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Sacrae scripturae sermo humilis Escrevendo na segunda metade do século XIV Benvenuto Rambaldi da Imola comenta assim o verso do Inferno II 56 e comminciommi a dir soave e piana e começou a me dizer suave e simples que alude à linguagem de Beatriz et bene dicit quia sermo divinus est suavis et planus non altus et superbus sicut Virgilii et poetarum e diz bem porque a fala divina é suave e simples não elevada e soberba como a fala de Virgílio e dos poetas Essa distinção entre o estilo da sabedoria divina e o estilo dos grandes poetas da Antigüidade recordanos toda uma tradição crista Se o termo suavis tem um emprego bastante vago e geral ao menos no âmbito das distinções entre os vários genera dicendi gêneros de discurso 1 o termo planus sempre remeteu à linguagem simples popular compreensível a todos portanto ao mais baixo dos três estilos na escala da teoria clássica Na tradição da eloqüência clássica planus é o contrário do estilo culto do estilo figurado e do estilo sublime e patético Numa passagem de Isaac vel Anima VII 5 citado por Forcellini s v planus Santo Ambrósio diz que o sábio que dominando perfeitamente os 1 De qualquer maneira o termo é por vezes empregado para designar a condescendência da Sagrada Escritura que procura persuadir pela docura e pela beleza sensível Ver Bernardo de Clairvaux In Cantica I 5 eloquii suavitas 15 Ensaios de literatura ocidental recursos da eloquência e da ciência deseja explicar algo de obscuro condescendit tamen ad eorum inscitiam qui non intelligunt et simplici atque planiorae atque usitato sermone utitur ut possit intelligi é condescendente porém com a ignorância daqueles que não compreendem e usa de discurso simples mais chão e usual de modo que possa ser compreendido um pouco mais adiante ele combina planior mais chão e humilior mais humilde nesse mesmo sentido2 Benvenuto estaria então dizendo que Beatriz está se servindo de um estilo simples popular humilde inculto a fim de enunciar as verdades eternas da fé e da sabedoria divina Mas como isso seria possível Como é possível que a teologia que guarda os mistérios mais sublimes e mais velados ao entendimento humano como os da Trindade e da redenção possa servirse de um gênero de linguagem que a Antigüidade admitia apenas para os temas baixamente realistas da comédia ou no discurso judiciário para os casos privados e pecuniários O próprio Dante falando de sua Comédia cujo tema é dos mais sublimes o destino das almas após a morte a justiça divina revelada exprimese por vezes de maneira que faz pensar nas idéias de seu comentador Benvenuto para designar seu poema utiliza o termo commedia enquanto que falando da Eneida diz a Virgílio lalta tua tragedia Numa passagem freqüentemente citada da epístola a Cangrande Dante explica a escolha do título a partir de duas considerações o poema é uma comédia em primeiro lugar porque seu final é feliz e em segundo lugar porque seu estilo é baixo e humilde remissus est modus 2 Ver Quintiliano livro VIII fim do capítulo 5 onde se diz a respeito dos adversários de um estilo demasiado brilhante nihil probantes nisi planum et humile et sine conatu aqueles que não aprovam nada que não seja chão humilde e sem esforço 16 Sacrae scripturae sermo humilis et humilis quia locutio vulgaris in qua et mulierculae communicant o gênero de elocução é simples e humilde porque a linguagem é vulgar na qual até mulherzinhas se comunicam De início pode parecer que a segunda consideração diz respeito apenas ao emprego da língua italiana mas não se deve compreendêla assim pois o próprio Dante criou o estilo sublime em língua italiana tanto na teoria do De vulgari eloquentia como na prática das grandes canzoni é ele o criador da idéia do vulgare illustre e o fundador do que se denomina humanismo em língua vulgar Sendo assim Dante não poderia classificar uma obra como baixa pelo mero fato de ser escrita na língua materna e não em latim Suas declarações sobre o estilo baixo e humilde na Divina comédia não dizem respeito ao emprego da língua italiana e sim à escolha de termos baixos e ao pronunciado realismo de várias passagens do poema3 duas coisas que lhe pareciam incompatíveis com o gênero sublime e trágico tal como o entendia a partir do estudo das teorias da Antigüidade De todo modo ele se deu conta de que seu poema ultrapassava os limites do estilo baixo Ainda na mesma passagem da epístola a Cangrande Dante cita os versos da Ars poetica de Horácio que permitem ao poeta cômico utilizar o estilo trágico em certas ocasiões e viceversa sem dúvida para indicar que ele próprio Dante lança mão dessa