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2774 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 Constitucionalismo Haitiano e a Invenção dos Direitos Humanos Haitian Constitutionalism and the Invention of Human Rights Marcos Queiroz1 1 Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa Distrito Federal Brasília Brasil Email marcosvlqgmailcom ORCID httporcidorg0000000336447595 Artigo recebido em 18102022 e aceito em 23102022 This work is licensed under a Creative Commons Attribution 40 International License 2775 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 Resumo Por meio da análise de trechos das constituições do Haiti da primeira metade do século XIX o artigo investiga as características dos direitos humanos no constitucionalismo haitiano pósrevolucionário Dessa análise um arranjo conceitual alternativo é extraído para pensar o conteúdo dos direitos fundamentais e da ordem constitucional moderna Este arranjo é expresso em cinco conceitos direitos universais do negro materialidade da escravidão cidadania diaspórica propriedade abolicionista princípio do solo livre e nação quilombo A análise é realizada em diálogo com o pensamento de intelectuais negros e negras Concluise que a poética constitucional haitiana opera uma crítica às narrativas hegemônicas sobre a invenção dos direitos humanos e ao mesmo tempo fornece um imaginário moral mais amplo e plural do constitucionalismo especialmente por lidar decididamente com o legado da escravidão do colonialismo e do racismo Palavraschave Revolução Haitiana Constitucionalismo Direitos humanos Racismo Escravidão Abstract Through the analysis of excerpts from the Haitian constitutions of the first half of the 19th century the article investigates the characteristics of human rights in postrevolutionary Haitian constitutionalism From this analysis an alternative conceptual arrangement is extracted to think about the content of fundamental rights and the modern constitutional order This conceptual arrangement is expressed in five concepts universal Black rights materiality of slavery diasporic citizenship abolitionist property free soil principle and quilombo nation The analysis is carried out in dialogue with the thought of Black intellectuals It is concluded that the Haitian constitutional poetics operates a critique of the hegemonic narratives about the invention of human rights and at the same time provides a broader and plural moral imaginary for constitutionalism especially for dealing decisively with the legacy of slavery colonialism and racism Keywords Haitian Revolution Constitutionalism Human rights Racism Slavery 2776 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 Introdução1 A história da modernidade pode ser divida em antes e depois de 1804 No dia primeiro de janeiro deste ano na cidade de Gonaïves Jean Jacques Dessalines ao lado de seus generais e perante a população local declarava a independência do Haiti Depois de treze anos de conflitos da imposição de derrotas ao imperialismo francês espanhol e inglês e do rechaço armado à tentativa de genocídio perpetrada pelas tropas de Napoleão Bonaparte os haitianos fundavam o primeiro e único estado forjado a partir de uma revolução de escravizados A Declaração de Independência proferida por Dessalines era o ato final desse processo Em uma perspectiva de longa duração travase da bifurcação de dois mundos Às vésperas da insurgência 1791 a colônia em São Domingos estava no centro da acumulação capitalista Ela era líder na produção de café metade da produção mundial e açúcar produzindo mais que Brasil Cuba e Jamaica combinados Expressava assim a geopolítica da época em que 25 milhões de franceses dependiam da economia colonial e 15 dos mil membros da Assembleia Nacional Francesa tinham propriedades nas Antilhas DUBOIS 2004 FICK 1990 JAMES 2007 Riqueza que embalava os ideais liberais proferidos pela burguesia francesa pelas cidades de Paris Bordeaux Nantes e Lyon Riqueza produzida sobre a mais pura desprezível e cruel violência em que milhões de africanos e africanas foram raptados das suas terras para trabalhar até a morte pois o tráfico negreiro era mais lucrativo do que a vida dos próprios escravizados ARMITAGE e GAFFIELD 2016 Isto é valia mais a pena raptar massivamente africanos do outro lado do Atlântico do que prover condições básicas de sobrevivência dos trabalhadores na ilha Isto fazia de São Domingos o maior porto negreiro do momento O horror que era expresso na própria demografia da colônia a cada 10 escravos negros havia 1 colono livre seja grande proprietário pequeno burguês ou da ralé branca A estratificação social era expressa na hierarquia racial brancos homens livres de cor e escravizados DUBOIS 2004 1 Este artigo é fruto das investigações de doutorado e a primeira exposição de algumas das ideias que são articuladas na minha tese QUEIROZ 2022 Agradeço à CAPES pela oportunidade de conduzir parte da pesquisa na Universidad Nacional de Colombia no ano de 2018 como doutorando sanduíche por meio do Programa Abdias Nascimento Da mesma forma agradeço à Fulbright pela bolsa de pesquisador visitante na Duke University no ano de 2021 período de investigação necessário para que este artigo ganhasse forma 2777 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 Ao menos para a grande maioria dos haitianos 1804 é o fim desse sistema Contra o assédio imperialista e as tentativas de restauração da plantation por parte das elites internas a população do país irá montar um vigoroso sistema de apropriação coletiva do território ao longo do século XIX garantindo sua soberania em um mundo no qual o colonialismo era a norma2 Porém diante da derrota na mais produtiva colônia das Américas colonialismo plantation e escravidão tiveram que se readaptar para sobreviver Na esteira da Independência estadunidense e no meio do caminho para as independências latinoamericanas a Revolução Haitiana marca uma transformação em larga na história dos impérios sendo ponto chave de emergência do segundo imperialismo aquele que encerra as possessões nas Américas e o tráfico no Atlântico e inicia a exploração territorial e populacional em larga escala na África e na Ásia A compra do largo território de Louisiana em 1803 pelos EUA é só um dos exemplos dessa mudança de estratégia da França e da Inglaterra sobre o continente americano HARRISS 2003 A plantation também deveria ser reformulada Após a Revolução Haitiana o sul dos EUA Cuba e Brasil são os seus novos laboratórios Neles ela passa por um processo de hiperespecialização adequandose às novas exigências do livre comércio capitalista bem como se adapta aos coros de liberdade que começam a fechar o cerco sobre o tráfico negreiro PARRON 2015 São os primórdios da segunda escravidão momento no qual a instituição momentaneamente contestada retomará folego nas três referidas regiões conjugando o desenvolvimento das trocas econômicas com a expansão da mão de obra escravizada Liberalismo e escravismo não eram pares antagônicos mas núcleos complementares da mesma economia política BOSI 1992 MARQUESE e SALLES 2016 Neste contexto por todo o Atlântico formulase uma arquitetura jurídica destinada a evitar a reprodução do Haiti em outros territórios As noções de soberania cidadania propriedade liberdade e igualdade serão definidas à luz dos eventos de São Domingos bem como serão recrudescidas as táticas de controle social sobre a população negra O medo da Revolução Haitiana passa a ser o negativo constitutivo da normatividade estatal ao longo do XIX DUARTE 2011 QUEIROZ 2017 criando cativeiros jurídicos para a população negra tanto na escravidão como no pósabolição AZEVEDO 2008 CHALHOUB 1988 BRITO 2016 2 Este sistema sobreviveu hegemônico no país até a ocupação dos Estados Unidos em 1915 quando o império da plantação seria restaurado CASIMIR 2020 TROUILLOT 1990 2778 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 O contraataque antirrevolucionário estava montado Por outro lado a linguagem emanada pelo Haiti enfatiza outra geografia das lutas por liberação Primeiramente a Revolução Haitiana pode ser lida como a primeira das revoluções latino americanas ao ser constituída por um complexo de questões que marcarão a formação social dos demais países da região como a grande presença de população negra e mestiça o entrelaçamento entre forças militares e políticas na resolução dos conflitos internos e a persistência da economia dependente ARMITAGE e GAFFIELD 2016 GHACHEM 2016 Por outro lado ao ser forjada pela luta de uma população em sua maioria africana que expulsou os colonizadores europeus do território ela também pode ser entendida como percursora das guerras de descolonização da África no século XX nas quais os efeitos globais do colonialismo era peça central DUBOIS 2004 Ademais para os povos subalternos desde o seu desfecho vitorioso até o mundo contemporâneo a Revolução Haitiana foi um símbolo de resistência e de superação da opressão insuflando movimentos políticos estéticos e literários ao redor do mundo PAST 2004 QUEIROZ 2018 O sentido universal da Revolução Haitiana e de 1804 como divisor de águas ilumina o que estava em jogo na aurora do constitucionalismo BUCKMORSS 2011 DUARTE e QUEIROZ 2016 No momento em que surgem as noções básicas das Constituições modernas como cidadania soberania representação política propriedade liberdade e igualdade a escravidão era a grande instituição constituidora de sentidos do mundo atlântico PARRON no prelo QUEIROZ 2017 Como um instrumento óptico corretivo o Haiti nos alerta sobre o que estava em jogo e era central chama a atenção para aquilo que não queremos ver na história constitucional retirando da penumbra o que foi silenciado Diante desse quadro o artigo procura trabalhar aspectos centrais do constitucionalismo haitiano pósrevolucionário desenvolvido entre 1801 e 1816 À luz da luta revolucionária dos haitianos por autodeterminação os textos jurídicos do Haiti fornecem um arranjo conceitual alternativo para o direito constitucional moderno A análise será desenvolvida em diálogo com o pensamento negro o qual redimensiona aspectos marginalizados ou apagados pela teoria política hegemônica Na abordagem são desenvolvidos seis elementos articulados pela práxis constitucional do Haiti direitos universais do negro materialidade da escravidão cidadania diaspórica propriedade abolicionista princípio do solo livre e nação quilombo 2779 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 No entanto antes de adentrar na análise são importantes algumas considerações sobre a relação entre constitucionalismo e imaginação social 1 Constituição nação e comunidades imaginadas No seu clássico Comunidades imaginadas reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo 2016 Benedict Anderson propõe pensar a nação como uma comunidade política imaginada como inerentemente limitada e soberana Ela seria imaginada porque ainda que os membros da nação mais pequena não conhecerão jamais a maioria de seus compatriotas não serão vistos nem ouvirão sequer falar deles no entanto na mente de cada um vive a imagem de sua comunhão ANDERSON 2016 p 23 No seu argumento a nação é uma espécie de obscurantismo trazido pelo iluminismo a substituir velhas metafísicas como as religiosas ou das antigas dinastias Ela é possibilitada pela interrelação entre capitalismo e imprensa e por uma mudança na temporalidade da qual surge uma divisão entre passado e presente tornando possível falar de uma antiguidade e do tempo presente Portanto há a quebra do tempo messiânico simultaneidade entre passado e futuro em um presente instantâneo diante da emergência do tempo da modernidade marcado pela simultaneidade transversal tudo se passa e se vive em todas as partes O periódico é a grande expressão desse fenômeno em que os eventos são compartilhados o tempo todo nas mais diversas regiões Da mesma forma a emergência do romance cria um outro tipo de narrativa em relação ao tempo baseado nas noções de contemporâneo cotidiano tempo presente Numa relação de identidade e empatia com o leitor o romance fale de uma humanidade comum um nós particular Há a sincronização e fundição do tempo da novela com o tempo exterior ANDERSON 2016 Diante dessas transformações a nação e o nacionalismo são artefatos culturais de uma classe específica que substituem outras imaginações comunitárias anteriores Ela é fruto de processos pragmáticos de certos agentes e grupos sociais e não somente de uma imposição pura e simples Assim está atrelada ao uso contextual das línguas vernáculas disseminado pela criação e expansão de mercados consumidores e pela reprodutibilidade capitalista da imprensa à montagem de burocracias estatais e à formulação de relatos históricos atrelados a disputas por soberania política Neste sentido ela é materialmente construída e disputada e socialmente imaginada 2780 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 dependendo de apetrechos específicos que mediam e informam os sentidos comuns Assim agentes institucionais intelectuais literatos lideranças políticas representações estéticas historiografia e museus ajudam a moldar a percepção individual e coletiva dos habitantes de um determinado território no que se refere à identidade nacional Assim a despeito da desigualdade e exploração de um setor sobre o outro no plano interno a nação é sempre concebida dentro de um senso de camaradagem profundo e horizontal ANDERSON 2016 Partindo das reflexões de Anderson Julia Gaffield aponta como a virada do século XVIII para o XIX é um momento crucial para o desenvolvimento do sentido de nação moderno na medida em que revoluções bem sucedidas e independências permitem que lideranças elites políticas e classes específicas assumam o controle do Estado GAFFIELD 2007 A partir disso estes grupos podem se valer do aparato institucional não só para alcançar seus objetivos e interesses econômicos mas também construir e universalizar um determinado sentido de tempo e história por meio da construção da nação nada mais nada menos que uma perspectiva hegemônica de comunidade imaginada Dessa forma a América Latina e particularmente o Haiti são um celeiro para o entendimento de como consciência racial e nacional se entrelaçaram nas histórias póscoloniais das nascentes nações especialmente como raça e nação foram mediados pelas insurgências rebeldes no Atlântico a resistência negra e a atuação dos setores subalternos livres Da mesma forma sendo a nação o lado obscuro e metafísico do momento revolucionário a Constituição desponta como um decisivo artefato para se entender como a nação foi imaginada projetada construída e disputada na medida em que é um documento que articula uma tripla característica é o texto fundamental que fala e organiza politicamente e juridicamente o nós coletivo ele demarca uma torção no tempo dividindoo entre o antes o agora e o depois e por fim para se projetar para o futuro o documento é escrito e interpretado por meio da imaginação de um povo nacional realmente existente isto é uma identidade constitucional que tem uma história um passado e um destino comum Assim no caso haitiano suas primeiras constituições são interessantes para pensar como suas lideranças realizaram esforços para construir uma nação que transcendesse as divisões internas hierarquias de cor e diferenças culturais demarcasse o rompimento com o passado colonial e imaginasse o futuro comum em liberdade numa realidade internacional ainda dominada pela escravidão e pela plantation Assim elas foram um instrumento importante por meio do qual o Estado e sua classe dirigente tentou 2781 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 influenciar os termos nos quais a comunidade nacional seria definida incidindo de maneira dialética na percepção individual e coletiva dos haitianos GAFFIELD 2007 Falando especificamente sobre as quatro primeiras constituições do Haiti 1801 1805 1806 e 1807 Julia Gaffield ilumina a relevância do texto constitucional para a construção da imaginação nacional O cenário histórico das primeiras constituições haitianas ajuda a explicar sua ênfase na definição do caráter nacional do Haiti em torno de três temas atividade econômica religiosa e políticomilitar Durante os primeiros anos de semiindependência e depois completa independência o Haiti produziu quatro constituições cada uma delas diretamente relevante para o estudo da identidade nacional Essas constituições indicam a natureza turbulenta e incerta dos tempos em que os líderes tentaram fornecer diretrizes e regulamentos oficiais sobre como o país deveria funcionar como um estado soberano Os numerosos artigos de cada constituição sugerem como os líderes políticos não apenas desejavam que o país fosse mas também como acreditavam que era e poderia ser O exame sistemático desses artigos sugere como esses líderes tentaram desenvolver um senso de nação em um contexto de agitação interna e internacional GAFFIELD 2007 p 85 Assim o direito e as constituições são construtores de marcadores de autoidentificação e heteroidentificação fundamentais durante o surgimento e desenvolvimento dos estados independentes bem como na articulação de ideias nacionais baseadas na similitude sobre as diferenças No entendimento da imaginação nacional as constituições são fontes valiosas porque sublinham características que são assinaladas para todo o país Neste sentido ela cria a nação como ideal e intencionalmente mascara as complexidades da sociedade em favor de uma única comunidade imaginada No caso haitiano diversas pesquisas demonstram que este esforço de homogeneização não foi bem sucedido TROUILLOT 1990 CASIMIR 2020 PEREIRA 2020 Por outro lado como argumenta Gaffield a despeito da fragmentação social pósindependência as constituições não só contestaram consistentemente as divisões como ajudaram a produzir processos duradouros de identificação nacional GAFFIELD 2007 Diante dessas considerações a respeito da articulação entre constituição e nação cultura jurídica e identidade nacional objetivase a visualização de determinadas articulações conceituais do constitucionalismo haitiano do início do século XIX Em diálogo com o pensamento negro argumentase que a prática constitucional do Haiti propõe ferramental alterativo para repensar a teoria política e constitucional moderna e a invenção dos direitos humanos HUNT 2009 Em específico ela fornece um arranjo 2782 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 jurídico criativo e crítico para lidar com o legado colonial e repensar os direitos humanos Dessa forma seis categorias são exploradas a partir dessas constituições direitos universais do negro materialidade da escravidão cidadania diaspórica propriedade abolicionista princípio do solo livre e nação quilombo 2 Constitucionalismo haitiano e direitos humanos Logo na primeira constituição pósindependência formulada sob o governo de Dessalines em 1805 expõese uma embrincada articulação entre universal e particular por meio da ressignificação do termo negro Na exposição de Sibylle Fischer 2003 essa relação deve buscada tanto no preâmbulo como nos artigos 12 13 e 14 da Constituição Na abertura do texto é possível ler Na presença do Ser Supremo perante o qual todos são iguais e que disseminou tantas classes de seres diferentes na superfície do globo para o único propósito de manifestar sua glória e poder através da diversidade de suas obras Diante da criação inteira cujos filhos repudiados nós fomos considerados tão injustamente e por tão longo tempo Declaramos que os termos da presente Constituição são a expressão livre espontânea e determinada de nossos corações e a vontade geral de nossos compatriotas Constitution Imperiale dHaiti 1805 Na argumentação de Fischer o preâmbulo opera como um duplo Por um lado estabelece o princípio da igualdade universal Por outro afirma a diversidade e diferença do gênero humano Ao condenar a forma injusta com que os haitianos e todos os escravizados e colonizados do mundo foram tratados expressa tanto a igualdade racial como a ideia de que o estado haitiano é fundado no repúdio à violência colonial Assim princípios universais como a igualdade e a liberdade devem ser mediados por um elemento particular que no caso é justamente a experiência de ser vítima do colonialismo e da discriminação racial FISCHER 2003 Neste sentido a cor da pele é o grande signo catalizador de sentidos dessa experiência A invenção do negro é o principal legado do empreendimento colonial MBEMBE 2014 e é sobre ele que a Constituição de 1805 investe um pesado processo de ressignificação por meio do direito Art 12 Nenhuma pessoa branca qualquer que seja sua nacionalidade poderá ingressar neste território na qualidade de senhor ou proprietário nem poderá no futuro adquirir propriedade alguma Art 13 O artigo precedente no exerce efeito algum sobre as mulheres brancas que tenham sido naturalizadas como haitianas pelo governo nem 2783 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 sobre seus filhos atuais ou futuros Incluemse igualmente na presente previsão os alemães e poloneses naturalizados pelo governo Art 14 Havendo que desaparecer forçadamente toda distinção de cor entre os filhos de uma mesma família de quem o pai é o chefe de Estado os haitianos serão conhecidos daqui para frente pela denominação genérica de negros Constitution Imperiale dHaiti 1805 Primeiramente é notável o esforço dos haitianos em extirpar da ilha o retorno dos vínculos de propriedade impostos pelo imperialismo conforme expresso no art 12 Não é só a ideia de proprietário branco que está excluída mas também a de senhor denotando o programa abolicionista por trás da definição jurídica Ademais o artigo expressava o temor concreto de uma nova investida francesa especialmente diante da presença de antigos proprietários no país e em regiões próximas como nos Estados Unidos e nas Antilhas Essa formulação se repetiria em todos os textos fundamentais do país até a Constituição de 1918 formulada durante o período de ocupação dos Estados Unidos quando a exclusão da propriedade branca seria revogada abrindo caminho para o retorno da plantation e das forças recolonizadoras CASIMIR 2020 DUBOIS 2012 No meio do caminho a despeito da previsão constitucional o confisco da propriedade branca pelo estado haitiano também seria revertido por meio do tratado de reconhecimento diplomático de 1825 quando a França impôs a criminosa dívida da independência aos haitianos isto é fez com que o Haiti pagasse por toda posse ilegítima oriunda da situação colonial e escravocrata SILVA e PEROTTO 2018 Especificamente em relação à denominação genérica de negros Fischer argumenta Em uma manobra extraordinariamente ousada a Constituição de Dessalines adota a linguagem dos colonizadores e a submete a uma ressignificação total Todas as hierarquias baseadas na cor de pele são abolidas e todos os haitianos passam a ser referidos pelo termo genérico de negros Da exageração taxonômica de uma colônia que tinha mais de uma centena de termos distintos para se referir a graus diferentes de mesclas de raça e cor passamos a uma denominação genérica de negros Os revolucionários da antiga colônia francesa voltam a chamar o território com o nome arawak original e o fazem o que é ainda mais significativo voltando a nomear a cor da pele Rechaçando qualquer expectativa de ordem biológica ou racial fazem do termo negro sinônimo de ser haitiano e logo uma categoria política antes que biológica Dessa forma a Constituição de 1805 constrói por meio do ato de ressignificação um dos paradoxos mais inquietantes da política universalista moderna o paradoxo de que o universal se deriva comumente de algum dos particulares e implica assim certa forma de subordinação O gesto de chamar a todos os haitianos não importa qual for sua cor de pele de negros é como chamar a todas as pessoas de mulheres independentemente do seu sexo supõe intuições do tipo igualitárias e universalistas ao mesmo tempo 2784 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 que as põe à prova empregando o termo previamente subordinado da oposição como termo universal FISCHER 2003 Portanto o artigo 14 era uma forma de legislação expressiva que positiva o processo da Revolução em direção ao futuro valendose do signo herdado do colonialismo para modificar e valorizar seu significado de maneira progressiva até torná lo fundamento da universalidade humana Fizeram do devir haitiano a reversão do devir negro Segundo Mbembe o devir negro do mundo é a universalização dos riscos sistemáticos a que os escravos de origem africana foram submetidos durante o primeiro capitalismo Assim a condição negra passa a afligir todas as humanidades subalternas com a instauração de práticas imperiais inéditas que devem tanto às lógicas escravagistas de captura e de predação como às lógicas coloniais de ocupação e exploração ou seja às guerras civis ou razzias de épocas anteriores MBEMBE 2014 p 16 O planeta se torna paulatinamente uma grande plantation com seus correspondentes fenômenos de comércio e descarte de corpos destruição de territórios e aniquilamentos de culturas Distribuição do tempo atomização do espaço e transformação do real em ficção e da ficção em real em que a força militar a destruição de infraestruturas os golpes e as feridas são acompanhadas por uma mobilização total através das imagens Elas fazem agora parte de dispositivos de uma violência que se desejava pura MBEMBE 2014 p 16 Tratase da permissividade e da investidura de tecnologias sobre corpos e territórios com práticas de zoneamento economias da violência e desapossamento das matrizes do possível as quais guardam sua origem na lógica de poder e dominação da escravidão negra O termo negro carrega o passado e o futuro do mundo É com essa consciência profética que a Constituição de 1805 investe nele o significado de humanidade pois sabia que caso o mundo que criou tal categoria não fosse radicalmente abolido o amanhã de todos seria tal qual o conhecemos hoje constituído pelo devir do escravo e pela globalização da colônia Uma mimesis da São Domingos pré1804 Portanto na torção semântica do termo negro o devir haitiano aponta uma construção da universalidade humana que carrega a memória de todos aqueles que foram são e possivelmente serão deixados de fora daquilo que se entende como humanidade Rejeitando abstrações que se colocam foram do tempo afirma que os princípios jurídicos devem emergir da experiência materialmente vivida Numa perspectiva intransigente este devir diz que o conteúdo dos direitos humanos deve ser preenchido na tensão com todo o horror e 2785 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 absurdo produzido por aqueles que se advogam os únicos portadores da civilização Trata se de uma poética constitucional baseada na hermenêutica daquele que foi capturado separado de sua família e de suas terras embarcado como carga humana em um navio foi vendido e viveu o cotidiano de terror da plantação daquele que a despeito de tudo isso jamais se viu como escravo e emergiu da penumbra da CasaGrande para reivindicar a sua liberdade e de todos os demais O devir haitiano instaura o direito universal do negro como ponto de partida de outra humanidade O segundo elemento que emerge do constitucionalismo é a materialidade da escravidão como um problema constitucional e de organização do Estado e não uma abstração filosófica Fruto de uma revolução abolicionista cercado por regiões escravistas e ainda ameaçado por forças recolonizadoras o Haiti surge como nação tendo a escravidão como uma questão concreta de primeira ordem Já na Constituição de 1801 elaborada por Toussaint Louverture quando o país ainda não havia declarado sua independência completa a escravidão a liberdade e a igualdade racial aparecem no título II nas disposições sobre os habitantes do território Art 3 Não haverá escravos neste território a servidão está abolida para sempre Aqui todo os homens nascem vivem e morrem livres e franceses Art 4 Todos os homens não importa qual seja sua cor de pele podem ser aqui admitidos para qualquer emprego Art 5 Não existe outra distinção que não seja a das virtudes e talentos e não há outra superioridade que aquela que confere a lei no exercício de uma função pública A lei é a mesma para todos tanto a que castiga como a que protege Constitution dHaïti 1801 Em um mundo constituído pela linha de cor como forma básica da fronteira entre liberdade e servidão ao positivar o princípio da igualdade a Constituição nomeia expressamente a ausência de discriminação racial pois sabe que o silêncio a respeito do assunto é mecanismo de perpetuação da lógica branca de dominação É necessário afirmar a raça numa política de direitos que descontrói ativamente o racismo Ademais como argumenta Fischer a abolição expressa da escravidão é extremamente radical e inovadora para sua época bastando comparar com praticamente todas as constituições e declarações francesas do mesmo período À exceção da Constituição Termidoriana de 1795 