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Sermo humilis una voce modesta forse qual fu dallangelo a Maria Dante Paradiso XIV 356 Um sermão de Santo Agostinho o de número 256 na edição maurista¹ pregado em ocasião cuja data por acaso conhecemos² começa da seguinte maneira Quoniam placuit Domino Deo nostro ut hic constituti praesentia corporali etiam cum vestra Charitate illi cantaremus Alleluia quod Latine interpretatur Laudate Dominum laudemus Dominum fratres vita et lingua corde et ore vocibus et moribus Sic enim sibi dici vult Deus Alleluia ut non sit in laudante discordia Concordent ergo prius in nobis ipsis lingua cum vita os cum conscientia Concordent inquam voces cum moribus ne forte bonae voces testimonium dicant contra malos mores O felix Alleluia in coelo ubi templum Dei Angeli sunt Ibi enim concordia summa laudantium ubi est exultatio secura cantantium ubi nulla lex in membris repugnat legi mentis ubi non est rixa cupiditatis in qua periclitetur victoria charitatis Hic ergo cantemus Alleluia adhuc sollicit ut illic possimus aliquando cantare securi Quare hic solliciti Non vis ut sim sollicitus quando ¹ Patrologia Latina XXXVIII 1190 ² Um concílio de bispos celebrado em Cartago em 5 de maio de 418 Ver Wilmart na Revue Bénédictine XLII 1930 p 142 29 Ensaios de literatura ocidental lego Numquid non tentatio est vita hominum super terram Job 7 1 Non vis ut sim sollicitus quando mihi adhuc dicitur Vigilate et orate ne intretis in tentationem Marc 14 38 Non vis ut sim sollicitus ubi sic abundat tentatio ut nobis ipsa praescribat oratio quando dicimus Dimitte nobis debita nostra sicut et nos dimittimus debitoribus nostris Quotidie petitores quotidie debitores Vis ut sim securus ubi quotidie peto indulgentiam pro peccatis adiutorium pro periculis Cum enim dixero propter praeterita peccata Dimitte nobis debita nostra sicut et nos dimittimus debitoribus nostris continuo propter futura pericula addo et adiungo Ne nos inferas in tentationem Quomodo est autem populus in bono quando mecum clamat libera nos a malo Et tamen fratres in isto adhuc malo cantemus Alleluia Deo bono qui nos liberat a malo Quid circum inspicis unde te liberet quando te liberat a malo Noli longe ire noli aciem mentis circumquaque distendere Ad te redi te respice tu es adhuc malus Quando ergo Deus te ipsum liberat a te ipso tunc te liberat a malo Apostolum audi et ibi intellegi a quo malo sis liberandus Condelectur enim inquit legi Dei secundum interiorem hominem video autem aliam legem in membris meis repugnantem legi mentis meae et captivantem me in lege peccati quae est ubi captivantem inquit me in lege peccati quae est in membris meis Putavi quia captivavit te sub nescio quibus ignotis barbaris putavi quia captivavit te sub nescio quibus gentibus alienis vel sub nescio quibus hominibus dominis Quae est inquit in membris meis Exclama ergo cum illo Miser ego homo quis me liberabit Unde quis liberabit Dic unde Alius dicit ab optione alius de carcere alius de barbarorum captivitate alius de febre atque langore Dic tu apostole non quo mittamur aut quo ducamur sed quid nobiscum portemus quid nos ipsi simus dic De corpore mortis huius De corpore mortis huius De corpore inquit mortis huius Rom 7 22 ss 30 Sermo humilis Como agradou a Deus Nosso Senhor que nós corporalmente presentes aqui reunidos convosco e com vossa Caridade a ele cantássemos Aleluia que em latim quer dizer Louvai o Senhor louvemos o Senhor irmãos com vida e palavras com coração e boca com vozes e costumes Pois Deus quer que se lhe diga Aleluia para que não haja discórdia em quem louva Portanto que primeiro em nós mesmos sejam concordes fala e vida voz e consciência Que sejam concordes afirmo palavras e costumes para que boas palavras não venham a testemunhar contra maus costumes Ah feliz Aleluia no céu onde os Anjos são o templo do Senhor Pois é máxima a concórdia dos que louvam onde é sem temor a alegria dos que cantam onde nos membros nenhuma lei luta contra a lei da razão onde não há conflito de desejos em que corra perigo a vitória da caridade Por isso cantemos aqui Aleluia ainda inquietos para que possamos alguma vez cantar ali seguros Por que aqui inquietos Não queres que me inquiete quando leio não é a tentação a vida dos homens sobre a terra Jó 7 1 Não queres que me inquiete quando ainda me dizem Vigiai e orai para que não entreis em tentação Mc 14 38 Não queres que me inquiete aqui onde a tentação é tão grande que a própria oração nos previne quando dizemos Perdoanos nossas dívidas como nós também perdoamos aos nossos devedores Diariamente suplicantes diariamente devedores Queres que eu esteja seguro quando diariamente suplico indulgência pelos pecados auxílio nos perigos Pois toda vez que pelos pecados passados eu digo Perdoanos nossas dívidas como nós também perdoamos aos nossos devedores de imediato pelos pecados futuros eu completo acrescentando e não nos deixes cair em tentação Como um povo pode estar no bem quando comigo exclama livranos do mal E no entanto irmãos embora ainda estejamos neste mal can 31 temos Aleluia ao bom Deus que nos livra do mal Por que olhas em volta de ti para saber do que ele te livra quando é do mal que ele te livra Não vás longe não voltes teu pensamento para todo lado Voltate para ti olha para ti mesmo tu ainda és mau Quando