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480 Filosofia da educação e pedagogia da morte O livro de O. Fullat (1982) sobre “as finalidades educativas em tempo de crise” alude também à morte e ao seu desenlace, começando por perguntar: “Se é tão corrente morrer, porque não ter isso muito presente ao educar?”. E o autor continua a interrogar: Que tipo de educação é a que se esquiva a esta realidade? E responde que se trata duma educação “desumana, falsa e mentirosa” (p. 231). Fala-se de morte de civilizações, de correntes de pensamento e de arte, mas não se fala da nossa própria morte quando, afinal, todos somos mortais. Sócrates considera que a verdadeira filosofia consiste em preparar-se para a morte, e que a coragem diante da morte é a única virtude que um dia necessitaremos. Heidegger concebe a morte como a possibilidade da impossibilidade da existência, devendo nós assumir essa possível impossibilidade. Se os filósofos falaram da morte, não devemos nós fazer dessa realidade um tabu. Fullat pensa que “é preciso edificar de novo a sociedade em torno da morte” (p. 233). Pode definir-se determinada cultura como a forma de entender a morte e os mortos. Nas culturas africanas a morte é um fenômeno público natural, assumido por toda a tribo ou comunidade. No mundo ocidental, ela mete medo e foi escorraçada da praça pública, enquanto, por outro lado, se assiste ao império da morte em guerras, na pena capital, no aborto e na eutanásia, no suicídio, dando-se à morte por nem nos pertencer, sendo apanágio das “tanatocracias” que legislam sobre ela (p. 237). Todavia, constitui um gesto de sabedoria dar de novo à morte o lugar que lhe pertence a nível pessoal e de educadores, pois isso ilumina mais a vida e a verdade sobre o homem. O educando tem direito a confrontar-se com esse “anjo do Nada”, tem direito à angústia e à esperança. No fim de contas, todos andamos “mortos de medo da morte” e é necessário encarar de frente a realidade através duma verdadeira educação tanatológica que exige preparação e planificação.Tal educação deve visar antes de mais as crianças e os jovens, mas sem esquecer as diversas fases da adultez e ainda da velhice. Segundo o Fedro de Platão, Sócrates interpretava a preparação para a morte como a autêntica filosofia. Um ensaio de Montaigne intitula-se “filosofar é aprender a morrer?”. E Séneca considerava quase como única virtude, a fortaleza diante da morte com que um dia todos nos veremos confrontados, e afirmava que toda a vida devemos aprender a morrer. A própria morte dos outros já é educadora, sobretudo se é uma morte “em segunda pessoa”, isto é, de familiares próximos, se soubermos tirar as lições da fragilidade e contingência desta vida. “Que a morte vos sirva de doutora”, avisava S. Agostinho. Ela mostra a fugacidade do tempo, e daí a necessidade de o aproveitar bem, dando lugar às coisas espirituais e não apenas às materiais, incapazes de ultrapassar a morte. Enfim, para aprender as grandes lições da vida, é necessário pensar e aprender também as lições da morte. Segundo Montaigne, “quem ensinar o homem a morrer, ensiná-lo-á também a viver”. Esta aprendizagem pode e deve fazer-se já a nível familiar, continuando na 478 Filosofia da educação e pedagogia da morte turidade. O homem nasceu quando, pela primeira vez, murmurou diante dum cadáver: porquê?” (in Fiore, pp. 52-53). Segundo Montaigne, “quem ensinar o homem a morrer, ensiná-lo-á também a viver”. Só morre quem nasce e está vivo. Se não se tivesse nascido, não se morreria; as pedras não morrem. Daí a morte ser natural à vida. Escondendo a morte, estamos de qualquer forma a esconder ou a desvalorizar a vida. Dessacralizando a vida e a morte, caímos no Nada, na Solidão, no Desespero. Somos peregrinos sem rumo nem destino, num planeta gelado, enquanto a morte continua, com as suas terrí veis “mandíbulas”, na expressão de Bloch, a triturar todos os homens, sem exceção. Se a morte significa o fim de tudo, torna-se mais difícil viver. Tenta-se “fazer de conta” que o monstro não existe ou que só atinge os outros e não a nós mesmos; pratica-se uma “política de avestruz”. Ou então corre-se apressado a saborear todos os prazeres da vida, conforme já dizia o ímpio na Bíblia: “comamos e bebamos, que amanhã morreremos”. Porém, o salmista afirma, com humor sombrio, que estas pessoas se assemelham aos animais que engordam para a matança. Outra pseudo-solução desesperada frente ao medo de e à realidade da morte é o suicídio: se tenho de morrer, porque não já, sobretudo se à minha frente se levanta um mar de sofrimento? Outros enfrentam mais ou menos estoicamente a morte, contentando-se com permanecer na memória dos vivos ou então esperando reencarnar (Note-se é ancestral a crença na reutempiscose). Na verdade, só a religião pode ajudar a resolver o problema da morte e do Além, embora Kubler-Ross, que estudou particularmente os doentes terminais, tentasse provar cientificamente, em La mort est un nouveau soleil (1988), a prevalência para além da morte. Também os poetas intuíram esta realidade, corroborando a fé. Para Fernando Pessoa, “a morte é a curva da estrada, / morrer é só não ser visto”. E chega a dizer, no máximo da ousadia: “Neófito, não há morte!”