que continha uma proibição expressa sobre a escravidão da declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789 à reintrodução da escravidão nas colônias francesas em 1802 todas as leis fundamentais da França eram omissas sobre a proibição do 2786 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 escravismo FISCHER 2003 Isto é o silêncio revelava que no seu suposto universalismo era permitido a servidão de pessoas negras Ademais ao localizar a questão da escravidão no título dos habitantes e não como parte de um rol de direitos civis e políticos a Constituição de 1801 trata do tema como um assunto político e de organização institucional Neste sentido Fischer argumenta Isso não é um detalhe insignificante na caprichosa evolução da história constitucional revolucionária Haiti como Estado fundado para garantir a liberdade e acabar com a escravidão e a subordinação racial exerce uma pressão particular sobre a distinção entre os direitos universais e as contingências dos arranjos políticos O grande número de modificações realizadas entre 1791 e 1795 na Declaração de Direitos demonstra que longe de oferecer garantias inalteráveis estas enumerações de direito universal estavam sujeitas à mudança e em grande medida expostas ao debate FISCHER 2003 p 28 Assim o fim da escravidão e a eliminação da subordinação racial estão no centro do programa fundacional do Estado O princípio da abolição articula político e social liberdade e igualdade dentro de um uno que se estabelece não numa lista de direitos independentes uns dos outros mas sim como parte dos fundamentos indispensáveis da entidade geopolítica da nação que logo surgiria Portanto o constitucionalismo haitiano lega uma outra perspectiva sobre a tensão entre igualdade e liberdade tão comum às celeumas liberais Por meio do seu abolicionismo em que a liberdade só poderia ser garantida com a plena igualdade racial ambos os princípios são mutuamente constituídos ganhando concretude diante da experiência de rejeição do mundo de privações criado pela escravidão FISCHER 2003 Se por um lado esse vínculo de indistinção entre igualdade e liberdade abriu caminho para dispositivos de controle do trabalho livre era necessária uma supervisão abrangente do trabalhador para garantir a liberdade coletiva do país FISCHER 2003 por outro fez do Haiti protagonista na expansão do princípio da abolição pelo Atlântico Isto é o enfrentamento à escravidão como fundamento do Estado implicava numa postura de intervenção nas relações internacionais Sob o risco de ataque das potencias estrangeiras essa incidência muitas vezes se realizou de maneira indireta como no acordo entre Alexander Petión e Simón Bolívar Em troca do suporte dado às guerras de independência latinoamericanas o haitiano exigia a abolição da escravidão nos territórios liberados e que Bolívar fundasse um país baseado nos mesmos princípios libertários do Haiti Por mais que a promessa não tenha sido cumprida o trato entre 2787 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 haitianos e patriotas americanos representava a visão de mundo de uma nação que nasceu em antagonismo universal com a servidão negra GAFFIELD 2013 Antagonismo que era exercido não por meio de filosofias diletantes ou vazias declarações de direitos pois era baseado numa práxis pragmática de atuação sobre as condições concretas da época É neste sentido de intervir indiretamente na realidade escravista do atlântico que se pode visualizar o terceiro elemento do constitucionalismo haitiano a cidadania diaspórica3 Todas as primeiras constituições haitianas são explícitas em destacar a política absenteísta do país isto é de que ele não interveria por meio de guerras nas realidades de outros países e muito menos exportaria sua revolução Era um mecanismo de defesa para afastar as acusações de um certo haitianismo internacionalista a sublevar escravos por todo o globo forjadas por opositores da independência do país Diante desse cenário que a Constituição de 1816 a primeira pósreunificação do norte e do sul positiva um criativo dispositivo sobre cidadania capaz de driblar a conjuntura adversa da época É lugar comum que a nacionalidade e a cidadania são concedidas com os critérios de ius soli e ous sanguinis isto é a pessoa se torna nacional e cidadã caso tenha nascido em determinado território ou seja descendente de algum dos seus cidadãos Assim o ser cidadão e seus respectivos direitos estão aprisionados a fronteiras físicas e a laços étnico raciais Por outro lado o constitucionalismo haitiano adotava uma concepção mais universal e enraizada na história da modernidade Nela as vítimas potenciais da escravidão e do colonialismo assim que entrassem no país tornavamse não só nacionais haitianos mas também cidadãos com plenos direitos políticos FERRER 2012 GAFFIELD 2013 Assim no título III do estatuto político dos cidadãos da Constituição de 1816 estava o art 44 que assim estabelecia a aquisição da cidadania haitiana todos os africanos e indígenas e aqueles que do seu sangue nascidos nas colônias ou países 3 A noção de cidadania diaspórica é fruto das discussões e leituras desenvolvidas nas disciplinas A Dialética do Senhor e do Escravo em Hegel Uma releitura da Teoria do Reconhecimento a partir da obra de Susan BuckMorss Hegel Haiti e a História Universal ofertada pelos professores Menelick de Carvalho Netto e Evandro Piza no primeiro semestre de 2015 e Cultura Jurídica Branquidade e Memória ofertada por Evandro Piza no segundo semestre de 2015 Ademais ao longo do ano de 2017 junto com o amigo João Victor Nery Fiocchi Rodrigues realizamos um grupo de estudos sobre Revolução Haitiana e constitucionalismo onde o termo foi melhor delimitado Naquele mesmo ano eu Evandro e João escrevemos um esboço de artigo chamado Constituições Haitianas PósRevolucionárias Antirracismo e a Reformulação da Cidadania para ser apresentado na 13ª Conferência da European Sociological Association em Atenas onde o conceito foi pela primeira vez articulado em texto No ano seguinte João trabalhou o termo na sua dissertação sobre constitucionalismo e as lutas por direitos dos mapuches no Chile Duarte Queiroz e Rodrigues no prelo Rodrigues 2018 2788 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 estrangeiros que venham a residir na República serão reconhecidos como haitianos mas não desfrutarão do direito da cidadania até que tenha passado um ano de sua residência4 No mesmo sentido a Constituição de 1843 expande ainda mais essa noção No título sobre os haitianos e seus direitos é possível ler Art 6 Todos os indivíduos nascidos no Haiti ou de ascendência africana ou indígena e todos aqueles nascidos em países estrangeiros de um homem haitiano ou de uma mulher haitiano também o são todos aqueles que até o dia de hoje tenham sido reconhecidos como haitianos Art 7 Todos os africanos ou indígenas e seus descendentes podem fazerse haitianos A lei regula as formalidades da naturalização Constitution du 30 décembre 1843 Tais dispositivos apontam a natureza transnacional do antiescravismo radical que funda o estado haitiano A cidadania diaspórica serve como uma forma de driblar o cerco internacional ao conceder não só asilo mas nacionalidade e direitos políticos aqueles que possivelmente tenham sido capturados pela lógica colonial Se o Haiti enfrentava restrições para levar a abolição e a igualdade racial a todos os condenados da terra estes encontrariam nele ao menos um território de liberdade e direitos Tais dispositivos devem ser lidos diante dos esforços concretos do país em convidar e naturalizar pessoas negras e nãobrancas nas colônias francesas e britâncias próximas como Martinica Guadalupe e Jamaica bem como realizou negociações diplomáticas com Estados Unidos e Espanha para fazer retornar haitianos que estivessem como escravos nestes territórios GAFFIELD 2013 FERRER 2012 Assim por meio da cidadania diaspórica Haiti convocou publicamente negros estadunidenses a irem residir no país na década de 1820 entre 6 e 13 mil afro americanos migraram para o Haiti5 recebeu inúmeras pessoas escravizadas das demais 4 Como a hipocrisia safadeza e cara de pau dos europeus não encontravam limites esse artigo seria atacado no plano internacional Nas negociações de reconhecimento diplomático os franceses pediriam a revogação de tal dispositivo pois ele estabelecia uma distinção de cor contra a qual a filantropia estava lutando para destruir há mais de meio século FERRER 2012 p 46 Haja óleo de peroba E quando Petión utilizou a Constituição de 1816 para garantir a naturalização liberdade e cidadania de 07 negros fugidos da Jamaica escravagistas britânicos diziam que o texto constitucional haitiano representava uma ameaça para o comércio marítimo e para a ordem internacional 5 Neste sentido e sobre os usos do constitucionalismo haitiano para intervir na realidade do Atlântico narra Ada Ferrer Ouvindo notícias trazidas por marinheiros negros estadunidenses em Porto Príncipe de que o governo dos Estados Unidos estava considerado em remover forçadamente negros livres para a África Petión procurou inserir o Haiti nos cálculos de saída e remoção feitos nos Estados Unidos Por meio do seu secretário geral Joseph Balthazar Inginac ele convidou estadunidenses negros a emigrar para o Haiti como uma forma de resistir à exclusão e ao abuso que eles enfrentavam nos Estados Unidos Abrelhes os olhos a Constituição da nossa República e vejam no seu artigo 44º uma mão fraterna aberta às suas angústias Visto que hoje lhes é recusado o título de Membros da União Americana que venham entre nós em um país firmemente organizado e gozem dos direitos de Cidadãos do Hayti de felicidade e paz enfim que venham e mostrem aos 2789 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 ilhas antilhanas requereu aos patriotas latinoamericanos que os africanos resgatados sobre os mares fossem mandados para o país caribenho além da própria abolição nos territórios liberados cabe lembrar e inscreveu o direito de asilo como princípio organizativo do Estado vinculado diretamente à escravidão e não meramente a perseguições oriundas de manifestação de opinião política conforme o art 3º da Constituição de 1816 Tudo isso apontava a intenção do Haiti na construção de um robusto projeto nacional abolicionista que objetivava intervir nos debates internacionais sobre direitos liberdade igualdade cidadania e soberania da época Ademais com seu apoio aos patriotas latinoamericanos em troca da abolição da escravidão o Haiti pretendia fazer avançar a pauta sobre outras localidades construindo uma rede de estadosnação antiescravistas articulação jamais concretizada seja pelo não cumprimento da promessa por parte dos independentistas seja pela exclusão por esses líderes do Haiti do Congresso do Panamá em 1826 espaço onde a causa poderia ser retomada como projeto comum da América FERRER 2012 Da mesma forma a noção de cidadania diaspórica ajuda a reler e expandir a noção de negro enraizada na história do constitucionalismo haitiano Por um lado todos os haitianos seriam denominados genericamente pelo termo negro Por outro todas as vítimas da escravidão e do genocídio eram potencialmente haitianas independentemente da sua cor Essa ambiguidade e sobreposição realiza uma paradoxal política de direitos a qual expande a cidadania de acordo com a expansão do colonialismo Quanto mais violência colonial houver mais haverá potenciais cidadãos haitianos espalhados pelo planeta Nesta poética o termo negro opera politicamente de duas formas passa a designar não somente pessoas de origem africana e pele escura mas todo aquele que foi capturado pelas malhas coloniais e tornase núcleo do conceito de humanidade informador de uma política de direitos decididamente disposta a enfrentar as chagas da supremacia branca global A cidadania diaspórica articulava o devir haitiano como resposta jurídica ao devir negro do mundo Mais do que isso opera uma crítica ao conceito de refúgio o qual somente existe diante de um sistema jurídico internacional que naturaliza a precariedade de certas vidas humanas O refugiado é uma aporia do direito pois é um sujeito relativizado de direitos isto é um humano menor para o qual o sistema jurídico opera na exceção homens brancos que ainda existem homens de cor e negros que podem levantar um front destemido protegido do insulto e da injúria FERRER 2012 p 58 grifos nossos 2790 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 legítima HIGINO 2018 Isto é logo aquele que mais precisa de amparo institucional é tratado juridicamente de forma estreita e instável Ademais a possibilidade do refúgio tem como lado oculto uma ordem internacional que permite a barbárie isto é que produz incessantemente migrações forçadas de indivíduos sem garantias jurídicas totais que passam a depender da boa vontade de organismos estrangeiros e pessoas desconhecidas No mundo do constitucionalismo haitiano a figura do refugiado não existe pois ela é substituída pelo negro em diáspora o qual imediatamente se torna sujeito pleno de direitos assim que pise no Haiti Dessa forma tratase de uma política que articula direito interno e externo fazendo do território nacional instrumento de expansão da liberdade e da igualdade racial no plano internacional Ou há cidadãos ou não há Ou há direitos humanos em sua universalidade ou não há Ou há humanidade ou não há O quarto elemento do constitucionalismo versa sobre o direito de propriedade O núcleo jurídico da escravidão é o direito de propriedade que uma pessoa tem sobre a outra Por mais que esse direito tenha sido regulado em alguns casos a exemplo do fatídico Código Negro francês de 1685 ele se baseava no domínio e na vontade absoluta do senhor sobre o seu escravo Isso significava que o negro não era somente uma mercadoria e um instrumento de trabalho pois o senhor poderia exercer sobre ele qualquer tipo de ação que imaginasse Compra venda depósito em garantia tortura mutilação estupro assédio separação de família gravidez forçada almejando lucros futuros disposição livre do seu tempo para as mais diferentes tarefas da dança obrigada ao acender de luzes em todo anoitecer de retirar as fazes de dentro da casa a vestir suas roupas de preparar comidas a escovar os sapatos colocação na rua como pessoa de ganho e etc Assim era um tipo de propriedade baseada num direito despótico num domínio arbitrário e numa posse caprichosa constituidores de relações sociais inerentemente patológicas sádicas e delirantes É contra este horror absoluto que se levanta a Revolução Haitiana Por isso há uma enorme cisão entre o constitucionalismo haitiano e o resto do constitucionalismo no início do século XIX Os textos constitucionais das demais nações irão afirmar o direito de propriedade sem especificar o que ele significava a exemplo do art 179 XXII da Constituição do Império Com isso abrangiam a possibilidade da propriedade escrava na sua plenitude tendo em vista que ela ainda era a norma em diversas regiões Já as Constituições haitianas explicitamente definiam a propriedade como o direito de usufruir e dispor do próprio trabalho e indústria conforme 2791 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 estabelecido na de 1806 e na sua revisão de 1816 FERRER 2012 Neste sentido Ada Ferrer argumenta a proteção da propriedade que era utilizada por toda parte e continuaria sendo em certas circunstâncias como um meio de proteger a escravidão era definida de uma maneira que tornava inadmissível a escravidão vista como uma violação dos direitos do homem e uma violação do direito de um indivíduo à sua própria propriedade ou pessoa FERRER 2012 p 52 Dessa forma a propriedade abolicionista da relação de servidão propriedade somente incluindo o fruto do próprio trabalho somada à própria abolição da escravidão e à cidadania diaspórica formava um enquadramento jurídico radicalmente diferente do caminho que o direito tomava naquele momento da história Essa moldura serviu de padrão para pleitos de liberdade nas cortes haitianas e de intervenção na geopolítica da época FERRER 2012 Essa política e pragmática dos direitos fazia do Haiti protagonista no sentido universal dos direitos humanos Da mesma forma a exclusão da propriedade escrava combinada com a proibição da propriedade por brancos sobrepunha dois institutos para afirmar não era só a relação de senhor e escravo que estava abolida mas também a hermenêutica senhorial dela oriunda isto é a epistemologia branca que se crê onipotente onisciente e onipresente pois nascida do domínio total sobre outra vida humana Portanto tratavase de uma abolição radical tanto das condições materiais como subjetivas decorrentes da escravidão negra por mãos e mentes brancas Abolir a chibata e a perspectiva de quem a segura Assim o constitucionalismo haitiano deixava importante lição de que o princípio da propriedade absoluta poderia permanecer para além da própria escravidão caso o modo de ver da CasaGrande não fosse frontalmente atacada O princípio da abolição tentava ser o rito fúnebre a despachar para sempre os fantasmas dos senhores A propriedade abolicionista está relacionada ao quinto elemento articulado pelo constitucionalismo haitiano o princípio do solo livre Conforme colocado diferentemente das declarações europeias as constituições do Haiti retiravam os princípios da liberdade e da igualdade da abstração para tornalos reais e concretos O território e o solo eram as raízes dessa base material da liberdade A terra preta amparava um universalismo concreto diferente do universalismo abstrato francês que no seu vazio permitia a escravidão Conforme argumenta Ada Ferrer o princípio do solo livre é anterior aos debates da Era das Revoluções Presente no Antigo Regime e reconhecido em diversos sistemas jurídicos europeus ele significava a aquisição de liberdade por um escravo assim 2792 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 que pisasse em um território particular Na França e na Inglaterra metropolitanas representava uma extensão do princípio das comunas medievais de que o ar livre das cidades era declarado incompatível com a servidão Durante a era do tráfico negreiro e da escravidão este princípio serviu de base para pleitos judiciais de pessoas escravizadas No entanto a partir de meados do século XVIII a sua aplicação a pessoas negras foi alvo de um grande retrocesso chegando à proibição da entrada de pessoas de cor na França por Napoleão em 1802 Mais perto do futuro Haiti princípio semelhante era utilizado pelos santuários católicos em territórios espanhóis em que antigos escravos eram libertados caso pisassem nessas terras e se convertessem ao catolicismo FEERER 2012 No entanto o princípio do solo livre articulado pelo constitucionalismo haitiano por meio da cidadania diaspórica era muito mais abrangente e radical Neste sentido a partir da Constituição de 1816 Ada Ferrer argumenta A versão de solo livre de Pétion no entanto era significativamente mais radical do que qualquer precedente britânico ou francês Primeiro seu princípio de liberdade foi proclamado não para territórios europeus que estavam geograficamente afastados dos espaços de escravidão em massa mas para uma excolônia escravista a pouca distância de numerosos e florescentes regimes escravistas Assim seu solo livre foi declarado no espaço geográfico onde mais importava Em segundo lugar ele fez do solo livre não apenas um princípio jurídico a ser invocado e defendido em casos específicos como era na Europa mas de fato um princípio geral e inviolável inscrito na lei suprema da terra Assim ele se baseou em princípios do antiescravismo do Antigo Regime e os combinou com elementos do antiescravismo haitiano para expandir o escopo de cada um As políticas de Pétion ampliaram o conceito de solo livre prometendo aos recémchegados não apenas a liberdade da escravidão mas também a cidadania Ele simultaneamente ampliou o alcance da liberdade conquistada na Revolução Haitiana e reafirmada em todas as constituições haitianas tornandoa disponível para estranhos para pessoas que não estavam presentes no momento da redação da constituição O artigo 44 tornou assim a liberdade e a cidadania mais amplamente alcançáveis e deu à promessa do antiescravismo radical do Haiti uma vida mais robusta e uma projeção internacional em uma época e lugar onde os estados vizinhos permaneciam muito envolvidos no regime de escravidão FERRER 2012 p 50 Por meio do solo livre o constitucionalismo haitiano realizava uma potente dialética entre direitos humanos e a lei nacional essa última deveria respeitar os direitos humanos e garantir o direito ao devido processo nas cortes locais e por outro lado havia uma haitianização dos direitos universais na medida em que se os direitos humanos eram negados em todo lugar para as pessoas negras no sentido abrangente dado pelas constituições do país no território haitiano eles seriam respeitados Isso era evidenciado por exemplo no direito ao asilo expresso no artigo 3º da Constituição de 1816 No Haiti 2793 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 esse direito era incorporado constitucionalmente como sagrado e inviolável Além disso estava vinculado diretamente à escravidão e não somente a perseguições oriundas opinião política Combinado à cidadania diaspórica à rejeição de propriedade sobre o corpo de alguém à ilegalidade da escravidão essa proteção aos estrangeiros possuía um rol de direitos que ia para além de qualquer constituição da sua época e da nossa Com isso a combinação dos elementos e princípios do constitucionalismo haitiano permitem uma significação diversa tanto do conteúdo dos direitos como das noções de soberania povo e território Primeiro o abstrato direito de liberdade foi transformado em um princípio concreto de proibição da escravidão excluindo qualquer débito relativo ao contrato sobre corpos humanos Segundo o direito de propriedade era explicitamente contrário à posse sobre outrem Terceiro a soberania nacional imaginada como um espaço no qual os direitos são acordados e proclamados é redimensionada em um espaço de direitos eminentemente transnacional pois por meio da cidadania diaspórica transcendente as limitações das fronteiras nacionais FERRER 2012 Portanto o constitucionalismo haitiano funde duas noções aparentemente separadas uma da outra território e diáspora Isso ocorre porque sua política de direitos não está vinculada às fronteiras territoriais da soberania nacional mas sim a uma noção transnacional de territórios de liberdade atreladas ao corpo negro o corpo de todos os condenados da terra Onde houver uma pessoa que foi capturada pela lógica despótica do colonialismo o território haitiano potencialmente exercerá sua potência garantidora de direitos por meio do princípio do solo livre6 Dessa forma tratase de um rearranjo dos direitos de liberdade igualdade cidadania e nacionalidade diante de uma concepção de território muito parecida com aquela dada por Édouard Glissant a partir da noção de errância 2010 Segundo Glissant a nação foi uma das formas pelas quais o Ocidente impôs fronteiras e o distanciamento entre pessoas por meio de intransigências linguísticas e territoriais O exilado nas suas diferentes formas como o refugiado o asilado o traficado o forçadamente deslocado 6 A partir da perspectiva do colonizado a poética fanoniana permite pensar como o colonizado estabelece vínculos entre território e moral entre o materialconcreto e os valores do bem comum entre o princípio fundamental do direito a habitar à terra e a liberdade e igualdades coletivas Para o povo colonizado o valor mais essencial porque mais concreto é primeiro a terra a terra que deve garantir o pão e é claro a dignidade Mas essa dignidade não tem nada a ver com a dignidade da pessoa humana Dessa pessoa humana ideal ele nunca ouviu falar O que o colonizado viu no seu solo é que se podia impunemente prendê lo espancalo esfomeálo e nunca nenhum professor de moral nunca nenhum padre veio receber as pancadas em seu lugar nem dividir seu pão com ele Para o colonizado ser moralista é muito concretamente calar a arrogância do colono quebrar a sua violência ostensiva em uma palavra expulsálo simplesmente da paisagem FANON 2005 p 61 2794 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 está constantemente em situação de precariedade e irregularidade pois deve lidar com as fronteiras e distâncias criadas pelas nações e ao mesmo tempo estabelecer relações com o diverso Ele assim faz um movimento de errância atuando nas frestas e contra fixações do seu eu Cria identidade não num fundamento essencial cristalizado mas na relação Na acepção de Mbembe formula uma ética própria oriunda da passagem consciente da extrema fragilidade de todos e de tudo num tempoespaço de vulnerabilidade total O errante tem em conta o acidente que representa nosso lugar no mundo atravessado pelo peso do arbitrário e do constrangimento E com isso sabe do injusto que é formular qualquer tipo de política de direito baseada nessas arbitrariedades como aquelas baseadas estritamente no sangue ou lugar de nascimento MBEMBE 2017 Não se trata do elogio ao exílio ao refúgio ou ao movimento incessante Muito menos a celebração da fuga do nomadismo e de um mundo boêmio ou sem raízes O que se evoca é a figura de um sujeito de direitos que se esforçou para fazer um caminho íngreme adverso e que lhe foi de início rejeitado Tornarse humano no mundo independentemente da origem e do sangue Neste trajeto de circulação e transfiguração abraçou a fragmentariedade da sua própria história numa cartografia dolorida instável e fluída Fez vida diante do desastre que nos assoma Portanto o lugar o território é experiência do encontro e da relação que dão substrato à autoconsciência e à autodeterminação baseadas num senso de habitação solidário e desprendido MBEMBE 2017 O que Mbembe chama de relação global e ética da partilha do mundo parece o que os haitianos quiseram fazer com suas concepções de solo livre e cidadania diaspórica ao fundirem juridicamente território e movimento nação e diáspora raiz e errância cidadania e descolonização Uma política de direitos que rejeita a herança da colônia a qual fez do acaso por trás da cor da pele ou do lugar em que se nasce uma estrutura planetária de dominação e desumanização Ao fazer de todos os condenados da terra pessoas negras haitianas e consequentemente cidadãs construiu noções dos direitos humanos verdadeiramente baseadas naquilo que nos é comum Assim a poética haitiana valeuse do discurso constitucional para imaginar um território de direitos destinado aqueles e aquelas que encararam o abismo que viveram a experiência de confrontar sem preparação o desconhecido que tiveram dúvidas petrificantes diante da desintegração de tudo aquilo que lhes era mais íntimo GLISSANT 2010 Uma poética constitucional no qual o sujeito de direitos estava na travessia na passagem na encruzilhada 2795 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 3 A Constituição e a Nação Quilombo Este quadro permite pensar como o constitucionalismo haitiano informa aquilo que poderíamos chamar de nação quilombo O conceito parte de uma imaginação política que aproxima a teoria constitucional dos sentidos da diáspora africana nas Américas A experiência histórica e plural das comunidades quilombolas no Brasil serviu de inspiração para uma multifacetada tradição do pensamento social a qual faz do quilombo um princípio de reflexão crítica e intervenção política Isto é o quilombo opera tanto como elemento descritivo fornecendo leituras alternativas do imaginário nacional e do processo de formação social como normativo articulando proposições éticas que semantizam a liberdade e a igualdade de acordo com a experiência da diáspora africana nas Américas Assim em um país permeado pelo imaginário da democracia racial da mestiçagem e do apagamento da autodeterminação da população nãobranca o quilombo é ponto de inflexão histórica e política Mecanismo de introdução do ponto de vista negro a respeito da cultura jurídica e da identidade nacional GOMES 2022 PIRES 2021 PEREIRA 2020 Ademais ao estarem em consonância com outros processos sociais a exemplo dos palenques maroons e cimarrones denotam o caráter transnacional das diásporas internas e das territorializações da população negra na América e no Caribe No sentido de amefricanidade dado por Lélia Gonzalez o quilombo como princípio relê a experiência continental borrando as fronteiras linguagens e histórias hegemônicas por trás de cada comunidade imaginada nacional GONZALEZ 1988 e 2020 Neste sentido três acepções do quilombo formuladas por intelectuais brasileiros permitem interpretar o constitucionalismo haitiano do início do século XIX O quilombo como práxis insurgente de Clóvis Moura O quilombo como território de liberdade de Beatriz Nascimento E o quilombo como invenção institucional de Abdias Nascimento Tais concepções dialogam com as formulações do pensamento afrocolombiano para qual os territórios negros são produzidos poeticamente e