·
Direito ·
Ciência Política
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Capítulo 5\nMontesquieu: a centralidade da moderação na política\nSilene de Moraes Freire*, Adolfo Wagner** e Douglas Ribeiro Barboza***\n5.1 QUEM FOI MONTESQUIEU?\nDurante os tempos do Iluminismo a teoria política adquiriu imenso vigor.\nO processo de esgotamento das monarquias absolutistas, o anacronismo do regime dos príncipes serviram de estímulo aos pensadores da época das Luzes na promoção de uma intensa discussão sobre o aperfeiçoamento da sociedade e suas instituições. No centro desse debate sobre as possibilidades de um novo ordenamento político destaca-se o filósofo moralista, historiador e teórico político francês: Charles Montesquieu.\nO aristocrata Charles-Louis de Secondat, senhor de La Brède e Barão de Montesquieu, nasceu no Palacete de la Brède, perto de Bordeaux, na França, em 18 de janeiro de 1689 e faleceu em 10 de fevereiro de 1755, em Paris. Membro de uma família da aristocracia provincial, neto e sobrinho de um presidente do Parlamento de Bordeaux, filho de Jacques de Secondat, oficial da Guarda Real, e de Marie Françoise de Pesnel, Montesquieu ficou órfão de mãe aos 11 anos de idade. Realizou seu ensino básico junto aos\n* Doutora em Sociologia pela USP. Mestre em Serviço Social pela UFRJ. Professora e pesquisadora da UERJ. Pesquisadora-bolsista de produtividade do CNPq e coordenadora do Programa de Estudos da América Latina e Caribe do Centro de Ciências Sociais da UERJ - PROEAL/CCS/UERJ. Contato: silene-freire@ig.com.br; silene.freire@gmail.com\n** Doutorando do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Serviço Social do Centro de Ciências Sociais da UERJ. Mestre em Ciência Política pela UFRJ. Pesquisador do Programa de Estudos de América Latina e Caribe - PROEAL/CCS/UERJ. Professor Assistente da CEFEQ Química (Unidade Maracanã). Contato: adolfolev@bighost.com.br\n*** Doutor e Mestre em Serviço Social pela FSS/UERJ. Professor Adjunto do curso de Serviço Social da UFOP. Coordenador do Projeto de Pesquisa \"Democracia, desenvolvimento capitalista e a luta dos trabalhadores no Brasil\" (PROBIC/FAPEMIG/UFO). Pesquisador associado do Programa de Estudos de América Latina e Caribe - PROEAL/CCS/UERJ. Contato: douglasbarboza@yahoo.com.br. Oratorianos do colégio de Juilly, localidade situada a nordeste de Paris. Foi em companhia de dois primos que frequentou o colégio onde lhe foi ministrada uma educação clássica.\nRegressando a Bordeaux, em 1705, realizou os estudos jurídicos necessários à sua entrada no Parlamento de Bordeaux, para poder herdar o título e as importantes funções do tio. A admissão como conselheiro deu-se em 1708. Após a conclusão dessas formalidades regressou a Paris, onde concluiu os estudos jurídicos e onde frequentou assiduamente a Academia das Ciências e das Letras. Regressou a Bordeaux em 1713 devido à morte do pai. Em 1715, casou com uma calvinista francesa, o que lhe assegurou um valioso dote. No ano seguinte o tio morreu e Montesquieu tornou-se barão de Montesquieu e presidente no Parlamento de Bordeaux.\nApesar de ter realizado sólidos estudos humanísticos e jurídicos, ao mudar-se para Paris frequentou os círculos da boêmia literária e levou uma vida de dissipações, frequentando as festas dos salões da aristocracia e da nobreza parisienses.\nO barão de Montesquieu foi fundamentalmente um aristocrata da província, da estirpe de seu conterrâneo Michel de Montaigne e, como ele, humanista e cético. Junto, porém, a essa herança espiritual o otimismo característico do século XVIII acreditou firmemente na possibilidade de solução para os problemas da vida pública.\nEmbora tenha tido formação iluminista com padres oratorianos, cedo se mostrou um crítico severo e irônico da monarquia absolutista decadente, bem como do clero. Pensador autônomo em matéria religiosa e inequivocamente apreciador dos prazeres da vida, Montesquieu apresentou essas características no seu primeiro livro, Lettres persanes (1721; Cartas persas), cartas imaginárias de um persa que teria visitado a França e estranhado os costumes e instituições vigentes, conforme veremos adiante.\nEm 1726 renunciou ao seu cargo no Parlamento de Bordeaux, vendeu-o em 1728, viajou logo a seguir pela Europa, realizando assim o seu Grand Tour, a tradicional viagem educativa dos intelectuais europeus do século XVIII. Regressou à França, mas em seguida viajou para a Inglaterra, onde permanecerá durante dezessete meses. agrícolas à volta do seu Palacete de Brède. Retornará frequentemente a Paris, onde tem contatos ocasionais com os célebres salons da boêmia literária, embora nunca tenha demonstrado vínculos com o grupo de intelectuais que os animava.\nSeu grande objetivo passou a ser completar aquela que viria a ser a sua grande obra - O espírito das leis. Preenchendo uma etapa intermédia, escreveu e publicou em 1734 a Causa da grandeza dos romanos e da sua decadência, que não é mais do que um capítulo de apresentação do Espírito.\nEsse intelectual representante da nobreza também sofreu influência de Vico, Maquiavel, Hobbes, Locke e destacou-se sobretudo por tentar levar em conta nas suas formulações outros elementos constituintes da organização política, tais como a dimensão e a extensão dos estados.\nConforme observou J. A. Guilhon de Albuquerque (2003), a obra de Montesquieu revela uma conjunção paradoxal entre o novo e o tradicional.