pois Deus te livra de ti mesmo livrate do mal Ouve o Apóstolo e compreende ali de que mal deves ser livrado Eu me deleito diz ele na lei de Deus segundo o homem interior mas percebo outra lei em meus membros que peleja contra a lei da minha razão e que me acorrenta à lei do pecado que existe onde que me acorrenta diz ele à lei do pecado que existe em meus membros Pensei que ela te aprisionava entre não sei que bárbaros desconhecidos pensei que te aprisionava em não sei que nações estrangeiras ou sob o jugo de não sei que homens ou senhores Mas ele diz que existe em meus membros Então exclama junto com ele Infeliz de mim Quem me livrará Quem me livrará do quê Dizeme do quê Do arbítrio um diz Do cárcere diz outro Da escravidão dos bárbaros diz um outro Da febre e da enfermidade diz outro ainda Dize tu apóstolo não para onde somos enviados ou para onde somos conduzidos mas o que carregamos conosco o que nós mesmos somos dize Corpo desta morte Do corpo desta morte Do corpo ele responde desta morte Rm 7 22 ss O texto trata da servidão humana aos pecados ao corpo desta morte Na sequência do sermão que não reproduzimos acima dizse que o corpo da morte do qual Paulo quer se livrar pertence a nós mesmos não podemos nos livrar dele pois mesmo ao morrermos não o estaremos abandonando para sempre Ele permanecerá junto a nós nós o reencontraremos mas não mais como corpo da morte e sim como corpo espiritual e imortal Sermo humilis A apresentação como logo se percebe é retórica ao extremo quase cênica basta ler o texto lentamente e tentar imaginálo proferido pelo pregador Logo no começo o forte e dramático Laudemus Dominum responde a um Laudate Dominum introduzido como simples tradução seguido então do vocativo fratres e das três unidades idênticas vita et lingua corde et ore vocibus et moribus Em grupos sonoros alternantes e antitéticos3 o tom se eleva ao júbilo angélico no qual exultatio secura cantantium contrasta com concordia summa laudantium lex mentis com lex in membris citação do apóstolo Paulo rixa cupiditatis com victoria charitatis para retornar ao Alleluia sobre a terra quando então o tema terreno solliciti aparece em oposição ao securi celestial Uma série de perguntas anáforas isócolos e antíteses4 levanos à fonte da aflição ao mal de que buscamos libertação Perguntas e respostas dominam o resto da passagem o que procuras fora de ti Procura em ti tu mesmo és o mal O mesmo apóstolo é invocado como testemunha e suas palavras que já ressoavam no texto são agora dramatizadas como num interrogatório com repetidas expressões de espanto novas perguntas e confirmações do já dito De que devemos ser libertados Dize de quê Um diz que disso outro diz que daquilo Dize tu apóstolo Do corpo desta morte Do corpo desta morte Do corpo responde ele desta morte Esse modo retórico de expressão deriva no todo como em cada uma de suas partes da tradição acadêmica da Antigüidade 3 Laudatelaudemuslaudantelaudantium cordediscordiaconcordentconcordent voces cum moribus bonae voces malos mores 4 Anáforas Non vis ut sim sollicitus três vezes seguido de vis ut sim securus Quotidie noli Isócolos antitéticos notadamente indulgentiam pro peccatis oposto a adiutorium pro periculis Cf também os ecos sonoros de quomodo quando libera bono malo in te te tu prosseguindo com liberandus Não apenas as figuras sonoras os membros de medidas idênticas com finais homófonos as anáforas perguntas e antíteses mas também o próprio diálogo simulado eram parte do legado das escolas retóricas A pregação cristã desenvolveuse desde cedo segundo o modelo da diatribe da declamação acadêmica sobre temas de filosofia moral na qual as opiniões do adversário eram reproduzidas em discursos simulados a que o próprio orador em seguida respondia formando assim uma cena dramática5 São vários os exemplos alguns provenientes do início mesmo da era cristã É característico o inquit que aparece várias vezes até a última linha de nosso texto6 À época de Santo Agostinho por volta de 400 dC havia muito que não prevaleciam mais as formas de expressão da literatura cristã primitiva nada ou pouco refinadas e por isso tão desagradáveis para ouvidos antigos educados na tradição grecolatina No Oriente como no Ocidente ocorrera uma fusão ou adaptação A pregação cristã serviase da tradição retórica que impregnava todo o mundo antigo falava por meio das formas a que estavam acostumados os ouvintes todos eles inclinados a julgar um discurso pelo efeito sonoro das palavras O gosto pela oratória difundirse até mesmo na África púnica onde entretanto não se falava absolutamente um latim puro Os ouvintes aplaudiam e se empolgavam quando uma figura retórica lhes agradava de modo especial atestamno os pregadores famosos do 5 U von WilamowitzMöllendorf Der kynische Prediger Tales in Philologische Untersuchungen IV 1881 292 E Norden Die antike Kunstprosa 129 e especialmente 556 Wendland Die hellenistischrömische Kultur cap V 6 Há uma reminiscência literária na própria formulação Sêneca escreve Ad Luc Epist 75 4 quod sentimus loquamur quod loquimur sentiamus concordet sermo cum vita o que sentimos falemos o que falamos sintamos que a fala concorde com a vida Oriente como São João Crisóstomo e do Ocidente como o próprio Santo Agostinho As figuras retóricas parecemnos artificiais pedantes e refinadas