espaços geográficos articuladores de uma contraesfera pública que age em diálogo ocultamento tensão e luta perante a arena política dominante da modernidade Na tradição do pensamento social brasileiro Clóvis Moura representa uma ruptura na interpretação da história da escravidão no país Na primeira metade do século XX predominavam interpretações da sociedade escravista em que o negro só aparecia 2796 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 como agente humano do ponto de vista cultural ou econômico força de trabalho e propriedade Para não falar daquelas em que ele era elemento completamente ausente Com a publicação do seu primeiro livro Rebeliões da Senzala em 1959 Clóvis constrói uma análise do apogeu e da queda do escravismo brasileiro na qual o negro é eminentemente um sujeito político Na sua visão processual e dinâmica da sociedade o teórico diz que a escravidão é constituída por uma dicotomia básica senhor e escravo Para afirmarse em toda a sua amplitude e generalidade o escravismo tinha que ter como fundamento a sujeição absoluta do negro Assim a partir do momento em que ele se rebela tornase força dinâmica e sujeito ativo do processo histórico Tornase a negação básica e universal da ordem social estabelecida desgastandoa e abrindo possibilidade para a transformação políticas e econômicas Assim a luta negra por liberdade era o principal fator de dinamização da estrutura social e tinha como grande expressão o quilombo O dinamismo da sociedade brasileira visto do ângulo de devir teve a grande contribuição do quilombola dos escravos que se marginalizavam do processo produtivo e se incorporavam às forças negativas do sistema Desta forma o escravo fugido ou ativamente rebelde desempenhava um papel que lhe escapava completamente mas que funcionava como fator de dinamização da sociedade As formas extralegais ou patológicas de comportamento do escravo segundo a sociologia acadêmica serviram para impulsionar a sociedade brasileira em direção a um estágio superior de organização do trabalho O quilombola era o elemento que como sujeito do próprio regime escravocrata negavao material e socialmente solapando o tipo de trabalho que existia e dinamizava a estratificação social existente Ao fazer isto sem conscientização embora criava as premissas para a projeção de um regime novo no qual o trabalho seria exercido pelo homem livre e que não era mais simples mercadoria mas vendedor de uma sua força de trabalho MOURA 1988 p 269 Portanto o antagonismo político não está nas altas esferas sociais internas os efeitos desembaraçadores do liberalismo das elites ou externas a pressão internacional dos ingleses mas sim na base da sociedade o escravizado negro É a sua luta por liberdade que encarna a contradição fundamental e que cria as premissas para a degeneração do sistema escravocrata A interpretação desse desgaste em Clóvis é multifacetada Para ele as rebeliões negras desajustaram a ordem social em diferentes níveis a primeiramente elas ampliavam as fissuras de resistência servindo como correia de transmissão para mais atos de rebeldia e para a criação de um horizonte de liberdade fora da escravidão b ao afrontar o estabelecido geravam sérios temores sobre os senhores que adotavam medidas de repressão e assim escancaravam as assimetrias e 2797 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 impossibilidades sociais acirrando o antagonismo c por fim os atos de rebeldia oneravam os senhores diminuindo as suas margens de lucro eles eram obrigados a pagar capitães do mato criar instituições de combate aos quilombolas mobilizar recursos para perseguir fugitivos e a própria fuga do cativo significava perda do seu capital MOURA 1988 Assim para Clóvis os atos rebelião negra e a luta por liberdade devem ser entendidos dentro do sentido global de transição da sociedade escravocrata para o trabalho livre Eles pressionam historicamente nesta direção Fazem a história acelerar numa direção mais democrática Na estrutura do argumento o grande catalizador desse fenômeno é o quilombo que portava e intuía o devir social e histórico da liberdade a passagem do escravo para o sujeito livre Essa interdependência dialética só poderá ser compreendida insistimos se tomarmos o quilombola não como termo morto ou negativo mas como termo ativo e dinâmico A posição crítica embora inconsciente fazemos questão de insistir do quilombola por seu turno ao onerar o trabalho escravo no seu conjunto e ao desinstitucionalizálo mostrava de um lado as falhas intrínsecas do escravismo e ao mesmo tempo mostrava aos outros escravos a possibilidade de um tipo de organização na qual tal forma de trabalho não existia MOURA 1988 p 270 Assim da mesma forma que Clóvis traz a rebelião negra para o centro da sua concepção da escravidão é ela um dos elementos que dinamiza o processo de abolição e abre as portas para a emergência da ordem do trabalho livre As revoltas dos escravos como apresentamos neste livro formaram um dos termos de antinomia dessa sociedade Mas não formaram apenas um dos termos dessa antinomia foram um dos seus elementos dinâmicos porque contribuíram para solapar as bases econômicas desse tipo de sociedade Criaram as premissas para que no seu lugar surgisse outro Em termos diferentes as lutas dos escravos ao invés de consolidar enfraqueceram aquele regime de trabalho fato que aliado a outros fatores levou o mesmo a ser substituído pelo trabalho livre MOURA 1988 p 269 Assim é neste sentido de quilombo como práxis da liberdade criadora das premissas de um novo tempo histórico que se pode interpretar a intervenção política proposta pelo constitucionalismo haitiano no início do século XIX Ao ter a abolição como princípio programático e uma série de cláusulas que visavam incidir ainda que de maneira indireta na geopolítica internacional da época forjavase um aparato jurídico a orientar a prática do Estado e dos seus agentes na direção do fim da escravidão tanto no plano interno como diplomático Um constitucionalismo quilombola pois operava nas frestas entre a ambiguidade e a opacidade no desgaste astuto e sagaz do sistema 2798 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 escravista Ademais por meio da cidadania diaspórica instrumentalizava concretamente aquilo que circulava no imaginário de pessoas negras mundo afora há um lugar deste lado do Atlântico onde não há servidão e o negro é livre A escravidão não é inquebrantável e o chamado do art 44 da Constituição de 1816 positivava isso Neste sentido que o constitucionalismo haitiano dialoga com a concepção de quilombo desenvolvida por Beatriz Nascimento Como argumenta Alex Ratts entre 1970 e 1980 o quilombo emerge como uma questão para as ciências humanas Rompendo com o pacto do silêncio ou a perspectiva que estudava a questão racial a partir da questão negraproblema negro intelectuais negros começam a utilizar e difundir uma noção de quilombo em relação com os seus projetos políticos e acadêmicos bem como com as dimensões pessoais e coletivas do ser negro no Brasil Beatriz é a maior representante desse giro abrindo um novo paradigma de pesquisa informado pelas premissas da generalidade da experiência quilombola no território brasileiro e da continuidade física e espacial dessas comunidades Ademais baseada nas experiências de territorialização quilombola includente de negros e outros setores subalternos o quilombo é uma terra mãe imaginada isto é um território de liberdade não apenas referente a uma fuga mas uma busca de um tempoespaço de paz Este território é habitado por um corpo negro plural que constrói e qualifica outros espaços negros de várias durações e extensões nos quais seus integrantes se reconhecem RATTS 2007 p 59 Assim o quilombo faz parte dos sistemas alternativos organizados pela população negra como escolas de samba favelas terreiros grupos de estudos barracões e etc Neste sentido Beatriz pensa a historicidade do seu significado Primeiro uma instituição africana de origem angola Posteriormente território político em contraponto à sociedade escravista na Colônia e no Império formando brechas de liberdade Mais recentemente a partir do século XX o quilombo dentro de uma ética nacional corretiva da comunidade imaginada perpassada por uma utopia de Brasil mais justo Assim a partir da década de 1970 os movimentos negros valeramse da retórica do quilombo para afirmar outros valores e possibilitar uma outra narrativa sobre o passado em reação contra o colonialismo cultural RATTS 2007 GOMES 2011 O quilombo como expansão do imaginário sobre as noções de povo resistência território e liberdade Assim a variedade da ideia de quilombo ao longo do tempo expressa uma poética territorial baseada na redefinição da liberdade e da igualdade pela experiência da diáspora africana nas Américas 2799 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 Neste sentido fala Beatriz Nascimento Quilombo passou a ser sinônimo de povo negro sinônimo de comportamento do negro e esperança para uma melhor sociedade Passou a ser sede interior e exterior de todas as formas de resistência cultural Tudo de atitude à associação seria quilombo desde que buscasse maior valorização da herança negra Durante sua trajetória o quilombo serve de símbolo que abrange conotações de resistência étnica e política Como instituição guarda características singulares do seu modelo africano Como prática política apregoa ideais de emancipação e cunho liberal que a qualquer momento de crise da nacionalidade brasileira corrige distorções impostas pelos poderes dominantes O fascínio de heroicidade de um povo regularmente apresentado como dócil e subserviente reforça o caráter hodierno da comunidade negra que se volta para atitude crítica frente às desigualdades sociais a que está submetida NASCIMENTO 2007 p 124125 Neste sentido o quilombo é uma história de reivindicação do ser no espaço e no tempo expressão daquilo que se exige como de direito Quilombo é uma história Essa palavra tem uma história Também tem uma tipologia de acordo com a região e de acordo com a época o tempo Sua relação com seu território É importante ver que hoje o quilombo traz pra gente não mais o território geográfico mas o território a nível duma simbologia Nós somos homens Nós temos direito ao território à terra Várias e várias e várias partes da minha história contam que eu tenho o direito ao espaço que ocupo na nação E é isso que Palmares vem revelando nesse momento Eu tenho direito ao espaço que ocupo dentro desse sistema dentro dessa nação dentro desse nicho geográfico dessa serra de Pernambuco A terra é o meu quilombo Meu espaço é meu quilombo Onde eu estou eu estou Quando eu estou eu sou NASCIMENTO 1989 Assim quando o constitucionalismo haitiano faz do princípio do solo livre esse direito de habitar e ser cidadão de um território para todas as potenciais vítimas do empreendimento colonial ele transforma o princípio do quilombo o direito ao espaço que ocupo na nação em programa de Estado E não é um mero direito abstrato a um lugar no planeta mas um direito que nasce da negação da repartição territorial legada pela modernidade europeia ao afirmar uma outra partilha da terra e do possível Por meio do vínculo entre solo diáspora e cidadania conjuga o ser com as noções ambivalentes e interdependentes do onde estou e quando estou fundindo por meio do direito aquilo que o colonialismo e o racismo fraturaram O solo não só como sentido de espaço mas de tempo e consequentemente de movimento Da mesma forma que no sentido quilombola apontado por Beatriz o projeto constitucional haitiano corrige o relato histórico do constitucionalismo moderno Primeiro ao desvelar uma práxis constitucional silenciada a qual procurou enfrentar e atacar justamente os vínculos entre constituição 2800 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 e escravidão na aurora da cultura jurídica moderna Segundo ao inserir decididamente pessoas negras na história da identidade constitucional expande nossa imaginação ética formulando outros valores soluções e práticas para os problemas da liberdade e igualdade A utopia e o devir haitiano com suas criativas soluções constitucionais legam resoluções e lições importantíssimas para a contemporaneidade em que o globo é ameaçado pelos efeitos planetários e devastadores da plantation pela universalização da concepção senhorial de propriedade absoluta pela deslocamento forçado de milhões de pessoas na condição de refugiados e pela sonegação do futuro nas mais diversas formas seja pelos arautos do fim da história seja pela imposição do pensamento único do capital seja pelo fatalismo moral que nos acomete quando vivemos numa realidade em que as desgraças ocorrem de minuto em minuto Os inspirados inovadores e disruptivos arranjos constitucionais haitianos nos levam à formulação do quilombo elaborada por Abdias Nascimento No livro O quilombismo 2019 Abdias dialoga com a experiência e a tradição de pensamento dos quilombos no Brasil para delas extrair e afirmar uma agenda política e institucional propositiva de reorganização do estado e da sociedade Na sua acepção os quilombos foram e são uma resistência sistemática física e cultural que integram a prática da liberdade e o controle da própria história A autodeterminação nos seus âmbitos materiais e simbólicos Tratase de uma práxis afrobrasileira e afroamericana de afirmação humana de larga amplitude Ao longo da experiência negra no Brasil foi fator de mobilização disciplina e modelo de organização dinâmica território de afirmação da consciência e da liberdade segundo elementos afrodiaspóricos no sentido dado por Beatriz Nascimento Em uma difusão consistente da resistência o quilombo representa também a torsão imposta pelo negro isto é a apropriação dos mecanismos que a sociedade dominante concedeu ao seu protagonismo com a maliciosa intenção de controlálo Assim nessa reversão do alvo o negro se utiliza dos propósitos não confessados de domesticação qual bumerangue ofensivo NASCIMENTO 2019 p 283 Esse bumerangue ofensivo pode estar nas táticas de esconderijo e opacidade da luta na sociedade de plantation como argumenta Nohora Arrieta Fernández 2021 Que se reflete e está na dobra de elementos da cultura hegemônica a seu favor nos usos da linguagem por meio de um palavreado recheado de ironias tirações ambiguidades e ziguezagues um estilo discursivo quilombola 2801 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 Esse estilo pode ser rastreado na própria tradição revolucionária haitiana Com a sua ascensão à principal liderança da insurgência em São Domingos Toussaint logo ganhou a alcunha de Louverture isto é a abertura aquele que abre caminhos O epiteto pode ter sido dado pelos oficiais franceses para descrever sua capacidade de se apropriar de posições inimigas além de apontar o seu talento diplomático e conciliatório Louverture expressava a capacidade de construir vias desbravar veredas e abrir caminhos em direção à conquista dos seus objetivos Por outro lado Louverture significava a aspiração de outro futuro A abertura como porta de entrada para o amanhã como ponto de partida Neste sentido Louverture estaria associada a Papa Legba loá do vodu haitiano que ocupa o mesmo lugar de Exu nas religiões de matriz africana no Brasil Legba é o agente da comunicação portador da palavra intermediário entre os planos espiritual e material É também o senhor das encruzilhadas capaz de abrir os portões do destino HAZAREESINGH 2020 A estratégia de Toussaint seria uma estratégia exuniana tática de linguagem política pautada pela ambiguidade e troça de jogar com as convicções dos seus oponentes para ludibriálos A tiração de onda guerreira Aparentava ser o que não era caminhando e conectando diferentes mundos africano antilhano e europeu o dos escravizados e dos livres Louverture conseguia criar trazer e circular mensagens fazendo da palavra mecanismo de mobilização ação existência e resistência costura das possibilidades de destruição do colonialismo Toussaint seria o mestre de cerimônias do rito revolucionário assim como Legba era do vodu quando sua figura era evocada com o seguinte canto no início dos rituais da religião Papa Legba ouvri barriè pour moins Papa Legba abra o portão para mim HAZAREESINGH 2020 p 43 Voltando a Abdias ele argumenta que perante um estado antinegro existente desde a colônia o quilombismo surge como um conceito científico históricosocial que critica e rejeita o universalismo cínico proposto pelo eurocentrismo É um instrumento conceitual descritivo e operativo isto é tratase de um modelo de análise dos fenômenos sociais ao mesmo tempo em que propõe princípios políticos Sua episteme originase do ser um humano como sujeito e objeto científico revertendo a razão moderna que teve o branco como sujeito e o negro o seu objeto Segundo Abdias a ética quilombista está nucleada num anticapitalismo que se reinventa na direção para o futuro Tem como base o comunitarismo o igualitarismo econômico a solidariedade a convivência e a comunhão existencial originadas da propriedade coletiva da terra NASCIMENTO 2019 2802 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 Dessas formulações Abdias articula uma agenda institucional e normativa concreta a qual ele divide em Propostas de Ação para o Governo Brasileiro e Alguns Princípios e Propósitos do Quilombismo A primeira apresentada em 1977 no Colóquio do Segundo Festival Mundial de Artes e Culturas Negras e Africanas Festac realizado em Lagos Nigéria em 1977 expõe e organiza uma série de medidas que representam o acúmulo do movimento negro até aquele momento A articulação de Abdias é fundamental tendo em vista que boa parte das proposições ali elencadas conformaram a agenda do movimento negro pósredemocratização nas últimas décadas Nas propostas podemos ver a necessidade de realização de pesquisas e debate público sobre racismo no Brasil com a inclusão da raça nos censos o ensino de história da África e da diáspora a adoção de medidas compensatórias e afirmativas bem como reparatórias fundamentalmente vinculadas à propriedade e ao território como distribuição de terras e reforma agrária a construção de museus e realização de exposições sobre arte afro brasileira a criminalização do racismo a garantia de igualdade de oportunidades e salários para negros e brancos no mercado de trabalho redistribuição de renda ações afirmativas para o Instituto Rio Branco para oficiais superiores nas Forças Armadas e para os altos escalões do Governo Federal medidas de inclusão nos órgãos representativos Senado Câmara e assembleias estaduais e municipais e no poder judiciário e desenvolvimento de uma política diplomática SulSul especialmente com a África NASCIMENTO 2019 Entre erros acertos utopias e desenganos aí estão as bases institucionais e as orientações normativas sobre as quais a população negra pressionou e construiu o estado brasileiro pósConstituição de 1988 representando um dos maiores esforços civilizatórios e democratizantes da história do país DUARTE e QUEIROZ 2019 p 187188 Já em Alguns Princípios e Propósitos do Quilombismo Abdias formula objetivos de reorganização do estadonação inspirado na República de Palmares O ponto de partida é o igualitarismo democrático fundado numa economia comunitária e cooperativa A terra é propriedade nacional de uso coletivo e o trabalho é um direito mas também uma obrigação social Os trabalhadores que criam a riqueza agrícola e industrial da sociedade quilombista são os únicos donos do produto do seu trabalho Entre os seus princípios estão os direitos da criança e do adolescente como possibilidade do amanhã o incentivo institucional à criatividade e às realizações dos povos avassalados pelo colonialismo a realização de políticas democráticas de gênero a centralidade da questão 2803 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 ambiental e a crença na possibilidade de transformação das relações de produção e da sociedade de modo geral por meios não violentos e democráticos NASCIMENTO 2019 p 305 Portanto o quilombo de Abdias Nascimento revela também uma preocupação basilar sobre o que fazer e o como fazer O quilombo é a organização concreta expressa direta e objetiva de uma nova normatividade e institucionalidade A ausência do medo de operar o arsenal jurídico para criar condições e oportunidades alternativas de organização da vida individual e coletiva Transformar utopias em práxis resolutiva A pragmática do sonho revolucionário Pois é neste sentido que os haitianos se valeram do léxico e do arcabouço constitucional para construir sua organização política soberana depois da mais universal das revoluções NESBITT 2008 QUEIROZ 2020 As perguntas eram infinitas e muitas vezes insondáveis como construir uma nação depois de uma terrível guerra e diante de um território fraturado socialmente Como viabilizar os princípios de igualdade racial e abolicionismo transnacional quando o mundo inteiro ainda é ferrenhamente escravista Como produzir e trazer bem comum numa geopolítica do capital que reserva às Antilhas o lugar por excelência da sociedade de plantation Como conjugar o princípio da liberdade em uma sociedade que vive permanentemente sob a ameaça de invasão estrangeira e recolonização as quais podem ser feitas por meio de tratados de reconhecimento diplomático ou pela pura e simples ocupação Também com erros e acertos avanços e contradições o constitucionalismo haitiano tentou responder a essas questões especialmente diante da situação de crise estrutural e constante sob a qual vive o negro no planeta Esta crise que no limite é a própria negação ôntica do negro como sujeito de direitos é o que paira por trás da poética constitucional haitiana Neste sentido o arranjo normativo se aproxima do quilombo de Abdias em diferentes níveis seja em se valer do negro como significante universal de onde se constrói o sentido de humano de cidadão e da lógica política seja também nas preocupações e extremas contradições sobre o lugar do trabalho Tanto para Abdias como para os constitucionalistas haitianos o trabalho é um direito universal mas com um extremo senso de responsabilidade estrutural No caso específico do estado do Haiti ele chegará formalmente a ser compulsório diante da dívida imposta pela França em 1825 O modelo de trabalho do Código Rural era o lado oculto da diplomacia imperialista PEREIRA 2020 Por outro lado o trabalho coletivo e responsável organizado em torno do lakou da herança da maronage e das reinvenções práticas da África no Caribe será a 2804 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 base da vibrante e massiva sociedade rural haitiana aquilo que Jean Casimir chamou de povo soberano que foi capaz de restaurar o território devastado pela plantation e pela guerra e garantir a soberania alimentar no pósrevolução CASIMIR 2020 SHELLER 2006 GONZALEZ 2019 Portanto os sentidos de práxis rebelde território de liberdade e institucionalidade afrodiaspórica permitem aproximar e reler a experiência constitucional haitiana por meio das lentes do quilombo Quilombo que se aproxima dos palenques territórios de liberdade construídos por negros na Colômbia Como argumenta Carlos Valderrama Rentería há uma longa tradição do pensamento afrocolombiano que enfatiza a construção do território na sua dimensão simbólica a partir da sua construção social e cultural isto é dos significados e sentidos atribuídos a ele RENTERÍA 2018 p 96 Diante de um estado que sempre excluiu negou e violentou a população negra essa construção simbólica muitas vezes se deu por meio da tradição oral repertórios orais tais como mitos lendas adivinhações contos relatos histórias e cantos cujo conteúdo conseguiu preservar características gerais e descontinuidades de uma memória histórica social e cultural de acontecimentos históricos que contribuíram aos processos de formação comunitários e identitários das comunidades negras RENTERÍA 2018 Assim o território surge como um espaço produtor de linguagem e também como experiência que é construída por meio da linguagem A partir da acepção de Rogerio Velásquez Rentería chama de palenque literário um espaço público subalterno um contrapúblico em que homens e mulheres afrocolombianos se encontram e relacionam para contar e cantar o recorrido o gozado e o sofrido ao mesmo tempo que os inventam RENTERÍA 2018 p 105106 No mesmo sentido Alfredo Vanín argumenta que após a desescravização a diáspora interna se desenvolveu seguindo rios mares e selvas os quais foram construídos e imaginados como espaços de liberdade VANÍN 2017 Tanto Vanín como Velásquez dizem que essa experiência forjou um sentido míticopoético do território fundado numa postura relacional isto é uma construção do território definido pelas interações simbólicas do físico do humano do ambiental e do espiritual RENTERÍA 2018 p 106 A terra portanto é uma comunidade de fala e de pensamento Neste sentido mergulhado na tradição do pensamento negro do Pacífico colombiano Alfredo Vanín expõe a articulação entre território linguagem e tempo 2805 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 O território míticopoético pertence ao mundo simbólico Porque não basta habitar e povoar um território há que seguir criandoo e essa é a tarefa da imaginação poética Todas as culturas têm estabelecido seus mundos hiperbóreos seus mundos encantados e sobrepostos e também os nãoplusultra Mundos onde vivem espíritos visões que são outras realidades A água é a água mas esconde segredos a selva não somente está cheia de árvores guarda mais seres do que se crê nos dizem os mitos Os territórios simbólicos engrandecem os territórios da realidade imediata os preenchem de força de identidades novas de revelações insuspeitáveis Acontecem no nãotempo mas são a sua vez alimentados pelo passado e pelo presente Um historicismo a secas semearia aos homens e às mulheres no passado um sociologismo simples no presente A imaginação poética nos transfere mais além do tempo No Pacífico se vive o eterno presente uma viagem cíclica do acontecer como as migrações por cidades e rios Narradores decimeiros versadores orais músicos de tambor e marimba e poetas e novelistas da literatura escrita têm ajudado a criar esse universo feito de muitos mundos de tempos convergentes e nos têm ensinado que a profundidade da história repousa na palavra decantada que se renova sempre VANÍN 2017 p 46 Ao refletir sobre a permanência da décima entre os povos negros do Pacífico colombiano7 Vanín argumenta que a palavra semeia o território e joga com limites geográficos próprios em contraposição ao imposto pela geografia colonial A linguagem expande o território para além da realidade cotidiana excede países e continentes faz universal o decimeiro desconhecido que talvez nunca deixou suas habitações ribeirinhas ou marítimas mas teve a capacidade de imaginar o planeta embarcado numa concha frágil de molusco8 O território poeticamente construído é memória coletiva estilo de vida e filosofia Aponta que a éticaestética da modernidade negra não é apenas um discurso alternativo naquilo que entendemos como conteúdo mas também nos modos formas e 7 Pela beleza do trecho segue por inteiro Me perguntei faz muitos anos seguindo a inquietude de alguns investigadores por que a décima glosada tão difícil permaneceu nessas terras E a resposta me chegou anos depois porque é circular como as viagens pelo mesmo rio ou de um rio a outro desde o rio nutritivo até o outro lado da cordilheira inclusive até outro país Mas viagens em busca de vida e não viagens por ociosidade a viagem por viajar como criticava o padre Bernardo Merizalde no seu famoso livro senão porque o meio natural exuberante mas ecologicamente frágil exigia migrar sempre para não retirar frutos somente de uma parte e também para estender famílias Mas sempre existia a possibilidade de retorno Ainda nas odisséias dos clandestinos de barcos mercantes dos Ulises negros que criaram a epopeia do guerreiro urbano hoje caído no esquecimento com novas expressões e modos de ocupar lugares com a chegada do narcotráfico Então entendi muito claro que entre tantas tarefas que assumiu a décima uma delas era didática outra era de semear o território na palavra e jogar com os limites geográficos próprios em contraposição aos impostos pela geografia colonial E eu soube subindo um dia ao Patía porque pude nomear alguns povos ao acordarme de um fragmento de uma décima de José Anilo Sinisterra Por Tamaje iba glosandopor Gallinazo iba seriopor Pirí argumentandoen la isla e Playael Medio VANÍN 2017 p 4647 8 A décima citada é Yo me embarqué a navegaren una concha de almejaa rodiar el mundo enteroa ver si hallaba coteja VANÍN 2017 p 47 2806 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 estilos de expressão Essa poética funde aquilo que o eurocentrismo supostamente separou cultura e política arte e justiça É essa poética que podemos encontrar na experiência constituinte e constitucional haitiana Experiência que tem como memória do ponto inaugural não a redação e assinatura de textos