\nMúltipla e guiada por uma espécie de curiosidade universal, parece estar em continuidade direta com os ensaios que a precederam nos comentários sobre os usos e costumes dos diversos povos. Com traços de enciclopedismo, várias disciplinas lhe atribuíram o caráter de precursor, ora aparecendo como pai da sociologia, ora como inspirador do determinismo geográfico, e quase sempre como alguém ainda hoje permanece como uma das condições de funcionamento do Estado de Direito. (Albuquerque, 2003, p. 113)\nDada a abrangência da obra de Montesquieu, a definição sobre a área de conhecimento em que sua obra se insere nunca foi algo de fácil resolução. Dentro da corrente que considera Montesquieu sociólogo, destaca-se Raymond Aron (2003). Segundo ele, Montesquieu não é apenas um como sociólogo é responder, para Aron, a uma pergunta formulada por todos os historiadores que se inquietam com a necessidade de responder em que disciplina se insere Montesquieu ou mesmo a que escola pertence.\nApesar dos sólidos argumentos de Aron (2003), a incerteza na organização universitária francesa persiste até hoje. Montesquieu pode figurar simultaneamente no programa de graduação em literatura, em filosofia, em sociologia, em direito e até mesmo em história. Não por acaso os historiadores das ideias situam Montesquieu (...) ora entre os homens de letras, ora entre os teóricos da política; às vezes como historiador do direito, outras vezes entre os ideólogos que, no século XVIII, discutiram os fundamentos das instituições francesas e prepararam a crise revolucionária, e até mesmo entre os economistas. A verdade é que Montesquieu foi ao mesmo tempo um escritor, um jurista, um filósofo da política e quase um romancista. (Aron, 2003, p. 21)\n\nO cerne do argumento liberal é a velha lição de Montesquieu: não basta decidir sobre a base social do poder - é igualmente importante determinar a forma de governo e garantir que o poder, mesmo legítimo em sua origem social, não se torne ilegítimo pelo eventual arbítrio do seu uso. Na raiz da posição liberal se encontra sempre uma dose inata de desconfiança ante o poder e sua inerente propensão à violência. Para isso, o primeiro princípio liberal é o constitucionalismo, isto é, o reconhecimento da constante necessidade de limitar o fenômeno do poder. O mundo liberal é uma ordem monocrática - uma sociedade colocada sob o império da lei, onde todo poder possa ser experimentado como autoridade e não como violência.\n\n5.2 DO MUNDO NATURAL À NATUREZA DAS LEIS: A TRAJETÓRIA INTELECTUAL DE MONTESQUIEU\n\nSe um leitor, interessado em conhecer mais sobre a obra e a vida de Montesquieu, fizer uma rápida pesquisa em uma enciclopédia ou mesmo na internet, seja qual for o meio, a informação sempre em destaque será a de que este é o autor da famosa obra Do espírito das leis.\n\nO texto, na verdade intitulado Do espírito das leis, ou Das relações que as leis devem ter com a constituição de cada governo, costumes, clima, religião, comércio etc., está dividido em trinta e um livros cujos temas são assim apresentados: os dez primeiros livros, depois de estabelecida a natureza das leis próprias dos homens, tratará das formas de governo. Do livro XI ao XIII a centralidade está no problema da liberdade política e a divisão dos poderes; do livro XIV ao XVIII, Montesquieu tratará da relação das leis com o clima e outras condições físicas de um país; no livro XIX, das leis em suas relações com os costumes e as maneiras de um povo: os de número XX a XXIII relacionam-se aos efeitos da indústria, comércio e demografia; os livros XXIV e XXV são monografias que tratam da questão religiosa; o livro XXVI trata dos domínios da legislação; sobre a história do direito romano e francês temos os livros XXVII e XXVIII; o livro XXIX, como diz o próprio título, versa sobre a maneira de comprar as leis. Por fim, sobre a teoria das leis feudais entre os francos, na sua relação com a monarquia, temos os livros XXX e XXXI.\n\nPela sua magnitude e envergadura, não é difícil supor ter sido essa, de fato, a \"obra da vida\" de seu autor, justificando, assim, o resultado da pesquisa que mencionamos. A problemática que Montesquieu constrói ali, na verdade, é o resultado de um caminho que se inicia tempos antes: nas leituras da juventude, nas viagens, na temporada em Paris, nas impressões recolhidas a todos os instantes e que por sua vez são objetivadas nos textos publicados que devemos tomar como passos iniciais que se somaram na direção enfim alcançada.\n\nA reflexão de Montesquieu aplica-se a todos os campos do saber. Filósofo racionalista e com grande influência do pensamento newtoniano, ele tinha opinião sobre a física e a fisiologia; historiador, jurista, esboçou uma estética, enunciou princípios de economia, estudou geografia, geologou e escreveu um capítulo importantíssimo da ciência política. É justamente esta última que nos interessa é a qual aqui damos tratamento.\n\n5.2.1 Da preocupação com o poder e a liberdade\n\nSe quisermos estabelecer uma linha que nos conduza através do pensamento político de Montesquieu e de certa forma o resuma, devemos buscá-la e sintetizá-la em termos de duas questões fundamentais: o problema do poder e da liberdade. \n\nNo momento em que o jovem Montesquieu vai formar sua visão de mundo, ele vê desmoronar o reinado de Luís XIV. O advento da Monarquia absolutista e a sua crise marcaram-no decisivamente. Ele viu a nobreza à qual pertencia destituir-se do valor supremo da honra que, ao tornar-se exclusividade do soberano, a reduzia à condição de classe cortesã. Tinha nas instituições francesas um modelo anacrônico que precisava ser revisto e superado. De um lado, criticava o absolutismo real e do outro, a conduta da Igreja católica. Passado o tempo, a sua obra perseguirá os mesmos objetivos. Ele deseja encontrar um caminho que negasse os extremos. Digitalizava-se contra os perigos do despotismo e da intolerância. Sua intenção manifesta era poder frear \"como que os que comandam aumentassem seu conhecimento como o que devem preservar e os que obedecem encontrassem um novo prazer em obedecer (...) com que os homens se pudessem curar dos seus preconceitos. (...)