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Filosofia ·

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Autores Prof Wellington Lago Prof Renato Bulcão de Moraes Prof Vanderlei da Silva Colaboradora Profa Tânia Sandroni Filosofia da Religião Professores conteudistas Wellington Lago Renato Bulcão de Moraes Vanderlei da Silva Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma eou quaisquer meios eletrônico incluindo fotocópia e gravação ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista U50568 20 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP L177f Lago Wellington Filosofia da Religião Wellington Lago Renato Bulcão de Moraes Vanderlei da Silva São Paulo Editora Sol 2020 204 p il Nota este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP Série Didática ISSN 15179230 1 Filosofia da religião 2 Religião na idade média 3 Religião na idade moderna I Moraes Renato Bulcão de II Silva Vanderlei da III Título CDU 2911 Wellington Lago Graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade Bandeirante de São Paulo 2000 e em Teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie 2004 Licenciado em Filosofia tem as seguintes pósgraduações Direito Público com ênfase em Medicina Legal pela Instituição Toledo de Ensino 2012 Estado Constitucional e Liberdade Religiosa pela Universidade Presbiteriana Mackenzie 2016 pela Universidade de Oxford 2016 e pela Universidade de Coimbra 2016 Direito Penal e Educação a Distância EaD pela Universidade Paulista UNIP 2016 Atualmente está no Programa de Mestrado em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie É professortutor de Filosofia e Direito da UNIP e é servidor público do Estado de São Paulo Secretaria de Segurança Pública É sacerdote de ordem religiosa na Igreja Presbiteriana do Brasil Renato Bulcão de Moraes Formado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo FFLCHUSP Com mestrado em Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes ECAUSP foi professor nessa escola até 2001 Em 2003 voltou à USP como pesquisador em EaD pela Escola do Futuro função em que permaneceu até 2007 No mesmo período trabalhou em cinema e televisão primeiro como editor depois como produtor e finalmente como diretor de marketing Desde 2009 é professor da EaD da UNIP e desde 2010 ensina também nos cursos presenciais de Pedagogia e Filosofia Em 2017 apresentou uma tese de doutorado em Educação e História da Cultura sendo aprovado com louvor e distinção Desde 2014 publica regularmente no país e no exterior em especial sobre humanidades digitais Sua linha de pesquisa inclui a análise de textos através de processamento digital Vanderlei da Silva Doutor em Educação pela Universidade de Sorocaba 2013 e mestre em Educação pela mesma instituição 2009 Especialista em EaD pela UNIP 2017 Advogado pela Universidade de Sorocaba 2004 Especialista em Direito do Terceiro Setor pela Fundação Getulio Vargas 2005 Professor do curso de graduação em Serviço Social presencial e EaD UNIP e do curso de pósgraduação em Gestão de Políticas Públicas EaD UNIP Professor no curso de especialização em Gestão Ambiental e Sustentabilidade da Universidade Federal de São Carlos Gerente administrativo e financeiro do Serviço de Obras Sociais Sorocaba Diretor de projetos do Lar Escola Monteiro Lobato Conselheiro fiscal da Fundação Ubaldino do Amaral da Vila dos Velhinhos de Sorocaba e da Associação Protetora dos Insanos Sócio do escritório de advogados Ranuzzi Silva Vieira Autor dos livros A participação da loja maçônica Perseverança III na educação escolar em Sorocaba e O terceiro setor e a escola Participante convidado do Fórum de Inovação Social e Ética Global realizado em 2014 e 2015 em Genebra na Suíça e em 2016 em Marrakech no Marrocos Participante dos Prêmios América Latina Verde 2016 realizados em Guayaquil no Equador Embaixador dos Prêmios América Latina Verde no Brasil Prof Dr João Carlos Di Genio Reitor Prof Fábio Romeu de Carvalho ViceReitor de Planejamento Administração e Finanças Profa Melânia Dalla Torre ViceReitora de Unidades Universitárias Prof Dr Yugo Okida ViceReitor de PósGraduação e Pesquisa Profa Dra Marília AnconaLopez ViceReitora de Graduação Unip Interativa EaD Profa Elisabete Brihy Prof Marcello Vannini Prof Dr Luiz Felipe Scabar Prof Ivan Daliberto Frugoli Material Didático EaD Comissão editorial Dra Angélica L Carlini UNIP Dr Ivan Dias da Motta CESUMAR Dra Kátia Mosorov Alonso UFMT Apoio Profa Cláudia Regina Baptista EaD Profa Betisa Malaman Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico Prof Alexandre Ponzetto Revisão Ricardo Duarte Aline Ricciardi Sumário Filosofia da Religião APRESENTAÇÃO 7 INTRODUÇÃO 8 Unidade I 1 CONCEITO DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO 11 11 Elementos das religiões mundiais 15 12 A relação do homem com o divino 18 2 PRIMEIROS ESTÁGIOS DA RELIGIOSIDADE 29 21 Elementos das religiões egípcias 31 211 O mito de Osíris 34 212 O significado religioso do mito de Osíris 34 22 Aquenáton e o monoteísmo 36 3 AS RELIGIÕES AFRICANAS 40 31 Candomblé 44 32 Umbanda 47 33 Quimbanda 50 4 DO POLITEÍSMO AO MONOTEÍSMO 51 41 A importância da filosofia grega para a formação da teologia cristã 54 42 Platão e o demiurgo 57 43 Aspectos da mitologia grega 58 44 A religião das leis o judaísmo 63 45 A construção da religião muçulmana 66 Unidade II 5 A RELIGIÃO NO MUNDO ROMANO 76 51 A convivência com os deuses 76 52 Elementos do cristianismo 84 6 A RELIGIÃO NA IDADE MÉDIA 92 61 Constantino e o Concílio de Niceia 92 62 Carlos Magno e a conversão em massa 99 63 A expansão da Igreja Católica 102 64 A invenção do Diabo e do purgatório 107 65 A organização da Igreja Católica 113 651 O Estado da Igreja 116 652 A feudalização do clero 116 66 O reformismo na Igreja Católica 117 661 O reformismo das ordens monásticas 117 662 O reformismo dos papas 118 67 O papado e o império 119 671 O papado no século XIII 120 68 A religiosidade medieval 121 681 A Igreja e a cavalaria 122 682 As heresias 123 683 A Inquisição 124 69 As Cruzadas 124 691 Os resultados das Cruzadas 126 692 O fim das Cruzadas 127 Unidade III 7 A RELIGIÃO NA IDADE MODERNA 131 71 Renascimento religião e Inquisição 131 72 Descartes e o gênio maligno 136 73 Inácio de Loyola 140 74 Martinho Lutero 143 75 João Calvino 151 76 Consequências da Reforma 156 77 Crescimento e consolidação do protestantismo na Europa 160 78 Immanuel Kant 165 8 A RELIGIÃO NA CONTEMPORANEIDADE 170 81 O catolicismo no Brasil171 82 A teologia da libertação 171 83 O pluralismo religioso na Europa e nos Estados Unidos 178 84 A Igreja Pentecostal e a Neopentecostal 182 7 APRESENTAÇÃO A filosofia da religião é um ramo filosófico que investiga a esfera espiritual inerente ao homem do ponto de vista da metafísica da antropologia e da ética Ela levanta questionamentos fundamentais como O que é a religião Deus existe Há vida depois da morte Essas e outras perguntas ideias e postulados religiosos são objeto de estudo desta disciplina A proposta deste livrotexto é estabelecer um diálogo entre autor e aluno oferecendo a este indicações e sugestões para a melhor compreensão do assunto Entendemos que o papel pedagógico da filosofia da religião é ser um mediador reflexivo entre as diversas instâncias do saber as quais processam discursos a ser interiorizados pelo aluno em suas práticas de aprendizagem Com isso o aluno ganhará uma nova capacidade interpretativa que aplicada a qualquer fatia da realidade servirá para trazer à luz direcionamentos baseados em saberes científicos Como a filosofia tem uma tradição e uma história de mais de 25 séculos os textos dos principais filósofos configuram um plano de análise a ser privilegiado também pela filosofia da religião pois esses textos constroem conceitos por meio dos quais pensamos até hoje ou seja eles são as raízes de nosso pensamento conceitual O desenvolvimento deste livrotexto tem como princípio básico a contraposição entre mythos e lógos religião e ciência procurandose questionar o quanto cada um desses modos de pensamento nega ou completa o outro Buscaremos analisar as diferentes formas de olhar para a realidade do mundo tematizando o olhar do homem religioso que experimenta a participação do sagrado na vida do cosmos e o olhar do homem científico que investiga as leis causais do que acontece Desde já esclarecemos que o mythos é um modo de representação das ideias pensadas de maneira que os signos possam ser interpretados como símbolos isto é por meio da participação afetivoemocional do intérprete Nesse sentido o mythos corresponde a atitudes de pensamento intuitivo do intérprete e manifestase na linguagem sob a forma de linguagem simbólica Já o lógos é um modo de representação das ideias pensadas de maneira que os signos possam ser interpretados como conceitos e não como símbolos Por esse motivo o lógos corresponde a atitudes de pensamento analítico do intérprete e manifestase na linguagem sob a forma de linguagem conceitual Visando alcançar os objetivos desta disciplina também vamos nos valer da Bíblia como um importante documento histórico para a filosofia da religião Nessa mesma linha aspectos históricos e sociais serão utilizados como referência para a investigação sobre o lugar da religião e da ciência na explicação dos mistérios e dos problemas da natureza e da vida 8 No entanto o contexto social e histórico que envolve a experiência científica e a experiência religiosa será abordado de um modo que não prejudique a elaboração dos conceitos em questão o de ciência e o de religião De maneira geral a filosofia da religião é o exame filosófico dos conceitos envolvidos nas tradições religiosas Engloba algumas das principais vertentes da filosofia metafísica epistemologia lógica ética teoria do valor filosofia da linguagem filosofia da ciência direito sociologia política história etc e inclui uma investigação sobre o significado religioso de eventos históricos e sobre as características gerais do cosmos Historicamente a teologia foi influenciada pela filosofia O platonismo e o aristotelismo tiveram papel de destaque na articulação da doutrina cristã clássica Na era moderna teólogos muitas vezes utilizaram a obra de filósofos como Hegel Heidegger e Derrida para confirmar sua crença Essa interação não se limitou ao Ocidente podendo ser encontrada também em diversas visões budistas do conhecimento e do eu Da mesma forma que as ideias filosóficas alimentaram o trabalho teológico os grandes temas da teologia a transcendência de Deus os atributos divinos a Providência etc causaram impacto em muitos projetos filosóficos importantes como a construção da razão moderna por Descartes Foi no século XVII na Universidade de Cambridge que Ralph Cudworth e Henry More cunharam a expressão filosofia da religião Os dois começaram a discussão sobre os pressupostos da existência de Deus o significado do pluralismo religioso a natureza do bem e do mal em relação a Deus e várias outras questões presentes até hoje Como a religião é anterior à filosofia a reflexão filosófica buscará refletir sobre sua maneira de ser e sobre sua essência Tal reflexão porém também terá consequências ou seja a religião criticamente refletida INTRODUÇÃO Neste livrotexto a partir dos períodos da filosofia da religião abordaremos os argumentos ontológicos a experiência e a manifestação do religioso analisando os elementos que o compõem o sagrado o fenômeno e o profano No Egito antigo veremos o choque entre a tradição politeísta e o monoteísmo o que causou sérias consequências para o povo na Grécia antiga a peculiar relação entre deuses e homens e a valorização da vida presente Quanto às religiões de matriz africana além de examinar suas particularidades seus deuses e suas práticas trataremos de sua reação à repressão das autoridades o sincretismo com o catolicismo Discorreremos também sobre o judaísmo e o islamismo analisando filosoficamente seu contexto de desenvolvimento comparandoos com outra grande religião monoteísta o cristianismo 9 Traçaremos um percurso histórico passando pelo mundo romano pelo mundo medieval pelo mundo moderno até chegarmos aos desdobramentos da religião no mundo contemporâneo Nossa proposta é refletir sobre o significado do pensamento filosófico que tem o homem como seu objeto privilegiado de investigação do ponto de vista das relações sociais determinantes da existência deste enquanto ser criador de pensamentos A ideia é que os homens fazem filosofia porque estão em relações sociais determinadas responsáveis pelos padrões de civilização e de justificação teóricoargumentativa que sua consciência reflexiva e crítica pode revelar A partir dos princípios organizadores da identidade ocidental pósRenascimento pósReforma Protestante pósRevolução Científica e pósRevolução Industrial surgem as perspectivas de realização e justificação últimas do homem moderno Esses princípios organizadores são engendrados no confronto das tradições helênica e judaicocristã Entendemos que o choque entre essas tradições tem o mérito de fornecer os fundamentos para as pretensões de uma época da história que julga ter levado o progresso ao limite Contudo é preciso compreender que as possibilidades são sempre maiores do que nossa compreensão alcança Os objetivos deste livrotexto são proporcionar o conhecimento dos elementos básicos que compõem o fenômeno religioso a partir das experiências religiosas percebidas no contexto do aluno subsidiar o aluno na formulação do questionamento existencial em profundidade para dar sua resposta devidamente informado analisar o papel das tradições religiosas na estruturação e manutenção das diferentes culturas e manifestações socioculturais facilitar a compreensão do significado das afirmações e verdades de fé das tradições religiosas refletir o sentido da atitude moral como consequência do fenômeno religioso e expressão da consciência e da resposta pessoal e comunitária do ser humano possibilitar esclarecimentos sobre o direito à diferença na construção de estruturas religiosas que têm na liberdade seu valor inalienável Bons estudos 11 FILOSOFIA DA RELIGIÃO Unidade I 1 CONCEITO DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO As obras que tratam da filosofia mostram que a religião é uma fé ou seja uma devoção a tudo que é considerado sagrado Assim podemos entender que a religião é um culto que aproxima o homem das entidades às quais culturalmente são atribuídos poderes sobrenaturais Podemos dizer ainda que a religião é uma crença em que as pessoas buscam a satisfação nas práticas religiosas ou na fé para superar o sofrimento e alcançar a felicidade Também é possível conceituar a religião como um conjunto de princípios crenças e práticas de doutrinas religiosas baseado em livros sagrados que une seus seguidores numa mesma comunidade moral chamada Igreja Além dessas considerações preliminares observemos que todos os tipos de religião têm seus fundamentos algumas se baseiam em análises filosóficas que explicam o que somos e por que viemos ao mundo outras se sobressaem pela fé outras ainda por extensos ensinamentos éticos A religião é estudada pela história pela psicologia pela fenomenologia pela psicanálise e pela sociologia Todas essas ciências estudam metodologicamente a consciência religiosa concreta e suas múltiplas objetivações na história A filosofia da religião tenta esclarecer a possibilidade e a essência formal da religião na existência humana ZILLES 1991 p 5 Pensando nessas proposições se a filosofia nos faz refletir sobre o entendimento racional das coisas e a religião se apresenta como a ligação do indivíduo ao ser ou objeto que considera sagrado o que a filosofia da religião estuda Zilles 1991 p 17 ensina A filosofia da religião não deve ser identificada simplesmente com religião filosófica ou com filosofia religiosa Tratase de indagação filosófica que usa métodos filosóficos com objetivos filosóficos Mas não é qualquer filosofia capaz de criticar corretamente o mundo humano da fé e da religião As filosofias que pretendem simplesmente explicar a religião ou reduzila a elemento não religioso como libido ou situação socioeconômica alienada não servem Da mesma forma as filosofias que se põem diretamente a serviço da fé também não servem para estabelecer corretamente o sentido da religião Não se trata da simples recuperação de certos dogmas como a transcendência do absoluto pela filosofia A ideia é investigar se o fenômeno religioso é originário e irredutível ao homem e se leva por sua natureza a um termo supremo chamado Deus A discussão central diz respeito a se toda religião é uma invenção humana ou se Deus existe 12 Unidade I Observação Ao usar a palavra deus com D maiúsculo não estamos fazendo menção ao deus dos protestantes pai de Jesus Cristo dos judeus Javé ou dos muçulmanos Alá mas a um ser que é totalmente outro o inexplicável Por esses motivos a filosofia da religião se propõe a estudar de forma reflexiva o fenômeno religioso desenvolvendo no pensador uma atitude que o leve a considerar criticamente esse fenômeno em suas principais características Uma vez que a religião se realiza na existência humana é a partir do sagrado que se alcança a existência religiosa A filosofia da religião avalia o imanente ou seja o que permanece o que persiste o que reside em sua própria essência como o todo e analisa o transcendente aquilo que se conhece como Deus cuja existência ultrapassa a si mesmo por estar num nível mais elevado que a criação Sobre essa questão Calvino 2015 p 53 diz Existe na mente humana e de fato por instinto natural alguma percepção da divindade Consideramos que é algo indubitável visto que o próprio Deus para impedir que alguém alegasse ignorância imbuiu todos os homens de alguma ideia de sua divindade cuja memória ele constantemente renova e ocasionalmente amplia de forma que o homem estando ciente de que Deus existe e é seu criador seja condenado pela própria consciência quando não o adora nem consagra sua vida ao serviço dele Visto pois que nunca houve desde o início nenhum canto do globo nenhuma cidade nem mesmo algum lar sem religião isso significa uma confissão tácita de que há uma percepção da divindade inscrita em cada coração Essa observação de um teólogo cristão protestante se refere a toda existência humana independentemente de sua crença religiosa Nessa relação há pelo menos dois entes de um lado o sagrado o divino o inalcançável o superior o sublime o ser cuja existência ultrapassa a experiência e por isso é desconhecido somente através da busca por compreendêlo vamos assimilar nossa experiência de outro lado o fiel o devoto o crente o profano ou seja a pessoa que demonstra qualquer tipo de devoção a esse ser superior A compreensão do sagrado tornase uma ferramenta para assimilar perspectivas diferentes da nossa e aceitar o mundo religioso Quando prestamos atenção ao outro e ao modo como ele se relaciona com o sagrado começamos a entender melhor nossa própria relação com os que nos cercam e com a religiosidade pois confrontamos nosso mundo religioso com o do outro Por isso a percepção do lugar do fenômeno religioso na vida social e cultural das pessoas é considerada de suma importância inclusive no âmbito educacional Nesse sentido dada a relevância de tais considerações e da amplitude das ações religiosas culturais antropológicas sociais e políticas 13 FILOSOFIA DA RELIGIÃO que envolvem o ensino religioso tornase imprescindível a ponderação fundamentada acerca de uma educação que realmente priorize a qualidade de vida do ser humano refletindo sobre uma nova dimensão da religiosidade humana procurando construir referenciais de acordo com a sociedade atual que reivindica cada vez mais participação e respeito à diversidade cultural repudiando práticas pautadas no autoritarismo e na doutrinação A religião é importante para a vida humana porque oferece pelo menos três tipos de orientação Espacial a referência do sagrado posiciona o homem diante da própria existência Social o sagrado é a origem da ordem a fonte das normas a garantia da harmonia o centro do mundo Psicológica sociólogos como Peter Berger e Émile Durkheim em suas reflexões sobre a religião apresentam argumentos de que quando a secularização avança aumenta a possibilidade de crescimento da anomia Berger 1985 p 3435 e 45 considera que a mais importante função da sociedade é a nomização que a ordem social é a mais básica das necessidades humanas e que a anomia situação em que o diálogo que sustenta e legitima o mundo esmorece o faz vacilar e desorienta o indivíduo constitui o maior perigo Concebe também a religião como o instrumento mais amplo e efetivo de legitimação da sociedade e de suas instituições Acerca da secularização Martelli 1995 p 18 afirma A condição pósmoderna representa uma fase ulterior à do processo de secularização a fase na qual a própria experiência da secularização já está esgotada O pósmoderno caracterizase pela ausência daquelas oposições fortes das quais a tese da secularização tomava vigor Em outras palavras a sociedade pósmoderna seria uma sociedade póssecular na qual a ênfase do trend secularizante foi finalmente deixada de lado permitindo que percebêssemos numerosos fenômenos de dessecularização No século XX ocorreu um fenômeno de abandono da crença no divino Nesse sentido secular é algo que se refere à convivência humana No final do século XX com a falta da crença em Deus cresceu a anomia ou seja a desorganização social No século XXI no entanto não há mais uma constante descrença mas sociedades que toleram que cada um acredite no que quiser Observação O conceito de anomia foi cunhado pelo sociólogo francês Émile Durkheim e quer dizer ausência ou desintegração das normas sociais 14 Unidade I Ainda que utilizemos o termo sagrado não devemos confundir filosofia da religião com teologia Enquanto esta avalia a relação entre homem e Deus pautada numa revelação especial aquela é esclarecida a partir de si mesma e esse pensar filosófico se dá pela possibilidade da liberdade humana Observação Teologia é o estudo crítico da natureza do divino seus atributos e sua relação com os homens Hoje quase toda introdução à filosofia inclui algo da filosofia da religião A importância desta pode ser vista em assuntos como crenças alternativas a respeito de Deus variedades da experiência religiosa interação entre ciência e religião natureza do bem e do mal e percepções religiosas sobre o nascimento e a morte A investigação filosófica desses tópicos envolve questões fundamentais sobre nosso lugar no cosmos e nossa relação com o que pode transcender o cosmos Isso requer uma investigação sobre a natureza e o limite do pensamento humano Com esses projetos complexos a filosofia da religião contribui para a filosofia geral Em filosofia esbarramos o tempo todo na religião ou pelo menos em crenças e conceitos religiosos São poucas as áreas da filosofia destituídas de implicação religiosa As tradições religiosas são tão abrangentes em seus enunciados que quase todos os domínios da filosofia podem ser utilizados para investigar sua coerência justificação e valor Além disso ao longo da história das ideias a maioria dos filósofos examinou temas religiosos Por conseguinte não se pode abordar a história da filosofia