demais De fato elas o são e contudo têm raiz no amor universal às eufonias e jogos de palavras de resto o que parece arte refinada a uma certa época pode parecer simples convenção algumas gerações mais tarde As figuras do nosso texto derivam da tradição retórica acadêmica mas o efeito final é de simplicidade subordinadas que estão à clareza pedagógica e a construção das frases soa por vezes quase coloquial Temos aqui uma retórica pragmática composta de elementos solenes e cotidianos destinada à doutrinação e à admoestação Os isócolos sonoros gravamse na mente a exclamação lírica O felix Alleluia in coelo com seus ubi e ibi é simples e didática como se fosse infantil e se não coloquial a pergunta anafórica Non vis ut sim sollicitus está escrita no mais simples dos estilos Finalmente os trechos de diálogo que seguem primeiro a procura pelo mal depois o interrogatório do apóstolo com a tríplice repetição da resposta a cada vez com entoação diferente são uma espécie de teatro didático onde cenas e gestos não se limitam a ensinar a lição mas buscam também representar as reações que a lição deve suscitar A lição de que se trata aqui é entretanto uma das mais difíceis do cristianismo e além disso uma das mais estranhas aos modos de pensar da Antigüidade nós perpetramos o mal apesar de conhecermos e querermos o bem porque estamos sujeitos ao pecado ao corpo diante do qual são impotentes a força de nosso conhecimento do bem e nossa vontade de praticálo Devemos libertarnos de nós mesmos do corpo desta morte e contudo esse corpo nos pertence estará novamente conosco quando da ressurreição Aqui como em milhares de outras ocasiões as formas da retórica antiga servem para apresentar um paradoxo tão difícil e insondável quanto este como algo de estabe 35 lecido e indubitável7 O público de então era igualmente receptivo a tais formas retóricas antigas e a tais conteúdos cristãos Nossa questão é saber quais modificações as formas tradicionais sofreram sob o peso dos novos conteúdos e ao mesmo tempo em que medida elas em sua variante cristã podem ainda ser acomodadas no sistema da retórica antiga Esse sistema consiste em uma hierarquia de níveis de estilo queremos então saber em qual nível dessa hierarquia seria possível encaixar os níveis de estilo presentes em nosso texto O próprio Santo Agostinho manifestouse a respeito Em De doctrina christiana IV 12 ss ele fala da utilização da retórica acadêmica na pregação cristã Não tinha dúvidas sobre a necessidade de o fazer não haveria sentido algum diz ele em abandonar as armas da eloqüência aos representantes da mentira e proibilas aos representantes da verdade Sua concepção dos três níveis tradicionais de estilo o sublime o médio e o baixo segue a de Cícero especialmente no Orator 69 ss Para o ensino e a exegese recomenda o estilo baixo o qual segundo Cícero se não deve ser adornado nem por isso pode ser displicente ou incorreto o médio temperatum onde as figuras retóricas têm seu lugar natural caberia ao elogio e à repreensão à admoestação e à dissuasão e o estilo grandioso ou sublime que não exclui mas também não depende das figuras retóricas deveria suscitar os grandes transportes de emoção destinados a induzir os homens à ação Santo Agostinho crê poder encontrar exemplos dos três níveis de estilo na literatura cristã anterior a sua própria obra 7 Nem sempre com a mesma mestria No Ocidente dificilmente havia outro orador comparável a Santo Agostinho e no Oriente havia poucos Sobre o estilo dos sermões de Santo Agostinho cf Edith Schuchter Zum Predigstil des hl Augustinus LII 1934 115 ss 36 Os exemplos que recolhe nas epístolas paulinas e nos sermões de Cipriano e Ambrósio dão mostra de sua admiração por aquelas passagens em estilo médio compostas de membros sintáticos curtos e estruturalmente idênticos dispostos em pares antitéticos8 Os exemplos de estilo baixo ocupamse principalmente da interpretação de trechos da Bíblia os de estilo médio dois dos quais dedicados ao elogio da virgindade são descritivos e admoestativos sendo que as citações de Cipriano e Ambrósio são suaves e quase ternas Quanto ao estilo sublime Santo Agostinho cita igualmente trechos que utilizam as figuras retóricas granditer et ornate e outros que não o fazem comum a ambos é o tom passional Vale ainda notar que ele recomenda a utilização dos três níveis de estilo no mesmo discurso em nome da variedade seguindo neste ponto a tradição antiga ver por exemplo Quintiliano XII 10 58 ss9 Nos capítulos 22 e 23 indica os modos de variação do discurso advertindo sobretudo contra a introdução abrupta e a utilização prolongada do estilo sublime aconselha utilizar com freqüência o estilo baixo seja com o fim de esclarecer um problema seja para dar maior realce às passagens adornadas ou sublimes 8 De doctr chr IV 20 40 illa pulchriora sunt in quibus propria propriis tamquam debita reddita decenter excurrunt são mais belas as passagens nas quais as palavras restituídas aos seus próprios significados como dívidas pagas fluem adequadamente E mais adiante sobre Romanos 12 16 Et quam pulchre ista omnia sic effusa bimembri circuitu terminantur e quão belamente se encerram todas aquelas falas como que derramadas em períodos bimembres isto é non alta sapientes sed humilibus consentientes sem pretensões de grandeza mas sentindose