\", entendendo \"por preconceito, não o que faz com que ignoremos certas coisas mas o que faz com que ignoremos a nós próprios\" (Montesquieu, 1979, p. 20).\n\nEle se colocará, para isso, a tarefa do conhecimento com o objetivo de instruir os homens. Para ele, esse corresponde ao primeiro passo para a liberdade. Antes de mais nada, é preciso libertar-se daquilo que impede de conhecer, superando os preconceitos e as certezas tradicionais. Para isso, é necessário arrancar as máscaras, cobrir de ridículo os fanatismos e as superstições. Este primeiro momento da liberdade surge em Montesquieu com a publicação das Cartas persas (1721).\n\nO livro, aproveitando o gosto da época pelas coisas orientais, apresentar-se-ia espirituoso e irreverente, tem um fundo extremamente sério, pois relativiza os valores de uma civilização pela comparação com os de outra, muitos estilos. Nessa obra da juventude, ele apresenta referência crítica aos costumes, as instituições políticas e aos excessos praticados pela Igreja, através do relato fictício sobre a visita de dois persas a Paris.\n\nCartas persas foi escrito utilizando-se um recurso bastante em voga no século XVIII: o romance epistolar, no qual alguém dizia ter encontrado um conjunto de cartas que ali fazia publicar não todo ou em parte. No caso, conforme mencionamos anteriormente, era publicada a correspondência de dois persas que, em viagem a Paris, emitiam suas opiniões e contavam sobre o que viam no Ocidente. Montesquieu utiliza-se de um texto cheio de ironia e humor para denunciar um mundo de máscaras e ficção. Nada escapa ao olhar atento dos viajantes: o rei e a nobreza, \n\nO rei da França é o mais poderoso príncipe da Europa. Não possuí minas de ouro como o rei de Espanha, seu vizinho, mas supera-o em riquezas, porque extrai da vaidade de seus súditos, mais inesgotável do que as minas. Sucedeu que declarasse ou travasse grandes guerras, tendo por únicos recursos títulos de honra que vendia; e por um prodígio do orgulho humano, suas tropas eram pagas, suas praças reforçadas e suas frotas equipadas.\n\nPor sinal, este rei é um grande amigo: exerce seu império sobre o espírito mesmo de seus súditos; ele os faz pensarem como quer. Se dispôs de apenas um milhão de escudos no tesouro, e precisa de dois, necessita apenas convencê-los de que um escudo vale dois; e eles assim pensam. (...) Chega até a fazê-los acreditar que os curam de todas as espécies de males por seu toque, tão grande são a força e o poder que tem sobre os espíritos. (Montesquieu, 1991, p. 49)\n\nO que de todo este príncipe não deve te espantar: há outro mago, mais forte do que ele, que manda em seu espírito tanto quanto ele no dos demais. Esse mago chama-se Papa. Ora ele faz acreditar que três são um, ora que o pão como não é pão, o vinho que bebem não é vinho; e o que, por fim, o que mais os admiro.\n\nNeste momento se afirma em Montesquieu uma liberdade negadora. Aqui é apenas pela recusa do mundo tal como o vê imediatamente que se expressa seu pensamento positivo. Um novo sentido para liberdade será apenas desenvolvido e apresentado quando da publicação de Do Espírito das leis.\n\nAs Cartas persas ganham os salões parisienses e o nome de seu autor é alçado à fama. O texto é um romance e não se atém apenas à crítica dos costumes e tradições da sociedade francesa da época. Sua ampla aceitação pode ser justificada por dois fatores: por um lado, o texto não passa muito da superfície das coisas; por outro, o período da Regência – após a morte de Luís XIV, em 1715, até 1726 – ficou célebre pela libertinagem: tanto pelo abrandamento do poder da censura como eroticamente falando. Parece que uma parcela significativa da aristocracia bon vivant tomou com graça a troca que se fizera dela. Não que o texto não tenha encontrado resistências – tanto o teve que, no primeiro momento, ao candidatar-se à Academia Francesa em 1728, Montesquieu fora rejeitado pelo rei por indicação do cardeal Fleury – mas seu sucesso abriu-lhe espaço no restrito círculo social da Corte. Isso, inclusive, foi fator determinante para que a situação anteriormente descrita pudesse ser contornada, graças à dedicada intervenção de alguns admiradores de Montesquieu.\n\nEm 1734, passados três anos de seu regresso da Inglaterra, publica suas Considerações sobre a grandeza e decadência dos romanos.\n\nNesse livro ele antecipa algumas importantes noções e ideias que vão reaparecer em Do Espírito das leis. Podemos começar falando de uma explicação histórica na qual se vêem aplicadas causas naturais gerais, subordinando uma série de acontecimentos que se sucedem em um encadeamento necessário que nunca supõe uma interveniência divina exterior. Roma se desenvolve – do nascimento à sua morte – tal qual um organismo que se transforma segundo leis que lhe são imanentes. Um advento histórico provém exatamente de uma situação de conjunto, segundo princípios contidos nas naturezas das coisas, ou seja, movidas por leis que lhes são imanentes.