elas se fazem acompanhar de amor ou ódio elogio ou censura 6 Para descobrirmos a verdadeira origem da moral e do amor ou do ódio despertados por certos atributos mentais teremos de inves tigar profundamente o problema e comparar alguns princípios que já foram examinados e explicados 7 Podemos começar considerando novamente a natureza e a força da simpatia As mentes de todos os homens são similares em seus sen timentos feelings e operações ninguém poder ser movido por um afeto que não possa ocorrer também nas outras pessoas seja em que grau for Como cordas afinadas no mesmo tom em que o movimen to de uma se comunica às outras todos os afetos passam prontamente de uma pessoa a outra produzindo movimentos correspondentes em todas as criaturas humanas Quando vejo os efeitos da paixão na voz e nos gestos de alguém minha mente passa imediatamente desses efei tos a suas causas e forma uma idéia tão viva da paixão que essa idéia logo se converte na própria paixão De maneira semelhante quando percebo as causas de uma emoção minha mente é transportada a seus efeitos sendo movida por uma emoção semelhante Se eu presenciasse uma das mais terríveis operações cirúrgicas por certo antes mesmo de ela começar a preparação dos instrumentos a arrumação das ban dagens o aquecimento dos ferros com todos os sinais de ansiedade e preocupação no paciente e nos assistentes teriam um grande efeito em minha mente despertando os mais fortes sentimentos de piedade e terror Nenhuma paixão alheia se revela imediatamente à nossa men te Somos sensíveis apenas a suas causas ou efeitos É desses que infe rimos a paixão conseqüentemente são eles que geram nossa simpatia 8 Nosso sentido do belo depende enormemente desse princípio quando um certo objeto tem uma tendência a produzir prazer naque le que o possui é sempre visto como belo e um objeto que tende a produzir desprazer é desagradável e disforme Assim a comodidade de uma casa a fertilidade de um campo a força de um cavalo a capa 61 5 Tratado da natureza humana cidade segurança e velocidade de uma embarcação formam a princi pal beleza desses diversos objetos Nesses casos o objeto que cha mamos de belo agrada apenas por sua tendência a produzir um certo efeito Esse efeito é o prazer ou o benefício que traz para outra pes soa Ora o prazer de um estranho por quem não temos nenhuma amizade agradanos somente por simpatia É a esse princípio por tanto que se deve a beleza que encontramos em tudo que é útil Se refletirmos um pouco descobriremos facilmente quão importante é essa parte da beleza Sempre que um objeto tenha uma tendência a produzir prazer em quem o possui ou em outras palavras quando é uma causa própria de prazer ele seguramente agradará ao espectador por uma sutil simpatia com o possuinte A maioria das obras da arte humana são consideradas belas quando adequadas ao uso dos ho mens aliás muitas das produções da natureza derivam sua beleza dessa fonte Em muitos casos belo e atraente não são qualidades absolutas mas relativas e nos agradam exclusivamente por sua ten dência a produzir um fim que é agradável 1 9 Esse mesmo princípio produz em muitos casos nossos sentimen tos morais assim como os do belo Nenhuma virtude é mais aprecia da que a justiça e nenhum vício mais detestado que a injustiça tampouco existe uma qualidade que determine mais um caráter como digno de amor ou de ódio Ora a justiça só é uma virtude moral por que tem essa tendência para o bem da humanidade e na verdade não é senão uma invenção artificial com esse propósito Podese di zer o mesmo da obediência civil do direito internacional da modés tia e das boas maneiras Todas essas são meras invenções humanas que visam ao interesse da sociedade Seus inventores tinham em vista sobretudo seu próprio interesse Mas nós estendemos nossa aprova Decentior equus cujus astricta sunt ilia sed idem velocior Pulcher aspectu sit athleta cujus acertos exercitatio expressit idem certamini paratior Nunquam vera species ab utilitate dividitur Sed hoc quidem discernere modici judicii est Quinct lib 8 Quintiliano De Institutione Oratoria livro VIII cap 3 O cavalo de flancos estreitos é mais formoso mas também mais veloz O atleta cujos músculos se tornaram pronunciados graças ao exercício tem o aspecto mais belo mas também está mais bem preparado para a luta Na verdade a aparência nunca está separada da utilidade Mas para discernir essa relação basta um juízo mediano NT 61 6 Livro 3 Parte 3 Seção 1 ção dessas invenções até os países e as épocas mais distantes muito além de nosso próprio interesse E como sempre se fizeram acompa nhar de um sentimento muito forte de moralidade devemos admitir que basta refletirmos sobre a tendência de um caráter ou qualidade mental para que experimentemos os sentimentos de aprovação e cen sura Ora como o meio para se obter um fim só pode ser agradável quando o fim é agradável e como o bem da sociedade quando nosso próprio interesse ou o de nossos amigos não está envolvido só agra da por simpatia essa simpatia é a fonte do apreço que temos por to das as virtudes artificiais 10 Vemos assim que a simpatia é um princípio muito poderoso da natureza humana que influencia enormemente nosso gosto do belo e que produz nosso sentimento da moralidade em todas as virtudes artificiais Baseandonos nisso podemos supor que é ela também que dá origem a muitas das outras virtudes e que certas qualidades ob têm nossa aprovação em virtude de sua tendência para promover o bem da humanidade Essa suposição se torna necessariamente uma certeza quando descobrimos que a maior parte dessas qualidades que naturalmente aprovamos têm de fato essa tendência e tornam os ho mens bons membros da sociedade ao passo que as qualidades que naturalmente desaprovamos têm uma tendência contrária e tornam qualquer relacionamento com a pessoa perigoso ou desagradável Por que tendo descoberto que essas tendências são fortes o suficiente para produzir os mais fortes sentimentos morais não seria razoável nes ses casos buscar outra causa para nossa aprovação ou censura pois tratase de uma máxima inviolável da filosofia que quando uma cau sa particular é suficiente para explicar um efeito devemos ficar satis feitos com ela em vez de multiplicar causas sem necessidade Rea lizamos com sucesso alguns experimentos acerca das virtudes artificiais em que a tendência das qualidades para o bem da sociedade era a única causa de nossa aprovação sem que pudéssemos suspeitar da concor rência de outros princípios Isso nos ensina a força daquele princípio E sempre que ele pode se aplicar e a qualidade aprovada é realmente 61 7 Tratado da natureza humana benéfica para a sociedade um verdadeiro filósofo nunca exigirá outro princípio para explicar a mais intensa aprovação e apreço 1 1 Ninguém pode duvidar de que muitas das virtudes naturais têm essa tendência para o bem da sociedade Docilidade beneficência ca ridade generosidade clemência moderação e eqüidade ocupam o lugar de maior destaque entre as qualidades morais e são comumente denominadas as virtudes sociais para marcar sua tendência para o bem da sociedade Tanto é assim que alguns filósofos chegaram a repre sentar todas as distinções morais como efeitos do artifício e da edu cação políticos habilidosos teriam se utilizado das noções de honra e vergonha para tentar conter as turbulentas paixões dos homens e fazêlos agir para o bem público Entretanto esse sistema não é coe rente com a experiência Pois primeiramente existem outras virtudes e vícios além daqueles que apresentam essa tendência para o benefí cio ou para o prejuízo do público Em segundo lugar se os homens não tivessem um sentimento natural de aprovação e reprovação este nunca poderia ser despertado pelos políticos e as palavras louvável elogiável condenável e odioso seriam tão pouco inteligíveis como se per tencessem a uma língua inteiramente desconhecida de nós como já observamos Mas embora esse sistema seja falso pode nos ensinar que as distinções morais surgem em grande parte da tendência das qualidades e dos caracteres para promover o interesse da sociedade e é nossa consideração por esse interesse que faz com que os apro vemos ou desaprovemos Ora só temos essa consideração ampla pela sociedade em virtude da simpatia conseqüentemente é esse princí pio que nos leva a sair de nós mesmos proporcionandonos tanto prazer ou desprazer diante de caracteres que sejam úteis ou nocivos para a sociedade quanto teríamos se eles favorecessem nosso pró prio benefício ou prejuízo 12 A única diferença entre as virtudes naturais e a justiça está em que o bem resultante das primeiras deriva de cada ato isolado sendo objeto de alguma paixão natural ao passo que um ato singular de jus tiça considerado isoladamente pode muitas vezes ser contrário ao 61 8 Livro 3 Parte 3 Seção 1 bem público o que é vantajoso é apenas a concorrência de todos os homens em um esquema ou sistema geral de ações Quando recon forto pessoas que passam por algum sofrimento o motivo que me leva a fazêlo é meu respeito humano natural e até onde vai meu au xílio estarei promovendo a felicidade de meus semelhantes Se exa minarmos no entanto todos os casos que se apresentam diante dos tribunais de justiça veremos que considerandose cada um separa damente tomar uma decisão contrária às leis da justiça seria com igual freqüência um exemplo de humanitarismo quanto tomar uma deci são conforme a elas Os juízes tiram do pobre para dar ao rico confe rem ao vagabundo os frutos do esforço do trabalhador e põem nas mãos do depravado os meios de causar danos a si mesmo e aos de mais Entretanto o conjunto do sistema do direito e da justiça é van tajoso para a sociedade e para cada indivíduo e foi tendo em vista essa vantagem que os homens o estabeleceram por meio de suas convenções voluntárias Após ter sido estabelecido por essas conven ções tal sistema se faz naturalmente acompanhar de um forte senti mento de moralidade que só pode provir de nossa simpatia com os interesses da sociedade Não precisamos de outra explicação para com preender esse apreço que acompanha as virtudes naturais que ten dem a promover o bem público 13 Devo ainda acrescentar que há diversas circunstâncias que tor nam essa hipótese muito mais provável em relação às virtudes natu rais que em relação às artificiais É certo que a imaginação é mais afeta da pelo particular que pelo geral e é sempre mais difícil estimular os sentimentos quando seus objetos são em uma certa medida vagos e indeterminados Ora nem todo ato particular de justiça é benéfico para a sociedade mas apenas o conjunto do plano ou sistema da mesma forma talvez não seja toda pessoa individual por quem temos uma preocupação que é beneficiada pela justiça mas apenas a socie dade como um todo Ao contrário todo ato particular de generosidade ou de ajuda ao trabalhador e ao necessitado é benéfico e é benéfico para uma pessoa particular que de fato o merece Por isso é mais 619 Tratado da natureza humana natural pensar que as tendências desta última virtude e não as da primeira afetarão nossos sentimentos e inspirarão nossa aprovação e portanto já que constatamos que a aprovação da primeira deriva de suas tendências podemos com ainda mais razão atribuir a mesma causa à aprovação desta última Se em meio a um determinado nú mero de efeitos similares pudermos descobrir a causa de um deles deveremos aplicar essa causa a todos os outros efeitos que possam ser explicados por ela porém mais ainda se esses outros efeitos esti verem acompanhados de circunstâncias peculiares que facilitem a operação dessa causa 14 Antes de seguir adiante devo observar a esse respeito duas cir cunstâncias dignas de nota que poderiam ser vistas como objeções ao presente sistema A primeira explicase do seguinte modo Quan do uma qualidade ou caráter tem uma tendência a promover o bem da humanidade ela nos agrada e por isso a aprovamos uma vez que apresenta a idéia vívida de prazer que nos afeta por simpatia e é em si mesma uma espécie de prazer Mas como essa simpatia é muito va riável podese pensar que nossos sentimentos morais têm de admi tir as mesmas variações Simpatizamos mais com as pessoas que es tão próximas a nós que com as que estão distantes simpatizamos mais com nossos conhecidos que com estranhos mais com nossos con terrâneos que com estrangeiros Mas apesar dessas variações de nos sa simpatia damos a mesma aprovação às mesmas qualidades morais seja na China seja na Inglaterra Essas qualidades parecem igualmente virtuosas e inspiram o mesmo apreço em um espectador judicioso Nossa estima portanto não procede da simpatia 1 5 A isso respondo a aprovação das qualidades morais com toda cer teza não é derivada da razão ou de uma comparação de idéias proce de inteiramente de um gosto moral e de certos sentimentos de pra zer ou desgosto que surgem da contemplação e da visão de qualidades ou caracteres particulares Ora é evidente que esses sentimentos seja qual for sua origem devem variar de acordo com a distância ou proximidade dos objetos não posso sentir um prazer igualmente 620 Livro 3 Parte 3 Seção 1 vívido pelas virtudes de uma pessoa que viveu na Grécia há dois mil anos e pelas de um amigo de longa data Todavia não digo que sinto mais apreço por um que por outro e portanto se for uma objeção o fato de que o sentimento varia sem que haja uma variação do apreço essa objeção deve ter a mesma força contra qualquer outro sistema além deste da simpatia Mas se considerarmos corretamente a ques tão veremos que essa objeção não tem força alguma aliás é a questão mais fácil do mundo de se explicar Nossa situação tanto no que se refere a pessoas como a coisas sofre uma flutuação contínua um ho mem distante de nós pode dentro de pouco tempo tornarse um co nhecido íntimo Além disso cada homem particular ocupa uma po sição peculiar em relação aos outros e seria impossível conseguir conversar com alguém em termos razoáveis se cada um de nós con siderasse os caracteres e as pessoas somente tais como nos aparecem de nosso ponto de vista particular Portanto para impedir essas con tínuas contradições e chegarmos a um julgamento mais estável das coi sas fixamonos em algum ponto de vista firme e geral e em nossos pensamentos sempre nos situamos nesse ponto de vista qualquer que seja nossa situação presente Da mesma forma a beleza externa é determinada meramente pelo prazer e é evidente que um belo sem blante não pode proporcionar o mesmo prazer quando contemplado a uma distância de vinte passos do que se a pessoa se aproxima de nós Não dizemos entretanto que ela nos parece menos bela pois sabemos que efeito terá nessa posição e por meio dessa reflexão corrigimos sua aparência momentânea 16 Em geral todos os sentimentos de censura ou aprovação são va riáveis de acordo com nossa situação de proximidade ou de distân cia em relação à pessoa censurada ou elogiada e de acordo também com a disposição presente da mente Mas em nossas decisões gerais não levamos em conta essas variações embora continuemos aplican do termos que expressam nosso agrado ou desagrado exatamente como se permanecêssemos em um único ponto de vista A experiência logo nos ensina esse método de corrigir nossos sentimentos ou ao me 621 Tratado da natureza humana nos de corrigir nossa linguagem se os sentimentos são mais obsti nados e inflexíveis Nosso criado quando esforçado e leal pode des pertar sentimentos mais fortes de amor e afeição que os despertados por Marcus Brutus tal como a história o representa mas nem por isso dizemos que o caráter do primeiro é mais louvável que o do segun do Sabemos que se nos aproximássemos igualmente daquele fa moso patriota ele nos inspiraria um grau muito superior de afeição e admiração Correções como essa são comuns para todos os sen tidos na verdade seria impossível fazer uso da linguagem ou co municar nossos sentimentos uns aos outros se não corrigíssemos as aparências momentâneas das coisas desprezando nossa situação presente 1 7 É portanto pela influência que o caráter ou as qualidades de uma pessoa exercem sobre aqueles que têm algum relacionamento com ela que a censuramos ou elogiamos Não consideramos se aqueles que são afetados por essas qualidades são nossos conhecidos ou estranhos nossos conterrâneos ou estrangeiros Mais ainda desprezamos nos so próprio interesse nesses juízos gerais e não censuramos um ho mem por se opor a um de nossos propósitos quando seu próprio in teresse está particularmente em jogo Toleramos um certo grau de egoísmo nos homens porque sabemos que isso é algo inseparável da natureza humana e inerente à nossa estrutura e constituição Por meio dessa reflexão corrigimos aqueles sentimentos de censura que sur gem tão naturalmente diante de qualquer oposição 1 8 Mas embora o princípio geral de nossa condenação ou elogio pos sa ser corrigido por esses outros princípios é certo que estes não são completamente eficazes e nossas paixões com freqüência não correspondem de todo à presente teoria É raro que os homens amem ardentemente aquilo que está longe deles e que de nenhum modo re verte para seu benefício particular e é igualmente raro encontrar pes soas que sejam capazes de perdoar alguém que se opõe a seus inte resses por mais justificável que essa oposição possa ser segundo as regras gerais da moral Nesse caso contentamonos em dizer que a 622 Livro 3 Parte 3 Seção 1 razão exige essa conduta imparcial mas que raramente conseguimos nos conformar com ela já que nossas paixões não seguem facilmen te a determinação de nosso juízo Será fácil compreender essa ma neira de falar se considerarmos aquilo que dissemos anteriormente a respeito dessa razão que é capaz de se opor a nossas paixões e que descobrimos não ser senão uma determinação calma e geral das pai xões fundada em uma visão ou reflexão distante Quando nossos juízos sobre as pessoas se baseiam unicamente na tendência de seu caráter a beneficiar a nós ou a nossos amigos a sociedade e o convívio social contradizem a tal ponto nossos sentimentos e as incessantes mudanças de nossa situação produzem em nós uma tal incerteza que buscamos algum outro critério para o mérito e o demérito que não admita tanta variação Assim desligados de nossa primeira ati tude o meio mais conveniente que temos de nos determinar nova mente é por uma simpatia com aqueles que têm um relacionamen to com a pessoa que estamos considerando Essa simpatia está longe de ser tão vívida quanto a que sentíamos quando o que estava em jogo era nosso próprio interesse ou o de nossos amigos particula res nem influencia tanto nosso amor e ódio Mas como é igualmente conforme a nossos princípios calmos e gerais dizse que tem igual autoridade sobre nossa razão comandando nosso juízo e opinião Censuramos tanto aquela má ação sobre a qual lemos nos livros de história quanto a que foi praticada outro dia em nossa vizinhança Isso significa que sabemos pela reflexão que a primeira ação des pertaria sentimentos tão fortes de desaprovação quanto a última caso estivesse na mesma situação 19 Passo agora à segunda circunstância digna de nota que me propus analisar Quando uma pessoa possui um caráter cuja tendência natu ral é benéfica para a sociedade consideramola virtuosa e deleitamo nos com a contemplação de seu caráter mesmo que acidentes parti culares impossibilitem sua ação impedindoa de servir a seus amigos e a seu país A virtude em andrajos ainda é virtude e continua inspi rando amor mesmo que o homem esteja preso em um calabouço ou 623 Tratado da natureza humana perdido no deserto onde ela não pode mais se exercer por meio de ações estando perdida para o mundo Ora isso pode ser considerado uma objeção ao presente sistema A simpatia nos dá um interesse pelo bem da humanidade e se fosse a simpatia a fonte de nosso apreço pela virtude esse sentimento de aprovação só poderia ter lugar nos casos em que a virtude efetivamente atingisse seu fim e fosse benéfica para a humanidade Quando não consegue alcançar seu fim ela seria apenas um meio imperfeito e portanto nunca poderia adquirir um mérito em razão desse fim A bondade de um fim só poderia conferir um mérito aos meios que se completam e realmente produzem esse fim 20 A isso podemos replicar que quando um objeto por todas as suas partes é adequado para se alcançar um fim agradável ele nos pro porciona naturalmente um prazer e é considerado belo ainda que fal tem certas circunstâncias externas para tornálo inteiramente eficaz É suficiente que o próprio objeto esteja completo Uma casa planeja da com grande critério para proporcionar todas as comodidades da vida nos agrada por esse motivo mesmo que saibamos que ninguém jamais irá morar nela Um solo fértil e um clima ameno aprazemnos quando pensamos na felicidade que proporcionariam aos habitantes embora neste momento a região esteja deserta e desabitada Um ho mem cujos membros e forma física prometem força e atividade é con siderado belo mesmo condenado à prisão perpétua A imaginação tem um conjunto próprio de ações de que dependem em grande medida nossos sentimentos do belo Essas paixões são movidas por graus de vividez e de força inferiores aos necessários para a crença e indepen dentes da existência real de seus objetos Quando um caráter sob todos os aspectos é apropriado para beneficiar a sociedade a imagi nação passa facilmente da causa ao efeito sem considerar que ainda faltam algumas circunstâncias para tornar completa a causa As re gras gerais criam uma espécie de probabilidade que influencia às ve zes o juízo e sempre a imaginação 21 É verdade que quando a causa está completa e uma boa dispo sição se acompanha da sorte que a torna realmente benéfica para a 624 Livro 3 Parte 3 Seção 1 sociedade ela proporciona ao espectador um prazer mais intenso e se faz acompanhar de uma simpatia mais viva Somos mais fortemente afetados por ela entretanto não dizemos que é mais virtuosa ou que a apreciamos mais Sabemos que um revés da fortuna pode tornar a disposição benévola completamente impotente por isso separamos tanto quanto possível a sorte da disposição O mes mo ocorre quando corrigimos as diferenças que se produzem em nossos sentimentos de virtude em razão das diferentes distâncias do caráter virtuoso em relação a nós As paixões nem sempre se guem nossas correções mas essas correções são suficientes para regular nossas noções abstratas sendo as únicas levadas em conta quando nos pronunciamos em geral a respeito dos graus de vício e virtude 22 Os críticos observam que todas as palavras ou frases difíceis de pronunciar são desagradáveis ao ouvido Tanto faz se uma pessoa ouve alguém pronunciálas ou se as lê em silêncio Quando percorro um livro com os olhos imagino ouvir todas as palavras e também por força da imaginação participo do desprazer que sua enunciação da ria a quem as pronunciasse O desprazer não é real mas como essa composição de palavras tem uma tendência natural a produzilo isso basta para afetar a mente com um sentimento doloroso tornando o estilo áspero e desagradável Algo semelhante ocorre quando uma qualidade real por circunstâncias acidentais tornase impotente e fica privada de sua influência natural sobre a sociedade 23 Com base nesses princípios podemos facilmente eliminar qual quer contradição que pareça haver entre a simpatia extensa de que de pendem nossos sentimentos de virtude e a generosidade restrita que diversas vezes observei ser natural aos homens e é suposta pela jus tiça e pela propriedade de acordo com o raciocínio precedente Mi nha simpatia por outra pessoa pode me dar um sentimento de dor e desaprovação quando se apresenta um objeto que tenha uma tendên cia a lhe causar um desprazer mesmo que talvez eu não esteja dis posto a sacrificar em nada meu próprio interesse ou a contrariar 625 Tratado da natureza humana nenhuma de minhas paixões para satisfazêla Uma casa pode me des contentar por não ter sido bem projetada para dar conforto ao pro prietário entretanto posso me recusar a dar um centavo sequer para sua reforma Os sentimentos têm de tocar o coração para controlar nossas paixões mas não precisam ir além da imaginação para influen ciar nosso gosto Quando uma edificação parece aos olhos despro porcional e instável tornase feia e desagradável mesmo que esteja mos inteiramente convencidos da solidez da construção É uma espécie de medo que causa esse sentimento de desaprovação mas a paixão não é a mesma que sentimos quando obrigados a ficar junto a um muro que realmente pensamos ser instável e pouco seguro As tendências aparentes dos objetos afetam a mente e as emoções que elas despertam são de um tipo semelhante às procedentes das con seqüências reais dos objetos mas sua sensação feeling é diferente Mais ainda essas emoções são tão diferentes em sua sensação feel ing que muitas vezes podem ser contrárias sem se destruir reciproca mente é o que ocorre quando as fortificações de uma cidade inimiga são consideradas belas em virtude da sua solidez embora pudéssemos desejar que fossem inteiramente destruídas A imaginação se apega às visões gerais das coisas e faz uma distinção entre as sensações feelings delas decorrentes e as que se devem a nossa situação parti cular e momentânea 24 Se examinarmos os panegíricos que comumente se fazem dos grandes homens veremos que a maior parte das qualidades a eles atribuídas podem ser divididas em dois tipos as que lhes permitem cumprir seu papel na sociedade e as que os tornam úteis a si mesmos e capazes de promover seu próprio interesse Celebramse sua prudên cia temperança frugalidade aplicação assiduidade arrojo destreza assim como sua generosidade e seu respeito humano Se alguma vez somos indulgentes com algum atributo que torne um homem incapaz de ser alguém na vida é com o da preguiça de fato não consideramos que a preguiça prive alguém de seu talento e capacidade mas apenas que 626 Livro 3 Parte 3 Seção 1 suspende seu exercício e isso sem inconveniente algum para a pró pria pessoa já que ocorre em certa medida por sua própria escolha Entretanto a preguiça é sempre tida como um vício e bastante gra ve quando excessiva Ninguém quer reconhecer que seu amigo é pre guiçoso a menos que isso seja necessário para defender seu caráter em pontos mais importantes Ele poderia ser alguém na vida dizem se quisesse se esforçar é muito inteligente tem uma capacidade de concepção bastante aguçada e ótima memória mas detesta os negó cios e não se interessa por sua riqueza E há quem chegue a fazer disso motivo de vaidade embora com ar de quem confessa uma fal ta porque pensa que sua incapacidade para o trabalho esconde qua lidades muito mais nobres tais como um espírito filosófico um gos to refinado uma inteligência sutil ou uma inclinação para o prazer e o convívio social Mas tomemos qualquer outro caso suponhamos uma qualidade que ao mesmo tempo em que não indica a existência de qualidades melhores torna um homem sempre incapaz para o tra balho e prejudique seu interesse por exemplo um entendimento con fuso e um juízo errôneo sobre tudo na vida inconstância e falta de determinação ou uma inabilidade para gerir pessoas e negócios To das essas qualidades são reconhecidamente imperfeições de caráter e muitos homens prefeririam confessar os maiores crimes a passar pela suspeita de ter tais imperfeições 25 É uma sorte quando em nossas investigações filosóficas encon tramos o mesmo fenômeno diversificado por uma variedade de cir cunstâncias pois quando descobrimos o que é comum a elas pode mos estar mais certos da verdade da hipótese que utilizamos para explicálo Se só aquilo que é benéfico para a sociedade fosse consi derado virtude ainda assim estou convencido de que deveríamos acei tar a explicação anterior do sentido moral e isso com base em uma evidência suficiente mas essa evidência deve aumentar ainda mais quando descobrimos outros tipos de virtude que não admitem outra explicação que não provenha dessa hipótese Vamos supor um ho mem cujas qualidades sociais não sejam muito deficientes mas que 62 7 Tratado da natureza humana tenha a seu favor sobretudo sua aptidão para os negócios que foi o que lhe permitiu abrir caminho em meio às maiores dificuldades con duzindo as questões mais delicadas com uma singular habilidade e prudência Imediatamente vejo crescer em mim um apreço por ele sua companhia me dá grande satisfação e antes mesmo de conhecê lo melhor prefiro prestar um serviço a ele que a qualquer pessoa cujo caráter seja igual em todos os outros pontos mas deficiente quanto a esse aspecto Nesse caso as qualidades que me agradam são todas consideradas úteis à pessoa e com uma tendência a promover seu in teresse e satisfação São vistas apenas como meios para um fim e me agradam segundo sua adequação para esse fim O fim portanto tem de ser agradável para mim Mas o que torna o fim agradável A pes soa me é estranha não estou de modo algum interessado nela nem tenho nenhuma obrigação para com ela Sua felicidade não me concerne mais que a de qualquer ser humano e aliás que a de qual quer criatura sensível Ou seja só me afeta por simpatia Em virtude desse princípio sempre que descubro alguma coisa que possa causar sua felicidade e lhe fazer um bem ou que seja efeito destes entro tão profundamente nessa felicidade que experimento uma sensível emo ção A presença de qualidades que tenham uma tendência a promovê la exerce um efeito agradável em minha imaginação e inspira meu amor e apreço 26 Essa teoria pode servir para explicar por que os mesmos atributos em todos os casos produzem tanto orgulho como amor e tanto hu mildade como ódio e por que o mesmo homem é sempre virtuoso ou vicioso bemsucedido ou desprezível para os outros quando o é para si mesmo Uma pessoa em quem descobrimos uma paixão ou hábito que originalmente só incomoda a ela mesma sempre se torna desagradável para nós apenas por isso por outro lado uma pessoa cujo caráter só é perigoso e desagradável para os outros nunca pode estar satisfeita consigo mesma enquanto tiver consciência dessa des vantagem Isso pode ser observado não somente em relação ao cará ter e à conduta mas até nos detalhes mais insignificantes Uma tosse 628 Livro 3 Parte 3 Seção 1 violenta em outra pessoa nos dá um malestar embora em si mesma não nos afete em nada Um homem ficará humilhado se lhe disser mos que tem mau hálito embora isso evidentemente não seja um in cômodo para ele Nossa fantasia facilmente muda sua situação e quer considerando a nós mesmos tais como aparecemos aos outros quer ven do os outros tais como eles sentem a si mesmos ela nos faz participar de sentimentos que não nos pertencem de forma alguma e só podem nos interessar em virtude da simpatia E às vezes levamos tão longe essa simpatia que chegamos a sentir um desconforto por possuirmos uma qualidade que é conveniente para nós só porque essa qualidade é incômoda para outras pessoas e nos torna desagradáveis a seus olhos mesmo que não tenhamos nenhum interesse em nos tornar agradá veis a elas 27 Muitos sistemas acerca da moral foram propostos por filósofos de todas as épocas mas se os examinarmos com rigor apenas dois deles merecem nossa atenção O bem e o mal morais certamente se distinguem por nossos sentimentos não pela razão mas esses senti mentos podem surgir seja do simples aspecto e aparência de um ca ráter ou paixão seja da reflexão sobre sua tendência a trazer o bem da humanidade e dos indivíduos Minha opinião é que essas duas cau sas se entrelaçam em nossos juízos morais do mesmo modo como se entrelaçam em nossas decisões acerca de quase todos os tipos de beleza exterior Mas também sou da opinião de que a reflexão sobre as tendências das ações tem de longe a maior influência e determina as grandes linhas de nosso dever Entretanto há exemplos de casos menos importantes em que é o gosto ou sentimento imediato que produz nossa aprovação A espirituosidade ou um certo compor tamento casual e desprendido são qualidades imediatamente agradáveis aos outros inspirando seu amor e apreço Algumas dessas qualidades produzem satisfação nos demais por meio de princípios particulares originais à natureza humana que não podem ser explicados outras podem ser reduzidas a princípios mais gerais Isso ficará mais claro após uma análise detalhada 629 Tratado da natureza humana 28 Assim como algumas qualidades adquirem seu mérito do fato de serem imediatamente agradáveis aos outros mesmo que não tenham nenhuma tendência para promover o interesse público há outras que são denominadas virtuosas por serem imediatamente agradáveis à pró pria pessoa Cada paixão e operação da mente tem uma sensação feeling particular que deverá ser agradável ou desagradável No pri meiro caso ela será virtuosa no segundo viciosa Essa sensação feeling particular constitui a própria natureza da paixão por isso não precisa ser explicada 29 Mas embora a distinção entre vício e virtude possa parecer de correr diretamente do prazer ou desprazer imediato que as qualidades particulares causam em nós ou nas outras pessoas é fácil observar que ela também depende consideravelmente do princípio da simpa tia em que tantas vezes insisti Aprovamos uma pessoa que possui qualidades imediatamente agradáveis àqueles com quem tem algum re lacionamento mesmo que nunca tenhamos extraído nenhum prazer dessas qualidades Também aprovamos a pessoa que possui qualidades imediatamente agradáveis a si mesma ainda que não tenham utilidade para nenhum mortal Para explicar esses fatos temos de recorrer aos princípios anteriormente mencionados 30 Façamos assim uma revisão geral da presente hipótese Toda qua lidade da mente que produz prazer por sua mera consideração é de nominada virtuosa e toda qualidade que produz dor é classificada de viciosa Esse prazer e essa dor podem surgir de quatro fontes dife rentes Extraímos prazer da visão de um caráter que é naturalmente capaz de ser útil aos outros ou à própria pessoa ou que é agradável aos outros ou à própria pessoa Talvez cause surpresa o fato de que em meio a todos esses interesses e prazeres tenhamos esquecido os nossos que nos tocam tão de perto em todas as outras ocasiões So lucionaremos facilmente essa dúvida porém quando considerarmos que como o prazer e o interesse de cada pessoa particular é diferen te é impossível que os homens jamais pudessem concordar em seus sentimentos e juízos a menos que escolhessem algum ponto de vista 630 Livro 3 Parte 3 Seção 2 comum a partir do qual pudessem examinar seu objeto e que pu desse fazer esse objeto parecer o mesmo para todos eles Ora quan do julgamos um caráter o único interesse ou prazer que parece o mes mo para todo espectador é o da própria pessoa cujo caráter está sendo examinado ou o daqueles que têm alguma conexão com ela E em bora esses interesses e prazeres nos afetem de maneira mais fraca que os nossos são mais constantes e universais e por isso contrabalan çam estes últimos até mesmo na prática além de serem os únicos ad mitidos na especulação como critérios de virtude e de moralidade Apenas eles produzem essa sensação ou sentimento particular de que dependem as distinções morais 3 1 Quanto ao valor positivo ou negativo da virtude ou do vício são uma conseqüência evidente dos sentimentos de prazer e desprazer Esses sentimentos produzem amor ou ódio e o amor ou ódio pela constituição original da paixão humana acompanhamse de benevo lência ou de raiva isto é de um desejo de tornar feliz a pessoa que amamos e infeliz a que odiamos Já tratamos dessa questão de ma neira mais completa em outra ocasião Seção 2 Da grandeza de espírito 1 Convém agora ilustrar esse sistema geral da moral aplicandoo a casos particulares de virtude e de vício e mostrando como seu mérito ou demérito decorre das quatro fontes aqui explicadas Começaremos examinando as paixões do orgulho e da humildade consideraremos o vício ou a virtude que há em seus excessos ou em sua justa proporção Um orgulho excessivo ou uma opinião presunçosa de nós mesmos é sempre considerado um vício sendo universalmente odiado a mo déstia ao contrário ou um justo sentido de nossa fraqueza é conside rada uma virtude ganhando a boa vontade de todos Das quatro fon tes de distinções morais esta deve ser atribuída à terceira ou seja ao fato de uma qualidade ser agradável ou desagradável para as outras 63 1 Tratado da natureza humana pessoas sem a necessidade de reflexão alguma sobre a tendência dessa qualidade 2 Para provar essa afirmação devemos recorrer a dois princípios bas tante manifestos na natureza humana O primeiro é a simpatia ou seja a comunicação de sentimentos e paixões anteriormente mencionada Tão estreita e íntima é a correspondência entre as almas dos homens que assim que uma pessoa se aproxima de mim ela me transmite todas as suas opiniões influenciando meu julgamento em maior ou menor grau Embora muitas vezes minha simpatia por ela não che gue ao ponto de me fazer mudar inteiramente meus sentimentos e modo de pensar raramente é tão fraca que não perturbe o tranqüilo curso de meu pensamento dando autoridade à opinião que me é re comendada por seu assentimento e aprovação Pouco importa sobre que assunto ela e eu estamos pensando Quer estejamos julgando acerca de uma pessoa completamente indiferente quer de meu pró prio caráter minha simpatia dá a mesma força a sua decisão e até seus sentimentos sobre seu próprio mérito fazem que eu a considere da mesma perspectiva que ela toma para considerar a si mesma 3 Esse princípio da simpatia tem uma natureza tão poderosa e su gestiva que intervém em quase todos os nossos sentimentos e pai xões e freqüentemente se dá sob a aparência de seu contrário Pois podemos notar que quando uma pessoa se contrapõe a mim em uma opinião a que estou fortemente apegado e desperta minha paixão em virtude dessa contradição sempre sinto por ela um certo grau de sim patia e é a isso que se deve minha comoção Observamos aqui um evi dente conflito ou choque entre princípios e paixões opostos De um lado está aquela paixão ou sentimento que me é natural e notese que quanto mais forte a paixão maior a comoção Do outro lado tam bém tem de haver alguma paixão ou sentimento e essa paixão só pode proceder da simpatia Os sentimentos alheios nunca poderiam nos afetar se não se tornassem em certa medida nossos sentimentos e nesse caso eles agem sobre nós combatendo e intensificando nossas paixões como se tivessem sido originalmente derivados de nosso 632 Livro 3 Parte 3 Seção 2 próprio caráter e disposição Enquanto permanecem ocultos na mente alheia não podem ter nenhuma influência sobre nós e mesmo quan do conhecidos se não fossem além da imaginação ou da concepção esta faculdade está tão acostumada a toda espécie de objetos que uma mera idéia ainda que contrária a nossos sentimentos e inclinações nunca seria sozinha capaz de nos afetar 4 O segundo princípio para o qual chamarei a atenção é o da com paração ou seja a variação de nossos juízos acerca dos objetos se gundo a proporção entre estes e aqueles com os quais os compara mos Julgamos os objetos mais por comparação que por seu mérito ou valor intrínseco quando opomos uma coisa a outra da mesma es pécie e que seja superior consideramola medíocre Mas nenhuma comparação é mais óbvia que a comparação conosco por isso ela tem lugar em todas as ocasiões e influencia a maioria de nossas paixões Esse tipo de comparação é diretamente contrário à simpatia em seu modo de operar como já observamos ao tratar da compaixão e da ma levolência 2 Em qualquer