possibilidade Mais Dante sabe muito bem que tanto seu estilo como seu tema são dos mais sublimes É inútil enumerar aqui as passagens que o demonstram Notemos apenas que por duas vezes ele chama sua Comédia poema sacro que ele aspira aos louros dos grandes poetas que Virgílio é seu modelo que ele trata da matéria mais alta que possa existir que as forças humanas mal 3 Ver Nicola Zingarelli 18601935 Dante in Storia letteraria dItalia terceira edição pp 71920 17 ensaios de literatura ocidental alcançam e onde ninguém antes dele se aventurou que ele implora pela inspiração das Musas de Apolo e do próprio Deus O poema sacro al qual ha posto mano e cielo e terra não é uma obra do estilo baixo bem o sabe seu autor em que pesem o título e as explicações que ele fornece Tampouco se trata de um poema de estilo sublime na acepção antiga há demasiado realismo demasiada vida concreta demasiado biotikon no sentido de vida biológica como diziam os teóricos gregos tanto nas palavras como nos episódios e não apenas entre os habitantes do Inferno mas também no Purgatório e muitas vezes até no Paraíso Se há sublime aqui deve ser um sublime diverso do sublime clássico um sublime que contém e abrange o baixo e o biotikon Dante viuo bem ainda que tenha encontrado dificuldade em se expressar claramente sobre o problema Benvenuto da Imola compreendeuo ao dizer ao fim de sua introdução unde si quis velit subtiliter investigare hic est tragoedia satyra et comoedia daí se alguém quiser investigar minuciosamente verá que na Divina comédia há tragédia sátira e comédia E os românticos do século XIX buscaram inspiração aí ainda que de maneira um pouco superficial pois não se tratava apenas de misturar o grotesco ao sublime Indagar pelas origens dessa nova concepção de alta poesia é tarefa bem delicada A teoria medieval anterior a Dante não parece dizer nada a respeito mas a prática se encontra bem enraizada na arte popular cristã a partir do fim do século XI tanto no teatro litúrgico como na estatuária das catedrais A história de Cristo contém todos os seus elementos quanto mais popular ela se torna tanto mais seu realismo de origem intimamente ligado a seu caráter sublime se desenvolve e floresce É inegável que se trata de um sublime de lavra inteiramente cristã suscitado e inspirado pela história de Cristo e pelo estilo da Sagrada Escritura de modo geral Sua teorização encontrase nos Sacrae scripturae sermo humilis escritos dos Pais da Igreja ainda que mesmo aí entre os séculos VI e XI seus traços sejam bastante fracos e vagos com exceção dos Atos dos mártires Nos Pais da Igreja a concepção de um estilo simultaneamente humilde e sublime encarnado na Sagrada Escritura não se forma por via puramente teórica ela se impõe por assim dizer pelas circunstâncias pela situação em que se achavam A concepção tomou forma no curso da polêmica com pagãos cultos que se riam do grego defeituoso e do realismo baixo dos livros cristãos em parte também em consequência do incômodo que a leitura desses mesmos livros causava naqueles cristãos educados com esmero nas escolas de retórica Por sua formação clássica e pela força de seu ânimo que o faz viver cada uma de suas idéias e lhes empresta um vigor de expressão incomparável Santo Agostinho ocupa o lugar mais importante para o nosso problema Em suas Confissões III 5 ele conta como começou a ler a Sagrada Escritura sem conseguir entendêla ainda não estava pronto para penetrar seu sentido e seguirlhe os passos já que ela lhe parecia demasiado aquém da dignidade ciceroniana Ainda não compreendera que sua aparência exterior era humilde mas que seu conteúdo era sublime e envolto em mistério rem incessu humilem successu excelsam et velatam mysteriis uma coisa humilde no começo sublime conforme se prossegue e coberta de mistérios que era necessário lêla como uma criança o faria e ainda que ela crescia como uma criança Mais tarde ele compreende eoque mihi illa venerabilior et sacrosancta fide dignior apparebat auctoritas quo et omnibus ad legendum esset in promptu et secreti sui dignitatem in intellectu profundiore servaret verbis apertissimis et humillimo genere loquendi se cunctis prae bens et exerens intentionem eorum qui non sunt leves corde ut exciperet omnes populari sinu et per angusta foramina paucos ad se traiceret multo tamen plures quam si non tanto apice auctoritatis emineret nec turbas gremio sanctae humilitatis haurriret ibid VI 5 a autoridade da Sagrada Escritura pareceume tanto mais venerável e digna de sacrossanta fé quanto mais era disponível para a leitura de todos e reservava a dignidade de seu mistério à intelecção mais profunda oferecendose