escritos em salões fechados mas a cerimônia vodu festiva e religiosa de Bois Caïman Liderada por sacerdote Boukman e pela mambo sacerdotista Cécile Fatiman ali se definiram as estratégias iniciais do levante de escravizados e se estabeleceu um compromisso comunitário entre vivos mortos e espíritos SHILLIAM 2017 Uma Revolução que inicia ao som de tambores e com danças espiralares na floresta onde os olhos da CasaGrande jamais chegam e as entidades se achegam num território que sobrepõe o plano carnal e o imaterial e que legou uma declaração ética transmitida oralmente para as gerações seguintes O deus que criou o sol que nos dá a luz que levanta as ondas e governa as tempestades embora escondido nas nuvens observanos Ele vê tudo que o branco vê O deus do branco o inspira ao crime mas o nosso deus nos pede para realizarmos boas obras O nosso deus que é bom para conosco ordena nos que nos vinguemos das afrontas sofridas por nós Ele dirigirá nossos braços e nos ajudará Deitai fora o símbolo do deus dos brancos que tantas vezes nos fez chorar e escutai a voz da liberdade que fala para os corações de todos nós JAMES 2007 p 93 Como argumenta Robbie Shilliam a cerimônia de Bois Caïman tensiona tropos hegemônicos na interpretação da Revolução Haitiana O eurocêntrico isto é que ela foi uma simples consequência da Revolução Francesa O crioulo que afirma que ela foi uma Revolução a partir do zero E o retido sendo um processo de retenção das culturas circuladas pelo Atlântico Por outro lado aponta que a Revolução deve ser lida diante do alto percentual de africanos que viviam em São Domingos em 1791 50 dos 50000 escravizados a maioria proveniente do Congo Essa africanidade estava não somente nas nações e maroons espalhados pelo território da colônia mas também em lideranças do processo como Toussaint e Dessalines SHILLIAM 2017 Neste sentido a cerimônia vodu que inaugura a Revolução pode ser entendida como a busca por justiça numa episteme em que o conhecimento prático e a agência política são sentidas e obtidas através dos loás DUARTE 2011 SHILLIAM 2017 O terreiro como poder constituinte em que o sujeito constitucional não é o eu da filosofia ocidental soberano e que nasce a partir de um encontro fora de si mesmo mas sim uma articulação da consciência que sugere que o eu é espiritualmente e comunalmente distribuído Consciência que se expressa por meio de um loá particular isto é o fazer a 2807 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 cabeça é um eu que se manifesta mediado por um espírito geralmente herdado familiarmente e que é fixado em algum ponto da vida adulta A possessão montagem do loá sobre o corpo como um cavaleiro monta num cavalo significa que neste momento resta apenas os aspectos físicos e objetivos do corpo enquanto a consciência do cavalo é substituída pela do loá chefe da cabeça Fora dos padrões explicativos da ciência colonial o loá opera como uma manifestação real no mundo humano canalizando forças cósmicas Assim o poder constituinte manifestado em Bois Caïman é atravessado por um conhecimento e inspiração mediados pelos loás fazendo com que as pessoas despertassem do torpor zumbificante da escravidão e se preparassem para a guerra da liberdade Portanto argumenta Shilliam no terreiro da cerimônia vodu a comunidade foi resantificada ganhando força cósmica e direção na sua busca por justiça por meio da mediação dos loás os quais canalizaram forças do mundo espiritual para ultrapassar e exceder o controle dos senhores Portanto não foram escravizados que se reuniram na floresta mas sim os chefes da rebelião e seus loás movidos pelas armas e pela luta por autodeterminação SHILLIAM 2017 Assim os tambores de Bois Caïman abrem um ponto que cria linguagem realidade por meio do batuque Este ponto visa guerrear e conquistar o sistema genocida da plantation que não era só uma realidade material mas também um mal uso da ciência espiritual pelos brancos escravocratas A justiça necessariamente deveria ser feita por meio de poderes manipulativos com o esquentamento de objetos pelo fogo e o sacrifício de um porco negro para Ezili Kawoulo a loá das sociedades secretas protetora do povo e vingadora implacável daqueles que renegam a universalidade humana Como Iansã Ezili é o espírito das tempestades raios e trovões e anuncia o julgamento dos escravocratas O ponto aberto em 1791 não teria sido fechado sendo disputado nas mais diversas etapas da construção nacional como na escolha das cores da bandeira nas versões da Declaração de Independência e nas constituições9 9 Segundo Robbie Shilliam as cores azul e vermelha para além da ideia da utilização da base da bandeira francesa são as cores da família do loá Ogum Ogum é um ferreiro e combina os elementos do frio e do calor da conciliação e da conquista Junto com o loá Ayizan loá protetor de Dessalines eles estariam associados à perseguição da justiça e eventualmente a reconciliação numa nova ordem Dessa forma o azul e vermelho representariam posições mais absenteístas e conciliatórias em torno do marco da independência como aquelas atreladas às lideranças que buscaram negociar com os franceses Já as cores negras e vermelhas posteriormente escolhidas pelo próprio Dessalines para a bandeira demarcaria o princípio índigena e negro no início do Haiti e do seu marco legalinstitucional numa rearticulação das alianças dos povos colonizados contra o colonialismo Assim a bandeira vermelha e preta estava diretamente associada às práticas de resistência anticolonial da população indígena ciampula que haviam sido incorporadas pela religião vodu e às sociedades secretas Eram cores que indicavam alguém mais conquistador do que conciliador implicando muitas vezes uma concentração de poderes É dentro desse contexto que Shilliam procura perceber a 2808 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 Portanto Bois Caïman é poder constituinte manifestado numa construção míticopoética do território Da mesma forma pode ser interpretada a Declaração de Independência com a sua oralidade o diálogo e a responsabilidade perante os mortos a manifestação feroz do ímpeto por justiça a rejeição absoluta do legado colonial em seu plano material e imaterial o estilo sensorial e perceptivo na descrição e visualização da passagem do tempo da escravidão para a liberdade e na concepção de que a nação soberana seria erguida sobre tumbas dos seus ancestrais os quais vigiariam e guiariam os rumos da autodeterminação individual e coletiva Essa construção simbólica do território também está na poética constitucional que faz do Haiti lar de todos os condenados da terra O constitucionalismo haitiano por meio da humanidade negra do solo livre e da cidadania diaspórica jogou com limites geográficos próprios e na acepção de Vanín rompeu com a cartografia colonial por trás das categorias de ius soli e ius sanguinis No mesmo sentido borrou as fronteiras imperiais estabelecidas pelo nó entre estado região e raça Solo livre e cidadania diaspórica expandiram o território haitiano fazendo dos conceitos jurídicos formas poéticas Como o decimeiro forjaram uma poesia constitucional como o canto daquele que embarca numa concha frágil e dela vê vive imagina e ama o planeta Conclusão samba e a poética constitucional haitiana Tout Moun Se Moun Pa gen Moun pase Moun10 O nosso samba pode iluminar os significados constituintes de Bois Caïman e o tanto de corpo e ritmo que faltam a todas as teorias discursivas do direito Muniz Sodré 1998 argumenta que o ritmo é a organização do tempo do som aliás uma forma temporal sintética que resulta da arte de combinar as durações o tempo capturado segundo convenções determinadas No caso da música africana e da diáspora negra o ritmo demarca um tempo homogêneo a temporalidade cósmica ou mítica que se volta Constituição de 1805 como um documento de mediação vinculação e ligação pois tenta vincular e limitar os poderes de Dessalines estabelecendo um espaço de vivência comum negro e indígena para as massas ao mesmo tempo que remove desse espaço o imperador e seus generais SHILLIAM 2017 Para mais sobre as relações entre as cores da bandeira e o vodu veja DELICES 2016 10 Do crioulo haitiano Todo mundo é humano ninguém é mais importante que o outro Princípio de Princípio de Bois Caïman CERIN 2022 2809 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 continuamente sobre si mesmo onde todo fim é o recomeço cíclico de uma situação O ritmo sincopado expressa nos toques e efeitos sobre o corpo a demarcação espiralar do tempo A repetição relacional sempre em nível diverso plural outro Neste sentido por meio da figura de Exu Sodré explicita a relação entre linguagem tempo e ritmo no samba Dentro da dimensão de sentido gerada pelo samba tradicional é imprescindível a presença física do corpo humano No sistema nagô o som equivale ao terceiro termo de um processo desencadeado sempre por pares de elementos genitores seja a mão batendo no atabaque seja o ar repercutindo nas cordas vocais E o som da voz humana a palavra explica Juana Elbein dos Santos é conduzida por Exu um princípio dinâmico do sistema nascido da interação dos genitores masculinos e femininos Por sua vez o axé que confere significação aos elementos do sistema se deixa conduzir pelas palavras e pelo som ritualizado Junto com as palavras junto com o som deve darse a presença concreta de um corpo humano capaz de falar e ouvir dar e receber num movimento sempre reversível SODRÉ 1998 p 67 Assim como no samba com suas rodas terreiros barracões e giras a cerimônia o sentido espiritualrevolucionário e o imaginário coletivo construídos em torno de Bois Caïman apontam para a fundação e construção da comunidade política por meio da música do ritmo do ressoar que sai de cada batida da mão no couro dos tambores na marcação com os pés em forma de dança e culto no baile na espiralar de corpos indo e vindo vindo e indo na linguagem sonora nos rituais de encantada e inebriante alegria em que o riso o palavreado e o cantar irrompem mesmo diante da mais adversa das circunstâncias Um poder constituinte que funda a comunidade em outro tempo em outra ética muito diferente dos pressupostos morais que embasam a acepção contratualista do constitucionalismo moderno como os delírios de autoconservação narcísica do interesse individual do cálculo econômico e no limite da necessidade pragmática de transformar seres humanos em mortosvivos11 Como visto essa éticaestética afrodiaspórica pode ser encontrada na poética constitucional haitiana Por meio da linguagem jurídica essa poética interviu na criação e nos sentidos dos direitos humanos diante de um contexto no qual a escravidão o colonialismo e o racismo eram a norma Assim o constitucionalismo haitiano não só fornece uma crítica às narrativas dominantes sobre a invenção desses direitos como aponta também para uma tradição moral silenciada e sonegada construída pela 11 Para uma crítica à ética contratualista moderna veja QUEIROZ 2022 2810 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 experiência da população negra nas Américas e no Caribe No artigo ao retomar e teorizar essa história foram desvelados outros conteúdos para os direitos de liberdade igualdade propriedade cidadania e nacionalidade os quais ressoam e apontam soluções para os dilemas e contradições do tempo presente Além disso ao fazer do signo negro símbolo concomitante dos significados de habitante cidadão e humanidade este constitucionalismo reverte o devir negro do mundo pelo devir haitiano Um devir que reformula a noção de humano estando nela tanto os sonhos de liberdade afogados em rios de sangue como o passado o presente e o futuro das lutas por autodeterminação travadas em cada canto do planeta Referências bibliográficas ANDERSON Benedict Comunidades imaginadas reflexiones sobre el origen y la difusión del nacionalismo México Fondo de Cultura Económica 2016 ARMITAGE David GAFFIELD Julia Introduction The Haitian Declaration of Independence in an Atlantic Context IN GAFFIELD Julia ed The Haitian Declaration of Independence Creation Context and Legacy Charlottesville e Londres University of Virginia Press 2016 AZEVEDO Celia Maria Marinho de Onda negra medo branco o negro no imaginário das elites século XIX São Paulo Annablume 2008 p 104 BOSI Alfredo Dialética da Colonização São Paulo Companhia das Letras 1992 BRITO Luciana da Cruz Temores da África segurança legislação e população africana na Bahia oitocentista Salvador EDUFBA 2016 BUCKMORSS Susan Hegel e Haiti Novos Estudos 90 2011 CASIMIR Jean The Haitians A Decolonial History EUA The University of North Carolina Press 2020 CERIN Melodie Do you know the 12 principles of Bwa Kayiman A conversation with Professor Pierre Michel Chery Woy Magazine setembro de 2022 Disponível em httpswoymagazinecom20220922doyouknowthe12principlesofbwa kayimanaconversationwithprofessorpierremichelchery Acesso em 28092022 CHALHOUB Sidney Medo branco de almas negras escravos libertos e republicanos na cidade do Rio Revista Brasileira de História São Paulo v8 no 16 marago 1988 DELICES Patrick Oath to Our Ancestors the flag of Haiti is Rooted in Vodou IN 2811 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 JOSEPH Celucien L e CLEOPHAT Nixon S Vodou in Haitian Memory the ideia and representation of vodou in Haitian Imagination Lanham Lexington Books 2016 p 21 32 DUARTE Evandro Piza Do medo da diferença à igualdade como liberdade as ações afirmativas para negros no ensino superior e os procedimentos de identificação de seus beneficiários Tese de Doutorado na UnB Brasília 2011 DUARTE Evandro Piza QUEIROZ Marcos A Revolução Haitiana e o Atlântico Negro o constitucionalismo em face do lado oculto da modernidade Direito Estado e Sociedade n 49 p 1042 2016 Nota do editor IN BERTÚLIO Dora Lucia de Lima Direito e Relações Raciais uma introdução crítica ao racismo Rio de Janeiro Editora Lumen Juris 2019 p 187188 DUARTE Evandro QUEIROZ Marcos RODRIGUES João Victor Nery Fiocchi Constituições Haitianas PósRevolucionárias Antirracismo e a Reformulação da Cidadania no prelo DUBOIS Laurent Avengers of the New World The Story of The Haitian Revolution USA Harvard University Press 2004 Haiti The Aftershocks of History New York Metropolitan Books 2012 FANON Frantz Os Condenados da Terra Juiz de Fora Ed UFJF 2005 FERNÁNDEZ Nohora Arrieta Poéticas Amargas Estéticas y Políticas de la Plantación de Azúcar en Brasil y el Caribe Tese de Doutorado na Georgetown University 2021 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Unidos The University of Michigan Press 2010 2812 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 GOMES Flávio dos Santos De olho em Zumbi dos Palmares histórias símbolos e memória social São Paulo Claro Enigma 2011 GOMES Rodrigo Portela Kilombo uma força constituinte Tese de Doutorado em Direito Universidade de Brasília 2022 GONZALEZ Jhonhenry Maroon Nation A History of Revolutionary Haiti EUA Yale University Press 2019 GONZALEZ Lélia A categoria políticocultural de amefricanidade Tempo Brasileiro Rio de Janeiro n 9293 1988 p 6982 Por um feminismo afrolatinoamericano ensaios intervenções e diálogos Rio de Janeiro Zahar 2020 HARRISS Joseph A How the Luisiana Purchase Changed the World Smithsonian Magazine abril 2003 Disponível em httpswwwsmithsonianmagcomhistoryhow thelouisianapurchasechangedtheworld79715124 acesso em 05082022 HAZAREESINGH Sudhir Black Spartacus The Epic Life of Toussaint Louverture Nova York Farrar 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sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento São Paulo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Instituto Kuanza 2007 p 124125 Textos e narração de Ôrí Ôrí Direção de Raquel Gerber Brasil Estelar Produções Cinematográficas e Culturais 1989 131min 2813 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 NESBITT Nick Universal Emancipation The Haitian Revolution and the Radical Enlightenment Charlottesville University of Virginia Press 2008 PARRON Tâmis A política da escravidão na era da liberdade Estados Unidos Brasil e Cuba 17871846 Tese de Doutorado em História Universidade de São Paulo 2015 Escravidão e as fundações da ordem constitucional moderna representação cidadania soberania c 1780c1830 no prelo PAST Mariana La Revolución Haitiana y El reino de este mundo repensando lo impensable Casa de las Américas eneromarzo 2004 p 87 88 PEREIRA Bethânia Santos Uma Nação em Construção trabalho livre e soberania no código rural haitiano 18261843 Dissertação de Mestrado em História na Unicamp 2020 PEREIRA Paulo Fernando Soares Os quilombos e a nação inclusão constitucional políticas públicas e antirracismo patrimonial Rio de Janeiro Lumen Juris 2020 PIRES Thula Legados de Liberdade Revista Culturas Jurídicas 0820 2021 p 291316 QUEIROZ Marcos A mais universal das Revoluções Jacobin 14082020 Disponível em httpsjacobincombr202008amaisuniversaldasrevolucoes acesso em 05082022 Caribe corazón de la modernidad Cultura Latinoamericana 282 234250 2018 Constitucionalismo Brasileiro e o Atlântico Negro a experiência constituinte de 1823 diante da Revolução Haitiana Rio de Janeiro Lumen Juris 2017 O Haiti é Aqui ensaio sobre formação social e cultura jurídica latinoamericana Brasil Colômbia e Haiti século XIX Tese de Doutorado em Direito na Universidade de Brasília 2022 RATTS Alex Eu sou atlântica sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento São Paulo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Instituto Kuanza 2007 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Mauad 1998 TROUILLOT MichelRolph Haiti State Against Nation The Origins and Legacy of Duvalierism Nova York Monthly Review Press 1990 VANÍN Alfredo Las culturas fluviales del encantamiento Memórias y presencias del Pacífico colombiano Colômbia Universidad del Cauca Sello Editorial 2017 Sobre o autor Marcos Queiroz Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa e Universidade de Brasília ORCID httporcidorg0000000336447595 Email marcosvlqgmailcom O autor é o único responsável pela redação do artigo 31 ATIVIDADE 1 I CONCEITO E FORMAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS a Contextualização da Obra O artigo Constitucionalismo Haitiano e a Invenção dos Direitos Humanos de Marcos Queiroz publicado na Revista Direito e Práxis v 13 n 04 2022 propõe uma leitura descolonial da história dos direitos humanos tomando como eixo fundante a experiência políticoconstitucional do Haiti entre os anos de 1801 e 1816 A partir de uma crítica epistemológica ao eurocentrismo jurídico Queiroz reivindica o protagonismo negro na constituição de um novo paradigma de humanidade e universalidade ancorado na experiência de resistência e reconstrução do povo haitiano após a Revolução b Estrutura e Fundamentação O artigo está organizado a partir de uma profunda articulação entre análise histórica textual e filosófica A Revolução Haitiana é posicionada como um marco inaugural e estrutural para a compreensão de uma outra matriz dos direitos humanos não como abstração liberal mas como criação insurgente enraizada no trauma colonial da escravidão e na experiência de luta pela liberdade Queiroz fundamenta seu argumento com base em autores como Achille Mbembe Frantz Fanon Sibylle Fischer Ada Ferrer e Édouard Glissant além de análises dos próprios textos constitucionais haitianos c Análise Temática Tema central A formação histórica e filosófica dos direitos humanos à luz do constitucionalismo haitiano em contraposição ao modelo eurocentrado dominante Problematização Por que a historiografia tradicional silencia sobre o papel da Revolução Haitiana na gênese dos direitos humanos e insiste em invisibilizar o constitucionalismo negro e antiescravista Tese Queiroz defende que os direitos humanos enquanto projeto de mundo não nasceram exclusivamente no Ocidente mas encontraram no Haiti uma de suas expressões mais radicais e autênticas Para ele a poética constitucional haitiana opera uma crítica às narrativas hegemônicas sobre a invenção dos direitos humanos e ao mesmo tempo fornece um imaginário moral mais amplo e plural do constitucionalismo QUEIROZ 2022 p 2775 Conceitos estruturantes O autor apresenta seis categorias centrais para compreender essa outra concepção de direitos humanos Direitos universais do negro Materialidade da escravidão Cidadania diaspórica Propriedade abolicionista Princípio do solo livre Nação quilombo d Análise Crítica e Interpretativa A proposta de Queiroz rompe com a narrativa liberal ocidental que associa a emergência dos direitos humanos à racionalidade iluminista destacando que tal narrativa oculta sistematicamente o racismo estrutural e o colonialismo como fundações da modernidade A experiência haitiana é apresentada como um verdadeiro divisor de águas na história da humanidade Nas palavras do autor A história da modernidade pode ser dividida em antes e depois de 1804 QUEIROZ 2022 p 2776 Para Queiroz o Haiti representou uma virada radical um Estado fundado por ex escravizados que não apenas aboliu a escravidão mas inscreveu na sua constituição o enfrentamento explícito ao colonialismo e à desigualdade racial Ao contrário do universalismo abstrato europeu o Haiti forjou uma universalidade concreta nascida do chão da opressão Rejeitando abstrações que se colocam fora do tempo afirma que os princípios jurídicos devem emergir da experiência materialmente vivida p 2784 O texto aponta ainda que o constitucionalismo haitiano formula uma ética política da encruzilhada uma concepção de direitos humanos fundada na dor na memória na luta e na coletividade Nesse sentido Queiroz afirma que o devir haitiano aponta uma construção da universalidade humana que carrega a memória de todos aqueles que foram são e possivelmente serão deixados de fora daquilo que se entende como humanidade p 2784 II AS DIMENSÕES DOS DIREITOS HUMANOS NO CONSTITUCIONALISMO HAITIANO As primeiras constituições haitianas do século XIX em especial aquelas promulgadas entre 1801 e 1843 propõem uma ruptura paradigmática com o modelo liberal europeu ao reconfigurar em termos jurídicos e simbólicos as próprias bases sobre as quais se fundam os direitos humanos Como analisa Queiroz essas cartas constitucionais não apenas imaginam uma nova comunidade política nacional mas reinventam radicalmente os contornos da humanidade a partir da experiência histórica da escravidão e da revolução Seis categorias centrais emergem desse processo a Universalismo Negro A Constituição de 1805 realiza um gesto semântico de enorme potência ao designar todos os haitianos independentemente de tonalidade ou origem como negros Tratase de uma manobra simbólica e jurídica que inverte o signo da dominação colonial e transforma o termo historicamente subordinado em categoria universal e emancipadora Nesse movimento a negritude deixa de ser uma marca biológica ou racial para se tornar um posicionamento político e ontológico fundado na experiência da opressão e na afirmação da liberdade b Escravidão como Fundamento do Constitucionalismo Diferentemente das constituições liberais europeias que operavam sob o silêncio cúmplice quanto à escravidão o Haiti inscreve em seus textos fundacionais a abolição da servidão como cláusula inaugural da nova ordem política A Constituição de 1801 declara expressamente que todos os homens nascem livres e iguais e que não haverá escravos no território haitiano transmutando a abolição de um imperativo ético abstrato em norma constitucional estruturante da organização do Estado A escravidão assim é tratada não como exceção histórica mas como questão de jurisdição e soberania c Cidadania Diaspórica A partir de 1816 o Haiti inaugura uma concepção revolucionária de cidadania todos os africanos indígenas e seus descendentes que pisassem em território haitiano podiam ser reconhecidos como haitianos e após um ano de residência adquirir os plenos direitos de cidadania Tal política que excede os modelos clássicos de jus soli e jus sanguinis institui o que Queiroz denomina de cidadania diaspórica um dispositivo jurídico de acolhimento radical a todos os corpos historicamente marcados pelo colonialismo O Haiti se converte assim em pátria da diáspora negra em território de refazimento ontológico para os condenados da terra d Propriedade Abolicionista Na contramão do constitucionalismo liberal europeu que naturalizava a propriedade sobre corpos o Haiti redefine o conceito de propriedade como o direito ao fruto do próprio trabalho Essa definição presente nas constituições de 1806 e 1816 abole juridicamente a lógica escravista e retira do horizonte político qualquer possibilidade de reificação humana A propriedade tornase um atributo da liberdade e da dignidade incompatível com a existência de qualquer forma de dominação sobre o outro e Princípio do Solo Livre Derivado de tradições jurídicas prérevolucionárias o princípio do solo livre é radicalizado no Haiti e transformado em cláusula constitucional de alcance universal Todo africano ou indígena que ingressasse no país era imediatamente liberto e em tempo oportuno reconhecido como cidadão O território haitiano assume assim a função de um espaço jurídico de proteção incondicional um solo em que a liberdade não é uma promessa mas uma realidade imanente A nação se estrutura como enclave antiescravista em meio a um Atlântico ainda colonizado f Nação Quilombo O Haiti é imaginado como uma nação quilombo um espaço de rebelião contínua refúgio político e reconstrução simbólica do mundo a partir da experiência da escravidão Como nos quilombos brasileiros a nação haitiana é territorialidade insurgente espaço de experimentação social e de reinvenção dos vínculos comunitários sob novas bases A Constituição tornase assim um instrumento de luta e sobrevivência um artefato de resistência frente às tentativas de recolonização e dominação imperialista III LINHA DO TEMPO DOS DIREITOS HUMANOS Quadro 1 Linha do Tempo ANO EVENTO OU DOCUMENTO RELEVÂNCIA 1685 Código Negro Code Noir Legislação francesa que institucionaliza a escravidão nas colônias normatizando a exploração dos africanos como propriedade 1789 Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão França Proclama a universalidade dos direitos mas silencia sobre a escravidão um universalismo contraditório e excludente 17911804 Revolução Haitiana Primeira revolução liderada por escravizados que alcança sucesso subvertendo a ordem colonial e racial imposta pela Europa 1801 Constituição de Toussaint Louverture Garante liberdade e igualdade racial no Haiti ainda como colônia francesa abolindo a escravidão 1804 Independência do Haiti Criação do primeiro Estado independente liderado por ex escravizados com um projeto político anticolonial e antirracista 1805 Constituição de Dessalines Proclama que todos os cidadãos haitianos são negros como afirmação de identidade coletiva e ruptura com o colonialismo proíbe a posse de terra por brancos 1816 Constituição da Reunificação Consolida o ideal de cidadania diaspórica e o princípio de solo livre acolhendo negros perseguidos de outras partes do mundo 1825 Imposição da dívida de independência pela França França reconhece a independência haitiana em troca de uma dívida impagável recriando a dominação sob nova forma econômica 1843 Nova Constituição Haitiana pós período petista Expansão dos direitos da cidadania para fortalecer o Estado e o vínculo com a diáspora africana Fonte Marcos Queiroz1 2022 1 Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa Distrito Federal Brasília Brasil Email marcosvlqgmailcom ORCID httporcidorg0000000336447595