tipo de comparação o primeiro objeto sempre faz que obtenhamos do segundo com que é comparado uma sensação contrária à que surge quando ele próprio é considerado direta e imediatamente A considera ção direta do prazer de outrem naturalmente nos dá prazer e conseqüente mente produz dor quando esse prazer é comparado com o nosso A dor alheia considerada em si mesma é dolorosa para nós mas aumenta a idéia de nossa própria felicidade dandonos prazer 5 Portanto como esses princípios da simpatia e de uma compara ção conosco são diretamente contrários vale a pena considerar que regras gerais se podem formar para explicar a prevalência de um ou de outro princípio à parte a influência do temperamento particular da pessoa em questão Suponhamos que eu esteja agora seguro em terra firme e queira extrair algum prazer dessa consideração para isso devo pensar na infeliz condição daqueles que se encontram em meio a uma tempestade em altomar esforçandome para tornar essa idéia 2 Livro 2 Parte 2 Seção 8 633 Tratado da natureza humana tão forte e viva quanto possível para melhor sentir minha própria felicidade Contudo por mais que me esforce a comparação nunca terá a mesma eficácia que teria se eu estivesse realmente3 na beira da praia e visse ao longe um navio sendo jogado de um lado para o ou tro pela tempestade correndo um perigo constante de se chocar con tra um rochedo ou um banco de areia Mas suponhamos que essa idéia se torne ainda mais viva Suponhamos que o navio seja trazido para tão perto de mim que eu seja capaz de perceber distintamente o hor ror estampado nas faces dos marinheiros e passageiros que ouça seus gritos de lamento e veja os amigos mais queridos dando seu último adeus ou abraçandose para morrer nos braços uns dos outros Nin guém pode ter um coração tão selvagem a ponto de extrair o menor prazer de tal espetáculo ou resistir aos impulsos da mais terna compai xão e simpatia É evidente portanto que há um meiotermo neste caso se a idéia for fraca demais não terá nenhuma influência quando com parada à nossa situação em contrapartida se for demasiadamente forte agirá sobre nós inteiramente por simpatia que é contrária à comparação A simpatia sendo a conversão de uma idéia em uma impressão requer mais força e vividez que a necessária para a com paração 6 Tudo isso se aplica facilmente ao tema presente Rebaixamonos muito a nossos próprios olhos quando estamos em presença de uma pessoa importante ou de um grande gênio e essa humildade consti tui um elemento significativo daquele respeito que mostramos por nossos superiores de acordo com nossos4 raciocínios anteriores acerca 3 Suave mari magno turbantibus aequora ventis E terra magnum alterius spectare laborem Non quia vexari quenquam est jucunda voluptas Sed quibus ipse malis careas quia cernere suav est Lucret Lucrécio De Rerum Natura II w 14 É bom quando os ventos revolvem a superfície do grande mar ver da terra os rudes trabalhos por que estão passando os outros não porque haja qualquer prazer na desgraça de alguém mas porque é bom presenciar os males que não se sofrem Tradução de Agostinho da Silva São Paulo Abril Cultural 1973 NT 4 Livro 2 Pane 2 Seção 10 634 Livro 3 Parte 3 Seção 2 dessa paixão Às vezes a comparação chega a gerar inveja e ódio mas na maior parte dos homens limitase a provocar respeito e apreço Como a simpatia tem uma influência tão poderosa sobre a mente humana ela faz que o orgulho tenha em certa medida o mesmo efeito que o mérito e ao fazernos penetrar nos elevados sentimentos que o orgulhoso tem de si mesmo propõe essa comparação que é tão hu milhante e desagradável Nosso juízo não acompanha inteiramente o conceito lisonjeiro que o orgulhoso faz de si mesmo mesmo assim é afetado a ponto de admitir a idéia por ele apresentada dando a ela uma influência superior à das vagas concepções da imaginação Um homem que por mero capricho decidisse formar a idéia de alguém dotado de um mérito muito superior ao seu não se sentiria humilha do por essa ficção mas quando estamos diante de uma pessoa que sabemos ter menos mérito se observamos nela um grau extraordi nário de orgulho e presunção a firme persuasão que ela tem de seu próprio mérito toma conta da imaginação e nos diminui perante nós mesmos como se a pessoa realmente possuísse todas as qualidades que tão prodigamente atribui a si mesma Nossa idéia se encontra aqui precisamente naquele meiotermo necessário para que possa agir sobre nós por comparação Se essa idéia fosse acompanhada de cren ça e se a pessoa parecesse ter exatamente o mérito que atribui a si própria exerceria o efeito contrário e agiria em nós por simpatia A influência desse princípio seria então superior à da comparação con trariamente ao que acontece quando o mérito da pessoa parece estar abaixo de suas pretensões 7 A conseqüência necessária desses princípios é que o orgulho ou seja uma opinião presunçosa de nós mesmos deve ser um vício já que causa desprazer em todas as pessoas apresentandolhes cons tantemente uma comparação desagradável É lugarcomum na filo sofia e mesmo nas conversações e na vida corrente observar que é nosso próprio orgulho que nos torna tão descontentes com o orgulho dos outros e que a vaidade se nos torna insuportável unicamente por sermos vaidosos As pessoas alegres naturalmente se associam com 635 Tratado da natureza humana as alegres e as amorosas com as amorosas mas os orgulhosos não suportam os orgulhosos preferindo buscar a companhia de quem tem a disposição oposta Ora como todos nós somos um pouco orgulho sos o orgulho é censurado e condenado por todos os homens sem exceção por sua tendência natural a causar um malestar nos outros por comparação E esse efeito deve se seguir ainda mais naturalmen te pelo fato de que aqueles que têm uma opinião infundada de si mes mos estão sempre fazendo essas comparações por não terem outro meio de sustentar sua vaidade Um homem de mérito e de bom sen so está sempre satisfeito consigo mesmo independentemente da opinião alheia um tolo contudo sempre tem de encontrar alguém que seja mais tolo para continuar de bem com seu próprio talento e entendimento 8 Mas embora um conceito exagerado de nosso próprio mérito seja vicioso e desagradável nada pode ser mais louvável que dar valor a nós mesmos quando realmente possuímos qualidades de valor A uti lidade e a vantagem de uma qualidade para nós é uma fonte de virtu de assim como o fato de ser agradável aos outros e certamente nada nos é mais útil na condução de nossa vida que um grau apropriado de orgulho que nos torna conscientes de nosso próprio mérito e nos dá confiança e segurança em todos os nossos projetos e empreendi mentos Quaisquer que sejam as aptidões de uma pessoa elas lhe serão inteiramente inúteis se ela não as conhecer e se não fizer pro jetos condizentes com elas Precisamos sempre conhecer nossa própria força e se fosse permitido errar para mais ou para menos seria mais vantajoso supervalorizar nosso mérito que formar dele uma idéia in ferior a seu justo valor O destino comumente favorece os audacio sos e empreendedores e nada nos inspira maior audácia que uma boa opinião de nós mesmos 9 Acrescentese a isso que embora o orgulho ou a autoaclama ção seja algumas vezes desagradável aos outros é sempre agradável para nós mesmos em contrapartida a modéstia embora proporcione 636 Livro 3 Parte 3 Seção 2 um prazer a todos que a observam freqüentemente cria um males tar na pessoa mesma Ora já observamos que o vício e a virtude de uma qualidade são determinados por nossas próprias sensações bem como pelas sensações que essa qualidade possa despertar nas outras pessoas 10 Assim a autosatisfação e a vaidade podem ser não apenas ad missíveis mas necessárias a um caráter Entretanto é certo que as boas maneiras e a decência exigem que evitemos sinais e expressões que tendam a revelar diretamente essa paixão Todos temos uma pro digiosa parcialidade em favor de nós mesmos e se sempre déssemos vazão a esses nossos sentimentos causaríamos a maior indignação uns aos outros não somente pela presença imediata de um objeto de comparação tão desagradável mas também pela contrariedade de nossos respectivos juízos Assim do mesmo modo que estabelece mos o direito natural para assegurar a propriedade dentro da socieda de e impedir o choque entre interesses pessoais também estabelece mos as regras da boa educação a fim de impedir o choque entre os orgulhos dos homens e tornar seu relacionamento agradável e ino fensivo Nada é mais desagradável que um homem com uma imagem presunçosa de si mesmo embora quase todo mundo tenha uma for te inclinação para esse vício Ninguém sabe distinguir bem em si mes mo o vício da virtude nem tem certeza de que a avaliação que faz de seu próprio mérito é bem fundada Por essa razão condenamos to das as expressões diretas dessa paixão e não abrimos exceções a essa regra sequer em favor de pessoas de mérito e bom senso Não per mitimos nem a elas nem a qualquer outra pessoa que façam justiça a si mesmas abertamente em palavras e as que se mostram recatadas e secretamente hesitantes quanto a fazer justiça a si próprias mes mo em pensamento estas são ainda mais aplaudidas Aquela imper tinente e quase universal inclinação dos homens a se supervalorizar produziu em nós um tal preconceito contra a autoaclamação que ten demos a condenála por uma regra geral sempre que a encontramos e é com certa dificuldade que concedemos aqui um privilégio aos 63 7 Tratado da natureza humana homens de bom senso mesmo em seus mais secretos pensamen tos Devese ao menos reconhecer que é absolutamente necessário manter algum disfarce quanto a esse ponto se abrigamos orgulho em nosso peito externamente devemos nos mostrar amáveis bem como aparentar uma modéstia e mútua deferência em nossa con duta e comportamento Temos de estar sempre prontos a dar prio ridade aos outros sobre nós mesmos a tratálos com uma espécie de condescendência ainda que sejam iguais a nós a parecer sem pre os mais humildes e os menos importantes de um grupo quando não nos distinguimos por uma superioridade muito marcada Se observarmos essas regras em nossa conduta todos serão mais indul gentes com nossos sentimentos secretos quando os revelarmos de maneira indireta 1 1 Creio que ninguém que tenha alguma prática do mundo e consi ga penetrar nos sentimentos mais íntimos dos homens poderá afir mar que a humildade que é exigida de nós pela boa educação e pela decência deva ir além do comportamento exterior e que uma com pleta sinceridade quanto a esse aspecto seja considerada realmente uma parte de nosso dever Ao contrário podemos observar que um genuíno e sincero orgulho ou autoestima se bem encoberto e bem fundado é essencial para o caráter de um homem honrado e nenhu ma qualidade da mente é mais indispensável para proporcionar o apre ço e a aprovação da humanidade O costume exige que pessoas de di ferentes posições sociais observem certas deferências e submissões mútuas e quem comete um excesso quanto a esse aspecto é acusado de baixeza se o faz por interesse e de parvoíce se o faz por ignorân cia Portanto é necessário que conheçamos nossa posição e nosso lugar no mundo seja ele determinado por nosso nascimento fortu na ocupação talento ou reputação É necessário experimentar o sen timento e a paixão do orgulho de uma maneira condizente com essa posição regulando nossas ações de acordo com isso E se acaso se disser que a prudência pode bastar para regular nossas ações quanto a esse aspecto particular sem a necessidade de um verdadeiro orgu 638 Livro 3 Parte 3 Seção 2 lho observo que aqui o objetivo da prudência é conformar nossas ações ao uso e ao costume geral e é impossível que aqueles tácitos ares de superioridade jamais tivessem sido estabelecidos e autoriza dos pelo costume a menos que os homens fossem de um modo geral orgulhosos e essa paixão fosse de um modo geral aprovada quando bem fundamentada 12 Este raciocínio ganhará ainda mais força se passarmos da con versação e da vida cotidiana para a história e observarmos que todos aqueles grandes feitos e sentimentos que se tornaram a admiração dos homens estão fundados unicamente no orgulho e na autoesti ma Ide diz Alexandre o Grande a seus soldados quando se recusam a seguilo até as Índias ide e dizei a vossos compatriotas que deixastes Ale xandre completando a conquista do mundo O príncipe de Condé sempre teve uma admiração particular por essa passagem como nos informa St Évremond Alexandre dizia o príncipe abandonado por seus sol dados entre bárbaros ainda não completamente subjugados sentia dentro de si uma tal dignidade e um tal direito de comando que não podia acreditar que alguém pudesse se recusar a obedecerlhe Esti vesse ele na Europa ou na Ásia entre gregos ou persas pouco lhe im portava onde quer que achasse homens imaginava ter encontra do súditos 13 Podemos observar de maneira geral que tudo o que chamamos de virtude heróica e admiramos como marca de grandeza e altivez espiritual não é senão um firme e bem estabelecido orgulho e auto estima ou ao menos tem muito dessa paixão Coragem valentia am bição amor à glória magnanimidade e todas as outras grandes virtu des dessa espécie contêm claramente uma forte dose de autoestima retirando boa parte de seu mérito dessa origem Vemos assim que muitos pregadores denigrem essas virtudes como puramente pagãs e naturais e descrevemnos a excelência da religião cristã que inclui a humildade entre as virtudes e corrige o julgamento dos homens Charles de SaintÉvremond 16101703 escritor e poeta francês em Sur Alexandre et César 21424 NT 639 Tratado da natureza humana mundanos e mesmo dos filósofos que tão universalmente admiram todos os esforços do orgulho e da ambição Se essa virtude da humil dade tem sido corretamente compreendida eis algo que não preten do julgar Fico satisfeito que se admita que as pessoas naturalmente apreciam um orgulho controlado que anime secretamente nossa con duta sem irromper em expressões indecentes de vaidade que possam ofender a vaidade alheia 14 O mérito do orgulho ou autoestima deriva de duas circunstân cias sua utilidade e o fato de nos ser agradável é assim que o orgu lho nos torna capazes de agir e ao mesmo tempo nos dá uma satis fação imediata Quando ultrapassa seus justos limites ele perde a primeira vantagem chegando a se tornar prejudicial é por essa razão que condenamos um orgulho e uma ambição exorbitantes ainda que controlados pelas regras das boas maneiras e da polidez Mas como uma tal paixão ainda é agradável e transmite uma sensação elevada e sublime à pessoa por ela movida a simpatia por essa satisfação di minui consideravelmente a censura que naturalmente acompanha sua perigosa influência sobre sua conduta e comportamento Assim po demos observar que uma coragem e uma magnanimidade excessivas sobretudo quando se manifestam nos reveses da fortuna contribuem em grande medida para compor o caráter de um herói e fazem de um homem objeto da admiração da posteridade ao mesmo tempo que arruinam seus negócios e o levam a dificuldades e perigos que de outra forma ele jamais teria conhecido 15 O heroísmo ou glória militar é muito admirado pela generalida de dos homens Consideramno o mais sublime dos méritos Homens de raciocínio sereno não são porém tão sanguíneos em seus elogios A seu ver a infinita confusão e desordem que o heroísmo ocasionou no mundo diminuem muito seu mérito E quando querem se contra por às noções populares a esse respeito sempre retratam os males que essa suposta virtude causou à sociedade humana destruição de impérios devastação de províncias inteiras saque de cidades Enquanto tivermos presentes esses males estaremos mais inclinados a odiar que 640 Livro 3 Parte 3 Seção 2 a admirar a ambição heróica Mas quando dirigimos nosso olhar para a própria pessoa que causou esses estragos há algo tão deslumbrante em seu caráter e sua mera contemplação eleva a tal ponto o espírito que não podemos lhe recusar nossa admiração A dor que experimen tamos por sua tendência a prejudicar a sociedade é sobrepujada por uma simpatia mais forte e mais imediata 1 6 Assim nossa explicação do mérito ou do demérito que acompa nha os diversos graus de orgulho e autoestima pode servir como um forte argumento em favor da hipótese anterior ao mostrar os efeitos daqueles princípios antes expostos em todas as variações de nossos juízos acerca dessa paixão E esse raciocínio não é vantajoso para nós apenas por mostrar que a distinção entre vício e virtude resulta dos quatro princípios da vantagem e do prazer da própria pessoa e dos outros pode também nos fornecer uma prova poderosa de alguns coadjuvan tes dessa hipótese 1 7 Ninguém que considere devidamente essa questão terá escrúpu los em admitir que qualquer demonstração de falta de educação ou qualquer expressão de orgulho e soberba nos desagrada exclusivamen te porque colide com nosso próprio orgulho levandonos por sim patia a estabelecer uma comparação que causa a desagradável pai xão da humildade Ora como censuramos uma insolência desse tipo mesmo em uma pessoa que sempre foi cortês conosco em particular e até em alguém cujo nome conhecemos apenas pela história segue se que nossa desaprovação procede de uma simpatia com os outros e da reflexão de que um tal caráter é altamente desagradável e odioso para todos que entram em conversação ou têm algum tipo de relacio namento com a pessoa que o possui Simpatizamos com eles em seu desconforto e como esse desconforto procede em parte de uma sim patia com quem os insultou podemos observar aqui um duplo rico chete da simpatia um princípio muito similar ao que observamos em outra ocasião5 5 Livro 2 Parte 2 Seção 5 641 Tratado da natureza humana Seção 3 Da bondade e da benevolência 1 Tendo assim explicado a origem do elogio e da aprovação que acompanham tudo aquilo que denominamos grande nos afetos huma nos passaremos agora a explicar sua bondade e a mostrar de onde vem seu mérito 2 Uma vez a experiência tendonos proporcionado um conhecimen to adequado dos assuntos humanos e tendo nos ensinado qual sua relação com as paixões humanas percebemos que a generosidade dos homens é muito restrita raramente indo além dos amigos e da famí lia ou no máximo além de seu país natal Estando assim familiari zados com a natureza humana não mais esperamos dos homens coi sas impossíveis para formar um juízo sobre o caráter moral de uma pessoa limitamos nosso exame ao estreito círculo em que ela se move Quando a tendência natural de suas paixões a leva a ser prestimosa e útil em sua esfera aprovamos seu caráter e amamos sua pessoa por uma simpatia com os sentimentos daqueles que têm uma conexão mais particular com ela Quando formulamos juízos desse tipo so mos rapidamente obrigados a esquecer nosso próprio interesse em razão das perpétuas contradições que encontramos na conversação e no convívio social com pessoas que não estão na mesma situação nem têm o mesmo interesse que nós O único ponto de vista em que nos sos sentimentos coincidem com os dos demais é o que se forma quan do consideramos a tendência de uma paixão a trazer alguma vanta gem ou a causar algum dano àqueles que têm uma conexão imediata ou um relacionamento com a pessoa por ela movida E embora essa vantagem ou esse dano estejam freqüentemente bem distantes de nós algumas vezes são bem próximos e nos interessam fortemente em vir tude da simpatia Tal interesse nós logo o estendemos a outros casos semelhantes e quando estes são muito remotos nossa simpatia é pro porcionalmente mais fraca e nosso elogio ou censura mais tímidos e hesitantes Ocorre aqui o mesmo que em nossos juízos acerca dos 642 Livro 3 Parte 3 Seção 3 corpos externos Todos os objetos parecem diminuir com a distância mas embora a aparência sensível dos objetos seja o critério original pelo qual os julgamos não dizemos que eles realmente diminuem ao se distanciarem corrigimos sua aparência pela reflexão e assim che gamos a um juízo mais constante e estável a seu respeito Da mesma maneira embora a simpatia seja muito mais fraca que nossa preocupa ção por nós mesmos e uma simpatia para com pessoas afastadas de nós seja muito mais fraca que para com pessoas contíguas ou vizinhas desprezamos todas essas diferenças quando formamos juízos sere nos a respeito do caráter dos homens Além do fato de nossa própria situação quanto a esse aspecto mudar com freqüência diariamente encontramos pessoas que estão em situação diferente da nossa e que nunca poderiam sequer conversar conosco em termos razoáveis se permanecêssemos constantemente naquela situação e naquele ponto de vista que nos são peculiares Portanto o intercâmbio de sentimentos na sociedade e no convívio diário nos leva a formar um critério geral e inalterável com base no qual possamos aprovar ou de saprovar caracteres e maneiras Embora o coração nem sempre fique do lado dessas noções gerais e não regule seu amor e ódio por elas essas noções são suficientes para o diálogo e servem a todos os nos sos propósitos no convívio social no púlpito no teatro e nas escolas 3 Partindo desses princípios explicamos com facilidade aquele mé rito comumente atribuído à generosidade ao respeito humano à compai xão à gratidão à amizade à fidelidade à dedicação ao desprendimento à pro digalidade além de a todas as outras qualidades que formam o caráter bom e benevolente Uma propensão para as paixões ternas torna um homem agradável e útil em todos os aspectos da vida e imprime uma direção apropriada a todas as suas outras qualidades que de outro modo podem se tornar prejudiciais à sociedade A coragem e a ambi ção quando não são governadas pela benevolência só servem para criar um tirano e inimigo público O mesmo acontece com a capa cidade de raciocínio o talento e com todas as qualidades desse gêne 643 Tratado da natureza humana ro Nelas mesmas essas qualidades são indiferentes aos interesses da sociedade e só tendem para o bem ou para o mal da humanidade conforme a direção que recebam dessas outras paixões 4 Como o amor é imediatamente agradável à pessoa por ele movida e o ódio é imediatamente desagradável essa também pode ser uma razão importante para explicar por que louvamos todas as paixões que par ticipam do amor e condenamos todas as que tenham um significati vo componente de ódio É certo que um sentimento afetuoso nos toca infinitamente bem como um sentimento grandioso Lágrimas nos vêm naturalmente aos olhos quando pensamos neles e não podemos deixar de mostrar a mesma afetuosidade pela pessoa que expressa sua afeição por nós Tudo isso me parece constituir uma prova de que nesses casos nossa aprovação tem uma origem diferente da perspec tiva de utilidade e vantagem para nós ou para os demais A isso po demos acrescentar que os homens naturalmente sem refletir apro vam aquele caráter que mais se parece com o seu O homem de disposição branda e afetuosa ao conceber a idéia da virtude mais per feita põe nela uma dose maior de benevolência e respeito humano que o homem corajoso e empreendedor para quem o caráter mais excelen te é naturalmente uma certa altivez espiritual Evidentemente isso deve proceder de uma simpatia imediata dos homens pelas pessoas de cará ter similar aos seus já que penetram mais calorosamente em seus sen timentos e experimentam mais sensivelmente o prazer deles decorrente 5 É notável que nada toque mais um homem dotado de sentimen tos humanitários que um exemplo de extraordinária delicadeza no amor ou na amizade quando uma pessoa está atenta às menores preocupa ções de seu amigo e disposta a sacrificar por ele seus maiores interes ses Atenções como essa têm pouca influência na sociedade porque nos fazem levar em consideração as coisas mais insignificantes são porém tão mais envolventes quanto mais minuciosas sendo prova do mais alto mérito naquele que delas é capaz As paixões são tão contagiantes que passam com a maior facilidade de uma pessoa a ou tra produzindo movimentos correspondentes em todos os corações 644 Livro 3 Parte 3 Seção 3 humanos Quando a amizade se mostra em exemplos muito marcan tes meu coração capta a mesma paixão e se enternece com esses cá lidos sentimentos que se me apresentam Esses movimentos agradá veis devem produzir em mim uma afeição por todo aquele que os desperta É o caso de tudo que é agradável em uma pessoa A transi ção do prazer ao amor é fácil mas a transição aqui deve ser ainda mais fácil pois como o sentimento agradável despertado pela simpatia é o próprio amor basta trocar o objeto 6 A isso se deve o mérito peculiar da benevolência sob todas as suas formas e aparências É por isso que até mesmo suas fraquezas são virtuosas e dignas de amor Uma pessoa que sente uma tristeza ex cessiva pela morte de um amigo é estimada exatamente por essa ra zão como dá prazer a afeição que sentia por ele confere um mérito a sua melancolia 7 Não devemos imaginar entretanto que todas as paixões coléricas são viciosas embora sejam desagradáveis Existe uma certa indulgên cia a esse respeito em virtude da natureza humana A raiva e o ódio são paixões inerentes a nossa própria estrutura e constituição A falta delas em algumas ocasiões pode mesmo ser prova de fraqueza e inca pacidade E quando se manifestam de maneira fraca não apenas as desculpamos por serem naturais também as aplaudimos por serem inferiores às que aparecem na maioria dos homens 8 Mas quando essas paixões coléricas se inflamam a ponto de se transformar em crueldade constituem o mais detestado de todos os vícios Toda a piedade e consideração que temos por suas infelizes vítimas se voltam contra os culpados produzindo por eles um ódio mais forte que aquele de que temos consciência em qualquer outra ocasião 9 Mesmo quando o vício da desumanidade não alcança esse grau extremo nossos sentimentos a seu respeito são muito influenciados por reflexões sobre o mal que dele resulta Podemos observar de modo geral que sempre que encontramos em uma pessoa uma caracte rística que a torna incômoda àqueles que com ela convivem e se 645 Tratado da natureza humana relacionam consideramos essa característica uma falta ou mácula sem sequer examinar melhor a situação Por outro lado quando enu meramos as boas qualidades de uma pessoa sempre mencionamos aqueles aspectos de seu caráter que a tornam um companheiro confiável um amigo gentil um amo benévolo um marido agradável ou um pai indulgente Consideramola em todas as suas relações so ciais e a amamos ou odiamos conforme o modo como afete aqueles que têm um relacionamento direto com ela Tratase de uma regra bastante certa que se não houver na vida nenhum tipo de relação que eu não queira ter com uma pessoa em particular seu caráter deve até esse ponto ser considerado perfeito Se deixa tão pouco a desejar a si mesma quanto aos outros seu caráter é completamente perfeito Esse é o teste máximo do mérito e da virtude Seção 4 Das aptidões naturais 1 Não há distinção mais comum em todos os sistemas éticos que aquela feita entre as aptidões naturais e as virtudes morais segundo a qual se considera que as primeiras estão em pé de igualdade com os dotes físicos não tendo nenhum mérito ou valor moral Mas quem quer que considere adequadamente a questão irá constatar que qualquer discussão a esse respeito é uma mera disputa de palavras e embora esses dois tipos de qualidades não sejam exatamente iguais elas coincidem em suas características mais importantes Ambas são qua lidades mentais ambas produzem prazer e têm naturalmente uma tendência a obter o amor e o apreço dos homens Poucas pessoas não são tão ciosas de seu caráter no que concerne à inteligência e ao dis cernimento quanto no que concerne à honra e à coragem e mais ain da que no que diz respeito à temperança e à sobriedade Alguns têm até receio de passar por pessoas de boa índole porque essa qualidade pode ser tomada por falta de inteligência e freqüentemente se gabam de ser mais libertinos do que realmente são para se dar ares de fogo 646 Livro 3 Parte 3 Seção 4 sidade e vigor Em suma a imagem que uma pessoa conquista no mundo o modo como é recebida em sociedade o apreço que obtém de seus conhecidos todas essas vantagens dependem quase tanto de seu bom senso e juízo quanto de qualquer outro elemento de seu ca ráter Um homem pode ter as melhores intenções do mundo e pode se manter o mais longe possível de qualquer injustiça e violência mas nunca será muito respeitado se não tiver ao menos um grau modera do de talento e inteligência As aptidões naturais portanto embora talvez inferiores estão em pé de igualdade com as qualidades que de nominamos virtudes morais no que diz respeito tanto a suas causas quanto a seus efeitos Por que então faríamos qualquer distinção entre elas 2 Mesmo se nos recusamos a conferir às aptidões naturais o título de virtudes temos de admitir que elas obtêm o amor e o apreço da humanidade que dão mais brilho às outras virtudes e que aquele que as possui está muito mais habilitado a receber nossa benevolência e nossos favores que aquele que delas é inteiramente desprovido Pode se afirmar é verdade que o sentimento de aprovação produzido por essas qualidades além de ser inferior é também algo diferente daquele que acompanha as outras virtudes Mas em minha opinião essa não é uma razão suficiente para excluílas do rol das virtudes Cada virtu de até mesmo a benevolência a justiça a gratidão e a integridade desperta um sentimento ou sensação diferente no espectador Tanto o caráter de César quanto o de Catão tais como representados por Salústio são virtuosos no sentido mais estrito da palavra mas de modos diferentes pois os sentimentos por eles ocasionados não são inteiramente iguais Um gera amor o outro apreço Um é amável o outro respeitável O primeiro caráter gostaríamos talvez de encon trar em um amigo o segundo ambicionamos possuilo nós mesmos De forma semelhante a aprovação que acompanha as aptidões natu rais pode ser diferente pela maneira como a sentimos daquela que resulta das outras virtudes mas isso não significa que sejam de espé cies totalmente diversas De fato podemos observar que as aptidões 647 Tratado da natureza humana naturais assim como as outras virtudes não produzem todas elas a mesma espécie de aprovação O bom senso e o gênio geram apre ço a espirituosidade e o senso de humor despertam amor6 3 Aqueles que afirmam que a distinção entre as aptidões naturais e as virtudes morais é muito importante dizem por vezes que as pri meiras são inteiramente involuntárias e portanto não possuem mé rito algum já que não dependem da liberdade ou livrearbítrio Mas a isso respondo em primeiro lugar que muitas dessas qualidades que todos os moralistas sobretudo os antigos incluem na classe das vir tudes morais são tão involuntárias e necessárias quanto as qualida des do juízo e da imaginação Dessa natureza são a constância a co ragem a magnanimidade e em suma todas as qualidades que fazem um grande homem E eu poderia dizer o mesmo até certo ponto das outras qualidades pois é quase impossível à mente alterar seu cará ter em aspectos muito significativos ou curar seu temperamento im pulsivo ou neurastênico quando essa é sua natureza Quanto maior o grau dessas qualidades censuráveis mais viciosas elas se tornam e entretanto elas são as menos voluntárias Em segundo lugar gos taria que alguém me explicasse por que a virtude e o vício não podem ser involuntários assim como a beleza e a feiúra Essas distinções morais surgem das distinções naturais entre a dor e o prazer e quando experimentamos essas sensações feelings pela consideração geral de uma qualidade ou caráter classificamos a estes de viciosos ou de virtuosos Ora creio que ninguém iria afirmar que uma qualidade só pode produzir prazer ou dor à pessoa que a considera se for perfeitamente voluntária na pessoa que a possui Em terceiro lugar quanto ao li vrearbítrio já mostramos que ele não tem lugar nas ações não mais que nas qualidades dos homens Não é uma inferência correta dizer que 6 Amor e apreço são no fundo a mesma paixão e surgem de causas semelhantes Ambas são produzidas por qualidades agradáveis e prazerosas Mas quando esse prazer é grave e sério ou quando seu objeto é sublime e causa uma forte impressão ou quando produz algum grau de humildade e temor em todos esses casos a paixão que resulta do prazer é mais propriamente denominada apreço que amor A benevolência acompanha a ambas mas conectase com o amor em um grau mais proeminente 648 Livro 3 Parte 3 Seção 4 aquilo que é voluntário é livre Nossas ações são mais voluntárias que nossos juízos mas não temos mais liberdade naquelas que nestes 4 Embora essa distinção entre voluntário e involuntário não seja suficiente porém para justificar a distinção entre aptidões naturais e virtudes morais fornecenos uma razão plausível para explicar por que os moralistas inventaram esta última distinção Os homens ob servaram que embora as aptidões naturais e as qualidades morais sejam essencialmente equivalentes existe esta diferença entre elas a saber que as primeiras quase não podem ser alteradas pela arte ou pelo trabalho ao passo que estas últimas ou ao menos as ações de las procedentes podem ser modificadas por motivos como recompen sas e punições elogios e censuras É por isso que legisladores teólo gos e moralistas esforçaramse sobretudo para regular essas ações voluntárias e buscaram dar às pessoas motivos adicionais para serem virtuosas quanto a elas Sabiam que punir um homem por ser um tolo ou exortálo a ser prudente e sagaz não seria muito eficaz já as mes mas punições e exortações no caso da justiça e da injustiça poderiam ter uma influência considerável Na vida e na conversação cotidianas entretanto os homens não pensam nesses fins mas em vez disso elogiam ou censuram naturalmente tudo que lhes agrada ou desagra da Por isso parecem não levar muito em consideração essa distinção classificando a prudência como uma virtude tanto quanto a benevo lência e a perspicácia tanto quanto a justiça Mais ainda verificamos que todos os moralistas cujo julgamento não esteja pervertido por uma adesão demasiadamente rígida a um sistema pensam do mesmo modo e os moralistas antigos em particular não hesitavam em pôr a prudência no topo das virtudes cardinais Existe um sentimento de apreço e de aprovação que pode ser despertado até certo ponto por qualquer faculdade da mente em seu perfeito estado e condição e explicar esse sentimento é tarefa dos filósofos Aos gramáticos cabe examinar que qualidades merecem ser denominadas virtudes ao ten tar fazêlo descobrirão que essa tarefa não é tão fácil quanto poderiam imaginar à primeira vista 649 Tratado da natureza humana 5 A principal razão por que as aptidões naturais são tão estima das é sua tendência a ser úteis à pessoa que as possui É impossível realizar com sucesso nossos propósitos se não nos conduzimos com prudência e discernimento ter boas intenções não é suficiente para trazer a bom resultado nossos empreendimentos Os homens são su periores aos animais sobretudo pela superioridade de sua razão e são os graus dessa mesma faculdade que estabelecem essa diferença infi nita entre um homem e outro Todas as vantagens trazidas pela arte se devem à razão humana e quando o destino não é muito caprichoso a parte mais importante dessas vantagens deverá caber ao homem pru dente e sagaz 6 Quando se pergunta o que tem mais valor uma capacidade de percepção aguçada ou obtusa uma inteligência capaz de penetrar um assunto logo à primeira vista mas inapta a realizar seja o que for pelo estudo ou o caráter contrário que tem de usar de muita aplicação para fazer suas descobertas uma mente lúcida ou uma inventividade copiosa um gênio profundo ou um juízo seguro em suma quan do se pergunta que caráter ou que tipo particular de inteligência é su perior evidentemente não podemos dar uma resposta sem conside rar qual dessas qualidades torna uma pessoa mais capacitada para a vida e a leva mais longe em qualquer empreendimento 7 Há muitas outras qualidades mentais cujo mérito tem a mesma origem Trabalho perseverança paciência atividade vigilância aplicação constância e outras virtudes do mesmo tipo que seria fácil evocar são consideradas valiosas unicamente por sua vantagem na condução da vida Isso também se passa com a temperança a frugalidade a economia a resolução Por sua vez extravagância luxo irresolução e incerteza são vícios exclusivamente porque trazem nossa ruína e nos tornam in capazes para os negócios e as ações 8 Assim como a sabedoria e o bom senso são valorizados por serem úteis a quem os possui assim também o espírito e a eloqüência são valo rizados porque são imediatamente agradáveis aos outros Por outro la do o bom humor é amado e apreciado por ser imediatamente agradável 650 Livro 3 Parte 3 Seção 4 à própria pessoa É evidente que é muito satisfatório poder conver sar com um homem espirituoso assim como um companheiro ale gre e bemhumorado transmite um contentamento a todo o grupo por uma simpatia com sua alegria Essas qualidades portanto sen do agradáveis geram naturalmente amor e apreço e satisfazem a todas as características da virtude 9 Em muitos casos é difícil dizer o que torna a conversa de um ho mem tão agradável e divertida e a de outro insípida e aborrecida Como a conversação é uma transcrição da mente tanto quanto os li vros as mesmas qualidades que dão valor a estes devem proporcionar um apreço por aquela Consideraremos essa questão adiante Enquanto isso podemos afirmar de uma maneira geral que todo o mérito que um homem pode extrair de sua conversação e sem dúvida esse mé rito pode ser considerável resulta unicamente do prazer que ela trans mite aos presentes 10 Dessa perspectiva o asseio também deve ser visto como uma vir tude já que nos torna agradáveis aos outros sendo uma fonte bas tante considerável de amor e afeição Ninguém pode negar que uma negligência quanto a esse ponto seja uma falta e como as faltas não são senão vícios menores e essa falta só pode ter como origem a sen sação desconfortável que desperta nas outras pessoas podemos des cobrir claramente por este exemplo aparentemente tão trivial a ori gem da distinção moral entre o vício e a virtude em outros casos 1 1 Além de todas essas qualidades que tornam uma pessoa estimá vel ou admirável há também um certo jenesaisquoi naquilo que é agradável e belo que concorre para o mesmo efeito Nesse caso como no do espírito e da eloqüência temos de recorrer a um certo sentido que age sem reflexão e não leva em conta as tendências da qualidade ou do caráter Alguns moralistas explicam todos os sentimentos da virtude por meio desse sentido Sua hipótese é bastante plausível So mente uma investigação detalhada pode nos fazer preferir alguma outra hipótese Quando descobrimos que quase todas as virtudes têm essas tendências particulares e também que essas tendências são 651 Tratado da natureza humana suficientes por si sós para nos proporcionar um forte sentimento de aprovação não podemos ter dúvidas de que as qualidades são apro vadas ou não conforme a vantagem que delas resulta 12 A propriedade ou impropriedade de um atributo quanto à idade ao caráter ou à posição social de uma pessoa também contribui para sua aprovação ou condenação Essa propriedade depende em grande parte da experiência É comum que os homens percam sua levianda de conforme vão envelhecendo Por isso um determinado grau de se riedade e uma determinada idade estão conectados em nossos pen samentos