a todos com as palavras mais claras e com o mais simples estilo de discurso despertando o interesse daqueles que não são levianos de coração para receber a todos em seu seio comum e pela porta estreira transportar a Ti uns poucos mas muito mais numerosos do que se ela estivesse no elevado cume da autoridade e não atraísse multidões ao regaço da santa humildade Nestas passagens tratase sobretudo do contraste entre o estilo humilde que se presta aos mais simples e os mistérios sublimes que nele se ocultam mistérios que se revelam a uns poucos não aos eruditos e aos orgulhosos mas àqueles qui non sunt leves corde os que não são levianos de coração por mais simples que sejam Esta idéia se encontra disseminada por toda a obra de Santo Agostinho por exemplo no primeiro capítulo de De Trinitate Sancta escriptura parvulis congruens nullius generis rerum verba vitavit ex quibus quasi gradatim ad divina atque sublimia noster intellectus velut nutritus assurgeret A Santa Escritura adaptandose a crianças não evitou palavras de nenhum gênero de assuntos a partir dos quais nosso intelecto como que gradativamente alimentado se ergueu até os mais divinos e sublimes ou no segundo livro de De Doctrina Christiana onde fala da Scripturarum mirabili altitudine et mirabili humilitate Escrituras de admirável altura e admirável humildade ainda várias vezes ao comentar a linguagem do livro do Gênese e muito extensamente numa carta a Volusiano CXXXVII 18 Nesta última passagem ele diz expressamente que nem sequer os mais profundos mistérios da Escritura vêm expressos em linguagem soberba ea vero quae in mysteriis occultat nec ipsa eloquio superbo erigit quo non audeat accedere mens tardiuscula et inerudita quasi pauper ad divitem sed invitat omnes humili sermone quos non solum manifesta pascat sed etiam secreta exerceat veritate hoc in promptis quod in reconditis habens ela a Santa Escritura que se oculta mistérios mas não se ergue num discurso soberbo ao qual não ousaria aproximarse um espírito menor mais vagaroso e sem erudição como um pobre em direção ao rico Em vez convida todos com uma fala humilde para que os alimente não só com uma virtude evidente mas também para que os exercite com uma verdade secreta possuindo no que está evidente o que possui no que está oculto Tratase portanto em todas estas passagens de uma síntese entre o humilde e o sublime efetuada pela Sagrada Escritura nelas o humile significa antes simplicidade de elocução do que realismo e o sublime ou altum se refere antes à profundeza dos mistérios que ao sublime poético Mas um termo como humilis ou por vezes abiectus que exprime ao mesmo tempo a humildade do ânimo cristão a baixa extração social e a simplicidade popular do estilo4 conduzia facilmente à noção de realismo até mesmo por ser empregado correntemente para designar o populacho em contraste com as classes elevadas os pobres por oposição aos ricos A própria vida de Cristo do Verbo encarnado modelo de vida e morte santa e sublime decorrera como uma vida comum ou como as cenas de uma comédia entre as humiles personae que haviam sido seus primeiros discípulos Santo Agostinho fala frequentemente desses imperitissimi et abiectissimi muito ignorantes e rasteiros de baixíssima condição desses piscatores et publicani pescadores e publicanos que o Senhor elegera antes de todos e explica os motivos para tanto5 insistindo sobre esse ponto por saber como os pagãos cultos se riem do sermo piscatorius dos Evangelhos Não apenas os companheiros de Cristo mas Ele mesmo manifesta a antítese entre o humilde e o sublime em sua forma mais aguda e apaixonante não mais no plano da elocução mas no dos próprios fatos Dentre as numerosas passagens em que Santo Agostinho sublinha o paradoxo do sacrifício de Jesus Cristo citarei apenas uma que se acha nas Enarrationes in Psalmos XCVI 4 Ille qui stetit ante iudicem ille qui alapas accepit ille qui flagellatus est ille qui consputus est ille qui spinis coronatus est ille qui colaphis caesus est ille qui in ligno suspensus est ille cui pendenti in ligno insultatum est ille qui in cruce mortuus est ille qui lancea percussus est ille qui sepultus est ipse resurrexit Dominus regnavit Saeviant quantum possunt regna quid sunt factura Regi regnorum Domino omnium regnorum Creatori omnium saeculorum Aquele que esteve diante do juiz aquele que levou tapas aquele que foi flagelado aquele que levou cuspidas aquele que foi coroado de espinhos aquele que foi coberto de golpes aquele que foi pendurado num lenho aquele que pendurado no lenho foi insultado aquele que morreu na cruz aquele que foi ferido com a lança aquele que foi sepultado