\n\nEssa noção não retira do homem a sua capacidade de agir. As causas diversas dos acontecimentos históricos não fazem a história em si; ao contrário, revela-se algo não humano: o clima, a natureza do terreno. Há também todo o passado humano, as tradições e os costumes. A história seria o resultado de causas necessárias que se fariam através dos homens.\n\nNesse sentido, Roma parece ter forjado seu destino por si mesma – uma República que se degenera e torna-se um Estado despótico e como este excedendo suas próprias forças, acaba por perder-se, tal como outros casos semelhantes que ocorrem seguindo uma lei que se repete sempre:\n\nCartago sucumbiu porque, quando se revelou necessário coibir abusos, não quis se submeter ao próprio Aníbal. Atenas caiu porque seus erros lhe pareceram tão doces que ela não se animou a corrigi-los. E entre nós as repúblicas da Itália, que se gabam da perpetuidade de seus governos deveriam envaidecer-se unicamente da continuidade de seus abusos. (Montesquieu, 1995, p. 62)\n\nAo escrever o livro, Montesquieu tinha em mente a França e o que poderia acontecer. Ao escrever a história de Roma ele já alertava que a ruína de um Estado começava pela corrupção de seus princípios. Os elementos trabalhados até aqui ele irá aprofundar no Espírito das leis. A partir deste ponto vamos nos concentrar sobre três questões: a compreensão do seu método; sua ideia de Lei e o que trata por Espírito; o problema das formas de governo – suas naturezas e princípios; e a questão da divisão dos poderes e a liberdade política.\n\n5.2.2 Do espírito das leis\n\nDiferentemente do que aconteceu com as Cartas persas, os ataques sofridos por Montesquieu logo após a publicação de Do espírito das leis foram mais duros e numerosos. O livro chegou a constar do Index de obras proibidas aos católicos. Seu projeto, de certa forma, a isso justificava: tinha pretensão de analisar extensa e profundamente a estrutura dos fatos humanos e formular um esquema interpretativo do mundo histórico, político e social.\n\nDo método de Montesquieu, dois aspectos devem ser ressaltados: o primeiro, a exclusão de toda intencionalidade religiosa ou moral de suas análises; o segundo, a superação da perspectiva metafísica presente no pensamento cartesiano.\n\nQuanto à primeira, podemos dizer que ele está mais preocupado com aquilo que é do que com o que deve ser. Elimina, assim, qualquer desvio finalista ou teológico de sua teoria. Ele quer saber daquilo que está na natureza das coisas em si. Para chegar a isso, não poderá simplesmente deduzir a partir de dogmas preestabelecidos por fazer. O que ele faz é diferente. Ele toma suas observações, pratica a análise comparativa dos fatos e tenta a partir daí extrair hipotéticas leis que os governam. Algo esclarecedor foi dito por ele no Prefácio do livro:\n\nExaminei, de início, os homens e julguei que, nesta infinita diversidade de leis e costumes, não eram eles orientados unicamente por seus caprichos.\n\nColoquei princípios e vi os casos particulares submeterem-se a eles como por si mesmos, as histórias de todas as nações serem apenas sequências e cada lei particular ligada a outra lei, ou depender de outra mais geral.\n\nQuando remontei à Antiguidade, esforcei-me por captar seu espírito a fim de não tomar como semelhantes casos realmente diferentes e não omitir as diferenças dos que se mostrassem semelhantes.\n\nNão extraí meus princípios de meus preconceitos, mas da natureza das coisas. (Montesquieu, 1979, p. 19) A distinção entre as ciências dos fatos sociais e da teologia são reforçadas por Montesquieu logo no início do primeiro capítulo do livro, quando ele diz que as \"leis, no seu sentido mais amplo, são relações necessárias que derivam da natureza das coisas e, nesse sentido, todos os seres têm suas leis; o mundo material possui suas leis; as inteligências superiores ao homem possuem suas leis; os animais possuem suas leis; o homem possui suas leis\". (Montesquieu, 1979, p. 25). Os homens e suas leis serão, portanto, o objeto de suas preocupações. Tendo cada domínio as suas, estas só podem ser compreendidas a partir dos próprios fatos.\n\nA preocupação com a instituição de governos moderados, que permitam a convivência harmoniosa dos súditos na direção do que cumpriria a boa vida é, como vimos, o impulso da obra de Montesquieu.\n\nDeterminados pelas causas gerais, os homens não podem encarar a história como obra da só livre vontade. Ao saírem de seu estado de natureza, passando a viver em sociedade - afirma Montesquieu - os homens tornam-se propensos aos excessos, aos conflitos e às guerras. \n\nO que portanto devem fazer? Como se garantiriam a bom governo? Estas questões são exatamente aquelas que veremos a seguir.\n\n5.3 AS ANÁLISES DAS FORMAS DE GOVERN O NO PENSAMENTO DE MONTESQUIEU\n\nAs categorias gerais que permitem ordenar sistematicamente as várias formas históricas de sociedade correspondem, para Montesquieu, aos diversos tipos de organização política. A conhecida teoria dos três tipos de governo, desenvolvida pelo autor nos treze primeiros livros de Do espírito das leis configura-se num esforço tendente a reduzir a diversidade das formas de governo a alguns tipos (a república, a monarquia e o despotismo), cada um destes definido, ao mesmo tempo, por referência a dois conceitos, que o autor denomina natureza dos governos e o princípio que os orientam.\n\nEntre a natureza do governo e o seu princípio, há esta diferença: a sua natureza é o que faz ser como é, e o seu princípio o que o faz agir. A primeira constitui sua estrutura particular e, a segunda, as paixões humanas que o movimentam. As leis não devem ser menos relativas ao princípio de cada governo do que a sua natureza. (Montesquieu, 1979, p. 41)