sem levar em conta a filosofia da religião No discurso religioso ocorrem conceitos que se opõem à filosofia como revelação e redenção Estes expressam uma realidade oriunda da transcendência enquanto a religião expressa uma série de atos espirituais e criações culturais do homem A revelação fala do divino de algo que penetra na vida a religião referese a uma realidade de vida e a uma realidade cultural ZILLES 1991 p 7 Quando o homem pensa vai além de sua subjetividade Quando reflete organiza as ideias diferenciase dos animais os quais não têm nenhuma religião FEUERBACH 2009 p 4 Por meio do pensamento ele se desenvolve e busca o verdadeiro sentido das coisas e da vida A indagação filosófica tematiza o ser do ente Observação Segundo Ziles 1991 p 100 Ludwing Feuerbach 18081872 elaborou um materialismo para o qual só existe o homem e a natureza e nada mais Seres superiores são apenas reflexo de nossa realidade Cabe destacar de modo mais abrangente o que compreendemos por teologia para diferenciála da filosofia da religião De maneira específica as teologias se referem ao conjunto de afirmações e 15 FILOSOFIA DA RELIGIÃO conhecimentos elaborados pela religião sobre o transcendente e repassados para os fiéis de forma organizada ou sistematizada No entanto como o transcendente é a entidade ordenadora e o senhor absoluto de todas as coisas a teologia se expressa como um estudo das verdades de fé A participação na natureza do transcendente é entendida como graça e glorificação respectivamente no tempo e na infinidade Assim para alcançar essa infinidade o ser humano necessita passar pela realidade última da existência do ser interpretada como ressurreição reencarnação ancestralidade havendo espaço para a negação da vida além da morte sinais do transcendente que podem ser encontrados nas mais variadas expressões religiosas Por outro lado a filosofia da religião em sentido estrito investiga filosoficamente uma realidade propriamente humana ou seja as expressões religiosas da humanidade que também podem ser objeto de estudo de ciências positivas como a psicologia a sociologia a antropologia cultural a etnologia e a história 11 Elementos das religiões mundiais A realização de estudos comparativos entre as características das principais religiões praticadas no mundo é importante inclusive para o diálogo interreligioso Isso se dá pelo fato de que com o conhecimento das peculiaridades de cada uma das religiões e com a busca por pontos de convergência haverá muito mais chances para o diálogo e para a convivência pacífica entres as várias denominações religiosas Nesse sentido as abordagens científicas sobre as diferentes tradições religiosas podem oferecer chaves de leitura para o confronto crítico e consequentemente possibilitar avanços no campo da filosofia da religião Embora cada religião tenha características próprias há elementos que são comuns a várias denominações por exemplo o sagrado um elemento fundamental sempre presente em religiões de qualquer parte do mundo Lembrete Sagrado é tudo aquilo relativo a Deus à religião ao culto ou aos ritos religiosos Dessa forma não se pode falar numa religião sem um ser superior pessoal ou impessoal ou ainda sem um objeto numinoso que pode inclusive ser um animal Segundo Rudolf Otto 2007 p 38 o elemento de que estamos falando e que tentaremos evocar no leitor está vivo em todas as religiões constituindo seu mais íntimo cerne sem o qual nem seria uma religião Ele tem presença marcante nas religiões semitas de forma privilegiada na religião bíblica Ali ele também apresenta uma designação própria que é o hebraico qadôsh ao qual correspondem o grego 16 Unidade I hágios e o latino sanctus e com maior precisão ainda sacer Não há dúvida de que em todos os três idiomas esses termos no ápice do desenvolvimento e da maturidade da ideia designam também o bom o bem absoluto Observação Numinoso é o estado de vivência que o ser possui sobre as questões sobrenaturais geralmente sagradas transcendentais ou de divindade comportandose com base nelas Para Otto 2007 p 44 esse bem absoluto é irracional e não pode ser explicado em conceitos mas apenas apontado pela reação que produz pois sua natureza é do tipo que arrebata e move a psique humana com tal e tal sentimento Isso implica dizer que o religioso ao se deparar com o ser acredita em sua psique que está diante do mysterium tremendum o mistério que faz tremer porque começa a experimentar um sentimento forte de espiritualidade podendo acreditar que sente um estrondo duradouro passando por surtos ou convulsões ou ser induzido por estranhas sensações como êxtases ou delírios Muitas vezes o sagrado do outro tem formas selvagens e demoníacas O que para um é santo para o outro pode ser uma imagem de horror parecida com uma assombração Otto 2007 p 46 denomina o sagrado de diversas formas Grauen assombro sich grauen ficar assombrado erschauern arrepiarse Schauervoll arrepiante Schauer arrepio ou ainda heiliger Schauer arrepio sagrado e enfatiza que o misterioso sempre é algo que foge ao alcance do conhecimento e da compreensão Esse assombro decorre do caráter inibidor do majestoso do eterno do inefável do arrepiante A sensação de pequenez dependência e impotência leva ao receio da ira deorum ira dos deuses De acordo com a fenomenologia uma corrente da filosofia que se propõe a pensar como se chega ao conhecimento dos fenômenos da consciência observamos o fenômeno a partir da redução fenomenológica através da epoché A redução fenomenológica foi proposta por Husserl e é feita em dois níveis no primeiro buscamos a essência abstrata das coisas dos sentidos idealizados por oposição ao que existe realmente no segundo empreendemos a redução transcendental a fim de descobrir por que a consciência de uma pessoa produz essas ideias específicas que fornecem certo sentido às coisas A redução eidética redução à ideia determina que todo campo empírico ou mesmo a religião são transcendentais porque os significados que atribuímos a qualquer coisa são sempre infinitos Observação O termo fenomenologia foi criado no século XVIII por J H Lambert para designar o estudo puramente descritivo dos fenômenos da forma como eles se apresentam à consciência Enquanto corrente filosófica a fenomenologia foi fundada por Edmund Husserl na Alemanha entre o fim do século XIX e o começo do XX 17 FILOSOFIA DA RELIGIÃO Dito de outra forma para tentar entender alguma coisa verificamos o que conseguimos perceber dessa coisa com nossos sentidos esse processo porém não se esgota na forma como percebemos com nossos sentidos como faz todo ser vivo mas conserva a transcendentalidade ou seja conserva uma série de qualidades ou defeitos que conferem a identidade absoluta Quando observamos a figura de uma divindade o máximo que percebemos num primeiro momento é sua forma física mundana Depois quando consideramos aquilo que a imagem representa verificamos que há uma série de atributos ligados a ela e esses atributos nos fazem pensar numa série de valores que temos Segundo Mircea Eliade 1992 é o sagrado em seu aspecto mediador no interior de uma hierofania que dá ao homem religioso a possibilidade de estabelecer uma relação com a fonte do sagrado com o sagrado em sua dimensão absoluta com a transcendência É interessante notar que o homem religioso assume uma humanidade que tem um modelo transumano transcendente Ele só se reconhece verdadeiramente homem quando imita os deuses os heróis civilizadores ou os antepassados míticos Em resumo o homem religioso se quer diferente do que ele acha que é no plano de sua existência profana O homem religioso não é dado fazse a si próprio ao aproximarse dos modelos divinos Esses modelos como dissemos são conservados pelos mitos pela história das gestas divinas Por conseguinte o homem religioso também se considera feito pela História tal qual o homem profano ELIADE 1992 p 52 Observação A palavra hierofania vem de duas palavras gregas hierós santo sagrado e fanein manifestar Hierofania é então toda e qualquer manifestação do sagrado Isso é estudado pela fenomenologia da religião área que pretende examinar e categorizar o invisível e identificar as forças que dominam as mais variadas manifestações da práxis religiosa Ela utiliza aspectos visíveis e palpáveis como posturas gestos ações palavras ritos roupas e acessórios para tentar descrever por que somos religiosos Busca descobrir o sentido ontológico da religião e de seus fenômenos Cabe esclarecer que práxis tem origem no grego prâksis que significa conduta ou ação Dessa forma corresponde a uma atividade prática em oposição à teoria Esse termo é abordado por vários campos do conhecimento como filosofia e psicologia que classificam práxis como uma atividade voluntária orientada para determinado fim ou resultado Nesse sentido a religião opera no crente incentivando os valores da solidariedade da moral da disciplina do amor e da ética Poderíamos mesmo inferir que o surgimento do ser humano está intimamente ligado à religião pois o processo de humanização teve início com o aparecimento da linguagem e da religião 18 Unidade I Assim a religião é um fenômeno do ser humano que o faz refletir sobre seu fim último sobrepondose a todas as deficiências de justificativa que porventura venham a surgir em sua mente Esse fenômeno se encontra presente inclusive em quem é avesso à religião Quando por exemplo estudamos de forma mais aprofundada o judaísmo o islamismo e o hinduísmo percebemos que as três religiões apresentam muitos pontos em comum Isso acontece porque o sentimento de criatura um estado psíquico de solene devoção e arrebatamento que muitas vezes se traduz em gratidão esperança amor confiança humilde sujeição e submissão está presente em todas as situações em que alguém acredita na presença de um ser superior a sua condição humana O sentimento de criatura ocorre tanto por causa da própria nulidade quando sentimos ou acreditamos estar diante de um poder aniquilador quanto por causa da autopercepção uma sensação sobre nossa ínfima condição Lembrete A filosofia da religião não pretende dizer se uma religião é certa ou errada mas levantar indagações por meio de métodos filosóficos para atingir seus objetivos 12 A relação do homem com o divino Quando falamos de filosofia em sentido mais amplo usamos como definição a investigação racional dos problemas do mundo e do homem seus princípios fundamentos e relações A filosofia da religião também se nutre de uma história milenar de pensadores que questionaram e foram questionados argumentaram publicaram ensinaram e algumas vezes se calaram A religião é a forma mais típica de manifestação do ser humano Ela não está presente em nenhum outro ser O homem desenvolveu atividades religiosas desde seu surgimento na terra todas as tribos populações e culturas elaboraram um modo de cultivar a religião e suas crenças Além disso todas as manifestações artísticas e literárias buscaram inspiração em motivos religiosos Por terem fundamentações aparentemente distintas a filosofia apoiase na atividade da razão a religião sustentase na fé o primeiro movimento que pressupomos entre a filosofia e a religião é o estranhamento De fato muitos filósofos pretenderam refutar os argumentos religiosos e mostrar que o homem não necessita da religião em sua vida As motivações para o estranhamento com a religião são diversas e caminham por áreas como ética antropologia epistemologia lógica e metafísica Entretanto é claro para a filosofia que a busca pela verdade sobre o divino não desqualifica a religião como manifestação própria da natureza humana ou caminho para o alcance do transcendente Percorremos um longo caminho através dos tempos modernos e contemporâneos indagando pela questão de Deus e da religião Quando falamos de religião na filosofia moderna ocidental evidentemente nos referimos quase sempre ao cristianismo Em nosso caminho encontramos 19 FILOSOFIA DA RELIGIÃO três questões básicas levantadas pelo Iluminismo a relação entre a razão e a fé a Igreja e a sociedade e o sentido do homem e do mundo ZILLES 1991 p 189 Em geral a filosofia da religião no Ocidente se debruçou sobre as diferentes versões do teísmo Platão por exemplo defendeu um Deus singularmente bom no lugar dos deuses que muitas vezes se mostravam imperfeitos e sujeitos ao vício e à ignorância O desenvolvimento do judaísmo do cristianismo e do islamismo como religiões mundiais confirmou a ideia de Deus único o teísmo Dessa noção floresceram tradições e práticas religiosas e podemse encontrar elementos teístas ainda que fragmentados no confucionismo no hinduísmo e em algumas versões do budismo O debate sobre o teísmo também tem importância para o humanismo secular e para as formas religiosas de ateísmo Saiba mais Leia mais sobre o teísmo em SCHMAELTER M M Teísmo InfoEscola sd Disponível em https wwwinfoescolacomreligiaoteismo Acesso em 6 jan 2020 Muitos termos usados para descrever Deus nas tradições teístas são analogias por exemplo pai pastor ou fonte Mais difíceis de classificar são as descrições de Deus como bom pessoal consciente onipresente e criativo As discussões filosóficas e teológicas mais fervorosas se concentram em determinar o significado dessas descrições Ao atribuir onisciência a Deus alguém poderia alegar que Deus conhece todas as verdades de maneira semelhante a como conhecemos as verdades sobre o mundo Um movimento na filosofia tem sido afirmar que na alegação Deus sabe alguma coisa empregase a palavra sabe univocamente quando na verdade esse termo significa muitas coisas como entender compreender apreender adivinhar e sentir o que torna difícil determinar que saber é esse que é atribuído a Deus SWINBURNE 1977 Outro paradoxo surge quando consideramos que alguém possa existir fora do tempo Na tradição monoteísta em todas as religiões Deus é visto como um ser que existe sem qualquer tipo de começo ou fim Deus nunca poderá deixar de existir Alguns teístas filosóficos sustentam que a temporalidade de Deus é muito parecida com a nossa no sentido de que há um antes um durante e um depois para ele ou um passado um presente e um futuro Essa visão é por vezes referida como a tese da eternidade de Deus Aqueles que adotam uma postura mais radical afirmam que Deus existe independentemente da temporalidade argumentando que ele não está no tempo ou que está simultaneamente em todos os tempos Como percebeu Agostinho 2000 p 10371038 se Deus não está vinculado ao tempo pode haver uma solução para o problema anterior de reconciliação entre a liberdade e a predestinação 20 Unidade I Ele vê com um olhar absolutamente imutável sem levar seu pensamento de um objeto para outro Por conseguinte o que se passa no tempo compreende certamente não só acontecimentos futuros que ainda não são mas também presentes que já são e passados que já não são Mas ele abarcaos a todos em sua estável e sempiterna presença Assim se Deus está fora do tempo pode haver também um fundamento seguro que explique a imutabilidade a incorruptibilidade e a imortalidade de Deus Além disso o autor sugere a possibilidade de usar a posição de Deus fora do tempo para afirmar que Deus é o criador do tempo Outra constatação importante é que todas as religiões conhecidas abordam a natureza do bem e do mal e recomendam formas de alcançar o bemestar humano seja isso pensado em termos de salvação libertação iluminação tranquilidade ou estado sem ego no nirvana Apesar de haver diferenças significativas entre elas existe uma sobreposição substancial entre muitas concepções de bem Uma regra encontrada em diversas religiões é a que diz Faça aos outros o que gostaria que fizessem a você Observação Nirvana palavra relacionada ao budismo referese ao estado de libertação atingido pelo ser humano ao percorrer sua busca espiritual Determinadas religiões interpretam o divino como algo além de nossas noções humanas de bem e mal Em certas formas de hinduísmo por exemplo o brâmane é exaltado como detentor de uma espécie de transcendência moral Alguns teólogos e filósofos cristãos por sua vez insistem que Deus é apenas um agente moral num sentido qualificado Para eles dizer que Deus é bom é muito diferente de chamar um ser humano de bom Observação Segundo a mitologia hinduísta os brâmanes representantes da autoridade espiritual e intelectual teriam nascido da boca do deus Brahma considerado a representação da força criadora do universo Nas religiões cristãs há uma tendência a explicar a bondade de Deus por meio de padrões que não são criação dele portanto independentes da vontade de Deus Esse pensamento é chamado voluntarismo teísta Numa versão comum dessa perspectiva afirmase que bom ou certo é o desejado por Deus e que mal ou errado é o proibido por ele Os voluntaristas teístas enfrentam várias dificuldades para fazer valer sua forma de pensar já que a linguagem moral parece compreensível sem precisar ser explicada em termos de vontade divina De fato muitas pessoas expressam juízos morais objetivos sem fazer qualquer referência a Deus 21 FILOSOFIA DA RELIGIÃO Outra dificuldade para o voluntarismo está em explicar o aparente conteúdo significativo de uma afirmação como Deus é bom Parece que ao chamar Deus de bom o crente religioso está dizendo que a própria noção de bondade tem algum significado independente da vontade de Deus Ao entender a bondade de Deus em termos do ser Deus chegamos perto da posição de Tomás de Aquino que afirma que Deus é essencialmente bom em virtude do próprio ser de Deus Segundo essa perspectiva para algo ser bom não é necessário que Deus queira que seja assim A bondade de Deus pode ser compreendida de várias maneiras por exemplo pelo argumento de que a perfeição de Deus requer que ele seja bom Nesse sentido é possível afirmar que o conhecimento é bom em si mesmo e assim a onisciência é um bem supremo Deus também tem sido considerado bom na medida em que criou e conservou a existência de um universo bom No entanto as coisas se complicam quando discutimos o mal Se Deus é de fato onipotente e perfeitamente bom por que existe o mal Se Deus não pode tornar a crueldade boa ele pode fazer ou querer que algumas ações sejam moralmente obrigatórias ou moralmente proibidas Outro esforço para vincular os juízos de bem e mal com os julgamentos de Deus encontrase na teoria da ética do observador ideal Segundo essa teoria os juízos morais poderiam ser analisados em termos de como um observador ideal julga as coisas Dizer que um ato é correto implica sustentar que se houvesse um observador ideal ele o aprovaria Dizer que um ato é errado implica sustentar que se houvesse um observador ideal ele o desaprovaria TALIAFERRO MEISTER 2010 O observador ideal é descrito de várias maneiras por diversos filósofos mas sempre é considerado um observador onisciente imparcial em relação aos fatos Se é verdade que os juízos morais são de fato coerentes então a ideia de um observador ideal é coerente Na concepção das três grandes religiões monoteístas Deus se encaixa na descrição do observador ideal Se a teoria do observador ideal for considerada convincente um teísta terá razão ao afirmar que os ateus que se mantêm comprometidos com julgamentos éticos normativos também estão comprometidos com a ideia de um Deus ou de um ser divino TALIAFERRO 2005b Em alguns textos de filosofia da religião debatemse os argumentos para a existência de Deus Por exemplo o argumento da ordem aparente e da natureza intencional do cosmos é criticado com base na ideia de que na melhor das hipóteses esse argumento estabelece que há uma inteligência proposital e projetista atuando no cosmos o que está longe de provar que existe um Deus onipotente onisciente benevolente etc A esse respeito vale destacar que poucos filósofos conseguem oferecer hoje um argumento único como prova da existência ou da não existência de Deus em geral trabalhase com argumentos cumulativos acompanhados de toda uma gama de considerações Uma das razões para o recurso a argumentos cumulativos é o descontentamento com o fundamentalismo A forma clássica de fundamentalismo afirma em primeiro lugar e acima de tudo uma base para a crença base que se pretende verdadeira indubitável e infalível A partir daí constróise a justificativa para outras crenças sobre si mesmo e sobre o mundo Muitos pensadores no entanto entendem que o objeto da investigação filosófica é a coerência geral não uma série de operações de construção da verdade sobre uma fundação inquestionável 22 Unidade I Um modo de pensar a filosofia da religião de maneira não fundamentalista é considerar de forma comparativa as visões religiosas do mundo Certo argumento diz que a integridade intelectual de uma visão religiosa do mundo poderá ser assegurada se for possível demonstrar que ela não é menos racional do que as alternativas disponíveis Para uma ideia religiosa fazer sentido ela precisa apenas alcançar uma paridade intelectual com as demais ideias sobre o mesmo assunto A forma religiosa de ver o mundo pode não ser incompatível com a ciência mas complementar Há quem diga que a tendência a acreditar em Deus segue a natureza da mente humana Essa postura compreende o que é comumente chamado epistemologia reformada devido a sua conexão com a obra do teólogo reformado João Calvino que afirmava que o ser humano tem um sentido de Deus Observação Em filosofia da religião epistemologia reformada é uma escola de pensamento que se debruça sobre a epistemologia das crenças em Deus e que foi desenvolvida por um grupo de filósofos cristãos protestantes Quem tem o ônus da prova num debate entre um teísta e um ateu A necessidade de prova é associada a um fundamentalismo antiquado Hoje concordase que qualquer ônus de prova é compartilhado igualmente por ateus e teístas Há uma série de argumentos ontológicos para provar a existência de Deus Todos eles se baseiam principalmente em fundamentos conceituais a priori que não envolvem uma investigação empírica a posteriori Observação Argumento ontológico é qualquer argumento que defenda a existência de Deus através da ideia de que ele é obrigatoriamente um ser perfeito e que portanto deve existir O foco dos argumentos ontológicos é a tese de que se existe um Deus então a existência dele é necessária A existência de Deus não é contingente porque ele não é o tipo de ser que acontece ao existir Essa imagem plausível do que se entende por Deus pode ser demonstrada apelandose para a maneira como as tradições judaica cristã e islâmica o concebem O defensor de um argumento ontológico pode buscar convencer os outros de que o conceito de Deus é o conceito de um ser que existe necessariamente partindo da noção de um ser que expressa a ideia de máxima excelência Se houvesse um ser maximamente excelente como ele seria Suas qualidades maiores a onisciência e a onipotência seriam necessárias para sua existência Um ser maximamente excelente que exista necessariamente poderia ser chamado de Deus O primeiro argumento ontológico remonta a Santo Anselmo c 10341109 O fato de que o conceito de Deus como uma realidade necessariamente existente venha sendo formulado através do tempo e em muitas culturas sugerese que esse conceito é coerente É possível que exista um Deus pois a existência 23 FILOSOFIA DA RELIGIÃO dele é plausível