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2774 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 Constitucionalismo Haitiano e a Invenção dos Direitos Humanos Haitian Constitutionalism and the Invention of Human Rights Marcos Queiroz1 1 Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa Distrito Federal Brasília Brasil Email marcosvlqgmailcom ORCID httporcidorg0000000336447595 Artigo recebido em 18102022 e aceito em 23102022 This work is licensed under a Creative Commons Attribution 40 International License 2775 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 Resumo Por meio da análise de trechos das constituições do Haiti da primeira metade do século XIX o artigo investiga as características dos direitos humanos no constitucionalismo haitiano pósrevolucionário Dessa análise um arranjo conceitual alternativo é extraído para pensar o conteúdo dos direitos fundamentais e da ordem constitucional moderna Este arranjo é expresso em cinco conceitos direitos universais do negro materialidade da escravidão cidadania diaspórica propriedade abolicionista princípio do solo livre e nação quilombo A análise é realizada em diálogo com o pensamento de intelectuais negros e negras Concluise que a poética constitucional haitiana opera uma crítica às narrativas hegemônicas sobre a invenção dos direitos humanos e ao mesmo tempo fornece um imaginário moral mais amplo e plural do constitucionalismo especialmente por lidar decididamente com o legado da escravidão do colonialismo e do racismo Palavraschave Revolução Haitiana Constitucionalismo Direitos humanos Racismo Escravidão Abstract Through the analysis of excerpts from the Haitian constitutions of the first half of the 19th century the article investigates the characteristics of human rights in postrevolutionary Haitian constitutionalism From this analysis an alternative conceptual arrangement is extracted to think about the content of fundamental rights and the modern constitutional order This conceptual arrangement is expressed in five concepts universal Black rights materiality of slavery diasporic citizenship abolitionist property free soil principle and quilombo nation The analysis is carried out in dialogue with the thought of Black intellectuals It is concluded that the Haitian constitutional poetics operates a critique of the hegemonic narratives about the invention of human rights and at the same time provides a broader and plural moral imaginary for constitutionalism especially for dealing decisively with the legacy of slavery colonialism and racism Keywords Haitian Revolution Constitutionalism Human rights Racism Slavery 2776 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 Introdução1 A história da modernidade pode ser divida em antes e depois de 1804 No dia primeiro de janeiro deste ano na cidade de Gonaïves Jean Jacques Dessalines ao lado de seus generais e perante a população local declarava a independência do Haiti Depois de treze anos de conflitos da imposição de derrotas ao imperialismo francês espanhol e inglês e do rechaço armado à tentativa de genocídio perpetrada pelas tropas de Napoleão Bonaparte os haitianos fundavam o primeiro e único estado forjado a partir de uma revolução de escravizados A Declaração de Independência proferida por Dessalines era o ato final desse processo Em uma perspectiva de longa duração travase da bifurcação de dois mundos Às vésperas da insurgência 1791 a colônia em São Domingos estava no centro da acumulação capitalista Ela era líder na produção de café metade da produção mundial e açúcar produzindo mais que Brasil Cuba e Jamaica combinados Expressava assim a geopolítica da época em que 25 milhões de franceses dependiam da economia colonial e 15 dos mil membros da Assembleia Nacional Francesa tinham propriedades nas Antilhas DUBOIS 2004 FICK 1990 JAMES 2007 Riqueza que embalava os ideais liberais proferidos pela burguesia francesa pelas cidades de Paris Bordeaux Nantes e Lyon Riqueza produzida sobre a mais pura desprezível e cruel violência em que milhões de africanos e africanas foram raptados das suas terras para trabalhar até a morte pois o tráfico negreiro era mais lucrativo do que a vida dos próprios escravizados ARMITAGE e GAFFIELD 2016 Isto é valia mais a pena raptar massivamente africanos do outro lado do Atlântico do que prover condições básicas de sobrevivência dos trabalhadores na ilha Isto fazia de São Domingos o maior porto negreiro do momento O horror que era expresso na própria demografia da colônia a cada 10 escravos negros havia 1 colono livre seja grande proprietário pequeno burguês ou da ralé branca A estratificação social era expressa na hierarquia racial brancos homens livres de cor e escravizados DUBOIS 2004 1 Este artigo é fruto das investigações de doutorado e a primeira exposição de algumas das ideias que são articuladas na minha tese QUEIROZ 2022 Agradeço à CAPES pela oportunidade de conduzir parte da pesquisa na Universidad Nacional de Colombia no ano de 2018 como doutorando sanduíche por meio do Programa Abdias Nascimento Da mesma forma agradeço à Fulbright pela bolsa de pesquisador visitante na Duke University no ano de 2021 período de investigação necessário para que este artigo ganhasse forma 2777 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 Ao menos para a grande maioria dos haitianos 1804 é o fim desse sistema Contra o assédio imperialista e as tentativas de restauração da plantation por parte das elites internas a população do país irá montar um vigoroso sistema de apropriação coletiva do território ao longo do século XIX garantindo sua soberania em um mundo no qual o colonialismo era a norma2 Porém diante da derrota na mais produtiva colônia das Américas colonialismo plantation e escravidão tiveram que se readaptar para sobreviver Na esteira da Independência estadunidense e no meio do caminho para as independências latinoamericanas a Revolução Haitiana marca uma transformação em larga na história dos impérios sendo ponto chave de emergência do segundo imperialismo aquele que encerra as possessões nas Américas e o tráfico no Atlântico e inicia a exploração territorial e populacional em larga escala na África e na Ásia A compra do largo território de Louisiana em 1803 pelos EUA é só um dos exemplos dessa mudança de estratégia da França e da Inglaterra sobre o continente americano HARRISS 2003 A plantation também deveria ser reformulada Após a Revolução Haitiana o sul dos EUA Cuba e Brasil são os seus novos laboratórios Neles ela passa por um processo de hiperespecialização adequandose às novas exigências do livre comércio capitalista bem como se adapta aos coros de liberdade que começam a fechar o cerco sobre o tráfico negreiro PARRON 2015 São os primórdios da segunda escravidão momento no qual a instituição momentaneamente contestada retomará folego nas três referidas regiões conjugando o desenvolvimento das trocas econômicas com a expansão da mão de obra escravizada Liberalismo e escravismo não eram pares antagônicos mas núcleos complementares da mesma economia política BOSI 1992 MARQUESE e SALLES 2016 Neste contexto por todo o Atlântico formulase uma arquitetura jurídica destinada a evitar a reprodução do Haiti em outros territórios As noções de soberania cidadania propriedade liberdade e igualdade serão definidas à luz dos eventos de São Domingos bem como serão recrudescidas as táticas de controle social sobre a população negra O medo da Revolução Haitiana passa a ser o negativo constitutivo da normatividade estatal ao longo do XIX DUARTE 2011 QUEIROZ 2017 criando cativeiros jurídicos para a população negra tanto na escravidão como no pósabolição AZEVEDO 2008 CHALHOUB 1988 BRITO 2016 2 Este sistema sobreviveu hegemônico no país até a ocupação dos Estados Unidos em 1915 quando o império da plantação seria restaurado CASIMIR 2020 TROUILLOT 1990 2778 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 O contraataque antirrevolucionário estava montado Por outro lado a linguagem emanada pelo Haiti enfatiza outra geografia das lutas por liberação Primeiramente a Revolução Haitiana pode ser lida como a primeira das revoluções latino americanas ao ser constituída por um complexo de questões que marcarão a formação social dos demais países da região como a grande presença de população negra e mestiça o entrelaçamento entre forças militares e políticas na resolução dos conflitos internos e a persistência da economia dependente ARMITAGE e GAFFIELD 2016 GHACHEM 2016 Por outro lado ao ser forjada pela luta de uma população em sua maioria africana que expulsou os colonizadores europeus do território ela também pode ser entendida como percursora das guerras de descolonização da África no século XX nas quais os efeitos globais do colonialismo era peça central DUBOIS 2004 Ademais para os povos subalternos desde o seu desfecho vitorioso até o mundo contemporâneo a Revolução Haitiana foi um símbolo de resistência e de superação da opressão insuflando movimentos políticos estéticos e literários ao redor do mundo PAST 2004 QUEIROZ 2018 O sentido universal da Revolução Haitiana e de 1804 como divisor de águas ilumina o que estava em jogo na aurora do constitucionalismo BUCKMORSS 2011 DUARTE e QUEIROZ 2016 No momento em que surgem as noções básicas das Constituições modernas como cidadania soberania representação política propriedade liberdade e igualdade a escravidão era a grande instituição constituidora de sentidos do mundo atlântico PARRON no prelo QUEIROZ 2017 Como um instrumento óptico corretivo o Haiti nos alerta sobre o que estava em jogo e era central chama a atenção para aquilo que não queremos ver na história constitucional retirando da penumbra o que foi silenciado Diante desse quadro o artigo procura trabalhar aspectos centrais do constitucionalismo haitiano pósrevolucionário desenvolvido entre 1801 e 1816 À luz da luta revolucionária dos haitianos por autodeterminação os textos jurídicos do Haiti fornecem um arranjo conceitual alternativo para o direito constitucional moderno A análise será desenvolvida em diálogo com o pensamento negro o qual redimensiona aspectos marginalizados ou apagados pela teoria política hegemônica Na abordagem são desenvolvidos seis elementos articulados pela práxis constitucional do Haiti direitos universais do negro materialidade da escravidão cidadania diaspórica propriedade abolicionista princípio do solo livre e nação quilombo 2779 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 No entanto antes de adentrar na análise são importantes algumas considerações sobre a relação entre constitucionalismo e imaginação social 1 Constituição nação e comunidades imaginadas No seu clássico Comunidades imaginadas reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo 2016 Benedict Anderson propõe pensar a nação como uma comunidade política imaginada como inerentemente limitada e soberana Ela seria imaginada porque ainda que os membros da nação mais pequena não conhecerão jamais a maioria de seus compatriotas não serão vistos nem ouvirão sequer falar deles no entanto na mente de cada um vive a imagem de sua comunhão ANDERSON 2016 p 23 No seu argumento a nação é uma espécie de obscurantismo trazido pelo iluminismo a substituir velhas metafísicas como as religiosas ou das antigas dinastias Ela é possibilitada pela interrelação entre capitalismo e imprensa e por uma mudança na temporalidade da qual surge uma divisão entre passado e presente tornando possível falar de uma antiguidade e do tempo presente Portanto há a quebra do tempo messiânico simultaneidade entre passado e futuro em um presente instantâneo diante da emergência do tempo da modernidade marcado pela simultaneidade transversal tudo se passa e se vive em todas as partes O periódico é a grande expressão desse fenômeno em que os eventos são compartilhados o tempo todo nas mais diversas regiões Da mesma forma a emergência do romance cria um outro tipo de narrativa em relação ao tempo baseado nas noções de contemporâneo cotidiano tempo presente Numa relação de identidade e empatia com o leitor o romance fale de uma humanidade comum um nós particular Há a sincronização e fundição do tempo da novela com o tempo exterior ANDERSON 2016 Diante dessas transformações a nação e o nacionalismo são artefatos culturais de uma classe específica que substituem outras imaginações comunitárias anteriores Ela é fruto de processos pragmáticos de certos agentes e grupos sociais e não somente de uma imposição pura e simples Assim está atrelada ao uso contextual das línguas vernáculas disseminado pela criação e expansão de mercados consumidores e pela reprodutibilidade capitalista da imprensa à montagem de burocracias estatais e à formulação de relatos históricos atrelados a disputas por soberania política Neste sentido ela é materialmente construída e disputada e socialmente imaginada 2780 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 dependendo de apetrechos específicos que mediam e informam os sentidos comuns Assim agentes institucionais intelectuais literatos lideranças políticas representações estéticas historiografia e museus ajudam a moldar a percepção individual e coletiva dos habitantes de um determinado território no que se refere à identidade nacional Assim a despeito da desigualdade e exploração de um setor sobre o outro no plano interno a nação é sempre concebida dentro de um senso de camaradagem profundo e horizontal ANDERSON 2016 Partindo das reflexões de Anderson Julia Gaffield aponta como a virada do século XVIII para o XIX é um momento crucial para o desenvolvimento do sentido de nação moderno na medida em que revoluções bem sucedidas e independências permitem que lideranças elites políticas e classes específicas assumam o controle do Estado GAFFIELD 2007 A partir disso estes grupos podem se valer do aparato institucional não só para alcançar seus objetivos e interesses econômicos mas também construir e universalizar um determinado sentido de tempo e história por meio da construção da nação nada mais nada menos que uma perspectiva hegemônica de comunidade imaginada Dessa forma a América Latina e particularmente o Haiti são um celeiro para o entendimento de como consciência racial e nacional se entrelaçaram nas histórias póscoloniais das nascentes nações especialmente como raça e nação foram mediados pelas insurgências rebeldes no Atlântico a resistência negra e a atuação dos setores subalternos livres Da mesma forma sendo a nação o lado obscuro e metafísico do momento revolucionário a Constituição desponta como um decisivo artefato para se entender como a nação foi imaginada projetada construída e disputada na medida em que é um documento que articula uma tripla característica é o texto fundamental que fala e organiza politicamente e juridicamente o nós coletivo ele demarca uma torção no tempo dividindoo entre o antes o agora e o depois e por fim para se projetar para o futuro o documento é escrito e interpretado por meio da imaginação de um povo nacional realmente existente isto é uma identidade constitucional que tem uma história um passado e um destino comum Assim no caso haitiano suas primeiras constituições são interessantes para pensar como suas lideranças realizaram esforços para construir uma nação que transcendesse as divisões internas hierarquias de cor e diferenças culturais demarcasse o rompimento com o passado colonial e imaginasse o futuro comum em liberdade numa realidade internacional ainda dominada pela escravidão e pela plantation Assim elas foram um instrumento importante por meio do qual o Estado e sua classe dirigente tentou 2781 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 influenciar os termos nos quais a comunidade nacional seria definida incidindo de maneira dialética na percepção individual e coletiva dos haitianos GAFFIELD 2007 Falando especificamente sobre as quatro primeiras constituições do Haiti 1801 1805 1806 e 1807 Julia Gaffield ilumina a relevância do texto constitucional para a construção da imaginação nacional O cenário histórico das primeiras constituições haitianas ajuda a explicar sua ênfase na definição do caráter nacional do Haiti em torno de três temas atividade econômica religiosa e políticomilitar Durante os primeiros anos de semiindependência e depois completa independência o Haiti produziu quatro constituições cada uma delas diretamente relevante para o estudo da identidade nacional Essas constituições indicam a natureza turbulenta e incerta dos tempos em que os líderes tentaram fornecer diretrizes e regulamentos oficiais sobre como o país deveria funcionar como um estado soberano Os numerosos artigos de cada constituição sugerem como os líderes políticos não apenas desejavam que o país fosse mas também como acreditavam que era e poderia ser O exame sistemático desses artigos sugere como esses líderes tentaram desenvolver um senso de nação em um contexto de agitação interna e internacional GAFFIELD 2007 p 85 Assim o direito e as constituições são construtores de marcadores de autoidentificação e heteroidentificação fundamentais durante o surgimento e desenvolvimento dos estados independentes bem como na articulação de ideias nacionais baseadas na similitude sobre as diferenças No entendimento da imaginação nacional as constituições são fontes valiosas porque sublinham características que são assinaladas para todo o país Neste sentido ela cria a nação como ideal e intencionalmente mascara as complexidades da sociedade em favor de uma única comunidade imaginada No caso haitiano diversas pesquisas demonstram que este esforço de homogeneização não foi bem sucedido TROUILLOT 1990 CASIMIR 2020 PEREIRA 2020 Por outro lado como argumenta Gaffield a despeito da fragmentação social pósindependência as constituições não só contestaram consistentemente as divisões como ajudaram a produzir processos duradouros de identificação nacional GAFFIELD 2007 Diante dessas considerações a respeito da articulação entre constituição e nação cultura jurídica e identidade nacional objetivase a visualização de determinadas articulações conceituais do constitucionalismo haitiano do início do século XIX Em diálogo com o pensamento negro argumentase que a prática constitucional do Haiti propõe ferramental alterativo para repensar a teoria política e constitucional moderna e a invenção dos direitos humanos HUNT 2009 Em específico ela fornece um arranjo 2782 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 jurídico criativo e crítico para lidar com o legado colonial e repensar os direitos humanos Dessa forma seis categorias são exploradas a partir dessas constituições direitos universais do negro materialidade da escravidão cidadania diaspórica propriedade abolicionista princípio do solo livre e nação quilombo 2 Constitucionalismo haitiano e direitos humanos Logo na primeira constituição pósindependência formulada sob o governo de Dessalines em 1805 expõese uma embrincada articulação entre universal e particular por meio da ressignificação do termo negro Na exposição de Sibylle Fischer 2003 essa relação deve buscada tanto no preâmbulo como nos artigos 12 13 e 14 da Constituição Na abertura do texto é possível ler Na presença do Ser Supremo perante o qual todos são iguais e que disseminou tantas classes de seres diferentes na superfície do globo para o único propósito de manifestar sua glória e poder através da diversidade de suas obras Diante da criação inteira cujos filhos repudiados nós fomos considerados tão injustamente e por tão longo tempo Declaramos que os termos da presente Constituição são a expressão livre espontânea e determinada de nossos corações e a vontade geral de nossos compatriotas Constitution Imperiale dHaiti 1805 Na argumentação de Fischer o preâmbulo opera como um duplo Por um lado estabelece o princípio da igualdade universal Por outro afirma a diversidade e diferença do gênero humano Ao condenar a forma injusta com que os haitianos e todos os escravizados e colonizados do mundo foram tratados expressa tanto a igualdade racial como a ideia de que o estado haitiano é fundado no repúdio à violência colonial Assim princípios universais como a igualdade e a liberdade devem ser mediados por um elemento particular que no caso é justamente a experiência de ser vítima do colonialismo e da discriminação racial FISCHER 2003 Neste sentido a cor da pele é o grande signo catalizador de sentidos dessa experiência A invenção do negro é o principal legado do empreendimento colonial MBEMBE 2014 e é sobre ele que a Constituição de 1805 investe um pesado processo de ressignificação por meio do direito Art 12 Nenhuma pessoa branca qualquer que seja sua nacionalidade poderá ingressar neste território na qualidade de senhor ou proprietário nem poderá no futuro adquirir propriedade alguma Art 13 O artigo precedente no exerce efeito algum sobre as mulheres brancas que tenham sido naturalizadas como haitianas pelo governo nem 2783 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 sobre seus filhos atuais ou futuros Incluemse igualmente na presente previsão os alemães e poloneses naturalizados pelo governo Art 14 Havendo que desaparecer forçadamente toda distinção de cor entre os filhos de uma mesma família de quem o pai é o chefe de Estado os haitianos serão conhecidos daqui para frente pela denominação genérica de negros Constitution Imperiale dHaiti 1805 Primeiramente é notável o esforço dos haitianos em extirpar da ilha o retorno dos vínculos de propriedade impostos pelo imperialismo conforme expresso no art 12 Não é só a ideia de proprietário branco que está excluída mas também a de senhor denotando o programa abolicionista por trás da definição jurídica Ademais o artigo expressava o temor concreto de uma nova investida francesa especialmente diante da presença de antigos proprietários no país e em regiões próximas como nos Estados Unidos e nas Antilhas Essa formulação se repetiria em todos os textos fundamentais do país até a Constituição de 1918 formulada durante o período de ocupação dos Estados Unidos quando a exclusão da propriedade branca seria revogada abrindo caminho para o retorno da plantation e das forças recolonizadoras CASIMIR 2020 DUBOIS 2012 No meio do caminho a despeito da previsão constitucional o confisco da propriedade branca pelo estado haitiano também seria revertido por meio do tratado de reconhecimento diplomático de 1825 quando a França impôs a criminosa dívida da independência aos haitianos isto é fez com que o Haiti pagasse por toda posse ilegítima oriunda da situação colonial e escravocrata SILVA e PEROTTO 2018 Especificamente em relação à denominação genérica de negros Fischer argumenta Em uma manobra extraordinariamente ousada a Constituição de Dessalines adota a linguagem dos colonizadores e a submete a uma ressignificação total Todas as hierarquias baseadas na cor de pele são abolidas e todos os haitianos passam a ser referidos pelo termo genérico de negros Da exageração taxonômica de uma colônia que tinha mais de uma centena de termos distintos para se referir a graus diferentes de mesclas de raça e cor passamos a uma denominação genérica de negros Os revolucionários da antiga colônia francesa voltam a chamar o território com o nome arawak original e o fazem o que é ainda mais significativo voltando a nomear a cor da pele Rechaçando qualquer expectativa de ordem biológica ou racial fazem do termo negro sinônimo de ser haitiano e logo uma categoria política antes que biológica Dessa forma a Constituição de 1805 constrói por meio do ato de ressignificação um dos paradoxos mais inquietantes da política universalista moderna o paradoxo de que o universal se deriva comumente de algum dos particulares e implica assim certa forma de subordinação O gesto de chamar a todos os haitianos não importa qual for sua cor de pele de negros é como chamar a todas as pessoas de mulheres independentemente do seu sexo supõe intuições do tipo igualitárias e universalistas ao mesmo tempo 2784 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 que as põe à prova empregando o termo previamente subordinado da oposição como termo universal FISCHER 2003 Portanto o artigo 14 era uma forma de legislação expressiva que positiva o processo da Revolução em direção ao futuro valendose do signo herdado do colonialismo para modificar e valorizar seu significado de maneira progressiva até torná lo fundamento da universalidade humana Fizeram do devir haitiano a reversão do devir negro Segundo Mbembe o devir negro do mundo é a universalização dos riscos sistemáticos a que os escravos de origem africana foram submetidos durante o primeiro capitalismo Assim a condição negra passa a afligir todas as humanidades subalternas com a instauração de práticas imperiais inéditas que devem tanto às lógicas escravagistas de captura e de predação como às lógicas coloniais de ocupação e exploração ou seja às guerras civis ou razzias de épocas anteriores MBEMBE 2014 p 16 O planeta se torna paulatinamente uma grande plantation com seus correspondentes fenômenos de comércio e descarte de corpos destruição de territórios e aniquilamentos de culturas Distribuição do tempo atomização do espaço e transformação do real em ficção e da ficção em real em que a força militar a destruição de infraestruturas os golpes e as feridas são acompanhadas por uma mobilização total através das imagens Elas fazem agora parte de dispositivos de uma violência que se desejava pura MBEMBE 2014 p 16 Tratase da permissividade e da investidura de tecnologias sobre corpos e territórios com práticas de zoneamento economias da violência e desapossamento das matrizes do possível as quais guardam sua origem na lógica de poder e dominação da escravidão negra O termo negro carrega o passado e o futuro do mundo É com essa consciência profética que a Constituição de 1805 investe nele o significado de humanidade pois sabia que caso o mundo que criou tal categoria não fosse radicalmente abolido o amanhã de todos seria tal qual o conhecemos hoje constituído pelo devir do escravo e pela globalização da colônia Uma mimesis da São Domingos pré1804 Portanto na torção semântica do termo negro o devir haitiano aponta uma construção da universalidade humana que carrega a memória de todos aqueles que foram são e possivelmente serão deixados de fora daquilo que se entende como humanidade Rejeitando abstrações que se colocam foram do tempo afirma que os princípios jurídicos devem emergir da experiência materialmente vivida Numa perspectiva intransigente este devir diz que o conteúdo dos direitos humanos deve ser preenchido na tensão com todo o horror e 2785 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 absurdo produzido por aqueles que se advogam os únicos portadores da civilização Trata se de uma poética constitucional baseada na hermenêutica daquele que foi capturado separado de sua família e de suas terras embarcado como carga humana em um navio foi vendido e viveu o cotidiano de terror da plantação daquele que a despeito de tudo isso jamais se viu como escravo e emergiu da penumbra da CasaGrande para reivindicar a sua liberdade e de todos os demais O devir haitiano instaura o direito universal do negro como ponto de partida de outra humanidade O segundo elemento que emerge do constitucionalismo é a materialidade da escravidão como um problema constitucional e de organização do Estado e não uma abstração filosófica Fruto de uma revolução abolicionista cercado por regiões escravistas e ainda ameaçado por forças recolonizadoras o Haiti surge como nação tendo a escravidão como uma questão concreta de primeira ordem Já na Constituição de 1801 elaborada por Toussaint Louverture quando o país ainda não havia declarado sua independência completa a escravidão a liberdade e a igualdade racial aparecem no título II nas disposições sobre os habitantes do território Art 3 Não haverá escravos neste território a servidão está abolida para sempre Aqui todo os homens nascem vivem e morrem livres e franceses Art 4 Todos os homens não importa qual seja sua cor de pele podem ser aqui admitidos para qualquer emprego Art 5 Não existe outra distinção que não seja a das virtudes e talentos e não há outra superioridade que aquela que confere a lei no exercício de uma função pública A lei é a mesma para todos tanto a que castiga como a que protege Constitution dHaïti 1801 Em um mundo constituído pela linha de cor como forma básica da fronteira entre liberdade e servidão ao positivar o princípio da igualdade a Constituição nomeia expressamente a ausência de discriminação racial pois sabe que o silêncio a respeito do assunto é mecanismo de perpetuação da lógica branca de dominação É necessário afirmar a raça numa política de direitos que descontrói ativamente o racismo Ademais como argumenta Fischer a abolição expressa da escravidão é extremamente radical e inovadora para sua época bastando comparar com praticamente todas as constituições e declarações francesas do mesmo período À exceção da Constituição Termidoriana de 1795 que continha uma proibição expressa sobre a escravidão da declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789 à reintrodução da escravidão nas colônias francesas em 1802 todas as leis fundamentais da França eram omissas sobre a proibição do 2786 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 escravismo FISCHER 2003 Isto é o silêncio revelava que no seu suposto universalismo era permitido a servidão de pessoas negras Ademais ao localizar a questão da escravidão no título dos habitantes e não como parte de um rol de direitos civis e políticos a Constituição de 1801 trata do tema como um assunto político e de organização institucional Neste sentido Fischer argumenta Isso não é um detalhe insignificante na caprichosa evolução da história constitucional revolucionária Haiti como Estado fundado para garantir a liberdade e acabar com a escravidão e a subordinação racial exerce uma pressão particular sobre a distinção entre os direitos universais e as contingências dos arranjos políticos O grande número de modificações realizadas entre 1791 e 1795 na Declaração de Direitos demonstra que longe de oferecer garantias inalteráveis estas enumerações de direito universal estavam sujeitas à mudança e em grande medida expostas ao debate FISCHER 2003 p 28 Assim o fim da escravidão e a eliminação da subordinação racial estão no centro do programa fundacional do Estado O princípio da abolição articula político e social liberdade