este mesmo ressuscitou Cometam os reinos quantas crueldades possam o que farão contra o Rei dos reinos contra o Senhor de todos os reis contra o Criador de todos os séculos Talvez fosse possível dizer que uma tal passagem apenas resume a narrativa da Paixão não contendo nada que já não estivesse nos Evangelhos ou que as epístolas de São Paulo não tivessem exprimido várias vezes por exemplo Filipenses 2 711 Mas nem os Evangelhos nem São Paulo haviam enfatizado com tanta força a antítese entre o realismo baixo da humilhação e a grandeza sobrehumana que se reúnem aqui para sentila em toda a sua força era necessário um homem formado em meio aos ideais clássicos de separação de estilo que não admitiam nenhum elemento realista no sublime nem a humilhação física do herói trágico É verdade que em certos círculos de poetas e teóricos o ideal do sublime trágico sofrera certas restrições e modificações incomparáveis entretanto à violência da humilhação realista que a vida e a paixão de Cristo exibem Santo Agostinho percebeu que a humilitas dos Evangelhos era ao mesmo tempo uma nova forma de sublime uma forma que lhe parecia se comparada às concepções de seus contemporâneos pagãos mais profunda mais verdadeira mais substancial também ela à maneira dos Evangelhos em que figura excipit omnes populari sinu recebe todos no seu seio comum e não apenas todos os homens a despeito de sua condição social mas também toda sua vida baixa e cotidiana Alteravase profundamente a concepção do homem daquilo que no homem pode ser admirável e digno de imitação Jesus Cristo tornase o modelo a ser seguido e é pela imitação de sua humildade que podemos nos aproximar de sua majestade foi por essa mesma humildade que ele próprio atingiu o ápice de sua majestade encarnandose não num rei da Terra mas num personagem vil e desprezado Nas pesquisas que se realizaram a respeito do sermo piscatorius por exemplo no célebre livro de Eduard Norden intitul lado Die antike Kunstprosa6 insistiuse talvez exageradamente no ponto de vista técnico e oratório da questão no ponto de vista da arte da prosa Um estilo incorreto realista permeado de provincialismos e formas dialetais não teria chocado ninguém numa comédia ou numa sátira do gênero da Cena Trimalchionis7 O que chocava repugnava e assustava todas as pessoas instruí das era que escritos dessa ordem pretendessem tratar em seu vil jargão dos problemas mais profundos da vida e da morte que tentassem impor sua religião como única religião verdadeira que contivessem a despeito de sua sintaxe incorreta suas palavras grosseiras sua atmosfera baixamente realista trechos impres sionantes pela profundeza de idéias pela autenticidade de tom pelo ardor extático A grande maioria dos pagãos cultos certa mente não se dava conta de tudo isso sequer liam tais escritos e eram perfeitamente sinceros quando falavam a respeito como uma superstitio prava immodica insensata e desmedida supers tição à maneira de Plínio o Jovem em seu relatório ao im perador Trajano Mas pouco a pouco surgiram homens prontos 6 O alemão Eduard Norden 18681941 professor de filologia clássica em Greifswald e Berlim é conhecido sobretudo por seu livro sobre A prosa artística na Antigüidade de 1898 em que estuda os elementos retóricos na composição da prosa grega e latina N T 7 A Ceia de Trimalquião é o mais longo dos fragmentos do Satiricon de Petrônio c 2766 dC N T 24 a ouvir a ler a perceber e a se assustar O que lhes causava re volta não era apenas o estilo mas o emprego desse estilo para tratar de tais matérias Esse é um fato tão evidente que parece desnecessário mencionálo mas podese perdêlo de vista à força de se mergulhar na minúcia das pesquisas estilísticas e é neces sário têlo em mente para compreender o desprezo e o horror das camadas educadas e instruídas que viviam na boa e velha tradição grecolatina bem como para compreender a atitude de muitos Pais da Igreja que buscavam um compromisso adaptan do sua maneira de escrever às normas clássicas Mas os Pais da Igreja não queriam nem podiam alterar o fundamento mesmo de sua crença e esse mesmo fundamento a história de Cristo na Terra conduzia a uma revolução profunda na concepção do sublime e à irrupção da humildade realista As tendências a ocultar ou amenizar a humildade e o realismo da vida de Cristo e sobretudo da Paixão não tiveram sucesso du rável na Igreja do Ocidente Daí resultou uma transformação total na maneira de ver e julgar os homens os fatos e os objetos uma transformação que empresta a estes últimos uma significa ção e uma dignidade inteiramente novas Para explicar melhor o que tenho em mente citarei uma passagem de Santo