Um velho preceito filosófico afirma que se algo existe em pensamento deve existir de fato O problema é sempre a negação que entende que se há evidência de que algo existe também há evidência da possibilidade de que esse algo não exista Se é possível que não haja Deus então não há Deus Mas como podemos defender a inexistência de Deus Ver uma contradição num ser descrito ao mesmo tempo como onisciente e onipotente pode ser uma boa razão para concluir que a existência de Deus é impossível Outra objeção ao argumento ontológico em sua premissa de que se existe um Deus ele existe necessariamente pedese apenas que se considere um estado de coisas ostensivo sem precisar admitir se esse estado de coisas é possível ou impossível Também se encontram argumentos cosmológicos para provar a existência de Deus Alguns afirmam que o cosmos tem uma causa inicial fora dele uma primeira causa no tempo Outros dizem que o cosmos tem uma causa necessária e sustentada a cada instante Essas duas versões não são mutuamente excludentes pois é possível que o cosmos tenha tido uma causa primeira e que tenha atualmente uma causa de sustentação Simplesmente não sabemos Observação O argumento cosmológico tenta provar a existência de Deus através da observação do mundo que nos rodeia ou seja do cosmos O argumento cosmológico baseiase na inteligibilidade da noção de algo que não é em si causado a existir por qualquer outra coisa Esse argumento fornece a razão para pensar que há pelo menos um ser com um poder extraordinário e que é responsável pela existência do cosmos Isso pode não justificar a imagem onipotente e onisciente do Deus da religião mas ainda assim desafia as alternativas do ateísmo Quem propõe o argumento cosmológico sustenta que sabemos a priori que se algo existe há uma razão para sua existência Então por que o cosmos existe Se explicarmos a existência contingente do cosmos apenas em termos de outras coisas contingentes estados anteriores do universo por exemplo então uma explicação cósmica definitiva nunca será alcançada Há argumentos como em Aristóteles que dizem que a regressão temporal contínua de uma existência contingente a outra nunca explicaria a existência do cosmos Seria mais razoável aceitar que houve uma causa primeira do que aceitar que o cosmos nasceu do nada Alguns teístas chegam perto de concluir que era de fato essencial que Deus criasse o cosmos Se Deus é supremamente bom deve haver algum transbordamento de bondade na forma de um cosmos As escolhas de Deus podem ser contingentes mas não a existência de Deus e a escolha divina de criar o cosmos pode ser entendida como profundamente simples em seu supremo objetivo primordial de criar algo bom Há ainda argumentos teleológicos os quais descrevem características do cosmos que parecem refletir o desígnio ou intencionalidade de Deus Faz parte desses argumentos o fato de serem formulados como prova de que o cosmos é o tipo de realidade que seria produzido por um ser inteligente Por meio 24 Unidade I deles defendese também que postular essa origem é mais razoável do que negála Como no caso do argumento cosmológico o defensor do argumento teleológico pode alegar que está apenas nos dando alguma razão para pensar que existe um Deus Observação A palavra teleologia vem de telos que significa objetivo ou propósito Na teleologia acreditase que os seres humanos e outros organismos têm finalidades e objetivos que orientam seu comportamento É possível usar os argumentos mencionados de maneira complementar O argumento teleológico fornece alguma razão para pensar que a causa primeira do argumento cosmológico é intencional enquanto o argumento ontológico fornece alguma razão para pensar que faz sentido postular um ser que tenha atributos divinos e que exista necessariamente Certa refutação das versões da prova de existência de Deus não acredita que o cosmos é bom ou que é o tipo de coisa que seria organizada por um ser inteligente completamente benevolente Isso nos leva de volta à questão do mal a maior objeção ao teísmo na filosofia ocidental e oriental Esse problema tem duas versões principais Dedutiva ou lógica afirma que a existência de qualquer mal independentemente de seu papel na produção do bem é incompatível com a existência de Deus Probabilística afirma que dada a quantidade e a gravidade do mal que realmente existe é improvável que Deus exista O problema dedutivo é atualmente menos debatido porque se reconhece que um ser completamente bom pode permitir ou infligir algum dano sob certas condições moralmente constrangedoras pode por exemplo permitir que sintamos dor por causa de uma queimadura O debate mais intenso diz respeito à probabilidade ou mesmo à possibilidade de que exista um Deus completamente bom dada a vasta quantidade de mal no cosmos Podese argumentar por exemplo que a bondade de Deus difere da bondade moral de uma pessoa Outra estratégia é negar a existência do mal No entanto não é fácil conciliar o monoteísmo tradicional com o ceticismo moral Além disso na medida em que acreditamos num Deus digno de adoração o argumento do ceticismo moral tem pouco peso A ideia de que o mal é uma privação ou uma distorção do bem serve para pensar o problema do mal mas é difícil ver como isso poderia contribuir para a crença na bondade de Deus As três grandes religiões monoteístas com sua insistência na realidade do mal não oferecem nenhum motivo lógico para a tentativa de elucidar o problema por esse caminho De fato o judaísmo o cristianismo e o islamismo estão tão comprometidos com a existência do mal que uma razão para rejeitálo seria uma razão para rejeitar as próprias tradições religiosas Como seria o ensinamento judaico sobre 25 FILOSOFIA DA RELIGIÃO o êxodo Deus libertando o povo de Israel da escravidão ou o ensinamento cristão sobre a encarnação Cristo revelando Deus como amor e liberando um poder divino que no final superará a morte ou o ensinamento islâmico de Maomé o santo profeta de Alá que é todo justo e todo misericordioso se a escravidão o ódio a morte e a injustiça não existissem Se em nossa ética pessoal sustentamos que não deve haver sofrimento independentemente da causa ou da consequência então o problema do mal entra em conflito com nossa aceitação de uma religião tradicional Além disso se sustentamos que qualquer solução para o problema do mal deve ser evidente para todas as pessoas então novamente as religiões tradicionais não trazem soluções universais Poderia haver razões pelas quais Deus permitiria males cósmicos Se não conhecemos essas razões estamos em posição de concluir que não há nenhuma ou que não poderia haver nenhuma Se acreditarmos por exemplo que não há livrearbítrio e que tudo está escrito não seremos movidos por qualquer apelo ao valor positivo do livrearbítrio e a seu papel de trazer o bem como compensação de seu papel de trazer o mal Os religiosos dizem que a existência do mal não torna improvável a existência de Deus Por esse motivo escrevem teodiceias A proposta nelas não é dar conta de todo e qualquer mal mas fornecer uma estrutura abrangente que permita entender como o mal que ocorre é parte de algum bem maior A superação do mal seria em si um grande bem Observação Teodiceia é um ramo da teologia que trata da coexistência de um Deus todopoderoso de bondade infinita com o mal O mal pode ser entendido como necessário para bens maiores ou como parte desses bens Numa concepção frequentemente denominada defesa do livrearbítrio propõese que criaturas livres capazes de cuidar umas das outras e cujo bemestar depende da ação livremente escolhida constituem um bem Para que isso se realize argumentase deve haver boafé das pessoas quando elas se prejudicam mutuamente A defesa do livrearbítrio é às vezes usada de forma restrita apenas para cobrir o mal que ocorre como resultado direto ou indireto da ação humana Nesse sentido o livre arbítrio é entendido como a capacidade de escolha autônoma realizada pela vontade humana Outra questão ligada ao mal é a especulação da vida após a morte É possível aceitar que Deus permita o mal no mundo só para depois as vítimas da maldade passarem a vida eterna no paraíso e viverem em completa felicidade Nesse sentido como devemos entender a morte Ela é a aniquilação das pessoas ou um evento obrigatório de transfiguração para um estado superior Se não achamos importante o fato de as pessoas continuarem a existir depois da morte essas conjecturas pouco importam Mas suponhamos que a vida após a morte seja entendida como uma continuidade moralmente entrelaçada com esta vida que a vida após a morte seja uma oportunidade de reforma moral e espiritual transfiguração dos ímpios rejuvenescimento e início de uma nova vida talvez até de reconciliação e comunhão entre opressores que buscam o perdão e suas vítimas Na medida em que não podemos descartar a possibilidade de uma vida após a morte 26 Unidade I moralmente ligada a nossa vida secular não podemos descartar a possibilidade de que Deus traga algo de bom dos males cósmicos O raciocínio é o mesmo Nesse sentido se não somos metafisicamente idênticos a nosso corpo então talvez a aniquilação dele não seja a aniquilação de nós mesmos Em outras palavras na medida em que nossa alma é diferente de nosso corpo talvez a morte dele não seja o fim de nossa existência Uma das justificativas mais comuns para a crença diz respeito à vivência de uma experiência religiosa Outra é o peso cumulativo do testemunho dos que afirmam ter tido experiências religiosas Do ponto de vista teísta a argumentação apela para o fato de que muitas pessoas testemunharam sentir a presença de Deus Esses testemunhos fornecem evidências de que Deus existe Até hoje há posições contrárias e favoráveis à importância de alguém se sentir experimentando um estado de plenitude religiosa Esboçamos a seguir algumas dessas posições filosóficas segundo Taliaferro 1998 Posição A Hipótese de objeção a experiência religiosa não pode ser uma experiência de Deus porque a experiência é apenas sensorial Se Deus é não físico ele não pode ser sentido Resposta existe a possibilidade de um forte sentimento de presença de outra pessoa como a mãe ou o filho sem nenhuma outra sensação que a proximidade em consciência A noção segundo a qual Deus não poderia ser sentido demonstraria uma concepção limitada de experiência Posição B Hipótese de objeção o testemunho de ter experimentado a Deus comprova apenas que alguém pensa que experimentou a presença de Deus é o testemunho de uma convicção não de uma evidência Resposta a literatura sobre a experiência religiosa mostra a existência da experiência de algum ser divino com base na qual o sujeito passa a acreditar que a experiência é de Deus Se lido com caridade o testemunho não remete a uma convicção mas a uma vivência que fundamenta a convicção Posição C Hipótese de objeção uma vez que a experiência religiosa é única como alguém poderia determinar se ela é confiável Não somos capazes de examinar o objeto da experiência religiosa para estabelecer se os relatos têm fundamento Resposta como aprendemos em Descartes todas as nossas experiências de objetos externos enfrentam um problema de singularidade É possível em princípio que todos os nossos sentidos estejam errados e que nossa vida externa fora da mente seja completamente diferente daquilo que acreditamos ser Se não podemos sair da subjetividade de nossa própria mente para ter certeza das informações de nossos sentidos por que seria diferente no caso da experiência religiosa 27 FILOSOFIA DA RELIGIÃO Posição D Hipótese de objeção os relatos de experiência religiosa diferem radicalmente e o testemunho de um grupo religioso neutraliza a fé dos outros A fé dos hindus anula a fé dos cristãos A fé dos ateus em experienciar a ausência de Deus anula a fé dos que acreditam Resposta há várias maneiras de responder a essa objeção A fé para experienciar a ausência de Deus pode ser mais bem entendida como o testemunho de não experienciar a presença de Deus Deixar de experienciar a presença de Deus pode ser uma justificativa para acreditar que ele não existe mas apenas na medida em que podemos acreditar que se Deus existe ele tem de ser experienciado por todos Os teístas podem até contestar a alegação de muitos ateus de que é possível ser virtuoso e viver eticamente com a crença ateia Se existe um Deus talvez ele não considere isso ruim mas prefira que a vida virtuosa seja acompanhada de uma crença religiosa sob determinadas condições de fé A diversidade de experiências religiosas fez a argumentação de alguns de seus defensores não evoluir muito Há teístas que afirmam que esse argumento não é forte o suficiente para justificar plenamente uma tradição religiosa específica mas que é forte o bastante para derrubar um naturalismo antirreligioso Outros defensores teístas usam a tradição específica de sua crença para lidar com afirmações ostensivamente concorrentes baseadas em diferentes tipos de experiência religiosa Os teístas acreditam que experiências mais impessoais do divino representam apenas um aspecto de Deus Deus é uma pessoa ou um ser mas também pode ser experimentado por exemplo como pura unidade luminosa Os hindus afirmam que a experiência de Deus como pessoa é apenas um estágio da grande jornada da alma para a verdade e a maior verdade é que o brâmane transcende a personalidade do ser Como resolvemos nossa questão com Deus depende muito de nossas convicções gerais em relação à filosofia Podemos inclusive misturar de forma holística argumentos teístas e ateístas Se não acreditamos nas implicações da experiência religiosa e precisamos de uma prova contundente para qualquer tipo de perspectiva religiosa é muito provável que os argumentos clássicos para a existência de Deus não nos convençam Ao analisar o pensamento dos principais filósofos modernos vemos que para Freud a religião era uma forma de lidar com nossos desejos para Marx um modo de manter as pessoas felizes para servirem de mão de obra no capitalismo para Durkheim uma expressão coletiva de forças da sociedade Se entendemos que o quadro teísta é coerente e que o testemunho da experiência religiosa fornece alguma evidência para o teísmo apoiamos pelo menos um dos argumentos teístas clássicos pois isso serve para corroborar ainda mais aquilo em que já acreditamos Desse ponto de vista as explicações científicas das ciências humanas do século XIX podem até esclarecer alguma coisa principalmente por que algumas pessoas não conseguem ter experiências de Deus Mas combateremos a ideia de que não há realidade religiosa Reafirmamos que aqui não vamos discutir a crença ou não em Deus Queremos apenas enfatizar a existência de várias manifestações de espiritualidade que são importantes elementos das religiões Alguns defendem a ocorrência de milagres como eventos extraordinários e insistem que eles servem de razão para acreditar em agentes sobrenaturais Desde que David Hume rejeitou os milagres o debate se concentrou 28 Unidade I principalmente em como alguém define esse fenômeno Como devemos especificar os princípios de evidência que explicam determinadas ocorrências históricas muito incomuns TALIAFERRO 2005a Há diferentes argumentos para motivar a crença religiosa Um dos mais interessantes em filosofia relacionase a uma conjectura de Blaise Pascal 16231662 Essa conjectura foi feita com o intuito de oferecer razões práticas para a crença em Deus Imaginemos não estar seguros da existência de Deus Podemos viver a vida inteira sem precisar decidir se ele existe ou não Por um lado há bons motivos para acreditar em Deus Independentemente de nossa crença ser falsa ou verdadeira nós nos sentiríamos próximos de um bem maior Por outro lado também há bons motivos para não acreditar em Deus Nesse caso nada mudaria se estivéssemos corretos Se no entanto acreditássemos não haver Deus e estivéssemos errados nós nos arriscaríamos a perder o bem maior dos que seguem a crença de que Deus existe Com base nisso parece mais razoável acreditar que Deus existe SWINBURNE1979 Segundo Pascal espírito e razão são conhecimento por conclusões mediado enquanto o sentimento é conhecimento intuitivo e imediato Claro sentimento aqui não significa sentimentalismo Pascal opõe o coração à razão mas com a palavra coração não designa simplesmente o irracionalemocional em oposição ao lógicoracional A palavra coração designa o núcleo ou o centro da pessoa humana ZILLES 1991 p 35 Notese que o conflito entre ciência e religião se alastrou pelos séculos XVII e XVIII e no mundo das instituições sociais a ciência triunfou Com a criação do Estado laico administrado inteiramente por princípios não religiosos tudo o que antes era feito em nome da vontade de Deus passou a ser feito em nome da vontade do homem e de seus modos de organização Hoje com o surgimento das preocupações ecológicas de respeito e preservação do meio ambiente essa institucionalizada concepção científica da natureza volta a ser confrontada Não podemos negar que a ciência é uma conquista humana importante mas é possível relativizar seu valor e passar a considerar também a pertinência e a dignidade de outros modos de olhar para o universo e para o próprio homem Entendemos que o olhar do homem científico não deve excluir o olhar do homem religioso pois ambos refletem a forma de adaptação do ser humano a seu meio que é ao mesmo tempo misteriosa operacional poética e muitas outras coisas que nem sequer podemos ainda imaginar Uma questão que vem crescendo nos últimos anos é se podemos confiar na ciência cognitiva da religião como comprovação da verdade ou da racionalidade do compromisso religioso De acordo com essa vertente a crença em agentes sobrenaturais parece ser cognitivamente natural e de fácil disseminação BOYER 2001 Assim os cientistas estão tentando medir as experiências místicas e religiosas com detectores de ondas que nossos sentidos não conseguem captar Por enquanto porém é muito cedo para afirmar qualquer coisa como resultado desses testes Atualmente alguns autores afirmam que se está diante de uma realidade que apontaria para uma possível implosão do conceito de religião e o próprio fim da religião Falase ainda de decomposição do religioso 29 FILOSOFIA DA RELIGIÃO O fato é que se assiste a uma perda crescente de autoridade das instituições religiosas um processo de desinstitucionalização de indiferentismo religioso e de carência de vocação ou interesse pelo ingresso em ordens religiosas Os pesquisadores do tema percebem que esse processo teve início na década de 1990 época em que a religião teria virado artigo de consumo descartável 2 PRIMEIROS ESTÁGIOS DA RELIGIOSIDADE Desde o século XVII no mundo ocidental estudiosos têm especulado sobre o problema dos primórdios da cultura humana fazendo uso de dados empíricos sobre as crenças e práticas religiosas entre as culturas do Novo Mundo da África da Austrália do Pacífico Sul e de outros lugares Com isso a religião se tornou uma das áreas de estudo que moldaram as ideias atuais sobre as origens da consciência humana e das instituições Nessas pesquisas a religião é interpretada como experiência humana e também como expressão dessa experiência sendo vista como um modelo primitivo da consciência humana mais claramente observada em culturas primitivas Um dos modos mais generalizados de comportamento religioso em culturas primitivas se expressa no uso de rituais e ações ritualizadas As formas e funções dos rituais são variadas Eles podem ser realizados para assegurar o favor do divino afastar o mal ou marcar uma mudança cultural no Estado Na maioria dos casos mas não em todos um mito etiológico fornece a base para o ritual em um ato divino ou de injunção A manifestação religiosa mais primitiva que o pesquisador Kipkoeech araap Sambu 2007 pôde coletar em seus estudos sobre a constituição das religiões africanas foi a do povo Xhosa que após diversas migrações hoje se encontra na África do Sul Esse povo canta com o intuito de convidar os antepassados para uma festa Durante o canto conduzido pelo líder da unidade genealógica patrilinear eles oferecem aos antepassados um sacrifício Amarram as patas traseiras de um bode ou de um boi e penduram o animal Puxam as cordas para esticar o tórax até que o animal emita um som De acordo com esse som percebem se estão em comunicação com os antepassados e se a oferenda foi aceita por eles Se o animal grunhe ou berra a ocasião é considerada um mau presságio Essa forma de sacrifício para o contato com os ancestrais também é utilizada pelo povo Kalenjiin A diferença é que eles buscam os presságios nas entranhas do animal abatido Uma evolução do pensamento religioso dos Xhosa para o dos Kalenjiin consiste no seguinte para os Xhosa a comunicação é feita com os ancestrais para os Kalenjiin o emissor do presságio é Asiis a divindade das profundezas da terra Com base no trabalho de Sambu 2007 podemos notar que uma transformação cultural moldou todas as religiões monoteístas processo que começou na África há milhares de anos Para os Xhosa existe um Deus Thixo mas o povo não tem acesso a ele O contato é feito por meio dos espíritos ancestrais izinyanya Estes vivem perto de Deus e ao lado dos descendentes vivos Se os ancestrais desagradam a Deus eles deixam os descendentes doentes ou lhes causam tristeza ou sofrimento Às vezes quando estão felizes os ancestrais aparecem nos sonhos das pessoas e estas conversam de forma alegre e vívida com pais avós ou outros parentes falecidos Outras vezes porém os ancestrais estão zangados ou descontentes Nesse caso os espíritos dizem ter fome e querer carne 30 Unidade I e descrevem o animal que deve ser sacrificado sempre um bode ou um boi nunca uma fêmea Toda a família tem de assistir ao sacrifício e comer a carne O espírito se alimenta apenas do aroma do prato e fica feliz por ver que é amado e lembrado pela família Como consequência restaura a saúde e a felicidade dos descendentes Sambu 2007 destaca os seguintes pontos sobre a religião Xhosa os quais permitem a elucidação filosófica da prática da veneração ancestral uma preocupação em toda a África e a base para suas religiões Existe um criador mencionado como Deus único O povo Xhosa sabe que ele existe mas não o conhece pessoalmente O povo conhece pessoalmente seus antepassados que por sua vez conhecem pessoalmente a Deus porque se juntaram a ele Os antepassados residem agora em algum lugar entre os vivos e Deus Eles são intermediários entre o homem e a divindade não substitutos desta aos olhos dos vivos Quem solicita alguma coisa conversa diretamente com os antepassados em sonhos fazendo o pedido para alguém a quem conhece numa atitude familiar entre o vivo e o espírito ancestral Essa oração é retransmitida ao verdadeiro destinatário Deus pelos ancestrais que estão agora próximos dele e têm tal privilégio Quem pede sabe que não pode desagradar aos ancestrais que não pode ser egoísta ou agir de forma repulsiva com os outros que não pode ser negligente com a família e omisso no dever para com os ancestrais Se fizer isso estará pecando Se quem demanda algo de Deus ignorar as regras de boa conduta e se comportar sem pensar poderá ser punido imediatamente aqui na terra por meio de doença tristeza e melancolia A punição pelo divino é portanto