e igualdade dentro de um uno que se estabelece não numa lista de direitos independentes uns dos outros mas sim como parte dos fundamentos indispensáveis da entidade geopolítica da nação que logo surgiria Portanto o constitucionalismo haitiano lega uma outra perspectiva sobre a tensão entre igualdade e liberdade tão comum às celeumas liberais Por meio do seu abolicionismo em que a liberdade só poderia ser garantida com a plena igualdade racial ambos os princípios são mutuamente constituídos ganhando concretude diante da experiência de rejeição do mundo de privações criado pela escravidão FISCHER 2003 Se por um lado esse vínculo de indistinção entre igualdade e liberdade abriu caminho para dispositivos de controle do trabalho livre era necessária uma supervisão abrangente do trabalhador para garantir a liberdade coletiva do país FISCHER 2003 por outro fez do Haiti protagonista na expansão do princípio da abolição pelo Atlântico Isto é o enfrentamento à escravidão como fundamento do Estado implicava numa postura de intervenção nas relações internacionais Sob o risco de ataque das potencias estrangeiras essa incidência muitas vezes se realizou de maneira indireta como no acordo entre Alexander Petión e Simón Bolívar Em troca do suporte dado às guerras de independência latinoamericanas o haitiano exigia a abolição da escravidão nos territórios liberados e que Bolívar fundasse um país baseado nos mesmos princípios libertários do Haiti Por mais que a promessa não tenha sido cumprida o trato entre 2787 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 haitianos e patriotas americanos representava a visão de mundo de uma nação que nasceu em antagonismo universal com a servidão negra GAFFIELD 2013 Antagonismo que era exercido não por meio de filosofias diletantes ou vazias declarações de direitos pois era baseado numa práxis pragmática de atuação sobre as condições concretas da época É neste sentido de intervir indiretamente na realidade escravista do atlântico que se pode visualizar o terceiro elemento do constitucionalismo haitiano a cidadania diaspórica3 Todas as primeiras constituições haitianas são explícitas em destacar a política absenteísta do país isto é de que ele não interveria por meio de guerras nas realidades de outros países e muito menos exportaria sua revolução Era um mecanismo de defesa para afastar as acusações de um certo haitianismo internacionalista a sublevar escravos por todo o globo forjadas por opositores da independência do país Diante desse cenário que a Constituição de 1816 a primeira pósreunificação do norte e do sul positiva um criativo dispositivo sobre cidadania capaz de driblar a conjuntura adversa da época É lugar comum que a nacionalidade e a cidadania são concedidas com os critérios de ius soli e ous sanguinis isto é a pessoa se torna nacional e cidadã caso tenha nascido em determinado território ou seja descendente de algum dos seus cidadãos Assim o ser cidadão e seus respectivos direitos estão aprisionados a fronteiras físicas e a laços étnico raciais Por outro lado o constitucionalismo haitiano adotava uma concepção mais universal e enraizada na história da modernidade Nela as vítimas potenciais da escravidão e do colonialismo assim que entrassem no país tornavamse não só nacionais haitianos mas também cidadãos com plenos direitos políticos FERRER 2012 GAFFIELD 2013 Assim no título III do estatuto político dos cidadãos da Constituição de 1816 estava o art 44 que assim estabelecia a aquisição da cidadania haitiana todos os africanos e indígenas e aqueles que do seu sangue nascidos nas colônias ou países 3 A noção de cidadania diaspórica é fruto das discussões e leituras desenvolvidas nas disciplinas A Dialética do Senhor e do Escravo em Hegel Uma releitura da Teoria do Reconhecimento a partir da obra de Susan BuckMorss Hegel Haiti e a História Universal ofertada pelos professores Menelick de Carvalho Netto e Evandro Piza no primeiro semestre de 2015 e Cultura Jurídica Branquidade e Memória ofertada por Evandro Piza no segundo semestre de 2015 Ademais ao longo do ano de 2017 junto com o amigo João Victor Nery Fiocchi Rodrigues realizamos um grupo de estudos sobre Revolução Haitiana e constitucionalismo onde o termo foi melhor delimitado Naquele mesmo ano eu Evandro e João escrevemos um esboço de artigo chamado Constituições Haitianas PósRevolucionárias Antirracismo e a Reformulação da Cidadania para ser apresentado na 13ª Conferência da European Sociological Association em Atenas onde o conceito foi pela primeira vez articulado em texto No ano seguinte João trabalhou o termo na sua dissertação sobre constitucionalismo e as lutas por direitos dos mapuches no Chile Duarte Queiroz e Rodrigues no prelo Rodrigues 2018 2788 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 estrangeiros que venham a residir na República serão reconhecidos como haitianos mas não desfrutarão do direito da cidadania até que tenha passado um ano de sua residência4 No mesmo sentido a Constituição de 1843 expande ainda mais essa noção No título sobre os haitianos e seus direitos é possível ler Art 6 Todos os indivíduos nascidos no Haiti ou de ascendência africana ou indígena e todos aqueles nascidos em países estrangeiros de um homem haitiano ou de uma mulher haitiano também o são todos aqueles que até o dia de hoje tenham sido reconhecidos como haitianos Art 7 Todos os africanos ou indígenas e seus descendentes podem fazerse haitianos A lei regula as formalidades da naturalização Constitution du 30 décembre 1843 Tais dispositivos apontam a natureza transnacional do antiescravismo radical que funda o estado haitiano A cidadania diaspórica serve como uma forma de driblar o cerco internacional ao conceder não só asilo mas nacionalidade e direitos políticos aqueles que possivelmente tenham sido capturados pela lógica colonial Se o Haiti enfrentava restrições para levar a abolição e a igualdade racial a todos os condenados da terra estes encontrariam nele ao menos um território de liberdade e direitos Tais dispositivos devem ser lidos diante dos esforços concretos do país em convidar e naturalizar pessoas negras e nãobrancas nas colônias francesas e britâncias próximas como Martinica Guadalupe e Jamaica bem como realizou negociações diplomáticas com Estados Unidos e Espanha para fazer retornar haitianos que estivessem como escravos nestes territórios GAFFIELD 2013 FERRER 2012 Assim por meio da cidadania diaspórica Haiti convocou publicamente negros estadunidenses a irem residir no país na década de 1820 entre 6 e 13 mil afro americanos migraram para o Haiti5 recebeu inúmeras pessoas escravizadas das demais 4 Como a hipocrisia safadeza e cara de pau dos europeus não encontravam limites esse artigo seria atacado no plano internacional Nas negociações de reconhecimento diplomático os franceses pediriam a revogação de tal dispositivo pois ele estabelecia uma distinção de cor contra a qual a filantropia estava lutando para destruir há mais de meio século FERRER 2012 p 46 Haja óleo de peroba E quando Petión utilizou a Constituição de 1816 para garantir a naturalização liberdade e cidadania de 07 negros fugidos da Jamaica escravagistas britânicos diziam que o texto constitucional haitiano representava uma ameaça para o comércio marítimo e para a ordem internacional 5 Neste sentido e sobre os usos do constitucionalismo haitiano para intervir na realidade do Atlântico narra Ada Ferrer Ouvindo notícias trazidas por marinheiros negros estadunidenses em Porto Príncipe de que o governo dos Estados Unidos estava considerado em remover forçadamente negros livres para a África Petión procurou inserir o Haiti nos cálculos de saída e remoção feitos nos Estados Unidos Por meio do seu secretário geral Joseph Balthazar Inginac ele convidou estadunidenses negros a emigrar para o Haiti como uma forma de resistir à exclusão e ao abuso que eles enfrentavam nos Estados Unidos Abrelhes os olhos a Constituição da nossa República e vejam no seu artigo 44º uma mão fraterna aberta às suas angústias Visto que hoje lhes é recusado o título de Membros da União Americana que venham entre nós em um país firmemente organizado e gozem dos direitos de Cidadãos do Hayti de felicidade e paz enfim que venham e mostrem aos 2789 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 ilhas antilhanas requereu aos patriotas latinoamericanos que os africanos resgatados sobre os mares fossem mandados para o país caribenho além da própria abolição nos territórios liberados cabe lembrar e inscreveu o direito de asilo como princípio organizativo do Estado vinculado diretamente à escravidão e não meramente a perseguições oriundas de manifestação de opinião política conforme o art 3º da Constituição de 1816 Tudo isso apontava a intenção do Haiti na construção de um robusto projeto nacional abolicionista que objetivava intervir nos debates internacionais sobre direitos liberdade igualdade cidadania e soberania da época Ademais com seu apoio aos patriotas latinoamericanos em troca da abolição da escravidão o Haiti pretendia fazer avançar a pauta sobre outras localidades construindo uma rede de estadosnação antiescravistas articulação jamais concretizada seja pelo não cumprimento da promessa por parte dos independentistas seja pela exclusão por esses líderes do Haiti do Congresso do Panamá em 1826 espaço onde a causa poderia ser retomada como projeto comum da América FERRER 2012 Da mesma forma a noção de cidadania diaspórica ajuda a reler e expandir a noção de negro enraizada na história do constitucionalismo haitiano Por um lado todos os haitianos seriam denominados genericamente pelo termo negro Por outro todas as vítimas da escravidão e do genocídio eram potencialmente haitianas independentemente da sua cor Essa ambiguidade e sobreposição realiza uma paradoxal política de direitos a qual expande a cidadania de acordo com a expansão do colonialismo Quanto mais violência colonial houver mais haverá potenciais cidadãos haitianos espalhados pelo planeta Nesta poética o termo negro opera politicamente de duas formas passa a designar não somente pessoas de origem africana e pele escura mas todo aquele que foi capturado pelas malhas coloniais e tornase núcleo do conceito de humanidade informador de uma política de direitos decididamente disposta a enfrentar as chagas da supremacia branca global A cidadania diaspórica articulava o devir haitiano como resposta jurídica ao devir negro do mundo Mais do que isso opera uma crítica ao conceito de refúgio o qual somente existe diante de um sistema jurídico internacional que naturaliza a precariedade de certas vidas humanas O refugiado é uma aporia do direito pois é um sujeito relativizado de direitos isto é um humano menor para o qual o sistema jurídico opera na exceção homens brancos que ainda existem homens de cor e negros que podem levantar um front destemido protegido do insulto e da injúria FERRER 2012 p 58 grifos nossos 2790 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 legítima HIGINO 2018 Isto é logo aquele que mais precisa de amparo institucional é tratado juridicamente de forma estreita e instável Ademais a possibilidade do refúgio tem como lado oculto uma ordem internacional que permite a barbárie isto é que produz incessantemente migrações forçadas de indivíduos sem garantias jurídicas totais que passam a depender da boa vontade de organismos estrangeiros e pessoas desconhecidas No mundo do constitucionalismo haitiano a figura do refugiado não existe pois ela é substituída pelo negro em diáspora o qual imediatamente se torna sujeito pleno de direitos assim que pise no Haiti Dessa forma tratase de uma política que articula direito interno e externo fazendo do território nacional instrumento de expansão da liberdade e da igualdade racial no plano internacional Ou há cidadãos ou não há Ou há direitos humanos em sua universalidade ou não há Ou há humanidade ou não há O quarto elemento do constitucionalismo versa sobre o direito de propriedade O núcleo jurídico da escravidão é o direito de propriedade que uma pessoa tem sobre a outra Por mais que esse direito tenha sido regulado em alguns casos a exemplo do fatídico Código Negro francês de 1685 ele se baseava no domínio e na vontade absoluta do senhor sobre o seu escravo Isso significava que o negro não era somente uma mercadoria e um instrumento de trabalho pois o senhor poderia exercer sobre ele qualquer tipo de ação que imaginasse Compra venda depósito em garantia tortura mutilação estupro assédio separação de família gravidez forçada almejando lucros futuros disposição livre do seu tempo para as mais diferentes tarefas da dança obrigada ao acender de luzes em todo anoitecer de retirar as fazes de dentro da casa a vestir suas roupas de preparar comidas a escovar os sapatos colocação na rua como pessoa de ganho e etc Assim era um tipo de propriedade baseada num direito despótico num domínio arbitrário e numa posse caprichosa constituidores de relações sociais inerentemente patológicas sádicas e delirantes É contra este horror absoluto que se levanta a Revolução Haitiana Por isso há uma enorme cisão entre o constitucionalismo haitiano e o resto do constitucionalismo no início do século XIX Os textos constitucionais das demais nações irão afirmar o direito de propriedade sem especificar o que ele significava a exemplo do art 179 XXII da Constituição do Império Com isso abrangiam a possibilidade da propriedade escrava na sua plenitude tendo em vista que ela ainda era a norma em diversas regiões Já as Constituições haitianas explicitamente definiam a propriedade como o direito de usufruir e dispor do próprio trabalho e indústria conforme 2791 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 estabelecido na de 1806 e na sua revisão de 1816 FERRER 2012 Neste sentido Ada Ferrer argumenta a proteção da propriedade que era utilizada por toda parte e continuaria sendo em certas circunstâncias como um meio de proteger a escravidão era definida de uma maneira que tornava inadmissível a escravidão vista como uma violação dos direitos do homem e uma violação do direito de um indivíduo à sua própria propriedade ou pessoa FERRER 2012 p 52 Dessa forma a propriedade abolicionista da relação de servidão propriedade somente incluindo o fruto do próprio trabalho somada à própria abolição da escravidão e à cidadania diaspórica formava um enquadramento jurídico radicalmente diferente do caminho que o direito tomava naquele momento da história Essa moldura serviu de padrão para pleitos de liberdade nas cortes haitianas e de intervenção na geopolítica da época FERRER 2012 Essa política e pragmática dos direitos fazia do Haiti protagonista no sentido universal dos direitos humanos Da mesma forma a exclusão da propriedade escrava combinada com a proibição da propriedade por brancos sobrepunha dois institutos para afirmar não era só a relação de senhor e escravo que estava abolida mas também a hermenêutica senhorial dela oriunda isto é a epistemologia branca que se crê onipotente onisciente e onipresente pois nascida do domínio total sobre outra vida humana Portanto tratavase de uma abolição radical tanto das condições materiais como subjetivas decorrentes da escravidão negra por mãos e mentes brancas Abolir a chibata e a perspectiva de quem a segura Assim o constitucionalismo haitiano deixava importante lição de que o princípio da propriedade absoluta poderia permanecer para além da própria escravidão caso o modo de ver da CasaGrande não fosse frontalmente atacada O princípio da abolição tentava ser o rito fúnebre a despachar para sempre os fantasmas dos senhores A propriedade abolicionista está relacionada ao quinto elemento articulado pelo constitucionalismo haitiano o princípio do solo livre Conforme colocado diferentemente das declarações europeias as constituições do Haiti retiravam os princípios da liberdade e da igualdade da abstração para tornalos reais e concretos O território e o solo eram as raízes dessa base material da liberdade A terra preta amparava um universalismo concreto diferente do universalismo abstrato francês que no seu vazio permitia a escravidão Conforme argumenta Ada Ferrer o princípio do solo livre é anterior aos debates da Era das Revoluções Presente no Antigo Regime e reconhecido em diversos sistemas jurídicos europeus ele significava a aquisição de liberdade por um escravo assim 2792 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 que pisasse em um território particular Na França e na Inglaterra metropolitanas representava uma extensão do princípio das comunas medievais de que o ar livre das cidades era declarado incompatível com a servidão Durante a era do tráfico negreiro e da escravidão este princípio serviu de base para pleitos judiciais de pessoas escravizadas No entanto a partir de meados do século XVIII a sua aplicação a pessoas negras foi alvo de um grande retrocesso chegando à proibição da entrada de pessoas de cor na França por Napoleão em 1802 Mais perto do futuro Haiti princípio semelhante era utilizado pelos santuários católicos em territórios espanhóis em que antigos escravos eram libertados caso pisassem nessas terras e se convertessem ao catolicismo FEERER 2012 No entanto o princípio do solo livre articulado pelo constitucionalismo haitiano por meio da cidadania diaspórica era muito mais abrangente e radical Neste sentido a partir da Constituição de 1816 Ada Ferrer argumenta A versão de solo livre de Pétion no entanto era significativamente mais radical do que qualquer precedente britânico ou francês Primeiro seu princípio de liberdade foi proclamado não para territórios europeus que estavam geograficamente afastados dos espaços de escravidão em massa mas para uma excolônia escravista a pouca distância de numerosos e florescentes regimes escravistas Assim seu solo livre foi declarado no espaço geográfico onde mais importava Em segundo lugar ele fez do solo livre não apenas um princípio jurídico a ser invocado e defendido em casos específicos como era na Europa mas de fato um princípio geral e inviolável inscrito na lei suprema da terra Assim ele se baseou em princípios do antiescravismo do Antigo Regime e os combinou com elementos do antiescravismo haitiano para expandir o escopo de cada um As políticas de Pétion ampliaram o conceito de solo livre prometendo aos recémchegados não apenas a liberdade da escravidão mas também a cidadania Ele simultaneamente ampliou o alcance da liberdade conquistada na Revolução Haitiana e reafirmada em todas as constituições haitianas tornandoa disponível para estranhos para pessoas que não estavam presentes no momento da redação da constituição O artigo 44 tornou assim a liberdade e a cidadania mais amplamente alcançáveis e deu à promessa do antiescravismo radical do Haiti uma vida mais robusta e uma projeção internacional em uma época e lugar onde os estados vizinhos permaneciam muito envolvidos no regime de escravidão FERRER 2012 p 50 Por meio do solo livre o constitucionalismo haitiano realizava uma potente dialética entre direitos humanos e a lei nacional essa última deveria respeitar os direitos humanos e garantir o direito ao devido processo nas cortes locais e por outro lado havia uma haitianização dos direitos universais na medida em que se os direitos humanos eram negados em todo lugar para as pessoas negras no sentido abrangente dado pelas constituições do país no território haitiano eles seriam respeitados Isso era evidenciado por exemplo no direito ao asilo expresso no artigo 3º da Constituição de 1816 No Haiti 2793 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 esse direito era incorporado constitucionalmente como sagrado e inviolável Além disso estava vinculado diretamente à escravidão e não somente a perseguições oriundas opinião política Combinado à cidadania diaspórica à rejeição de propriedade sobre o corpo de alguém à ilegalidade da escravidão essa proteção aos estrangeiros possuía um rol de direitos que ia para além de qualquer constituição da sua época e da nossa Com isso a combinação dos elementos e princípios do constitucionalismo haitiano permitem uma significação diversa tanto do conteúdo dos direitos como das noções de soberania povo e território Primeiro o abstrato direito de liberdade foi transformado em um princípio concreto de proibição da escravidão excluindo qualquer débito relativo ao contrato sobre corpos humanos Segundo o direito de propriedade era explicitamente contrário à posse sobre outrem Terceiro a soberania nacional imaginada como um espaço no qual os direitos são acordados e proclamados é redimensionada em um espaço de direitos eminentemente transnacional pois por meio da cidadania diaspórica transcendente as limitações das fronteiras nacionais FERRER 2012 Portanto o constitucionalismo haitiano funde duas noções aparentemente separadas uma da outra território e diáspora Isso ocorre porque sua política de direitos não está vinculada às fronteiras territoriais da soberania nacional mas sim a uma noção transnacional de territórios de liberdade atreladas ao corpo negro o corpo de todos os condenados da terra Onde houver uma pessoa que foi capturada pela lógica despótica do colonialismo o território haitiano potencialmente exercerá sua potência garantidora de direitos por meio do princípio do solo livre6 Dessa forma tratase de um rearranjo dos direitos de liberdade igualdade cidadania e nacionalidade diante de uma concepção de território muito parecida com aquela dada por Édouard Glissant a partir da noção de errância 2010 Segundo Glissant a nação foi uma das formas pelas quais o Ocidente impôs fronteiras e o distanciamento entre pessoas por meio de intransigências linguísticas e territoriais O exilado nas suas diferentes formas como o refugiado o asilado o traficado o forçadamente deslocado 6 A partir da perspectiva do colonizado a poética fanoniana permite pensar como o colonizado estabelece vínculos entre território e moral entre o materialconcreto e os valores do bem comum entre o princípio fundamental do direito a habitar à terra e a liberdade e igualdades coletivas Para o povo colonizado o valor mais essencial porque mais concreto é primeiro a terra a terra que deve garantir o pão e é claro a dignidade Mas essa dignidade não tem nada a ver com a dignidade da pessoa humana Dessa pessoa humana ideal ele nunca ouviu falar O que o colonizado viu no seu solo é que se podia impunemente prendê lo espancalo esfomeálo e nunca nenhum professor de moral nunca nenhum padre veio receber as pancadas em seu lugar nem dividir seu pão com ele Para o colonizado ser moralista é muito concretamente calar a arrogância do colono quebrar a sua violência ostensiva em uma palavra expulsálo simplesmente da paisagem FANON 2005 p 61 2794 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 está constantemente em situação de precariedade e irregularidade pois deve lidar com as fronteiras e distâncias criadas pelas nações e ao mesmo tempo estabelecer relações com o diverso Ele assim faz um movimento de errância atuando nas frestas e contra fixações do seu eu Cria identidade não num fundamento essencial cristalizado mas na relação Na acepção de Mbembe formula uma ética própria oriunda da passagem consciente da extrema fragilidade de todos e de tudo num tempoespaço de vulnerabilidade total O errante tem em conta o acidente que representa nosso lugar no mundo atravessado pelo peso do arbitrário e do constrangimento E com isso sabe do injusto que é formular qualquer tipo de política de direito baseada nessas arbitrariedades como aquelas baseadas estritamente no sangue ou lugar de nascimento MBEMBE 2017 Não se trata do elogio ao exílio ao refúgio ou ao movimento incessante Muito menos a celebração da fuga do nomadismo e de um mundo boêmio ou sem raízes O que se evoca é a figura de um sujeito de direitos que se esforçou para fazer um caminho íngreme adverso e que lhe foi de início rejeitado Tornarse humano no mundo independentemente da origem e do sangue Neste trajeto de circulação e transfiguração abraçou a fragmentariedade da sua própria história numa cartografia dolorida instável e fluída Fez vida diante do desastre que nos assoma Portanto o lugar o território é experiência do encontro e da relação que dão substrato à autoconsciência e à autodeterminação baseadas num senso de habitação solidário e desprendido MBEMBE 2017 O que Mbembe chama de relação global e ética da partilha do mundo parece o que os haitianos quiseram fazer com suas concepções de solo livre e cidadania diaspórica ao fundirem juridicamente território e movimento nação e diáspora raiz e errância cidadania e descolonização Uma política de direitos que rejeita a herança da colônia a qual fez do acaso por trás da cor da pele ou do lugar em que se nasce uma estrutura planetária de dominação e desumanização Ao fazer de todos os condenados da terra pessoas negras haitianas e consequentemente cidadãs construiu noções dos direitos humanos verdadeiramente baseadas naquilo que nos é comum Assim a poética haitiana valeuse do discurso constitucional para imaginar um território de direitos destinado aqueles e aquelas que encararam o abismo que viveram a experiência de confrontar sem preparação o desconhecido que tiveram dúvidas petrificantes diante da desintegração de tudo aquilo que lhes era mais íntimo GLISSANT 2010 Uma poética constitucional no qual o sujeito de direitos estava na travessia na passagem na encruzilhada 2795 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 3 A Constituição e a Nação Quilombo Este quadro permite pensar como o constitucionalismo haitiano informa aquilo que poderíamos chamar de nação quilombo O conceito parte de uma imaginação política que aproxima a teoria constitucional dos sentidos da diáspora africana nas Américas A experiência histórica e plural das comunidades quilombolas no Brasil serviu de inspiração para uma multifacetada tradição do pensamento social a qual faz do quilombo um princípio de reflexão crítica e intervenção política Isto é o quilombo opera tanto como elemento descritivo fornecendo leituras alternativas do imaginário nacional e do processo de formação social como normativo articulando proposições éticas que semantizam a liberdade e a igualdade de acordo com a experiência da diáspora africana nas Américas Assim em um país permeado pelo imaginário da democracia racial da mestiçagem e do apagamento da autodeterminação da população nãobranca o quilombo é ponto de inflexão histórica e política Mecanismo de introdução do ponto de vista negro a respeito da cultura jurídica e da identidade nacional GOMES 2022 PIRES 2021 PEREIRA 2020 Ademais ao estarem em consonância com outros processos sociais a exemplo dos palenques maroons e cimarrones denotam o caráter transnacional das diásporas internas e das territorializações da população negra na América e no Caribe No sentido de amefricanidade dado por Lélia Gonzalez o quilombo como princípio relê a experiência continental borrando as fronteiras linguagens e histórias hegemônicas por trás de cada comunidade imaginada nacional GONZALEZ 1988 e 2020 Neste sentido três acepções do quilombo formuladas por intelectuais brasileiros permitem interpretar o constitucionalismo haitiano do início do século XIX O quilombo como práxis insurgente de Clóvis Moura O quilombo como território de liberdade de Beatriz Nascimento E o quilombo como invenção institucional de Abdias Nascimento Tais concepções dialogam com as formulações do pensamento afrocolombiano para qual os territórios negros são produzidos poeticamente e espaços geográficos articuladores de uma contraesfera pública que age em diálogo ocultamento tensão e luta perante a arena política dominante da modernidade Na tradição do pensamento social brasileiro Clóvis Moura representa uma ruptura na interpretação da história da escravidão no país Na primeira metade do século XX predominavam interpretações da sociedade escravista em que o negro só aparecia 2796 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 como agente humano do ponto de vista cultural ou econômico força de trabalho e propriedade Para não falar daquelas em que ele era elemento completamente ausente Com a publicação do seu primeiro livro Rebeliões da Senzala em 1959 Clóvis constrói uma análise do apogeu e da queda do escravismo brasileiro na qual o negro é eminentemente um sujeito político Na sua visão processual e dinâmica da sociedade o teórico diz que a escravidão é constituída por uma dicotomia básica senhor e escravo Para afirmarse em toda a sua amplitude e generalidade o escravismo tinha que ter como fundamento a sujeição absoluta do negro Assim a partir do momento em que ele se rebela tornase força dinâmica e sujeito ativo do processo histórico Tornase a negação básica e universal da ordem social estabelecida desgastandoa e abrindo possibilidade para a transformação políticas e econômicas Assim a luta negra por liberdade era o principal fator de dinamização da estrutura social e tinha como grande expressão o