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Capítulo 5\nMontesquieu: a centralidade da moderação na política\nSilene de Moraes Freire*, Adolfo Wagner** e Douglas Ribeiro Barboza***\n5.1 QUEM FOI MONTESQUIEU?\nDurante os tempos do Iluminismo a teoria política adquiriu imenso vigor.\nO processo de esgotamento das monarquias absolutistas, o anacronismo do regime dos príncipes serviram de estímulo aos pensadores da época das Luzes na promoção de uma intensa discussão sobre o aperfeiçoamento da sociedade e suas instituições. No centro desse debate sobre as possibilidades de um novo ordenamento político destaca-se o filósofo moralista, historiador e teórico político francês: Charles Montesquieu.\nO aristocrata Charles-Louis de Secondat, senhor de La Brède e Barão de Montesquieu, nasceu no Palacete de la Brède, perto de Bordeaux, na França, em 18 de janeiro de 1689 e faleceu em 10 de fevereiro de 1755, em Paris. Membro de uma família da aristocracia provincial, neto e sobrinho de um presidente do Parlamento de Bordeaux, filho de Jacques de Secondat, oficial da Guarda Real, e de Marie Françoise de Pesnel, Montesquieu ficou órfão de mãe aos 11 anos de idade. Realizou seu ensino básico junto aos\n* Doutora em Sociologia pela USP. Mestre em Serviço Social pela UFRJ. Professora e pesquisadora da UERJ. Pesquisadora-bolsista de produtividade do CNPq e coordenadora do Programa de Estudos da América Latina e Caribe do Centro de Ciências Sociais da UERJ - PROEAL/CCS/UERJ. Contato: silene-freire@ig.com.br; silene.freire@gmail.com\n** Doutorando do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Serviço Social do Centro de Ciências Sociais da UERJ. Mestre em Ciência Política pela UFRJ. Pesquisador do Programa de Estudos de América Latina e Caribe - PROEAL/CCS/UERJ. Professor Assistente da CEFEQ Química (Unidade Maracanã). Contato: adolfolev@bighost.com.br\n*** Doutor e Mestre em Serviço Social pela FSS/UERJ. Professor Adjunto do curso de Serviço Social da UFOP. Coordenador do Projeto de Pesquisa \"Democracia, desenvolvimento capitalista e a luta dos trabalhadores no Brasil\" (PROBIC/FAPEMIG/UFO). Pesquisador associado do Programa de Estudos de América Latina e Caribe - PROEAL/CCS/UERJ. Contato: douglasbarboza@yahoo.com.br. Oratorianos do colégio de Juilly, localidade situada a nordeste de Paris. Foi em companhia de dois primos que frequentou o colégio onde lhe foi ministrada uma educação clássica.\nRegressando a Bordeaux, em 1705, realizou os estudos jurídicos necessários à sua entrada no Parlamento de Bordeaux, para poder herdar o título e as importantes funções do tio. A admissão como conselheiro deu-se em 1708. Após a conclusão dessas formalidades regressou a Paris, onde concluiu os estudos jurídicos e onde frequentou assiduamente a Academia das Ciências e das Letras. Regressou a Bordeaux em 1713 devido à morte do pai. Em 1715, casou com uma calvinista francesa, o que lhe assegurou um valioso dote. No ano seguinte o tio morreu e Montesquieu tornou-se barão de Montesquieu e presidente no Parlamento de Bordeaux.\nApesar de ter realizado sólidos estudos humanísticos e jurídicos, ao mudar-se para Paris frequentou os círculos da boêmia literária e levou uma vida de dissipações, frequentando as festas dos salões da aristocracia e da nobreza parisienses.\nO barão de Montesquieu foi fundamentalmente um aristocrata da província, da estirpe de seu conterrâneo Michel de Montaigne e, como ele, humanista e cético. Junto, porém, a essa herança espiritual o otimismo característico do século XVIII acreditou firmemente na possibilidade de solução para os problemas da vida pública.\nEmbora tenha tido formação iluminista com padres oratorianos, cedo se mostrou um crítico severo e irônico da monarquia absolutista decadente, bem como do clero. Pensador autônomo em matéria religiosa e inequivocamente apreciador dos prazeres da vida, Montesquieu apresentou essas características no seu primeiro livro, Lettres persanes (1721; Cartas persas), cartas imaginárias de um persa que teria visitado a França e estranhado os costumes e instituições vigentes, conforme veremos adiante.\nEm 1726 renunciou ao seu cargo no Parlamento de Bordeaux, vendeu-o em 1728, viajou logo a seguir pela Europa, realizando assim o seu Grand Tour, a tradicional viagem educativa dos intelectuais europeus do século XVIII. Regressou à França, mas em seguida viajou para a Inglaterra, onde permanecerá durante dezessete meses. agrícolas à volta do seu Palacete de Brède. Retornará frequentemente a Paris, onde tem contatos ocasionais com os célebres salons da boêmia literária, embora nunca tenha demonstrado vínculos com o grupo de intelectuais que os animava.\nSeu grande objetivo passou a ser completar aquela que viria a ser a sua grande obra - O espírito das leis. Preenchendo uma etapa intermédia, escreveu e publicou em 1734 a Causa da grandeza dos romanos e da sua decadência, que não é mais do que um capítulo de apresentação do Espírito.\nEsse intelectual representante da nobreza também sofreu influência de Vico, Maquiavel, Hobbes, Locke e destacou-se sobretudo por tentar levar em conta nas suas formulações outros elementos constituintes da organização política, tais como a dimensão e a extensão dos estados.\nConforme observou J. A. Guilhon de Albuquerque (2003), a obra de Montesquieu revela uma conjunção paradoxal entre o novo e o tradicional.