aqui e agora Os espíritos que partiram tomam a iniciativa de se comunicar com os descendentes em sonho Eles orientam as pessoas e requerem alimentos Pelo ato de alimentar o espírito falecido com animais sacrificados as virtudes da generosidade e da atenção plena aos outros são impostas ao mortal que através do sacrifício de animais que lhe são caros demonstra suportar a amargura da separação da perda e da resignação Apenas mediante o sacrifício a pessoa entra em comunhão com a família estendida e o espírito dos antepassados falecidos A fome do espírito do ancestral não é especificamente dele É a fome coletiva dos membros da linha genealógica da pessoa Não é uma fome física nem uma exigência gananciosa É a fome da comunhão o desejo de ver a manutenção e a continuidade do amor familiar de constatar a identidade como fator unificador mesmo na ausência daqueles que se foram Para isso o que poderia ser melhor que a fumaça e o aroma das oferendas queimadas signos evidentes de um banquete em conjunto Mesmo que os espíritos pareçam tão exigentes eles são atenciosos e só escolhem um boi ou um bode e não a fêmea dos animais Esta deve ser mantida viva para ajudar a aumentar o bemestar da família O divino portanto está interessado na felicidade e na prosperidade do povo É possível lembrarse 31 FILOSOFIA DA RELIGIÃO dele e dos demais membros da linhagem sem que isso implique custos ou despesas que de alguma forma empobreçam a família O que se exige é uma parte do lucro não uma parte do capital Se tudo for feito no momento certo e de boafé os antepassados representantes de Deus vão ficar felizes e no devido tempo restaurar a saúde a prosperidade e a felicidade Se com boas ações atenção plena e generosidade alguém tiver agradado às pessoas a seu redor bem como aos ancestrais que partiram esse alguém terá conseguido agradar a Deus ao máximo Se cada pessoa de uma família seguir o caminho correto a nação inteira composta de unidades familiares vai viver uma vida justa que levará à saúde e à prosperidade de todos SAMBU 2007 A caracterização dessa forma muito antiga de crença religiosa revela padrões que depois serão sofisticados pelas diversas culturas Mas a base está dada No desenvolvimento das religiões cada uma das etapas descritas ganha elementos que vão diferenciar um rito religioso de outro Uma problemática antiga dos estudos de religião diz respeito a se ela seria ou não um fenômeno universalmente humano Homo religiosus Após muitos séculos de pesquisa sobre o tema apenas se pode afirmar que todas as civilizações passadas e atuais das quais se dispõe de documentação confiável apresentaram ou apresentam algum tipo de manifestação religiosa Somente essa constatação porém não é suficiente para elaborar conclusões universalistas quanto a sociedades antigas sobre as quais pouco se sabe ou quanto a sociedades futuras Também é relevante notar que o termo religião pertence a uma matriz latina e portanto é estranho à linguagem das culturas antigas excluída a romanolatina e das culturas não europeias Diante disso as interpretações que historicamente se fizeram do termo são muitas escrúpulo consciência exatidão lealdade um estilo de comportamento marcado por rigidez e precisão Só a partir dos estudos de Agostinho 354430 enfatizase a exortação do homem para Deus articulandose religio a religando Com essa nova interpretação de religião iniciase a ideia de ligação baseada na submissão e no amor entre o homem e Deus Na atualidade a ideia mais corrente é a de religare tendo como fonte o termo latino relegere ou religáre que não significa necessariamente religação com um Deus mas sim com a existência o cosmos as dimensões invisíveis o divino o misterioso 21 Elementos das religiões egípcias Considerase que uma das civilizações antigas mais preocupadas com as questões espirituais era a egípcia Esse povo se inicia cedo nas práticas religiosas Sabese que suas expressões místicas mais antigas provêm de 5000 a 4000 aC A religião era indissociável da vida política e da rotina dos egípcios tudo era uma expressão da vontade divina e os faraós eram sempre reverenciados como deuses encarnados A crença religiosa influenciava consideravelmente a vida das pessoas 32 Unidade I Por serem politeístas os egípcios acreditavam em vários deuses e adoravam distintas divindades as quais poderiam representar forças da natureza animais e figuras humanas Alguns desses deuses eram adorados por toda a população enquanto outros estavam inseridos nas práticas religiosas de uma única região Além de politeístas os egípcios costumavam homenagear figuras antropozoomórficas seres cujo corpo tinha partes humanas e partes animais Há séculos os egípcios e sua religião têm exercido grande atração sobre o mundo ocidental No Egito antigo todos os segmentos sociais praticavam a religião sobretudo após a expansão faraônica durante o Novo Império 15501070 aC Pensavam o mundo a partir de sua experiência Viviam num deserto fecundado pelas águas milagrosas do rio Nilo Para eles o sol nascia e morria todos os dias pois desconheciam os movimentos de rotação da terra interpretando o mundo como resultado de forças superiores que se submetiam ao deus sol Duas características muito importantes da religiosidade dos egípcios eram os conceitos maat e heka O conceito de maat definia a importância de viver uma vida correta a fim de manter a existência harmônica no universo O conceito de heka se relacionava à magia e afirmava a importância dela tanto na criação do universo quanto na manifestação do poder dos deuses Um dos mitos mais importantes e antigos é o da cidade de Heliópolis que se tornou o principal centro religioso e sede do culto solar na época da construção das pirâmides de Quéops Quéfren e Miquerinos Destacamos a seguinte narrativa No princípio era o Nu Num o oceano celestial com sua característica de imobilidade e totalmente estático a visão do caos na concepção egípcia De seu interior surgiu o deus Atum autogerado não confundir com Aton que surgiria na 18ª dinastia e representa o disco solar Uma vez emerso do Num a primeira porção de terra também emergiu para acolher o deus Tal porção de terra era identificada por uma forma piramidal frequentemente associada a um obelisco BREMMERRHIND apud FUNARI 2012 p 48 Segundo George Hart 1992 esse outeiro primitivo tornouse formalizado como benben bnbn uma elevação piramidal firme para sustentar Atum ou Rá o deus sol As relíquias reais de pedra talvez consideradas o sêmen petrificado de Atum eram citadas como sobreviventes no hewetbenben hwtbnbn a mansão do benben ou a mansão da pedra benben O termo benben pode ser interpretado como o raio de sol petrificado e não necessariamente o sêmen Uma vez sustentado o deus Atum inicia o processo de criação dos deuses por atos oriundos da fala ou da boca Em outras variantes essa criação foi produzida pela masturbação do deus Dizse ainda que tudo ocorreu com a união de Atum com sua sombra kaibit Uma vez autogerado Atum expeliu o deus Shu e cuspiu a deusa Tefnut estabelecendo a primeira tríade Shu designava o ar a atmosfera entre outros elementos esse deus pode aparecer com a qualidade da luz solar Tefnut simbolizava a umidade do céu Então o casal Shu e Tefnut continuou a criação gerando o casal Geb terra e Nut céu Atum não tomou mais parte na criação a não ser para gerar de suas lágrimas a raça humana 33 FILOSOFIA DA RELIGIÃO O deus Geb tinha um caráter masculino ao contrário do que ocorria em muitas sociedades antigas que estabeleciam uma sociedade feminina com a terra a mãe terra A deusa Nut por outro lado representava o céu com estrelas planetas e outros deuses A barca de AtumRá navegava 12 horas por dia em seu corpo Tal jornada se iniciava em seu ventre situado no leste e terminava aparentemente em sua boca no crepúsculo no oeste Em seguida uma nova fase foi levada a cabo com a geração dos quatro filhos do casal Geb e Nut Osíris que se tornaria o rei do mundo inferior Ísis a senhora do trono Seth uma configuração das forças caóticas da natureza e Néftis a senhora do castelo Um aspecto importante nessa fase da criação é o papel de Osíris e Seth que expressavam certa dualidade de princípios na forma masculina Coexistem assim a terra fértil e a terra estéril o vale do rio Nilo e o deserto a luz e as trevas a ordem e o caos Osíris e Seth Ísis traduzia o aspecto materno a grande maga e consorte de Osíris senhora do trono de Osíris ou do Egito Néftis senhora do castelo ou mansão é chamada em árabe Nebthet Esse castelo pode ser entendido como um lugar no firmamento e a casa de Hórus Assim os deuses Atum Shu Tefnut Geb Nut Osíris Ísis Seth e Néftis formaram a Enéada de Heliópolis ou seja os nove deuses da criação Aos deuses é agregado Hórus ou Heru que espelhava o faraó ou a própria raça humana Depois da partida de AtumRá para o firmamento Hórus permanece vivo na terra e Osíris reina no mundo inferior O processo da criação estava estabelecido A natureza surgiu em algum ponto das quatro fases da criação A espécie humana formada a partir das lágrimas de AtumRá passou por um processo diferente daquele do mundo natural Os deuses do panteão egípcio eram representados de três maneiras diferentes Antropomórfica forma humana Zoomórfica forma animal Antropozoomórfica forma humana e animal ao mesmo tempo Cada deus exercia uma função diferente e tinha sacerdotes específicos responsáveis por sua adoração Os sacerdotes no Egito antigo poderiam ser tanto homens quanto mulheres Em geral as sacerdotisas prestavam culto a uma deusa e os sacerdotes a um deus mas isso não era algo obrigatório Os sacerdotes do Egito enfrentavam um longo processo de capacitação e podiam constituir família como qualquer outra pessoa Esses religiosos eram responsáveis pela adoração dos deuses e pela manutenção do templo bem como pela realização dos festivais Também cumpriam um papel com a comunidade local realizando funerais e casamentos e atuando como curandeiros A adoração aos deuses nos templos era restrita a eles 34 Unidade I 211 O mito de Osíris O mito de Osíris um dos mais antigos do Egito foi fundamental para a religião do Estado egípcio Através dele muitos fatos do cotidiano passaram a ser explicados e legitimados como o direito ao trono por Hórus e pelos faraós as guerras a vida após a morte e a criação do grande adversário Seth Osíris casouse com sua irmã Ísis Como ele era o deus dos cereais Ísis tornouse a deusa dos cereais Eles eram rei e rainha do Egito Seu irmão Seth porém casado com sua irmã Néftis tinha ciúmes do casal governante Osíris havia ensinado os homens a trabalhar tanto na agricultura quanto na fabricação de produtos de metal Seus súditos que nutriam um profundo amor por ele narravam a história de que seu enciumado irmão o matou pôs seu corpo num cofre e o jogou no rio Nilo Osíris a vítima era lavrador e Seth o assassino era pastor Na Bíblia vemos esses papéis invertidos Caim o assassino era lavrador e Abel a vítima era pastor Talvez essa inversão de profissões no relato bíblico a mais tardia das duas versões se deva à atividade pastoral dos hebreus Osíris foi assassinado antes de ter gerado um herdeiro ao trono egípcio No entanto Ísis encontrou o corpo dele e o trouxe de volta escondendoo num pântano Mais tarde Seth o localizou e o cortou em 14 pedaços os quais espalhou pelo Egito Ísis recuperou os pedaços em putrefação exceto o órgão reprodutor e com o auxílio de outros deuses devolveulhe a vida reconstituindo o falo perdido Com isso Osíris foi capaz de engravidar Ísis antes de ir para o submundo possível modelo para o céu judaicocristão julgar os mortos Osíris e Ísis deram vida a Hórus o qual posteriormente vingou a morte do pai e recuperou o trono SAMBU 2007 Se por um lado o mito de Heliópolis retoma questões que explicam a origem dos deuses do mundo e do homem o mito de Osíris demonstra os modos de conduta da sociedade antiga equiparando dois reis um justo e bom Osíris o outro mau e obcecado pelo poder a todo custo Seth Ressaltase o papel de Ísis como mulher dedicada e esposa leal que busca o marido de forma incansável e o reconstitui completamente a ponto de conseguirem ter um filho Hórus 212 O significado religioso do mito de Osíris Um elemento central na religião dos egípcios era a crença na continuidade da vida após a morte Os egípcios acreditavam que a vida terrena era apenas uma etapa de uma jornada que continuaria por isso seria necessário levála da maneira mais justa possível Os atos realizados em vida eram extremamente importantes porque definiriam o destino de cada pessoa Os egípcios viam o corpo humano como um conjunto de potencialidades que não se esgotavam na vida terrestre mas que se completavam na existência do alémtúmulo Aquele que obtivesse sucesso em viver segundo os princípios de Maat deusa da justiça adquiriria os méritos para se tornar ele também um osíris revivendo num mundo ideal 35 FILOSOFIA DA RELIGIÃO Eis por que o corpo humano não podia desaparecer com a morte pois de sua conservação dependia a preservação de algumas das potencialidades que o defunto necessitaria para viver feliz na outra vida Esse mito era utilizado pelos sacerdotes egípcios para cultuar o poder regenerador da terra em especial no que se referia a sua íntima ligação com a agricultura Da mesma maneira que a semente lançada ao solo após morrer renasce o homem que morre e é sepultado de acordo com os ritos instituídos pelos deuses renasce revigorado e com a capacidade de viver eternamente Seu espírito iluminado pela luz de Rá tornase um deus na forma de uma estrela Assim toda estrela no céu é a representação de uma alma lá admitida A crença na vida após a morte explicava a preocupação dos egípcios com a conservação dos corpos uma vez que a continuidade da vida estava condicionada a sua preservação na terra Desse ponto de vista era necessário que os corpos fossem cuidados Por isso os egípcios mumificavam seus mortos Pelas informações obtidas por pesquisadores egípcios a mumificação era realizada em um longo processo que se estendia por aproximadamente setenta dias Durante a mumificação os órgãos eram retirados e o corpo era limpo e banhado com óleos e resinas especiais sendo em seguida enfaixado No túmulo eram colocados alimentos e uma série de objetos como joias e estátuas No entanto o processo mais conhecido era restrito à nobreza a única que tinha condições financeiras de pagar por ele A religião egípcia partia do princípio de que antes dos registros históricos existia uma estreita relação de criação entre deuses e homens os primeiros eram os mestres da construção universal os outros seus aprendizes As ações feitas no céu refletiam na terra e viceversa havendo uma responsabilidade recíproca na formação e no equilíbrio do cosmos Isso ocorreu até o momento em que esse elo foi rompido com desordem desarmonia e injustiça no universo e só voltará a acontecer quando as virtudes da justiça e da perfeição forem restabelecidas O modo como os egípcios enterravam seus semelhantes era uma forma de celebrar a vida as ilustrações que enfeitavam o interior das catacumbas exaltavam a cultura a caça e a pesca e os ornamentos de alto valor enterrados com os mortos os guiavam para a vida eterna na qual seu labor continuaria normalmente Os egípcios eram apaixonados pela vida não pela morte Entre as religiões antigas a egípcia é considerada uma das mais preocupadas com questões espirituais repleta de rituais e deuses Estes variavam de região para região e além de sábios eram detentores de uma poderosa magia Não havia um sistema teológico dogmático A fé egípcia era centrada no acúmulo de incontáveis mitos antigos no culto à natureza e a inumeráveis divindades É interessante notar que os deuses egípcios formavam várias famílias aparentadas e representavam uma hierarquia Quando lembramos que nos ritos antigos eram os parentes falecidos que intercediam pelos vivos entendemos que os deuses egípcios eram representações adotadas por crenças familiares ligadas à atividade produtiva e ao local geográfico de residência 36 Unidade I No tocante à criação os egípcios acreditavam que Nu o espírito da água primeva na imensa escuridão sentiu o desejo de exercer a atividade criadora e o mundo passou a existir imediatamente por intermédio da pronúncia de sua palavra de uma maneira previamente traçada em seu espírito com uma semente algumas versões falam em ovo ou flor na qual habitava o deus sol Rá que tinha uma forma brilhante e o poder absoluto do espírito divino O deus Seth tornouse a encarnação do espírito do mal existindo em eterna oposição ao espírito do bem Ele era duro e selvagem desde o dia em que nasceu quando abriu violentamente o ventre de sua mãe As lendas descrevem Seth com a pele branca e o cabelo vermelho uma abominação para os egípcios que comparavam sua pele com a de um asno sem pelos Os gregos como nos informa Heródoto adotaram muitos deuses egípcios entre eles Seth o qual renomearam de Tufão Este era um deus da violência e do tumulto O vermelho ficou associado tanto a Seth quanto a Tufão motivo pelo qual egípcios e gregos tinham prevenção contra ruivos e animais de cor vermelha Observação Os reis egípcios eram considerados deuses vivos e o povo egípcio acreditava que essas autoridades eram descendentes de Rá e a encarnação de Hórus 22 Aquenáton e o monoteísmo Aquenáton faraó da 18ª dinastia egípcia é considerado o primeiro reformador religioso da história da humanidade Governou o Egito antigo entre 1353 aC e 1336 aC Também conhecido como Amenófis IV passou para a história como aquele que fez importantes transformações sociais e religiosas no Egito Observação Para seus súditos o faraó era filho de deuses e deus ele próprio Tinha poder absoluto dispensava justiça e era o administrador supremo do país Os deuses egípcios costumavam ser representados com cabeças de animal sobre corpos humanos Eles dominavam todos os aspectos da vida no Egito tanto da realeza quanto das pessoas comuns Os deuses menores protegiam as pessoas do mal Os poderosos como Osíris deus dos cereais tomavam conta da fertilidade ao redor das margens do Nilo AmonRá era o maior de todos os deuses e com o auxílio de Mut Tot Anúbis Sekhmet e Uadjit controlava as coisas visíveis e invisíveis no Egito antigo 37 FILOSOFIA DA RELIGIÃO Observação Durante o Novo Império fundiram o deus Amon com Rá formando AmonRá Curiosamente foi também no Egito que surgiu a ideia de monoteísmo Em 1390 aC Amenófis III tornouse faraó Seu segundo filho igualmente chamado Amenófis foi proclamado rei aos 15 anos de idade governando com o pai até este falecer Em 1353 aC ao assumir o trono mudou o próprio nome para Aquenáton e deu início a uma revolução religiosa abolindo a devoção politeísta e privilegiando o monoteísmo Desde o início de seu reinado Aquenáton e sua mulher Nefertiti decidiram desafiar todo o sistema religioso do Egito antigo Dispostos a sacudir as bases de sua sociedade criaram ideias que levariam o império à beira do abismo O casal começou a reinar durante os anos dourados da civilização egípcia quando o império era o mais rico e poderoso do mundo As colheitas eram abundantes a população era bem alimentada os templos e palácios reais estavam cheios de tesouros e o exército alcançava inúmeras vitórias contra todos os inimigos Após o quinto ano de reinado Aquenáton transferiu a capital religiosa do Egito de Uaset também designada como Tebas depois que o Egito foi dominado pelos gregos para um novo centro de adoração situado entre Luxor e Cairo conhecido atualmente como Tell elAmarna ou Amarna Hoje essa cidade tem palmeiras e campos mas naquela época era um local árido e desértico ou seja foi uma escolha pouco popular Quando os arqueólogos buscaram evidências que explicassem essa decisão sem precedentes encontraram 17 estelas demarcando os limites externos da cidade Uma delas trazia uma espécie de decreto que dizia a todos que entravam na nova cidade que ela havia sido criada para a adoração do único deus Aton Observação Estelas são placas de pedra madeira ou faiança com inscrições e imagens Através delas se conhece muito da história do Egito Aton era originariamente um pequeno deus simbolizado pelo disco solar Depois da determinação de Aquenáton de que Aton era o único e verdadeiro deus do povo egípcio o próprio sol passou a representar Aton que tinha de ser adorado como o criador universal da vida A prática religiosa abandonou os vários deuses e adotou apenas um deus poderoso criador de todas as coisas A ideia era revolucionária pela primeira vez na história um faraó queria substituir o panteão de deuses egípcios por uma única divindade o deus sol ou Aton o criador de todos Além de revolucionária a proposta era uma heresia No entanto uma vez que o faraó era considerado um deus na terra ele tinha poderes ilimitados para modificar o que quisesse Decretou que os 2 mil deuses adorados no Egito havia mais de um milênio estavam extintos Suas aparências humanas e animalescas foram substituídas pela forma abstrata do sol e de seus raios 38 Unidade I Observação Sabemos que a câmara cerimonial sagrada e outras estruturas religiosas em Amarna foram erigidas sem telhado para que o disco sagrado do sol fosse adorado diretamente Depois de dez anos Aquenáton transformou o deserto numa capital movimentada mas esse feito teve um custo muitos trabalhadores morreram por conta dos castigos físicos e das severas condições impostas Esse período ficou conhecido como os anos sombrios chegando a pôr a sobrevivência do império em risco em 1344 aC a corte real tinha em torno de 30 mil súditos Os arqueólogos supõem que para realizar os caprichos do faraó exigiase fisicamente muito do povo Num cemitério encontrado em Amarna onde estão enterrados servos trabalhadores e pessoas comuns chegaram à constatação de que muitos morriam jovens e poucos viviam além dos 32 anos As ossadas de trabalhadores foram estudadas por bioarqueólogos os quais concluíram que a maioria dos esqueletos tinha traumas lombares o que sugere quedas devido ao peso da carga Quando Aquenáton morreu 1336 aC depois de 17 anos no trono reinava o caos no país Seu filho de 9 anos de idade Tutancâmon assumiu o comando sob a regência de Nefertiti A antiga religião foi restaurada pelos sacerdotes de AmonRá que estavam ansiosos para reaver seu prestígio Com isso a capital do império no deserto foi abandonada e destruída o deus solar Aton foi tirado do panteão egípcio e seus monumentos foram arrasados O nome de Aquenáton nunca mais apareceu em qualquer lista de reis feita pelos faraós subsequentes O legado de Aquenáton ficou oculto por mais de 3 mil anos Saiba mais Foi Tutancâmon quem resgatou os antigos deuses e restaurou o poder e a prosperidade do Egito Os sacerdotes recuperaram seu antigo poder e a vida retornou à normalidade Nenhum outro faraó egípcio voltou a tentar mudar a ordem estabelecida e desafiar a religião tradicional Os que vieram após Aquenáton se esforçaram por destruir todos os registros de seu culto herege Suas estátuas foram derrubadas e as pedras dos templos usadas como material para a construção de novos prédios As rochas esculpidas foram escondidas para que ninguém voltasse a vêlas Isso acabou preservandoas para a posteridade Na década de 1920 elas começaram a