solidários com os humildes 9 Cícero no começo de De optimo genere oratorum Quintiliano X 2 22 Cf também a eloquendi varietas variedade de elocução em Plínio Epist VI 33 II 5 III 13 etc 37 Ensaios de literatura ocidental Seria possível concluir que segundo a concepção agostiniana o texto que examinamos pertenceria essencialmente ao nível médio com alguma mistura de estilo baixo e didático A riqueza de paralelos e figuras retóricas mais o tom descritivo admoestativo e levemente lírico do começo indicam o estilo médio Um pouco adiante com o elemento didático dos diálogos simulados da diatribe temos o estilo baixo Um uso igualmente vivaz das formas coloquiais da linguagem pode ser encontrado nas passagens tiradas da Epístola aos Gálatas 4 216 que Santo Agostinho no começo do capítulo 20 remete ao estilo baixo É fácil seguir essas idéias de Santo Agostinho quando se tem em mente que sua intenção é dar preceitos práticos para a utilização dos níveis de estilo antigos e que para tanto se apóia em Cícero especialmente na definição ciceroniana do sermo baixo inteiramente voltada para a oratória política e forense Mas seus pressupostos são inteiramente diferentes Quando Cícero citado por Santo Agostinho em De doctrina christiana IV 17 diz no Orator 101 que is igitur erit eloquens qui poterit parva submisse modica temperate magna granditer dicere será eloqüente aquele que conseguir falar de modo submisso sobre coisas pequenas de modo comedido sobre coisas medianas de modo elevado sobre coisas grandiosas ele entende esses graus parva modica magna de modo absoluto parva designa algo de absolutamente baixo como as minúcias dos assuntos de dinheiro e demais acontecimentos cotidianos que devam ser esclarecidos ao longo de um discurso forense O orador cristão não reconhece graus absolutos separando os temas possíveis somente o contexto e a intenção conforme seu objetivo seja instruir admoestar comover passionalmente determinam qual nível de estilo utilizar O tema do orador cristão é sempre a revelação cristã e esta não pode jamais ser um tema baixo ou médio Quando Santo Agostinho ensina que temas cristãos devem ser tratados em estilo médio ou 38 Sermo humilis baixo seu preceito referese tãosomente aos modos de apresentação que devem variar para ser inteligíveis e eficazes a hierarquia pagã não conserva validade alguma O que a literatura antiga e pagã tem a oferecer como temas sublimes ou agradáveis é nãocristão e repreensível com estranheza e embaraço Santo Agostinho aponta em Cipriano uma passagem idílica e média no sentido pagão do termo Mas é no capítulo 18 logo após a citação de Cícero já mencionada que Santo Agostinho se declara mais claramente contra a hierarquia antiga dos temas Parafraseio em seguida essa passagem de forma ligeiramente resumida A tripartição ciceroniana sustentase apenas para os casos forenses não para os temas espirituais com que lidamos Cícero chama de pequenos os temas referentes ao dinheiro e de grandes os que lidam com a salvação e a vida da humanidade os médios estariam entre esses dois casos Isso não pode servir para nós cristãos para nós são grandes todos os temas especialmente quando falamos ao povo do alto do púlpito nosso tema é sempre a salvação da humanidade não só a salvação terrena mas também a eterna de modo que até mesmo questões de dinheiro tornamse importantes a despeito da soma envolvida A justiça não é menor por ser praticada em pequenas questões monetárias pois o Senhor disse Quem é fiel nas coisas mínimas é fiel também no muito Lucas 16 10 São pequenos os pequenos negócios mas é grande quem permanece honesto mesmo neles Santo Agostinho cita em seguida I Coríntios 6 19 onde São Paulo repreende aqueles membros da comunidade que se haviam dirigido aos tribunais pagãos por causa de disputas legais Por que se indigna o apóstolo Por que reage tão energicamente Por que repreende vitupera e ameaça dessa maneira Por que deixa sua irritação aflorar em tom tão amargo e abrupto Qual é afinal o motivo para falar com tanta paixão e em estilo tão grandioso sobre temas tão pequenos As coisas terrenas têm tanto sig39 Ensaios de literatura ocidental nificado assim para ele De modo algum Age assim tãosomente em nome da justiça do amor ao próximo da piedade nenhum homem de mente sã pode duvidar que essas são coisas sublimes mesmo nos casos mais insignificantes Onde quer que falemos do que nos preserva da danação e nos leva à felicidade eterna seja para o povo reunido ou em conversa privada com uma só pessoa ou com muitas com amigos ou com inimigos num discurso ininterrupto ou numa discussão em sermões ou em livros o tema permanece sublime Um copo de água fresca é decerto coisa menor e de pouco valor mas estaria o Senhor a falar de coisas menores e de pouco valor quando promete que aquele que oferecer um copo de água fresca ao último de seus criados não deixará de ter sua recompensa Mateus 10 42 E o pregador que fala a respeito em sua igreja deveria ele pensar que fala de algo menor tendo portanto de utilizar não o estilo médio não o estilo alto mas sim o estilo baixo Mas não se viu há pouco que enquanto falávamos ao povo a respeito e não sem perícia pois Deus estava conosco uma espécie de chama irrompeu naquela água fresca algo que inflamou os frios corações dos homens e por meio da esperança na