E quando observamos que ocorrem separadamente em um caráter essa observação acarreta uma espécie de violência contra nossa imaginação passando a ser desagradável 13 De todas as faculdade da alma a menos relevante para o caráter e a que tem menos de virtude ou vício em suas diversas variações ao mesmo tempo que admite uma grande variedade de gradações é a memória Exceto quando atinge um grau tão prodigioso que causa ad miração ou quando é tão deficiente que chega a afetar a capacidade de julgar não costumamos notar suas variações nem a mencionamos para elogiar ou criticar uma pessoa Ter boa memória está tão longe de ser uma virtude que os homens em geral gostam de se queixar de ter uma memória fraca esforçamse em persuadir todo mundo de que aquilo que eles dizem se deve exclusivamente a sua própria inven tividade sacrificando sua memória para valorizar seu gênio e capa cidade de julgar Entretanto considerandose a questão em abstrato seria difícil dar uma razão para explicar por que a faculdade de recor dar idéias passadas com veracidade e clareza não deveria conter tan to mérito quanto a faculdade de ordenar nossas idéias presentes de modo a formar proposições e opiniões verdadeiras A razão dessa diferença certamente deve ser que a memória se exerce sem provo car nenhuma sensação de prazer ou dor e todos os seus graus me dianos servem quase igualmente bem para nossas atividades e afaze res Ao contrário as menores variações em nossa faculdade de julgar têm conseqüências bastante sensíveis ao mesmo tempo sempre que atinge um grau superior essa faculdade produz um extraordinário 652 Livro 3 Parte 3 Seção 5 deleite e satisfação A simpatia com essa utilidade e prazer conferem um mérito ao entendimento e sua ausência no caso da memória nos faz considerar esta última como uma faculdade bastante indiferente tanto à censura como ao elogio 14 Antes de deixar este tema das aptidões naturais devo observar que uma das fontes do apreço e afeição que as acompanham talvez seja derivada da importância e do peso que conferem àquele que as possui A pessoa se torna mais importante na vida Suas resoluções e ações afetam um número maior de seus semelhantes Tanto sua amizade como sua inimizade têm grande peso E é fácil observar que aquele que por suas aptidões elevase acima do resto da humanidade deve despertar em nós os sentimentos de apreço e aprovação Tudo que é importante atrai nossa atenção fixa nosso pensamento e é visto com satisfação Histórias de reinos são mais interessantes que histórias domésticas histórias de grandes impérios mais que de pequenas cida des e principados e histórias de guerras e revoluções mais que as de tempos de paz e ordem Simpatizamos com aqueles que sofrem nos mais diversos sentimentos que correspondem à sua sorte A mente é ocupada pela multiplicidade de objetos e pelas fortes paixões que se apresentam E essa ocupação ou agitação da mente é comumente agra dável e divertida A mesma teoria dá conta do apreço e da considera ção que temos por homens de talentos e habilidades extraordinárias O bem e o mal de multidões inteiras estão conectados com suas ações Tudo que fazem é importante e exige nossa atenção Nada a seu res peito deve ser menosprezado ou desprezado E quando uma pessoa é capaz de despertar esses sentimentos rapidamente recebe nosso apre ço a menos que outras particularidades de seu caráter a tornem odiosa e desagradável Seção 5 Mais algumas reflexões sobre as aptidões naturais 1 Ao tratarmos das paixões observamos que o orgulho e a humil dade o amor e o ódio são excitados por qualquer vantagem ou des 653 Tratado da natureza humana vantagem da mente do corpo ou da fortuna e que essas vantagens ou desvantagens têm esse efeito por produzirem uma impressão sepa rada de dor ou prazer A dor ou o prazer que resultam do exame ou da consideração geral de uma ação ou qualidade da mente constituem seu vício ou sua virtude gerando nossa aprovação ou censura que não é se não um amor ou um ódio mais fraco e imperceptível Atri buímos quatro fontes diferentes a essa dor e a esse prazer e para justificar mais completamente essa hipótese talvez seja apropriado considerar aqui que é pelos mesmos princípios que as vantagens ou desvantagens do corpo e da riqueza produzem dor ou prazer A ten dência de um objeto a ser útil à pessoa que o possui ou aos demais a transmitir prazer a ela ou aos outros todas essas circunstâncias dão um prazer imediato à pessoa que considera o objeto e inspiram seu amor e aprovação 2 Começando com as vantagens do corpo observemos um fenôme no que pode parecer um pouco fútil e ridículo se é que pode ser fútil algo que reforça uma conclusão tão importante ou ridículo algo que é utilizado em um raciocínio filosófico Tratase de uma observação geral que aqueles homens que chamamos de bons amantes que se des tacaram por suas proezas amorosas ou cuja constituição física pro mete um extraordinário vigor dessa espécie são bem recebidos pelo belo sexo e naturalmente ganham a afeição mesmo daquelas cuja virtude impede qualquer projeto de fazer uso desses talentos Neste último caso é evidente que a capacidade que esses homens têm de dar prazer é a verdadeira fonte do amor e apreço que encontram por parte das mulheres ao mesmo tempo as mulheres que os amam e estimam não têm nenhuma perspectiva de obter elas mesmas esse prazer só podendo ser afetadas por sua simpatia com aquelas que têm com eles algum relacionamento amoroso Esse exemplo é bastante singular e merece nossa atenção 3 Outra fonte do prazer que recebemos da consideração das vanta gens corporais é sua utilidade para a própria pessoa delas dotada É certo que uma parte considerável da beleza dos homens bem como 654 Livro 3 Parte 3 Seção 5 de outros animais consiste em uma determinada conformação de membros que pela experiência verificamos ser acompanhada de for ça e agilidade capacitando a criatura para qualquer ação ou exercí cio Ombros largos ventre esguio articulações firmes pernas tor neadas todas essas características são consideradas belas em nossa espécie porque indicam força e vigor e como essas são vantagens com que naturalmente simpatizamos transmitem ao observador uma parte da satisfação que produzem em quem as possui 4 Isso quanto à utilidade que pode acompanhar uma qualidade cor poral Quanto ao prazer imediato é certo que um ar de saúde bem como de força e agilidade constitui uma parte considerável da bele za e alguém com ar doentio é sempre desagradável para nós em vir tude da idéia de dor e malestar que nos transmite Por outro lado agradanos a regularidade de nossos próprios traços mesmo que ela não seja útil nem para nós nem para os outros e que precisemos to mar uma certa distância de nós mesmos para que nos transmita al guma satisfação Costumamos considerar a nós mesmos tais como aparecemos aos olhos dos outros e simpatizamos com os sentimen tos favoráveis que eles têm por nós 5 Saberemos até que ponto as vantagens da riqueza produzem apreço e aprovação pelos mesmos princípios se lembrarmos nosso raciocí nio anterior sobre esse assunto Observamos que nossa aprovação às pessoas que possuem as vantagens decorrentes da riqueza pode ser atribuída a três causas distintas Primeiro ao prazer imediato que um homem rico nos dá quando vemos as belas roupas equipagem jar dins ou casas que ele possui Em segundo lugar às vantagens que dele esperamos extrair por sua generosidade e prodigalidade Em terceiro lugar ao prazer e às vantagens que ele próprio extrai de suas posses e as quais produzem em nós uma simpatia agradável Quer atribua mos nosso apreço pelas pessoas ricas e importantes a apenas uma ou a todas essas causas podemos ver claramente os traços desses prin cípios que geram o sentido do vício e da virtude Acredito que a maioria das pessoas à primeira vista estará inclinada a atribuir nosso apreço 655 Tratado da natureza humana pelos ricos ao interesse pessoal e à perspectiva de obter alguma van tagem Mas certamente nosso apreço ou deferência vai além de qual quer perspectiva de obter vantagens para nós mesmos por isso é evidente que esse sentimento tem de proceder de uma simpatia com aqueles que dependem da pessoa que estimamos e respeitamos e que têm uma conexão imediata com ela Consideramola alguém capaz de contribuir para a felicidade ou a satisfação de seus semelhantes cujos sentimentos a seu respeito naturalmente abraçamos E essa consideração servirá para justificar minha hipótese de que devemos preferir o terceiro princípio aos outros dois e atribuir nosso apreço pelos ricos a uma simpatia com o prazer e a vantagem que eles pró prios obtêm de seus bens Pois como mesmo os outros dois princípios não podem operar com a devida extensão e não podem dar conta de todos os fenômenos sem recorrer a uma simpatia de um tipo ou de outro é muito mais natural escolhermos a simpatia que é ime diata e direta do que aquela que é longínqua e indireta A isso pode mos acrescentar que quando a riqueza e o poder são muito grandes e tornam a pessoa considerável e importante para o mundo o apreço que os acompanha pode ser em parte atribuído a outra fonte distin ta dessas três a saber o fato de interessarem à mente pela perspec tiva de suas numerosas e importantes conseqüências Mas para ex plicar a operação desse princípio também temos que recorrer à simpatia como já observamos na seção anterior 6 Talvez seja bom observar aqui a flexibilidade de nossos sentimen tos e as diversas alterações que eles tão prontamente recebem dos objetos com que estão conectados Todos os sentimentos de aprova ção que acompanham uma espécie particular de objetos têm entre si uma grande semelhança ainda que sejam derivados de fontes dife rentes e por outro lado esses sentimentos quando dirigidos a obje tos diferentes são sentidos de maneira diferente ainda que derivem da mesma fonte Assim a beleza de todos os objetos visíveis causa um prazer bastante semelhante embora às vezes seja derivada do mero aspecto ou aparência dos objetos outras vezes da simpatia bem 656 Livro 3 Parte 3 Seção 6 como da idéia de sua utilidade Do mesmo modo sempre que consi deramos as ações e o caráter dos homens sem ter por eles nenhum interesse particular o prazer ou a dor resultantes dessa consideração com algumas pequenas diferenças são essencialmente do mesmo tipo embora possa haver uma grande diversidade em suas causas Em contrapartida uma casa confortável e um caráter virtuoso não cau sam o mesmo sentimento feeling de aprovação embora a fonte de nossa aprovação seja a mesma e decorra da simpatia e da idéia de sua utilidade Há algo um tanto inexplicável nessas variações de nossas maneiras de sentir our feelings mas é isso que experimentamos em todas as nossas paixões e sentimentos Seção 6 Conclusão deste livro 1 Assim por tudo o que foi dito tenho esperança de que nada te nha faltado para tornar completa a demonstração deste sistema éti co Temos certeza de que a simpatia é um princípio muito poderoso na natureza humana Também temos certeza de que exerce grande influência sobre nosso sentido do belo seja quando consideramos os objetos externos seja quando formamos juízos morais Constatamos que a simpatia tem força suficiente para nos proporcionar os mais fortes sentimentos de aprovação quando age sozinha sem a concor rência de outros princípios como nos casos da justiça da obediência civil da castidade e das boas maneiras Podemos observar que todas as circunstâncias necessárias para sua operação se encontram na maior parte das virtudes que têm em sua maioria uma tendência para pro mover o bem da sociedade ou da pessoa que as possui Se comparar mos todas essas circunstâncias não teremos dúvidas de que a sim patia é a principal fonte das distinções morais sobretudo se pensarmos que qualquer objeção que se levantar a esta hipótese em um caso deverá se estender a todos os outros Certamente a justiça é aprova da por uma única razão ou seja porque tem uma tendência a trazer 657 Tratado da natureza humana o bem público e o bem público sernosia indiferente se a simpatia não criasse em nós um interesse por ele Podemos presumir que algo semelhante se passa com todas as outras virtudes que tenham a mesma tendência para o bem público Essas virtudes devem derivar todo seu mérito de nossa simpatia com aqueles que delas se beneficiam assim como as virtudes que têm uma tendência para o bem de quem as pos sui derivam seu mérito de nossa simpatia com essa pessoa 2 A maioria das pessoas concordará prontamente que as qualida des úteis da mente são virtuosas justamente por causa de sua utilida de Essa maneira de pensar é tão natural e se dá em tantas ocasiões que poucos hesitarão em admitila Ora uma vez admitido isso deve se necessariamente reconhecer a força da simpatia A virtude é con siderada um meio para a obtenção de um fim Um meio só tem valor se o fim tem valor Mas a felicidade de estranhos só nos afeta por sim patia É a esse princípio portanto que devemos atribuir o sentimento de aprovação decorrente da consideração daquelas virtudes que são úteis à sociedade ou à pessoa virtuosa Essas virtudes formam a prin cipal parte da moral 3 Se fosse apropriado em um assunto como este subornar o lei tor e empregar algo mais que argumentos sólidos para conseguir seu assentimento isso não seria difícil pois temos aqui à nossa disposi ção uma grande abundância de tópicos para cativar os afetos Todos os amantes da virtude e em teoria todos nós o somos embora pos samos nos degenerar na prática certamente devem ficar satisfeitos em ver que as distinções morais são derivadas de uma fonte tão no bre que nos dá uma noção correta tanto da generosidade quanto da capacidade de nossa natureza Um leve conhecimento dos assuntos humanos é suficiente para se perceber que o sentido da moralidade é um princípio inerente à alma e um dos elementos mais poderosos de sua composição Mas esse sentido deve certamente ganhar mais força quando ao refletir sobre si próprio aprova os princípios de que deriva sem encontrar em seu nascimento e origem nada que não seja 658 Livro 3 Parte 3 Seção 6 grande e bom Aqueles que reduzem o sentido da moralidade a ins tintos originais da mente humana podem defender a causa da virtu de com bastante autoridade mas carecem da vantagem daqueles que explicam esse sentido por uma simpatia extensa com a humanidade De acordo com este último sistema não é apenas a virtude que deve ser aprovada mas também o sentido da virtude e não apenas esse senti do como também os princípios de que ele deriva Desse modo de todos os lados não se apresenta nada que não seja louvável e bom 4 Essa observação podese estender à justiça e às outras virtudes dessa espécie Embora a justiça seja artificial o sentido de sua mora lidade é natural É a associação dos homens em um sistema de con duta que torna um ato de justiça benéfico para a sociedade Mas uma vez que esse ato adquira tal tendência nós naturalmente o aprovamos se não fosse assim nenhuma associação ou convenção jamais pode ria produzir esse sentimento 5 A maior parte das invenções humanas estão sujeitas a mudanças Dependem do humor e do capricho Permanecem em voga durante um certo tempo e então caem no esquecimento Por isso talvez se tema que se a justiça fosse considerada uma invenção humana te ria o mesmo destino Mas são casos completamente diferentes O in teresse em que a justiça está fundada é o maior que se pode imagi nar estendendose a todos os tempos e lugares Nenhuma outra invenção poderia satisfazêlo É um interesse evidente e se revela assim que a sociedade se forma Todas essas causas tornam as re gras da justiça firmes e imutáveis ou ao menos tão imutáveis quanto a natureza humana Se fossem fundadas em instintos originais aca so poderiam ter maior estabilidade 6 O mesmo sistema pode nos ajudar a ter uma noção correta da felicidade bem como da dignidade da virtude e pode fazer que todos os princípios de nossa natureza se interessem em abrigar e alimentar essa nobre qualidade De fato quem não sente aumentar seu entusias mo pela busca de conhecimento e de todo tipo de habilidade quando considera que além das vantagens que podem resultar imediatamente 659 Tratado da natureza humana dessas aquisições estas também lhe darão um novo brilho aos olhos da humanidade por serem universalmente estimadas e aprovadas E quem poderia pensar que qualquer vantagem decorrente da rique za poderia ser suficiente para compensar a menor violação das virtu des sociais quando considera que não apenas seu caráter perante as outras pessoas mas também sua paz e satisfação interior dependem inteiramente de sua estrita observância dessas virtudes e que ne nhum intelecto pode suportar encarar a si próprio se não for capaz de cumprir seu papel perante os homens e a sociedade Mas não que ro insistir nesse tema Tais reflexões requerem uma obra à parte muito diferente do espírito do presente livro O anatomista nunca deve emular o pintor nem deve em suas cuidadosas dissecções e em suas descrições das partes mais diminutas do corpo humano querer dar às suas figuras atitudes ou expressões graciosas e atraentes Existe mesmo algo repulsivo ou ao menos desprezível na visão que nos fornece das coisas é necessário situar os objetos mais à distância tornálos menos visíveis para que se tornem mais atraentes para o olho ou para a imaginação O anatomista entretanto é admiravel mente bem qualificado para aconselhar o pintor chega a ser impra ticável atingir a perfeição nesta última arte sem o auxílio da primeira Temos de ter um conhecimento exato das partes de sua posição e conexão para podermos desenhar com elegância e correção Assim as especulações mais abstratas acerca da natureza humana por mais frias e monótonas que sejam fazemse um instrumento da moral prática e podem tornar esta última ciência mais correta em seus pre ceitos e mais persuasiva em suas exortações 660 Apêndice 1 Não há nada que eu pudesse desejar mais que ter a oportunidade de confessar meus erros um semelhante retorno à verdade e à razão seria para mim mais honroso que o juízo mais infalível O homem que se encontra livre de erros só pode pretender ser louvado pela precisão de seu entendimento mas aquele que corrige seus erros mostra a um só tempo a precisão de seu entendimento e a sinceri dade e candura de seu caráter Ainda não tive a sorte de descobrir nenhum erro importante nos raciocínios expostos nos volumes precedentes exceto em um ponto A experiência mostroume po rém que algumas expressões que utilizei não foram tão bem esco lhidas a ponto de evitar malentendidos por parte dos leitores e foi sobretudo para remediar essa imperfeição que acrescentei o apêndi ce a seguir 2 Só podemos ser levados a crer em uma questão de fato se sua causa ou efeito diretos ou colaterais estiverem presentes a nós mas qual a natureza dessa crença que resulta da relação de causa e efeito eis algo que poucos tiveram a curiosidade de se perguntar Em minha opinião o seguinte dilema é inevitável ou a crença é uma nova idéia tal como a idéia de realidade ou de existência que juntamos à simples concepção de um objeto ou é simplesmente uma sensação ou senti 661 Tratado da natureza humana menta peculiar Que ela não é uma nova idéia vinculada à simples con cepção podese mostrar por estes dois argumentos Primeiramente não possuímos uma idéia abstrata de existência que seja distinguível e separável da idéia de objetos particulares É impossível portanto que essa idéia de existência possa ser vinculada à idéia de um objeto ou estabelecer a diferença entre uma simples concepção e uma cren ça Em segundo lugar a mente tem o controle de todas as suas idéias e pode separar unir misturar e transformálas a seu belprazer de modo que se a crença consistisse meramente em uma nova idéia vinculada à concepção os homens teriam o poder de acreditar na quilo que quisessem Concluímos portanto que a crença consiste unicamente em uma certa sensação ou sentimento em algo que não depende da vontade devendo antes resultar de certas causas e prin cípios determinados que estão fora de nosso controle Quando estamos convencidos de um fato não fazemos mais que concebê lo juntamente com uma certa sensação feeling diferente daquela que acompanha os meros devaneios da imaginação E quando ex pressamos nossa incredulidade sobre um fato queremos dizer que os argumentos em seu favor não produzem essa sensação feeling Se a crença não consistisse em um sentimento diferente da simples concepção qualquer objeto apresentado pela imaginação mais des vairada estaria em pé de igualdade com as verdades mais bem esta belecidas fundadas na história e na experiência Apenas a sensação ou sentimento distingue as duas coisas 3 Considerandose assim uma verdade indubitável que a crença não é senão uma sensação feeling peculiar diferente da simples concepção a próxima questão que nos ocorre naturalmente é qual a natureza des sa sensação ou sentimento Será análogo a algum outro sentimento da men te humana Essa é uma questão importante Pois se esse sentimento não for análogo a nenhum outro devemos desistir de explicar suas causas e teremos de considerálo um princípio original da mente hu mana Se for análogo podemos ter esperanças de explicar suas causas por analogia remetendoo a princípios mais gerais Ora todos admi 662 Apêndice tirão que existe uma maior firmeza e solidez nas concepções que são objetos de convicção e certeza que nos vagos e indolentes devaneios de um sonhador Aquelas nos tocam com mais força são mais presentes a mente tem mais domínio sobre elas e se vê afetada e movida por elas de modo mais intenso Concedelhes seu assenti mento e como que se fixa e repousa sobre elas Em suma essas con cepções estão mais próximas das impressões que nos são imediata mente presentes e são portanto análogas a muitas outras operações da mente 4 Em minha opinião não há possibilidade de se evitar essa conclu são a não ser afirmandose que a crença além da simples concepção consiste em alguma impressão ou sensação feeling distinguível da concepção Ela não modificaria a concepção ou tornálaia mais pre sente e intensa Apenas estaria vinculada a ela do mesmo modo que a vontade e o desejo estão vinculados às concepções particulares do bem e do prazer Mas as seguintes considerações serão suficientes espe ro para afastar essa hipótese Em primeiro lugar ela é diretamente contrária à experiência e a nossa consciência imediata Todos sempre admitiram que o raciocínio é uma simples operação de nossos pen samentos ou idéias e por mais que possa variar a maneira como senti mos essas idéias nada jamais entra em nossas conclusões senão idéias ou seja nossas concepções mais fracas Por exemplo ouço agora a voz de uma pessoa que conheço e esse som vem do quarto ao lado Essa impressão de meus sentidos imediatamente conduz meus pen samentos à pessoa juntamente com os objetos circundantes Repre sentoos para mim mesmo como existentes no presente com as mes mas qualidades e relações que sabia que eles possuíam antes Essas idéias se apoderam de minha mente com mais firmeza que a idéia de um castelo encantado Eu as sinto de maneira diferente mas não há nenhuma impressão distinta ou separada acompanhandoas O mesmo se passa quando me recordo dos vários incidentes de uma viagem ou dos acontecimentos de uma história Cada fato particular é então objeto de crença Sua idéia se diferencia dos vagos devaneios de um 663 Tratado da natureza humana sonhador mas não há uma impressão distinta acompanhando cada idéia ou cada concepção distinta de um fato Isso é objeto de uma clara experiência Se há alguma ocasião em que essa experiência pode ser questionada é quando a mente está inquieta em virtude de dúvidas ou dificuldades mas depois considerando o objeto de um novo ponto de vista ou estando de posse de um novo argumento ela repousa e se fixa em uma única conclusão com uma crença estável Nesse caso existe uma sensação feeling distinta e separada da concepção A pas sagem da dúvida e da inquietação à tranqüilidade e ao repouso trans mite satisfação e prazer à mente Mas tomemos um outro caso Su ponhamos que eu veja as pernas de uma pessoa em movimento enquanto algum objeto entre nós esconde o resto de seu corpo Aqui é certo que a imaginação irá completar toda a figura Doulhe uma cabeça ombros peito e pescoço Concebo essas partes do corpo e acredito que a pessoa as possui Nada poderia ser mais evidente que o fato de que toda essa operação é realizada apenas pelo pensamento ou imaginação A transição é imediata As idéias atingemnos de pron to Sua conexão habitual com a impressão presente as altera e modi fica de uma certa maneira mas não produz nenhum ato mental dis tinto dessa peculiaridade de concepção Quem quiser examinar sua própria mente verá que isso é evidentemente verdadeiro 5 Em segundo lugar seja qual for o caso dessa impressão distinta devese admitir que a mente tem um maior domínio ou concebe mais firmemente aquilo que considera um fato que aquilo que vê como fic ção Então por que procurar mais por que multiplicar suposições sem necessidade 6 Em terceiro lugar podemos explicar as causas de uma concepção firme mas não as de uma impressão separada E não só isso as cau sas da concepção firme esgotam todo o assunto e não resta nada que possa produzir qualquer outro efeito Uma inferência a respeito de uma questão de fato não é senão a idéia de um objeto freqüentemen te conjugado ou associado com uma impressão presente Isso é tudo 664 Apêndice Cada um desses elementos é necessário para explicar por analogia a concepção mais estável e não resta nada que seja capaz de produ zir uma impressão distinta 7 Em quarto lugar os efeitos da crença sua influência sobre as pai xões e a imaginação podem ser todos explicados pela concepção fir me não temos nenhuma necessidade de recorrer a outro princípio Esses argumentos juntamente com muitos outros expostos nos vo lumes precedentes provam suficientemente que a crença apenas mo difica a idéia ou concepção e nos faz sentir essa idéia de maneira di ferente sem produzir uma impressão distinta 8 Assim uma visão geral do problema nos permite encontrar duas questões importantes que ousamos recomendar à consideração dos filósofos além da sensação ou sentimento há alguma coisa que distinga a crença da simples concepção E essa sensação feeling é alguma coisa diferente de uma concepção mais firme ou um maior domínio nosso sobre o objeto 9 Se após uma investigação imparcial os filósofos concordarem com minha conclusão a próxima tarefa será examinar a analogia exis tente entre a crença e outros atos da mente bem como descobrir a causa da firmeza e força da concepção Aliás não considero essa uma tarefa difícil A transição que parte de uma impressão presente sem pre aviva e reforça uma idéia Quando um objeto se apresenta a idéia daquele que comumente o acompanha imediatamente nos toca como algo real e sólido Essa idéia é sentida mais que concebida e se apro xima em força e influência da impressão de que é derivada Isso já provei abundantemente Não sou capaz de acrescentar novos argu mentos embora meu raciocínio a respeito de toda essa questão so bre a causa e efeito talvez tivesse sido mais convincente se as passa gens a seguir houvessem sido inseridas nos lugares que ora indico Acrescentei algumas ilustrações sobre outros pontos onde achei que eram necessárias A inserir no Livro 1 página 1 1 3 linha 3 1 após as palavras mais fracas e obscuras iniciando um novo parágrafo 665 Tratado da natureza humana 10 É freqüente acontecer que quando dois homens estiveram en volvidos em um episódio um deles se lembre dele muito melhor do que o outro e tenha a maior dificuldade do mundo para fazer que seu companheiro se lembre também Enumera em vão diversas circuns tâncias menciona o momento o lugar as pessoas que estavam pre sentes o que foi dito o que cada um fez até que finalmente toca em uma circunstância feliz que faz reviver o conjunto todo dando a seu amigo uma memória perfeita de cada detalhe Aqui a pessoa que esqueceu recebe inicialmente do discurso da outra todas as idéias com as mesmas circunstâncias de tempo e lugar mas as considera meras ficções da imaginação Entretanto assim que é mencionada a circuns tância que toca sua memória exatamente as mesmas idéias aparecem sob nova luz produzindo como que uma sensação feeling diferente daquela que antes produziam Sem qualquer outra alteração além dessa na sensação feeling elas se tornam imediatamente idéias da memória e recebem nosso assentimento 1 1 Portanto como a imaginação é capaz de representar todos os mesmos objetos que a memória pode nos oferecer e já que essas fa culdades só se distinguem pela maneira diferente como sentimos as idéias que nos apresentam talvez seja apropriado considerar qual a natureza dessa sensação feeling E aqui acredito que todos concor darão imediatamente comigo que as idéias da memória são mais for tes e mais vívidas que as da fantasia Um pintor que quisesse etc A inserir no Livro 1 página 126 linha 1 5 após as palavras con forme à definição precedente iniciando um novo parágrafo 12 Essa operação da mente que gera a crença em um fato parece ter sido até hoje um dos maiores mistérios da filosofia embora ninguém tenha sequer suspeitado de que havia alguma dificuldade em sua ex plicação De minha parte devo confessar que vejo aqui uma dificul dade considerável e mesmo quando penso compreender perfeitamente 666 Apêndice o assunto não encontro as palavras adequadas para expressar o que quero dizer Por uma indução que me parece bastante evidente con cluo que uma opinião ou crença não é senão uma idéia que difere de uma ficção não na natureza ou na ordem de suas partes mas sim na maneira como é concebida Mas quando pretendo explicar o que é essa maneira não consigo encontrar nenhuma palavra plenamente satisfatória sendo por isso obrigado a apelar para aquilo que cada um sente a fim de lhe dar uma noção perfeita dessa operação da mente Uma idéia que recebe o assentimento é sentida de maneira diferente feels different de uma idéia fictícia apresentada apenas pela fanta sia É essa maneira diferente de sentir this different feeling que tento explicar denominandoa uma força vividez solidez firmeza ou estabi lidade superior Essa variedade de termos que pode parecer tão pou co filosófica busca apenas exprimir aquele ato mental que torna as realidades mais presentes a nós que as ficções e faz com que tenham um peso maior no pensamento bem como uma influência superior sobre as paixões e a imaginação Contanto que concordemos acerca dos fatos é desnecessário discutir sobre os termos A imaginação tem o controle de todas as suas idéias podendo juntálas misturálas e alterálas de todos os modos possíveis Ela pode conceber os objetos com todas as circunstâncias de tempo e espaço Pode por assim di zer apresentálos a nossos olhos em suas cores verdadeiras exata mente como devem ter existido Mas como é impossível que essa faculdade possa jamais por si só alcançar a crença é evidente que esta não consiste na natureza ou na ordem de nossas idéias mas na maneira como as concebemos e como são sentidas pela mente Con fesso que é impossível explicar perfeitamente essa sensação feeling ou maneira de se conceber Podemos empregar palavras que expres sem algo próximo a isso Mas seu nome verdadeiro e apropriado é crença termo que todos compreendem suficientemente na vida co mum E na filosofia não podemos ir além da afirmação de que a crença é algo sentido pela mente que permite distinguir as idéias do juízo das ficções da imaginação A crença dá a essas idéias mais força 667 Tratado da natureza humana e influência faz com que pareçam mais importantes fixaas na mente e as torna os princípios reguladores de todas as nossas ações Nota ao Livro 1 página 1 3 1 linha 2 após as palavras impressão imediata 13 Naturane nobis inquit datum dicam an errore quodam ut cum ea loca videamus in quibus memoria dignos viras acceperimus multum esse versatos magis moveamur quam siquando eorum ipsorum aut f acta audiamus aut scriptum aliquod legamus velut ego nunc moveor Venit enim mihi Platonis in mentem quem accipimus primum hic disputare solitum Cujus etiam illi hortuli propinqui non memoriam solum mihi afferunt sed ipsum videntur in conspectu meo hic ponere Hic Speusippus hic Xenocrates hic ejus auditor Polemo cujus ipsa ilia sessio fuit quam videamus Equidem etiam curiam nostram hostiliam dica non hanc novam quce mihi minar esse videtur postquam est major solebam intuens Scipionem Catonem Lcelium nostrum vera in primis avum cogitare Tanta vis admonitionis inest in locis ut non sine causa ex his memorice ducta sit disciplina Cicero de Finibus livro 5 A inserir no Livro 1 página 1 54 linha 8 após as palavras impres sões dos sentidos iniciando um novo parágrafo Cícero De finibus Livro 5 1 fr 2 Será uma inclinação natural ou bem não sei que ilusão Mas quando vemos os próprios lugares em que sabemos que viveram e tanto se destacaram aqueles homens memoráveis sentimonos muito mais comovidos do que quando apenas ouvimos falar de seus feitos ou lemos algum de seus escritos Por exem plo eu neste momento estou comovido Recordome de Platão dizem que foi o primei ro a utilizar este lugar para suas conversas e esses jardinetes à minha frente não só me tornam presente sua memória mas por assim dizer põem sua imagem diante de meus olhos Aqui ficava Espeusipo aqui Xenócrates aqui o discípulo de Xenócrates Polemon sentavamse bem aqui neste lugar que estamos vendo E também em Roma quando em nossa cúria refirome à cúria Hostília e não à nova que me parece menor desde que a ampliaram sempre me punha a pensar em Cipião em Catão em Lélio e sobretudo em meu avô Tal poder de recordação têm os lugares não é sem razão que foram usados para se criar uma arte da memória NT 668 Apêndice 14 Observemos que a poesia possui esse mesmo efeito em um grau menor A poesia e a loucura têm em comum o fato de que a vividez que conferem às idéias não é derivada das situações ou conexões par ticulares dos objetos dessas idéias mas do humor e disposição da pessoa naquele momento Porém por maior que seja a intensidade atingida pela vividez é evidente que na poesia ela nunca tem a mes ma sensação feeling que a vividez que surge na mente ao raciocinar mos mesmo quando esse raciocínio se faz com base no grau mais baixo de probabilidade A mente distingue facilmente entre os dois tipos de vividez e qualquer que seja a emoção conferida aos espíritos animais pelo entusiasmo poético tratase sempre de um mero simu lacro de crença ou persuasão O que ocorre com a idéia ocorre tam bém com as paixões por ela ocasionadas Não há paixão da mente humana que não possa surgir da poesia Mas ao mesmo tempo as sensações feelings das paixões são muito diferentes quando desperta das por ficções poéticas e quando nascem da crença e da realidade Uma paixão que na vida real é desagradável pode proporcionar um grande deleite em uma tragédia ou um poema épico Neste último caso ela não pesa tanto sobre nós é sentida como algo menos firme e sólido e seu único efeito é estimular agradavelmente os espíritos animais e despertar a atenção A diferença nas paixões é uma clara prova da existência de uma diferença semelhante nas idéias que ori ginam as paixões Quando a vividez surge de uma conjunção habitual com uma impressão presente mesmo que aparentemente a imagina ção possa não ser tão afetada há sempre algo mais imperativo e real em suas ações que no calor da poesia e da eloqüência A força de nos sas ações mentais não deve neste caso como em nenhum outro ser medida pela agitação aparente da mente Uma descrição poética pode ter um efeito mais sensível sobre a fantasia que uma narrativa histó rica Pode reunir um maior número daquelas circunstâncias que for mam uma imagem ou quadro completo Pode parecer dispor diante de nós o objeto em cores mais vivas Mas ainda assim as idéias que apresenta são sentidas de maneira diferente que aquelas que surgem 669 Tratado da natureza humana da memória e do juízo Há algo fraco e imperfeito em meio a toda a aparente veemência de pensamento e sentimento que acompanha as ficções da poesia 15 Mais tarde teremos ocasião de observar tanto as semelhanças como as diferenças entre um entusiasmo poético e uma convicção séria Enquanto isso não posso deixar de notar que a grande diferen ça em sua sensação feeling procede em certa medida da reflexão e das regras gerais Observamos que o vigor na concepção que as fic ções recebem da poesia e da eloqüência é uma circunstância mera mente acidental de que toda idéia é suscetível e que tais ficções não se conectam com nada real Essa observação faz que apenas nos en treguemos temporariamente por assim dizer à ficção Mas a idéia é sentida de modo muito diferente das convicções permanentemente estabelecidas que se fundam na memória e no costume Ficções e con vicções são um pouco do mesmo gênero mas aquelas são muito in feriores a estas em suas causas como em seus efeitos 1 6 Uma reflexão semelhante sobre as regras gerais impede que au mentemos nossa crença a cada vez que cresce a força e a vividez de nos sas idéias Quando uma opinião não comporta dúvida ou qualquer probabilidade oposta atribuímos a ela uma total convicção embora a falta de semelhança ou contigüidade possa tornar sua força inferior à de outras opiniões É assim que o entendimento corrige as aparên cias sensíveis fazendonos imaginar que um objeto a uma distância de vinte pés pareça aos olhos tão grande quanto um outro objeto do mesmo tamanho a uma distância de dez pés A inserir no Livro 1 página 194 linha 8 após as palavras nenhu ma idéia de poder iniciando um novo parágrafo 17 Alguns afirmaram que sentimos uma energia ou poder em nossa própria mente e tendo assim adquirido a idéia de poder transferi mos essa qualidade à matéria na qual não somos capazes de desco brila imediatamente Os movimentos de nosso corpo assim como 670 Apêndice os pensamentos e sentimentos de nossa mente dizem obedecem à vontade não precisamos ir além disso para obter uma noção corre ta de força ou poder Mas para nos convencermos de quão falacioso é esse raciocínio basta considerarmos que como a vontade é aqui tida como uma causa ela não tem com seu efeito uma conexão mais manifesta que aquela que qualquer causa material tem com seu pró prio efeito Longe de se perceber a conexão entre um ato de volição e um movimento do corpo o que se vê é que nenhum efeito é mais inexplicável dados os poderes e a essência do pensamento e da ma téria Tampouco o domínio da vontade sobre nossa mente é mais in teligível Aqui o efeito é distinguível e separável da causa e não pode ria ser previsto sem a experiência de sua conjunção constante Temos o comando de nossa mente até um certo grau mas além deste perde mos todo domínio sobre ela E sem consultarmos a experiência é evi dentemente impossível fixar qualquer limite preciso para nossa auto ridade Em suma as ações da mente são sob esse aspecto iguais às da matéria Tudo que percebemos é sua conjunção constante e nosso raciocínio jamais pode ir além disso Nenhuma impressão interna pos sui uma energia evidente não mais que os objetos externos Portanto já que os filósofos admitem que a matéria age por meio de uma força desconhecida em vão esperaríamos chegar a uma idéia de força con sultando nossa própria mente 1 18 Eu acalentava alguma esperança de que por mais deficiente que pudesse ser nossa teoria do mundo intelectual