reaparecer Muito do que sabemos de Aquenáton e do culto a Aton vem delas Leia mais em A REVOLUÇÃO de Aquenáton o faraó que acabou com 2 mil deuses e instaurou o monoteísmo no Egito BBC Brasil 15 jul 2017 Disponível em httpswwwbbccomportuguesegeral40602931 Acesso em 6 jan 2020 39 FILOSOFIA DA RELIGIÃO Figura 1 Busto da rainha Nefertiti esposa do faraó Aquenáton Uma questão que ainda não foi resolvida referese à intenção de Aquenáton ao adotar o deus sol Uma teoria muito polêmica diz que ele tinha um problema visual grave devido a sua herança genética No Museu do Cairo a estátua que representa Aquenáton parece demonstrar que ele tinha uma doença nos olhos provavelmente miopia Ele adoraria o disco solar porque seus raios brilhantes o fariam enxergar melhor ou seja essa adoração ocorreria mais por necessidade fisiológica do que por devoção Interpretações contemporâneas por outro lado sugerem um rompimento na maneira de acreditar na divindade O deus Aton não era retratado numa forma antropomórfica mas como o próprio disco solar elevado aos céus estendendo seus múltiplos raios sobre a família real Cada raio terminava numa pequena mão com a qual Aton podia oferecer a vida Os dogmas religiosos que Aquenáton adotou em sua adoração a Aton não estão detalhados em lugar nenhum Algumas suposições foram levantadas a partir da reconstituição da iconografia de relevos das estelas do templo que descrevem tanto o templo quanto a divindade e do extenso texto religioso encontrado nas escavações de vários túmulos em Amarna o hino de Aton Nas incontáveis cenas de oferenda preservadas Aquenáton não é retratado olhando o deus cara a cara como era a regra para representar as práticas tradicionais de devoção mas erguendo oferendas ao disco solar que o banha com seus raios O faraó se colocava portanto abaixo do deus sol criador da vida Os diálogos recíprocos entre rei e divindade que aparecem regularmente nas cenas tradicionais pintadas nos templos egípcios validando as bênçãos proferidas pelos deuses não existiam na religião de Aquenáton pois a divindade principal não tinha boca para falar Sentiase sua luz e seu calor e assim seu poder divino O hino de Aton é em grande parte uma descrição de efeitos naturais Ele apresenta o disco solar como o principal motor da vida cuja elevação diária rejuvenesce todas as coisas vivas na terra e em cujo ambiente todas as criaturas vão dormir Embora esteja escrito que Aton criou o mundo para os seres humanos parece que o objetivo maior da criação era realmente o próprio rei que tinha uma conexão íntima e privilegiada 40 Unidade I com o deus A revelação e o conhecimento divino eram reservados apenas a Aquenáton O hino porém não explica os mistérios da divindade Certas passagens dele são compartilhadas por uma tradição literária mais abrangente ou seja não são exclusivas da religião de Aquenáton Embora Aquenáton seja considerado o primeiro monoteísta do mundo a religião de Aton pode ser mais bem descrita como uma monolatria a adoração preferencial de um deus sobre todos os outros De fato o deus de Aquenáton incorporou vários aspectos do sol divinizado tradicional como ReHarakhte o sol nascente Shu atmosfera e luz solar e Maat filha de Re Ainda assim não podemos deixar de considerar que essa proposta de religião monoteísta aconteceu setecentos anos antes do primeiro registro dos hebreus quando a Bíblia começou a ser escrita MARK 2014 É de supor que a ideia de Aton como uma divindade todopoderosa todoamorosa criadora suprema e mantenedora do universo tenha tido uma forte influência no desenvolvimento da fé religiosa monoteísta Não sabemos se Aquenáton foi motivado por uma questão política para suprimir o poder do culto de Amon a religião principal em todos os reinados anteriores ou se ele teve alguma revelação religiosa O caso é que esse foi o primeiro registro de alguém que vislumbrou a ideia de divindade única e suprema preocupada com a vida individual e o destino dos seres humanos Aquenáton fracassou ao tentar mudar para sempre a religião egípcia mas êxitos menores lhe proporcionaram a imortalidade que reivindicou em vida Promoveu um vibrante movimento artístico que gerou quadros realistas da vida cotidiana na época Seus engenheiros criaram blocos de construção que se tornaram material útil para estruturas posteriores permitindo que as narrativas neles inscritas sobrevivessem por milênios E hoje Amarna sua capital abandonada é o único local onde visitantes podem caminhar pelas ruas de uma antiga cidade egípcia Segundo Sigmund Freud no livro Moisés e o monoteísmo de 1939 Moisés era um egípcio que teria sido adepto do culto de Aton e expulso do Egito após a morte de Aquenáton Freud cita o arqueólogo James Henry Breasted o qual dizia que o próprio nome Moisés era egípcio a palavra egípcia mose significa criança Freud afirma que o culto de Aton existia muito antes de Aquenáton promovêlo mas ressalta que o faraó acrescentou um novo componente na religiosidade a doutrina de um deus universal exclusivo MARK 2014 3 AS RELIGIÕES AFRICANAS Antes de abordar as principais características das religiões africanas é importante voltar ao significado do conceito de religião e principalmente à aplicabilidade do conceito de religião à vida e ao pensamento africano Essa discussão é necessária não só pelo fato de que a palavra religião não é africana como também por ser duvidoso que haja uma palavra única ou até mesmo uma tradução perifrástica da palavra em qualquer língua africana Vale destacar porém que o fenômeno existia entre os povos africanos Os primeiros observadores europeus perceberam que esses povos eram preeminentemente religiosos nem mesmo sabendo viver sem religião Ocorre que alguns dos primeiros visitantes europeus opinaram livremente sobre a mente africana dizendo que ela estava numa condição muito rude para ser capaz de sentimento ou percepção religiosa 41 FILOSOFIA DA RELIGIÃO Atualmente diversos estudiosos têm demonstrado interesse em provar que os povos africanos por suas próprias luzes e bem antes de um europeu pisar na África foram capazes de desenvolver a crença em Deus As religiões tradicionais africanas não têm textos escritos ou livros sagrados mas se baseiam na tradição ou narração passada de geração para geração sobre o conteúdo e a maneira de viver sua religiosidade Isso se dá em forma de histórias ritos provérbios danças músicas e festas Um erro comum é supor que todos os povos africanos sejam da mesma raça e compartilhem a mesma origem o que também leva a pensar que tenham os mesmos costumes e a mesma religião Isso não corresponde à verdade pois o continente africano é muito grande e abriga uma infinidade de culturas diferentes Apesar dessa diversidade a religião tradicional africana distingue dois aspectos da realidade aquilo que é visível físico e material e aquilo que é invisível e espiritual Esses dois aspectos fundemse entre si ou seja nenhuma coisa do mundo físico é tão material que não contenha em si elementos do mundo espiritual Isso conduziu à crença de que há espíritos nas pedras nas montanhas nos rios nas árvores nos trovões no sol e na lua Por esse motivo a religião tradicional africana é muitas vezes chamada de animista Observação Animismo é a ideia de que todas as coisas incluindo pessoas animais características geográficas fenômenos naturais e objetos inanimados possuem um espírito que as conecta umas às outras Enquanto o relato bíblico do Gênesis sugere uma antiga influência egípcia visto que o registro egípcio antecede a escrita da Bíblia a narrativa Dogon de uma cultura tribal que se espalha entre Níger Mali e Burkina Faso sugere um caráter panafricano Segundo a religião Dogon Deus começou a criação com dois gêmeos masculinos Um deles Yurugu se rebelou e se transformou numa raposa pálida o inimigo da luz a raposa é um animal noturno da água e da fertilidade Conceitualmente Yurugu pode ser considerado um deus da escuridão como Seth o qual também é um rebelde e também é representado como uma raposa SAMBU 2007 O gêmeo de Yurugu Nommo foi sacrificado e ressuscitado por Deus para mitigar a desordem causada pela raposa Esse gêmeo corresponde a Osíris que foi morto por Seth e depois ressuscitado por Ísis Assim Nommo e Yurugu representam princípios opostos ordem e desordem vida e morte secura e umidade Yurugu a raposa teve a língua cortada mas ainda podia predizer o futuro com as patas sendo respeitado por isso Yurugu se assemelha a Seth de outras maneiras por exemplo ele também nasce prematuramente saindo primeiro de sua mãe perturbando a sequência ordenada de nascimento de gêmeos Hórus filho de Osíris era representado pelos artistas como um homem com cabeça de falcão Ele era o deus do céu e mais tarde foi adotado pelos gregos sob o nome de Apolo divindade cujas sacerdotisas também podiam predizer o futuro Hórus era o herdeiro do trono de Osíris Por conseguinte todos os faraós tornaramse herdeiros do trono porque se acreditava que fossem encarnações de Hórus Ele era o símbolo da realeza 42 Unidade I divina A palavra para rei divino era um hieróglifo com um falcão em seu poleiro A escolha de um falcão para representar Hórus assim como de um chacal ou um cão para representar Seth talvez tenha origem no totemismo egípcio antigo A luta entre Seth e Hórus pode portanto ser apenas uma representação tardia da luta pelo trono entre dois homens um do clã dos chacais o outro do clã dos falcões SAMBU 2007 Os Kalenjiin acreditam não apenas na vida após a morte mas também na retomada da vida na terra regressando o indivíduo como um bebê humano A transferência de alma de um corpo para outro é chamada metempsicose pelos gregos sendo ainda conhecida como reencarnação transmigração da alma ou renascimento Os Kalenjiin creem na infinitude do ciclo dos espíritos entrando e saindo de corpos por toda a existência Até hoje muitas religiões africanas consideram o espírito muito mais importante que o corpo o qual é uma morada temporária do espírito Segundo Heródoto a crença grega no fenômeno da metempsicose seria originária do Egito A reencarnação foi defendida tanto por Platão quanto pelos neoplatônicos Acreditase que o desenvolvimento dessa noção decorra do exame das características familiares nas crianças e da dedução de que as similaridades entre avós pais netos e bisnetos sejam propriedades reencarnadas A reencarnação está associada a religiões dominadas por uma deusa mãe como a de Ísis do Egito antigo e a de Asiis dos Kalenjiin Sambu 2007 chega a afirmar que Asiis seria uma apropriação de Ísis De acordo com os Kalenjiin a alma de uma pessoa falecida será lembrada por meio de um bebê vindo à luz depois de sua morte o qual deverá nascer de um homem da linhagem paterna da pessoa que morreu A criança assumirá o nome da pessoa falecida e às vezes até mesmo sua persona nos afazeres da tribo É de esperar que isso aconteça pois o espírito que a guarda seu anjo da guarda é o falecido A alma que carrega e suas qualidades enquanto duplicata não permitirão que ela seja melhor do que o original O falecido duplo estará continuamente guiando sua duplicata viva Para isso porém é importante seguir o caminho de Maat da justiça Os criminosos os desajustados sociais e os fracassados economicamente quando morrem não costumam voltar à vida na terra por meio da reencarnação Tais pessoas são aquelas que vão para o inferno Os romanos adotaram uma ideia religiosa semelhante Eles acreditavam que cada homem tinha seu gênio e cada mulher sua juno em alusão à esposa de Júpiter Na perspectiva deles esses espíritos lhes davam a existência e eram seus protetores durante a vida No dia de seu aniversário os homens faziam oferendas ao gênio e as mulheres à juno SAMBU 2007 A crença na reencarnação também esteve presente nas religiões celta e teutônica no gnosticismo e em algumas formas esotéricas do judaísmo entre as quais se incluía a irmandade dos essênios a seita a que muitos estudiosos consideram que Jesus pertencia As religiões e as culturas que não acreditam na visão cíclica do tempo como o judaísmo dominante o cristianismo e o zoroastrismo tendem a ser aquelas que não acreditam no conceito de reencarnação O inferno no sentido de fogo eterno ou de outras formas de tortura sádica sem fim não existe na teologia de Asiis Há uma ideia de abaixo que nesse contexto é a tradução correta para ngwony Esse termo que significa ainda solo ou subterrâneo no âmbito espiritual referese ao oposto dos céus o lugar onde Asiis vive sozinha Os espíritos encontramse num local abaixo do plano da terra o que não é a mesma coisa que no mundo subterrâneo 43 FILOSOFIA DA RELIGIÃO Acreditavase que a diligência e a justiça levavam à acumulação de riqueza espiritual A diligência ampliava a riqueza do indivíduo através do aumento de seu rebanho Seu viver justo e a abundância de bênçãos advindas dele eram uma garantia contra punições divinas civis e criminais as quais reduziriam a riqueza e ao mesmo tempo a espiritualidade do indivíduo Uma doutrina religiosa próxima disso é o hinduísmo De acordo com a crença hindu o efeito cumulativo do carma de uma pessoa segundo seus deveres desempenhados na terra a impulsiona para o próximo status para uma nova vida compatível com seu nível de diligência e retidão Um hindu procura a moksha a salvação que significa sua reunião final com Brahman Para alcançar a moksha ele deve completar três objetivos na vida dharma a conduta correta artha a aquisição de bemestar econômico a prosperidade terrena e kama os prazeres mundanos o gozo das coisas na vida Tanto a religião de Asiis quanto o hinduísmo afirmam que a posição de alguém no além é criada por cada um para si mesmo por meio de sua conduta social religiosa e econômica na terra Saiba mais Para se aprofundar no hinduísmo leia MATHUR S N CHATURVEDI B K Deuses e deusas hindus sua hierarquia e outros assuntos sagrados Tradução Selma Muro Borghesi São Paulo Madras 2008 Essa filosofia teológica remonta aos tempos egípcios No Egito o falecido desejava ser incluído na equipe de oficiais do deus sol Nessa perspectiva a forma de existência na terra se espelhava entre os deuses no outro mundo muitas características do futuro eram a continuação do estado das coisas na terra No caso dos Kalenjiin a hierarquia na esfera divina se refletia na riqueza expressa pelo número de cabeças de gado que Asiis tinha Todo indivíduo aspirava a estar mais perto do divino cuja proximidade aparentemente se media pela quantidade de gado que possuía SAMBU 2007 As almas que partiram guiam e protegem as pessoas vivas No entanto há almas penadas que desorientam os vivos os fazem cometer pecados e às vezes causam doenças São almas perversas que na terra foram fracassados morais e econômicos Também podem ser almas que partiram e que sentem ter sido prejudicadas pelos ainda vivos seja na morte seja antes dela Alguns espíritos mesmo os bons que desejam reencarnar em recémnascidos podem incomodar os membros da família até que sejam ritualmente persuadidos a desistir ou até que finalmente ganhem a oportunidade de reencarnar Como era crença entre os antigos egípcios o espírito dos mortos incomoda apenas os membros da própria família Ser impedido de reencarnar é a verdadeira e séria condenação do espírito e isso pode significar para ele estar no inferno estar perdido para sempre Os espíritos que reencarnam são afortunados e seu prazer só pode ser descrito nos termos associados à vida no céu no sentido cristão 44 Unidade I Considerando esses elementos verificamos que as religiões africanas desde a crença mais antiga dos Xhosa até a construção de panteões pelos egípcios algo posteriormente refletido nos diversos cultos africanos criaram não só um padrão para o politeísmo mas também as bases para o monoteísmo na medida em que este é uma reinterpretação daquele como vimos no culto de Aton As religiões de matriz africana foram incorporadas à cultura brasileira há muito tempo quando os primeiros escravizados desembarcaram no país e encontraram em sua religiosidade uma forma de preservar tradições idiomas conhecimentos e valores trazidos da África Roger Bastide 1971 diz que as derivações no Brasil das religiões africanas criaram os candomblés Vamos examinar essas derivações e seu sincretismo com o catolicismo 31 Candomblé O candomblé é uma religião monoteísta que acredita na existência da alma e na vida após a morte A palavra candomblé significa dança ou dança com atabaques e designa uma das religiões africanas mais praticadas no mundo Essa religião cultua os orixás normalmente reverenciados por meio de danças cantos e oferendas No Brasil a história do candomblé se mistura com a do catolicismo Proibidos de continuar com sua religião os escravos usavam as imagens dos santos para escapar da censura imposta pela Igreja Isso explica o sincretismo encontrado no candomblé brasileiro algo que não se verifica na África De forma geral as religiões africanas no Brasil podem ser definidas como o conjunto de práticas religiosas caraterizadas por invocação e adoração de entidades de origem africana Tais cultos foram trazidos por indivíduos negros da África importados para serem escravos nas plantações de canadeaçúcar e em outras atividades entre os séculos XVI e XIX Dois grupos se destacavam os que vinham do Congo de Angola e de Moçambique conhecidos como Banto e os que vinham do Benin da Nigéria e do Sudão conhecidos como Ioruba Nagô e Jeje Nessa época o catolicismo trazido pelos brancos portugueses era a religião oficial do Brasil A junção de práticas religiosas dos escravos de diversas regiões constituiu o culto afrobrasileiro reprimido pelas autoridades por ser visto como bruxaria Com isso os africanos tiveram de levar uma vida religiosa velada cultuando seus deuses secretamente muitas vezes identificandoos com os santos da Igreja Católica praticando o sincretismo Uma das formas de disfarce era a reza para Santa Bárbara ou para Nossa Senhora da Conceição santas católicas Na verdade eles estavam cultuando respectivamente Iansã e Iemanjá Observação Sincretismo é a prática religiosa que provém da fusão de outras O sincretismo religioso tem suas maiores expressões no Brasil em razão da colonização e da formação do povo brasileiro 45 FILOSOFIA DA RELIGIÃO As continuidades e rupturas da prática religiosa segundo o povo de origem das entidades estão fixadas na base do surgimento do candomblé e de suas divisões a umbanda e a quimbanda todas marcadas pelo sincretismo com o uso de velas rezas santos etc elementos típicos do catolicismo Os africanos que vieram ao Brasil trouxeram sua cultura dialetos costumes tradições e práticas religiosas elementos sustentados como forma de manutenção da etnicidade que os definia Lembrete A mistura de práticas religiosas de escravos oriundos de várias partes da África consolidou o que hoje se chama culto afrobrasileiro O candomblé é uma manifestação religiosa de origem africana que se caracteriza pelo uso de batuques instrumentos percussivos curas magias adivinhações bem como pela adoração invocação e oferenda aos orixás Exu e Oxalá Os orixás podem ser bons ou maus pois no candomblé o bem e o mal não existem isolados Cada um exerce uma função na interação com os seres humanos DOBALUAYÊ 2017 No tocante aos praticantes do culto inicialmente incluíam apenas a população negra das senzalas dos quilombos e dos terreiros moradas dos escravos Após a abolição da escravatura a proclamação da República e o crescimento dos centros urbanos criouse um ambiente propício para a organização de experiências religiosas mais estáveis e regulares com a participação de indivíduos de todos os estratos sociais No Brasil destacamse quatro subdivisões do candomblé Queto praticada majoritariamente na Bahia da nação Nagô com o uso da língua ioruba advinda de Benin Nigéria e Sudão Angola praticada principalmente na Bahia e em São Paulo da nação dos povos Banto de Angola Moçambique e Congo Espalhouse também por Minas Gerais Goiás e Rio de Janeiro sendo representada por caboclos as entidades da mata Batuque praticada no Rio Grande do Sul Xangô praticada em Pernambuco As principais diferenças entre os vários tipos de candomblé remetem à origem das entidades invocadas Ioruba Iorubano ou Nagô grupos étnicos da Nigéria e do Sudão Falam a língua ioruba Jeje também conhecido por Ewe é um grupo étnico proveniente de Gana Benin e Togo Fala a língua ewe Fon ou Fon Nu são a população da região sul de Benin e Togo do reino Daomé Falam a língua fon 46 Unidade I Para ordenar e celebrar da melhor maneira os cultos existem sacerdotes e instrumentistas além de outras funções geralmente associadas à organização social DOBALUAYÊ 2017 Os sacerdotes líderes das cerimônias são chamados babalorixá masculino e ialorixá feminino Qualquer pessoa pode participar dos cultos de louvor aos orixás Estes quando satisfeitos incorporam nos fiéis para fortalecer o axé a energia vital a fim de proteger tanto a eles quanto ao local de culto É importante observar que embora qualquer pessoa possa participar da cerimônia a condução dela só pode ser feita pelos iniciados ou seja por aqueles que passaram pela observância ritualística sacrifício de animais e vegetais uso de vestimentas especiais e obediência às rígidas regras e preceitos Nesses cultos o homem interage com a natureza através das entidades Portanto essa é uma religião panteísta Vale notar que o sincretismo religioso foi também fruto do desenraizamento dos africanos obrigados a buscar uma nova religiosidade fora do contexto cultural ou familiar Vimos antes que as religiões africanas tinham importância para as linhagens familiares entre diferentes grupos étnicos Originalmente cada família era adepta de determinada entidade em seu país de origem Mesmo que os rituais fossem semelhantes eles eram realizados em louvor de divindades específicas que beneficiavam um clã específico Essa devoção em relação a uma entidade se assemelha ao que acontece no catolicismo em que há devotos de São Jorge de Santo Antônio de São Francisco de Santa Lúcia e assim por diante Nos templos católicos porém vemos muitas figuras santas convivendo sob um mesmo teto Diante da necessidade de comportar diversas etnias e rituais diferentes seria um despropósito imaginar que na reorganização das religiões africanas no Brasil tenhase decidido abrigar o culto de várias entidades solitárias num mesmo terreiro A própria palavra candomblé é uma junção do termo quimbundo candombe dança com atabaques com o termo ioruba ilé ou ilê casa significando assim casa da dança com atabaques Dados do Centro de Estudos AfroOrientais da Universidade Federal da Bahia mostram que na cidade de Salvador existem aproximadamente 2300 terreiros registrados na Federação Baiana de Cultos AfroBrasileiros e há registros também em Portugal Espanha Itália Alemanha México Panamá e Argentina DOBALUAYÊ 2017 p 16 Hoje advogase que o candomblé seja a religião afrobrasileira mais influente no país Saiba mais Para se aprofundar nesse tema leia BASTIDE R As religiões africanas no Brasil Tradução Maria Eloisa Capellato e Olívia Krähenbüll São Paulo Pioneira 1971 47 FILOSOFIA DA RELIGIÃO 32 Umbanda A umbanda é uma religião monoteísta e afrobrasileira Surgida nos subúrbios do Rio de Janeiro rapidamente se espalhou por