recompensa celestial impeliuos a obras de misericórdia Só depois dessa advertência aliás em estilo passionalmente elevado começa Santo Agostinho a explicar em que medida a doutrina da tripartição dos estilos pode ser utilizada na prática pelo orador cristão A advertência é de significado fundamental os objetos baixos ou corriqueiros uma questão de dinheiro ou um copo de água fresca perdem esse caráter quando introduzidos num contexto cristão prestandose então ao estilo sublime e inversamente como se poderá depreender dos esclarecimentos seguintes de Santo Agostinho os maiores mistérios da fé podem ser expostos nas palavras simples e acessíveis do estilo baixo Isso representa um desvio tão marcante da tradiçã 40 retórica e literária que chega quase a destruir seus fundamentos A tradição baseavase na idéia de gêneros oratórios ou literários nos quais temas e modos de expressão deveriam concordar quanto à dignidade era por isso essencial classificar os temas desse ponto de vista Mas os temas classificados como baixos eram muito variados o baixo abrangia a informação factual os objetos considerados insignificantes ou desimportantes os temas da vida privada e do cotidiano o cômico o erotismo jocoso o registro satírico realista ou obsceno Além da sátira do mimo do iambo incluíamse aí tanto a fábula de animais como o discurso forense a respeito de temas privados ou econômicos assim era incerta a fronteira com os gêneros médios Em conseqüência dessa variedade também eram muito diversas as descrições dos modos de expressão e tratamento nos gêneros baixos sendo igualmente várias as subclasses Já mencionamos acima a descrição de Cícero no Orator da qual parte Santo Agostinho para Cícero o estilo baixo não deve ser adornado mas de uma elegância transparente à primeira vista fácil de praticar mas que exige verdadeira mestria o estilo baixo tornase então dificilmente discernível do ideal ático deloûs tornar manifesto e não psykhagogeîn seduzir Mas a concepção dominante prescrevia ao estilo baixo um realismo vivo e um tom fortemente popular nos temas como nos modos de expressão10 A separação de 41 10 Não é este o lugar de analisar as variantes dessas concepções e as diferentes opiniões e tendências entre os autores antigos a esse respeito Entre as publicações mais recentes podese mencionar C Jensen Herakleides von Pontos 1936 e F Wehrli em Phyllobolia für Peter von der Mühll 1946 Característica da concepção mais elegante do estilo baixo é o termo subtilis que ocorre não somente em Cícero Orator 100 mas também na passagem frequentemente citada dos comentários de Porfírio a Horácio Carmina IV 2 278 onde se diz que à diferença de Píndaro Horácio escreve suas odes em estilo modesto e menor e contudo estilos é particularmente nítida no teatro antigo a comédia põe em cena pessoas e situações da vida cotidiana em estilo baixo ou ocasionalmente médio enquanto a tragédia lida com personagens lendários príncipes e heróis Em todos os casos atribuise máxima importância à noção de harmonia entre o tema e o modo de expressão É ridículo e monstruoso kakozelia tapeinosis indecorum tratar de temas elevados e sublimes em termos cotidianos baixos ou realistas bem como tratar de coisas cotidianas em estilo sublime Volta e meia encontrase tal idéia em Cícero Horácio Quintiliano no autor de Peri Hypsous Do sublime e mais tarde nos incontáveis retores que propagaram a teoria clássica A doutrina persistiu como um fantasma por toda a Idade Média até recobrar vida nova com o Humanismo Vale lembrar que os grandes oradores e críticos da Antigüidade tardia não eram pedantes de espírito estreito eram elásticos o bastante para reconhecer a eficácia de uma expressão energicamente realista no interior de uma peça sublime11 e sabiam perceber e muitas ve refinado e doce parva quidem et humilia sed subtilia ac dulcia Sobre o realismo cf outra passagem em Porfírio a respeito de Horácio Sat I 10 56 Quanto ao estilo dramático cf a passagem famosa e influente na Ars Poetica de Horácio especialmente 89 ss e 225 ss Uma passagem interessante sobre um pintor realista encontrase em Plínio Hist nat XXXV 112 e quibus fuit Piraeicus humilia quidem secutus humilitatis tamen summam adeptus est gloriam Tonstrinas sutrinasque pinxit et asellos et obsonia ac similia ob haec cognominatus rhyparographos in iis consummatae voluptatis quippe eae pluris veniene quam maximae multorum entre os quais estava Pireico que tendo se ocupado de temas humildes nessa humildade porém obteve o ápice da glória Pintou barbearias e lojas de sapateiros burricos comestíveis e coisas semelhantes tendo sido por isso chamado pintor de objetos vis rhyparographos E nisso sua satisfação foi completa pois suas pinturas foram vendidas a preço maior do que as maiores pinturas de muitos 11 Cf por exemplo Peri Hypsous XXI 1 e Quintiliano VII 3 20 ss 42 zes admirar a variação expressiva em um mesmo nível estilístico ou em uma mesma obra mas até isso pressupunha a hierarquia de temas e a noção da harmonia entre tema e expressão Em Santo Agostinho porém o princípio dos três níveis fundamentavase nos propósitos específicos do autor De doctr chr XIX ensinar docere condenar ou elogiar vituperare sive laudare e persuadir flectere Algo assim encontravase já em Cícero mas Santo Agostinho rejeita o pressuposto ciceroniano