ela estaria livre da quelas contradições e absurdos que parecem acompanhar qualquer explicação que a razão humana possa dar acerca do mundo material Mas ao fazer uma revisão mais cuidadosa da seção concernente à iden A mesma imperfeição acompanha nossas idéias de Deus mas isso não pode ter nenhuma conseqüência para a religião ou para a moral A ordem do universo prova a existência de uma mente onipotente isto é uma mente cuja vontade se faz constantemente acompanhar pela obediência de todas as criaturas e seres Nada mais é preciso para fundamentar todos os artigos religiosos e tampouco é necessário formarmos uma idéia distinta da força e energia do ser supremo 671 Tratado da natureza humana tidade pessoal vejome perdido em um tal labirinto que devo confes sar não sei nem como corrigir minhas opiniões anteriores nem como tornálas coerentes Se essa não for uma boa razão geral para o ceti cismo ao menos é uma razão suficiente como se eu já não tivesse bastantes razões para guardar uma desconfiança e modéstia em to das as minhas decisões Apresentarei os argumentos de um lado e de outro começando com os que me levaram a negar a identidade e sim plicidade em sentido estrito e próprio de um eu ou ser pensante 19 Quando falamos de eu ou substância devemos ter uma idéia vin culada a esses termos pois de outro modo eles seriam inteiramente ininteligíveis Toda idéia deriva de impressões anteriores e não te mos nenhuma impressão de eu ou substância enquanto algo simples e individual Portanto não temos nenhuma idéia de eu ou substância nesse sentido 20 Tudo que é distinto é distinguível e tudo que é distinguível é se parável pelo pensamento ou imaginação Todas as percepções são dis tintas São portanto distinguíveis e separáveis podem ser concebi das como separadamente existentes e podem existir separadamente sem que haja nisso contradição ou absurdo 21 Quando vejo esta mesa e aquela lareira nada está presente a mim senão percepções particulares que têm uma natureza semelhante à de todas as outras percepções Essa é a doutrina dos filósofos Mas esta mesa que está presente a mim e aquela lareira podem existir e de fato existem separadamente Essa é a doutrina do vulgo e não implica qualquer contradição Não há contradição portanto em se estender a mesma doutrina a todas as percepções 22 Em geral o seguinte raciocínio parece satisfatório Todas as idéias são tiradas de percepções anteriores Nossas idéias dos objetos por tanto derivam dessa fonte Conseqüentemente nenhuma proposi ção pode ser inteligível ou coerente no que diz respeito aos objetos se não o for no que diz respeito às percepções Mas é inteligível e coe rente dizer que os objetos existem de maneira distinta e independen te sem ter em comum nenhuma substância simples ou sujeito de 672 Apêndice inerência Essa proposição portanto nunca poderia ser absurda no que diz respeito às percepções 23 Quando volto minha reflexão para mim mesmo nunca consigo per ceber esse eu sem uma ou mais percepções e não percebo nada além de percepções É a combinação destas portanto que forma o eu 24 Podemos conceber que um ser pensante tenha muitas ou poucas percepções Suponhamos que a mente seja reduzida a um estado in ferior ao de uma ostra Suponhamos que tenha apenas uma percep ção como a de sede ou fome Consideremola nessa situação Sois capazes de perceber alguma coisa além dessa mera percepção Possuís alguma noção de eu ou substância Se não a possuís a adição de ou tras percepções nunca poderá vos dar essa noção 25 A aniquilação que algumas pessoas supõem seguirse à morte e destruir inteiramente esse eu não é mais que a extinção de todas as percepções particulares amor e ódio dor e prazer pensamento e sen sação sensation Essas percepções portanto têm de ser o mesmo que o eu já que uma coisa não pode subsistir sem a outra 26 Será o eu o mesmo que a substância Se o for como é possível a questão da permanência do eu diante de uma mudança de substân cia Se forem distintos qual a diferença entre eles De minha parte não tenho qualquer noção de nenhum dos dois se concebidos como distintos das percepções particulares 27 Os filósofos começam a aceitar o princípio de que não temos ne nhuma idéia de uma substância externa que seja distinta das idéias das quali dades particulares Esse princípio deve abrir caminho para a aceitação de um princípio semelhante a respeito da mente não temos uma noção da mente que seja distinta das percepções particulares 28 Até aqui meu argumento parece ter uma evidência suficiente Mas tendo assim desfeito o laço que prendia todas as nossas percepções par ticulares quando2 passo a explicar o princípio de conexão que as liga e que nos faz atribuir a elas uma real simplicidade e identidade percebo que minha explicação é muito deficiente e só a aparente evidência 2 Livro 1 p292 673 Tratado da natureza humana dos raciocínios anteriores pode terme levado a aceitála Se as per cepções são existências distintas elas só formam um todo por esta rem conectadas Mas o entendimento humano não é capaz de desco brir nenhuma conexão entre existências distintas Apenas sentimos uma conexão ou determinação do pensamento a passar de um ob jeto a outro Seguese portanto que apenas o pensamento encontra a identidade pessoal quando ao refletir sobre a cadeia de percepções passadas que compõem uma mente sente que as idéias dessas per cepções estão conectadas entre si e introduzem naturalmente umas às outras Por mais extraordinária que possa parecer essa conclusão ela não deve nos surpreender A maioria dos filósofos parece inclinada a pensar que a identidade pessoal surge da consciência e que a cons ciência é apenas um pensamento ou percepção refletida A presente filosofia portanto tem até aqui um aspecto promissor Mas todas as minhas esperanças se desvanecem quando passo a explicar os prin cípios que unem nossas percepções sucessivas em nosso pensamento ou consciência Não consigo descobrir nenhuma teoria que me sa tisfaça quanto a esse ponto 29 Em suma há dois princípios a que não posso renunciar mas que não consigo tornar compatíveis que todas as nossas percepções distintas são existências distintas e que a mente nunca percebe nenhuma conexão real entre existências distintas Se nossas percepções fossem inerentes a al guma coisa simples e individual ou então se a mente percebesse algu ma conexão real entre elas não haveria dificuldade alguma De mi nha parte devo apelar para o privilégio do cético e confessar que essa dificuldade é demasiado árdua para meu entendimento Entretanto não pretendo afirmar que seja absolutamente insuperável Outros talvez ou eu mesmo após uma reflexão mais madura poderemos vir a descobrir alguma hipótese que resolva essas contradições 30 Aproveitarei também esta oportunidade para confessar outros dois erros menos importantes que uma reflexão mais madura me levou a descobrir em meu raciocínio O primeiro podese encontrar no Livro 1 página 85 onde digo que a distância entre dois corpos é 674 Apêndice conhecida entre outras coisas pelos ângulos que os raios de luz emanados desses corpos formam entre si O certo é que esses ângu los não são conhecidos pela mente e como conseqüência jamais po dem revelar a distância O segundo erro podese encontrar no Livro 1 página 1 25 onde digo que duas idéias do mesmo objeto só podem se diferenciar por seus graus de força e vividez Acredito haver outras diferenças entre as idéias que não podem ser compreendidas de ma neira apropriada nesses termos Se houvesse dito que duas idéias do mesmo objeto só podem se diferenciar por suas diferentes sensações feeling eu teria estado mais perto da verdade 3 1 Há dois erros de impressão que afetam o sentido do texto e por isso peço que sejam corrigidos pelo leitor No Livro 1 página 223 linha 12 onde está como a percepção leiase uma percepção Também no Livro 1 p295 linha 24 onde está moral leiase da natureza Nota ao Livro 1 página 44 linha 21 à palavra semelhança 32 É evidente que mesmo idéias simples diferentes podem apresen tar uma semelhança ou similaridade entre si não sendo necessário que o ponto ou a circunstância de semelhança seja distinto ou sepa rável daquela em que elas diferem Azul e verde são idéias simples di ferentes mas se assemelham mais que azul e escarlate embora sua simplicidade perfeita exclua toda possibilidade de separação ou dis tinção O mesmo ocorre com sons sabores e aromas particulares A comparação de seu aspecto geral revela que eles admitem infinitas semelhanças mesmo sem possuir nenhuma circunstância em co mum A própria expressão abstrata idéias simples pode nos dar certe za disso Ela compreende todas as idéias simples que se assemelham uma às outras em sua simplicidade E entretanto por sua própria na tureza que exclui qualquer composição essa circunstância que as torna semelhantes não é distinguível nem separável do resto O mes mo se passa com todos os graus de uma qualidade qualquer Todos eles são semelhantes embora a qualidade presente em um indivíduo não seja distinta de seu grau 675 Tratado da natureza humana A inserir no Livro 1 página 73 linha 28 após as palavras em ou tro canto iniciando um novo parágrafo 33 Há muitos filósofos que se recusam a apontar um critério de igual dade afirmando em vez disso que basta apresentar dois objetos iguais para que tenhamos uma noção correta dessa proporção Sem a per cepção dos objetos dizem eles qualquer definição é infrutífera e quando percebemos os objetos não temos mais necessidade de defi nições Concordo inteiramente com esse raciocínio e afirmo que a única noção útil de igualdade ou desigualdade deriva da aparência una e global bem como da comparação entre objetos particulares A inserir no Livro 1 página 79 linha 25 após as palavras praticá veis ou imagináveis iniciando um novo parágrafo 34 Para onde quer que se voltem os matemáticos encontram sem pre esse dilema Se julgam a igualdade ou qualquer outra proporção pelo critério preciso e exato a saber pela enumeração das diminutas partes indivisíveis eles estão ao mesmo tempo empregando um cri tério que na prática é inútil e provando de fato a indivisibilidade da extensão que tentavam demolir Ou então se empregam como é usual o critério aproximado derivado de uma comparação entre os objetos com base em sua aparência geral corrigida pela medição e justaposição seus primeiros princípios embora certos e infalíveis são demasiadamente grosseiros para permitir inferências tão sutis como as que comumente deles se extraem Os primeiros princípios funda mentamse na imaginação e nos sentidos a conclusão portanto ja mais pode ultrapassar e menos ainda contradizer essas faculdades Nota ao Livro 1 página 92 linha 9 às palavras impressões e idéias 35 Enquanto limitarmos nossas especulações às aparências sensíveis dos objetos sem entrarmos em investigações acerca de sua natureza e operações reais estaremos a salvo de todas as dificuldades e ne 676 Apêndice nhuma questão nos embaraçará Assim quando nos perguntarem se a distância invisível e intangível interposta entre dois objetos é al guma coisa ou nada será fácil responder que é alguma coisa a saber uma propriedade dos objetos que afeta os sentidos de tal maneira parti cular Quando nos perguntarem se dois objetos que guardam entre si tal distância se tocam ou não podemos responder que isso depen de da definição da palavra tocar Se dizemos que dois objetos se to cam quando nenhuma coisa sensível se interpõe entre eles então es ses objetos se tocam Se dizemos que dois objetos se tocam quando suas imagens atingem partes contíguas do olho e quando a mão sente ambos sucessivamente sem a interposição de nenhum movimento então esses objetos não se tocam Todas as aparências sensíveis dos objetos são coerentes e nenhuma dificuldade pode surgir senão da obscuridade dos termos utilizados 36 Se estendermos nossa investigação para além das aparências sen síveis dos objetos receio que a maior parte de nossas conclusões será dominada pelo ceticismo e pela incerteza Assim se nos pergunta rem se a distância invisível e intangível está ou não sempre cheia de algum corpo ou de alguma coisa que o aperfeiçoamento de nossos ór gãos poderia tornar visível ou tangível devo reconhecer que não en contro argumento bastante decisivo a favor de nenhuma das duas res postas embora esteja mais inclinado a dizer que não por ser esta a opinião mais adequada às noções vulgares e populares Quando com preendemos corretamente a filosofia newtoniana vemos que ela não significa mais que isso Afirmase a existência de um vácuo isto é dizse que há corpos dispostos de tal maneira a acolher outros cor pos entre eles sem sofrer impulso ou penetração A natureza real dessa posição dos corpos é desconhecida Conhecemos apenas seus efeitos sobre os sentidos e seu poder de receber algum corpo Nada é mais adequado a essa filosofia que uma modesta dose de ceticismo e uma franca confissão de ignorância a respeito de assuntos que ultra passam toda capacidade humana FINIS 677 Sinopse de um livro recentemente publicado intitulado Tratado da natureza humana e Em que o principal argumento daquele livro recebe ilustrações e explicações adicionais Prefácio 1 Minhas expectativas quanto a este pequeno trabalho parecerão talvez um tanto extraordinárias quando eu declarar que minha intenção é resumir uma obra mais extensa e assim tomála mais inteligível para o leitor comum En tretanto é certo que aqueles que não estão acostumados ao raciocínio abstra to tendem a perder o fio da argumentação quando ela é muito extensa e quando cada parte é reforçada por todos os argumentos disponíveis defen dida contra todas as objeções e ilustrada por meio de todas as considerações que podem ocorrer a um autor quando do exame cuidadoso de seu tema Tais leitores terão mais facilidade em compreender uma seqüência de raciocí nios que seja mais simples e concisa em que apenas as proposições mais impor tantes estão encadeadas umas às outras sendo ilustradas por alguns exemplos simples e confirmadas por uns poucos argumentos mais convincentes Como as partes estão mais próximas umas das outras elas podem ser melhor com paradas e a conexão entre os primeiros princípios e a conclusão final pode ser mais facilmente compreendida 2 A obra cujo resumo apresento aqui ao leitor foi considerada obscura e de difícil compreensão e sou levado a pensar que isso se deve tanto a sua exten são quanto ao caráter abstrato da argumentação Se conseguir remediar em algum grau esse inconveniente então terei atingido meu objetivo O livro pa receume ter uma singularidade e uma novidade suficientes para reclamar a 681 Tratado da natureza humana atenção do público sobretudo se como o autor parece insinuar constatarmos que caso sua filosofia seja aceita teremos de alterar desde seus fundamentos a maior parte das ciências Empreendimentos ousados como este são sempre salutares na república das letras porque sacodem o jugo da autoridade acos tumam os homens a pensar por si próprios dão novas sugestões que homens de gênio podem levar adiante e por sua própria oposição a eles ilustram pontos que antes ninguém jamais suspeitara que continham dificuldades 3 O autor deve ter a paciência de aguardar algum tempo até que o mundo erudito possa formar uma opinião sobre sua obra Infelizmente ele não pode apelar para o povo que conforme podemos constatar constitui um tribunal tão infalível em todas as questões que envolvem a razão comum e a eloqüência Terá de ser julgado por aqueles poucos cujo veredicto é mais facilmente corruptível pela parcialidade e pelo preconceito sobretudo porque ninguém será um bom juiz desses assuntos se não tiver pensado freqüentemente so bre eles mas aqueles que o fizeram tendem a formar seus próprios sistemas aos quais não pretendem renunciar Espero que o autor perdoe minha in tromissão nessa questão meu propósito é tãosomente ampliar sua audiên cia eliminando algumas dificuldades que têm impedido muitas pessoas de compreender o que quer dizer 4 Escolhi um único e simples argumento que cuidadosamente acompanhei do início ao fim Esse é o único ponto que fiz questão de terminar O resto são apenas indicações de passagens particulares que me pareceram curiosas e dignas de nota 682 Sinopse de um livro recentemente publicado intitulado Tratado da natureza humana 1 Este livro parece ter sido escrito na mesma linha que várias ou tras obras recentemente em voga na Inglaterra O espírito filosófico que tanto temse aprimorado por toda a Europa nos últimos oitenta ou cem anos tem progredido tanto neste reino quanto em qualquer outro Nossos autores parecem mesmo ter dado início a um novo tipo de filosofia mais promissora no que diz respeito ao entretenimento e à edificação dos homens do que qualquer outra que o mundo já tenha conhecido A maioria dos filósofos da Antiguidade que abordaram o tema da natureza humana mostraram antes um sentimento refina do um justo sentido moral ou uma grandeza de espírito que um racio cínio e reflexão muito profundos Contentaramse em representar o senso comum dos homens nas cores mais fortes e no melhor estilo de pensamento e expressão sem seguir firmemente uma cadeia de proposições ou organizar as diversas verdades em uma ciência regu lar Mas ao menos vale a pena tentar descobrir se a ciência do homem não admite a mesma precisão que vemos ser possível em várias partes da filosofia da natureza Parece que temos todas as razões do mundo para imaginar que ela pode atingir o grau máximo de exatidão Se ao 683 Tratado da natureza humana examinar diversos fenômenos descobrirmos que eles se reduzem a um princípio comum e formos capazes de remeter este princípio a outro chegaremos finalmente àqueles poucos princípios simples de que todo o resto depende E mesmo que jamais possamos chegar aos princípios últimos já é uma satisfação ir até onde nossas facul dades nos permitem ir 2 Esse parece ter sido o objetivo de nossos filósofos mais recentes e entre eles nosso autor Ele se propõe a fazer uma anatomia da natu reza humana de uma maneira sistemática e promete não tirar nenhuma conclusão sem a autorização da experiência Fala das hipóteses com desprezo e sugere que aqueles nossos conterrâneos que as baniram da filosofia moral prestaram ao mundo um serviço mais notável que Lord Bacon a quem considera o pai da física experimental Mencio na nessa oportunidade o Sr Locke Lord Shaftesbury o Dr Mandeville o Sr Hutcheson o Dr Butler que embora difiram entre si em muitos pontos parecem concordar em fundamentar suas rigorosas investi gações acerca da natureza humana exclusivamente na experiência 3 Além da satisfação de conhecer aquilo que nos concerne mais de perto podese afirmar com segurança que quase todas as ciências estão incluídas na ciência da natureza humana e dela dependem A única finalidade da lógica é explicar os princípios e as operações de nossa faculdade de raciocínio e a natureza de nossas idéias a moral e a crítica dizem respeito a nossos gostos e sentimentos e a política considera os homens enquanto unidos em sociedade e dependentes uns dos outros Por tanto esse tratado da natureza humana parece ter sido projetado como um sistema das ciências O autor completou a parte concer nente à lógica e estabeleceu o fundamento das outras partes em sua explicação sobre as paixões 4 O célebre Monsieur Leibniz observou que os sistemas comuns de lógica têm o defeito de ser muito prolixos quando explicam as ope Essais de Theodicée Discours de la conformité de la foi avec la raison 3 1 NT 684 Sinopse rações do entendimento na formação das demonstrações mas demasiadamente concisos quando tratam das probabilidades e daque les outros critérios da evidência de que a vida e a ação dependem com pletamente e que nos guiam mesmo em nossas especulações mais filosóficas Nessa censura ele inclui o Essay on human understanding La recherche de la verité e IArt de penser O autor do Tratado da nature za humana parece terse dado conta dessa deficiência por parte desses filósofos e esforçouse ao máximo para superála Como seu livro contém um grande número de especulações muito novas e notáveis será impossível dar ao leitor uma noção correta de sua totalidade Por isso iremos nos limitar sobretudo a sua explicação de nossos racio cínios por causa e efeito Se conseguirmos tornar essa explicação in teligível ao leitor ela servirá de amostra do conjunto da obra 5 Nosso autor começa com algumas definições Denomina percep ção tudo que pode estar presente à mente seja quando utilizamos nossos sentidos seja quando somos movidos pelas paixões ou quan do exercitamos nosso pensamento e reflexão Divide nossas percep ções em duas espécies impressões e idéias Quando sentimos qualquer tipo de paixão ou emoção ou quando os sentidos nos transmitem imagens dos objetos externos a percepção da mente é o que ele cha ma de impressão palavra que emprega em um novo sentido Quando refletimos sobre uma paixão ou um objeto que não está presente essa percepção é uma idéia Impressões portanto são nossas percepções fortes e vívidas idéias são as mais fracas e pálidas Essa distinção é evidente tão evidente quanto a distinção entre sentir e pensar 6 A primeira proposição que ele apresenta é a afirmação de que todas as nossas idéias ou seja nossas percepções fracas são deriva das de nossas impressões ou percepções fortes e nunca podemos pensar em nada que não tenhamos visto fora de nós ou que não tenhamos sentido em nossa própria mente Essa proposição parece ser equivalente àquela que o Sr Locke esforçouse tanto para estabe lecer a saber que nenhuma idéia é inata Apenas devese observar que aquele famoso filósofo comete a imprecisão de incluir todas as nossas 685 Tratado da natureza humana percepções sob o termo idéia mas nesse sentido é falso dizer que não temos idéias inatas Pois é evidente que nossas percepções mais fortes ou impressões são inatas e que a afeição natural o amor à virtude o ressentimento e todas as outras paixões surgem imediata mente da natureza Estou convencido de que quem quiser abordar a questão por essa perspectiva poderá facilmente reconciliar todas as partes O padre Malebranche ficaria sem saber como apontar um pen samento da mente que não representasse alguma coisa que ela tives se sentido antes seja internamente seja por meio dos sentidos ex ternos e teria de admitir que por mais que possamos combinar misturar aumentar e diminuir nossas idéias todas elas derivam des sas fontes O Sr Locke por sua vez prontamente reconheceria que todas as nossas paixões são espécies de instintos naturais derivados unicamente da constituição original da mente humana 7 Nosso autor pensa que não poderia haver descoberta mais feliz para a solução de todas as controvérsias em torno das idéias que esta todas as impressões sempre precedem as idéias e toda idéia contida na imaginação apareceu primeiro em uma impressão correspondente As percepções deste último tipo são todas tão claras e evidentes que não admitem qualquer discussão ao passo que muitas de nossas idéias são tão obscuras que é quase impossível mesmo para a men te que as forma dizer qual é exatamente sua natureza e composi ção Assim sempre que uma idéia é ambígua ele recorre à impres são que deve tornála clara e precisa E quando suspeita que um determinado termo filosófico não possui nenhuma idéia vinculada a ele o que é muito comum sempre pergunta de que impressão essa pretensa idéia é derivada E caso não se possa apresentar nenhuma idéia ele conclui que o termo é completamente sem sentido É desse modo que examina nossa idéia de substância e de essência e seria de sejável que esse método rigoroso fosse mais praticado em todos os debates filosóficos 8 É evidente que todos os raciocínios sobre questões de fato se fun dam na relação de causa e efeito e nunca poderemos inferir a exis 686 Sinopse tência de um objeto da existência de outro a menos que eles estejam conectados direta ou indiretamente Portanto para entender esses raciocínios temos de estar perfeitamente familiarizados com a idéia de causa e para isso temos de olhar ao redor e tentar encontrar al guma coisa que seja causa de outra 9 Suponhamos uma bola de bilhar sobre uma mesa e outra bola movendose rapidamente em sua direção Elas se chocam e a bola que antes estava em repouso agora ganha movimento Esse exemplo da relação de causa e efeito é tão perfeito quanto qualquer outro de que tomemos conhecimento pela sensação ou pela reflexão Vamos pois examinálo É evidente que as duas bolas se tocaram antes que o movimento fosse comunicado e não houve intervalo entre o choque shock e o movimento A contigüidade no tempo e no espaço é por tanto um requisito da operação de qualquer causa É também evi dente que o movimento que constituiu a causa é anterior ao movi mento que resultou como efeito A prioridade temporal é portanto outro requisito da causa Mas isso não é tudo Tomemos outras bo las do mesmo tipo em uma situação semelhante veremos que o im pacto impact de uma sempre produz movimento na outra Eis por tanto um terceiro requisito ou seja uma conjunção constante entre a causa e o efeito Todo objeto semelhante à causa produz sempre um objeto semelhante ao efeito Não consigo descobrir nada nessa cau sa além dessas três circunstâncias contigüidade anterioridade e conjunção constante A primeira bola está em movimento toca a se gunda imediatamente a segunda se movimenta e quando repito o experimento com a mesma bola ou com bolas semelhantes na mes ma situação ou em circunstâncias semelhantes constato que quan do uma bola se move e toca a outra seguese sempre um movimento na segunda bola Como quer que eu formule esse problema e como quer que o examine não encontro nada além disso 10 Isso é o que ocorre quando tanto a causa como o efeito estão pre sentes aos sentidos Vejamos agora qual o fundamento de nossa inferência quando concluímos partindo de um dos termos que o ou 687 Tratado da natureza humana tro existiu ou existirá Suponhase que eu veja uma bola se movendo em linha reta em direção a outra concluo imediatamente que as duas se chocarão e a segunda irá se movimentar Essa é a inferência da causa ao efeito e todos os raciocínios que empregamos em nossa vida são desse tipo é neles que se funda toda a nossa crença na história e é deles que deriva toda a filosofia excetuandose a geometria e a aritmética Se pudermos explicar a inferência que fazemos a partir do choque de duas bolas seremos capazes de dar conta dessa opera ção da mente em todos os casos 1 1 Se um homem como Adão fosse criado com todo o vigor de seu entendimento mas sem experiência nunca seria capaz de inferir um movimento na segunda bola do movimento e do impacto da primei ra O que nos faz inferir o efeito não é algo que a razão vê na causa Uma tal inferência se fosse possível constituiria uma demonstra ção por estar fundada exclusivamente na comparação de idéias Mas nenhuma inferência de causa a efeito constitui uma demonstração Existe uma prova evidente disso A mente sempre pode conceber que qualquer efeito se segue de uma causa e aliás que qualquer aconte cimento se segue de outro tudo que concebemos é possível ao menos em um sentido metafísico mas sempre que há uma demonstração o contrário é impossível e implica contradição Portanto não há de monstração que prove uma conjunção entre causa e efeito Esse prin cípio é geralmente aceito pelos filósofos 12 Teria sido necessário portanto que Adão se não fosse inspirado tivesse tido experiência do efeito que se seguiu ao choque dessas duas bolas Teria de ter visto em vários exemplos que sempre que uma bola batia na outra a segunda adquiria movimento Se tivesse observado um número suficiente de exemplos desse tipo sempre que visse uma bola se movendo em direção a outra concluiria sem hesitar que a se gunda iria adquirir movimento Seu entendimento anteciparia sua vi são e formaria uma conclusão adequada a sua experiência passada 13 Seguese então que todos os raciocínios concernentes a causas e efeitos estão fundados na experiência e todos os raciocínios 688 Sinopse baseados na experiência estão fundados na suposição de que o cur so da natureza continuará uniformemente o mesmo Concluímos que causas semelhantes em circunstâncias semelhantes sempre pro duzirão efeitos semelhantes Agora talvez valha a pena considerar o que nos determina a formar uma conclusão tão infinitamente im portante 14 É evidente que Adão com toda sua ciência nunca teria sido ca paz de demonstrar que o curso da natureza tem de continuar unifor memente o mesmo e que o futuro tem de ser conforme ao passado Nunca se poderia demonstrar que algo possível é falso e é possível que o curso da natureza mude uma vez que podemos conceber essa mudança Mais ainda Afirmo que Adão não poderia provar que o futu ro tem de ser conforme ao passado nem sequer por meio de argumen tos prováveis Todos os argumentos prováveis baseiamse na suposi ção de que existe essa conformidade entre o futuro e o passado e portanto nunca poderiam provar essa mesma suposição Essa con formidade é uma questão de fato e se tiver de ser provada só poderá sêlo pela experiência Mas nossa experiência do passado jamais pode provar nada quanto ao futuro a não ser com base na suposição de que existe uma semelhança entre os dois Este é um ponto portan to que não admite absolutamente nenhuma prova e que damos por suposto sem nenhuma prova 1 5 Apenas o COSTUME nos determina a supor que o futuro seja con forme ao passado Quando vejo uma bola de bilhar se mover em di reção a outra minha mente é imediatamente levada pelo hábito a seu efeito usual e antecipa minha visão concebendo a segunda bola em movimento Não há nada nesses objetos considerados de modo abs trato e independentemente da experiência que me leve a formar uma tal conclusão e mesmo após eu ter tido experiência repetida de vários efeitos dessa espécie não há nenhum argumento que me determine a supor que o efeito será conforme à experiência passada Os pode res pelos quais os corpos operam são inteiramente desconhecidos Só percebemos suas qualidades sensíveis e que razão temos para pen 689 Tratado da natureza humana sar que os mesmos poderes estarão sempre em conjunção com as mesmas qualidades sensíveis 16 O guia da vida portanto não é a razão mas o costume Apenas este determina a mente em todos os casos a supor que o futuro é conforme ao passado Por mais fácil que pareça esse passo a razão nunca seria capaz de dálo nem que levasse toda a eternidade 1 7 Essa é uma descoberta muito interessante mas que nos leva a outras ainda mais interessantes Quando vejo uma bola de bilhar moven dose em direção a outra minha mente é imediatamente levada pelo hábito a seu efeito usual e antecipa minha visão concebendo a segunda bola em movi mento Mas será só isso Será que não faço senão CONCEBER o movi mento da segunda bola Não certamente isso não é tudo Eu tam bém CREIO que a bola irá se mover O que é portanto essa crença E qual sua diferença em relação à simples concepção de algo Essa é uma questão nova nunca antes considerada pelos filósofos 18 Quando uma demonstração me convence de uma proposição ela não apenas me faz conceber a proposição mas também me faz perce ber que é impossível conceber algo contrário O que é demonstrati vamente falso implica uma contradição e o que implica contradição não pode ser concebido Mas no que diz respeito a qualquer questão de fato por mais forte que seja a prova extraída da experiência posso sempre conceber seu contrário embora nem sempre possa crer nele A crença portanto faz alguma diferença entre a concepção a que as sentimos e aquela a que não assentimos 19 Para explicar esse ponto há apenas duas hipóteses possíveis Podese dizer que a crença acrescenta uma nova idéia àquelas que po demos conceber mas às quais não damos nosso assentimento Mas essa hipótese é falsa Em primeiro lugar não se pode produzir nenhu ma idéia desse tipo Quando simplesmente concebemos um objeto nós o concebemos com todas as suas partes Concebemos o objeto tal como ele poderia existir mesmo que não acreditemos que ele exista Nossa crença nele não revelaria novas qualidades Podemos repre sentar o objeto inteiro em nossa imaginação sem crer nele Podemos 690 Sinopse por assim dizer situálo diante de nossos olhos com todas as suas circunstâncias de tempo e espaço Tratase do próprio objeto conce bido tal como poderia existir e quando cremos nele não podemos fazer mais que isso 20 Em segundo lugar a mente tem a faculdade de juntar a uma idéia qualquer outra que não seja contraditória em relação a ela portan to se a crença consistisse em uma idéia que acrescentaríamos à sim ples concepção todo homem teria o poder de crer em qualquer coi sa que pudesse conceber bastando para isso acrescentar tal idéia a essa concepção 21 Portanto como a crença implica uma concepção mas também é algo mais que isso e como não acrescenta nenhuma nova idéia à con cepção seguese que é uma MANEIRA diferente de se conceber um objeto algo que é sentido de maneira distinta e ao contrário de to das as nossas idéias não depende de nossa vontade Em virtude do hábito minha mente passa do objeto visível ou seja uma bola mo vendose em direção a outra a seu efeito usual ou seja o movimen to da segunda bola E não apenas concebe esse movimento mas sen te nessa concepção algo diferente de um mero devaneio da imaginação A presença desse objeto visível e a conjunção constante desse efeito particular fazem com que a idéia seja sentida de maneira diferente que aquelas idéias soltas que entram na mente sem nenhuma preparação Essa conclusão parece um pouco surpreendente mas somos levados a ela por uma cadeia de proposições que não admitem qualquer dúvi da Para auxiliar a memória do leitor irei resumilas brevemente Só se pode provar uma questão de fato partindo de sua causa ou efeito So mente pela experiência se pode saber que alguma coisa é causa de outra Não podemos dar nenhuma razão para estendermos ao futuro nossa experiência do passado quando concebemos que um efeito se segue de sua causa usual estamos sendo inteiramente determinados pelo cos tume Mas além de conceber que esse efeito se segue também acre ditamos nisso Essa crença não incorpora nenhuma nova idéia à con cepção Apenas modifica nossa maneira de conceber criando uma 691 Tratado da natureza humana diferença para nossa sensação ou sentimento Em todas as questões de fato portanto a crença surge unicamente do costume consistin do em uma idéia concebida de maneira peculiar 22 Nosso autor passa então a explicar essa maneira de sentir ou sen sação this manner ar feeling que torna a crença diferente de uma vaga concepção Parece se dar conta de que é impossível descrever por meio de palavras essa sensação feeling de que entretanto todos devem ter consciência em seu próprio íntimo Ora a denomina uma concepção mais forte ora uma concepção mais viva mais vívida mais firme ou mais intensa Na verdade seja qual for o nome que possamos dar a essa sensação feeling que constitui a crença nosso autor considera evi dente que seu efeito sobre a mente é mais imperativo que o de uma ficção ou mera concepção Prova isso por meio da influência da crença sobre as paixões e a imaginação que só são movidas pela verdade ou por aquilo que tomamos como verdade A poesia com toda sua arte nunca poderia causar uma paixão como as da vida real A concepção original de seus objetos nunca é sentida da mesma maneira que as que obtêm nossa crença e convicção 23 Presumindo ter provado suficientemente que as idéias a que da mos nosso assentimento são sentidas de maneira diferente que ou tras idéias e que essa sensação feeling é mais firme e vívida que nossa concepção comum nosso autor busca em seguida explicar a causa dessa sensação feeling vívida por uma analogia com outros atos mentais Seu raciocínio parece interessante mas dificilmente pode ríamos tornálo inteligível ou ao menos provável aos olhos do leitor sem descrevêlo detalhadamente o que excederia o âmbito daquilo a que me propus 24 Omiti também muitos argumentos de que ele lança mão para pro var que a crença consiste meramente em uma sensação ou sentimen to peculiar Mencionarei apenas um Nossa experiência passada não é sempre uniforme Uma mesma causa é às vezes seguida de um efei to às vezes de outro e nesse caso sempre acreditamos que o efeito que existirá é o mais comum Vejo uma bola de bilhar se movendo 692 Sinopse em direção a outra Não consigo distinguir se ela gira em torno de seu eixo ou foi tocada por baixo de modo a apenas roçar a mesa No primeiro caso sei que ela não vai parar após o choque no segundo ela pode parar O primeiro é o mais comum e por isso é com esse efeito que conto Mas também concebo o outro efeito e o concebo como possível e como conectado à causa Se uma concepção não fos se diferente da outra em sua sensação ou sentimento não haveria nenhuma diferença entre elas 25 Em todo esse raciocínio limitamonos à relação de causa e efeito tal como ela se mostra nos movimentos e nas operações da matéria Mas o mesmo raciocínio se estende às operações da mente Quer con sideremos a influência da vontade no movimento de nosso corpo quer na direção de nosso pensamento podese afirmar com seguran ça que nunca poderíamos prever o efeito unicamente pela considera ção da causa sem a experiência E mesmo após termos tido ex periência desses efeitos é o costume e não a razão que nos determina a fazer dessa experiência o padrão de nossos juízos futuros Quando a causa se apresenta a mente por hábito passa imediatamente à con cepção de seu efeito usual bem como à crença nele Essa crença é algo diferente da concepção Entretanto não acrescenta nenhuma nova idéia a ela Apenas faz com que seja sentida de maneira diferen te tornandoa mais forte e vívida 26 Tendo encerrado esse importante ponto acerca da natureza da inferência a partir da causa e efeito nosso autor retorna sobre seus passos e examina novamente a idéia dessa relação Ao considerar o movimento comunicado de uma bola à outra não pudemos encon trar nada além da contigüidade da anterioridade da causa e da con junção constante Mas além dessas circunstâncias normalmente se supõe que existe uma conexão necessária entre a causa e o efeito e que a causa possui alguma coisa que chamamos de poder força ou ener gia A questão é que idéia está vinculada a esses termos Se todas as nossas idéias e pensamentos são derivados de nossas impressões esse poder tem de se revelar seja a nossos sentidos seja a nossa sensação 693 Tratado da natureza humana feeling interna Nas operações da matéria porém nenhum poder se revela aos sentidos Tanto é assim que os cartesianos não hesitaram em afirmar que a matéria é inteiramente desprovida de energia sendo rodas as suas operações realizadas exclusivamente pela energia do Ser supremo Mas a questão se coloca novamente mesmo no Ser su premo que idéia temos de energia ou de poder Nossa idéia de uma Divin dade segundo aqueles que negam as idéias inatas é apenas uma com posição das idéias que adquirimos ao refletir acerca das operações de nossas próprias mentes Ora nossas mentes nos dão tão pouca noção de energia quanto a matéria Quando consideramos nossa vontade ou volição a priori fazendo abstração da experiência nunca somos capazes de inferir dela efeito algum E quando nos apoiamos na ex periência ela só nos mostra objetos contíguos sucessivos e em con junção constante Em suma ou não temos nenhuma idéia de força e energia e essas palavras