todo o Brasil e outros países da América Latina Suas crenças misturam elementos do candomblé do espiritismo e do catolicismo Por isso para muitos estudiosos a umbanda seria apenas o candomblé sem o sacrifício de animais sendo assim mais aceita pela população branca e urbana Saiba mais Espiritismo é o conjunto de princípios e leis revelados pelos espíritos superiores e contidos nas obras de Allan Kardec que constituem a codificação espírita O livro dos espíritos O livro dos médiuns O evangelho segundo o espiritismo O céu e o inferno e A gênese Leia mais no site da Federação Espírita Brasileira httpswwwfebnetorgbr De acordo com Barnes 1997 p 91 a umbanda é uma religião brasileira que sintetiza vários elementos das religiões africanas e cristãs porém sem ser definida por eles O termo é oriundo de Angola do idioma quimbundo e significa magia embora alguns autores digam ser originário da palavra mbanda o além onde moram os espíritos passando a ter como significado a arte de curar As fontes divergem quanto à data precisa de sua fundação alguns mencionam 15 de novembro de 1907 outros 15 de novembro de 1908 MARTINS 2006 Segundo os relatos que contam a história da criação da umbanda à época um jovem do Rio de Janeiro chamado Zélio Fernandino de Moraes prestes a se alistar na marinha passou a se comportar de maneira anormal ora parecia ser um idoso falando em línguas estranhas ora agia como um felino Seus familiares consultaram um médico e este os aconselhou a leválo a um padre No entanto encaminharamno para a Federação Espírita de Niterói onde ele incorporou um espírito e fez algo que um possesso não poderia fazer levantouse foi ao jardim buscar uma flor e colocoua no centro de uma mesa Então Zélio incorporou espíritos que afirmavam ser negros escravos e índios Ainda de acordo com esses relatos no dia seguinte os membros da Federação Espírita foram à casa da família em São Gonçalo Lá Zélio incorporou o Caboclo das Sete Encruzilhadas o qual declarou que velhos espíritos de negros escravos e índios de nossa terra podem trabalhar em auxílio dos irmãos encarnados independentemente de cor raça ou posição social MARTINS 2006 p 17 Nesse dia foi fundado o primeiro terreiro de umbanda Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade que ainda existe embora em outro endereço Quanto à organização da religião pode variar conforme a quantidade de membros sendo dividida em grupo administrativo e grupo espiritual 48 Unidade I Pai de santo e mãe de santo responsáveis por toda a atividade espiritual que ocorre no terreiro como iniciar conduzir e encerrar as jiras e estabelecer as ordens e doutrinas passadas pelo astral Paimenor e mãemenor responsáveis na ausência do pai ou da mãe têm os mesmos ensinamentos e participam de todos os rituais Curimbeiro ou atabaqueiro responsável por tocar e cantar os pontos entoados nas jiras bem como pelo ensino a novos ogãs Ogã calofé ou alabê responsável pela curimba e instrutor dos toques de atabaque Cambono médium designado a auxiliar a entidade trabalhando como um intérprete entre a entidade e o consulente Médium de trabalho médium feito ou médium coroado médiuns que prestam consultas nas jiras de atendimento e já passaram por todos os preceitos e obrigações batismo amaci e coroação Médium em desenvolvimento médiuns em processo de desenvolvimento Samba médium feminina em desenvolvimento Iaô médium feminina com feitura de santo Médium iniciante médiuns que ainda não incorporam sendo às vezes colocados como cambonos até adquirir experiência Transa ou porteira responsável por orientar e distribuir fichas ou senhas aos frequentadores Iabá responsável pela cozinha do terreiro pela confecção de ageuns amalás e comidas necessárias nos trabalhos Cota subordinada ou substituta da Iabá MARTINS 2006 p 19 Os ritos visam evocar o orixá ancestral e toda a sua hierarquia composta de orixás menores guias e protetores não tendo uma forma ou modo definido variando de terreiro para terreiro Estão subordinados à decisão de cada pai de santo e de cada entidade protetora do terreiro Bater cabeça reverência dada ao chefe do terreiro prostração que pode variar de terreiro para terreiro 49 FILOSOFIA DA RELIGIÃO Defumação do ambiente do corpo mediúnico e da assistência no sentido de desfazer todo ato negativo e expulsar todos os espíritos trevosos Cantar pontos elementos fundamentais do rito umbandista que servem para criar uma atmosfera vibracional que favoreça o trabalho realizado na casa limpeza do ambiente incorporação dos guias ou psicosfera do terreiro o equilíbrio de seus trabalhadores Pontos riscados diagramas desenhados no chão como ângulos retas símbolos representativos desenhos geométricos e pontos cardeais e que representam a assinatura do guia Oferendas comidas ou objetos específicos que são entregues em templos ou em locais ao ar livre em dias especiais e para fins especiais e que são agradecimentos aos guias e orixás Passe imposição de mãos que está presente também no kardecismo Descarrego rituais para limpeza espiritual para livrarse de cargas negativas podendo ser com ervas especiais e inclusive pólvora roda de fogo Batismo só pode ser realizado por líderes religiosos babalorixá ou ialorixá PEIXOTO 2008 p 130 Observação Kardecismo é a doutrina reencarnacionista formulada por Allan Kardec pseudônimo de Hippolyte Léon Denizard Rivail escritor francês 18041869 As entidades são espíritos organizados em linhas falanges ou legiões de forma quase militar sendo chamados espíritos de luz pois trabalham para o bem A religião cresceu e se diversificou dando origem a várias ramificações que têm a mesma essência por base a manifestação dos espíritos para a caridade As principais vertentes são umbanda branca e demanda umbanda kardecista umbanda mirim umbanda popular umbanda omolokô umbanda de almas e Angola umbandomblé umbanda eclética maior aumbhandã umbanda guaracyana umbanda dos sete rios aumpram ombhandhum e umbanda sagrada Peixoto 2008 p 140 apresenta alguns conceitos comuns a todas essas vertentes Um deus onipresente e único chamado Zambi ou Olorum A crença nos orixás ou divindades A crença na existência de entidades espirituais ou guias A eternidade da alma A crença nos ancestrais A reencarnação 50 Unidade I O carma A lei de causa e efeito pela qual os umbandistas pagam o mal com a justiça divina e o bem recebido com o bem A umbanda se fundamenta na obediência aos ensinamentos básicos dos valores humanos como a fraternidade a caridade e o respeito ao próximo Além desses preceitos fazse necessária a prática mediúnica na qual o indivíduo serve de aparelho médium para viabilizar a comunicação dos espíritos e orixás com os seres humanos Vale ressaltar que tanto a umbanda como o candomblé não são religiões puramente africanas mas de matriz africana fundadas no Brasil Destacamos ainda que apesar da raiz em comum o candomblé está mais próximo dos cultos africanos por ter sido mais preservado não se misturando tanto com outras religiões Assim nos ritos do candomblé são celebradas as energias trazidas pelos orixás que provocam um efeito de transe nos adeptos dessa religião os quais dançam em meio a cantos batuques e comidas oferecidas aos orixás Já a umbanda misturou de maneira mais visível catolicismo espiritismo e candomblé fundando uma doutrina baseada em ideias dessas três religiões Por ter sido mais difundida a umbanda consolidouse melhor enquanto doutrina e instituição religiosa o que a fortaleceu no Brasil 33 Quimbanda Ao tratar deste tema é fundamental observar que existe uma significativa diferença entre as palavras quimbanda e kimbanda visto que elas designam coisas distintas Kimbanda vem da palavra africana em bantu que significa curador ou xamã e também pode se referir a aquele que se comunica com o além É a denominação do curandeiro africano angolano Quimbanda por sua vez termo da língua portuguesa apesar de se originar da palavra africana antes citada pode designar tanto o chefe de um terreiro de quimbanda quanto uma linha diferenciada de trabalhos espirituais dentro da umbanda Embora menos praticada não podemos falar de religiões afro sem fazer menção à quimbanda Um dos pioneiros a escrever sobre ela com propriedade foi Lourenço Braga com as obras Umbanda e quimbanda 1942 Trabalhos de umbanda e quimbanda 1946 e Umbanda e quimbanda volume 2 1956 Segundo Roger Bastide 1971 p 94 a quimbanda a umbanda e o batuque apesar de constituírem três modalidades distintas têm em comum o fenômeno da possessão quando seus adeptos em transe recebem entidades variadas Alguns dizem que a quimbanda não é apenas mais uma das linhas existentes nas religiões afrobrasileiras por ser influenciada em larga escala por vários aspectos das religiões indígenas do catolicismo do espiritismo moderno da alquimia bem como pelo estudo da natureza e de correntes orientais A quimbanda é uma ramificação da umbanda em que atuam os exus e as pombajiras que manipulam forças negativas embora seus praticantes asseverem que eles não precisam ser necessariamente 51 FILOSOFIA DA RELIGIÃO malignos Esses espíritos que trabalham para o desenvolvimento espiritual e a proteção de seu médium são entidades que apresentam muitas semelhanças com os humanos por serem bem próximas à faixa vibratória dos encarnados Como na umbanda também existe a entrega de oferendas o que pode variar conforme a entidade É possível oferecer bebida alcoólica uísque cachaça e conhaque além de velas e charutos A quimbanda não tem qualquer ligação com a quiumbanda a magia negra africana Saiba mais Leia sobre os significados do termo macumba em O QUE é macumba Superinteressante sd Disponível em httpssuper abrilcombrmundoestranhooqueemacumba Acesso em 6 jan 2020 4 DO POLITEÍSMO AO MONOTEÍSMO Politeísmo é um sistema religioso que consiste na crença em diferentes divindades Nas sociedades politeístas admitese a existência de múltiplos deuses normalmente cada um dedicado a uma característica particular da natureza deus do trovão deus do sol deusa da chuva deusa da terra etc O politeísmo era bastante comum em sociedades da Antiguidade como no Egito antigo na Grécia antiga e na Roma antiga Atualmente continua presente em algumas religiões de origem africana e asiática Ao contrário do politeísmo o monoteísmo consiste na crença em apenas um único deus ou Deus nesse caso As principais religiões monoteístas são o cristianismo o judaísmo e o islamismo Enquanto as divindades politeístas podem ser representadas sob formas antropomórficas junção da figura humana com a figura animal no monoteísmo Deus é normalmente descrito como semelhante em aparência aos seres humanos Como se sabe os gregos eram politeístas e reverenciavam os deuses do Olimpo Embora com poderes sobrenaturais cada um era reconhecido por comportamentos e traços visivelmente humanos No panteão cada deus tinha sua própria função com um modo particular de agir e um tipo de poder específico Não se caracterizavam por ser onipotentes oniscientes e onipresentes dotados de infinitude e absoluto Distinguiamse por fazer parte do mundo e por ter nascido nele ou seja não o criaram como explica Vernant 2006 p 45 Os deuses nasceram do mundo A geração daqueles aos quais os gregos prestam um culto os olimpianos veio à luz ao mesmo tempo que o universo diferenciandose e ordenandose assumia sua forma definitiva 52 Unidade I de cosmos organizado Esse processo de gênese operouse a partir de potências primordiais como vazio Kháos e terra Gaia das quais saíram ao mesmo tempo e pelo mesmo movimento o mundo tal como os humanos que habitam uma parte dele podem contemplálo e os deuses que a ele presidem invisíveis em sua morada celeste Assim quanto ao mundo religioso grego é possível entender que existe algo de sagrado no profano e algo de profano no sagrado O homem grego não pode separar o mundano do divino porque não são domínios opostos permanecendo antes intrinsecamente ligados um ao outro O culto não é feito a um ser extramundano cuja ordem de existência seja absolutamente distinta da ordem do universo físico Não se deve pensar a religião grega como uma religião da natureza nem seus deuses como a personificação de forças ou fenômenos naturais Raios trovões e chuvas são manifestações de Zeus e não Zeus Situada entre os séculos VIII e IV aC a religião grega arcaica e clássica caracterizase por não ter um livro sagrado com o registro de dogmas verdades ou histórias não contar com profetas que propaguem a verdade na qual se fundamenta a religião ou um messias que seja aguardado como salvador não dispor de uma Igreja ou de sacerdotes que conduzam o povo helênico numa verdade específica num credo imposto aos fiéis como um conjunto de crenças que os levará ao além Sobre o que recaíam e como se manifestavam as crenças de foro íntimo dos gregos em matéria de religião Elas estavam profundamente ligadas à cultura e ao dia a dia dos cidadãos O cumprimento dos ritos situado num plano doutrinal desde a infância era o suficiente para crer que este fosse o caminho correto Dentro desse quadro a crença nos deuses se fortalece mormente porque faz parte do conjunto equivalente ao falar ao viver e ao ser grego Como os gregos não veem seus deuses como seres de um mundo sobrenatural estes se sobressaem de forma direta à ordem natural das coisas Diferentemente do exclusivismo do deus hebraico muçulmano ou cristão não se limitam a uma Igreja ou a um povo escolhido Os deuses gregos são reconhecidos em sua presença absolutamente natural na ordem do mundo da mesma forma que as pedras os homens a justiça o amor e o choro A religião grega estava estreitamente relacionada com a comunidade Cada pólis tinha sua divindade protetora o que constituía um traço distintivo da cidade assim como um sistema de valores Um desses valores era a crença numa concepção politeísta do divino segundo a qual determinadas práticas rituais eram indispensáveis para adquirir o favor dos deuses 53 FILOSOFIA DA RELIGIÃO Observação Pólis significa cidadeEstado Na Grécia antiga a pólis era um pequeno território localizado geograficamente no ponto mais alto da região e cujas características eram equivalentes às de uma cidade As manifestações públicas em honra aos deuses faziam parte das responsabilidades cívicas Essas atividades comunitárias além de um sentido espiritual buscavam um denominador comum diante das diferentes opiniões Os gregos faziam uso constante da palavra do diálogo ou da dialética o que se tornou o principal instrumento de realização da vida política É preciso diferenciar a palavra que surge na pólis através da dialética da palavra usada pelos poetas gregos como Homero e Hesíodo pois estes concebiam suas palavras como revelação divina algo recebido por meio de uma palavra míticoreligiosa que revelava a origem dos deuses e o princípio do mundo kósmos Tais discursos tinham um peso bem maior do que o dos diálogos pois a fala do poeta era investida de autoridade divina era uma revelação dos deuses e por isso incontestável Na Teogonia que narra a origem dos deuses Hesíodo dá um exemplo concreto dessa noção mítica da palavra como manifestação da verdade Um dia as musas ensinaram a Hesíodo belo canto Quando ele pastoreava as ovelhas No sopé do divino monte Hélicon Esta palavra primeiro disseramme as deusas Musas olimpíades virgens de Zeus portaégide Pastores agrestes vis infâmias e ventres só Sabemos dizer muitas mentiras semelhantes aos fatos E sabemos se queremos dar a ouvir revelações alétheia apud VERNANT 2006 p 74 Desde que o ser humano se tornou pensante e consciente de sua própria condição no mundo muitos foram os filósofos que buscaram explicar as perspectivas e os princípios éticos morais e religiosos que regem a trajetória do homem na terra Para tentar entender seu papel primeiramente surgiu a teogonia 54 Unidade I que vem do grego theos deus genea origem Nas religiões politeístas o termo está relacionado com a narração do nascimento dos deuses e a apresentação de sua genealogia O vocábulo grego alétheia corresponde a verdade em nossa língua No entanto no texto de Hesíodo vemos que ela foi traduzida por revelações Isso se deve ao que explicamos há pouco as musas deusas consideradas filhas de Zeus e de Mnemosine memória manifestavamse ao poeta e lhe concediam o privilégio de revelações que seriam a verdade dos fatos Por isso os poetas não se julgavam inventores de suas histórias nem se apresentavam como seus autores Pelo contrário diziam ser portavozes dos deuses Esclareciam a origem do mundo aos que não tinham o mesmo relacionamento com as musas Em primeiro lugar nasceu Kháos caos Em seguida Gaia terra de amplo seio Gaia primeiro pariu igual a si mesma O céu constelado para cercála toda ao redor Pariu altas montanhas belos abrigos das deusas Ninfas que moram nas montanhas frondosas E pariu a infecunda planície impetuosa de ondas O mar sem o desejoso amor Logo depois pariu Do coito com Urano céu O oceano de fundos remoinhos HESÍODO apud MADUREIRA 2008 p 133 41 A importância da filosofia grega para a formação da teologia cristã Há uma estreita relação entre a filosofia grega e a teologia cristã sendo o helenismo o movimento que mais influenciou os novos teólogos Destacamse as ideias dos estoicos dos epicuristas dos neopitagóricos dos céticos e dos neoplatônicos No entanto foi principalmente o pensamento de Platão que forneceu as bases para a teologia cristã patrística Observação Patrística é o termo usado para expressar a junção do mundo antigo grego elaborado pela razão com o mundo cristão concebido pela revelação 55 FILOSOFIA DA RELIGIÃO Embora a filosofia grega tenha passado por diversas etapas nenhuma delas foi tão significativa para a formação do pensamento ocidental quanto a resultante de seu encontro com a teologia cristã Dois grandes modelos de pensamento da filosofia grega o platonismo e o aristotelismo foram reinterpretados pelos teólogos Agostinho e Tomás de Aquino que usaram esses modelos para explicar a realidade de Deus e do mundo Sob a ótica da revelação cristã eles reconsideraram a busca pela verdade No pensamento deles filosofia e teologia se encontraram e conhecer a verdade passou a ser sinônimo de conhecer a Deus Agostinho de Hipona ou Santo Agostinho nasceu no norte da África na cidade de Tagaste atual Souk Ahras Argélia Mônica sua mãe era uma cristã devota e Patrício seu pai um pagão que se converteu ao cristianismo apenas no leito de morte Aos 17 anos por volta do ano 370 Agostinho se mudou para a cidade de Cartago a fim de estudar retórica época em que se converteu ao maniqueísmo adotando um estilo de vida hedonista Assim como os jovens de seu tempo Agostinho era versado na tradição platônica Essa foi a corrente filosófica que mais influenciou o pensamento cristão primitivo As coisas materiais não são as realidades últimas pois existe uma realidade espiritual que é a verdadeira Logo a felicidade no mundo material é mera aparência mero engodo e só alcançaremos a verdadeira no mundo celestial pois é lá que veremos a Deus face a face Agostinho se valeu da noção platônica de que o ser humano teria dois tipos de conhecimento o intelectual e o sensorial sendo o segundo inferior ao primeiro por depender da sensação para atingir o conhecimento Visão audição tato olfato e paladar são uma espécie de vivência de alma realizada por intermédio dos órgãos sensoriais os instrumentos que captam o mundo sensível e produzem um conhecimento apenas aparente O intelecto por outro lado permite obter conhecimento pelas ações da mente Esta tem a faculdade de captar as ideias as verdades eternas e absolutas e interpretar as coisas exatamente como elas são Da mesma maneira que Platão Agostinho acreditava que o conhecimento verdadeiro é sempre o intelectual pois seus objetos são absolutamente imutáveis ao contrário do que ocorre com o conhecimento sensorial que é mutável O conhecimento sensorial tem sua importância em especial se consideramos o dia a dia das pessoas No entanto Agostinho afirma que quando concentramos nossa atenção na esfera do que é transitório e mutável perdemos a visão do que é eterno e imutável Nosso objetivo que deveria ser alcançar a verdade em toda a sua plenitude ficaria obnubilado e perderíamos o alvo de nossa busca Nesse sentido cabe observar que não se trata apenas de o conhecimento sensorial ser inferior ao intelectual o próprio objeto do conhecimento sensorial é inferior ao do conhecimento intelectual Por isso Agostinho dizia que as coisas sensíveis são absolutamente distintas das coisas inteligíveis Gilson 2007 p 134135 explica Existem pois duas espécies de ser os modelos e as cópias O mundo dos modelos exempla é o mundo inteligível o das cópias ou imagens simulacra é o mundo sensível mundus sensilis produzido à semelhança de seu modelo O nome técnico de um modelo é ideia É uma substância incorpórea sem cor 56 Unidade I sem fisionomia impalpável compreensível apenas pelo intelecto e pela razão causa dos seres que participam de sua semelhança É um fato que temos dois meios distintos de conhecer o sensorial e o intelectual Seus objetos devem ser pois igualmente distintos são os sensíveis e os inteligíveis Os sensíveis são mutáveis temporais perceptíveis pelos sentidos e só se prestam a opiniões os inteligíveis são imutáveis eternos conhecíveis pela razão e objetos de ciência propriamente dita Por natureza os inteligíveis são anteriores aos sensíveis mas os sensíveis nos são mais facilmente acessíveis Se as verdades eternas são essências objetivas e imateriais surge a pergunta onde elas estão Essa questão não se refere a um lugar concreto mas ao status ontológico da verdade No tempo de Agostinho havia um tipo de platonismo ou neoplatonismo que pretendia resolver essa dificuldade afirmando uma ideia não mencionada por Platão a de que as verdades eternas estão em Deus e dele emanam Quem representou esse tipo de platonismo foi Plotino argumentando que Deus ou ser inefável é aquele que está acima de qualquer nome que seja atribuído a ele ou ainda de toda essência que possa ser conhecida Apesar de Agostinho concordar com a perspectiva de que as verdades eternas estão em Deus ele discordava da concepção de Plotino de que a criação do mundo inteligível e do mundo sensível resultou de um processo de emanação semelhante ao da luz solar no universo ocorrido não de acordo com a vontade de Deus mas em conformidade com a natureza de sua emanação Para Agostinho que como todos os cristãos considerava Deus um ser pessoal transcendente criador e sustentador do universo foi necessário repensar o platonismo Embora o aceitasse como a filosofia que mais se encaixava nas doutrinas cristãs certamente a divindade de Platão e de Plotino não era a mesma que se revelou em Jesus Cristo Agostinho pensava que os filósofos gregos não conheciam a revelação cristã e por isso julgavam que a única via para o conhecimento da verdade era a razão O poder da razão era exaltado como o mais alto poder do homem Mas o que o homem jamais poderia ter sabido até ser iluminado por uma revelação divina especial é que a própria razão é uma das coisas mais questionáveis e ambíguas do mundo A razão não nos pode mostrar o caminho para a clareza a verdade e a sabedoria pois é em si mesma obscura em seu sentido e sua origem está envolta em