de que ao primeiro propósito prestase o estilo baixo ao segundo o médio e ao terceiro o sublime Os temas da literatura cristã são todos igualmente elevados e sublimes qualquer tema baixo em que ela tenha ocasião de tocar tornarseá por isso mesmo significativo Não obstante a tripartição dos estilos conserva sua utilidade prática para o orador cristão visto que a doutrina cristã além de ser sublime permanece obscura e difícil e como ela se destina a todos e todos devem compreendêla praticála e vivêla devese apresentála em estilo baixo médio ou elevado conforme o exija a situação Ainda teremos de precisar melhor o significado disso Como ponto de partida pode ser útil uma investigação semântica de um termo latino humilis que deriva sua força dos vários conteúdos que nele convergem Humilis está relacionado a humus solo e significa literalmente baixo em lugar baixo de baixa estatura Em seus sentidos figurados o termo expandiuse em várias direções De modo extremamente geral significa reles diminuto insignificante tanto absoluta quanto comparativamente No âmbito social e político designa origens obscuras educação deficiente pobreza falta de poder ou de prestígio na esfera da moral ações e atitudes baixas e indignas servilismo nas palavras e nos gestos vileza Além disso pode significar ainda desanimado pusilânime ou covarde Volta e meia quando no termo se combi 43 nam o destino infeliz e adverso a miséria e o medo tornase difícil distinguir as conotações morais das sociais Como em alemão utilizase o termo para uma vida em degradação ou para uma morte degradante muitas vezes significa ainda modesto deselegante de má qualidade gasto uma casa um pórtico uma estalagem uma peça de roupa podem ser ditos humilis Quando aplicado a ocupações e atividades quer dizer subalterno e Amiano Marcelino XVI 5 67 aparentemente de acordo com a tradição aristotélica chama a poesia e a retórica de humiliora membra philosophiae partes mais baixas da filosofia A noção de hierarquia está sempre presente e até mesmo vícios e delitos menores são denominados humiliora Nem sempre o sentido é negativo modéstia sábia moderação pia submissão e obediência estiveram desde sempre incluídas em seu campo semântico mesmo assim fora da literatura cristã o sentido predominante foi o pejorativo Em Sêneca são muitas as ocasiões em que o termo indica a insignificância da vida terrena em contraste com a vida eterna após a morte12 A partir do significado de grau ou nível inferior humilis tornouse uma das denominações mais usuais para o estilo baixo sermo humilis Havia muitas outras tenuis attenuatus subtilis quotidianus submissus demissus pedester planus communis abiectus comicus trivialis vilis sordidus tênue atenuado sutil quotidiano submisso baixo pedestre chão comum rasteiro cômico trivial vil sórdido mas a maioria destas tinha conotação demasiado específica de modo que muito poucas prestavam se tão bem quanto humilis a designar do modo mais geral possível a ampla esfera do estilo baixo Cícero Horácio Propércio Sêneca Quintiliano os dois Plínios e todos os retores comentadores e gramáticos posteriores continuamente utilizam humilis humiliter humilitas nesse sentido As teorias cristãs e medievais adotaramno e o termo veio a ser usado como denominação estilística em todas as línguas românicas e mesmo em inglês Por outro lado e aqui aparece a combinação que dá ao termo a força semântica já mencionada humilis tornouse o termo mais importante a designar a Encarnação nessa sua acepção ganhou tal preponderância que na literatura cristã latina exprime tanto o ambiente quanto o nível da vida e dos sofrimentos de Cristo A palavra nível é pouco usual nesse contexto mas não sei de outra que compreenda simultaneamente aspectos éticos sociais espirituais e estéticoestilísticos todos eles implicados aqui como logo se verá Foi justamente por meio da irradiação de seus significados humilde socialmente baixo inculto esteticamente tosco ou mesmo repugnante que humilis alcançou posição tão dominante e tão sugestiva Notase então especialmente no âmbito moral a inversão de significados desaparece o tom pejorativo e ganha relevo o aspecto positivo fraco e raro na literatura pagã Mesmo assim várias das antigas associações de palavras mantêmse inalteradas lado a lado com humilis surgem por exemplo abiectus e contemptus ou ainda mitis e mansuetus como antônimos ocorrem altus e sublimis além de superbus A passagem mais importante a respeito é Filipenses 2 78 onde se diz Sed semetipsum exinanivit formam servi accipiens in similitudinem hominum factus et habitu inventus ut homo Humiliavit semetipsum factus obediens usque ad mortem mortem autem crucis Mas esvaziouse a si mesmo tomando a forma de servo fazendose semelhante aos homens e achado com aspecto de homem Humilhouse a si mesmo tendo se tornado obediente até a morte e morte de cruz Além desta há a passagem sobre a conversão do eunuco etíope em Atos 8 26 ss com a referência a Isaias 52 1353 12 e Mateus 11 29 Outras numerosas passagens que não exprimem tão exata e diretamente o mesmo ponto prestavamse de um modo ou de outro a introduzir e desenvolver a nova atitude Entre essas estão Mateus 11 25 e 23 12 com as passagens correspondentes em Lucas 14 11 e 18 14 Romanos 12 16 I Coríntios 1 2629 Filipenses 3 21 e muitas mais O tema da