Agosti nho que me parece particularmente instrutiva No livro quarto do tratado De Doctrina Christiana ele consagra vários capítulos ao estudo dos três gêneros da eloquência tradicional que ele denomina grande temperatum e submissum mostra onde encon trar exemplos deles nas epístolas de São Paulo e nas obras dos Pais da Igreja anteriores a ele mesmo e dá conselhos para a utilização da doutrina na eloquência cristã Esses capítulos traem a profun da influência que a educação clássica e oratória sempre conser vou sobre seu espírito é sobre esse modelo que ele quer formar e desenvolver a arte do sermão Assim está longe de ser um re volucionário consciente no domínio da eloquência Não obs 25 tante a diferença profunda entre o espírito cristão e o espírito da separação de estilos surge desde as primeiras palavras Após haver dito que para Cícero e para os oradores profanos são te mas menores destinados ao estilo baixo aqueles que dizem res peito a questões pecuniárias e grandes aqueles que atingem a vida e a morte dos homens Santo Agostinho declara que na eloquên cia cristã todos os temas são grandes pois loc cit cap 18 quando nos dirigimos ao povo do alto da cátedra haverá sempre que tratar da salvação dos homens não apenas de seu bem estar temporal mas da salvação eterna haverá sempre que salválos da perdição eterna Tudo o que dissermos en tão será grande até mesmo os assuntos de dinheiro qualquer que seja o montante pois não é pequena a justiça que deve mos com certeza e com pouco dinheiro proteger neque enim parva est iustitia quam profecto et in parva pecunia custodire debemus e cita ainda a passagem de 1 Coríntios 6 1 onde São Paulo fala das querelas de ordem material que haviam surgido entre os co ríntios Por que essa indignação do apóstolo essas repreensões essas ameaças Por que ele deixa explodir os sentimentos de sua alma num impulso brusco e inflamado Por que numa palavra ele fala tão majestosamente de coisas tão pequenas As questões do mundo merecem tanto interesse Não decer to Mas ele o faz por justiça por caridade por piedade que são sempre grandes mesmo nas questões menores nenhuma pessoa razoável pode duvidar disso Onde quer que se fale daquilo que pode nos salvar das penas eternas e nos conduzir à beatitude eterna seja em público ou em particular a um ou a vários a amigos ou a inimigos num discurso ininterrupto 26 ou em diálogo em tratados livros cartas longas ou breves é este sempre um grande tema Um copo de água fresca é coisa pequena e vil mas Deus está a dizer algo muitíssimo pequeno e vil minimum aliquid atque vilissimum quando promete que quem oferecer um copo de água ao último de seus servidores não deixará de ter recompensa E quando um orador culto mencionao em seu sermão deve ele pensar que trata de algo menor e que portanto não se deve servir do estilo temperado ou do estilo sublime mas sim do estilo baixo Já não nos aconteceu que falando desse tema ao povo quando Deus estava em nossas palavras algo assim como uma chama jorrasse dessa água fresca arrastando os corações frios dos homens às obras de misericórdia pela esperança da recompensa celeste Essa chama que jorra de um copo de água fresca me parece um belo símbolo do sublime cristão desse sermo humilis que ensina as profundezas da fé aos simples que nos representa o Deus vivo e agonizante ele próprio vil e desprezado entre homens de baixa condição e que a fim de despertar os grandes movimentos da alma não desdenha escolher suas imagens entre objetos de uso comum O sermo humilis que permanece humilde mesmo quando é figurado sempre esteve intimamente ligado às origens e à doutrina do cristianismo mas foi apenas o grande espírito de Santo Agostinho onde se cruzavam e por vezes se chocavam o mundo antigo e a fé cristã que tomou consciência do fato Talvez não seja exagerado dizer que foi ele que deu à Europa o sermo humilis dessa maneira fundando nesse domínio como em outros a cultura medieval lançando as bases desse realismo trágico dessa mistura de estilos que a bem dizer só viria a se desenvolver muitos séculos mais tarde O realismo popular na arte e na literatura floresce a partir do século XII e é só então que se reencontra experimentada a fundo e por vezes maravilhosamente formulada a grande antítese cristã do sublime e do humilde8 Mas alguns dos frutos mais belos do espírito humano só amadurecem lentamente 8 Por exemplo em Bernardo de Clairvaux Epist CDLXIX 2 Patrologia Latina CLXXXII 674 In Cant Cant XXXVI 5 PL CLXXXIII 969 Super Missus est Homilia I 8 PL CLXXXIII 60 In Epiph Dom Sermo I 7 PL CLXXXIII 146 Encontramse passagens similares em vários outros autores da mesma época