mistério um mistério que só pode ser solucionado pela revelação cristã Para Agostinho a razão não tem uma natureza simples e única mas antes dupla e dividida e seu estado original no qual saiu das mãos de Deus era igual a seu arquétipo modelo Mas tudo isso foi perdido com a queda de Adão A partir desse momento todo o poder original de raciocínio ficou obscurecido E a razão sozinha deixada a si mesma e a suas próprias faculdades nunca pôde encontrar o caminho de volta Não pôde reconstruirse não pôde por seus próprios esforços retornar a sua pura essência anterior Se tal transformação for algum dia possível será apenas por ajuda sobrenatural pelo poder da graça divina CASSIRER 2005 p 2223 57 FILOSOFIA DA RELIGIÃO Platão supunha que as almas humanas já viviam no mundo inteligível antes de habitarem o mundo sensível Em razão disso não adquiriam novos conhecimentos apenas se lembravam de verdades anteriormente sabidas A geração da vida e do cosmos tem como ideia principal e distintiva a introdução do demiurgo na condução da ordenação cósmica como veremos a seguir 42 Platão e o demiurgo O pensamento cosmológico de Platão ficou registrado no Timeu um diálogo que deveria fazer parte de uma trilogia envolvendo três personagens Timeu Crítias e Hermócrates além de Sócrates que teria discursado um dia antes de Timeu No Timeu Platão 2011 designa como demiurgo o deus que ordena a matéria original e dá forma ao universo Ou seja o demiurgo é um fabricante que cria ele próprio a alma do mundo ao passo que os deuses inferiores que são também criação do demiurgo se encarregam da criação dos entes mortais No cenário cultural grego do século VI aC acreditavase que os deuses interferiam nos fenômenos da natureza e participavam das relações humanas Havia porém resistência à crença no sobrenatural pois este seria uma atuação não explicitada da divindade no mundo A resposta desenvolvida por Platão oferece um sentido para a vida cósmica que surge da intervenção inteligente do demiurgo Diversos filósofos présocráticos buscaram seu próprio caminho para explicar a physis natureza Tales Anaximandro e Anaxímenes formaram o trio da chamada Escola de Mileto A elaboração desses physiologoi os que discursam sobre a natureza foi marcada pela cosmogonia e pela cosmologia A primeira se refere à origem e à destinação do cosmos destacandose a análise da causa e do fim A segunda considera o mundo como eterno e infinito A visão dos physiologoi sobre a relação entre a divindade e o universo não é uniforme Nem todos eliminam a figura de um ser divino atuante no cosmos ou o diferenciam dos deuses gregos tradicionais com suas características passionais O demiurgo de Platão ao contrário das divindades do Olimpo grego é de todo bom e não interfere em sua obra Depois de criála ele se retira Na concepção platônica o demiurgo é um ordenador ou coordenador Ao criar o mundo dos sentidos mediante a imitação do arquétipo assemelhase em grande medida a um artífice que trabalha em consonância com o material que manuseia agindo sobre ele com o intuito de dotálo de ordem tendo em vista que tudo estava desordenado Platão introduz no pensamento filosófico a função de um deus criador Sua atitude é revolucionária por contestar o senso comum da sociedade grega de que os homens não devem aspirar ao divino sob pena de serem atingidos por Nêmesis deusa da vingança e da justiça distributiva De acordo com Cornford 1977 p 34 Platão defende que o homem por ter uma razão divina deve aspirar a uma vida divina tomando como referência a beleza e a harmonia presentes no cosmos Esta é a ideia central da ética platônica assemelharse ao divino tanto quanto possível 58 Unidade I O pensamento de que o demiurgo se assemelharia ao Deus bíblico não se baseia em Platão Para este o demiurgo não é um ser abundante em amor e altruísta Cornford 1977 p 34 diz que se isso é intencionado como uma paráfrase das palavras de Platão é enganoso A esse respeito é preciso considerar três pontos Deus enquanto sugestão de uma ideia monoteísta presente em Platão é injustificável Não há proposta de adoração pois o demiurgo não é uma figura religiosa A instigante noção criadora de amor transbordante não existe na Grécia précristã Para Platão a razão não tem poder ilimitado diante da necessidade Por isso não existe o atributo de onipotência nas ações do demiurgo É preciso haver domínio do caos e da necessidade os dois fatores com os quais a inteligência divina se confronta Passagens da obra Timeu consideram o resultado da ação do demiurgo algo relativamente bom e não algo perfeito e acabado O argumento de Platão quanto ao demiurgo é de ordem estética servese do modelo inteligível porque é belo Consequentemente se o mundo ordenado é belo e o demiurgo é bom este certamente olhou para o que é infinito Ainda no campo estético vemos ser a satisfação o motivo de ele constituir o universo Sendo ele bom e sem inveja quis tornar da melhor forma possível tudo semelhante a si próprio uma vez que as coisas se moviam de modo desordenado Nesse momento aconteceu a criação cósmica com o demiurgo providenciando ordem a tudo o que estava visivelmente fora dela Em seu trabalho produtivo o demiurgo modela um material preexistente leva a cabo uma configuração baseada na matriz matemática do substrato précósmico Ao agir como organizador assemelhase a um administrador ou em última análise a um político pois sua principal tarefa é pôr ordem onde não existe alterando o panorama de anarquia do caos para sociedade cósmica Ao deterse na forma sensível do cosmos a fim de declarar sua relação com o aspecto inteligível o personagem Timeu passa da consideração de um visível desordenado para os elementos que são a causa e a essência do cosmos os quais alguns filósofos présocráticos pensavam ser o fogo a água o ar e a terra Rejeitando serem esses os formadores últimos da realidade e os dirigentes das causas pelo movimento Platão defende que a alma tem poder de movimentar a si mesma sempre no sentido evolutivo O que devemos ter em mente sobre a forma sensível do cosmos é a característica de movimento desordenado É sobre esse aparato précósmico que o artífice divino o demiurgo trabalha com o propósito de conceder beleza e bondade ao que não possui tais qualidades Acontece aqui o encontro de duas causas ou forças a racionalinteligível e a irracionalsensível 43 Aspectos da mitologia grega Podemos definir a mitologia grega como a ligação de ensinamentos e de mitos da Grécia antiga sobre a natureza do mundo as práticas e os rituais sobre os heróis os deuses o significado e as origens de seu culto 59 FILOSOFIA DA RELIGIÃO Dessa forma a mitologia grega é o estudo do conjunto das narrativas referentes aos mitos e à relação entre os gregos antigos e os outros povos narrativas que envolvem heróis centauros titãs deuses e ninfas Para compreender melhor essa mitologia é preciso recordar que na Grécia antiga a religião praticada era politeísta ou seja adoravamse diversos deuses Porém sobre esse assunto não existem escrituras sagradas As principais fontes foram escritas por Homero Ilíada e Odisseia e Hesíodo Teogonia no século VIII aC Na Ilíada e na Odisseia Homero descreve grandes acontecimentos envolvendo deuses e heróis Já na Teogonia Hesíodo narra a origem dos deuses gregos Os gregos constituíram sua identidade cultural a partir da influência de diversos povos De forma bastante sucinta podemos dividir a história da Grécia em Período arcaico séculos VIII a V aC Período clássico séculos V a IV aC Conhecido como fase de aperfeiçoamento cultural Período helenístico séculos IV a I aC Iniciase com Alexandre Magno e termina com a conquista romana da região oriental do Mediterrâneo Foi no primeiro período que se destacou a figura de Homero Ele teria nascido na cidade de Esmirna atualmente território turco Heródoto considerado o primeiro historiador grego a deixar registro do passado para a posteridade diz que Homero foi um dos idealizadores da mitologia grega Ao fazer observações sobre a convivência entre homens e deuses desprezou o pósmorte e desvalorizou a religião anterior e os planos subterrâneos distantes dos elevados planos do Olimpo onde se encontravam os deuses sob o domínio de Zeus Com isso a cultura grega criou uma extrema valorização da vida presente formando uma religião imanente com um culto voltado para a vida imediata não havendo qualquer tipo de medo da morte ou de um além irracional Era visto como covarde quem tivesse qualquer sentimento de receio em relação a esses assuntos por menor que fosse A primeira ideia ocidental de alma está contida no conceito de psykhé elaborado por Homero Essa alma é como um fantasma um simulacro um duplo que forma o homem real e vivo Quando alguém morre a psykhé perde as três características inerentes à vida humana o nóos intelecto racional e emocional o thymós ânimo e a phrénes inteligência A vida do homem grego era regida pelo conceito de areté excelência A areté devia ser alcançada através de façanhas heroicas normalmente por intermédio de conflitos bélicos Só assim se poderia ser lembrado como um homem honrado de boa fama valente vitorioso belo e habilidoso A maior vergonha era ser covarde morrer de maneira desonrada cair no esquecimento ou perder as capacidades físicas com o envelhecimento 60 Unidade I Quando lemos os poemas de Homero encontramos vários outros aspectos relevantes Por exemplo as dimensões físicas e psicológicas se confundem como na palavra thymós que pode significar tanto ânimo ou vontade quanto coração o órgão Também é possível considerar Homero um naturalista pois em muitos de seus escritos encontramos o divino representado pela excelência da natureza Em suas obras ele destaca um modo de obter imortalidade mediante a memória pública de feitos excepcionais tornandose um símbolo um ídolo O grande desejo do homem grego era alcançar fama e glória imortal Esse conceito de imortalidade entre os homens como decorrência da narrativa de grandes feitos foi uma das maiores contribuições gregas para a cultura Homero foi o primeiro a louvar heróis humanos Assim para o mundo grego o homem era aquilo que conseguia fazer ou realizar em vida Existia uma correlação entre os conceitos e a realidade sociocultural A areté a característica de excelência adotada pela sociedade aristocrática podia ser alcançada de duas formas erga a excelência no campo dos feitos bélicos ou heroicos e logói a excelência nas disputas intelectuais que demonstravam eloquência A areté era diferente de kléos glória e timé honra as quais eram alcançadas apenas nas divisas deste mundo A descrição do divino em Homero era fundamentada pelo conceito de athanatói imortal Os deuses eram caracterizados como eternamente felizes ignorando por completo a velhice e a morte A religião homérica era pautada pela estética os deuses que tinham uma aparência humana eram jovens fortes e viris Isso os diferenciava dos deuses das religiões préhoméricas que tinham formas de animais bestas ou monstros Outra marca desses deuses era seu relacionamento com os humanos Embora concebessem uma dimensão intransponível entre o homem e a divindade eles interferiam intensamente no plano terreno Por exemplo visitavam e namoravam seres humanos Estes por sua vez sentiamse possuídos pelos deuses em suas ações não racionais Uma pessoa podia ser iluminada por Atena e fazer um bom raciocínio ou agir irracionalmente porque Lissa a daemon da ira se apossou dela Observação Um daemon era uma divindade menor Desse termo grego nasceu a palavra portuguesa demônio Os deuses gregos eram além disso todos parentes formando uma família Apesar de a ideia de família de deuses estar presente em quase todas as religiões antigas os deuses gregos e sua forma humana inspiravam uma proximidade entre o divino e o humano Os gregos também tinham em sua mitologia deuses inspirados por animais ou elementos da natureza Eram as figuras ctônicas O termo ctônico que significa relativo à terra referiase às divindades ou espíritos do mundo subterrâneo as quais diferiam dos deuses com características humanas que habitavam o Olimpo 61 FILOSOFIA DA RELIGIÃO Como em outras religiões da época muitas divindades nasciam de estranhos cruzamentos Isso mostra que a mitologia grega evoluiu da adoração de figuras monstruosas como podemos encontrar na cultura de muitos povos antigos descritos na Bíblia para a adoração de seres com todas as características físicas humanas De alguma forma essa aceitação da figura humana imbuída de qualidades divinas permitiu que os romanos fizessem o mesmo e finalmente que os cristãos aceitassem a figura de Cristo como Deus Posteriormente a santificação de mártires seguiu a mesma linha atribuindo mistérios a seres humanos Uma maneira de compreender a mudança de entendimento e a adoção de um novo patamar religioso pode ser encontrada na história de Édipo que muito influencia o pensamento contemporâneo Segundo a mitologia grega a Esfinge um ser com corpo de leão cabeça de mulher cauda de serpente e asas de águia matava e trazia má sorte para quem a visse Hera deusa do casamento da maternidade e das esposas ou seu filho Ares deus da matança e da carnificina buscou a Esfinge na Etiópia no sul do Egito e a levou para Tebas A Esfinge propunha aos que se dirigiam à cidade seu enigma Deciframe ou devorote que criatura pela manhã tem quatro patas ao meiodia tem duas e à tarde tem três Foi Édipo quem derrotou a Esfinge respondendo corretamente o homem que engatinha quando pequeno anda sobre dois pés quando adulto e usa uma muleta ou bengala quando velho Essa resposta é um dos primeiros exemplos registrados do uso da razão através da consciência É como se os gregos estivessem cientes de que não havia nada que uma divindade ctônica pudesse esconder em seus mistérios que os seres humanos não fossem capazes de entender Reza a lenda que furiosa com a resposta que desvendava o mistério a Esfinge teria se atirado de um precipício e cometido suicídio Ou seja não foram os humanos que acabaram com as antigas divindades misteriosas e animalizadas mas foi essa forma de ídolo que perdeu o sentido na religiosidade grega Figura 2 Estátua da Esfinge no Museu Arqueológico de Delfos 62 Unidade I Hoje consideramos a religião grega como a mitologia mais antiga da cultura ocidental Quem reintroduziu a importância dessa mitologia foi Sigmund Freud que utilizou a família dos deuses gregos como exemplo universal de comportamentos psíquicos Quando Freud fala de Édipo fala de um mito e de uma peça de teatro sobre homens que cumprem o destino anunciado pelos deuses olímpicos os quais dominam os seres humanos Na história de Édipo a Esfinge é só uma das etapas para um destino muito humano Laio o rei de Tebas cidade afligida pela Esfinge numa consulta ao Oráculo de Delfos foi avisado de que havia uma maldição contra ele e sua família Um dia seu filho o mataria e se casaria com a mãe a rainha Jocasta O Oráculo de Delfos era um templo onde sacerdotisas em transe respondiam a questões dos que iam se consultar muitas vezes predizendo o futuro A sacerdotisa suprema era chamada Pítia Os gregos acreditavam que ela era a portavoz do deus do sol Apolo e que através de seu transe ela transmitia o que era dito a Apolo por Zeus seu pai e Deus superior do Olimpo Durante séculos a Pítia do Oráculo de Delfos foi considerada a intermediária entre deuses e humanos A concepção de que o atendimento era feito durante um transe e de que os deuses podiam incorporar em seres humanos fazendoos comportarse de um modo que não se explicava pela razão é bastante semelhante à de outras práticas religiosas da época e até hoje há ecos disso em cultos que sustentam que podemos ser tomados por divindades e fazer o que não queremos Com medo da profecia de Delfos quando nasce seu primeiro filho Édipo Laio o abandona no monte Citerão cravando um prego em cada pé da criança para tentar matála Édipo significa aquele que tem os pés furados A criança é encontrada por um pastor o qual a cria como filho Já adulto Édipo decide se consultar com o Oráculo de Delfos que lhe diz que ele mataria o pai e se casaria com a mãe Sem saber que o Oráculo não se referia a seus pais adotivos Édipo vai para longe deles Na estrada cruza com Laio que estava justamente indo consultarse com o Oráculo mais uma vez Quando Laio encontra Édipo no caminho com a arrogância e a prepotência típicas de um rei manda o rapaz dar passagem Édipo sem reconhecer no homem alguém em especial resolve não obedecer Luta com ele e o mata durante o embate No trajeto para Tebas deparase com a Esfinge Ultrapassado esse obstáculo chega finalmente à cidade onde encanta a rainha Jocasta Passa muito tempo e Laio não volta para casa sendo declarado morto Jocasta resolve se casar com Édipo com quem tem quatro filhos cumprindo assim a profecia por completo Quando Tebas é assolada por uma peste Édipo faz uma investigação e descobre que ele e Jocasta são mãe e filho Da mesma maneira que a Esfinge Jocasta comete suicídio Édipo por outro lado fura os próprios olhos para se lembrar de que esteve cego o tempo todo ao não reconhecer nem o pai nem a mãe Vemos então que a relação entre homens e deuses tinha muitas peculiaridades da época A religião servia de base para a sociedade da Grécia antiga e exercia um papel de extrema influência cultural no comportamento dos indivíduos Freud percebeu que o mito de Édipo era uma forma muito acurada de descrever o processo psíquico das pessoas nas relações familiares permitindo entender o sofrimento do indivíduo a partir dessa experiência 63 FILOSOFIA DA RELIGIÃO Os gregos influenciaram os romanos e os persas Hoje em dia essa visão comum de mundo é chamada cultura helenística Os romanos não apenas dominaram a Europa mas também difundiram seu padrão cultural Esse padrão depois de se espalhar pela Europa foi exportado para a América imprimindo nas mentes um modelo civilizatório Podemos dizer que a cultura grega associada aos valores medievais cristãos e aos postulados da Idade Moderna acrescida da influência dos ameríndios e dos africanos culminou na formação históricocultural da contemporaneidade e sua constante reavaliação espiritual e religiosa da realidade 44 A religião das leis o judaísmo Vamos estudar agora a primeira grande religião monoteísta o judaísmo que surgiu em Israel há cerca de 4 mil anos O judaísmo é a mais antiga das quatro religiões monoteístas do mundo e a que tem o menor número de fiéis Ao todo são cerca de 15 milhões de seguidores Segundo analistas se não tivesse havido o Holocausto a matança em massa de judeus ocorrida entre as décadas de 1930 e 1940 o número de judeus seria de 25 a 35 milhões em todo o mundo e muitos deles viveriam na Europa Tanto o cristianismo como o islamismo de certa forma derivam do judaísmo O judaísmo não estabelece doutrinas ou credos mas segue a Torá interpretada como a orientação de Deus através das Escrituras O começo do judaísmo como religião estruturada acontece com a transformação dos judeus em um povo influente por obra de reis como Saul Davi e Salomão o qual construiu o primeiro templo em Jerusalém No entanto por volta de 920 aC o reino de Israel se dissolve e os judeus começam a se dividir em grupos Essa época foi chamada de Era dos Profetas Em cerca de 600 aC o templo é destruído e a liderança israelita assassinada Segundo os judeus existe somente um Deus todopoderoso que criou o universo e tudo o que nele há Os judeus acreditam que Deus tenha uma relação especial com seu povo consolidada no pacto que fez com Moisés no Monte Sinai 35 mil anos atrás A história do povo judeu é contada no Pentateuco composto dos cinco primeiros livros da Bíblia também chamado Torá que contém o relato sobre a criação do mundo a origem do homem o pacto de Javé com Abraão e seus filhos a libertação dos filhos de Israel do cativeiro egípcio a peregrinação em direção à terra prometida bem como as leis e ordenanças que foram dadas a Moisés para a instrução do povo de Israel Os 39 livros que integram o Antigo Testamento narram o desenvolvimento histórico de Israel até o fim do século V aC Eles foram escritos entre 1400 e 400 aC por cerca de trinta autores predominantemente em hebraico embora haja diversos trechos em babilônico assírio árabe e até fenício O material usado como suporte foi o pergaminho feito da pele de animais material durável que media cerca de 28 cm largura x 10 m comprimento 64 Unidade I Até 1448 todas as versões da Bíblia eram manuscritas Nesse ano na Itália ela foi impressa pela primeira vez O desvelo na cópia do material ao longo dos séculos pôde ser comprovado na recente descoberta no Mar Morto Egito de manuscritos de aproximadamente 900 aC contendo todos os livros do Antigo Testamento com exceção de Ester Verificouse nessa ocasião que os textos não tinham alterações significativas desde o século I aC Observação Os Manuscritos do Mar Morto são uma coleção de centenas de textos e fragmentos de textos encontrados em cavernas de Qumran A Septuaginta versão grega do Antigo Testamento começou a circular no Egito em meados do século III aC sendo usada tanto por judeus quanto por cristãos Com o passar do tempo ela perdeu o predomínio entre os judeus Ainda que a tivessem utilizado por muitos anos eles passaram a rejeitar a tradução rabínica dos setenta tradutores alegando que a Torá não podia ser traduzida com exatidão Nesse momento os judeus começaram a usar uma nova tradução grega que estava em consonância com os conceitos rabínicos Essa obra foi elaborada por um prosélito judeu chamado Áquila no século II Para judeus e cristãos o Antigo Testamento além de conter um relato da cultura e da história secular representa a revelação que Deus fez ao homem de si mesmo registrando o que realizou no passado e o que pretende realizar no futuro para a humanidade Numa das principais narrativas Javé criador do homem e do universo conduziu seu povo escolhido Israel em direção à terra prometida de acordo com o compromisso firmado com o patriarca Abraão morador de uma pequena cidade chamada Ur ao sul da Mesopotâmia Sobre esse patriarca Schultz 2008 p 33 observa A religião de Abraão é um tema vital nos relatos bíblicos patriarcais Procedente de um mundo politeísta no qual a deusa lunar Nannar era reconhecida como o deus principal na cultura da Babilônia Abraão chega a Canaã Que sua família serviu a outros deuses fica claramente estabelecido em Josué 242 Em Canaã em meio de um entorno idólatra e pagão a meta de Abraão foi a de construir um altar ao Senhor Depois de resgatar a Ló e ao rei de Sodoma recusou uma recompensa reconhecendo que ele estava por completo dedicado por devoção única a Deus o fazedor dos céus e da terra A íntima comunhão e camaradagem existentes entre Deus e Abraão estão belamente retratadas no capítulo 18 de Gênesis no qual ele intercede por Sodoma e Gomorra Talvez seja sobre a base de Isaías 418 e Tiago 223 que a Septuaginta inseriu as palavras meu amigo em 1817 Através dos séculos a porta meridional de Jerusalém que conduz a Hebrom e Berseba tem sido sempre citada como a porta da amizade em memória da relação íntima entre Deus e Abraão Cabe acentuar que a amizade entre Deus e Abraão deveria se perpetuar a seus descendentes daí a razão do sacrifício de seu filho