são então absolutamente sem sentido ou elas significam apenas aquela determinação do pensamento adquirida pelo hábito a passar da causa a seu efeito usual Mas quem quiser enten der isso perfeitamente deve consultar o próprio autor Ficarei satisfeito se puder fazer o mundo erudito compreender que há aqui uma difi culdade e aquele que resolvêla certamente deverá dizer algo bastan te novo e extraordinário tão novo quanto a própria dificuldade 27 Por tudo o que se disse o leitor perceberá facilmente que a filo sofia contida nesse livro é muito cética e tende a nos dar uma noção das imperfeições e dos estreitos limites do entendimento humano Segundo essa filosofia quase todo raciocínio se reduz à experiência e a crença que acompanha a experiência se explica somente como um sentimento peculiar ou seja como uma concepção vívida produzida pelo hábito E isso não é tudo Quando cremos em algo a respeito da existência externa ou quando supomos que um objeto continua exis tindo mesmo um instante após deixar de ser percebido essa crença é simplesmente um sentimento desse mesmo tipo Nosso autor insis te em diversos outros tópicos céticos e conclui de maneira geral que só assentimos às nossas faculdades e só empregamos nossa razão por 694 Sinopse que não podemos evitálo A filosofia nos tornaria inteiramente pirrônicos se a natureza não fosse forte demais para ela 28 Concluirei a lógica desse autor com uma explicação de duas opi niões que parecem ser peculiares a ele como o são aliás a maioria de suas opiniões Ele afirma que a alma até onde somos capazes de concebêla é somente um sistema ou seqüência de diferentes per cepções de calor e frio amor e raiva pensamentos e sensações to das unidas mas sem uma perfeita simplicidade ou identidade Des cartes afirmava que o pensamento era a essência da mente não este ou aquele pensamento mas o pensamento em geral Isso parece ser absolutamente ininteligível já que tudo que existe é particular portan to nossas diversas percepções particulares é que devem compor nossa mente Digo compor a mente e não pertencer a ela A mente não é uma substância a que nossas percepções seriam inerentes Essa noção é tão ininteligível quanto a noção cartesiana de que o pensamento ou percepção em geral é a essência da mente Não temos idéia de ne nhum tipo de substância uma vez que não temos nenhuma idéia que não seja derivada de alguma impressão e não temos impressão algu ma de uma substância seja material ou espiritual Tudo que conhe cemos são qualidades e percepções particulares Assim como nossa idéia de um corpo um pêssego por exemplo é somente a idéia de um sabor uma cor uma forma um tamanho uma consistência par ticular etc assim também nossa idéia de uma mente é apenas a idéia de percepções particulares sem a noção de alguma coisa que possa mos chamar de substância simples ou composta 29 O segundo princípio que me propus considerar diz respeito à geometria Tendo negado a infinita divisibilidade da extensão nosso autor se vê obrigado a refutar os argumentos matemáticos emprega dos para apoiar aquela noção e de fato estes são os únicos com al gum peso Para fazer isso ele nega que a geometria seja uma ciência exata o suficiente para permitir conclusões tão sutis quanto as que se referem à divisibilidade infinita Seus argumentos podemse ex plicar assim Toda a geometria se funda nas noções de igualdade e 695 Tratado da natureza humana desigualdade e portanto conforme tenhamos ou não um critério exato para essas relações essa própria ciência admitirá ou não uma grande exatidão Ora existe um critério exato de igualdade se supu sermos que a quantidade é composta de pontos indivisíveis Duas li nhas são iguais quando o número de pontos que as compõem é igual e quando cada ponto de uma corresponde a um ponto da outra Mas embora esse critério seja exato ele é inútil pois nunca poderíamos computar o número de pontos de uma linha Além disso está funda do na suposição da divisibilidade finita e portanto nunca poderia for necer uma conclusão contra essa noção Se rejeitarmos esse critério de igualdade não teremos mais nenhum que possa pretender à exa tidão Há dois critérios que são comumente utilizados Duas linhas superiores a uma jarda por exemplo são consideradas iguais quando contêm uma unidade inferior qualquer como uma polegada um nú mero igual de vezes Mas isso é um raciocínio circular Pois estamos supondo que a quantidade que chamamos de uma polegada em uma linha é igual à que chamamos de uma polegada na outra e a questão permanece que critério nos permite julgar que são iguais ou em outras palavras o que queremos dizer quando afirmamos que são iguais Se tomarmos quantidades ainda menores prosseguiremos ao infinito Portanto esse não é um critério de igualdade A maior parte dos filósofos quando lhes perguntamos o que querem dizer com igual dade dizem que a palavra não admite definição e que basta colocar diante de nós dois corpos iguais tais como dois diâmetros de um cír culo para que compreendamos esse termo Ora isso é tomar a aparên cia geral dos objetos como critério dessa proporção e fazer de nossa imaginação e de nossos sentidos seus juízes últimos Mas um critério como esse não admite nenhuma exatidão e nunca poderia fornecer uma conclusão contrária à imaginação e aos sentidos Se esse racio cínio está ou não correto cabe ao mundo erudito julgar Seria certa mente desejável que pudéssemos encontrar algum expediente para reconciliar a filosofia e o senso comum que têm travado as mais cruéis batalhas a propósito da questão da divisibilidade infinita 696 Sinopse 30 Devemos agora dar alguma explicação do segundo volume des sa obra que trata das PAIXÕES Essa parte é mais fácil de se entender que a primeira mas contém opiniões que são tão novas e extraordi nárias quanto as outras O autor começa com o orgulho e a humildade Observa que os objetos que despertam essas paixões são muito nu merosos e aparentemente muito diferentes uns dos outros O orgu lho ou autoestima pode surgir das qualidades da mente como es pirituosidade bom senso coragem integridade das qualidades do corpo como beleza força agilidade boa aparência destreza na dan ça na equitação na esgrima das vantagens externas como o país a família os filhos as relações de amizade a riqueza casas jardins ca valos cães e roupas Em seguida busca a circunstância que seria co mum a todos esses objetos e que os faria agir sobre as paixões Sua teoria também se aplica ao amor e ao ódio bem como a outros afetos Como essas questões embora interessantes não poderiam se tornar inteligíveis sem um longo discurso não as mencionaremos aqui 3 1 O leitor talvez considere mais satisfatório conhecer o que nosso autor diz a respeito do livrearbítrio O fundamento dessa doutrina está naquilo que ele diz sobre a causa e efeito como explicamos anterior mente Todos reconhecem que as operações dos corpos externos são necessárias e que na comunicação de seu movimento e em sua atra ção e coesão mútuas não há nenhum traço de indiferença ou liber dade Tudo que sob esse aspecto estiver na mesma situação que a matéria deverá portanto ser admitido como necessário Para saber se é este o caso das ações da mente podemos examinar a ma téria e analisar qual o fundamento da idéia de uma necessidade em suas operações e por que concluímos que um corpo ou ação é a cau sa infalível de outro corpo ou ação 32 Já observei não haver um só caso em que a conexão última en tre os objetos pudesse ser descoberta por nossa razão ou por nossos sentidos e que somos incapazes de penetrar tão profundamente na essência e estrutura dos corpos a ponto de perceber o princípio que fundamenta sua influência mútua Só temos conhecimento de sua 697 Tratado da natureza humana união constante e é dessa união constante que deriva a necessidade quando a mente é determinada a passar de um objeto àquele que comumente o acompanha e a inferir a existência de um da existência do outro Eis aqui portanto dois pontos que devemos considerar essenciais à necessidade a união constante e a inferência da mente onde quer que os descubramos teremos de admitir uma necessidade Ora não há nada mais evidente que a união constante de ações particula res com motivos particulares Se nem todas as ações estão constan temente unidas com seus motivos próprios essa incerteza não é maior que aquela que se pode observar todo dia nas ações da matéria onde em razão do entrelaçamento e da incerteza das causas o efeito é freqüentemente variável e incerto Dois gramas de ópio matam qual quer pessoa que não esteja acostumada com essa substância mas dois gramas de ruibarbo nem sempre serão suficientes para purgála De maneira semelhante o medo da morte sempre fará um homem se desviar um pouco de seu caminho mas nem sempre o fará cometer uma má ação 33 E assim como freqüentemente existe uma conjunção constante das ações da vontade com seus motivos assim também a inferência dos motivos às ações ou viceversa é freqüentemente tão certa quanto qualquer raciocínio concernente aos corpos e sempre fazemos uma inferência proporcional à constância da conjunção É nisso que se fun da nossa crença em testemunhas o crédito que depositamos na his tória e na verdade todos os tipos de evidência moral e quase toda a conduta da vida 34 Nosso autor afirma que esse raciocínio ao nos fornecer uma nova definição de necessidade dá uma nova perspectiva a toda essa con trovérsia De fato mesmo os mais zelosos defensores do livrearbí trio devem reconhecer essa união e essa inferência a propósito das ações humanas Negam apenas que elas constituam a totalidade da necessidade Mas nesse caso têm de mostrar que temos uma idéia de alguma outra coisa nas ações da matéria o que de acordo com o raciocínio anterior é impossível 698 Sinopse Ao longo de todo esse livro há grandes pretensões de novas des cobertas filosóficas mas se alguma coisa dá ao autor direito a um tí tulo tão glorioso quanto o de inventor é o uso que ele faz do princípio de associação de idéias que está presente em quase toda a sua filoso fia Nossa imaginação tem grande autoridade sobre nossas idéias e sempre que as idéias são diferentes pode separálas juntálas e com binálas em todas as variedades imagináveis Porém apesar do domí nio da imaginação existe um laço ou união secreta entre certas idéias particulares que faz com que a mente as reúna mais freqüentemente e que uma delas ao aparecer introduza a outra É daí que surge aqui lo que denominamos a pertinência do discurso e também o nexo de uma narrativa escrita bem como o fio ou seqüência do pensamento que os homens sempre observam mesmo nos mais vagos devaneios Esses princípios de associação se reduzem a três a semelhança por exemplo um retrato naturalmente nos faz pensar no homem que ser viu de modelo a contigüidade quando se menciona St Denis a idéia de Paris nos ocorre naturalmente e a causalidade quando pensamos no filho tendemos a dirigir nossa atenção ao pai Será fácil conce ber qual deve ser a importância desses princípios para a ciência da natureza humana se considerarmos que no que diz respeito à men te estes são os únicos elos que ligam as diversas partes do universo ou que nos conectam a pessoas ou a objetos exteriores a nós Porque como é somente por meio do pensamento que alguma coisa age sobre nossas paixões e como esses são os únicos laços de nossos pensa mentos eles realmente são para nós o cimento do universo e todas as operações da mente têm que em larga medida deles depender FINIS 699 Notas e variantes As notas a seguir foram inicialmente baseadas na edição de Selby BiggeNidditch SBN com duas modificações importantes Em pri meiro lugar excluímos todas as notas de menor importância e que com a tradução para o português perderam sua razão de ser Em se gundo lugar incluímos no corpo do texto todas as modificações ma nuscritas feitas por Hume à edição original do Tratado bem como as variantes constantes no autógrafo de Hume da Seção 6 Parte 3 do Livro 3 regra que nem sempre foi seguida naquela edição inglesa Posteriormente incluímos também as modificações mais importan tes que foram feitas por David F Norton e Mary J Norton na nova edição inglesa lançada em 2000 NNOPT Referimonos à edição completa para estudantes Conforme mencionamos na Nota à se gunda edição as alterações e observações contidas na nova edição crí tica de 2007 não puderam ser aqui introduzidas No caso das prin cipais alterações editoriais incluímos em pé de página nota do tradutor reproduzindo resumidamente as razões que aqueles editores apre sentaram Cf David F Norton Mary J Norton Substantive differences between two texts of Humes Treatise Hume Studies nov 2000 XXVI 2 24577 Quando discordamos dessas alterações acres centamos também nossas razões deixando que o leitor julgue por si próprio 701 Tratado da natureza humana 1 1 ª edição original do Tratado MS autógrafo de Hume para Tratado IIIIIIVI H correções manuscritas de Hume a 1 SB edição de L A SelbyBigge edit N editorial P H Nidditch OPT edição Oxford Philosophical Texts do Tratado edit NNOPT editorial D F Norton M Norton A numeração abaixo deve ser lida da seguinte maneira livro parteseção parágrafolinha E no caso das notas de Hume livroparteseçãonotaparágrafo da notalinha da nota 1 12 1 29 qualidade SBquantidade edit NNOPT 2 1 25 16 l O os mesmos objetos podem ser tocados H o mesmo objeto pode ser tocado 1 3 13 9 19 178 fundamento que o de nossos raciocínios SB fundamentos que o de nossa experiência ou de nossos raciocínios OPT 4 1 3101 35 todos os sistemas tendem SB todos os sistemas por mais convincentes que sejam os argumentos sobre os quais se fundam ten dem OPT 5 1 310 1 1 6 a respeito da crença SB a respeito da crença e de nossos raciocínios sobre causas e efeitos OPT 6 1 3102 12 Existe implantada na mente humana uma percepção da dor e do prazer SB A natureza implantou na mente humana uma percep ção do bem e do mal ou em outras palavras OPT 7 1 310256 sensação real SB sensação e experiência real OPT 8 1 31223n l Páginas xxii xxiii SB Seções 9 e 1 O desta parte OPT 9 1 313 1 1 2 não filosóficas SB filosóficas 1 10 1 313 1 710 a paixão SB as paixões edit NNOPT 1 1 1 46641 vegetais SB animais edit NNOPT seguindo sugestão de Roland Hall Hume s use of Locke on Identity in The Locke newsletter 5 197469 12 21 459 o prazer SB os prazeres OPT 13 21 45 15 dessa SB de sua OPT 14 2 1 9 1 89 do pensamento e da pessoa SB do pensamento da pes soa edit NNOPT 15 22 107 12 orgulho SB seguindo a sugestão de D W D Owen Hume Studies 1 1975 767ódio 1 702 16 239191213 aumentastes ou seja diminuindo a probabilidade de seu lado e vereis a paixão SB aumentastes diminuindo a probabilidade de seu lado vereis a paixão OPT 17 231081 similar SB familiar edit NNOPT 18 311167 ações SBjuízos I 19 321163 para com o proprietário acréscimo H 20 321171 naturalmente acréscimo H 21 322243339 Assim o interesse próprio condenação HAssim o interesse próprio é o motivo original para o estabelecimento da justiça mas uma simpatia com o interesse público é a fonte da aprovação moral que acompanha essa virtude I 22 323 n5113 e 7 vel Titius id miscuerit sine tua voluntate non videtur commune esse Arbitrio autem judicis ut ipse æstimet quale cujusque frumentum fuerit SB vel Titius sine tua voluntate non videtur commune esse Arbitrio autem judicis continetur ut ipse æstimet quale cujusque frumentum fuerit OPT 23 326612 a propriedade o direito e a obrigação Has propriedades os direitos e as obrigações I 24 32666 sociedade Hsociedade civil I 25 326107 qualidades morais Hvirtudes e vícios I 26 3261014 do direito natural da justiça SB 27 326115 que esse interesse próprio é comum a toda a humanidade acréscimo H 28 327620 obediência civil Hsociedade I 29 328136 regras da sociedade Hleis I 30 328224 podendo Htendo que I 31 32833334 tão logo as vantagens do governo são plenamente conhecidas e reconhecidas ele imediatamente Hele rapidamente I 32 32871415 a nosso próprio interesse ou ao menos ao interesse público de que participamos por simpatia Hao interesse público e a nosso interesse particular I 33 32933637 súditos e não no caso de disputas entre eles próprios e seus súditos Hsúditos I 34 329429 interesse H interesse comum I erratainteresse público I texto 35 3210211 leis da sociedade SB regras da justiça OPT 36 3210423 quase todos os governos estabelecidos no mundo Htodos os governos mais bem estabelecidos do mundo sem exceção I 37 32101034 que alguns princípios da imaginação concorrem com essas considerações de justiça e interesse Hque concorrem com essas considerações de interesse alguns princípios da imaginação I Tratado da natureza humana 38 32 10135 talvez Hadmito prontamente que I 39 32101 620 um exercício particular Ho exercício I 40 32101 889 seu legal SBsua autoridade legal edit NNOPT 41 3 212 7 7 8 e também tendem a sentir uma simpatia pelo interesse geral da sociedade acréscimo H 42 331 913 Seus inventores nosso próprio interesse acréscimo H 43 331913 sempre Hem todas as nações e em todas as épocas I 44 3311 1256 a caracteres alheios que sejam úteis ou nocivos para a socie dade Haos caracteres alheios 1 a caracteres que sejam úteis ou no civos para a sociedade OPT 45 331 12 18 e para cada indivíduo acréscimo H 46 331229 estilo Hdiscurso I 47 335 título virtudes SBaptidões edit NNOPT 48 3361 12 tenho esperanças de que nada tenha faltado lparece que não falta nada MS 49 33611 112 na maior parte das lnas maiores MS 50 336115 principal não está em MS 5 1 33639 nossa natureza Hnatureza humana lnatureza humana MS 52 336319 este último Hseu lseu MS 53 Apêndice 22 diretos ou colaterais acréscimo H 54 Sinopse 7 13 pretensa acréscimo H Sobre a tradução 7 Nota à primeira edição 1 2 Nota à segunda edição 1 4 Livro 1 Do entendimento 1 5 Advertência 1 7 Introdução 1 9 Parte 1 Indice geral Das idéias sua origem composição conexão abstração etc 25 Seção 1 Da origem de nossas idéias 25 Seção 2 Divisão do tema 3 1 Seção 3 Das idéias da memória e da imaginação 32 Seção 4 Da conexão ou associação das idéias 34 Seção 5 Das relações 3 7 705 Tratado da natureza humana Seção 6 Dos modos e substâncias 39 Seção 7 Das idéias abstratas 41 Parte 2 Das idéias de espaço e tempo 51 Seção 1 Da infinita divisibilidade de nossas idéias de espaço e tempo 51 Seção 2 Da divisibilidade infinita do espaço e do tempo 54 Seção 3 Das outras qualidades de nossas idéias de espaço e tempo 59 Seção 4 Resposta às objeções 65 Seção 5 Continuação do mesmo tema 81 Seção 6 Da idéia de existência e de existência externa 93 Parte 3 Do conhecimento e da probabilidade 97 Seção 1 Do conhecimento 97 Seção 2 Da probabilidade e da idéia de causa e efeito 1 O1 Seção 3 Por que uma causa é sempre necessária 1 07 Seção 4 Das partes componentes de nossos raciocínios acerca da causa e do efeito 1 1 1 Seção 5 Das impressões dos sentidos e da memória 1 1 2 Seção 6 Da inferência da impressão à idéia 1 1 5 706 Índice geral Seção 7 Da natureza da idéia ou crença 1 23 Seção 8 Das causas da crença 128 Seção 9 Dos efeitos de outras relações e outros hábitos 1 3 7 Seção 10 Da influência da crença 1 48 Seção 1 1 Da probabilidade de chances 1 56 Seção 12 Da probabilidade de causas 1 63 Seção 13 Da probabilidade não filosófica 1 76 Seção 14 Da idéia de conexão necessária 1 88 Seção 15 Regras para se julgar sobre causas e efeitos 206 Seção 1 6 Da razão dos animais 209 Parte 4 Do ceticismo e outros sistemas filosóficos 2 1 3 Seção 1 Do ceticismo quanto à razão 2 1 3 Seção 2 Do ceticismo quanto aos sentidos 220 Seção 3 Da filosofia antiga 252 Seção 4 Da filosofia moderna 257 Seção 5 Da imaterialidade da alma 264 Seção 6 Da identidade pessoal 283 707 Tratado da natureza humana Seção 7 Conclusão deste livro 296 Livro 2 Das paixões 307 Parte 1 Do orgulho e da humildade 309 Seção 1 Divisão do tema 309 Seção 2 Do orgulho e da humildade seus objetos e suas causas 3 1 1 Seção 3 De onde derivam esses objetos e causas 3 1 4 Seção 4 Das relações de impressões e de idéias 3 1 7 Seção 5 Da influência dessas relações sobre o orgulho e a humildade 3 1 9 Seção 6 Limitações desse sistema 324 Seção 7 Do vício e da virtude 329 Seção 8 Da beleza e da deformidade 332 Seção 9 Das vantagens e das desvantagens externas 33 7 Seção 10 Da propriedade e da riqueza 344 Seção 1 1 Do amor à boa reputação 350 Seção 12 Do orgulho e da humildade dos animais 359 Parte 2 Do amor e do ódio 3 63 Seção 1 Dos objetos e das causas do amor e do ódio 363 708 Índice geral Seção 2 Experimentos que confirmam este sistema 366 Seção 3 Solução das dificuldades 381 Seção 4 Do amor pelos parentes e amigos 385 Seção 5 De nossa estima pelos ricos e poderosos 391 Seção 6 Da benevolência e da raiva 400 Seção 7 Da compaixão 403 Seção 8 Da malevolência e da inveja 406 Seção 9 Da mistura da benevolência e da raiva com a compaixão e a malevolência 41 5 Seção 10 Do respeito e do desprezo 424 Seção 1 1 Da paixão amorosa ou amor entre os sexos 428 Seção 12 Do amor e ódio dos animais 43 1 Parte 3 Da vontade e das paixões diretas 435 Seção 1 Da liberdade e da necessidade 435 Seção 2 Continuação do mesmo tema 443 Seção 3 Dos motivos que influenciam a vontade 448 Seção 4 Das causas das paixões violentas 454 Seção 5 Dos efeitos do costume 458 709 Tratado da natureza humana Seção 6 Da influência da imaginação sobre as paixões 460 Seção 7 Da contigüidade e da distância no espaço e no tempo 463 Seção 8 Continuação do mesmo tema 467 Seção 9 Das paixões diretas 4 7 4 Seção 10 Da curiosidade ou o amor à verdade 484 Livro 3 Da moral 491 Advertência 493 Parte 1 Da virtude e do vício em geral 495 Seção 1 As distinções morais não são derivadas da razão 495 Seção 2 As distinções morais são derivadas de um sentido moral 509 Parte 2 Da justiça e da injustiça 51 7 Seção 1 Justiça uma virtude natural ou artificial 51 7 Seção 2 Da origem da justiça e da propriedade 525 Seção 3 Das regras que determinam a propriedade 542 Seção 4 Da transferência da propriedade pelo consentimento 553 Seção 5 Da obrigatoriedade das promessas 555 Seção 6 Algumas outras reflexões sobre a justiça e a injustiça 565 71 0 Índice geral Seção 7 Da origem do governo 573 Seção 8 Da fonte da obediência civil 578 Seção 9 Das regras da obediência civil 589 Seção 10 Dos objetos da obediência civil 593 Seção 1 1 Do direito internacional 606 Seção 12 Da castidade e da modéstia 609 Parte 3 Das outras virtudes e vícios 61 3 Seção 1 Da origem das virtudes e dos vícios naturais 61 3 Seção 2 Da grandeza de espírito 63 1 Seção 3 Da bondade e da benevolência 642 Seção 4 Das aptidões naturais 646 Seção 5 Mais algumas reflexões sobre as aptidões naturais 653 Seção 6 Conclusão deste livro 657 Apêndice 661 Sinopse de um livro recentemente publicado intitulado Tratado da natureza humana e 679 Notas e variantes 701 Índice geral 705 Índice analítico 713 Índice onomástico 757 71 1 Indice analítico Nota Ss páginas seguintes Cf conferir passagens em que o tema é abordado indiretamente Abstratas abstração a teoria das idéias abstratas de Berkeley e a de Hume 4lss abstração e separação 42ss idéias abstratas do espaço e do tempo maneiras como as impressões aparecem à mente 605 abstração e distinção de razão 69 idéia abstrata de conexão causal e de poder l 95ss idéias gerais abstra tas e sua influência sobre a imaginação 4603 idéias abstratas e as pai xões 4603 idéia abstrata de existência 662 Acaso ver Causa causação Chance acaso e conjunção constante 28 acaso e associação de idéias 34 acaso e probabilidade l 56ss acaso como negação das causas e indiferença 1 58 acaso como causa secreta e oculta 163 cf 698 acaso e necessidade 205 liberdade de indiferença como equivalente de acaso 4434 cf 158 440 o acaso e as regras para a estabilidade da propriedade 553 Acessão acessão e propriedade 549ss Acidental acidente distinção entre circunstâncias acidentais e causas eficientes por meio das regras gerais 182 ficção do acidente 255 7 1 3 Tratado da natureza humana Ação distinção entre pensamento e ação 2778 cf 6701 ações internas em oposição a objetos externos 5045 o caráter artificial das ações 515 as ações como realidades originais e não passíveis de verdade ou falsidade 4989 cf 4501 ações e juízos 499 as ações e a vontade ver Caráter Necessidade Vontade 436ss 447 6489 6701 cf 614 necessidade da ação como determinação da mente do espectador e não como qualidade do agente 444 relação das ações temporárias e perecíveis com o caráter constante e duradouro 447 5 1 78 614 cf 6701 ações e motivos 436ss 447 51 79 6701 ações e virtude 51 1 51 89 Adequado adequação idéias adequadas 545 inexistência de uma idéia adequada de poder ou eficácia 193 adequação como princípio que não pode ser usado na atri buição de propriedade 542 Alegria alegria e orgulho 325 medo e esperança como mistura de alegria com tristeza 476ss Alma ver Identidade Mente crença na imortalidade da alma 1445 emoções da alma e raciocínio da mente 219 imaterialidade da alma 264ss metáfora da alma como repú blica ou comunidade 293 a alma e o corpo 30910 Amor amor como uma paixão violenta 3 101 amor e associação entre paixões impressões 31 78 amor à boa reputação 3509 objetos e causas do amor e do ódio 363ss cf 5212 amor e ódio correlativamente às paixões do orgulho e da humildade 363ss 373 401 4257 512 6146 6283 1 o amor e as qualidades agradáveis 3834 6283 1 6446 648 654 amor e a constância da qualidade agradável na pessoa amada 383 a qualidade agra dável na pessoa amada e sua intenção 3834 648 amor pelos parentes e pelos amigos 3868 amor e simpatia 3509 384 3889 396400 6223 6283 1 6436 amor e ódio enquanto ligados às paixões da benevolência e da raiva 400ss amor e desejo 4012 amor e compaixão 4036 amor e ódio ligados à piedade e à malevolência 406ss 41 5ss 532 amor e ódio ligados ao respeito e ao desprezo 424 amor entre os sexos 428ss 610 654 amor e ódio nos animais 43 13 amor e ódio como paixões indiretas 474ss 614 amor à verdade 4849 amor entre os sexos como princípio da sociedade 526 amor a si próprio 364 5201 568 582 amor à huma nidade 521 4 amor como uma paixão social 532 a virtude e as aptidões naturais como causas de amor 6135 6283 1 64757 transição do amor ao amor 645 a aprovação e a censura moral como um amor ou um ódio mais fracos 654 cf 6223 distinção entre amor e apreço 6478 648 n6 71 4 Índice analítico Análogo analogia analogia entre as influências da relação de semelhança e da experiência 142 analogia e probabilidade 1 75 180 analogia e ultrapassamento da experiência 242 a sensação da crença explicada por analogia com outros sentimentos 662 Animais comparação geral entre animais e homens 2091 1 35962 43 13 4834 5078 ausência de relações de direito e propriedade nos animais seme lhança entre a razão nos animais e nos homens 2091 1 orgulho e humil dade nos animais e nos homens 35961 amor e ódio nos animais 43 1 a imaginação dos animais 43 1 vontade e paixões diretas nos animais 483 a superioridade racional dos homens em relação aos animais 361 650 a identidade atribuída à mente humana às plantas e aos animais 286ss simpatia entre os animais 397 432 ausência de moralidade nos animais 361 5078 Aparência derivação dos princípios da geometria das aparências 1001 aparências e bons modos 1 856 aparência e existência como indistinguíveis para os sentidos 22l ss indistinção entre a aparência e o ser de todas as ações e sensações da mente 2223 cf 453 622 643 670 a distinção pela ima ginação entre aparência percepção das coisas e existência existência das coisas 226ss aparência racional de certas determinações passionais 453 correção da aparência momentânea das coisas em nossa avaliação moral 622 correção da aparência pelo entendimento 643 670 Apreço ver Amor Estima A priori raciocínio a priori e causação 279ss 5056 6934 incapacidade da men te para formar conclusões a priori sobre as operações ou sobre a duração de um objeto 283 raciocínios a priori relativos às paixões confirmados pela experiência 368ss impossibilidade de se provar a priori a determina ção racional da vontade 5056 os raciocínios filosóficos a priori relativos à modéstia 610 Aptidões aptidões naturais e sua oposição às virtudes morais 646ss Argumentos argumentos sofísticos na matemática 55ss discussão do papel da argu mentação e da experiência na inferência causal 1 17 ss degradação da cer teza nas longas cadeias de argumentos 1 77 cf 68 1 especificidade do encadeamento de argumentos históricos 1 79 Arrependimento arrependimento e a doutrina da necessidade 4478 cf 383 71 5 Tratado da natureza humana Artificial artifício ver Natural natureza educação como causa artificial de opiniões 148 artificial oposto a natu ral 51 35 artificial como resultante do propósito ou intenção 5 1 5 arti ficial como equivalente ao resultado da intervenção do pensamento ou reflexão 524 artifício como remédio que a natureza fornece para o que há de irregular e inconveniente nos afetos 529 53 7 virtudes artificiais opos tas às naturais 514 617 619 virtudes artificiais e simpatia 61 67 a vir tude artificial da justiça 344 leisregras artificiais da justiça 56573 o caráter artificial mas não arbitrário das regras da justiça 5235 promes sas como artifício que visa à conveniência e ao favorecimento da socieda de 564 as três leis fundamentais do direito natural como artificiais 565 justiça como artificial e o sentido de sua moralidade como natural 658 ampliação do artifício da justiça pelo artifício dos ensinamentos públicos dos políticos 5723 o governo como meio artificial de curar a fraqueza natural dos homens 5768 o artifício dos políticos 1 que visa a produ zir apreço pela justiça e aversão pela injustiça 540 2 que estende os sentimentos naturais para além de seus limites originais 541 3 que redireciona nossas paixões naturais ensinandonos que satisfaremos melhor nossos apetites de maneira oblíqua e artificial 560 4 e da edu cação entendido como tentativa de conter as paixões dos homens e de fazê los agir para o bem público sistema moral criticado por não ser coerente com a experiência 618 Asseio asseio como virtude 65 1 Assentimento assentimento a uma opinião 297 ver Crença Ceticismo Associação os princípios de associação das idéias pela imaginação semelhança contiguidade e causa e efeito 34ss idéias complexas relações modos e substâncias produzidas por associação 37 atração entre os corpos no mundo físico e associação atração no mundo mental 37 3 1 8 323 ex plicação fisiológica da associação 88 a falibilidade dos princípios da ima ginação e a possibilidade de outras causas de suas associações 121 a pro babilidade como resultado de uma associação imperfeita 164 associação das impressões apenas por semelhança 3 1 7 associação de idéias e as pai xões 33940 associações entre idéias e impressões 3 1 8 a dupla relação entre impressões e idéias na paixão do orgulho 3201 o direito de suces são na propriedade favorecido pela associação 552 n6 Ateísmo o ateísmo de Spinoza 272ss 71 6 Índice analítico Atenção o papel da atenção na abstração 49 atenção e correção do raciocínio 76 95 atenção nos raciocínios causais 1 1 1 cf 409 atenção e associação 121 atenção e vividez 128 2 1 8 236 247 303 373 influência das pai xões na atenção 3 1 23 320 423 430 669 influência da impressão pre sente e da relação sobre a atenção 324 343 simpatia e atenção em nós mesmos 375 529 atenção na filosofia e na caça 485 486 487 488 cf 496 Atração Ver Associação Avaro o avaro e seu prazer com o dinheiro 3489 Beleza emoções da beleza e da deformidade opostas a paixões violentas 3 1 O be leza como causa de prazer e orgulho 3 1 3 3 1 5 3 1920 323 332ss 360 475 697 beleza natural e moral 334 504 519 524 525 566 beleza prazer e utilidade 361 6 1 56 629 6547 beleza como causa de amor 3645 382 427 4283 1 522 beleza e simpatia 3989 6 1 57 6567 efeitos do contraste entre um objeto belo e um feio 41 O beleza prazer e gosto 333 5 1 1 586 n l O beleza e utilidade 6234 beleza como involuntária 648 beleza derivada do mero aspecto ou aparência dos objetos 6567 Bem o bem e o mal morais como prazer e dor de um tipo particular 14950 3 1 1 435 439 4745 5 1 0ss 586 6293 1 bem e mal prazer e dor e sua influência sobre a vontade 14950 4534 insuficiência da razão na de terminação do bem e do mal 44854 496509 sobre os princípios do bem e do mal 303 satisfação com a proximidade de um bem 34850 bem e mal meramente sensíveis nos animais 43 12 bens do espírito bens do corpo e bens exteriores 528 o bem e o mal morais como justiça e injus tiça ver Justiça 53740 569 616 o bem relativo à propriedade ver Pro priedade bem público 5678 6015 o bem imediato como obstáculo à realização da justiça e à criação do governo 5758 bem moral e simpatia 6 1 663 1 644 653 65760 Benevolência benevolência e raiva como paixões que sempre acompanham as paixões do amor e do ódio 379 388 400ss 41 5ss 63 1 mistura da benevolência e da raiva com a compaixão e a malevolência 4 l 5ss benevolência e o amor sexual 428ss benevolência como desejo ou paixão calma 453 benevo lência como instinto 453 4 745 benevolência e prazer 4 75 benevolên cia pública e privada e a justiça 5223 535 536 explicação da benevo lência como virtude 642ss comparação da virtude da benevolência com aptidões naturais 646ss 71 7 Tratado da natureza humana Bom humor bom humor como motivo de orgulho 33 1 bom humor como qualidade privilegiada capaz de produzir amor 427 bom humor como qualidade agra dável à própria pessoa e a seus próximos 6501 Bondade bondade e benevolência 642ss Caráter faltas expressas em palavras e em ações e sua relação com o caráter 186 influência do caráter na imaginação 252 cf 1 83 caráter e identidade pessoal 2934 cf 648 ver Identidade orgulho e humildade relativa mente ao caráter 320 322 3301 3378 3501 366 380 638 6401 caráter de uma nação 351 caráter e simpatia 3515 620 62332 6416 653 657 possibilidade de inferir as ações do caráter 436ss caráter e a uniformidade das ações humanas 439 oposição entre as ações temporá rias e perecíveis e o caráter princípios duradouros em nossa avaliação moral 383 447 5179 6145 caráter liberdade e necessidade 4458 648 9 firmeza de caráter 454 caráter como independente da intenção e da li berdade da vontade 3835 4478 500 501 e n2 ver Intenção Motivo Vontade razão em oposição ao sentimento na determinação do caráter virtuoso 508ss 586 629 o prazer particular da contemplação do caráter virtuoso 5 1 12 586 6301 648 657 cf 3301 justiça como qualidade que melhor determina um caráter virtuoso 616 influência exercida pelo caráter de uma pessoa sobre seus próximos 622 distinção entre caráter amável e caráter respeitável 6478 a quase impossibilidade de a mente alterar seu caráter 648 cf 2934 Cartesiano argumento cartesiano sobre poder ou eficácia 1 923 6934 noção cartesiana de mente 695 cf 283 Castidade castidade e modéstia 609ss castidade e interesse 612 Causa causação impressão como causa da idéia 289 causa e efeito como qualidade das idéias que produz associação 35 objeto como causa da ação ou movimen to e como causa da existência de outro objeto 36 205 causa e efeito como relação filosófica e como relação natural 39 122 2034 cf 359 associa ção por causação limitada às idéias 3 1 78 3445 546 ultrapassagem das impressões dos sentidos na relação de causação lülss 1 15ss 1334 cf l 76ss causação e probabilidade lülss 133 156187 origem de nossas idéias de causação 1016 197200 raciocínio causal e raciocínio demons trativo 102 1 1 1122 1324 68693 questão acerca da necessidade de uma causa 106 107ss 190 inferência causal 106 1 101 1 1 5ss 125 n6 126 71 8 Índice analítico 1334 1378 1412 1 72 1 87 1967 199 203 2556 4367 4412 445 6 687ss causação e relação de conexão necessária 1056 1 1 67 1 88 206 27882 4412 4467 6934 crítica às concepções de causação de Hobbes Clarke e Locke 1089 causação e uniformidade na natureza 1 1 7 9 167 6889 cf 134 135 4379 ver Uniforme uniformidade causação e conjunção constante 1 16122 132 143 158 16lss 182 1867 196ss 2068 2 1 1 245 2556 27982 4367 43940 4456 671 68794 697 8 ver Conjunção constante influência da relação de causação na fanta sia e as relações de contigüidade e semelhança 12832 cf 1212 1404 3523 crença causal 122ss 128ss 137ss 148ss 1601 63 1 65ss 217 20 6623 cf 4412 crença causal e costume ou hábito 1326 144ss l 48ss 1767 1807 ver Crença relação de causação como determina ção da mente 13940 1 60171 1 89 198209 2989 4367 4414 693 4 influência dos raciocínios causais sobre a vontade l 49ss causa e po der ou eficácia 1 89ss ausência de distinção entre causas eficientes e formais entre causa e ocasião 2045 causa e sentimento de determina ção 198 regras para se julgar sobre causas e efeitos 2069 raciocínio causal e os princípios universais e permanentes da imaginação 258 a matéria como causa das percepções 2 7782 identidade pessoal e causação 287ss causação e identidade 28994 princípio de economia das causas 3 1 6 617 propriedade posse estável como uma espécie particular de causação 344 cf 542ss liberdade e causação nas ações 346ss 435ss 501 n2 6701 relação entre causação e simpatia 3524 juízo ou razão como causa da ação 498ss Certeza ver Causa causação Ceticismo Conhecimento Probabilidade relações filosóficas e certeza ou conhecimento 971O1 experiência e cer teza na relação de causa e efeito l 56ss 1867 certeza e ceticismo 3056 Ceticismo ceticismo quanto à razão 2 l 3ss ceticismo superado pela natureza 216ss 220 3002 ceticismo quanto aos sentidos quanto à existência dos cor pos 220ss 247 260 ceticismo total 2 1 6 29930 1 ceticismo e dogmatismo 220 ceticismo extravagante 24 7 260 ceticismo moderado 257 30l ss 677 ceticismo e inclinação ou prazer 303 3056 Chance ver Acaso Probabilidade probabilidade de chances 15663 1 68 175 4 76 a probabilidade como um número superior de chances iguais 158 1 69 mistura de causas entre as chances 159 efeito da combinação de chances sobre a crença 160 chances como equivalentes de impulsos da mente 161 relação entre as probabili dades de chances e de causas 1 63 1 69 1 75 476 cada experiência passa da considerada como uma espécie de chance 1689 1 74 influência da superioridade de chances sobre as paixões 476ss 71 9 Tratado da natureza humana Civil oposição entre natural e civil 514 n4 582ss 609 direito civil 344 554 5 n5 568 588 590 guerra civil 413 579 governo e obediência civil 576 580 581 606 sociedade civil 612 Coerência inferências a partir da coerência das percepções 1 13 coerência das per cepções e existência contínua de objetos externos 228ss coerência das impressões de sensação e coerência das paixões impressões internas ou de reflexão 22830 coerência das impressões e costume 2301 a coerência como uma espécie irregular de raciocínio por experiência 274 Comparação comparação raciocínio e demonstração 1012 688 cf 280 comparação de idéias e conhecimento 1 57 comparação e valor 326 33750 3589 40615 4248 596 63341 a verdade discernida pela comparação e justa posição de idéias 497 comparação como um tipo de operação do enten dimento 503 620 comparação como diretamente contrária à simpatia em sua operação 6335 Comunicação ver Simpatia comunicação de sentimentos ou paixões 351 358 398 4201 432 463 632 Concepção ver Causa causação atos do entendimento raciocínios juízos e crenças como redutíveis a concepções 125 n6 concepção como pressuposta pelo entendimento 197 diferença entre concepção e crença 662 665 Conexão ver Causa causação Conhecimento conhecimento e representação adequada 545 conhecimento dos corpos 912 conhecimento oposto a probabilidades e a provas 97ss 1568 