humildade da Encarnação podia ser desenvolvido em várias direções A Encarnação como tal fora uma degradação voluntária como se vê na vida em condição subalterna na vida terrena entre os pobres de posses e de espírito na doutrina e nos atos de Cristo tudo isso coroado pela Paixão abjeta e cruel A partir daí e ao longo do conflito com as tendências espiritualizantes das seitas heréticas e das doutrinas pagãs desenvolveuse a insistência sobre a natureza corpórea de Cristo ao lado da doutrina da ressurreição universal A humildade da Encarnação alcança sua força máxima no contraste com a natureza divina constituindose dessa maneira a antítese paradoxal mais profunda da doutrina cristã homem e Deus baixeza e altura humilis et sublimis extremos inconcebíveis incomensuráveis peraltissima humilitas Para os fins desta investigação esse grupo de idéias forma o fundamento primeiro do motivo cristão do humilis ligado diretamente a Cristo Como se sabe são numerosos os exemplos na literatura cristã de todas as épocas citaremos a seguir apenas algumas passagens relevantes de Santo Agostinho13 A natureza corpórea de Cristo na Terra e após a Ressurreição verbum caro factum palavra tornada carne já formulada anteriormente por Tertuliano entre outros em sua luta contra Márcion é afirmada por Santo Agostinho por meio da noção de humilitas os exemplos mais conhecidos são as passagens polêmicas contra o platonismo como De civitate Dei X 29 nas quais a humilitas de Cristo é contraposta à superbia dos platônicos a seu desprezo pela carne Christus humilis vos superbi Esse motivo é o fundamento da importância dada aos eventos concretos na doutrina cristã logo voltaremos a este ponto O texto mais significativo que conheço para a humilitas passionis ainda que nele não ocorra o termo humilis consta das Enarrationes in Psalmos 96 4 Ille qui stetit ante iudicem ille qui alapas accepit ille qui flagellatus est qui consputus est ille qui spinis coronatus est ille qui colaphis caesus est ille qui in ligno suspensus est ille cui pendenti in ligno insultatum est ille qui in cruce mortuus est ille qui lancea percussus est ille qui sepultus est ipse resurrexit Saeviant quantum possunt regna quid sunt factura Regi regnorum Dominum omnium regum Creatori omnium saeculorum Aquele que se esteve diante do juiz aquele que levou tapas aquele que foi flagelado aquele que levou cuspidas aquele que foi coroado de espinhos aquele que foi coberto de golpes aquele que foi pendurado numa árvore aquele que pendurado na árvore foi insultado aquele que morreu na cruz aquele que foi ferido com a lança aquele que foi sepultado este mesmo ressuscitou Cometam os reinos quantas crueldades possam o que farão contra o Rei dos reinos contra o Senhor de todos os reis contra o Criador de todos os séculos Santo Agostinho In Ioannis Evangelium tractatus 40 2 a propósito de João 12 32 illa exaltatio humiliatio fuit aquela exaltação foi humilhação des possam o que farão contra o Rei dos reinos contra o Senhor de todos os reis contra o Criador de todos os séculos Em nenhum outro lugar o tema humilissublimis ligado à humilhação concreta da divindade foi elaborado tão nitidamente como neste Um segundo grupo de idéias ligase a este primeiro Tratase agora da humilitas social e espiritual dos destinatários da doutrina a quem portanto esta deve ser acessível as passagens bíblicas mais importantes são Mateus 11 25 Lucas 10 21 Atos 4 13 Romanos 12 16 I Coríntios 1 1821 Tiago 4 6 Há ainda inúmeros desdobramentos na literatura patrística em alguns poucos casos meramente descritivos mas em sua maioria com intenção polêmica em face da sabedoria mundana que despreza como inculta e baixa a mensagem de Cristo e seus apóstolos Leiamse por exemplo o começo do sermão de Natal 184 de Santo Agostinho PL XXXVIII 995 De civ Dei 18 49 CCSL 48 647 e em outros sermões passagens como 43 6 ou 87 12 PL XXXVIII 256 ss e 537 Deus diz Santo Agostinho não elegeu um orador ou um senador mas um pescador non oratorem non senatorern sed piscatorein Ele chama os apóstolos de humiliter nati de baixa extração inhonorati sem prestígio illiterati iletrados ou imperitissimi et abiectissimi muito ignorantes e de baixíssima condição e caracterizaos como piscatores et publicani pescadores e publicanos Dentre os autores mais 14 Cf por exemplo Hilário Commen in Matt 18 3 sobre Mateus 18 7 Patrologia Latina IX 1019 Humilitas passionis scandalum mundo est In hoc enim maxime ignorantia detinetur humana quod sub deformitate crucis aeternae gloriae Dominum nolit accipere A humildade da paixão é um escândalo para o mundo É aí pois que se embaraça a ignorância do homem porque sob o ultraje da cruz não quer aceitar o Senhor de glória eterna antigos menciono Arnóbio Adversus nationes 1 58 CSEL IV 39 entre os contemporâneos de Santo Agostinho cito Jerônimo que tem várias passagens longas a respeito Em seu comentário à Epístola aos Gálatas 3 1 PL XXXVI 401 ss ele escreve Quotusquisque nunc Aristotelem legit Rusticanus vero et piscatores nostros totus orbius loquitur universus mundus sonat Quantos são os poucos que lêem Aristóteles hoje Mas de nossos camponeses de nossos pescadores todo mundo fala o universo inteiro ecoa e na epístola 53 ad Paulinum presbyterum 53 3 ss CSEL LIV 449 depois de se referir a Pedro e João como theodidaktoi Hoc