Isaque É interessante lembrar que desde o início a prática do sacrifício 65 FILOSOFIA DA RELIGIÃO envolvia justamente um animal que fosse precioso para seu dono de modo que a pessoa demonstrasse seu grau de devoção Saiba mais Muitos filósofos e teólogos têm abordado a questão da devoção Confira por exemplo KIERKEGAARD S Temor e tremor Tradução Elisabete M de Sousa Lisboa Relógio dÁgua 2010 Algumas gerações após o compromisso firmado com Abraão os descendentes dele foram aprisionados e escravizados pelo rei mais poderoso da época o faraó do Egito Por meio de Moisés Deus anunciou que iria libertar seu povo e guiálo em direção à terra prometida Em troca pediu obediência irrestrita a suas leis e adoração exclusiva A população foi salva e começou a peregrinar no deserto No entanto por conta de sucessivas quebras do pacto anteriormente estabelecido levou quarenta anos para percorrer um caminho que deveria ser superado em quarenta dias Isso trouxe sérias consequências aos israelitas com toda uma geração perecendo no deserto só entrando na terra prometida seus descendentes momento em que Javé cumpriu a promessa feita a Abraão Observação Esses quarenta anos de peregrinação não são comprovados havendo discordância entre os autores quanto ao tempo decorrido A aliança fixava um decálogo leis que definiam a conduta correta dos fiéis a edificação do tabernáculo a organização do sacerdócio a instituição das ofertas e a observação das festas e estações do ano Esse conjunto de ordenanças criou finalmente a religião que fez o povo de Israel aprender a servir a Deus de forma efetiva Analistas definem a essência de ser judeu como participar de uma comunidade judaica e viver de acordo com as tradições e leis judaicas O judaísmo é um modo de vida fortemente associado a um sistema de fé e convicções religiosas Os judeus vivem sob um pacto com Deus segundo eles não para benefício próprio mas para benefício de todos O grande estudioso do judaísmo Hillel que viveu entre 70 aC e 10 dC resumiu assim o significado da religião Não faça a seu próximo aquilo que não gostaria que fosse feito a você Esse é o centro da lei judaica O resto são meras observações JUDAÍSMO sd 66 Unidade I 45 A construção da religião muçulmana A religião muçulmana é o islã ou seja muçulmanos são os seguidores dessa religião Embora seja um equívoco recorrente muçulmano não é sinônimo de árabe Ser árabe significa pertencer ao grupo étnico que habita principalmente o Oriente Médio e a África setentrional enquanto ser muçulmano significa apenas ter fé no islamismo É fato que a maioria dos árabes são muçulmanos porém a maioria dos muçulmanos não são árabes pois existe um considerável percentual de fiéis muçulmanos na população asiática principalmente na Índia e na Indonésia Datado do século VII da era cristã período de início do calendário islâmico distinto do calendário gregoriano o qual seguimos o islamismo foi fundado por Maomé Muhammad em árabe profeta que teria recebido do anjo Gabriel os princípios básicos que norteiam a fé islâmica A palavra islã tem valor nominal e também verbal isto é nomeia e indica ação Significa submissão submeterse obediência ou obedecer a Deus O Alcorão ou Corão é o livro sagrado que os muçulmanos acreditam ter sido ditado por Alá ao profeta Maomé Este proveniente de uma família tradicional nasceu no ano de 571 na cidade de Meca Arábia e foi comerciante durante a maior parte da vida GONZÁLEZ 1995b Foi somente por volta dos 40 anos que Maomé iniciou sua carreira religiosa Isolouse num lugar onde costumeiramente meditava e orava Ali de acordo com o relato o anjo Gabriel apareceu a ele pedindo que proclamasse a única mensagem do Deus verdadeiro GONZÁLEZ 1995b p 132 numa montanha perto de Meca Como ele não recebeu mais nenhuma revelação teve dúvidas quanto a sua missão como profeta Depois convenceuse dela e passou a desenvolvêla proclamando a existência de um Deus único justo e misericordioso governador de tudo e que exige obediência dos seres humanos Ele não pretendia criar uma nova religião mas dar continuidade à revelação que os profetas do Antigo Testamento tinham recebido e à mensagem de Jesus Entretanto a aceitação das palavras de Maomé não foi algo simples Os árabes que lideravam Meca impugnaram sua pregação principalmente porque a cidade era um centro de difusão da religião politeísta da Arábia havendo com isso grande lucratividade no local Os comerciantes da cidade principais interessados na religião politeísta voltaramse contra Maomé e seus seguidores obrigandoos a se refugiar num oásis nas proximidades que depois recebeu o nome de Medina Isso ocorreu no ano de 622 data a partir da qual os muçulmanos contam os anos Nesse local foi estabelecida a primeira comunidade muçulmana iniciandose também o culto a vida civil e a política Em 630 após uma série de campanhas militares Maomé conquistou Meca mas munido de compaixão proibiu qualquer vingança contra seus antigos inimigos restringindose apenas a destruir os ídolos 67 FILOSOFIA DA RELIGIÃO do templo e a instituir o culto monoteísta Em 634 dois anos depois de sua morte grande parte da Península Arábica tinha se convertido ao islamismo O primeiro sucessor de Maomé foi Abu Béquer seu principal acompanhante Ele e os demais substitutos ganharam o nome de califas Sob o domínio dos califas os ensinamentos do islã se consolidaram na Arábia ocidental Também começaram os primeiros conflitos com o exército bizantino derrotado em 634 Omar o terceiro sucessor continuou as conquistas por dez anos O general Calid comandou as tropas que venceram os romanos tomaram Damasco em 635 e subjugaram Jerusalém em 638 Inicialmente os muçulmanos não perseguiram judeus nem cristãos Ao entrar em Jerusalém Omar decretou que os cristãos tivessem garantidos seus bens suas igrejas e suas cruzes Em assuntos religiosos não haverá pressão nem coação Os judeus podem morar em Jerusalém junto com os cristãos e os que residem na cidade pagarão o mesmo tributo que os habitantes de outras cidades GONZÁLEZ 1995b p 135136 Essa política foi adotada pelos primeiros califas nas terras controladas sendo vetados apenas a idolatria e o politeísmo A tolerância com os judeus também era ampla e eles tinham o direito de continuar com seus rituais religiosos A única ressalva era respeitar o profeta e o Alcorão Posteriormente foi proibida a conversão dos árabes ao judaísmo ou ao cristianismo Para converter alguém era preciso pagar um tributo ao Estado Só a conversão ao islã estava isenta Assim se por um lado os muçulmanos se interessavam em aumentar o número de convertidos por outro era conveniente ter fiéis de outras religiões por causa do pagamento de impostos Certamente os impostos fomentaram o crescimento dos adeptos da fé islâmica As conquistas árabes não pararam por aí Em 639 invadiram a maior parte do Egito dominando a Fortaleza de Babilônia em 640 que atualmente é a cidade do Cairo Em 642 conquistaram todo o país Em 647 obtiveram o controle de Tripolitânia onde hoje fica a Líbia Em 657 Ctesifom a capital dos persas também foi tomada pelos árabes Com isso os muçulmanos continuaram sua implacável expansão para o leste o último rei persa foi executado e um ano depois todo o antigo Império Persa foi subjugado No entanto quando o califa Otoman começou seu reinado as conquistas arrefeceram Os berberes as tribos nômades do deserto que habitavam principalmente o atual Marrocos opuseramse a seus avanços a oeste A leste o Império Bizantino cujas fronteiras tinham sido empurradas até a Ásia Menor finalmente conseguiu deter a expansão muçulmana nessa direção Ademais lutas internas contribuíram para enfraquecer o exército o que levou ao assassinato de Otoman por um dos descendentes de Abu Béquer Seu sucessor Ali não se manteve muito tempo no poder Quando morreu assumiram o controle os califas omíadas que se fixaram em Damasco e se dedicaram a fortalecer seu poder As invasões no decorrer da segunda metade do século VII se tornaram mais lentas Cartago foi subjugada apenas em 695 68 Unidade I Observação O povo berbere também conhecido como amazigh ou imazighen é tido como um dos mais antigos do continente africano Como muitos berberes tinham se convertido ao islã uma milícia de muçulmanos composta de mouros e árabes cruzou o estreito de Gibraltar em 711 sob o comando de Tarik vencendo Rodrigo o último rei godo Pouco tempo depois praticamente toda a Espanha estava sob o domínio muçulmano Do outro lado do mundo os califas viram seu exército enfraquecer quando em 718 tentaram tomar Constantinopla O papa Leão III defendeu vigorosamente a cidade Em 720 houve outro fracasso dessa vez contra a Sicília Em 721 marcharam sobre Toulouse e conseguiram êxito controlando boa parte da costa sul da França Em 732 porém foram derrotados pelo exército de Carlos Martel próximo à cidade de Poitiers Lembrete Califa é um título atribuído ao líder religioso da comunidade islâmica considerado pelos muçulmanos um dos sucessores do profeta Maomé O período de cem anos entre a morte de Maomé e a batalha de Poitiers foi suficiente para promover grandes transformações As invasões árabes mudaram o futuro da Igreja Católica e da região pois os muçulmanos dominaram o Mediterrâneo desde a Antioquia na Ásia Menor até Narbonne no sul da França Com isso o comércio cristão ficou limitado aos mares Egeu Adriático e Negro Tanto no ápice do Império Romano quanto no período das invasões bárbaras sempre existiu uma grande importação de produtos do Oriente para o Ocidente como papiro seda e especiarias Com as conquistas dos árabes o comércio cessou o que fez o Ocidente depender de seus próprios recursos e avançar exclusivamente com sua própria civilização Em relação à fé muçulmana em que se fundamenta e como é praticada O Alcorão nomeia como única religião verdadeira o caminho do patriarca bíblico Abraão em especial pela sua incansável demonstração de fé É por isso que ele recebe de Deus o título de servo amado nunca dado a ninguém antes dele ou ainda a alcunha de Khalil Todos os demais profetas que pertencem a sua descendência como Isaque Ismael Jacó Israel e Moisés têm o dever de guiar os muçulmanos na mesma verdade Apesar de o Alcorão não fornecer minúcias da vida de Abraão no livro chamado Ibrahim ou Ibraham alguns aspectos importantes devem ser mencionados Ele nasceu aproximadamente em 2166 aC na cidade mesopotâmica de Ur a 300 km de onde hoje fica a cidade de Bagdá Aazar seu pai era descendente de Sem filho de Noé tendo migrado com alguns parentes para a cidade de Haran durante a infância de Abraão Jesus por sua vez também é considerado um grande profeta Contudo diferentemente da apologética cristã não é Deus 69 FILOSOFIA DA RELIGIÃO A lei sagrada do islamismo é chamada xaria termo que significa estrada ou seja o caminho pelo qual Deus determina que os muçulmanos trilhem A xaria regulamenta diversos aspectos da vida e abrange deveres religiosos essenciais conhecidos como cinco pilares com o objetivo principal de evoluir o espírito de submissão a Deus Vejamos algumas definições 1 Shahada é a porta de entrada do indivíduo no islã e nenhuma pessoa é considerada muçulmana sem que a tenha feito ela é naturalmente feita pelo muçulmano todos os dias durante as orações e súplicas consistindo em dizer Não há divindade além de Allah e Muhammad é mensageiro de Allah 2 Salat é a oração obrigatória dos muçulmanos que deve ser praticada cinco vezes ao dia em horários específicos de acordo com a posição do sol Durante o salat o muçulmano recita o Alcorão e faz as súplicas prescritas pelo profeta Muhammad de acordo com o que foi revelado por Deus a ele 3 Zakat é a doação compulsória de 25 para aqueles que têm capacidade de pagála ou seja que possuem valor de bens acima de 85 gramas de ouro O valor é pago sobre a parte que excede esses 85 gramas de ouro o que geralmente é feito para instituições que fazem a distribuição dos valores entre pobres e necessitados 4 Jejum no mês do ramadã dura todo o mês lunar do ramadã e deve ser praticado por todo muçulmano com capacidade para jejuar iniciando antes de o sol nascer e encerrando após o sol se pôr 5 Hajj ou peregrinação a Meca é a viagem que deve ser feita pelo menos uma vez na vida pelos muçulmanos com condições para tal nela vários rituais são praticados de acordo com a tradição abraâmica da peregrinação tendo esse pilar sido iniciado com o profeta Abraão em suas visitas a Meca 5 PILARES sd Os muçulmanos professam a unidade de Deus monoteísmo Além dos livros sagrados criados para guiar a humanidade seguem os profetas os anjos e o fatalismo Dividemse em dois grupos principais os sunitas e os xiitas Essa divisão ocorreu logo após a morte de Maomé Os sunitas correspondem a algo entre 80 e 90 do total dos muçulmanos Eles baseiam sua crença na suna prática do profeta e de seus seguidores e acreditam que a comunidade islâmica se manterá unida em torno desse preceito Embora a maioria dos sunitas creia que seus princípios são derivados daqueles estabelecidos no século VIII uma minoria afirma que seu nome advém de uma palavra que significa um caminho mais moderado referindose à ideia de que o sunismo tem uma posição mais neutra do que a dos xiitas vista como mais extremada 70 Unidade I Observação Fatalismo é a concepção de que tudo o que acontece seja o que for está destinado a acontecer independentemente do que façamos Ainda que compartilhando os mesmos dogmas da fé islâmica os dois grupos divergiram na questão da sucessão do profeta Maomé Para os sunitas o califa deveria ser escolhido pelos próprios muçulmanos o que acabou acontecendo Para os xiitas porém o sucessor de Maomé deveria ser Ali mas ele foi assassinado e seus dois filhos Hassan e Hussein tiveram o mesmo destino Isso desencadeou um forte sentimento de aversão entre os dois lados Os xiitas foram oprimidos marginalizados ficando com a pior situação econômica do mundo árabe Quando determinado país é governado por sunitas em geral os xiitas são o grupo mais pobre da sociedade e por vezes sunitas radicais pregam o ódio contra eles Quando ocorreu a guerra civil no Líbano 19751990 os xiitas ganharam força política com as atividades militares do grupo Hezbollah Um ponto precisa ser esclarecido em que pese o senso comum afirmar que o islamismo propaga a violência uma análise mais acurada prova que isso não é verdade Há fundamentalistas dispostos a executar pessoas em nome de Deus em todas as religiões e a história nos mostra que cristãos e judeus também o fizeram No tocante ao Alcorão certos trechos dão a entender que existe certa apologia da intolerância mas isso não é exclusividade do islamismo tendo em vista que a Torá e a Bíblia também são utilizadas por grupos minoritários para incentivar a violência Observe os fragmentos a seguir Uma vez expirados os meses sagrados matai os idólatras onde quer que os encontreis e apanhaios e tornaios prisioneiros e ficai a sua espreita mas se eles se convertem se observam a oração se concedem a esmola então deixailhes livre o caminho pois Deus é indulgente e misericordioso O ALCORÃO 1994 Sura 95 Quando o Senhor seu Deus os fizer entrar na terra para a qual vocês estão indo para dela tomar posse ele expulsará de diante de vocês muitas nações os hititas os girgaseus os amorreus os cananeus os ferezeus os heveus e os jebuseus São sete nações maiores e mais fortes do que vocês e quando o Senhor seu Deus as tiver entregue a vocês e vocês as tiverem derrotado então vocês as destruirão totalmente Não façam com elas tratado algum e não tenham piedade delas BÍBLIA sd Deuteronômio 712 Eu lhes digo que a quem tem mais será dado mas a quem não tem até o que tiver lhe será tirado E aqueles inimigos meus que não queriam que eu reinasse sobre eles tragamnos aqui e matemnos na minha frente BÍBLIA sd Lucas 192627 71 FILOSOFIA DA RELIGIÃO Grupos como Estado Islâmico AlQaeda Talibã e Boko Haram se consolidam em regiões de minorias excluídas dentro de países que até hoje sofrem com ditaduras e graves violações aos direitos humanos Eles podem ser considerados células terroristas que formam alianças e dão apoio uns aos outros Esses grupos têm em comum o fundamentalismo religioso baseado numa interpretação radical da lei islâmica que apoia a guerra santa a jihad Saiba mais Leia mais sobre grupos extremistas islâmicos em QUEM são e o que querem os grupos extremistas que propagam o terror G1 27 nov 2015 Disponível em httpg1globocommundo noticia201511quemsaoeoquequeremosgruposextremistasque propagamoterrorhtml Acesso em 6 jan 2020 A história revela que fundamentalistas violentos não foram somente muçulmanos Quando olhamos para a época das Cruzadas e da Inquisição vemos que judeus e muçulmanos conheceram as espadas cristãs ou as chamas da fogueira apenas porque professavam outro credo O ódio de grupos extremistas como AlQaeda e Boko Haram certamente põe em evidência o islã mas é preciso estabelecer diferenças De acordo com Armstrong 2009 p 97 os extremistas representam uma minoria que perverte a religião sendo um equívoco considerar o islã intrinsecamente violento No entanto esse posicionamento não é unânime A pesquisadora de origem síria Wafa Sultan uma das maiores críticas do islamismo diz que o islã não é só uma religião é também uma ideologia política que prega e aplica sua agenda pela força Por sua vez a escritora Ayaan Hirsi Ali que nasceu na Somália e foi criada na Arábia Saudita na Etiópia e no Quênia afirma Crianças islâmicas em todo o mundo são ensinadas como eu fui a desejar e a perpetuar a violência contra o inimigo o judeu e o satã americano apud SZKLARZ 2016 Desse modo o islamismo se ramifica em diversos tipos de ativismo políticoreligioso no mundo muçulmano com várias correntes ideológicas podendo ser extremistas ou moderadas O único ponto convergente é a construção de um Estado islâmico tendo como base a religião islã que fundamente tanto a vida social quanto a vida política 72 Unidade I Resumo Aprendemos que a filosofia da religião é um dos segmentos da filosofia Seu principal objetivo é estudar a dimensão espiritual do homem a partir de uma perspectiva filosófica com indagações e pesquisas sobre a essência do fenômeno Os métodos usados para esse estudo são o antropológico o filológico e o históricocrítico comparativo Vimos também sobre o que a filosofia da religião se debruça seus objetivos e seus métodos Verificamos a relevância que a religião tem na vida humana fornecendo orientação nos aspectos espacial social e psicológico A presença da religião é importante porque pode diminuir a anomia ausência de leis ou normas que regulam a vida em sociedade Observamos ainda que embora o termo sagrado seja muito utilizado não devemos confundir filosofia da religião com teologia pois a primeira parte de si mesma em busca de um pensar filosófico enquanto a segunda estuda a relação entre os homens e o divino pautada numa revelação especial e normalmente procura defender seu sistema ou dogma Fizemos uma breve análise das religiões politeístas como a grega a egípcia e as de matriz africana As últimas há muito foram incorporadas na cultura brasileira sob a forma de candomblé umbanda e quimbanda Destacamos ainda algumas religiões monoteístas como a judaica deus Javé e a islâmica deus Alá O judaísmo é considerado a religião monoteísta ou seja que acredita em somente um Deus mais antiga do mundo Atualmente existem judeus em quase todos os países do mundo mas a maioria está localizada em Israel e nos Estados Unidos O islamismo é uma religião surgida na Península Arábica no começo do século VII com o profeta Maomé Essa crença religiosa atualmente é a segunda maior do mundo possuindo cerca de 18 bilhão de fiéis a maioria deles localizada nos continentes asiático e africano O islamismo assim como o judaísmo e o cristianismo é uma religião monoteísta ou seja os muçulmanos acreditam na existência de apenas um Deus Essas três crenças são as três grandes religiões monoteístas do mundo De acordo com a filosofia da religião podemos dizer que todas as religiões do Ocidente têm um ponto em comum a fé em Deus Dessa forma a divindade é um ser incorpóreo eterno visto como o criador de todas 73 FILOSOFIA DA RELIGIÃO as coisas Além disso segundo essas religiões Deus é generoso perfeito onipotente onisciente e onipresente Destacamos que a questão religiosa é demasiado central na vida de cada pessoa e na história da humanidade para ser simplesmente ignorada Não é possível refletir sobre a condição humana sem se dar conta do fenômeno religioso Por isso quem pretende entender o que é o homem não pode deixar de confrontarse com as convicções e atitudes religiosas e antirreligiosas que se manifestam através dos tempos Exercícios Questão 1 Observe os quadrinhos a seguir Figura 3 Com base na leitura e nos seus conhecimentos analise as afirmativas I Os quadrinhos contrapõem o conhecimento científico baseado na razão e na observação ao conhecimento mitológico desprovido de sentido e de valor II Nos quadrinhos Zeus fica irritado o que não condiz com o comportamento dos deuses gregos que eram considerados imortais e libertos das paixões humanas III A afirmação do primeiro quadrinho referese ao fato de que os filósofos gregos tiveram influência sobre muitos pensadores ao longo da história 74 Unidade I É correto o que se afirma em A I II e III B I e III apenas C II e III apenas D I apenas E III apenas Resposta correta alternativa E Análise das afirmativas I Afirmativa incorreta Justificativa o pensamento mitológico não é desprovido de sentido e de valor II Afirmativa incorreta Justificativa os deuses gregos eram suscetíveis às paixões humanas III Afirmativa correta Justificativa Sócrates Platão e Aristóteles por exemplo serviram de base para muitos pensadores que vieram depois deles Questão 2 Enade 2017 A religião quando chega a falar de conhecimento não entende por isso o comportamento noético de um sujeito pensante para com um objeto pensado neutro mas a real reciprocidade de um contato presente na plenitude da vida de existência atuante para exigência atuante e a fé é entendida por ela como o ingressar nessa reciprocidade como unirse a um ser que não pode ser apontado nem constatado mas ainda assim ao que se pode estar unido que pode ser experimentado um ser do qual todo sentido procede BUBER M Eclipse de Deus considerações sobre a relação entre religião e filosofia Tradução Carlos Almeida Pereira Campinas Versos 2007 Adaptado Considerandose as ideias defendidas pelo autor no texto apresentado é correto afirmar que A A religião pressupõe uma reciprocidade dialogal entre seres em posição de sujeito B A religião estabelece um pensamento que torna a divindade o objeto do sujeito consciente 75 FILOSOFIA DA RELIGIÃO C A fé é acreditar em algo sagrado mesmo que esse algo seja representado por um objeto como um amuleto D O ser humano é quem faz a divindade para atender suas necessidades e fraquezas superando assim suas debilidades E A religião está ligada aos ritos e não à plenitude da existência Resposta correta alternativa A Resolução da questão O enunciado pede a alternativa correta de acordo com o texto Nele é afirmado que na religião existe a real reciprocidade de um contato presente na plenitude da vida de existência atuante para exigência atuante