quilombo O dinamismo da sociedade brasileira visto do ângulo de devir teve a grande contribuição do quilombola dos escravos que se marginalizavam do processo produtivo e se incorporavam às forças negativas do sistema Desta forma o escravo fugido ou ativamente rebelde desempenhava um papel que lhe escapava completamente mas que funcionava como fator de dinamização da sociedade As formas extralegais ou patológicas de comportamento do escravo segundo a sociologia acadêmica serviram para impulsionar a sociedade brasileira em direção a um estágio superior de organização do trabalho O quilombola era o elemento que como sujeito do próprio regime escravocrata negavao material e socialmente solapando o tipo de trabalho que existia e dinamizava a estratificação social existente Ao fazer isto sem conscientização embora criava as premissas para a projeção de um regime novo no qual o trabalho seria exercido pelo homem livre e que não era mais simples mercadoria mas vendedor de uma sua força de trabalho MOURA 1988 p 269 Portanto o antagonismo político não está nas altas esferas sociais internas os efeitos desembaraçadores do liberalismo das elites ou externas a pressão internacional dos ingleses mas sim na base da sociedade o escravizado negro É a sua luta por liberdade que encarna a contradição fundamental e que cria as premissas para a degeneração do sistema escravocrata A interpretação desse desgaste em Clóvis é multifacetada Para ele as rebeliões negras desajustaram a ordem social em diferentes níveis a primeiramente elas ampliavam as fissuras de resistência servindo como correia de transmissão para mais atos de rebeldia e para a criação de um horizonte de liberdade fora da escravidão b ao afrontar o estabelecido geravam sérios temores sobre os senhores que adotavam medidas de repressão e assim escancaravam as assimetrias e 2797 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 impossibilidades sociais acirrando o antagonismo c por fim os atos de rebeldia oneravam os senhores diminuindo as suas margens de lucro eles eram obrigados a pagar capitães do mato criar instituições de combate aos quilombolas mobilizar recursos para perseguir fugitivos e a própria fuga do cativo significava perda do seu capital MOURA 1988 Assim para Clóvis os atos rebelião negra e a luta por liberdade devem ser entendidos dentro do sentido global de transição da sociedade escravocrata para o trabalho livre Eles pressionam historicamente nesta direção Fazem a história acelerar numa direção mais democrática Na estrutura do argumento o grande catalizador desse fenômeno é o quilombo que portava e intuía o devir social e histórico da liberdade a passagem do escravo para o sujeito livre Essa interdependência dialética só poderá ser compreendida insistimos se tomarmos o quilombola não como termo morto ou negativo mas como termo ativo e dinâmico A posição crítica embora inconsciente fazemos questão de insistir do quilombola por seu turno ao onerar o trabalho escravo no seu conjunto e ao desinstitucionalizálo mostrava de um lado as falhas intrínsecas do escravismo e ao mesmo tempo mostrava aos outros escravos a possibilidade de um tipo de organização na qual tal forma de trabalho não existia MOURA 1988 p 270 Assim da mesma forma que Clóvis traz a rebelião negra para o centro da sua concepção da escravidão é ela um dos elementos que dinamiza o processo de abolição e abre as portas para a emergência da ordem do trabalho livre As revoltas dos escravos como apresentamos neste livro formaram um dos termos de antinomia dessa sociedade Mas não formaram apenas um dos termos dessa antinomia foram um dos seus elementos dinâmicos porque contribuíram para solapar as bases econômicas desse tipo de sociedade Criaram as premissas para que no seu lugar surgisse outro Em termos diferentes as lutas dos escravos ao invés de consolidar enfraqueceram aquele regime de trabalho fato que aliado a outros fatores levou o mesmo a ser substituído pelo trabalho livre MOURA 1988 p 269 Assim é neste sentido de quilombo como práxis da liberdade criadora das premissas de um novo tempo histórico que se pode interpretar a intervenção política proposta pelo constitucionalismo haitiano no início do século XIX Ao ter a abolição como princípio programático e uma série de cláusulas que visavam incidir ainda que de maneira indireta na geopolítica internacional da época forjavase um aparato jurídico a orientar a prática do Estado e dos seus agentes na direção do fim da escravidão tanto no plano interno como diplomático Um constitucionalismo quilombola pois operava nas frestas entre a ambiguidade e a opacidade no desgaste astuto e sagaz do sistema 2798 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 escravista Ademais por meio da cidadania diaspórica instrumentalizava concretamente aquilo que circulava no imaginário de pessoas negras mundo afora há um lugar deste lado do Atlântico onde não há servidão e o negro é livre A escravidão não é inquebrantável e o chamado do art 44 da Constituição de 1816 positivava isso Neste sentido que o constitucionalismo haitiano dialoga com a concepção de quilombo desenvolvida por Beatriz Nascimento Como argumenta Alex Ratts entre 1970 e 1980 o quilombo emerge como uma questão para as ciências humanas Rompendo com o pacto do silêncio ou a perspectiva que estudava a questão racial a partir da questão negraproblema negro intelectuais negros começam a utilizar e difundir uma noção de quilombo em relação com os seus projetos políticos e acadêmicos bem como com as dimensões pessoais e coletivas do ser negro no Brasil Beatriz é a maior representante desse giro abrindo um novo paradigma de pesquisa informado pelas premissas da generalidade da experiência quilombola no território brasileiro e da continuidade física e espacial dessas comunidades Ademais baseada nas experiências de territorialização quilombola includente de negros e outros setores subalternos o quilombo é uma terra mãe imaginada isto é um território de liberdade não apenas referente a uma fuga mas uma busca de um tempoespaço de paz Este território é habitado por um corpo negro plural que constrói e qualifica outros espaços negros de várias durações e extensões nos quais seus integrantes se reconhecem RATTS 2007 p 59 Assim o quilombo faz parte dos sistemas alternativos organizados pela população negra como escolas de samba favelas terreiros grupos de estudos barracões e etc Neste sentido Beatriz pensa a historicidade do seu significado Primeiro uma instituição africana de origem angola Posteriormente território político em contraponto à sociedade escravista na Colônia e no Império formando brechas de liberdade Mais recentemente a partir do século XX o quilombo dentro de uma ética nacional corretiva da comunidade imaginada perpassada por uma utopia de Brasil mais justo Assim a partir da década de 1970 os movimentos negros valeramse da retórica do quilombo para afirmar outros valores e possibilitar uma outra narrativa sobre o passado em reação contra o colonialismo cultural RATTS 2007 GOMES 2011 O quilombo como expansão do imaginário sobre as noções de povo resistência território e liberdade Assim a variedade da ideia de quilombo ao longo do tempo expressa uma poética territorial baseada na redefinição da liberdade e da igualdade pela experiência da diáspora africana nas Américas 2799 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 Neste sentido fala Beatriz Nascimento Quilombo passou a ser sinônimo de povo negro sinônimo de comportamento do negro e esperança para uma melhor sociedade Passou a ser sede interior e exterior de todas as formas de resistência cultural Tudo de atitude à associação seria quilombo desde que buscasse maior valorização da herança negra Durante sua trajetória o quilombo serve de símbolo que abrange conotações de resistência étnica e política Como instituição guarda características singulares do seu modelo africano Como prática política apregoa ideais de emancipação e cunho liberal que a qualquer momento de crise da nacionalidade brasileira corrige distorções impostas pelos poderes dominantes O fascínio de heroicidade de um povo regularmente apresentado como dócil e subserviente reforça o caráter hodierno da comunidade negra que se volta para atitude crítica frente às desigualdades sociais a que está submetida NASCIMENTO 2007 p 124125 Neste sentido o quilombo é uma história de reivindicação do ser no espaço e no tempo expressão daquilo que se exige como de direito Quilombo é uma história Essa palavra tem uma história Também tem uma tipologia de acordo com a região e de acordo com a época o tempo Sua relação com seu território É importante ver que hoje o quilombo traz pra gente não mais o território geográfico mas o território a nível duma simbologia Nós somos homens Nós temos direito ao território à terra Várias e várias e várias partes da minha história contam que eu tenho o direito ao espaço que ocupo na nação E é isso que Palmares vem revelando nesse momento Eu tenho direito ao espaço que ocupo dentro desse sistema dentro dessa nação dentro desse nicho geográfico dessa serra de Pernambuco A terra é o meu quilombo Meu espaço é meu quilombo Onde eu estou eu estou Quando eu estou eu sou NASCIMENTO 1989 Assim quando o constitucionalismo haitiano faz do princípio do solo livre esse direito de habitar e ser cidadão de um território para todas as potenciais vítimas do empreendimento colonial ele transforma o princípio do quilombo o direito ao espaço que ocupo na nação em programa de Estado E não é um mero direito abstrato a um lugar no planeta mas um direito que nasce da negação da repartição territorial legada pela modernidade europeia ao afirmar uma outra partilha da terra e do possível Por meio do vínculo entre solo diáspora e cidadania conjuga o ser com as noções ambivalentes e interdependentes do onde estou e quando estou fundindo por meio do direito aquilo que o colonialismo e o racismo fraturaram O solo não só como sentido de espaço mas de tempo e consequentemente de movimento Da mesma forma que no sentido quilombola apontado por Beatriz o projeto constitucional haitiano corrige o relato histórico do constitucionalismo moderno Primeiro ao desvelar uma práxis constitucional silenciada a qual procurou enfrentar e atacar justamente os vínculos entre constituição 2800 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 e escravidão na aurora da cultura jurídica moderna Segundo ao inserir decididamente pessoas negras na história da identidade constitucional expande nossa imaginação ética formulando outros valores soluções e práticas para os problemas da liberdade e igualdade A utopia e o devir haitiano com suas criativas soluções constitucionais legam resoluções e lições importantíssimas para a contemporaneidade em que o globo é ameaçado pelos efeitos planetários e devastadores da plantation pela universalização da concepção senhorial de propriedade absoluta pela deslocamento forçado de milhões de pessoas na condição de refugiados e pela sonegação do futuro nas mais diversas formas seja pelos arautos do fim da história seja pela imposição do pensamento único do capital seja pelo fatalismo moral que nos acomete quando vivemos numa realidade em que as desgraças ocorrem de minuto em minuto Os inspirados inovadores e disruptivos arranjos constitucionais haitianos nos levam à formulação do quilombo elaborada por Abdias Nascimento No livro O quilombismo 2019 Abdias dialoga com a experiência e a tradição de pensamento dos quilombos no Brasil para delas extrair e afirmar uma agenda política e institucional propositiva de reorganização do estado e da sociedade Na sua acepção os quilombos foram e são uma resistência sistemática física e cultural que integram a prática da liberdade e o controle da própria história A autodeterminação nos seus âmbitos materiais e simbólicos Tratase de uma práxis afrobrasileira e afroamericana de afirmação humana de larga amplitude Ao longo da experiência negra no Brasil foi fator de mobilização disciplina e modelo de organização dinâmica território de afirmação da consciência e da liberdade segundo elementos afrodiaspóricos no sentido dado por Beatriz Nascimento Em uma difusão consistente da resistência o quilombo representa também a torsão imposta pelo negro isto é a apropriação dos mecanismos que a sociedade dominante concedeu ao seu protagonismo com a maliciosa intenção de controlálo Assim nessa reversão do alvo o negro se utiliza dos propósitos não confessados de domesticação qual bumerangue ofensivo NASCIMENTO 2019 p 283 Esse bumerangue ofensivo pode estar nas táticas de esconderijo e opacidade da luta na sociedade de plantation como argumenta Nohora Arrieta Fernández 2021 Que se reflete e está na dobra de elementos da cultura hegemônica a seu favor nos usos da linguagem por meio de um palavreado recheado de ironias tirações ambiguidades e ziguezagues um estilo discursivo quilombola 2801 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 Esse estilo pode ser rastreado na própria tradição revolucionária haitiana Com a sua ascensão à principal liderança da insurgência em São Domingos Toussaint logo ganhou a alcunha de Louverture isto é a abertura aquele que abre caminhos O epiteto pode ter sido dado pelos oficiais franceses para descrever sua capacidade de se apropriar de posições inimigas além de apontar o seu talento diplomático e conciliatório Louverture expressava a capacidade de construir vias desbravar veredas e abrir caminhos em direção à conquista dos seus objetivos Por outro lado Louverture significava a aspiração de outro futuro A abertura como porta de entrada para o amanhã como ponto de partida Neste sentido Louverture estaria associada a Papa Legba loá do vodu haitiano que ocupa o mesmo lugar de Exu nas religiões de matriz africana no Brasil Legba é o agente da comunicação portador da palavra intermediário entre os planos espiritual e material É também o senhor das encruzilhadas capaz de abrir os portões do destino HAZAREESINGH 2020 A estratégia de Toussaint seria uma estratégia exuniana tática de linguagem política pautada pela ambiguidade e troça de jogar com as convicções dos seus oponentes para ludibriálos A tiração de onda guerreira Aparentava ser o que não era caminhando e conectando diferentes mundos africano antilhano e europeu o dos escravizados e dos livres Louverture conseguia criar trazer e circular mensagens fazendo da palavra mecanismo de mobilização ação existência e resistência costura das possibilidades de destruição do colonialismo Toussaint seria o mestre de cerimônias do rito revolucionário assim como Legba era do vodu quando sua figura era evocada com o seguinte canto no início dos rituais da religião Papa Legba ouvri barriè pour moins Papa Legba abra o portão para mim HAZAREESINGH 2020 p 43 Voltando a Abdias ele argumenta que perante um estado antinegro existente desde a colônia o quilombismo surge como um conceito científico históricosocial que critica e rejeita o universalismo cínico proposto pelo eurocentrismo É um instrumento conceitual descritivo e operativo isto é tratase de um modelo de análise dos fenômenos sociais ao mesmo tempo em que propõe princípios políticos Sua episteme originase do ser um humano como sujeito e objeto científico revertendo a razão moderna que teve o branco como sujeito e o negro o seu objeto Segundo Abdias a ética quilombista está nucleada num anticapitalismo que se reinventa na direção para o futuro Tem como base o comunitarismo o igualitarismo econômico a solidariedade a convivência e a comunhão existencial originadas da propriedade coletiva da terra NASCIMENTO 2019 2802 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 Dessas formulações Abdias articula uma agenda institucional e normativa concreta a qual ele divide em Propostas de Ação para o Governo Brasileiro e Alguns Princípios e Propósitos do Quilombismo A primeira apresentada em 1977 no Colóquio do Segundo Festival Mundial de Artes e Culturas Negras e Africanas Festac realizado em Lagos Nigéria em 1977 expõe e organiza uma série de medidas que representam o acúmulo do movimento negro até aquele momento A articulação de Abdias é fundamental tendo em vista que boa parte das proposições ali elencadas conformaram a agenda do movimento negro pósredemocratização nas últimas décadas Nas propostas podemos ver a necessidade de realização de pesquisas e debate público sobre racismo no Brasil com a inclusão da raça nos censos o ensino de história da África e da diáspora a adoção de medidas compensatórias e afirmativas bem como reparatórias fundamentalmente vinculadas à propriedade e ao território como distribuição de terras e reforma agrária a construção de museus e realização de exposições sobre arte afro brasileira a criminalização do racismo a garantia de igualdade de oportunidades e salários para negros e brancos no mercado de trabalho redistribuição de renda ações afirmativas para o Instituto Rio Branco para oficiais superiores nas Forças Armadas e para os altos escalões do Governo Federal medidas de inclusão nos órgãos representativos Senado Câmara e assembleias estaduais e municipais e no poder judiciário e desenvolvimento de uma política diplomática SulSul especialmente com a África NASCIMENTO 2019 Entre erros acertos utopias e desenganos aí estão as bases institucionais e as orientações normativas sobre as quais a população negra pressionou e construiu o estado brasileiro pósConstituição de 1988 representando um dos maiores esforços civilizatórios e democratizantes da história do país DUARTE e QUEIROZ 2019 p 187188 Já em Alguns Princípios e Propósitos do Quilombismo Abdias formula objetivos de reorganização do estadonação inspirado na República de Palmares O ponto de partida é o igualitarismo democrático fundado numa economia comunitária e cooperativa A terra é propriedade nacional de uso coletivo e o trabalho é um direito mas também uma obrigação social Os trabalhadores que criam a riqueza agrícola e industrial da sociedade quilombista são os únicos donos do produto do seu trabalho Entre os seus princípios estão os direitos da criança e do adolescente como possibilidade do amanhã o incentivo institucional à criatividade e às realizações dos povos avassalados pelo colonialismo a realização de políticas democráticas de gênero a centralidade da questão 2803 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 ambiental e a crença na possibilidade de transformação das relações de produção e da sociedade de modo geral por meios não violentos e democráticos NASCIMENTO 2019 p 305 Portanto o quilombo de Abdias Nascimento revela também uma preocupação basilar sobre o que fazer e o como fazer O quilombo é a organização concreta expressa direta e objetiva de uma nova normatividade e institucionalidade A ausência do medo de operar o arsenal jurídico para criar condições e oportunidades alternativas de organização da vida individual e coletiva Transformar utopias em práxis resolutiva A pragmática do sonho revolucionário Pois é neste sentido que os haitianos se valeram do léxico e do arcabouço constitucional para construir sua organização política soberana depois da mais universal das revoluções NESBITT 2008 QUEIROZ 2020 As perguntas eram infinitas e muitas vezes insondáveis como construir uma nação depois de uma terrível guerra e diante de um território fraturado socialmente Como viabilizar os princípios de igualdade racial e abolicionismo transnacional quando o mundo inteiro ainda é ferrenhamente escravista Como produzir e trazer bem comum numa geopolítica do capital que reserva às Antilhas o lugar por excelência da sociedade de plantation Como conjugar o princípio da liberdade em uma sociedade que vive permanentemente sob a ameaça de invasão estrangeira e recolonização as quais podem ser feitas por meio de tratados de reconhecimento diplomático ou pela pura e simples ocupação Também com erros e acertos avanços e contradições o constitucionalismo haitiano tentou responder a essas questões especialmente diante da situação de crise estrutural e constante sob a qual vive o negro no planeta Esta crise que no limite é a própria negação ôntica do negro como sujeito de direitos é o que paira por trás da poética constitucional haitiana Neste sentido o arranjo normativo se aproxima do quilombo de Abdias em diferentes níveis seja em se valer do negro como significante universal de onde se constrói o sentido de humano de cidadão e da lógica política seja também nas preocupações e extremas contradições sobre o lugar do trabalho Tanto para Abdias como para os constitucionalistas haitianos o trabalho é um direito universal mas com um extremo senso de responsabilidade estrutural No caso específico do estado do Haiti ele chegará formalmente a ser compulsório diante da dívida imposta pela França em 1825 O modelo de trabalho do Código Rural era o lado oculto da diplomacia imperialista PEREIRA 2020 Por outro lado o trabalho coletivo e responsável organizado em torno do lakou da herança da maronage e das reinvenções práticas da África no Caribe será a 2804 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 base da vibrante e massiva sociedade rural haitiana aquilo que Jean Casimir chamou de povo soberano que foi capaz de restaurar o território devastado pela plantation e pela guerra e garantir a soberania alimentar no pósrevolução CASIMIR 2020 SHELLER 2006 GONZALEZ 2019 Portanto os sentidos de práxis rebelde território de liberdade e institucionalidade afrodiaspórica permitem aproximar e reler a experiência constitucional haitiana por meio das lentes do quilombo Quilombo que se aproxima dos palenques territórios de liberdade construídos por negros na Colômbia Como argumenta Carlos Valderrama Rentería há uma longa tradição do pensamento afrocolombiano que enfatiza a construção do território na sua dimensão simbólica a partir da sua construção social e cultural isto é dos significados e sentidos atribuídos a ele RENTERÍA 2018 p 96 Diante de um estado que sempre excluiu negou e violentou a população negra essa construção simbólica muitas vezes se deu por meio da tradição oral repertórios orais tais como mitos lendas adivinhações contos relatos histórias e cantos cujo conteúdo conseguiu preservar características gerais e descontinuidades de uma memória histórica social e cultural de acontecimentos históricos que contribuíram aos processos de formação comunitários e identitários das comunidades negras RENTERÍA 2018 Assim o território surge como um espaço produtor de linguagem e também como experiência que é construída por meio da linguagem A partir da acepção de Rogerio Velásquez Rentería chama de palenque literário um espaço público subalterno um contrapúblico em que homens e mulheres afrocolombianos se encontram e relacionam para contar e cantar o recorrido o gozado e o sofrido ao mesmo tempo que os inventam RENTERÍA 2018 p 105106 No mesmo sentido Alfredo Vanín argumenta que após a desescravização a diáspora interna se desenvolveu seguindo rios mares e selvas os quais foram construídos e imaginados como espaços de liberdade VANÍN 2017 Tanto Vanín como Velásquez dizem que essa experiência forjou um sentido míticopoético do território fundado numa postura relacional isto é uma construção do território definido pelas interações simbólicas do físico do humano do ambiental e do espiritual RENTERÍA 2018 p 106 A terra portanto é uma comunidade de fala e de pensamento Neste sentido mergulhado na tradição do pensamento negro do Pacífico colombiano Alfredo Vanín expõe a articulação entre território linguagem e tempo 2805 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 O território míticopoético pertence ao mundo simbólico Porque não basta habitar e povoar um território há que seguir criandoo e essa é a tarefa da imaginação poética Todas as culturas têm estabelecido seus mundos hiperbóreos seus mundos encantados e sobrepostos e também os nãoplusultra Mundos onde vivem espíritos visões que são outras realidades A água é a água mas esconde segredos a selva não somente está cheia de árvores guarda mais seres do que se crê nos dizem os mitos Os territórios simbólicos engrandecem os territórios da realidade imediata os preenchem de força de identidades novas de revelações insuspeitáveis Acontecem no nãotempo mas são a sua vez alimentados pelo passado e pelo presente Um historicismo a secas semearia aos homens e às mulheres no passado um sociologismo simples no presente A imaginação poética nos transfere mais além do tempo No Pacífico se vive o eterno presente uma viagem cíclica do acontecer como as migrações por cidades e rios Narradores decimeiros versadores orais músicos de tambor e marimba e poetas e novelistas da literatura escrita têm ajudado a criar esse universo feito de muitos mundos de tempos convergentes e nos têm ensinado que a profundidade da história repousa na palavra decantada que se renova sempre VANÍN 2017 p 46 Ao refletir sobre a permanência da décima entre os povos negros do Pacífico colombiano7 Vanín argumenta que a palavra semeia o território e joga com limites geográficos próprios em contraposição ao imposto pela geografia colonial A linguagem expande o território para além da realidade cotidiana excede países e continentes faz universal o decimeiro desconhecido que talvez nunca deixou suas habitações ribeirinhas ou marítimas mas teve a capacidade de imaginar o planeta embarcado numa concha frágil de molusco8 O território poeticamente construído é memória coletiva estilo de vida e filosofia Aponta que a éticaestética da modernidade negra não é apenas um discurso alternativo naquilo que entendemos como conteúdo mas também nos modos formas e 7 Pela beleza do trecho segue por inteiro Me perguntei faz muitos anos seguindo a inquietude de alguns investigadores por que a décima glosada tão difícil permaneceu nessas terras E a resposta me chegou anos depois porque é circular como as viagens pelo mesmo rio ou de um rio a outro desde o rio nutritivo até o outro lado da cordilheira inclusive até outro país Mas viagens em busca de vida e não viagens por ociosidade a viagem por viajar como criticava o padre Bernardo Merizalde no seu famoso livro senão porque o meio natural exuberante mas ecologicamente frágil exigia migrar sempre para não retirar frutos somente de uma parte e também para estender famílias Mas sempre existia a possibilidade de retorno Ainda nas odisséias dos clandestinos de barcos mercantes dos Ulises negros que criaram a epopeia do guerreiro urbano hoje caído no esquecimento com novas expressões e modos de ocupar lugares com a chegada do narcotráfico Então entendi muito claro que entre tantas tarefas que assumiu a décima uma delas era didática outra era de semear o território na palavra e jogar com os limites geográficos próprios em contraposição aos impostos pela geografia colonial E eu soube subindo um dia ao Patía porque pude nomear alguns povos ao acordarme de um fragmento de uma décima de José Anilo Sinisterra Por Tamaje iba glosandopor Gallinazo iba seriopor Pirí argumentandoen la isla e Playael Medio VANÍN 2017 p 4647 8 A décima citada é Yo me embarqué a navegaren una concha de almejaa rodiar el mundo enteroa ver si hallaba coteja VANÍN 2017 p 47 2806 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 estilos de expressão Essa poética funde aquilo que o eurocentrismo supostamente separou cultura e política arte e justiça É essa poética que podemos encontrar na experiência constituinte e constitucional haitiana Experiência que tem como memória do ponto inaugural não a redação e assinatura de textos escritos em salões fechados mas a cerimônia vodu festiva e religiosa de Bois Caïman Liderada por sacerdote Boukman e pela mambo sacerdotista Cécile Fatiman ali se definiram as estratégias iniciais do levante de escravizados e se estabeleceu um compromisso comunitário entre vivos mortos e espíritos SHILLIAM 2017 Uma Revolução que inicia ao som de tambores e com danças espiralares na floresta onde os olhos da CasaGrande jamais chegam e as entidades se achegam num território que sobrepõe o plano carnal e o imaterial e que legou uma declaração ética transmitida oralmente para as gerações seguintes O deus que criou o sol que nos dá a luz que levanta as ondas e governa as tempestades embora escondido nas nuvens observanos Ele vê tudo que o branco vê O deus do branco o inspira ao crime mas o nosso deus nos pede para realizarmos boas obras O nosso deus que é bom para conosco ordena nos que nos vinguemos das afrontas sofridas por nós Ele dirigirá nossos braços e nos ajudará Deitai fora o símbolo do deus dos brancos que tantas vezes nos fez chorar e escutai a voz da liberdade que fala para os corações de todos nós JAMES 2007 p 93 Como argumenta Robbie Shilliam a cerimônia de Bois Caïman tensiona tropos hegemônicos na interpretação da Revolução Haitiana O eurocêntrico isto é que ela foi uma simples consequência da Revolução Francesa O crioulo que afirma que ela foi uma Revolução a partir do zero E o retido sendo um processo de retenção