. Antero de Quental, embora tivesse acabado com a própria vida, no seu último soneto intuía o repouso eterno: “Dormo e teu sono, coração liberto, / dorme na mão de Deus eternamente”. E Florbela Espanca, também inditosa, cantava na “Charneca em Flor”: “E se um dia hei-se ser pó, cinza e nada, / que seja a minha morte uma alvorada, / que me saiba perder... para me encontrar...”. João de Deus, em Campo de Flores, manifestava outrossim esperança, para além do nada: “Mas a pó não se reduz / a luz, a alma do homem: / nem os vermes a consomem; / os vermes não comem luz”. E A. Correia d’Oliveira, em Alma Religiosa, interpela os crentes: “Almas fiéis, tende fé. / Não tarda a Ressurreição; / Morte é Vida, e mais não é! / A Morte tem olhos: vê / No meio da escuridão... E Sebastião da Gama dizia tão poeticamente: “Cigarra que se preza, quando morre / não deve estar no meio da canção”. Deve desperta-se no canto, porque, como diz um provérbio oriental, “é mais tarde do que julgais”. O grande poeta francês, Paul Claudel, confessava, ao fim da vida, certamente iluminado pela fé: “Vivo no limiar da 479 José H. Barros de Oliveira morte, e uma alegria inexplicável me embarga a voz”. Porque, na significativa expressão de Teixeira de Pascoaes, em São Paulo, “o Absoluto é um dom da morte”. Khalil Gibran, em O Profeta, dedica outrossim um belo texto à morte, ao jeito da sabedoria oriental: “Gostaríeis de conhecer o segredo da morte! Mas como o encontraríes, a não ser que o busqueis no coração da vida? (...) Se verdadeiramente quereis compreender o espírito da morte, abri de par em par o vosso coração ao corpo da vida. Porque a vida e a morte são uma só coisa, como são uma só coisa o rio e o mar. (...) Que é morrer senão erguer-se nu ao vento e fundir-se com o sol? (...) E quando a terra reclamar os vossos membros, então dançareis verdadeiramente” (cf. Barros, 1998). Educar(se) para a morte Se é natural morrer, porque não há-de ser natural educar(se) sobre a morte e para a morte, falar da morte, própria e alheia, e ensinar (e aprender) a bem viver e a bem morrer? Não será possível uma pedagogia da morte, que poderíamos denominar educação tanatológica? A resposta é que não apenas tal educação é possível mas também necessária para uma educação integral. Não educar para a morte é praticar uma educação parcial e mentirosa. Se se fala da morte de civilizações, por exemplo, porque não falar da morte das pessoas, que a própria criança experiencia directamente ou através dos meios de comunicação social, e mesmo reflectir sobre a própria morte. que um dia infalivelmente acontecerá? Reabilitar a morte é, de qualquer forma, reabilitar e dar mais sentido à vida. Ensinar a “arte de morrer” é ensinar a arte de viver. Como a educação é, etimologicamente, a arte de bem “conduzir” a criança, ou ainda o trabalho de parto ou de “dar à luz” espiritualmente (do latim, educere), também se pode ajudar a criança e mesmo o adulto a bem conduzir-se diante da morte própria ou alheia. Ela significa, de qualquer modo, um novo “parto” para a Vida, considerando que neste mundo andamos todos como que no seio da mãe terra à espera de novo (re)nascimento. Como afirma B. Franklin, “o homem não nasceu completamente até que não morreu”. A educação tanatológica pode dar a verdade sobre o homem, sobre a grande beleza e dignidade da vida, mas também sobre a sua fragilidade e mortalidade. Uma verdadeira filosofia da vida, pressupõe uma filosofia da morte, como uma verdadeira educação sobre a vida, leva implícita uma educação sobre a morte. Isto poderá levar o educando e o homem, em geral, a viver mais densamente, a relativizar muita coisa, e evitar grandes ganâncias (a morte tem a outra chave do nosso cofre) e ambição de poder, tentando antes abrir-se aos outros (quem é egoísta ou egocêntrico, de qualquer forma já morreu) e ao mistério do Além. Paradoxalmente, pode viver-se melhor à luz da morte, que ilumina a vida e lhe dá mais conteúdo. M. Unamuno conta algures que sentiu uma vontade indómita de viver quando, a braços com uma angina de peito, se viu confrontado com o “anjo do Nada”.