186 7 somente quatro tipos de relações filosóficas são objetos de conhecimento e certeza 98 conhecimento oposto à observação e à experiência 1 1 lss 1 86 conhecimento definido como certeza resultante da comparação de idéias 157 conhecimento reduzido à probabilidade 213ss ver Ceticis mo conhecimento humano e dos animais 360 Conjunção constante ver Causa causação conjunção constante entre idéia e impressão 289 258 conjunção cons tante habitual entre idéia particular e termo geral na idéia abstrata 46 7 conjunção constante e causação 1 1 6122 132 134 143 158 16lss 182 1867 196ss 2068 2 1 1 245 2556 27982 4367 43940 4456 671 68794 6978 Consciência consciência percepção e objeto 25 94 136 2234 245 298 3 1 1 cons ciência e crença 1323 1901 cf 193 663 692 consciência e hábito 72 0 Índice analítico 1 66 1 68 consciência da determinação racional da conduta 209 a cons ciência e o Eu self ver Identidade 283ss 320 3523 3556 3634 3735 674 cf 397 447 consciência moral 344 498 584 591 cons ciência intenção e vontade 3825 435ss 454 consciência do interes se 59 1 Consentimento consentimento e obediência civil 581 ss Constância constância de nossas impressões e a existência contínua e distinta dos corpos 23 l ss Contigüidade contigüidade como qualidade que produz associação 3441 contigüidade como fonte de erros 8890 contigüidade como condição da causação 1O1 7 1 1622 205 cf 188 198 contigüidade entre percepções e sua vividez 130 141 463 670 os efeitos da contigüidade na imaginação comparados aos da semelhança e da causação 13 7 ss contigüidade como relação exis tente na natureza independente de e anterior às operações do entendi mento 202 influência sobre a mente das relações de causação e contigüi dade 2697 1 contigüidade e identidade 28893 associação por contigüidade limitada a idéias 3 l 7ss contigüidade entre causa e objeto do orgulho 33844 contigüidade parcialidade e injustiça 375ss 574ss contigüidade unida à semelhança e à causação produzindo simpatia 352 9 relação de contigüidade semelhança e causação nos animais 3612 influência da contigüidade sobre as paixões 380 404 413 427 467ss relação de contigüidade sem reciprocidade 390 Contingência ver Acaso Causa causação Probabilidade contingência e acaso ou indiferença da imaginação 157ss contingência como resultante de causas secretas 165 contingência e probabilidade 168 9 influência da contingência sobre as paixões 3478 4223 Contrariedade contrariedade como fonte de relação filosófica 39 contrariedade como relação filosófica permitindo certeza demonstrativa 978 503 contrarie dade entre existência e nãoexistência 206 contrariedade e probabilida de 1649 43940 a contrariedade como procedente da operação secreta de causas contrárias 1 65 440 inexistência da relação de contrariedade entre objetos reais 279 contrariedade entre entendimento juízo e ima ginação fantasia 1 8 l ss contrariedade entre orgulho e humildade 3 1 1 2 contrariedade entre amor e ódio 364 efeitos da contrariedade entre paixões 4148 4257 47680 528 cf 537 Contrato original contrato original e obediência ao governo 5879 6001 72 1 Tratado da natureza humana Convenção ver Artificial Artifício Justiça Promessa convenção em oposição a natureza 52930 convenção distinguida de pro messa como condição da justiça 530ss 555 561 590 convenção e lin guagem 53 1 convenção governo justiça natural e civil 565 57l ss 58lss 594 6089 6189 Coragem o fundamento artificial da coragem 612 coragem e orgulho 63941 co ragem sem benevolência 643 coragem como aptidão natural oposta à virtude moral 646ss cf 697 Corpo ver Objeto a idéia de extensão e os corpos 5 l ss as propriedades externas dos cor pos e sua verdadeira natureza 912 68970 695 cf 24 4001 677 poder e necessidade como determinação do pensamento e não dos corpos 190 9 cf 1412 671 as causas da crença na existência contínua e distinta dos corpos 220ss cf 93ss crítica à distinção tradicional entre per cepções e objetos corpos externos 244ss a idéia de corpo como coleção das idéias de qualidades sensíveis constantemente unidas 252ss a filo sofia moderna teoria da distinção entre qualidades primárias e secundá rias e o ceticismo relativo à existência dos corpos 25964 cf 225 a crença na existência dos corpos como diretamente oposta aos argumentos cau sais 264 2989 impressões de reflexão provenientes do corpo 3 1 O qua lidades do corpo como causas de orgulho e humildade 313 31920 332ss 6535 697 qualidades do corpo como únicas causas de orgulho e humil dade nos animais 35962 a necessidade nas operações entre os corpos externos 436ss 6978 qualidades do corpo como uma espécie de bem 528 educação e deveres dos dois sexos relativamente às diferenças entre os corpos do homem e da mullher 610 Costume ver Causa Causação costume como causa da representatividade geral das idéias abstratas 44ss repetição passada costume e inferência causal 128ss l 63ss 188ss 203ss 21 6ss 230ss definição de costume 133 o caráter não reflexivo do cos tume 1335 1 66 costume produzido artificialmente por regras gerais 1345 cf 230 costume e princípio da uniformidade da experiência 135 1 678 tipos de costume ou hábito 146 l 63ss costume e educação 146 8 1 734 costume e repetição voluntária 1 734 costume e probabilidade l 63ss costume e probabilidade não filosófica 1 79ss costume e regras gerais 17980 costume como causa da oposição entre imaginação e juízo 1812 inferência da existência contínua dos objetos a partir do costume distinguida das inferências causais 2301 cf 135 166 abstração dos efei tos do costume pelos filósofos na comparação de idéias 256 costume e paixões 328 387 389 396 423 4545 458ss os dois efeitos do costume na mente facilitação e inclinação 45860 costume e propriedade 543 722 Índice analítico Crença crença como idéia vívida 1 1 5 12lss 1468 1 50ss 1 867 243 66170 definição de crença 125 princípios da crença 128ss crença e costume ou hábito 1323 1 66ss causação como única relação de que deriva a crença e a influência das outras relações 137ss cf 662 ver Causa causação influência da crença sobre a imaginação a vontade e as pai xões l 48ss 4623 624 6645 influência da crença sobre a imaginação 151 influência da imaginação sobre a crença 154 crença e probabilidade 1 631 76 1 867 213ss ver Causa causação crença produzida de outra maneira que pela vividez da idéia l 76ss crença e argumentos longos e abstrusos 1 778 21920 226 496 crença como sensação ou sentimento 1 86 21 67 6635 crença e idéia de existência 186 662 cf 93ss ceti cismo e crença 213ss 25 1 3016 ver Ceticismo crença na existência dos corpos 2205 1 crença e a diferença entre realidade devaneio e poe sia 1516 6623 66970 Critério ver Moral Regras critério de igualdade em matemática 7l ss 676 critério de verdade 297 331 critério racional em moral 496 505 5 1 1 critério de distinção entre natural e artificial 5 13 critério de distinção entre impossível improvável e provável 546 critério de avaliação moral 62031 6423 Crueldade crueldade como o mais detestável de todos vícios 645 Curiosidade curiosidade ou amor à verdade 484ss Deliberação ver Intenção Vontade deliberação e vontade 435ss deliberação e ação 44 78 Demonstração demonstração e conhecimento opostos à probabilidade 578 98 1 1 79 124 142 15960 1 86 1958 213ss 449 68490 demonstrações mate máticas 68ss impossibilidade de se demonstrar a tese da necessidade de uma causa 107ss 2056 demonstração e impossibilidade do contrário 195 cf 199 distinção entre o domínio dos raciocínios demonstrativos e o das determinações da vontade 44950 o prazer das demonstrações 484 5 demonstração e moralidade 5026 as questões de fato como indemonstráveis 503 relações passíveis de demonstração 504 Desejo ver Paixão desejo definido como impressão de reflexão 32 59 4 7 4 desejo como não extenso e indivisível 267 desejo como paixão direta 3 1 1 435 474ss cf 61 3ss 663 desejo de se sobressair em força física 335 desejo da boa reputação 356 366 desejo de justiça 384 desejo de sociedade 397 de sejos que acompanham o amor e o ódio 401ss 416ss 63 1 desejo sexual 723 Tratado da natureza humana carnal 428 527 desejo como paixão calma 4534 desejos calmos con fundidos com a razão 453 desejo como paixão violenta 4548 desejo como resultante da consideração do bem enquanto tal 474 prazer e dor como indispensáveis ao desejo 613 Desprazer ver Prazer Determinação ver Causa causação a abstração e o caráter determinado das idéias 434 60 cf 46 778 99 relação de causa e efeito como determinação da mente 1 1 7 1201 126 13840 160171 1889 198209 250 2989 4367 4414 6934 deter minação necessária nas proposições intuitivas ou demonstrativas 124 destruição da determinação da mente pelo acaso 158 determinação e pro babilidade 16 lss o hábito como determinação de transferir o passado para o futuro 1 67 297 689 determinação e idéia de necessidade 1 89 199 206 674 determinação pela natureza 216 301 determinação da vontade pelas paixões 4535 motivos e paixões que determinam a ação moral 517 525 determinação artificial da ação conforme a justiça 5736 determina ção da ação moral pelo caráter 6145 ver Caráter Moral razão como determinação calma e geral das paixões 6223 Deus Deus como primeiro motor 1923 a idéia de Deus em Descartes e a eficá cia das causas 193 199200 Deus como princípio eficaz 2812 existência de Deus e a idéia de existência de Deus 123 Deus e determinismo em moral 4467 Deus e dever moral 509 Dever ver Moral Obrigação ser e dever ser 509 ação moral e sentido do dever 5 l 8ss dever e paixão na determinação da ação moral 557ss produção de um sentido do dever 5723 promessa obediência civil e dever 58 l ss Diferença ver Distinção diferença como negação de uma relação 39 diferença de número e dife rença de espécie 39 diferença e princípio da distinção e separabilidade das idéias na imaginação 423 49 62 66 95 2656 distinção de idéias na ausência de uma diferença real 49 95 identidade e diferença 284ss Direção direção das paixões ver Paixões Direito ver Justiça Leis origem do direito e da obrigação moral 330ss 522ss 61 67 ausência de direito nos animais 3601 erro de direito e imoralidade 500 moral e di reito 501 moral direito e artifício 525ss 5713 580ss 61 67 o direi to de posse 548ss 5949 direito natural 559 565 582 as três leis fun damentais do direito natural 565ss direito positivo e governo 599606 direito internacional 60612 724 Índice analítico Distância os sentidos e a determinação da distância pela razão e pela experiência 847 224 670 6745 6767 distância e diferença 4278 influência da distância sobre as paixões 375ss 463ss distância parcialidade e sim patia 574ss 6216 6426 Distinção ver Diferença distinção e separação na imaginação 423 49 82 95 108 1 1 56 240 255 2656 672 distinção de razão 4850 69 277 Divisibilidade divisibilidade infinita do espaço e do tempo 51 ss divisibilidade infinita da extensão 66ss 6956 Dogmatismo ceticismo e dogmatismo 220 Dor ver Prazer Drama ver Teatro Tragédia imaginação crença e paixão suave nos espetáculos dramáticos 146 Educação a natureza e os efeitos artificiais da educação 1458 152 1 734 cf 387 8 437 moral e educação 32930 5723 5856 609612 618 educação e paixões 3878 o caráter artificial da justiça e a educação 5234 529 30 541 562 5723 5856 60912 618 cf Convenção Eficácia ver Causa poder e eficácia 1 19 132 eficácia das causas 1 89202 299 a idéia de eficácia como não derivada da razão l 90ss eficácia e idéia de Deus 28 1 Eficiente ver Causa causação Egoísmo egoísmo amor a si próprio ou interesse próprio moral e justiça 52042 55862 5723 582ss 6069 6226 cf Amor egoísmo e generosidade restrita 534ss 6256 Eloqüência crítica ao uso da mera eloquência em lugar da razão 19 efeitos da eloqüên cia sobre a imaginação e as paixões 20 144 1 53 462 6501 66970 Emoção ver Paixão definições e distinções entre emoção paixão e afeto 17 45 340 3512 364 384 392 401 403 40710 427 430 4501 4534 463 473 615 669 Entendimento ver Fantasia Imaginação Razão distinção entre entendimento e fantasia 121 181 300 o erro da divisão usual dos atos do entendimento 125 n6 entendimento e causação 197209 292 2989 4413 505 6734 relação entre as operações do entendimento 72 5 Tratado da natureza humana e os princípios da contigüidade e semelhança 202 entendimento nos homens e nos animais 20912 entendimento probabilidade e ceticismo 21 320 251 301 6 44950 476 694 entendimento e a crença nos obje tos externos 2301 244 25 1 entendimento imaginação e razão 297 306 44952 476 entendimento e regras gerais 328 408 670 cf Regras simpatia e entendimento 3545 oposição entre entendimento e imagina ção 406 n6 a insuficiência do entendimento na determinação da vonta de 501ss entendimento e afetos 529ss 533ss entendimento moral e justiça 529ss 5334 Entrega entrega simbólica na transferência da propriedade 554 Erro explicação fisiológica do erro 88 os erros da geometria 100 relações de semelhança contigüidade e causação como fonte de erros 88ss 2367 erros decorrentes do uso de regras gerais 1 791 83 erros populares 204 2556 609 erro e probabilidade 2 l 3ss o erro a respeito da identidade dos objetos e do Eu 236ss 285ss imaginação como fonte de erros 298306 o erro de distinguir o poder de seu exercício 3468 o erro comum dos filósofos em relação às paixões e à razão 4534 os erros do juízo e a moral 496ss a justiça e os erros que resultam da escolha do bem mais próximo 577ss Escolástica filosofia escolástica 58 66 70ss 208 271 276 3 3 1 2 doutrina escolástica do livrearbítrio 346ss 443ss 453 Espaço ver Extensão espaço como espécie de relação filosófica 389 97 1012 idéias de espa ço e tempo 5 1 ss crítica à doutrina da divisibilidade infinita do espaço 54ss as partes do espaço como impressões de átomos coloridos e sóli dos 645 vácuo ou espaço vazio 66 8 lss 90ss espaço e extensão 267ss a influência da proximidade e distância no espaço e no tempo sobre a imaginação e as paixões 463ss Esperança esperança como paixão direta 3 101 4356 474ss 613 a esperança e o medo como resultantes de um bem ou mal incertos 4 7 6 a esperança e o medo resultantes da mistura de alegria e tristeza 4 77 Espírito espirituosidade Wit espírito como causa de orgulho 331 espírito como causa de amor 629 6478 650 Espíritos animais 54 88 128 154 168 218 236 244 263 301 309 324 387 389 4078 45560 483 669 72 6 Índice analítico Espontaneidade distinção entre liberdade de espontaneidade e liberdade de indiferença 443ss ver Liberdade Esquema ver Justiça esquema das regras da justiça oposto aos atos isolados de justiça 537 6189 Essência confusão e distinção entre circunstâncias essenciais e acidentais 1 8 1 2 cf 207 Estado de natureza ficção filosófica do estado de natureza 5334 estado de natureza como estado imaginário anterior à sociedade 541 2 justiça sociedade e estado de natureza 573 cf Sociedade Estima estima pelos ricos e poderosos 39 l ss simpatia estima e consideração desinteressada do caráter 512 620 656 65960 cf 3956 Eu Selj ver Alma identidade mente idéia de eu 222 identidade do eu 28395 o eu como sucessão ou combinação de percepções 298 6723 o eu como objeto do orgulho e da humildade 3 1 l ss 333 363 qualidades que produzem o prazer ou des prazer no orgulho e na humildade e sua relação com o eu 320ss 335 3378 3412 4301 o eu e o outro nas paixões do amor e do ódio 363ss 366ss 4301 a vivacidade dos objetos relacionados ao eu 4634 Evidência graus de evidência e probabilidade 1 1 8 1567 1634 1 72 1 769 1 867 21 58 43940 evidência moral 4403 698 Exemplares causas exemplares 204 Exercício poder e seu exercício 36 1923 205 34650 3945 Existência idéias de existência e nãoexistência como as únicas idéias contrárias 39 concepção clara e existência possível 5259 69 existência e unidade 56 identificação entre a idéia de um objeto e a idéia de sua existência 94 percepção ou objeto e existência 82 936 123 484 6734 6901 im pressões e idéia de existência 94 2223 crença e idéia de existência 123 8 186 6614 6901 6945 papel dos sentidos e da razão na formação da idéia da existência dos corpos 2206 aparência e existência 2216 exis tência dos corpos e a imaginação 2275 1 ficção da dupla existência das percepções e dos objetos 244ss existência dos objetos externos na filo 72 7 Tratado da natureza humana sofia moderna 258ss a questão da substância da alma e a existência in dependente das percepções 266 existência real e fatos em oposição a re lações de idéias 484 498 503 Expansão expansão da simpatia natural pelo artifício da justiça 523ss 6 l 6ss Experiência experiência como fundamento em filosofia 2224 684 experiência como fundamento e limite da inferência causal 234 29 88 98 1 10 l 15ss 1578 1 724 190 203 245 279 505 662 684 6889 694 experiência e relação de contrariedade 39 descrição da natureza da experiência 1 1 6 princípio da uniformidade da experiência 1 1 720 134 168 6899 1 ex periência e hábito 1334 experiência como princípio da crença 129 132ss 297 439ss 69 lss a associação de idéias como o efeito imediato da expe riência 142 efeitos análogos da semelhança e da experiência 142 expe riência e educação 147 experiência e fantasia 153 experiências contrá rias e probabilidade 156ss 16387 efeitos da experiência contrastados com os da repetição voluntária 1 734 experiência e memória 1 76 expe riência e regras gerais 1802 135 164 396 experiência e idéia de eficá cia 190ss 203 experiência e o eu selj 2834 definição da experiência como um princípio 297 determinação pela experiência passada 3479 439ss falsa experiência da liberdade de indiferença 444 Experimental experimento método experimental em filosofia 224 3 7 2089 física experimental 684 experimentos que confirmam a doutrina das paixões 366ss experimen tos que não se enquadram em princípios que se busca estabelecer 400 Extensão ver Espaço 54ss distinção entre extensão e duração 612 espaço e extensão 267ss extensão e distância 90 extensão na teoria cartesiana 192 existência externa e extensão 2234 extensão e solidez como qualidades primárias 260 indivisibilidade do pensamento e divisibilidade da extensão 266ss percepções e extensão 26872 Externo existência externa e percepções 934 2001 22 lss 244ss 271 ação como signo externo do caráter 5 1 7 ss Faculdade falibilidade de nossas faculdades e ceticismo 213ss cf 296 faculda des e qualidades ocultas como invenção dos filósofos 2567 Fama ver Reputação Família família como causa de orgulho e humildade 341 4 3546 697 família como causa de amor e ódio 364 família simpatia e sociedade 52630 642 família e origem do governo 57980 72 8 Índice analítico Fantasia ver Entendimento Imaginação Razão fantasia e a liberdade de associação na imaginação 34 35 3 7 48 1589 fantasia e memória 1 135 666 fantasia e entendimento 121 1 8 1 300 66970 fantasia e crença 151 ss 1 73 324 667 66970 fantasia e ficção da dupla existência 249 fantasia e as noções de substância e matéria ori ginal 253 fantasia e razão 2701 299301 fantasia e as paixões 349 374 37680 3901 3923 399 407 41 5 457 462 465ss 477 629 Ficção ver Crença Fantasia ficção da substância 40 ficção e idéia de tempo 634 93 233 ficção da igualdade perfeita 75 ficção de objetos semelhantes e contíguos 140 crença fantasia e ficção 138 l 49ss 181 2423 4623 664 6678 669 70 692 indistinção entre ficções e impressões ou juízos causais na lou cura 153 ficção da existência contínua e distinta dos corpos 226ss fic ção da identidade 233ss 2945 ficção da existência dos corpos como objeto de crença 2423 ficção da dupla existência das percepções e objetos 244ss ficções da filosofia antiga 252ss ficções como esforço de elimi nar a descontinuidade e encobrir a variação 2868 29 12 ficção filosófica do estado de natureza 533 ficção poética de uma Idade de Ouro 533 4 ficção de um domínio pleno ou parcial 568 Filosofia ver Ceticismo Experiência filosofia e ciência da natureza humana 2024 o vulgo o senso comum e a filosofia 23 63 163 1 65 1 63 208 2257 243 470 2557 6023 672 683 filosofia da natureza 24 83 132 310 335 400 404 683 filosofia da natureza e filosofia moral 24 104 2089 3 167 4456 479 488 o desejo do filósofo de procurar causas 3 7 relação filosófica e relação natural 3 89 97ss 122 203 filosofia e experiência 912 132 207 gosto como critério em filosofia 133 o caráter abstruso da filosofia 172 222 68 1 filosofia probabilidade e ceticismo 176 183 213ss a questão sobre o poder ou efi cácia na filosofia l 90ss a questão da existência dos corpos na filosofia 225ss 235 23940 2425 1 filosofia antiga 252ss 449 566 filosofia moderna 257ss 449 crítica às filosofias de Descartes Malebranche e Spinoza 264ss filosofia e religião 2823 304 4456 filosofia e supersti ção 3034 filosofia ceticismo e vida comum 257 3016 filosofia das pai xões e a doutrina escolástica do livrearbítrio 3467 a oposição tradicional na filosofia entre razão e paixão 448ss o prazer da investigação filosófica 4846 semelhança entre a filosofia a caça e o jogo 4879 a divisão da filosofia em especulativa e prática 497 a preeminência da filosofia prática 660 Fim finalidade ou Propósito fim de uma ação e as paixões 20912 4869 499ss fim e identidade 289 90 as paixões os fins naturais e a justiça 5289 5423 5678 5723 justiça governo e fim comum 5778 a virtude e seu fim 61 67 624 628 658 fim agradável e o belo 616 624 729 Tratado da natureza humana Final ver Causa causação causa final 204 Física ver Filosofia filosofia da natureza física e moral 24 104 2069 316 400 479 683 necessidade física e moral 2045 442ss física e moral remetidas a percepções na mente e não a qualidades nos objetos 5089 física experimental 684 Força força e vividez das idéias ver Crença 25ss 29 33 43 125 1 135 128ss 1356 667 a força suave dos princípios de associação 34 crítica às ten tativas de explicação da força ou poder causal 18996 a força de uma pai xão distinguida de sua violência 4548 a força da ação mental distinguida da agitação da mente 669 Formal ver Causa causação causa formal 204 Gênio genialidade como faculdade mágica da alma 48 gênio como alguém altivo e sublime 470 gênio como causa de respeito e apreço 6345 648 cf n6 Geometria ver Matemática 68ss 991 00 6956 Geral idéia geral ou abstrata ver Abstratas abstração idéia de poder em geral 195 noção geral de prazer 460 caráter em geral e vontade 454 caráter em geral e moralidade 512 moralidade e ponto de vista geral 512 540 prazer e desprazer em geral e sua relação com a virtude e o vício 5 1 5 540 Gosto gosto como critério em filosofia 133 gosto como critério para julgar o espírito wit 331 gosto como critério para o estabelecimento de uma causa 544 gosto correto ou errado e moralidade 586 n 10 Governo origem do governo 573ss interesses imediatos e a necessidade do gover no 5 7 46 os governantes e seu interesse imediato na justiça 5 7 6 governo como invenção isenta das fraquezas humanas 578 submissão ao governo ou obediência civil 578ss ausência de governo em algumas sociedades 57880 sociedade sem governo como estado natural do homem 580 ori gem da monarquia como governo civil 580 governo e justiça 580ss justiça como fonte da obediência dos governados 5801 governo e pro messas 5801 5835 587 589ss governo obediência e consentimento 58 1 5878 deveres civis deveres naturais e governo 5823 instituição do governo obediência e cumprimento de promessas 583 585 589ss obrigação do cumprimento de promessas como efeito do governo 583 interesse e obediência aos magistrados 5834 593ss equívoco da hipótese 73 0 Índice analítico de uma promessa ou contrato original como fonte da obediência ao gover no 589ss resistência ao governo 58990 5935 6023 princípios do direito de magistratura dos governantes 595606 Hábito ver Costume hábito como um dos princípios da natureza 212 Hipotéticos argumentos hipotéticos ou raciocínios baseados em uma suposição 1 12 História poesia história e influência sobre a imaginação 152 66970 credibilidade da história 1779 Humano homem relação das ciências em geral com a ciência do homem 1920 305 máxi mas gerais da ciência da natureza humana 878 128 limite do entendi mento humano 912 1 13 insuficiência da razão humana na explicação da causa última das impressões dos sentidos 1 13 credulidade como fra queza mais manifesta da natureza humana 143 percepção do bem pra zer e do mal dor como princípio natural do homem 149 divisão da ra zão humana em conhecimento e probabilidade 157 preconceito como erro da natureza humana 1 7980 homem comparado aos animais ver Ani mais 20912 303 35962 43 13 filósofos e homens em geral 226 238 identidade pessoal como ficção da mente humana 283ss 29 lss a men te humana e a busca por princípios 298ss a inconstância da mente hu mana 3 1 8 a semelhança entre todas as criaturas humanas 352 393 403 incapacidade humana de isolamento e introspecção permanentes 3867 regularidade das ações humanas 436ss leis humanas e divinas 4468 repetição como princípio da mente humana 459 razão e paixão na natu reza humana 4 734 analogia entre a mente humana e um instrumento de cordas 4 76 parcialidade afetiva original do homem e egoísmo natural 517 ss 534ss amor pela humanidade 521 inventividade humana 5245 fragilidade natural do homem e sociedade 525ss os afetos e o entendimen to como as duas partes principais da natureza humana 5 3 3 Humildade ver Orgulho Idade de Ouro analogia entre estado de natureza e Idade de Ouro 534 Idéias origem e classificação das idéias 25ss conceito de idéia em Locke 26 idéias simples e complexas 267 37 relações de idéias ver Relações idéias e sua derivação de impressões anteriores 28 43 59 101 103 128ss 351ss 195 princípios de associação de idéias 34ss 121 3 l 7ss 339ss exceção ao princípio da anterioridade das impressões sobre as idéias 2930 idéias primárias e secundárias 3 1 idéias e impressões de reflexão 3 1 2 73 1 Tratado da natureza humana idéias inatas 3 1 1901 idéias da memória e da imaginação 32ss idéias abstratas ou gerais 4lss divisibilidade das idéias 52 raciocínio acerca de uma idéia e realidade da mesma 58 90 idéias de espaço e tempo 59ss 81 obscuridade das idéias em relação às impressões 59 101 idéias da matemática 65ss 1001 princípios de associação de idéias e explicação fisiológica 88 idéia de existência 93ss 2978 idéia abstrata de existên cia 93ss 6612 relações demonstráveis entre idéias 97ss 503 idéia de causação lOlss idéias da memória como equivalentes a impressões 1 1 1 136 idéia de conexão necessária l 88ss idéia abstrata de poder 195 idéia de corpo e solidez 26l ss idéia de substância 264ss idéia de extensão 26 7 ss idéia de Deus 28 1 idéia de identidade pessoal 283ss dupla relação de impressões e idéias 3 1 79 3214 330 341 2 346 349 367ss 386 41 6ss 430 455 4745 522 6134 associação de idéias e paixões 339 simpatia e conversão de uma idéia em impressão 351352 idéias na men te dos animais 3612 transição das idéias obscuras às vívidas e das dis tantes às próximas 3734 transição de idéias e simpatia 3745 compo sição de idéias por conjunção oposta à união total ou mistura de impressões e paixões 400 idéias e emoções 4079 4267 relações abstratas entre idéias e relações entre objetos 449 5023 mundo das idéias e mundo das realidades 449 idéia como representação e verdade 45 1 484 498 Identidade ver Eu identidade como relação filosófica 38 978 1012 identidade pessoal 222 4 283ss 3 1 12 320 337 354 373 388 6714 identidade e o principium individuationis 232ss constância de impressões e identidade numérica 232 2356 285ss identidade e tempo ou duração 2334 idéia de iden tidade idéia de unidade e idéia de número 2334 sucessão de percepções relacionadas e identidade 236ss impressões intermitentes e identidade 238ss identidade e ficção da existência contínua 238ss identidade e ficção da substância 252ss 285ss identidade da mente e identidade dos objetos 2857 ficção da identidade pessoal 2867 29 lss identidade e objetos variáveis ou descontínuos 2879 1 relações de causação e seme lhança e sua influência sobre a noção de identidade pessoal 2924 me mória como fonte da identidade pessoal 2934 identidade e simplicidade da mente 295 identidade de impressões e paixões 375 Igualdade dificuldades relativas à noção de igualdade 7lss 97 99100 23 1 676 6956 a ficção da igualdade perfeita 448 Imaginação ver Entendimento Fantasia Razão idéias e imaginação 27 327 59 1 135 124 137ss 1 77 2368 241 253 2878 29 12 298 3 1 7 352 3535 3734 376ss 3901 667 699 expe riência e imaginação 30 2978 memória e imaginação 324 1 127 138 9 298 406 n6 6667 imaginação e o princípio de associação de idéias 732 Índice analítico 347 137ss 292 3 1 7 3901 699 imaginação e relação de causação 35 6 108 1 1 722 124 1334 137ss 1 56ss 1 8 1 3 2045 2924 390 441 distinções operadas pelo pensamento e imaginação 42 524 589 62 65 6 68 789 82 9 1 95 99100 108 1 1 722 124 134 1 58 2045 222 2656 292 300 463 626 664 672 imaginação e indivisibilidade da ex tensão 534 58 68 imaginação e existência possível 58 124 283 ima ginação e experiência do tempo 612 233 463ss imaginação e experiên cia do espaço 645 463ss imaginação e sua relação com a matemática 788 1 99100 23 1 676 696 imaginação e entendimento ou razão 132 4 204 298300 406 n6 476 cf 601 imaginação e raciocínio demons trativo 124 costume ou hábito e imaginação 133 1613 1678 1803 2045 2 1 1 297 441 596 crença e imaginação 14856 1705 187 21 1 21 820 24l ss 4889 662 665 667 669 6902 imaginação e paixões 1501 1812 3525 374 376ss 393 3969 4603 476 cf 601 imagina ção e probabilidade 15663 1705 1 87 oposição entre juízo e imaginação 1 8 1 3 relação entre imaginação sentidos e razão na produção da crença na existência distinta dos corpos 22151 ficções da imaginação 233 252 3 29 1 295 299 444 4623 6667 princípios permanentes e princípios variáveis da imaginação 258 identidade pessoal e imaginação 285ss imaginação identidade e finalidade 289 prazeres da imaginação 3 1 9 orgulho humildade e imaginação 323 339 3801 imaginação e simpa tia 3525 3969 4234 6323 635 transição fácil da imaginação das idéias obscuras para as vívidas 3734 376ss 391 piedade malevolência e ima ginação 403ss 415 prazeres da imaginação e dos sentidos nos animais 43 1 inveja malevolência e imaginação nos animais 433 imaginação e vontade 444 rapidez da imaginação oposta à lentidão das paixões 476 imaginação e sua relação com a justiça e o interesse 599600 imaginação mais afetada pelo particular que pelo geral 619 626 imaginação e beleza ou prazer 624 imaginação como sinônimo de pensamento 664 672 Imortalidade crença na imortalidade da alma 1445 Impressões impressões e idéias 25ss impressões simples e complexas 268 exce ção ao princípio da anterioridade das impressões em relação às idéias 29 30 impressões de sensação e de reflexão 3 1 2 1 124 30910 impressão de reflexão e idéia de necessidade 199 impressões e existência externa 221ss impressão de um eu 2223 283ss 3512 impressões dos sen tidos 2235 impressões e existência contínua e distinta 225ss impres sões como existências internas e perecíveis 227 284 impressão da idéia de corpo 2614 impressões originais e causas físicas e naturais 3091 O dor e prazer como impressões originais 3091 O paixões como impressões secundárias ou de reflexão 3091 O divisão das impressões de reflexão em 733 Tratado da natureza humana calmas e violentas 3101 1 impressões de reflexão violentas como paixões diretas e indiretas 3101 1 orgulho e humildade como impressões sim ples e uniformes 3 1 1 associação de impressões 3 1 78 3 78 416 dupla relação de impressões e idéias 321 375 416 associação de idéias e im pressões de reflexão 339 415 conversão de uma idéia em uma impressão na simpatia 35lss 4046 420ss identidade de impressões 375 princí pio da transição entre impressões 376ss 4046 união completa de im pressões e paixões 400 vontade como impressão interna 435 distinções morais e sua relação com impressões ou idéias 496ss impressão distin tiva da moralidade 509ss sentido de justiça derivado de impressões arti ficiais 537 Indiferença indiferença da mente e acaso 1589 440 probabilidade de chances e indi ferença 1 601 62 440 indiferença nas paixões 3 12 3 70 450 455 459 60 477 indiferença como sinônimo de liberdade 436 697 distinção en tre liberdade de indiferença e liberdade de espontaneidade 4434 indiferença da razão em relação às paixões 45 12 cf 495ss Inerência ver Substância Inferência inferência causal ver Causa causação inferência a partir da coerência e regularidade das percepções 1 13 2302 inferência imediata a partir de objetos e longas cadeias de argumentos 1 77 inferência sobre a existên cia externa 2234 249 inferência da impressão à idéia l 1 5ss 126 133 4 1378 1412 1 72 1 87 1967 199 203 2556 4367 4412 4456 687ss contrariedade da experiência e inferência causal 1 656 confusão entre uma inferência do juízo e uma sensação 1423 cf 1823 inferência e probabilidade 18 7 inferência causal nos animais 211 inferência baseada na constância das percepções e inferência baseada na coerência das per cepções 2302 inferência de questões de fato 503 664 Instinto razão como um instinto da alma 212 instinto ou impulso natural em oposição à reflexão ou razão 24 7 instintos naturais e paixões calmas 453 instinto natural de busca do prazer bem 4745 instinto e obediência civil 596 instinto original e distinções morais 513 659 Intenção ver Vontade a intenção propósito ou escolha voluntária nas ações e em nosso juízo moral 3824 442 499 508 501 6489 intenção vontade e promessa 5624 Interesse ver Justiça interesse e moral 512 interesse como fonte da justiça 536ss 565ss interesse obrigação natural e obrigação moral 539ss 5845 interesse e 734 Índice analítico promessas 558ss interesse e obediência civil 578ss interesse e casti dade 61 12 Intuição intuição e demonstração nas relações filosóficas 98 a suposta intuição da necessidade de uma causa 10710 205 intuição relativa à relação de causação 1 19 intuição e crença 124 Inveja inveja como paixão indireta 3 1 1 distinção entre inveja e malevolência 406ss origem da inveja 41 1 Irregular irregularidade ver Regular regularidade Juízo ver Entendimento juízo concepção e raciocínio como atos do entendimento 125 n6 sistema de realidades como objeto do juízo 138 confusão entre inferência do juízo e sensação 1423 regulação do juízo pelas regras gerais e sua oposição à imaginação 1803 contrariedade entre a razão e as paixões apenas quando estas são acompanhadas de juízos 4512 498500 juízos como percepções 496 moralidade e juízo 5091 O juízo e entendimento como remédio para a irregularidade dos afetos 529 faculdade de julgar e memória 6523 Justiça justiça como virtude artificial 5 1 7ss 525ss 537 565ss 572 659 mo tivos do ato de justiça e consideração pela justiça 5 1 723 sentido de jus tiça educação e convenções 5234 analogia entre regras da justiça e leis naturais 5245 vaidade piedade e amor como paixões sociais e favoráveis à justiça 532 justiça e estado de natureza 5336 benevolência e gene rosidade irrestritas e o sentido de justiça 5345 sentido de justiça e ra zão 536 esquema das regras da justiça oposto aos atos isolados de justi ça 537 61 89 justiça e interesse 5379 61 79 virtudes naturais e justiça 537 61 820 influência da simpatia na justiça e na moral 53940 61 79 justiça interesse próprio e interesse público 53940 572 61 79 artifí cio político e justiça 5401 573 justiça e boa reputação 541 definição comum de justiça 565ss justiça virtude e vício 56870 a artificialidade da justiça e a naturalidade da moral que ela implica 5723 659 justiça e governo 573ss justiça civil como derivada de convenções humanas 581 2 obrigação moral da justiça em relação a indivíduos e Estados 6089 Lealdade lealdade rígida como próxima à superstição 562 Leis ver Direito a necessidade moral como essencial às leis divinas e humanas 446 leis eternas e fundamento das distinções morais 505 caracterização da regras da justiça como leis naturais 525 leis do direito natural como inven ções humanas 559 565 56773 580ss 595 73 5 Tratado da natureza humana Liberdade e livrearbítrio ver Indiferença Necessidade Vontade doutrina escolástica do livrearbítrio 346 liberdade e necessidade 435ss 6978 loucura e liberdade 440 liberdade como equivalente a acaso 443 liberdade de indiferença e liberdade de espontaneidade 4434 livrearbí trio e a falsa sensação de liberdade de indiferença 4445 doutrina da li berdade e religião 445 liberdade escolha e moralidade 501 n2 livrear bítrio e virtudes morais 648 ações voluntárias e liberdade 6489 Linguagem linguagem comum 378 1356 157 linguagem e simpatia 3523 lin guagem filosófica e vida comum 5 1 8 linguagem convenção e promessa 5301 correção do juízo moral e correção da linguagem 6212 Lógica lógica como uma das quatro ciências constituintes do conhecimento hu mano 21 684 regras da lógica 208 Malevolência malevolência e inveja 406ss malevolência e piedade como apetites inver sos 416 malevolência e ódio 41 8ss Matemática ver Geometria idéias de pontos matemáticos 64ss definições e demonstrações da ma temática 68ss possibilidade e existência dos objetos matemáticos 689 1001 demonstrações da geometria 7lss matemática e imaginação 74 5 23 1 graus de certeza na geometria aritmética e álgebra 99100 valor da geometria 100 relação de impressões e idéias sobre objetos matemáti cos 1001 a necessidade na matemática 199 matemática e probabilida de 213ss Matéria matéria força e movimento na filosofia cartesiana 1923 matéria origi nal ou substância na filosofia antiga 252ss matéria e mente 264ss percepções sem conjunção com a matéria 268ss pensamento e matéria na filosofia de Spinoza 27lss matéria e movimento 278ss ações ne cessárias da matéria como uma determinação da mente 4367 necessida de nas ações da mente e nas ações da matéria 436ss 446 Material ver Causa causação causa material 204 Medo medo como paixão direta 4745 medo e a probabilidade de um aconteci mento 4 75 medo como resultado da mistura de alegria e tristeza 4 76ss Memória memória e imaginação 32ss 1 1 35 138 148 n 7 2423 2978 406 n6 666 memória e preservação da ordem e posição das idéias simples 334 idéias da memória como equivalentes a impressões 1 1 12 memória e cren 73 6 Índice analítico ça 1 1 5 sistema da memória e dos sentidos 138 oposição entre memória e imaginação 148 n 7 406 n6 memória e raciocínio demonstrativo 1 86 memória e crença na existência dos corpos 23 12 2423 memória como fonte da identidade pessoal 2945 memória e sua relação com a virtude e o vício 6523 memória e caráter 6523 Mental mente ver Alma Eu Identidade mundo mental e mundo natural 2089 264 4001 emoções da alma e raciocínio da mente 21 89 mente como feixe de percepções 240 285 293 6705 imaterialidade da mente 26483 idéia da substância da men te 2656 relação entre pensamento ou mente e extensão 266ss a dou trina espinosista da imaterialidade da alma ou mente e a dos teólogos 272ss pensamento ou mente e ação 2778 movimento matéria e pen samento ou mente 278ss ininteligibilidade da questão acerca da subs tância da mente 282 mente como uma espécie de teatro 285 mente com parada a uma república ou comunidade 2934 analogia entre a mente e um instrumento de cordas 476 prazer ou desprazer frente às qualidades mentais e sua relação com a virtude 614 princípios mentais duradouros e sua relação com a virtude 614 similaridade da mente de todos os ho mens em seus sentimentos e operações 615 controle da mente sobre suas idéias e crenças 662 Mérito ver Moral mérito e necessidade ou constância nas ações humanas 44950 mérito motivos e a moralidade das ações 517 ss Metafísica metafísica e ceticismo 20 tese metafísica sobre a existência possível de tudo que a mente