\nMúltipla e guiada por uma espécie de curiosidade universal, parece estar em continuidade direta com os ensaios que a precederam nos comentários sobre os usos e costumes dos diversos povos. Com traços de enciclopedismo, várias disciplinas lhe atribuíram o caráter de precursor, ora aparecendo como pai da sociologia, ora como inspirador do determinismo geográfico, e quase sempre como alguém ainda hoje permanece como uma das condições de funcionamento do Estado de Direito. (Albuquerque, 2003, p. 113)\nDada a abrangência da obra de Montesquieu, a definição sobre a área de conhecimento em que sua obra se insere nunca foi algo de fácil resolução. Dentro da corrente que considera Montesquieu sociólogo, destaca-se Raymond Aron (2003). Segundo ele, Montesquieu não é apenas um como sociólogo é responder, para Aron, a uma pergunta formulada por todos os historiadores que se inquietam com a necessidade de responder em que disciplina se insere Montesquieu ou mesmo a que escola pertence.\nApesar dos sólidos argumentos de Aron (2003), a incerteza na organização universitária francesa persiste até hoje. Montesquieu pode figurar simultaneamente no programa de graduação em literatura, em filosofia, em sociologia, em direito e até mesmo em história. Não por acaso os historiadores das ideias situam Montesquieu (...) ora entre os homens de letras, ora entre os teóricos da política; às vezes como historiador do direito, outras vezes entre os ideólogos que, no século XVIII, discutiram os fundamentos das instituições francesas e prepararam a crise revolucionária, e até mesmo entre os economistas. A verdade é que Montesquieu foi ao mesmo tempo um escritor, um jurista, um filósofo da política e quase um romancista. (Aron, 2003, p. 21)\n\nO cerne do argumento liberal é a velha lição de Montesquieu: não basta decidir sobre a base social do poder - é igualmente importante determinar a forma de governo e garantir que o poder, mesmo legítimo em sua origem social, não se torne ilegítimo pelo eventual arbítrio do seu uso. Na raiz da posição liberal se encontra sempre uma dose inata de desconfiança ante o poder e sua inerente propensão à violência. Para isso, o primeiro princípio liberal é o constitucionalismo, isto é, o reconhecimento da constante necessidade de limitar o fenômeno do poder. O mundo liberal é uma ordem monocrática - uma sociedade colocada sob o império da lei, onde todo poder possa ser experimentado como autoridade e não como violência.\n\n5.2 DO MUNDO NATURAL À NATUREZA DAS LEIS: A TRAJETÓRIA INTELECTUAL DE MONTESQUIEU\n\nSe um leitor, interessado em conhecer mais sobre a obra e a vida de Montesquieu, fizer uma rápida pesquisa em uma enciclopédia ou mesmo na internet, seja qual for o meio, a informação sempre em destaque será a de que este é o autor da famosa obra Do espírito das leis.\n\nO texto, na verdade intitulado Do espírito das leis, ou Das relações que as leis devem ter com a constituição de cada governo, costumes, clima, religião, comércio etc., está dividido em trinta e um livros cujos temas são assim apresentados: os dez primeiros livros, depois de estabelecida a natureza das leis próprias dos homens, tratará das formas de governo. Do livro XI ao XIII a centralidade está no problema da liberdade política e a divisão dos poderes; do livro XIV ao XVIII, Montesquieu tratará da relação das leis com o clima e outras condições físicas de um país; no livro XIX, das leis em suas relações com os costumes e as maneiras de um povo: os de número XX a XXIII relacionam-se aos efeitos da indústria, comércio e demografia; os livros XXIV e XXV são monografias que tratam da questão religiosa; o livro XXVI trata dos domínios da legislação; sobre a história do direito romano e francês temos os livros XXVII e XXVIII; o livro XXIX, como diz o próprio título, versa sobre a maneira de comprar as leis. Por fim, sobre a teoria das leis feudais entre os francos, na sua relação com a monarquia, temos os livros XXX e XXXI.\n\nPela sua magnitude e envergadura, não é difícil supor ter sido essa, de fato, a \"obra da vida\" de seu autor, justificando, assim, o resultado da pesquisa que mencionamos. A problemática que Montesquieu constrói ali, na verdade, é o resultado de um caminho que se inicia tempos antes: nas leituras da juventude, nas viagens, na temporada em Paris, nas impressões recolhidas a todos os instantes e que por sua vez são objetivadas nos textos publicados que devemos tomar como passos iniciais que se somaram na direção enfim alcançada.\n\nA reflexão de Montesquieu aplica-se a todos os campos do saber. Filósofo racionalista e com grande influência do pensamento newtoniano, ele tinha opinião sobre a física e a fisiologia; historiador, jurista, esboçou uma estética, enunciou princípios de economia, estudou geografia, geologou e escreveu um capítulo importantíssimo da ciência política. É justamente esta última que nos interessa é a qual aqui damos tratamento.\n\n5.2.1 Da preocupação com o poder e a liberdade\n\nSe quisermos estabelecer uma linha que nos conduza através do pensamento político de Montesquieu e de certa forma o resuma, devemos buscá-la e sintetizá-la em termos de duas questões fundamentais: o problema do poder e da liberdade. \n\nNo momento em que o jovem Montesquieu vai formar sua visão de mundo, ele vê desmoronar o reinado de Luís XIV. O advento da Monarquia absolutista e a sua crise marcaram-no decisivamente. Ele viu a nobreza à qual pertencia destituir-se do valor supremo da honra que, ao tornar-se exclusividade do soberano, a reduzia à condição de classe cortesã. Tinha nas instituições francesas um modelo anacrônico que precisava ser revisto e superado. De um lado, criticava o absolutismo real e do outro, a conduta da Igreja católica. Passado o tempo, a sua obra perseguirá os mesmos objetivos. Ele deseja encontrar um caminho que negasse os extremos. Digitalizava-se contra os perigos do despotismo e da intolerância. Sua intenção manifesta era poder frear \"como que os que comandam aumentassem seu conhecimento como o que devem preservar e os que obedecem encontrassem um novo prazer em obedecer (...) com que os homens se pudessem curar dos seus preconceitos. (...)