das culturas circuladas pelo Atlântico Por outro lado aponta que a Revolução deve ser lida diante do alto percentual de africanos que viviam em São Domingos em 1791 50 dos 50000 escravizados a maioria proveniente do Congo Essa africanidade estava não somente nas nações e maroons espalhados pelo território da colônia mas também em lideranças do processo como Toussaint e Dessalines SHILLIAM 2017 Neste sentido a cerimônia vodu que inaugura a Revolução pode ser entendida como a busca por justiça numa episteme em que o conhecimento prático e a agência política são sentidas e obtidas através dos loás DUARTE 2011 SHILLIAM 2017 O terreiro como poder constituinte em que o sujeito constitucional não é o eu da filosofia ocidental soberano e que nasce a partir de um encontro fora de si mesmo mas sim uma articulação da consciência que sugere que o eu é espiritualmente e comunalmente distribuído Consciência que se expressa por meio de um loá particular isto é o fazer a 2807 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 cabeça é um eu que se manifesta mediado por um espírito geralmente herdado familiarmente e que é fixado em algum ponto da vida adulta A possessão montagem do loá sobre o corpo como um cavaleiro monta num cavalo significa que neste momento resta apenas os aspectos físicos e objetivos do corpo enquanto a consciência do cavalo é substituída pela do loá chefe da cabeça Fora dos padrões explicativos da ciência colonial o loá opera como uma manifestação real no mundo humano canalizando forças cósmicas Assim o poder constituinte manifestado em Bois Caïman é atravessado por um conhecimento e inspiração mediados pelos loás fazendo com que as pessoas despertassem do torpor zumbificante da escravidão e se preparassem para a guerra da liberdade Portanto argumenta Shilliam no terreiro da cerimônia vodu a comunidade foi resantificada ganhando força cósmica e direção na sua busca por justiça por meio da mediação dos loás os quais canalizaram forças do mundo espiritual para ultrapassar e exceder o controle dos senhores Portanto não foram escravizados que se reuniram na floresta mas sim os chefes da rebelião e seus loás movidos pelas armas e pela luta por autodeterminação SHILLIAM 2017 Assim os tambores de Bois Caïman abrem um ponto que cria linguagem realidade por meio do batuque Este ponto visa guerrear e conquistar o sistema genocida da plantation que não era só uma realidade material mas também um mal uso da ciência espiritual pelos brancos escravocratas A justiça necessariamente deveria ser feita por meio de poderes manipulativos com o esquentamento de objetos pelo fogo e o sacrifício de um porco negro para Ezili Kawoulo a loá das sociedades secretas protetora do povo e vingadora implacável daqueles que renegam a universalidade humana Como Iansã Ezili é o espírito das tempestades raios e trovões e anuncia o julgamento dos escravocratas O ponto aberto em 1791 não teria sido fechado sendo disputado nas mais diversas etapas da construção nacional como na escolha das cores da bandeira nas versões da Declaração de Independência e nas constituições9 9 Segundo Robbie Shilliam as cores azul e vermelha para além da ideia da utilização da base da bandeira francesa são as cores da família do loá Ogum Ogum é um ferreiro e combina os elementos do frio e do calor da conciliação e da conquista Junto com o loá Ayizan loá protetor de Dessalines eles estariam associados à perseguição da justiça e eventualmente a reconciliação numa nova ordem Dessa forma o azul e vermelho representariam posições mais absenteístas e conciliatórias em torno do marco da independência como aquelas atreladas às lideranças que buscaram negociar com os franceses Já as cores negras e vermelhas posteriormente escolhidas pelo próprio Dessalines para a bandeira demarcaria o princípio índigena e negro no início do Haiti e do seu marco legalinstitucional numa rearticulação das alianças dos povos colonizados contra o colonialismo Assim a bandeira vermelha e preta estava diretamente associada às práticas de resistência anticolonial da população indígena ciampula que haviam sido incorporadas pela religião vodu e às sociedades secretas Eram cores que indicavam alguém mais conquistador do que conciliador implicando muitas vezes uma concentração de poderes É dentro desse contexto que Shilliam procura perceber a 2808 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 Portanto Bois Caïman é poder constituinte manifestado numa construção míticopoética do território Da mesma forma pode ser interpretada a Declaração de Independência com a sua oralidade o diálogo e a responsabilidade perante os mortos a manifestação feroz do ímpeto por justiça a rejeição absoluta do legado colonial em seu plano material e imaterial o estilo sensorial e perceptivo na descrição e visualização da passagem do tempo da escravidão para a liberdade e na concepção de que a nação soberana seria erguida sobre tumbas dos seus ancestrais os quais vigiariam e guiariam os rumos da autodeterminação individual e coletiva Essa construção simbólica do território também está na poética constitucional que faz do Haiti lar de todos os condenados da terra O constitucionalismo haitiano por meio da humanidade negra do solo livre e da cidadania diaspórica jogou com limites geográficos próprios e na acepção de Vanín rompeu com a cartografia colonial por trás das categorias de ius soli e ius sanguinis No mesmo sentido borrou as fronteiras imperiais estabelecidas pelo nó entre estado região e raça Solo livre e cidadania diaspórica expandiram o território haitiano fazendo dos conceitos jurídicos formas poéticas Como o decimeiro forjaram uma poesia constitucional como o canto daquele que embarca numa concha frágil e dela vê vive imagina e ama o planeta Conclusão samba e a poética constitucional haitiana Tout Moun Se Moun Pa gen Moun pase Moun10 O nosso samba pode iluminar os significados constituintes de Bois Caïman e o tanto de corpo e ritmo que faltam a todas as teorias discursivas do direito Muniz Sodré 1998 argumenta que o ritmo é a organização do tempo do som aliás uma forma temporal sintética que resulta da arte de combinar as durações o tempo capturado segundo convenções determinadas No caso da música africana e da diáspora negra o ritmo demarca um tempo homogêneo a temporalidade cósmica ou mítica que se volta Constituição de 1805 como um documento de mediação vinculação e ligação pois tenta vincular e limitar os poderes de Dessalines estabelecendo um espaço de vivência comum negro e indígena para as massas ao mesmo tempo que remove desse espaço o imperador e seus generais SHILLIAM 2017 Para mais sobre as relações entre as cores da bandeira e o vodu veja DELICES 2016 10 Do crioulo haitiano Todo mundo é humano ninguém é mais importante que o outro Princípio de Princípio de Bois Caïman CERIN 2022 2809 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 continuamente sobre si mesmo onde todo fim é o recomeço cíclico de uma situação O ritmo sincopado expressa nos toques e efeitos sobre o corpo a demarcação espiralar do tempo A repetição relacional sempre em nível diverso plural outro Neste sentido por meio da figura de Exu Sodré explicita a relação entre linguagem tempo e ritmo no samba Dentro da dimensão de sentido gerada pelo samba tradicional é imprescindível a presença física do corpo humano No sistema nagô o som equivale ao terceiro termo de um processo desencadeado sempre por pares de elementos genitores seja a mão batendo no atabaque seja o ar repercutindo nas cordas vocais E o som da voz humana a palavra explica Juana Elbein dos Santos é conduzida por Exu um princípio dinâmico do sistema nascido da interação dos genitores masculinos e femininos Por sua vez o axé que confere significação aos elementos do sistema se deixa conduzir pelas palavras e pelo som ritualizado Junto com as palavras junto com o som deve darse a presença concreta de um corpo humano capaz de falar e ouvir dar e receber num movimento sempre reversível SODRÉ 1998 p 67 Assim como no samba com suas rodas terreiros barracões e giras a cerimônia o sentido espiritualrevolucionário e o imaginário coletivo construídos em torno de Bois Caïman apontam para a fundação e construção da comunidade política por meio da música do ritmo do ressoar que sai de cada batida da mão no couro dos tambores na marcação com os pés em forma de dança e culto no baile na espiralar de corpos indo e vindo vindo e indo na linguagem sonora nos rituais de encantada e inebriante alegria em que o riso o palavreado e o cantar irrompem mesmo diante da mais adversa das circunstâncias Um poder constituinte que funda a comunidade em outro tempo em outra ética muito diferente dos pressupostos morais que embasam a acepção contratualista do constitucionalismo moderno como os delírios de autoconservação narcísica do interesse individual do cálculo econômico e no limite da necessidade pragmática de transformar seres humanos em mortosvivos11 Como visto essa éticaestética afrodiaspórica pode ser encontrada na poética constitucional haitiana Por meio da linguagem jurídica essa poética interviu na criação e nos sentidos dos direitos humanos diante de um contexto no qual a escravidão o colonialismo e o racismo eram a norma Assim o constitucionalismo haitiano não só fornece uma crítica às narrativas dominantes sobre a invenção desses direitos como aponta também para uma tradição moral silenciada e sonegada construída pela 11 Para uma crítica à ética contratualista moderna veja QUEIROZ 2022 2810 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 experiência da população negra nas Américas e no Caribe No artigo ao retomar e teorizar essa história foram desvelados outros conteúdos para os direitos de liberdade igualdade propriedade cidadania e nacionalidade os quais ressoam e apontam soluções para os dilemas e contradições do tempo presente Além disso ao fazer do signo negro símbolo concomitante dos significados de habitante cidadão e humanidade este constitucionalismo reverte o devir negro do mundo pelo devir haitiano Um devir que reformula a noção de humano estando nela tanto os sonhos de liberdade afogados em rios de sangue como o passado o presente e o futuro das lutas por autodeterminação travadas em cada canto do planeta Referências bibliográficas ANDERSON Benedict Comunidades imaginadas reflexiones sobre el origen y la difusión del nacionalismo México Fondo de Cultura Económica 2016 ARMITAGE David GAFFIELD Julia Introduction The Haitian Declaration of Independence in an Atlantic Context IN GAFFIELD Julia ed The Haitian Declaration of Independence Creation Context and Legacy Charlottesville e Londres University of Virginia Press 2016 AZEVEDO Celia Maria Marinho de Onda negra medo branco o negro no imaginário das elites século XIX São Paulo Annablume 2008 p 104 BOSI Alfredo Dialética da Colonização São Paulo Companhia das Letras 1992 BRITO Luciana da Cruz Temores da África segurança legislação e população africana na Bahia oitocentista Salvador EDUFBA 2016 BUCKMORSS Susan Hegel e Haiti Novos Estudos 90 2011 CASIMIR Jean The Haitians A Decolonial History EUA The University of North Carolina Press 2020 CERIN Melodie Do you know the 12 principles of Bwa Kayiman A conversation with Professor Pierre Michel Chery Woy Magazine setembro de 2022 Disponível em httpswoymagazinecom20220922doyouknowthe12principlesofbwa kayimanaconversationwithprofessorpierremichelchery Acesso em 28092022 CHALHOUB Sidney Medo branco de almas negras escravos libertos e republicanos na cidade do Rio Revista Brasileira de História São Paulo v8 no 16 marago 1988 DELICES Patrick Oath to Our Ancestors the flag of Haiti is Rooted in Vodou IN 2811 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 JOSEPH Celucien L e CLEOPHAT Nixon S Vodou in Haitian Memory the ideia and representation of vodou in Haitian Imagination Lanham Lexington Books 2016 p 21 32 DUARTE Evandro Piza Do medo da diferença à igualdade como liberdade as ações afirmativas para negros no ensino superior e os procedimentos de identificação de seus beneficiários Tese de Doutorado na UnB Brasília 2011 DUARTE Evandro Piza QUEIROZ Marcos A Revolução Haitiana e o Atlântico Negro o constitucionalismo em face do lado oculto da modernidade Direito Estado e Sociedade n 49 p 1042 2016 Nota do editor IN BERTÚLIO Dora Lucia de Lima Direito e Relações Raciais uma introdução crítica ao racismo Rio de Janeiro Editora Lumen Juris 2019 p 187188 DUARTE Evandro QUEIROZ Marcos RODRIGUES João Victor Nery Fiocchi Constituições Haitianas PósRevolucionárias Antirracismo e a Reformulação da Cidadania no prelo DUBOIS Laurent Avengers of the New World The Story of The Haitian Revolution USA Harvard University Press 2004 Haiti The Aftershocks of History New York Metropolitan Books 2012 FANON Frantz Os Condenados da Terra Juiz de Fora Ed UFJF 2005 FERNÁNDEZ Nohora Arrieta Poéticas Amargas Estéticas y Políticas de la Plantación de Azúcar en Brasil y el Caribe Tese de Doutorado na Georgetown University 2021 FERRER Ada Haiti Free Soil and Antislavery in the Revolutionary Atlantic The American Historical Review vol 1171 2012 p 4066 FICK Carolyn The Making of Haiti the Saint Domingue Revolution from below USA The University of Tennessee Press 1990 FISCHER Sibylle Constituciones haitianas ideología y cultura posrevolucionarias Casa de las Américas Octubrediciembre 2003 p 1635 GAFFIELD Julia Complexities of Imagining Haiti A Study of National Constitutions 1801 1807 Journal of Social History 411 2007 p 81103 Liberté Indépendance Haitian Antislavery and National Independence Mulligan William Bric Maurice A Global History of Antislavery Politics in the Ninettenth Century Nova York Palgrave Macmillan 2013 GHACHEM Malick W Law Atlantic Revolutionary Exceptionalism and the Haitian Declaration of Independence IN GAFFIELD Julia ed The Haitian Declaration of Independence Creation Context and Legacy Charlottesville e Londres University of Virginia Press 2016 GLISSANT Edouard Poetics of Relation Estados Unidos The University of Michigan Press 2010 2812 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 GOMES Flávio dos Santos De olho em Zumbi dos Palmares histórias símbolos e memória social São Paulo Claro Enigma 2011 GOMES Rodrigo Portela Kilombo uma força constituinte Tese de Doutorado em Direito Universidade de Brasília 2022 GONZALEZ Jhonhenry Maroon Nation A History of Revolutionary Haiti EUA Yale University Press 2019 GONZALEZ Lélia A categoria políticocultural de amefricanidade Tempo Brasileiro Rio de Janeiro n 9293 1988 p 6982 Por um feminismo afrolatinoamericano ensaios intervenções e diálogos Rio de Janeiro Zahar 2020 HARRISS Joseph A How the Luisiana Purchase Changed the World Smithsonian Magazine abril 2003 Disponível em httpswwwsmithsonianmagcomhistoryhow thelouisianapurchasechangedtheworld79715124 acesso em 05082022 HAZAREESINGH Sudhir Black Spartacus The Epic Life of Toussaint Louverture Nova York Farrar Straus and Giroux 2020 HIGINO ísis Get Out a perseguição e o terror nas estruturas da supremacia branca mundial nos permitem refúgio do racismo Monografia em Relações Internacionais Universidade de Brasília 2018 HUNT Lynn A invenção dos direitos humanos uma história São Paulo Companhia das Letras 2009 JAMES C L R James Os jacobinos negros Toussaint LOuverture e a revolução de São Domingos São Paulo Boitempo Editorial 2007 MARQUESE Rafael e SALLES Ricardo orgs Escravidão e capitalismo histórico no século XIX Cuba Brasil e Estados Unidos Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2016 MBEMBE Achille Crítica da Razão Negra Lisboa Antígona 2014 Políticas da Inimizade Lisboa Antígona 2017 MOURA Clóvis Rebeliões da Senzala 4ª ed Porto Alegre Mercado Aberto 1988 NASCIMENTO Abdias O quilombismo documentos de uma militância panafricanista São Paulo Editora Perspectiva Rio de Janeiro Ipeafro 2019 NASCIMENTO Beatriz O conceito de quilombo e a resistência cultural negra IN RATTS Alex Eu sou atlântica sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento São Paulo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Instituto Kuanza 2007 p 124125 Textos e narração de Ôrí Ôrí Direção de Raquel Gerber Brasil Estelar Produções Cinematográficas e Culturais 1989 131min 2813 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 NESBITT Nick Universal Emancipation The Haitian Revolution and the Radical Enlightenment Charlottesville University of Virginia Press 2008 PARRON Tâmis A política da escravidão na era da liberdade Estados Unidos Brasil e Cuba 17871846 Tese de Doutorado em História Universidade de São Paulo 2015 Escravidão e as fundações da ordem constitucional moderna representação cidadania soberania c 1780c1830 no prelo PAST Mariana La Revolución Haitiana y El reino de este mundo repensando lo impensable Casa de las Américas eneromarzo 2004 p 87 88 PEREIRA Bethânia Santos Uma Nação em Construção trabalho livre e soberania no código rural haitiano 18261843 Dissertação de Mestrado em História na Unicamp 2020 PEREIRA Paulo Fernando Soares Os quilombos e a nação inclusão constitucional políticas públicas e antirracismo patrimonial Rio de Janeiro Lumen Juris 2020 PIRES Thula Legados de Liberdade Revista Culturas Jurídicas 0820 2021 p 291316 QUEIROZ Marcos A mais universal das Revoluções Jacobin 14082020 Disponível em httpsjacobincombr202008amaisuniversaldasrevolucoes acesso em 05082022 Caribe corazón de la modernidad Cultura Latinoamericana 282 234250 2018 Constitucionalismo Brasileiro e o Atlântico Negro a experiência constituinte de 1823 diante da Revolução Haitiana Rio de Janeiro Lumen Juris 2017 O Haiti é Aqui ensaio sobre formação social e cultura jurídica latinoamericana Brasil Colômbia e Haiti século XIX Tese de Doutorado em Direito na Universidade de Brasília 2022 RATTS Alex Eu sou atlântica sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento São Paulo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Instituto Kuanza 2007 RENTERÍA Carlos Alberto Valderrama El arte literario y la construcción oral del território pensamiento crítico afrocolombiano Revista Colombiana de Antropologia v 54 n 2 2018 p 96 RODRIGUES João Victor Nery Fiocchi Cidadania Diaspórica e o Caso Mapuche os atlânticos negros e vermelho na reterritorialização de direitos Dissertação de Mestrado na Universidade de Brasília 2018 SHELLER Mimi Democracy After Slavery Black Publics and Peasant Radicalism in Haiti and Jamaica Florida EUA University Press of Florida 2006 SHILLIAM Robbie Race and Revolution at Bwa Kayiman Millennium Journal of International Studies 453 2017 p 269292 2814 Rev Direito e Práx Rio de Janeiro Vol 13 N04 2022 p 27742814 Marcos Queiroz DOI 10159021798966202270815 ISSN 21798966 Silva Karine de Souza Perotto Luiza Lazzaron A Zona do NãoSer do Direito Internacional os povos negros e a Revolução Haitiana Revista Direito e Justiça Reflexões Sociojurídicas 1832 2018 125153 SODRÉ Muniz Samba o dono do corpo Rio de Janeiro Mauad 1998 TROUILLOT MichelRolph Haiti State Against Nation The Origins and Legacy of Duvalierism Nova York Monthly Review Press 1990 VANÍN Alfredo Las culturas fluviales del encantamiento Memórias y presencias del Pacífico colombiano Colômbia Universidad del Cauca Sello Editorial 2017 Sobre o autor Marcos Queiroz Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa e Universidade de Brasília ORCID httporcidorg0000000336447595 Email marcosvlqgmailcom O autor é o único responsável pela redação do artigo 31 ATIVIDADE 1 I CONCEITO E FORMAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS a Contextualização da Obra O artigo Constitucionalismo Haitiano e a Invenção dos Direitos Humanos de Marcos Queiroz publicado na Revista Direito e Práxis v 13 n 04 2022 propõe uma leitura descolonial da história dos direitos humanos tomando como eixo fundante a experiência políticoconstitucional do Haiti entre os anos de 1801 e 1816 A partir de uma crítica epistemológica ao eurocentrismo jurídico Queiroz reivindica o protagonismo negro na constituição de um novo paradigma de humanidade e universalidade ancorado na experiência de resistência e reconstrução do povo haitiano após a Revolução b Estrutura e Fundamentação O artigo está organizado a partir de uma profunda articulação entre análise histórica textual e filosófica A Revolução Haitiana é posicionada como um marco inaugural e estrutural para a compreensão de uma outra matriz dos direitos humanos não como abstração liberal mas como criação insurgente enraizada no trauma colonial da escravidão e na experiência de luta pela liberdade Queiroz fundamenta seu argumento com base em autores como Achille Mbembe Frantz Fanon Sibylle Fischer Ada Ferrer e Édouard Glissant além de análises dos próprios textos constitucionais haitianos c Análise Temática Tema central A formação histórica e filosófica dos direitos humanos à luz do constitucionalismo haitiano em contraposição ao modelo eurocentrado dominante Problematização Por que a historiografia tradicional silencia sobre o papel da Revolução Haitiana na gênese dos direitos humanos e insiste em invisibilizar o constitucionalismo negro e antiescravista Tese Queiroz defende que os direitos humanos enquanto projeto de mundo não nasceram exclusivamente no Ocidente mas encontraram no Haiti uma de suas expressões mais radicais e autênticas Para ele a poética constitucional haitiana opera uma crítica às narrativas hegemônicas sobre a invenção dos direitos humanos e ao mesmo tempo fornece um imaginário moral mais amplo e plural do constitucionalismo QUEIROZ 2022 p 2775 Conceitos estruturantes O autor apresenta seis categorias centrais para compreender essa outra concepção de direitos humanos Direitos universais do negro Materialidade da escravidão Cidadania diaspórica Propriedade abolicionista Princípio do solo livre Nação quilombo d Análise Crítica e Interpretativa A proposta de Queiroz rompe com a narrativa liberal ocidental que associa a emergência dos direitos humanos à racionalidade iluminista destacando que tal narrativa oculta sistematicamente o racismo estrutural e o colonialismo como fundações da modernidade A experiência haitiana é apresentada como um verdadeiro divisor de águas na história da humanidade Nas palavras do autor A história da modernidade pode ser dividida em antes e depois de 1804 QUEIROZ 2022 p 2776 Para Queiroz o Haiti representou uma virada radical um Estado fundado por ex escravizados que não apenas aboliu a escravidão mas inscreveu na sua constituição o enfrentamento explícito ao colonialismo e à desigualdade racial Ao contrário do universalismo abstrato europeu o Haiti forjou uma universalidade concreta nascida do chão da opressão Rejeitando abstrações que se colocam fora do tempo afirma que os princípios jurídicos devem emergir da experiência materialmente vivida p 2784 O texto aponta ainda que o constitucionalismo haitiano formula uma ética política da encruzilhada uma concepção de direitos humanos fundada na dor na memória na luta e na coletividade Nesse sentido Queiroz afirma que o devir haitiano aponta uma construção da universalidade humana que carrega a memória de todos aqueles que foram são e possivelmente serão deixados de fora daquilo que se entende como humanidade p 2784 II AS DIMENSÕES DOS DIREITOS HUMANOS NO CONSTITUCIONALISMO HAITIANO As primeiras constituições haitianas do século XIX em especial aquelas promulgadas entre 1801 e 1843 propõem uma ruptura paradigmática com o modelo liberal europeu ao reconfigurar em termos jurídicos e simbólicos as próprias bases sobre as quais se fundam os direitos humanos Como analisa Queiroz essas cartas constitucionais não apenas imaginam uma nova comunidade política nacional mas reinventam radicalmente os contornos da humanidade a partir da experiência histórica da escravidão e da revolução Seis categorias centrais emergem desse processo a Universalismo Negro A Constituição de 1805 realiza um gesto semântico de enorme potência ao designar todos os haitianos independentemente de tonalidade ou origem como negros Tratase de uma manobra simbólica e jurídica que inverte o signo da dominação colonial e transforma o termo historicamente subordinado em categoria universal e emancipadora Nesse movimento a negritude deixa de ser uma marca biológica ou racial para se tornar um posicionamento político e ontológico fundado na experiência da opressão e na afirmação da liberdade b Escravidão como Fundamento do Constitucionalismo Diferentemente das constituições liberais europeias que operavam sob o silêncio cúmplice quanto à escravidão o Haiti inscreve em seus textos fundacionais a abolição da servidão como cláusula inaugural da nova ordem política A Constituição de 1801 declara expressamente que todos os homens nascem livres e iguais e que não haverá escravos no território haitiano transmutando a abolição de um imperativo ético abstrato em norma constitucional estruturante da organização do Estado A escravidão assim é tratada não como exceção histórica mas como questão de jurisdição e soberania c Cidadania Diaspórica A partir de 1816 o Haiti inaugura uma concepção revolucionária de cidadania todos os africanos indígenas e seus descendentes que pisassem em território haitiano podiam ser reconhecidos como haitianos e após um ano de residência adquirir os plenos direitos de cidadania Tal política que excede os modelos clássicos de jus soli e jus sanguinis institui o que Queiroz denomina de cidadania diaspórica um dispositivo jurídico de acolhimento radical a todos os corpos historicamente marcados pelo colonialismo O Haiti se converte assim em pátria da diáspora negra em território de refazimento ontológico para os condenados da terra d Propriedade Abolicionista Na contramão do constitucionalismo liberal europeu que naturalizava a propriedade sobre corpos o Haiti redefine o conceito de propriedade como o direito ao fruto do próprio trabalho Essa definição presente nas constituições de 1806 e 1816 abole juridicamente a lógica escravista e retira do horizonte político qualquer possibilidade de reificação humana A propriedade tornase um atributo da liberdade e da dignidade incompatível com a existência de qualquer forma de dominação sobre o outro e Princípio do Solo Livre Derivado de tradições jurídicas prérevolucionárias o princípio do solo livre é radicalizado no Haiti e transformado em cláusula constitucional de alcance universal Todo africano ou indígena que ingressasse no país era imediatamente liberto e em tempo oportuno reconhecido como cidadão O território haitiano assume assim a função de um espaço jurídico de proteção incondicional um solo em que a liberdade não é uma promessa mas uma realidade imanente A nação se estrutura como enclave antiescravista em meio a um Atlântico ainda colonizado f Nação Quilombo O Haiti é imaginado como uma nação quilombo um espaço de rebelião contínua refúgio político e reconstrução simbólica do mundo a partir da experiência da escravidão Como nos quilombos brasileiros a nação haitiana é territorialidade insurgente espaço de experimentação social e de reinvenção dos vínculos comunitários sob novas bases A Constituição tornase assim um instrumento de luta e sobrevivência um artefato de resistência frente às tentativas de recolonização e dominação imperialista III LINHA DO TEMPO DOS DIREITOS HUMANOS Quadro 1 Linha do Tempo ANO EVENTO OU DOCUMENTO RELEVÂNCIA 1685 Código Negro Code Noir Legislação francesa que institucionaliza a escravidão nas colônias normatizando a exploração dos africanos como propriedade 1789 Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão França Proclama a universalidade dos direitos mas silencia sobre a escravidão um universalismo contraditório e excludente 17911804 Revolução Haitiana Primeira revolução liderada por escravizados que alcança sucesso subvertendo a ordem colonial e racial imposta pela Europa 1801 Constituição de Toussaint Louverture Garante liberdade e igualdade racial no Haiti ainda como colônia francesa abolindo a escravidão 1804 Independência do Haiti Criação do primeiro Estado independente liderado por ex escravizados com um projeto político anticolonial e antirracista 1805 Constituição de Dessalines Proclama que todos os cidadãos haitianos são negros como afirmação de identidade coletiva e ruptura com o colonialismo proíbe a posse de terra por brancos 1816 Constituição da Reunificação Consolida o ideal de cidadania diaspórica e o princípio de solo livre acolhendo negros perseguidos de outras partes do mundo 1825 Imposição da dívida de independência pela França França reconhece a independência haitiana em troca de uma dívida impagável recriando a dominação sob nova forma econômica 1843 Nova Constituição Haitiana pós período petista Expansão dos direitos da cidadania para fortalecer o Estado e o vínculo com a diáspora africana Fonte Marcos Queiroz1 2022 1 Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa Distrito Federal Brasília Brasil Email marcosvlqgmailcom ORCID httporcidorg0000000336447595

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