concebe 58 cf 688 tese metafísica sobre a matéria e a extensão 82 filosofia e retórica na metafísica 20 8990 3001 518 cf 3001 449 a substância pensante na metafísica 223 a natureza da alma na metafísica 2689 283 285 a parte metafísica da ótica 409 primazia da razão sobre a paixão na metafísica 449 o erro comum dos metafísicos relativo à determinação da vontade 454 Milagre milagre oposto a natureza 5134 Modéstia virtudes da castidade e da modéstia 609ss Modos modo como idéia complexa 37 modos e substâncias 3941 modos ou modificações em Spinoza e para os teólogos 2747 Monarquia monarquia inicial de todos os governos 580 monarquia e sucessão do poder 5989 6024 73 7 Tratado da natureza humana Moral limitações da filosofia moral em relação à filosofia da natureza 24 2089 3 1 6 filosofia moral e a prioridade das causas em relação aos efeitos 104 a causação aplicada a fenômenos morais e naturais 1 69 necessidade moral e necessidade física 2045 4402 existência nãoespacial de uma refle xão moral 268 a moral e sua relação com dor e prazer 32932 510ss 53940 5567 586 6147 6201 648 moralidade e natureza 3293 1 344 5048 5 1 14 5283 1 539ss 56673 580ss 589ss 6023 6089 642 6589 prazer beleza natural e moral 334 justiça e eqüidade moral como base da relação de propriedade 344 evidência moral baseada na regularida de das ações humanas 4408 698 moral religião e necessidade 4458 combate entre paixão e razão na moral 449 distinções morais e razão 495ss 5 1 1 6201 distinção entre bem e mal morais como uma percepção 496 51 O distinções morais pela justaposição e comparação de idéias ou dedu ção racional 496ss 6201 influência da moral sobre as ações e as paixões 497 moral filosofia especulativa e filosofia prática 497 juízos equivoca dos ou erros de fato e ações imorais 499502 erro de fato erro de direito e moralidade 5002 liberdade ou escolha e moralidade 501 n2 moralidade e demonstrações 503 503 n3 moralidade como sinônimo de obrigação 503 distinções morais e sentimento moral 506 509ss 524 539 5567 586 614 6201 6293 1 animais e moralidade 5078 ser e dever ser 509 caráter e moral 512 6145 6293 1 6579 ver Caráter interesse e moral 512 princípios simples e gerais das noções morais 5 1 23 consideração da ação externa e dos motivos internos na avaliação moral 5179 524 571 6145 sentido moral e dever 519ss justiça e moral 520ss 562 ver Jus tiça beleza ou deformidade morais 525ss 53940 propriedade como uma relação moral e nãonatural 53 1 554 56673 simpatia e moralidade 539 40 5845 6089 615ss 6579 ver Simpatia moral e promessas 555ss ver Promessa moral e paixões 5712 obediência civil e obrigação mo ral 578ss 589ss 6025 61 67 moral educação e os políticos 585 moral dos príncipes 6079 obrigação moral e castidade 60912 virtudes natu rais e moralidade 61 3ss aptidões naturais e virtudes morais 646ss Motivo ações e os motivos 436ss inferência das ações aos motivos e viceversa 440ss motivos que determinam a vontade e liberdade 444ss 448ss ver Vontade motivos ações e mérito 5 1 7ss motivo ação e sentido do de ver ou moralidade 5 1 7ss 557 motivos para os atos de justiça ou hones tidade 520ss motivos para atos de justiça e sentido do interesse 529ss motivos para os atos de justiça simpatia e aprovação moral 53940 Movimento Deus como primeiro motor do universo 192 movimento como qualidade primária 2601 movimento matéria e pensamento 2 78ss 73 8 Índice analítico Mulher mulher na sociedade matrimonial 3424 piedade ou compaixão na mu lher 404 423 mulher belo sexo como naturalmente agradável 459 modéstia e castidade na mulher 60912 capacidade do homem de propor cionar prazer como verdadeira fonte do amor da mulher 6546 Natural natureza relações naturais e relações filosóficas 3 79 2034 natural e artificial 1478 5135 5245 5283 1 565 5678 58 13 613ss 659 ver Artificial artifício operações da natureza como independentes do pensamento e raciocínio 202 complexidade da natureza 208 hábito como um dos prin cípios da natureza 212 determinações da natureza 2 1 6 a natureza como moderadora do ceticismo 220 raciocínios falsos como naturais 258 mundo natural e mundo intelectual 264 natural e original 3 1 46 403 orgulho e humildade como determinações da natureza 3 1 4ss 320ss princípios da natureza 3 1 6 513 567 inconstância da natureza humana 3 1 8 nature za e moralidade 32930 natural em oposição a milagroso 5 135 natural em oposição a raro ou inabitual 5135 5245 distinção equivocada da virtude como natural e do vício como nãonatural 5145 natural em opo sição a civil 514 n4 5678 direito natural 5245 559 565 5823 na tureza como aquilo que é comum a uma espécie 5245 estado de nature za como ficção filosófica 5334 estado de natureza justiça e propriedade 5412 cumprimento de promessas como regra moral nãonatural 555ss obrigação natural e obrigação moral 5578 564 567 5812 584ss 590 1 6089 61 79 virtudes e vícios naturais 569 613ss deveres naturais e deveres civis 5813 obrigação natural e interesse 5901 direito natural e direito internacional 6067 aptidões naturais e virtudes morais 646ss Necessidade conexão necessária e causação 105ss 1 1 69 1 65 181 188ss 693 697 8 ver Causa causação necessidade em oposição a acaso 1 63ss neces sidade e regularidade das ações humanas 435ss 6978 operações necessá rias da matéria como uma determinação da mente 188ss 436 necessidade e livrearbítrio 435ss ver Vontade constância das ações ou necessida de associada a motivos temperamento e circunstâncias 437ss necessi dade da ação e liberdade 4446 necessidade na matéria e na mente 445 6 necessidade religião e moral 4458 Nomes ver Palavras Obediência ver Governo origem do governo e da obediência civil 576ss 657 Objeto ver Corpo existência dos objetos externos 220ss existência dos objetos externos e imaginação 226ss opinião do senso comum sobre percepções e objetos 739 Tratado da natureza humana externos 226 235 238 242 2867 distinção filosófica entre percepções e objetos 244ss qualidades primárias e secundárias e objetos externos 25964 conhecimento dos objetos por intermédio de uma percepção 271 2 2734 relações comuns aos objetos e às percepções 274 distinção entre objetos e causas do orgulho e da humildade 3 1 lss 320ss 3379 365 objeto do amor e do ódio 363ss Obrigação obrigação da justiça e obrigação moral 539ss obrigação moral e obriga ção natural 539ss 580ss 589ss 5923 6023 6089 obrigação e pro messa 555ss 593ss ver Promessa ações virtuosas e obrigação moral 556 obrigação e sentimentos 5567 obrigação natural e paixão natural 5578 5845 obrigação como não admitindo gradação 568570 obediên cia civil e obrigação moral 580ss 589ss 593ss 6025 61 67 obriga ção moral e castidade 60912 Ocasião ocasião como causa real 204 Ocupação ocupação e propriedade 543ss Ódio ver Amor Orgulho e humildade as paixões de orgulho e humildade 309ss orgulho e humildade como impressões de reflexão violentas e indiretas 3 1 01 objetos e causas do orgulho e da humildade 3 1 1 ss 3145 320 3267 3368 causas do or gulho e da humildade como naturais e nãooriginais 3 1 56 causas do orgulho e humildade e suas relações com prazer e dor 3 l 9ss 32932 614 orgulho como sensação prazerosa e humildade como sensação dolorosa 320ss orgulho e humildade como paixões derivadas de uma dupla rela ção de impressões e idéias 321 limitações do sistema das paixões do orgulho e da humildade 324ss influência de regras gerais e do costume sobre o orgulho e a humildade 3278 orgulho e humildade e suas rela ções com a felicidade e a infelicidade 3289 virtude e vício como causas do orgulho e da humildade 32932 5 12 influência da beleza e da defor midade na produção de orgulho e humildade 3327 influência das rela ções de semelhança contigüidade e causação na produção do orgulho e da humildade 33844 papel da associação de impressões na produção do orgulho e da humildade 33944 orgulho pelo país ou terra natal 341 orgulho pelos amigos e parentes 3412 orgulho pela família 3423 372 orgulho pela riqueza 342 34450 orgulho pela propriedade 34450 opi nião alheia como causa do orgulho 3509 orgulho e humildade nos ani mais 35962 orgulho e humildade e suas relações com o amor e o ódio 365ss 374 401 4248 512 6289 propensão maior da mente para o 740 Índice analítico orgulho do que para a humildade 4245 qualidade virtuosa da mente na produção de orgulho ou amor e da viciosa na produção de ódio ou humil dade 614 orgulho humildade e simpatia 6289 6326 virtudes e vícios do orgulho e da humildade 63 l ss orgulho humildade e suas relações com o eu e com os outros 63641 mérito e demérito do orgulho e da humildade 63641 Original impressões de sensação como originais 3 1 2 impressões originais e se cundárias 30910 distinção entre original e natural 3 1 45 instinto ori ginal da mente ao bem 4 7 4 contrato original ver Contrato original Paixões paixões consideradas como impressões 2526 275ss paixões prazer e dor ver Prazer 32 1456 149ss 223 3101 319ss ver Orgulho 365ss ver Amor 4 74ss 613ss influência da crença sobre as paixões l 49ss paixões suscitadas pela poesia 1536 imaginação e as paixões 1812 34 7 50 373ss 46074 4778 distinção entre paixões calmas e violentas 309 1 1 453ss paixões diretas e indiretas 3 l lss 47484 paixões e costume 3278 45860 influência das regras gerais sobre as paixões 328 as pai xões e a relação de contigüidade 339ss 404 46374 5738 efeitos da in certeza sobre as paixões 34 79 4578 4 7 584 6134 paixão e emoção 369 70 paixão e simpatia ver Simpatia 3509 615ss 6446 6537 efeitos da intenção nas paixões 3825 direção das paixões 4168 429 560 ver Po lítica paixão e sexo 4283 1 paixões diretas e vontade 435ss cf 5567 suposto combate entre as paixões e a razão 44854 4734 6204 cf 498 paixões como motivos que influenciam a vontade 44854 51 89 5703 paixão definida como emoção violenta 4 73 contrariedade entre as paixões 47484 52730 metáfora das paixões como instrumento de cordas 476 7 paixões e virtudes artificiais 5215 529ss 565 direção das paixões alterada pela convenção ver Artificial artifício Convenção 5323 560 5 65 incapacidade da vontade de alterar paixões 5 567 paixões inatas 68 6 Palavras Nomes ou Termos relação das palavras com as idéias 40 4450 89 122 143 196 686 pa lavras sem sentido 2567 686 694 cf 299 Passivo passividade passividade dos sentidos 1012 hábitos passivos e hábitos ativos 459 60 obediência passiva e resistência 5923 Patriarcal governo patriarcal 580 Pensamento ver Idéia Imaginação Percepção pensamento como sinônimo de consciência 25 674 distinção entre sen tir e pensar 25 685 pensamento e idéias 35 37 6856 693 distinção 74 1 Tratado da natureza humana do pensamento e distinção real 42 195 672 curso usual ou natural do pensamento 48 1212 140 2379 2525 26870 288 320 340 344 350 3769 385 387 390l 403 415 4567 463 4658 471 476 480 l 599 604 699 percepção como objeto do pensamento 94 percepção distinta da atividade do pensamento 1O1 movimento irregular do pensa mento 121 149 pensamento e memória 136 princípios de associação do pensamento 137 3 1 7 361 699 determinação do pensamento e ne cessidade 1 58 444 694 pensamento e relação de causação 158 1612 199 2012 contrariedade no pensamento produzida por uma oposição entre imaginação e regras gerais 1 823 pensamento e sentimentos 1 86 21 89 pensamento nos animais 209 4323 pensamento e crença 217 667 princípios regulares da imaginação como fundamento do pensamen to e da ação 258 pensamento e conjunção local com a matéria 266ss impressões e idéias como o universo do pensamento em Spinoza 275 a concepção do pensamento como ação da alma 277 hipótese sobre a causa das percepções ou pensamentos 278ss fluxo do pensamento e identida de pessoal 285ss 363 6734 comparação entre o fluxo do pensamento e uma república ou comunidade 293 pensamento vulgar ou do senso comum 346 cf 556 pensamento e sensações de prazer e desprazer 392 3 esforço de pensamento e amor à verdade 485 pensamento como uma das percepções da mente 496 673 685 695 pensamento e simpatia 632 pensamento e raciocínio 663 693 pensamento como sinônimo de ima ginação 664 672 pensamento e vontade 6701 693 pensamento em Descartes 695 Percepção ver ldéia Pensamento divisão das percepções em impressões e idéias 25ss 125 30910 353 493 496 510 6723 6856 divisão das percepções em simples e comple xas 26ss semelhança entre as percepções 26ss relação causal entre as percepções 283 1 59 193 6856 sucessão de percepções e noção de tem po 602 93 critério de igualdade e comparação de percepções 734 676 percepções envolvidas na idéia de existência 935 percepções como todo o conteúdo mental 956 125 223 226 230 245 249 266 496 5 10 685 conhecimento dos objetos através das percepções 956 1 1 3 220ss 2713 6723 percepção e raciocínio 1012 descontinuidade de percep ções e identidade 102 220ss 264ss inferência causal e percepção asso ciada 1 1 lss vivacidade das percepções e crença 1 1 5 1356 14950 186 associação e relação de percepções na inferência causal 1 1 78 sistema de percepções 1389 percepção da dor e do prazer 149 227 30910 poder ou necessidade como qualidades das percepções 200 2023 cf 4412 princípio unificador das percepções internas 2023 distinção e separação das percepções 220ss 264ss 283ss 6724 percepções de qualidades primárias e secundárias 2256 2604 5089 sucessão regular das per 742 Índice analítico cepções e hábito 2301 mente como um feixe de percepções 240 283ss 6734 695 percepções órgãos sensoriais e constituição corporal 2434 substância inerência e percepções 264ss 6734 695 percepções e con junção espacial 268ss percepções originais 3091 O associação de idéias e percepção imediata 339 percepção gerada pela vontade 435 conexão necessária como uma percepção da mente 4412 juízo moral como per cepção 496 5081 O percepção em Locke 6856 Peripatética filosofia peripatética 2547 Pessoa ver Alma Eu Identidade Mente Piedade definição de piedade 403 piedade e simpatia 403ss 41 924 615 pieda de e sua dependência da imaginação 4046 malevolência como piedade invertida 410 41 56 piedade e benevolência 41 67 piedade nos animais 433 piedade como paixão social 49 1 532 Poder poder ou eficácia e causa ver Causa l 89ss o poder e seu exercício 35 6 2045 o poder e seu exercício na doutrina do livre arbítrio e na filosofia das paixões 345ss 393ss o poder legislativo 600ss Poesia poesia e filosofia 134 2567 4134 poesia fantasia e imaginação 139 151 ss 219 3923 4124 472 66970 692 aficção poética da idade de ouro 5345 Política política como ciência do homem em sociedade 21 684 política e artifício 456 5401 5602 5723 5846 589ss 61 89 filosofia política fundada em obrigação moral natural 5812 origem da sociedade política 5934 595ss Pontos possibilidade e realidade dos pontos indivisíveis 589 66ss 8 l ss 89 90 2678 696 Popularidade popular fame ver Reputação Posse ver Propriedade estabilidade da posse como condição necessária à sociedade 52835 542 6 553 5945 posse e propriedade 546 503 557 critérios para determina ção da posse 542ss 546 n3 549 n4 e n5 553ss estabilidade da posse e sua transferência como leis do direito natural 565ss 580 585 posse atual e posse prolongada 5489 549 n4 cf 598 n 1 1 princípios que determi nam a autoridade do governante pela posse do poder 595ss Prazer prazer e dor como impressões e como idéias 312 223 225 3091 1 474 prazer no sentimento do medo e do terror 1456 prazer e dor como prin 743 editora unesp ISBN 9788571399013 Índice analítico messas 55564 ver Obrigação caráter involuntário e ininteligível da promessa 5558 5623 obrigatoriedade da promessa e o sentido do dever 5578 cumprimento de promessas como lei do direito natural ver Direito 565 580ss 606 obrigatoriedade das promessas como condição do gover no 578ss ver Governo distinção entre obrigatoriedade da promessa e obediência ao governo 5839 promessa e submissão ao governo 5967 Propensão propensão a crer no que é contrário à experiência 1434 propensão da imaginação causada pelo costume que se opõe ao juízo 181 propensão presente na idéia de conexão necessária 199201 propensão da imagina ção na ficção da existência contínua 2323 238 2413 250 propensão da imaginação fantasia na conjunção espacial 26970 propensão da imaginação na identidade pessoal 2858 propensão natural na crença em geral 297 302 3056 relação como propensão de passar de uma idéia a outra 343 propensão à simpatia 351 cf 438 propensão de passar de uma paixão a outra 3745 3778 466 propensão ao orgulho 389 425 propensão para o que está contíguo contrária à justiça 574 5767 pro pensão que mantém o poder monárquico na mesma família 5989 propen são para paixões ternas 6434 Proporção proporção de quantidade ou número como relação filosófica 39 97101 503 descoberta da proporção das idéias como um tipo de verdade 484 Propósito ver Intenção propósito nas ações dos homens e dos animais 1 76 propósito e o caráter artificial das ações 5 1 45 Propriedade ver Posse propriedade definida como espécie de causalidade 344 propriedade como fonte do orgulho 344ss origem da justiça e da propriedade 525ss pro priedade como relativa à moral e ao artifício em oposição à natureza 53 1 541 2 565ss justiça como condição da propriedade 53 1 5412 56573 critérios de determinação da propriedade 54252 546 n3 549 n4 e n5 cf 598 n 1 1 propriedade do próprio trabalho e direito de ocupação 546 n2 propriedade referida ao sentimento e à moral e não ao objeto possuí do 5489 554 transferência da propriedade pelo consentimento 5535 impossibilidade de haver graus na propriedade 56870 Prova razão baseada no conhecimento em provas e em probabilidade 157 163 4 provar demonstrativas e provas sensíveis 484 Prudência dever de submissão ao governo obediência civil como máxima da pru dência 597 prudência como qualidade dos grandes homens 626 prudência 745 Tratado da natureza humana e orgulho 6389 objetivo da prudência 639 prudência como aptidão natural 64950 Público bem público justiça e interesse ver Justiça 461 521 5368 540 560 4 5678 5712 5845 5902 597 6003 612 61 89 630 6578 deve res públicos e privados 585 Punição a punição e o determinismo nas ações humanas 4467 cf 61 O 649 desejo de punição 453 475 Qualidade graus de qualidade como relação filosófica 39 978 107 503 a idéia de substância como coleção de qualidades sensíveis particulares 401 252ss 264ss qualidade produtiva 1 89ss qualidades primárias e secundárias 2236 25864 5089 influência nas paixões da relação entre a qualidade e o sujeito em que a qualidade está situada 3 13ss 3 l 9ss 3546 359 62 366ss 4243 1 614ss 653ss 697 qualidades originais e paixões 3 14ss qualidades operantes causadoras do amor e do ódio 363ss 424 31 5212 614ss 653ss 697 qualidades sensíveis e impressões 400 a necessidade de uma ação como qualidade do observador 4445 necessi dade como uma qualidade inteligível 446 qualidades morais 495ss 50l ss 6 1 4ss sentimentos morais e qualidades morais 5 1 1 3 556 614ss 6201 qualidade moral motivos e caráter 5 1 7 6145 622ss 648 qualidades sensíveis de um objeto e propriedade 566 qualidades morais como naturais 569 justiça e injustiça como qualidades morais 572 ten dência para o bem da humanidade como característica que determina a qualidade moral 617ss 658 qualidades morais e aptidões naturais 646ss Quantidade quantidade ou número como relação filosófica 38 978 107 503 quan tidade e idéias gerais ou abstratas 41 ss 60 19 5 quantidade e divisibilidade infinita do espaço e do tempo 56ss 6956 quantidade e geometria 71 quantidade e probabilidade 1 70 174 quantidade ou figura e localização espacial 268 Questões de fato questões de fato e causalidade 121 1234 226 449 6612 6645 6867 689 69 1 questões de fato e imaginação 1534 questões de fato e proba bilidade 1 73 questões de fato e costume 23 1 69 12 questões de fato e percepções 23940 inferências de questões de fato e comparação de idéias como operações do entendimento 503 questões de fato e moral 5023 508 586 questões de fato e crença 661 6645 69 12 questões de fato e demonstrações 503 690 questões de fato e uniformidade da natureza 68990 746 Índice analítico Raciocínio raciocínio metafísico 20 raciocínio e lógica 21 684 idéias e raciocínio 25 3 1 37 445 47 80 889 1001 1078 1 1 8 1 3 1 136 274 raciocí nio idéias e palavras 89 relação de causação e raciocínio abstrato 98 1078 raciocínio demonstrativo 1001 1 19 197 raciocínio como com paração ou relação entre idéias 1012 1078 3689 raciocínio e percep ção 1012 1 1 8 raciocínio científico ou conhecimento 1 10 raciocínios causais prováveis 1 1 12 1 15 1 189 1234 1313 1467 150 152 157ss 1 73 177 197 204 206 21 67 298 671 686ss raciocínio juízo e con cepção 1256 n6 663 raciocínio costume e crença 1323 1478 1 52 167 182 21 67 23 1 328 raciocínio provável e sensação 133 21 67 669 raciocínio e imaginação 148 n 7 1 856 raciocínio e paixões 1 50 3689 raciocínios por conjetura ou probabilidade de chances 1 57 43940 racio cínios por provas 177 raciocínio demonstrativo em oposição a raciocínio provável 197 2 l 3ss operações da natureza e raciocínio 202 raciocínio nos animais 20912 raciocínio sobre objetos e raciocínio sobre impressões 274 raciocínios sobre objetos e raciocínios morais 439 raciocínio de monstrativo vontade e ação 449ss raciocínios morais 495ss raciocí nio demonstrativo ação e distinções morais 496ss raciocínio abstrato sobre a propriedade o direito e a obrigação 56970 Raiva ver Benevolência relação da raiva com outras paixões 3 1 78 362 3 79 382 384 385 456 benevolência e raiva 4002 cf 63 1 mistura da raiva com outras paixões 41 524 raiva e ódio como paixões inerentes à constituição humana 605 Razão ver Entendimento Fantasia Imaginação distinção de razão 4850 69 277 razão e crença 126ss 1323 140 693 razão imaginação e memória 1478 n7 cf 137ss 299ss 601 razão dividida em conhecimento e probabilidade 157 ss razão e experiência 190 1 693 razão dos animais 20912 650 razão e ceticismo 21 320 299ss cf 183 discussão sobre a determinação da vontade pela razão e pela pai xão 44854 4734 495ss 509ss ver Moral Paixão razão como paixão calma 4535 4 734 5756 6223 razão como descoberta da verdade e da falsidade 498 argumentos da razão pura e argumentos de autoridade 586 Realidade ver Existência os dois sistemas de realidades 13 79 realidade dos objetos externos 220ss mundo das realidades e mundo das idéias 449 verdade como conformidade de nossas idéias dos objetos com sua realidade sua existência real 484 Rebelião ver Resistência interesse obediência civil e rebelião 5859 rebelião e usurpação como fundamentos de um governo 5956 legitimidade da rebelião sinônimo de revolução 6026 74 7 Tratado da natureza humana Reflexão ver Pensamento Razão impressões de reflexão ver Impressão crença e reflexão 217 reflexão ou razão e imaginação 2489 o artificial como aquilo que resulta da refle xão 5245 alteração da direção das paixões pela reflexão 5323 papel da reflexão sobre a tendência de um caráter ou paixão para o bem da humani dade 629 correção da aparência sensível dos objetos pela reflexão 643 Regras regra geral e as relações de semelhança contigüidade e causação 140 re gras gerais e probabilidade 1 7 45 regras gerais e probabilidade não filosó fica 17980 regra geral no juízo e exceção na imaginação 1803 regras para se julgar sobre causas e efeitos 1825 206ss cf 670 regras das ciên cias demonstrativas e probabilidade 21 3ss influência das regras gerais sobre o orgulho 3278 6378 640 entendimento e regras gerais 328 408 66970 influência das regras gerais na estima pelos ricos e podero sos 3967 regras gerais e simpatia 4056 633 influência das regras ge rais sobre os sentidos 408 regras gerais da conduta e leis ou regras da justiça inflexíveis imutáveis 5701 659 adesão excessiva a regras ge rais 5903 60lss 61 12 interesse geral na obediência civil e regras gerais 595 6012 regras do direito internacional 6069 regras morais e justi ça 6089 regras gerais da moral e interesse pessoal 6223 regras gerais caráter e imaginação 6245 regras da boa educação 63 7 regras gerais e a distinção entre ficção e realidade 66970 Regularidade ver Uniformidade regularidade da reunião das idéias 345 ver Associação regularidade na experiência 1 1 6 228ss 436ss regularidade do entendimento e irregularidade da imaginação 1 823 princípios regulares e irregulares 258 falta de regularidade nas paixões ou afetos 3 1 8 328 41 1 529 59 1 regularidade nas ações humanas 437ss 444 448 regularidade na conduta produzida pelas convenções humanas especialmente pela jus tiça 529ss 5767 Relação relações de semelhança contigüidade e causação 345 38 40 489 88 90 121 1 3 1 137ss 188 1978 2025 2368 2925 3 1 7 3389 352ss 38891 relação de causa e efeito 357 39 102ss l l l ss 123ss 137ss 1 57ss 1 86ss 203ss 226 241 245 24950 279 282 28990 2925 450 6612 686ss relações como um gênero de idéias complexas 37 relação natural e relação filosófica 379 979 122 2034 268 relação entre idéias palavras e hábito 47 relação entre percepções e objetos ex ternos 545 956 202 220ss 252ss 2735 relações de quantidade na geometria 71 6956 relação de igualdade 73 23 1 6956 relação entre idéias 878 236 2524 286ss cf 368ss relações envolvidas na noção 748 Índice analítico de tempo 93 tipos de relações filosóficas 97102 relações intuitivas e demonstrativas de idéias 98101 107 3689 449ss 488 498ss 536 relações de contigüidade e prioridade temporal na idéia de causação 103 5 687 6934 conexão necessária e relação de causação 1056 1 88ss 2045 aplicação da relação de causa e efeito às paixões 106 relação de causação e crença l 15ss 125 n6 186 66 12 6902 conjunção cons tante como relação pertencente à noção de causação l l 6ss l 57ss l 86ss 245 279 282 687 6934 relação de causação e questões de fato 121 1234 226 449 6612 6645 6867 689 69 1 relações entre impressões idéias e crença 123ss 241 relação de causação e costume 126 138ss 1868 68990 relação transição ou associação da fantasia 131 ss 286ss regras gerais da relação de causação 206ss relação de identidade 233ss 286ss relações envolvidas na noção de mente 240 relação de conjunção espacial 268ss dupla relação de idéias e impressões nas paixões 3 1 79 32l ss 34l ss 367ss 383ss 41 5ss 430 455 474ss 512 5212 613 4 relações envolvidas na noção de propriedade 344ss 3689 53 1 546 552 554 5668 relações morais 495ss 53 1 570 Religião religião natural e sua dependência da ciência do homem 21 religião cató lica romana 130 5545 crença e religião 141 prazer em sentir medo na religião 1456 argumento contra a religião cristã 1 789 religião e filoso fia 2823 304 4457 63940 liberdade e necessidade na religião 445 na tureza e religião 513 humildade como virtude na religião cristã 63940 Repetição repetição passada costume e causação 128ss 1 63ss 1 88ss 203ss 2 l 6ss 230ss conversão do prazer em dor ou da dor em prazer pela repe tição 45860 repetição como princípio da mente humana 459 Representação idéias como representações das impressões ou objetos 27 28 31 523 54 63 125 136 143 190 194 idéias abstratas e representação 4lss 60 460 percepção idéia ou impressão oposta a representação de objeto 136 sentidos e representações 22l ss opinião da dupla existência re presentante e representada 235ss as idéias dos afetos alheios como con vertendose nas impressões que elas representam 354 as paixões não contêm qualidades representativas 451 representação e simbolismo 554 5 ver Simbólico símbolo representação distinguida da crença 690 Reputação amor à boa reputação 350ss reputação explicada pela simpatia 35lss boa reputação orgulho e simpatia 3545 cf 366 638 reputação como causa de amor ou ódio 3 72 cuidado com a reputação como motivação de agir conforme a moral e a justiça 541 2 610 749 Tratado da natureza humana Resistência ver Rebelião resistência justificável ao poder 58992 6026 interesse no governo e aversão à resistência 594 impossibilidade de estabelecimento de regras de legitimação da resistência 6023 Respeito respeito pelos ricos e poderosos 3936 respeito e desprezo 4248 cf 634 respeito pelo inimigo 512 respeito pelo homem virtuoso 519 respeito pela justiça 520 5712 respeito pelo interesse público 536 respeito humano natural e justiça 619 respeito humano como qualidade dos grandes ho mens 626 respeito humano como qualidade dos homens bons 643 644 Responsabilidade liberdade determinismo e responsabilidade 446 Revolução ver Rebelião Resistência Riqueza riqueza como causa do orgulho 3 13 3 1 5 332 342 3501 3545 rique za e propriedade 34450 estima pelos ricos como resultante da simpatia 39 lss cf 655 Sálica lei sálica como lei fundamental e inalterável 601 Satisfação orgulho e satisfação 3258 satisfação proporcionada pelo caráter virtuo so 33 1 5102 5 1 5 614 riqueza e a satisfação de poder proporcionar pra zer 346ss expansão da satisfação pela simpatia ver Simpatia 392400 41 89 53941 idéia de nossa própria satisfação diminuída pela satisfação de outrem ver Inveja 41 1 maior satisfação da paixão pela sua contenção na moral e na justiça 5323 53941 565 cf 560 Semelhança ver Relação semelhança como princípio de associação de idéias 347 88 137 seme lhança como relação filosófica 38 97 98 503 relação de semelhança como fonte de erros 8990 cf 2369 n6 influência da semelhança entre im pressão e idéia na vivacidade da idéia 129 1 3 1 2 137ss 14lss efeitos da relação de semelhança na crença e na probabilidade 137ss l 70ss 180 1 l 96ss raciocínio e graus de semelhança 1 756 relação de semelhan ça sua anterioridade e independência em relação ao entendimento 202 semelhança das percepções e sua identidade ver Identidade 232ss 285ss 375 semelhança entre percepção e objeto externo 24950 cf270 relação de semelhança na conjunção espacial 26970 semelhança entre idéia e impressão a propósito da idéia de substância 265 produção da relação de semelhança pela memória 293 semelhança como única fonte de relação entre impressões paixões 3 1 8 378 relação de semelhança no 750 Índice analítico orgulho e na humildade 338 semelhança entre os homens e simpatia 352ss 388 cf 3967 semelhança e contrariedade entre paixões 418 Sensação Feeling sensação na crença e fantasia 1268 1336 14950 6615 6667 66970 sensação e regras gerais 1 745 sensação das percepções 223ss sensação da identidade do objeto 2867 sensação da associação de idéias e as pai xões orgulho e humildade 339 sensação das paixões 149 424 6256 630 sensação da razão e das paixões 4534 sensação do vício e da virtu de 5081 5 6301 648 sentimento usado como sinônimo de sensa ção 657 sensação do bem geral e do bem particular 6256 sensação na memória e imaginação 666 Sensação Sensation impressões de sensação ver Impressão sensação impressão do prazer e da dor ver Prazer sensação e órgãos da sensação 29 84 1012 312 1 124 30910 sensação como sinônimo de impressão 84 sensação e a idéia de extensão 84ss sensação e raciocínio 1 18 133 confusão da sen sação com inferência do juízo 142 sensação do tato e a idéia de solidez 2623 falsa sensação de liberdade de indiferença 349 444 présensação que permite o conhecimento das paixões em outras pessoas 366 vício e virtude determinados pela sensação ver Sensação feeling 63 7 Sentido sentido moral da virtude e do dever ver Moral 498 5034 50915 5 1 8 9 524 53640 5578 566 5723 627 652 655 6589 cf 361 sentido de justiça 5234 5367 sentido geral do interesse comum 5301 538 5612 sentido do belo 615 657 Senso Comum ou Bom Senso ver NT p 1 78 Cf Vulgo senso co mum e filosofia 470 683 696 senso comum direito e moral 592 597 602 604 bom senso e crença 1 78 1 80 bom senso e razão 446 5634 592 597 604 qualidade do bom senso 364 6378 647 648 Sentidos sentidos como critério em geometria 789 ceticismo quanto aos senti dos 220ss ver Ceticismo crença nos objetos externos e os sentidos 220ss impossibilidade de os sentidos distinguirem entre o eu e o obje to 2223 três tipos de impressões transmitidas pelos sentidos 225 sen tidos memória e entendimento enquanto fundados na imaginação 297 8 correção necessária dos sentidos 622 6423 670 Sexo amor sexual 4283 1 526 uniformidade das ações relativamente ao sexo 437 Signo ver Simbólico símbolo 75 1 Tratado da natureza humana Simbólico símbolo ver Convenção entrega simbólica na transferência da propriedade 554 símbolos e con venções humanas 561 Simpatia simpatia entre as partes como fundamento da identidade dos animais e vegetais 28990 simpatia como qualidade mais notável da natureza hu mana 351 simpatia como comunicação de sentimentos ou paixões 3 51 4 355 358 396400 4045 420 432 462 540 632 65 1 simpatia como conversão de uma idéia em impressão 354 357 420 462 634 influência da simpatia sobre o orgulho e a humildade 354359 relação da simpatia com o eu 3 75 simpatia entre parentes e amigos 3889 simpatia e pos sibilidade de compartilhar da satisfação do próximo 392 393 394 396 400 6 1 6 6546 simpatia enquanto princípio que anima as paixões 397 8 beleza e simpatia 399 6 1 7 656 657 compaixão ou piedade explicada pela simpatia 403ss simpatia no espetáculo da tragédia 4034 simpa tia benevolência e bondade 4 l 8ss 642ss simpatia na busca da verdade 486 simpatia e o suposto amor pela humanidade 5212 cf 6 1 8 629 simpatia na Idade de Ouro 534 simpatia na moral e na justiça 540 585 592 6153 1 632 65760 cf 61 1 642ss vividez e amplitude da simpa tia 6205 632 642ss 656 659 cf Egoísmo simpatia e a comparação conosco como princípios contrários 633ss simpatia com a utilidade e o prazer produzidos pelo entendimento 653 Sociedade sociedade e a justiça 330 5235 525ss 565ss 573ss 578ss 608 616 25 65860 ver Justiça sociedade patrimonial 343 desejo de sociedade 397 necessidade humana de sociedade 348 5256 565 608 sociedade e governo 348 578ss 589ss 593ss sociedade e moral 496 sociedade selvagem e inculta estado de natureza oposta à grande sociedade 526 8 5334 538 539 541 2 543 561 573 580 584 585 593 sociedade humana e propriedade 542ss 553ss sociedade humana e a obriga toriedade das promessas 555ss sociedade política e governo 578 590 593 603 6045 cf 684 importância da castidade para a sociedade 609 12 tendência a promover o bem da sociedade como efeito da simpatia 616 25 641 6436 65760 ver Simpatia Solidez solidez e extensão 646 2614 solidez como qualidade primária 225 260 1 idéia de solidez 2614 analogia entre as idéias e a solidez 400 Substância ver Sujeito substância como idéia complexa 37 substância ou sujeito de inerência e modos ou acidentes 3941 2528 686 inerência de percepções ou quali dades a uma substância ou substratum 40 255 264ss 2867 2725 672 752 Índice analítico 4 69 5 idéia de substância como uma coleção de idéias particulares 401 substância pensante e existência externa 223 264ss simplicidade das substâncias 2535 Sucessão sucessão das percepções e idéia de tempo 606 93 104 2334 4657 472 sucessão como parte essencial da idéia de causação 1046 1 1 67 122 188 1978 2024 230 sucessão de percepções e identidade 237 2523 2868 2904 298 3 1 12 propriedade e direito de sucessão 545 5523 Sucesso paixões e sucesso na realização de um fim 4867 Sujeito ver Substância sujeito e modos 41 sujeito unidade e identidade 233 sujeito de inerência ou substância e acidente 255 sujeito simples e indivisível ou substância imaterial 2725 6723 Superstição superstição e filosofia 303 Tato tato e percepções 25 2634 268 semelhança entre as impressões do tato e as da visão 60 tato visão e idéia de espaço e extensão 645 72 847 90 2678 465 tato e idéia de solidez 2624 Tempo contigüidade no tempo e no espaço 35 207 463ss 574 687 tempo e espaço como relações filosóficas 38 978 1012 idéias de tempo e espa ço 5lss doutrina da divisibilidade infinita do tempo e do espaço 5lss idéia de tempo e sucessão das partes e percepções 57ss 834 923 104 2336 4657 4 72 prioridade temporal da causa em relação ao efeito 104 5 1 88 207 687 tempo espaço e princípio da causação 108 sucessão temporal e identidade 237 2523 26973 286 2904 tempo e proprie dade ou posse 543ss 5689 tempo e obediência civil 5957 Teólogos crença na eternidade e os teólogos 144 crítica dos teólogos ao ateísmo de Spinoza 272ss desaprovação dos sistemas dos teólogos 297 inten ção e fórmula verbal segundo os teólogos 5634 promoção da virtude pelos teólogos 649 Termos ver Palavras Trabalho trabalho e o artifício dos homens 5256 propriedade do próprio trabalho 546 n2 propriedade do trabalho dos escravos 549 trabalho como quali dade mental 650 753 Tratado da natureza humana Tragédia fantasia e crença na tragédia 152 219 simpatia na tragédia 403 paixões na tragédia 669 Unidade unidade e extensão 56 unidade e número 56 99 235 unidade oposta à identidade 2335 ver Identidade unidade da substância espinosista 273 Uniformidade ver Conjunção constante Regularidade uniformidade da mente imaginação 345 1201 1656 cf 163ss 438 uniformidade da natureza 1 1 78 6889 uniformidade coerência e cons tância das impressões 22 732 uniformidade das paixões 3 1 1 uniformi dade e simpatia 351 uniformidade das ações humanas 437ss cf 1 66 necessidade como derivada da uniformidade 4389 Usucapião ver Prescrição aquisitiva Utilidade utilidade e sua relação com a beleza e o prazer 3335 345 361 398 615 6 629 6547 prazer e utilidade da filosofia 4849 cf 210 258 utilida de da estabilidade da posse 542ss 553ss 56970 relação da utilidade com a simpatia e a moral 541 570 618 6268 630 6426 657 658 utilidade do orgulho e simpatia 636ss utilidade das aptidões naturais 6502 653ss Vácuo ver Espaço vácuo como idéia inconcebível 66 8 l ss vácuo na filosofia peripatética 257 vácuo na filosofia newtoniana 677 Vaidade ver Orgulho Verdade verdade ao alcance do homem 20 representações verdadeiras ou falsas de objetos externos 1 13 verdade e paixões 1502 45 13 498 5012 poesia e verdade 1513 imaginação vivaz loucura e verdade 1 53 razão e verda de 213ss 498 matemática e verdade 214 probabilidade e verdade 215 juízo e verdade 21 3218 652 opiniões e critério para a distinção da ver dade 297 3025 raciocínio verdadeiro ou falso na produção de orgulho ou vaidade 33 1 349 curiosidade ou amor à verdade 4849 dois tipos de verdade 484ss 498 moralidade associada à verdade 496ss ações e juízos verdadeiros ou falsos 5001 crença e verdade 692 Virtude ver Moral Visão visão e extensão espaço 59ss 83ss 2678 465 visão e exterioridade dos objetos 84 1423 156 166 224 visão do objeto e sua identidade 233 235 237 754 Índice analítico Vivi dez Liveliness ou Vivacity vividez como critério de distinção entre impressões e idéias 256 289 3 1 3 43 125 133 1 50 353 388 685 vividez como critério de distinção entre as idéias da imaginação e as da memória 33 1 1 35 136 138 1 86 666 vividez da idéia na crença 1 15 12538 1413 1467 150 1524 1 62 3 1 678 1701 1 739 1813 1857 2025 21 67 219 232 2412 297 9 324 3524 3734 4036 4603 4889 574 624 66670 675 6924 contigüidade semelhança e vividez das idéias 1413 463ss vividez de uma impressão ou idéia e sua influência sobre as paixões 1 8 1 2 1 857 3514 3734 3878 393 3979 4036 4201 460 4623 4889 574 6204 634 66970 692 idéia de conexão necessária e vividez 2025 Voluntário vontade ver Caráter Liberdade e livrearbítrio Necessidade vontade e a conversão do poder em ação 36 crença e vontade 1495 1 1 734 662 69 1 693 vontade divina 281 inconstância da vontade do homem 347 escolha voluntária intenção ou propósito nas ações e em nosso juízo moral 3824 442 499 508 501 6489 vontade liberdade e necessidade 43554 6701 6979 cf 3469 violência das paixões e sua influência sobre a vontade 45463 4734 influência da contigüidade e da distância dos objetos sobre a vontade 46374 574 desejo e vontade 475 vontade nos animais 4834 razão e determinação da vontade 499 5059 obrigatoriedade moral e