\", entendendo \"por preconceito, não o que faz com que ignoremos certas coisas mas o que faz com que ignoremos a nós próprios\" (Montesquieu, 1979, p. 20).\n\nEle se colocará, para isso, a tarefa do conhecimento com o objetivo de instruir os homens. Para ele, esse corresponde ao primeiro passo para a liberdade. Antes de mais nada, é preciso libertar-se daquilo que impede de conhecer, superando os preconceitos e as certezas tradicionais. Para isso, é necessário arrancar as máscaras, cobrir de ridículo os fanatismos e as superstições. Este primeiro momento da liberdade surge em Montesquieu com a publicação das Cartas persas (1721).\n\nO livro, aproveitando o gosto da época pelas coisas orientais, apresentar-se-ia espirituoso e irreverente, tem um fundo extremamente sério, pois relativiza os valores de uma civilização pela comparação com os de outra, muitos estilos. Nessa obra da juventude, ele apresenta referência crítica aos costumes, as instituições políticas e aos excessos praticados pela Igreja, através do relato fictício sobre a visita de dois persas a Paris.\n\nCartas persas foi escrito utilizando-se um recurso bastante em voga no século XVIII: o romance epistolar, no qual alguém dizia ter encontrado um conjunto de cartas que ali fazia publicar não todo ou em parte. No caso, conforme mencionamos anteriormente, era publicada a correspondência de dois persas que, em viagem a Paris, emitiam suas opiniões e contavam sobre o que viam no Ocidente. Montesquieu utiliza-se de um texto cheio de ironia e humor para denunciar um mundo de máscaras e ficção. Nada escapa ao olhar atento dos viajantes: o rei e a nobreza, \n\nO rei da França é o mais poderoso príncipe da Europa. Não possuí minas de ouro como o rei de Espanha, seu vizinho, mas supera-o em riquezas, porque extrai da vaidade de seus súditos, mais inesgotável do que as minas. Sucedeu que declarasse ou travasse grandes guerras, tendo por únicos recursos títulos de honra que vendia; e por um prodígio do orgulho humano, suas tropas eram pagas, suas praças reforçadas e suas frotas equipadas.\n\nPor sinal, este rei é um grande amigo: exerce seu império sobre o espírito mesmo de seus súditos; ele os faz pensarem como quer. Se dispôs de apenas um milhão de escudos no tesouro, e precisa de dois, necessita apenas convencê-los de que um escudo vale dois; e eles assim pensam. (...) Chega até a fazê-los acreditar que os curam de todas as espécies de males por seu toque, tão grande são a força e o poder que tem sobre os espíritos. (Montesquieu, 1991, p. 49)\n\nO que de todo este príncipe não deve te espantar: há outro mago, mais forte do que ele, que manda em seu espírito tanto quanto ele no dos demais. Esse mago chama-se Papa. Ora ele faz acreditar que três são um, ora que o pão como não é pão, o vinho que bebem não é vinho; e o que, por fim, o que mais os admiro.\n\nNeste momento se afirma em Montesquieu uma liberdade negadora. Aqui é apenas pela recusa do mundo tal como o vê imediatamente que se expressa seu pensamento positivo. Um novo sentido para liberdade será apenas desenvolvido e apresentado quando da publicação de Do Espírito das leis.\n\nAs Cartas persas ganham os salões parisienses e o nome de seu autor é alçado à fama. O texto é um romance e não se atém apenas à crítica dos costumes e tradições da sociedade francesa da época. Sua ampla aceitação pode ser justificada por dois fatores: por um lado, o texto não passa muito da superfície das coisas; por outro, o período da Regência – após a morte de Luís XIV, em 1715, até 1726 – ficou célebre pela libertinagem: tanto pelo abrandamento do poder da censura como eroticamente falando. Parece que uma parcela significativa da aristocracia bon vivant tomou com graça a troca que se fizera dela. Não que o texto não tenha encontrado resistências – tanto o teve que, no primeiro momento, ao candidatar-se à Academia Francesa em 1728, Montesquieu fora rejeitado pelo rei por indicação do cardeal Fleury – mas seu sucesso abriu-lhe espaço no restrito círculo social da Corte. Isso, inclusive, foi fator determinante para que a situação anteriormente descrita pudesse ser contornada, graças à dedicada intervenção de alguns admiradores de Montesquieu.\n\nEm 1734, passados três anos de seu regresso da Inglaterra, publica suas Considerações sobre a grandeza e decadência dos romanos.\n\nNesse livro ele antecipa algumas importantes noções e ideias que vão reaparecer em Do Espírito das leis. Podemos começar falando de uma explicação histórica na qual se vêem aplicadas causas naturais gerais, subordinando uma série de acontecimentos que se sucedem em um encadeamento necessário que nunca supõe uma interveniência divina exterior. Roma se desenvolve – do nascimento à sua morte – tal qual um organismo que se transforma segundo leis que lhe são imanentes. Um advento histórico provém exatamente de uma situação de conjunto, segundo princípios contidos nas naturezas das coisas, ou seja, movidas por leis que lhes são imanentes.