vontade 555ss cf 5879 intenção von tade e promessa 5624 convenções voluntárias 572 582 589 594 609 619 obediência civil e vontade 5879 virtude e vontade 647ss vontade considerada a priori 694 Vulgo Cf Senso Comum o vulgo e a filosofia 23 63 163 165 183 208 2256 235 2556 672 o vulgo e a crença 141 144 235 242 o vulgo e a obediência civil 587 605 755 Adão 6889 Addison Joseph 3 1 8 NT Alexandre o Grande 639 Alma or the progress of the mind 414 e 414 NT Analogy of Religion 459 NT Arnauld Antoine 69 NT IArt de penser ou La Logique 69 NT 685 Artaxerxes 599 Augusto Otávio 441 Bacon Francis 22 684 Barrow Isaac 73 n6 e NT Bayle Pierre 276 n 14 Berkeley George 41 n3 Bíblia passagens citadas 27 141 299 471 689 Borgonha 549 n5 Brutus Marcus 622 Butler Joseph 22 459 NT 684 Capeta Hugo 606 Catão 647 César Júlio 1 1 1 123 1 78 441 606 647 Charnpagne 437 Indice onomástico China 620 Cícero 668 668 NT Cipião 377 Ciro 599 600 Clarke Samuel 109 n4 Condé Príncipe de 639 Copérnico 3 1 6 Cornélia 377 Craig John 178 Cromwell Oliver 382 606 Cyder 392 NT Danúbio rio 550 n5 Descartes 695 Dionísio Dionísio II o Jovem 592 Druso filho de Tibério Júlio César 602 Éléments de Géometrie de Monseigneur le duc de Bourgogne 56 NT Eneida 469 469 NT Épodos de Horácio 482 NT Essais de Theodicée 684 NT An Essay Conceming Human Understanding 1 90 NT 685 Europa 683 75 7 Tratado da natureza humana Farsália 491 Felipe II 592 606 De Finibus 668 668 NT França 596 601 606 Germânico filho de Tibério Júlio César 602 GrãBretanha 548 549 n5 Gracos irmãos Caio e Tibério 377 Grécia 460 621 Guienne 437 Hébridas 550 n5 Histórias de Tácito 15 NT 307 NT Hobbes Thomas 108 n3 439 Horácio 470 e 470 NT 482 e 482 NT Hutcheson Francis 22 684 Índias OcidentaisOrientais 464 Inglaterra 22 29 1 304 439 620 683 Institutas do Imperador Justiniano 551 n5 552 NT De Institutione Oratoria 6 1 6 NT Jamaica 465 Japão 469 Júpiter 376 La Logique ou JArt de penser 69 NT La Rochefoucauld 458 458 NT Lectiones Mathematicae 73 NT Leibniz G Wilhelm 6845 Leviatã 439 Locke John 22 26 n l 61 109 n5 190 n 13 684 685 686 Lucano Marcos 49 1 49 1 NT Lucrécio Tito 634 n3 e NT Luxemburgo Duque de 382 Malebranche Nicolas 1 9 1 n 14 28 1 n 1 6 686 Maléziee Nicolas de 56 n2 Man ilha de 550 n5 Mandeville Bernard de 22 n l 684 Mário Caio 606 Maximes de La Rochefoucauld 458 NT Mémoires du Cardinal de Retz 1 86 NT Milton John 471 The Moralists a philosophical rhapsody 287 NT Nero Ludo Domício Cláudio 441 592 Nicole Pierre 69 NT Odes de Horácio 470 Orange Príncipe de 605 Órcadas 550 n5 Pacífico Oceano 550 n5 Paradise Lost 471 NT Philips Oohn Philips 392 392 NT Platão 439 Poems on severa occasions de Matthew Prior 414 NT Porto 549 n5 Prior Matthew 414 e 414 NT Próculo 551 n5 Quintiliano 616 n l e NT Reno região e rio 54950 n5 República 439 Retz Cardeal de 186 186 NT La Recherche de la vérité 191 NT Rollin Monsieur Charles Rollin autor de Histoire Ancienne 461 NT Roma 597 De Rerum Natura 634 n3 e NT Sabino 551 n5 SaintÉvremond Charles de 639 Salústio Caio 647 Shaftesbury Anthony Ashley Cooper 22 n l 287 n 1 7 684 Sila Lúcio Cornélio 606 758 Índice onomástico Sísifo 256 Sócrates 22 Solomon or the vanity of the world 414 e 414 NT Spectator 3 1 8 NT Spinoza Baruch de 272ss Tácito 15 307 307 NT Tales 22 Tântalo 256 Temístocles 4601 Tibério Tibério Júlio César 602 Tratado Sobre os Princípios do Conhecimento Humano 41 n3 e NT Triboniano 551 n5 552 NT Virgílio 469 469 NT Wight Ilha de 550 n5 Wollaston 501 n2 759 cipios determinantes da ação 14950 209 435ss 448ss 613 cf 509 atividade filosófica e prazer 3013 4849 cf 664 prazer e dor como fontes de paixões 30911 3656 435 474 6134 6537 prazer e simpatia 3589 53940 617631 633 6445 influência do costume e da repetição no prazer e na dor 45860 prazer e dor na moral 50915 517 519 56773 586 6147 6201 630 6356 641 649 cf prazer na obrigação e na obediência civil 556 594 prazer e sentimento do belo 6156 624 626 prazer e beleza física 6545 Preconceito preconceito como espécie de probabilidade não filosófica 17980 Preguiça preguiça como o não exercício de uma capacidade 6267 Prescrição aquisitiva ou Usucapião prescrição aquisitiva e propriedade 508 Princípios impossibilidade de se explicar os princípios últimos 234 2989 674 684 princípios universais da imaginação 34ss 88ss 1212 137ss 257ss 699 Privado benevolência pública e privada 522 deveres públicos e privados 5856 interesses públicos e privados 5945 Probabilidade ver Acaso Chance probabilidade em oposição à demonstração e ao conhecimento 57 1189 157 197 213ss 449 6845 689 probabilidade e causação 101ss 1189 157ss 1867 214 provável ou possível 1612 probabilidade e questões de fato 1189 1735 689 raciocínio provável e sensação 133 probabilidade de chances 156ss 1678 probabilidade e incerteza 157 215 probabilidade acaso e causação 157ss probabilidade e crença 157ss 170 213ss 66970 probabilidade de causas 163ss suposição probabilidade e prova 1634 probabilidade e contrariedade na experiência e na observação 164ss 47680 66970 raciocínio conjuntural ou provável 172 probabilidade não filosófica 176ss regras gerais e probabilidade 179ss 624 redução do conhecimento à probabilidade 213ss probabilidade juízo e reflexão 2158 probabilidade ou possibilidade de ação 3478 probabilidade nas motivações e ações humanas 43940 probabilidade e paixões 47580 6134 probabilidade e uniformidade 68890 Progresso progresso dos sentimentos 540 Promessa estado de natureza e convenção humana ou artifício como condição da promessa 5301 5412 55564 578ss 58991 obrigatoriedade das pro SOBRE O LIVRO Formato 16 x 23 cm Mancha 275 x 495 paicas Tipologia IowanOldSt BT 1116 Papel Pólen soft 80 gm² miolo Couché fosco 120 gm² encartonado capa 2ª edição 2009 EQUIPE DE REALIZAÇÃO Edição de Texto Adriana Moreira Pedro Revisão Editoração Eletrônica Edmílson Gonçalves Impressão e Acabamento Prol EDITORA GRÁFICA FICHAMENTO TRATADO DA NATUREZA HUMANA DAVID HUME Hume David Tratado da natureza humana uma tentativa de induzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais tradução Debora Danowski 2ed são Paulo Editora UNESP 2009 INTRODUÇÃO o livro Tratado da Natureza Humana de David Hume é uma obra complexa e influente que influenciou muitos pensadores posteriores Ele é considerado um dos mais importantes trabalhos de filosofia na história do pensamento ocidental Parte I Das idéias sua origem composição conexão abstração etc As percepções da mente humana se reduzem a dois gêneros distintos que chamarei de IMPRESSÕES e IDÉIAS A diferença entre estas consiste nos graus de força e vividez com que atingem a mente e penetram em nosso pensamento ou consciência As percepções que entram com mais força e violência podem ser chamadas de impressões sob esse termo incluo todas as nossas sensações paixões e emoções em sua primeira aparição à alma Pag 25 Embora haja em geral uma grande semelhança entre nossas impressões e idéias complexas não é uma regra universalmente verdadeira que elas sejam cópias exatas umas das outras Consideremos agora o que ocorre com nossas percepções simples Após o exame mais rigoroso de que sou capaz arriscome a afirmar que aqui a regra não comporta exceção e que toda idéia simples tem uma impressão simples que a ela se assemelha e toda impressão simples uma idéia correspondente A idéia de vermelho que formamos no escuro e a impressão que atinge nossos olhos à luz do sol diferem somente em grau não em natureza Pag 27 Nossas idéias ao aparecerem não produzem impressões correspondentes tampouco percebemos uma cor ou temos uma sensação qualquer simplesmente por pensar nessa cor ou nessa sensação Em contrapartida vemos que qualquer impressão da mente ou do corpo é constantemente seguida por uma idéia que a ela se assemelha e da qual difere apenas nos graus de força e vividez A conjunção constante de nossas percepções semelhantes é uma prova convincente de que umas são as causas das outras e essa anterioridade das impressões é uma prova equivalente de que nossas impressões são as causas de nossas idéias e não nossas idéias as causas de nossas impressões Pag 29 Hume argumenta que toda ideia simples tem uma impressão simples que se assemelha a ela e toda impressão simples tem uma ideia correspondente Ou seja as ideias são derivadas das impressões e são cópias menos vívidas delas Além disso Hume afirma que as impressões são a causa das ideias e não o contrário Essa distinção entre impressões e ideias é fundamental para a compreensão da epistemologia e da filosofia da mente de Hume já que ele argumenta que todo conhecimento humano é derivado de impressões sensoriais Assim a teoria de Hume sugere que todas as nossas ideias e conceitos são construídos a partir das nossas experiências sensoriais e que nossa compreensão do mundo é limitada pelos nossos sentidos e pela nossa capacidade de perceber e compreender as impressões que recebemos Seção 2 Divisão do tema As da primeira espécie nascem originalmente na alma de causas desconhecidas As da segunda derivam em grande medida de nossas idéias conforme a ordem seguinte Primeiro uma impressão atinge os sentidos fazendonos perceber o calor ou o frio a sede ou a fome o prazer ou a dor de um tipo ou de outro Em seguida a mente faz uma cópia dessa impressão que permanece mesmo depois que a impressão desaparece e à qual denominamos idéia Pag 32 o E como as impressões de reflexão a saber as paixões os desejos e as emoções que sobretudo merecem nossa atenção surgem em sua maior parte de idéias será necessário inverter o método acima mencionado e que à primeira vista parece mais natural Para explicar a natureza e os princípios da mente humana daremos uma explicação particular das idéias antes de passarmos às impressões Por essa razão escolhi aqui começar pelas idéias Pag 33 Nestes trechos o autor David Hume discute a origem das impressões e ideias Ele argumenta que as impressões são percepções que nascem originalmente na alma de causas desconhecidas Em contrapartida as ideias derivam em grande parte das impressões que recebemos sendo uma cópia dessas impressões que permanece na mente mesmo depois que a impressão original desaparece Hume também afirma que as impressões de reflexão como as paixões desejos e emoções são em grande parte derivadas de ideias Por isso ele sugere que é necessário inverter a ordem natural de explicação da mente humana começando com uma explicação particular das ideias antes de passar para as impressões Assim Hume propõe que para entendermos a natureza da mente humana precisamos primeiro compreender como as ideias são formadas e como elas afetam nossos pensamentos e ações para então entender como as impressões afetam nossas percepções e emoções Essa abordagem invertida que começa com as ideias e depois passa para as impressões é um aspecto importante da filosofia da mente de Hume Seção 3 Das idéias da memória e da imaginação A faculdade pela qual repetimos nossas impressões da primeira maneira se chama MEMÓRIA e a outra IMAGINAÇÃO É evidente mesmo à primeira vista que as idéias da memória são muito mais vivas e fortes que as da imaginação e que a primeira faculdade pinta seus objetos em cores mais distintas que todas as que possam ser usadas pela última Ao nos lembrarmos de um acontecimento passado sua idéia invade nossa mente com força ao passo que na imaginação a percepção é fraca e lânguida e apenas com muita dificuldade pode ser conservada firme e uniforme pela mente durante um período considerável de tempo Pag 30 Tal liberdade da fantasia não causará estranheza porém se considerarmos que todas as nossas idéias são copiadas de nossas impressões e que não há duas impressões que sejam completamente inseparáveis isso para não mencionarmos o fato de que se trata aqui de uma consequência evidente da divisão das idéias em simples e complexas Sempre que a imaginação percebe uma diferença entre idéias ela pode facilmente produzir uma separação Pag 34 Neste capitulo do livro o autor lança ao leitor a ideia de imaginação e memoria o que remete esses dois pensamentos e quais as suas vertentes um questionamento importante para a filosofia até os dias atuais Seção 4 Da conexão ou associação das idéias Creio que não haverá muita necessidade de provar que essas qualidades produzem uma associação entre idéias e quando do aparecimento de uma idéia naturalmente introduzem outra Está claro que no curso de nosso pensamento e na constante circulação de nossas idéias a imaginação passa facilmente de uma idéia a qualquer outra que seja semelhante a ela tal qualidade por si só constitui um vínculo e uma associação suficientes para a fantasia observando que dois objetos estão conectados pela relação de causa e efeito não apenas quando um produz um movimento ou uma ação qualquer no outro mas também quando tem o poder de os produzir Notemos que essa é a fonte de todas as relações de interesse e de dever pelas quais os homens se influenciam mutuamente na sociedade e se ligam pelos laços de governo e subordinação Um senhor é aquele que por sua situação decorrente quer da força quer de um acordo tem o poder de dirigir sob certos aspectos particulares as ações de outro homem a que chamamos servo Um juiz é aquele que em todos os casos litigiosos entre membros da sociedade é capaz de decidir com sua opinião a quem cabe a posse ou a propriedade de determinado objeto David Hume filósofo empirista escocês do século XVIII aborda em cada uma das passagens um tema diferente Na primeira passagem Hume discute a natureza da associação de ideias e como a imaginação funciona Ele argumenta que as qualidades das ideias por si só são suficientes para produzir uma associação entre elas ou seja quando uma ideia aparece naturalmente introduz outra ideia similar Essa associação é feita de forma tão rápida e fácil que a imaginação passa de uma ideia para outra semelhante criando um vínculo e uma associação suficientes para a fantasia Já na segunda passagem Hume fala sobre a relação de causa e efeito e como ela é fundamental para a vida social Ele explica que essa relação não se dá apenas quando um objeto produz um movimento ou uma ação em outro mas também quando tem o poder de produzilos Essa relação é a base de todas as relações de interesse e dever pelas quais os homens se influenciam mutuamente na sociedade e se ligam pelos laços de governo e subordinação Por exemplo um senhor tem o poder de dirigir as ações de um servo enquanto um juiz tem o poder de decidir a posse ou propriedade de um objeto em disputa Em resumo Hume está explorando a natureza da associação de ideias e da relação de causa e efeito e como esses conceitos são fundamentais para a nossa compreensão da vida social e da forma como interagimos uns com os outros Seção 5 Das relações A palavra RELAÇÃO é comumente usada em dois sentidos bem diferentes para designar a qualidade pela qual duas idéias são conectadas na imaginação uma delas naturalmente introduzindo a outra da maneira acima explicada ou para designar a circunstância particular na qual ainda que a união de duas idéias na fantasia seja meramente arbitrária podemos considerar apropriado comparálas Pag 38 A primeira é a semelhança Essa é uma relação sem a qual não pode existir nenhuma relação filosófica já que só admitem comparação os objetos que apresentam entre si algum grau de semelhança Entretanto embora a semelhança seja necessária para todas as relações filosóficas daí não se segue que ela sempre produza uma conexão ou associação de idéias Quando uma qualidade se torna muito geral e é comum a um grande número de indivíduos ela não leva a mente diretamente a nenhum deles ao contrário por apresentar de uma só vez uma grande variedade de alternativas impede que a imaginação se fixe em um objeto único Pag 38 No primeiro trecho citado Hume está explorando o significado da palavra relação e como ela pode ser entendida de duas maneiras diferentes Em um sentido a relação pode se referir à qualidade pela qual duas ideias são conectadas na imaginação uma ideia naturalmente levando a outra de forma lógica e necessária Em outro sentido a relação pode se referir à circunstância particular em que duas ideias são comparadas mesmo que a conexão entre elas seja arbitrariamente estabelecida Já no segundo trecho Hume aborda a relação de semelhança que é um dos tipos de relação que permite a comparação de objetos na filosofia Ele argumenta que a semelhança é necessária para todas as relações filosóficas mas isso não significa que ela sempre produz uma conexão ou associação de ideias Quando uma qualidade é muito geral e comum a muitos objetos ela não leva a mente diretamente a nenhum objeto em particular tornando difícil para a imaginação se fixar em um objeto específico Em resumo Hume está discutindo a natureza da relação entre ideias e como essa relação pode ser estabelecida de diferentes maneiras Ele também destaca a importância da semelhança na comparação de objetos mas adverte que ela nem sempre é suficiente para produzir uma conexão ou associação de ideias Seção 6 Dos modos e substâncias Acredito porém que ninguém afirmará que a substância é uma cor ou um som ou um sabor Portanto a idéia de substância se é que ela existe realmente deve ser derivada de uma impressão de reflexão Mas as impressões de reflexão se reduzem às nossas paixões e emoções nenhuma das quais poderia representar uma substância Assim sendo não temos nenhuma idéia de substância que seja distinta da idéia de uma coleção de qualidades particulares e tampouco temos em mente qualquer outro significado quando falamos ou quando raciocinamos a seu respeito Pag 40 Nesse trecho Hume está questionando a existência da ideia de substância como algo distinto das qualidades particulares que compõem essa substância Ele argumenta que se a substância existe realmente então a ideia de substância deve ser derivada de uma impressão de reflexão ou seja de uma experiência interna ou introspectiva No entanto ele afirma que as impressões de reflexão se reduzem às nossas paixões e emoções e nenhuma delas pode representar uma substância Dessa forma Hume conclui que não temos nenhuma ideia de substância que seja distinta da ideia de uma coleção de qualidades particulares Ou seja a ideia de substância é apenas uma maneira conveniente de agrupar e organizar as qualidades particulares que observamos em um objeto mas não é uma entidade real e independente dessas qualidades Portanto quando falamos ou raciocinamos sobre substância não estamos nos referindo a nada além das qualidades particulares que compõem essa substância Seção 7 Das idéias abstratas Uma questão muito importante foi levantada a respeito das idéias abstratas ou gerais a saber se são concebidas pela mente como gerais ou particulares Um grande filósofo3 contestou a opinião tradicional acerca desse ponto afirmando que as idéias gerais não passam de idéias particulares que vinculamos a um certo termo termo este que lhes dá um significado mais extenso e que quando a ocasião o exige faz com que evoquem outros indivíduos semelhantes a elas Considero esta descoberta uma das maiores e mais valiosas feitas recentemente na república das letras e por isso tentarei aqui confirmála mediante alguns argumentos que espero eliminarão qualquer dúvida e controvérsia a seu respeito Pag 41 David Hume discute a natureza das ideias abstratas ou gerais e questiona se elas são concebidas pela mente como gerais ou particulares Ele menciona um grande filósofo que contestou a opinião tradicional sobre esse ponto argumentando que as ideias gerais não passam de ideias particulares que vinculamos a um termo específico que lhes dá um significado mais amplo e que quando necessário podem evocar outros indivíduos semelhantes a elas Hume considera essa descoberta como uma das mais importantes e valiosas feitas recentemente na filosofia e tenta confirmála com argumentos que eliminem qualquer dúvida e controvérsia sobre o assunto Ele busca mostrar que as ideias abstratas ou gerais são na verdade construções mentais que surgem a partir da união de várias ideias particulares que são vinculadas por um termo comum que lhes dá um significado mais amplo e universal Parte 2 Das idéias de espaço e tempo Tudo que tem um ar de paradoxo e é contrário às primeiras noções da humanidade às noções mais despidas de preconceitos costuma ser fervorosamente esposado pelos filósofos como se mostrasse a superioridade de sua ciência capaz de descobertas tão distantes da concepção vulgar Pag 51 O que se passa com as idéias da imaginação passase igualmente com as impressões dos sentidos Fazei uma pequena mancha de tinta sobre uma folha de papel fixai nela os olhos e afastaivos gradativamente até uma distância em que finalmente não mais a enxergueis É claro que no momento que precedeu seu desaparecimento a imagem ou impressão era perfeitamente indivisível Pag 53 A divisibilidade infinita do espaço implica a do tempo como fica evidente pela natureza do movimento Se a segunda portanto é impossível a primeira também deve ser Pag 57 No primeiro trecho Hume observa que muitas vezes as ideias contrárias às primeiras noções da humanidade são adotadas pelos filósofos como se fosse uma prova de superioridade da ciência filosófica capaz de descobertas tão distantes da concepção vulgar Essa observação indica que Hume valoriza o bom senso e a experiência como fonte de conhecimento e desconfia de teorias abstratas que não encontram apoio na realidade concreta No segundo trecho Hume discute a natureza das impressões sensoriais e como elas se relacionam com a nossa percepção do mundo Ele argumenta que as impressões dos sentidos são perfeitamente indivisíveis e que portanto a divisão do mundo em partes distintas é uma construção da mente humana Isso sugere que a realidade é mais complexa do que podemos perceber e que nossa compreensão do mundo é limitada pelas limitações de nossos sentidos e de nossas capacidades cognitivas Por fim no terceiro trecho Hume discute a divisibilidade do espaço e do tempo Ele argumenta que se a divisibilidade infinita do tempo é impossível então a divisibilidade infinita do espaço também deve ser Isso sugere que Hume considera a questão da infinitude do espaço e do tempo como uma questão filosófica importante e que a resposta para essa questão pode ter implicações profundas para a compreensão da natureza do mundo Em geral esses trechos indicam que Hume valoriza a experiência concreta e a observação empírica como fonte de conhecimento e que ele está interessado em questionar as suposições básicas da filosofia tradicional para chegar a novas conclusões sobre a natureza do mundo Seção 3 Das outras qualidades de nossas idéias de espaço e tempo Não poderia haver descoberta mais feliz para a solução de todas as controvérsias em torno das idéias que a anteriormente mencionada que as impressões sempre precedem as idéias e que toda idéia contida na imaginação apareceu primeiro em uma impressão correspondente As percepções deste último tipo são todas tão claras e evidentes que não admitem discussão ao passo que muitas de nossas idéias são tão obscuras que é quase impossível mesmo para a mente que as forma dizer qual é exatamente sua natureza e composição Pag 59 Pois a idéia de extensão é formada de partes ao passo que está de acordo com nossa suposição é perfeitamente simples e indivisível Mas então ela não é nada Isso é absolutamente impossível Pois como a idéia composta de extensão que é real é composta de tais idéias simples fossem estas meras nãoentidades haveria uma existência real composta de não entidades Pag 60 Deste modo o escritor passa a desenvolver na primeira passagem Hume argumenta que as impressões sensoriais que recebemos do mundo exterior são a base de todas as nossas ideias Ou seja toda ideia que temos em nossa mente é uma cópia ou reflexo de uma impressão anterior Ele defende que as impressões sensoriais são mais claras e evidentes do que as ideias que temos em nossa mente muitas das quais são obscuras e difíceis de serem compreendidas Essa descoberta segundo Hume é fundamental para solucionar controvérsias em torno das ideias uma vez que estabelece que a fonte de todas as nossas ideias é a experiência Na segunda passagem Hume discute a natureza das ideias simples e compostas Ele argumenta que algumas ideias são compostas ou seja formadas pela combinação de outras ideias simples enquanto outras são simples e não podem ser divididas em partes menores Hume levanta a questão de que se as ideias simples não têm partes como podemos afirmar que elas existem Ele responde que as ideias simples não são meras nãoentidades mas sim representações mentais de algo real que existe no mundo exterior Ele argumenta que se a ideia composta de extensão é real então as ideias simples que a compõem também são reais uma vez que as ideias compostas são formadas a partir das ideias simples Seção 4 Resposta às objeções Nosso sistema do espaço e do tempo possui duas partes intimamente ligadas A primeira depende da seguinte cadeia de raciocínios A capacidade da mente não é infinita consequentemente nenhuma idéia de extensão ou de duração consiste em um número infinito de partes ou idéias inferiores mas sim em um número finito de partes ou idéias simples e indivisíveis Pag 65 Hume também relaciona que Muitas objeções contra a indivisibilidade das partes da extensão foram extraídas da matemática embora à primeira vista essa ciência pareça antes favorável à presente doutrina e mesmo quando contrária a ela em suas demonstrações élhe perfeitamente conforme em suas definições Minha tarefa neste momento deve ser por isso defender as definições e refutar as demonstrações Pag 68 Hume está falando sobre a natureza do espaço e do tempo argumentando que eles são compostos por partes simples e indivisíveis Ele começa o trecho afirmando que o sistema do espaço e do tempo possui duas partes intimamente ligadas e em seguida apresenta um raciocínio para sustentar sua afirmação Hume argumenta que a capacidade da mente não é infinita e portanto nenhuma ideia de extensão ou duração pode ser composta por um número infinito de partes ou ideias inferiores Em vez disso essas ideias são compostas por um número finito de partes ou ideias simples e indivisíveis Em outras palavras o espaço e o tempo não são infinitamente divisíveis mas têm partes fundamentais que não podem ser divididas em partes menores Hume reconhece que essa visão da indivisibilidade das partes da extensão foi alvo de objeções inclusive na matemática Ele argumenta no entanto que embora a matemática possa parecer à primeira vista contrária a essa doutrina ela é perfeitamente conforme em suas definições Assim Hume está defendendo a ideia de que o espaço e o tempo são compostos por partes simples e indivisíveis e que essa ideia é fundamental para a compreensão desses conceitos Ele está também preparado para responder às objeções que foram feitas a essa doutrina defendendo suas definições e refutando as demonstrações contrárias à sua visão Seção 5 Continuação do mesmo tema Em primeiro lugar podese dizer que há séculos os homens discutem sobre o vácuo e o pleno sem conseguir chegar a uma conclusão definitiva E os filósofos ainda hoje acreditamse livres para tomar partido de um lado ou de outro ao sabor de sua fantasia Mas seja qual for o fundamento que possa ter uma controvérsia a respeito dessas coisas mesmas podese alegar que a própria discussão é decisiva no que concerne à idéia em questão e é impossível que os homens tenham podido raciocinar há tanto tempo sobre um vácuo Pag 81 O autor nesta parte discute a controvérsia filosófica sobre o vácuo e o pleno que durou séculos e não foi resolvida de forma definitiva Ele aponta que os filósofos ainda hoje tomam partido de um lado ou de outro baseados em sua própria fantasia No entanto Hume argumenta que independentemente do fundamento dessa controvérsia a própria discussão é decisiva para a compreensão da ideia em questão Ou seja a controvérsia em si é importante porque levanta questões sobre o que é o vácuo e o pleno e como eles se relacionam com a natureza e o mundo físico Hume sugere que a discussão sobre o vácuo e o pleno pode ter levado os homens a raciocinar sobre essas questões durante tanto tempo e isso é um exemplo da importância da reflexão filosófica na busca pelo conhecimento e compreensão do mundo ao nosso redor Seção 6 Da idéia de existência e de existência externa Não há impressão ou idéia de nenhum tipo da qual tenhamos alguma consciência ou memória que não seja concebida como existente E é evidente que é dessa consciência que deriva a mais perfeita idéia e a certeza do ser Pag 93 Neste sentido Hume também cita Um raciocínio semelhante dará conta da idéia de existência externa Podemos observar que todos os filósofos admitem e aliás é bastante óbvio por si só que nada jamais está presente à mente além de suas percepções isto é suas impressões e idéias e que só conhecemos os objetos externos pelas percepções que eles ocasionam Odiar amar pensar sentir ver tudo isso não é senão perceber Pag 95 O autor está enfatizando a ideia de que nossa consciência e memória estão diretamente relacionadas à ideia de existência Ele afirma que não há nenhuma impressão ou ideia que tenhamos consciência ou memória que não seja concebida como existente Isso significa que a nossa percepção da realidade está ligada à ideia de que as coisas existem e são reais Além disso Hume argumenta que a ideia de existência externa ou seja a existência de objetos fora de nós mesmos só pode ser conhecida através de nossas percepções Ele afirma que todas as nossas percepções são baseadas em nossas impressões e ideias e que é somente através delas que podemos conhecer os objetos externos Esses trechos mostram a preocupação de Hume em entender como conhecemos o mundo ao nosso redor e como nossa percepção da realidade é construída Ele argumenta que nosso conhecimento é limitado às nossas percepções e que não podemos ter certeza da existência de algo além dessas percepções Isso tem implicações importantes na filosofia especialmente no que se refere à natureza do conhecimento e da realidade Parte 3 Do conhecimento e da probabilidade Existem sete tipos diferentes de relação filosófica semelhança identidade relações de tempo e espaço proporção de quantidade ou número graus de qualidade contrariedade e causalidade Essas relações podem ser divididas em duas classes as que dependem inteiramente das idéias comparadas e as que podem se transformar sem que haja nenhuma transformação nas idéias Pag 97 Aqui o autor está apresentando os sete tipos diferentes de relação filosófica semelhança identidade relações de tempo e espaço proporção de quantidade ou número graus de qualidade contrariedade e causalidade Ele argumenta que essas relações são fundamentais para entender como as ideias se relacionam e como elas são formadas Hume também faz uma distinção entre as relações que dependem inteiramente das ideias comparadas e aquelas que podem se transformar sem que haja nenhuma mudança nas ideias As relações que dependem das ideias comparadas são aquelas que se baseiam em semelhanças diferenças proporções e graus de qualidade Essas relações são baseadas nas características das ideias que estão sendo comparadas Por outro lado as relações que podem se transformar sem que haja mudanças nas ideias são aquelas que dependem da causalidade Hume argumenta que a causalidade é uma relação que não pode ser deduzida apenas das ideias comparadas mas depende de uma experiência empírica do mundo Ele defende que a causalidade é uma relação fundamental para entendermos o mundo ao nosso redor mas que não podemos compreendêla apenas através da reflexão filosófica sem a observação empírica Seção 2 Da probabilidade e da idéia de causa e efeito Isso é tudo que penso ser necessário observar a respeito das quatro relações que constituem o fundamento da ciência Quanto às outras três que não dependem da idéia e podem estar presentes ou ausentes enquanto aquela permanece a mesma cabe explicálas mais detalhadamente Essas três relações são identidade situações no tempo e no espaço e causalidade Pag 101 Neste trecho Hume está encerrando uma discussão sobre as quatro relações que segundo ele constituem o fundamento da ciência semelhança contiguidade ordem e causaefeito Ele afirma que já disse tudo o que acha necessário sobre essas quatro relações e agora se concentrará nas outras três que não dependem da ideia e podem estar presentes ou ausentes enquanto aquela permanece a mesma As três relações que Hume menciona são identidade situações no tempo e no espaço e causalidade Identidade referese à relação que um objeto tem consigo mesmo ou seja a sua permanência ao longo do tempo Situações no tempo e no espaço referemse à localização de um objeto no espaço e na sequência de eventos no tempo Causalidade referese à relação entre causa e efeito ou seja à ideia de que um evento leva a outro Hume argumenta que essas três relações são importantes para a compreensão do mundo e da experiência humana Ele argumenta que embora essas relações não dependam da ideia são necessárias para se ter uma compreensão adequada do mundo Por exemplo sem a noção de causalidade não poderíamos entender a relação entre causa e efeito e como eventos estão relacionados uns aos outros Seção 3 Por que uma causa é sempre necessária Uma vez que não é do conhecimento ou de um raciocínio científico que derivamos a opinião de que uma causa é necessária para toda nova produção tal opinião deve vir necessariamente da observação e da experiência Pag 110 Hume questiona como podemos ter certeza de que uma causa é necessária para a produção de um efeito se nunca podemos observar uma conexão necessária entre causa e efeito Em vez disso tudo o que podemos observar é a relação constante entre eventos ou seja sempre que um evento A é seguido por um evento B Mas essa relação constante não prova necessidade Hume argumenta que para inferir que uma causa é necessária para um efeito precisamos confiar na nossa experiência passada Por exemplo sabemos que a luz do sol aquece a superfície da terra porque sempre observamos essa relação constante entre o sol e o calor No entanto essa relação constante não prova necessidade A ideia de necessidade é algo que inferimos de nossa experiência passada mas não podemos provar que é verdadeira por meio do raciocínio lógico ou científico Seção 4 Das partes componentes de nossos raciocínios acerca da causa e do efeito É desnecessário observar que não se trata de uma objeção legítima à presente doutrina dizer que podemos raciocinar com base em nossas conclusões ou princípios passados sem ter de recorrer às impressões de que estes derivaram em primeiro lugar Pois mesmo supondo que essas impressões se apaguem inteiramente de nossa memória Pag 113 Seção 5 Das impressões dos sentidos e da memória Nesse tipo de raciocínio por causalidade portanto empregamos materiais de natureza mista e heterogênea que embora conectados são essencialmente diferentes uns dos outros Todos os nossos argumentos concernentes a causas e efeitos consistem tanto em uma impressão da memória ou dos sentidos como na idéia daquela existência que produz o objeto da impressão ou que é por ele produzida Seção 6 Da inferência da impressão à idéia É fácil observar que ao traçarmos essa relação a inferência que fazemos da causa ao efeito não deriva meramente de um exame desses objetos particulares nem de uma penetração em suas essências que pudesse revelar a dependência de um em relação ao outro Pag 115 Ele argumenta que ao estabelecermos essa relação entre causa e efeito não estamos simplesmente examinando os objetos particulares envolvidos ou descobrindo alguma essência que revela a dependência de um em relação ao outro Para Hume a relação de causalidade não é algo que pode ser observado diretamente na experiência Em vez disso é uma relação que é inferida a partir da observação de eventos que parecem estar conectados Ele argumenta que quando observamos que um evento sempre é seguido por outro evento começamos a inferir que há uma relação causal entre eles No entanto Hume também argumenta que essa inferência não pode ser justificada por meio da razão ou da lógica Em vez disso é algo que fazemos por hábito ou costume sem ter qualquer garantia de que a relação causal que estamos inferindo é verdadeira Em outras palavras a relação de causalidade é uma construção humana uma convenção estabelecida pela mente humana para lidar com a experiência do mundo mas não tem uma base objetiva na realidade em si mesma PESQUISA AMPLIADA Esta obra de Hume David Hume é considerada um dos textos mais importantes e influentes da filosofia moderna Abaixo estão algumas citações de outros autores em relação ao livro e ao pensamento de Hume Immanuel Kant Kant afirmou que a leitura do Tratado da Natureza Humana foi responsável por despertaro de seu sono dogmático Embora Kant tenha sido um crítico da abordagem cética de Hume em relação à razão e à causalidade ele reconheceu a importância do trabalho de Hume em desafiar as suposições comuns da época Bertrand Russell Em seu livro História da Filosofia Ocidental Russell descreve Hume como o maior filósofo que já escreveu em língua inglesa Ele destaca a importância do trabalho de Hume em criticar o conceito de causalidade e em enfatizar a importância da experiência e da observação Friedrich Nietzsche Nietzsche criticou o ceticismo de Hume e sua visão de que não podemos conhecer a realidade em si mesma No entanto ele elogiou Hume por ter uma abordagem saudável em relação à moralidade argumentando que ele reconheceu que nossos valores e crenças são o resultado de nossas emoções e experiências CONSIDERAÇÕES O livro Tratado da Natureza Humana escrito por David Hume e publicado em 1739 1740 é considerado uma das obras mais importantes da filosofia moderna e um marco no pensamento empirista Hume propõe uma análise crítica do conhecimento humano questionando a possibilidade de se alcançar conhecimento objetivo e universal Ele argumenta que todo o conhecimento humano é baseado em nossas percepções sensoriais e que nossas crenças são formadas por hábito e associação de ideias Além disso Hume faz uma crítica à metafísica e à religião argumentando que não podemos conhecer a realidade última das coisas incluindo a existência de Deus a alma e a imortalidade O livro é dividido em três partes Da compreensão humana Dos afetos ou paixões e Da moral e aborda temas como causalidade identidade pessoal liberdade e determinismo moralidade entre outros A obra de Hume influenciou muitos outros filósofos como Immanuel Kant Friedrich Nietzsche e Bertrand Russell e é considerada uma das mais importantes contribuições para a filosofia moderna REFERÊNCIAS Hume David Tratado da Natureza Humana Editora UNESP 2Ed 2009 Disponível em fileCUserseurafDownloads1681830473073David20Hume20 20Tratado20da20Natureza20HumanaUNESP2020001202pdf acesso em 18 de abril de 2023 Powders Lipstick Blush Non greasy Non drying Easy to apply Suitable for all skin types Cement Based Paint This paint is made above No 1 Quality Cement We can supply it in Red Blue Yellow Black and White Color This paint also has good binding Quality White Cement Based Putti If you want to give your walls a smooth clear pasteurized look then this is most suitable putty This can be used on all surfaces We 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