\n\nEssa noção não retira do homem a sua capacidade de agir. As causas diversas dos acontecimentos históricos não fazem a história em si; ao contrário, revela-se algo não humano: o clima, a natureza do terreno. Há também todo o passado humano, as tradições e os costumes. A história seria o resultado de causas necessárias que se fariam através dos homens.\n\nNesse sentido, Roma parece ter forjado seu destino por si mesma – uma República que se degenera e torna-se um Estado despótico e como este excedendo suas próprias forças, acaba por perder-se, tal como outros casos semelhantes que ocorrem seguindo uma lei que se repete sempre:\n\nCartago sucumbiu porque, quando se revelou necessário coibir abusos, não quis se submeter ao próprio Aníbal. Atenas caiu porque seus erros lhe pareceram tão doces que ela não se animou a corrigi-los. E entre nós as repúblicas da Itália, que se gabam da perpetuidade de seus governos deveriam envaidecer-se unicamente da continuidade de seus abusos. (Montesquieu, 1995, p. 62)\n\nAo escrever o livro, Montesquieu tinha em mente a França e o que poderia acontecer. Ao escrever a história de Roma ele já alertava que a ruína de um Estado começava pela corrupção de seus princípios. Os elementos trabalhados até aqui ele irá aprofundar no Espírito das leis. A partir deste ponto vamos nos concentrar sobre três questões: a compreensão do seu método; sua ideia de Lei e o que trata por Espírito; o problema das formas de governo – suas naturezas e princípios; e a questão da divisão dos poderes e a liberdade política.\n\n5.2.2 Do espírito das leis\n\nDiferentemente do que aconteceu com as Cartas persas, os ataques sofridos por Montesquieu logo após a publicação de Do espírito das leis foram mais duros e numerosos. O livro chegou a constar do Index de obras proibidas aos católicos. Seu projeto, de certa forma, a isso justificava: tinha pretensão de analisar extensa e profundamente a estrutura dos fatos humanos e formular um esquema interpretativo do mundo histórico, político e social.\n\nDo método de Montesquieu, dois aspectos devem ser ressaltados: o primeiro, a exclusão de toda intencionalidade religiosa ou moral de suas análises; o segundo, a superação da perspectiva metafísica presente no pensamento cartesiano.\n\nQuanto à primeira, podemos dizer que ele está mais preocupado com aquilo que é do que com o que deve ser. Elimina, assim, qualquer desvio finalista ou teológico de sua teoria. Ele quer saber daquilo que está na natureza das coisas em si. Para chegar a isso, não poderá simplesmente deduzir a partir de dogmas preestabelecidos por fazer. O que ele faz é diferente. Ele toma suas observações, pratica a análise comparativa dos fatos e tenta a partir daí extrair hipotéticas leis que os governam. Algo esclarecedor foi dito por ele no Prefácio do livro:\n\nExaminei, de início, os homens e julguei que, nesta infinita diversidade de leis e costumes, não eram eles orientados unicamente por seus caprichos.\n\nColoquei princípios e vi os casos particulares submeterem-se a eles como por si mesmos, as histórias de todas as nações serem apenas sequências e cada lei particular ligada a outra lei, ou depender de outra mais geral.\n\nQuando remontei à Antiguidade, esforcei-me por captar seu espírito a fim de não tomar como semelhantes casos realmente diferentes e não omitir as diferenças dos que se mostrassem semelhantes.\n\nNão extraí meus princípios de meus preconceitos, mas da natureza das coisas. (Montesquieu, 1979, p. 19) A distinção entre as ciências dos fatos sociais e da teologia são reforçadas por Montesquieu logo no início do primeiro capítulo do livro, quando ele diz que as \"leis, no seu sentido mais amplo, são relações necessárias que derivam da natureza das coisas e, nesse sentido, todos os seres têm suas leis; o mundo material possui suas leis; as inteligências superiores ao homem possuem suas leis; os animais possuem suas leis; o homem possui suas leis\". (Montesquieu, 1979, p. 25). Os homens e suas leis serão, portanto, o objeto de suas preocupações. Tendo cada domínio as suas, estas só podem ser compreendidas a partir dos próprios fatos.\n\nA preocupação com a instituição de governos moderados, que permitam a convivência harmoniosa dos súditos na direção do que cumpriria a boa vida é, como vimos, o impulso da obra de Montesquieu.\n\nDeterminados pelas causas gerais, os homens não podem encarar a história como obra da só livre vontade. Ao saírem de seu estado de natureza, passando a viver em sociedade - afirma Montesquieu - os homens tornam-se propensos aos excessos, aos conflitos e às guerras. \n\nO que portanto devem fazer? Como se garantiriam a bom governo? Estas questões são exatamente aquelas que veremos a seguir.\n\n5.3 AS ANÁLISES DAS FORMAS DE GOVERN O NO PENSAMENTO DE MONTESQUIEU\n\nAs categorias gerais que permitem ordenar sistematicamente as várias formas históricas de sociedade correspondem, para Montesquieu, aos diversos tipos de organização política. A conhecida teoria dos três tipos de governo, desenvolvida pelo autor nos treze primeiros livros de Do espírito das leis configura-se num esforço tendente a reduzir a diversidade das formas de governo a alguns tipos (a república, a monarquia e o despotismo), cada um destes definido, ao mesmo tempo, por referência a dois conceitos, que o autor denomina natureza dos governos e o princípio que os orientam.\n\nEntre a natureza do governo e o seu princípio, há esta diferença: a sua natureza é o que faz ser como é, e o seu princípio o que o faz agir. A primeira constitui sua estrutura particular e, a segunda, as paixões humanas que o movimentam. As leis não devem ser menos relativas ao princípio de cada governo do que a sua natureza. (Montesquieu, 1979, p. 41)