doctus Plato nescivit hoc Demosthenes eloquens ignoravit Isto o douto Platão não soube isto Demóstenes eloquente não conheceu ou ainda com mais força na epístola 14 ad Heliodorum monachum a passagem sobre o Juízo Final 14 11 CSEL LIV 61 Veniet veniet illa dies Tunc ad vocem tubae pavebit terra cum populis tu gaudebis adducetur et cum suis stultus Plato discipulis Aristotelis argumenta non proderunt Tunc tu rusticanus et pauper exultabis ridebis et dices Ecce crucifixus Deus meus ecce iudex qui obvolutus panis in praesepio vagit Hic est ille operarii et quaestuariae filius hic qui matris gestatu sinu hominem Deus fugit in Aegyptum hic vestitus coccino hic sentibus coronatus hic magus daemonium habens et Samarites Cerne manus Iudaee quas fixeras cerne latus Romane quod foderas Videte corpus an idem sit Virá virá aquele dia Então ao som da trombeta a terra com seus povos terá pavor tu te regozijarás Comparecerá em juízo o néscio Platão com seus discípulos os argumentos de Aristóteles não lhe serão úteis Então tu camponês e pobre vais exultar vais rir e vais dizer Eis meu Deus crucificado eis o juiz que envolto em panos chora na manjedoura Este é aque le filho de trabalhador e trabalhadora este o que carregado como homem no colo da mãe embora fosse Deus fugiu para o Egito este o que foi vestido de escarlate este o que foi de espinhos coroado este o que foi chamado de mago que carregava um demônio e de Samaritano Contempla judeu as mãos que pregaste contempla romano o flanco que perfuraste Vede o corpo acaso é Também aqui domina a antítese não apenas entre stultitia e sapientia mas de modo geral a antítese entre baixo e alto recomendandose então a via pietatis ab humilitate ad superna surgens o caminho da piedade elevandose da humildade às coisas celestes De civ Dei II 7 O terceiro grupo de idéias é o mais importante para nós trata da humilitas do estilo da Sagrada Escritura e está de tal modo ligado ao grupo anterior que muitas das passagens já citadas servem também aqui O motivo do sermo humilis da Bíblia logo alcançou grande importância na apologética A maioria dos pagãos cultos considerava a literatura paleocristã em grego e especialmente em latim como ridícula confusa e repugnante Não apenas o conteúdo parecialhes uma superstição infantil e absurda também a forma representava um insulto a seu gosto o vocabulário e a sintaxe pareciam ineptos vulgares e eivados de hebraísmos quando não exagerados e grotescos Algumas passagens de força inegável davam a impressão de mistura turva fruto de mentes incultas fanáticas e sectárias A reação era de mofa desprezo e horror Parecialhes inconcebível e inaceitável a pretensão desses escritos de tratar dos problemas mais profundos Cf sobretudo a passagem estruturalmente análoga no final de Tertuliano De spectaculis XXX 6 Sermo humilis dos de oferecer iluminação e redenção aos homens Em tais circunstâncias seria de se esperar que já nos primeiros tempos da nova religião os cristãos letrados procurassem ultrapassar esse obstáculo corrigindo e adaptando à linguagem literária as traduções dos primeiros autores cristãos incultos e inexperientes Mas isso não aconteceu O estilo criado pelos primeiros tradutores latinos não foi jamais substituído por um texto bíblico ao gosto clássico Os textos da Vetus Latina16 haviam tão prontamente conquistado autoridade junto às comunidades e correspondiam tão bem à situação social e espiritual dos cristãos de língua latina17 que logo vieram a formar uma tradição duradoura e de raízes firmes de modo que uma versão mais literária e culta jamais teria tido chance de se impor A reelaboração de Jerônimo veio bastante tarde por volta de 400 dC e não atingiu todos os textos uniformemente e onde sua versão divergia mais fortemente da anterior seus textos tiveram mais dificuldade para se estabelecer nas comunidades De resto o latim bíblico já se firmara muito antes de Jerônimo começar seu trabalho e ele mesmo estava imerso demais nesse estilo como aliás em toda a espiritualidade cristã original para ser capaz de destruir sua atmosfera característica Por significativa que tenha sido sua atividade de tradutor ela se mantém nos quadros do estilo anterior Na Antigüidade tardia encontramse por vezes paráfrases clássicas de passagens bíblicas Fulgêncio Placiades De aetatibus mundi ed Helm parafraseia da seguinte maneira as palavras de Deus a Moisés Êxodo 3 7 Duros populi mei ex operationis ergastulo gemitus intellexi Eu ouvi os duros gemidos de meu povo nas prisões da labuta Há muitos outros exemplos dessa tendência que entretanto permaneceu pouco influente Só os humanistas Valla Erasmo Bembo viriam a tentar algo semelhante Bembo substitui spiritus sanctus espírito santo por divinae mentis aura sopro da mente divina18 Desse modo o corpus da Sagrada Escritura permaneceu um corpo estranho dentro da tradição clássica da literatura latina enquanto persistiram esta e seu público Contra os que desprezavam a linguagem bíblica os apologetas entre eles Santo Agostinho não deixaram de chamar atenção para as figuras de linguagem que se encontravam na Sagrada Escritura chegando mesmo a afirmar que todos os povos antigos haviam desenvolvido sua arte da eloquência e sua sabedoria a partir do Velho Testamento muito anterior às culturas pagãs19 Mas o argumento 18 Sobre a linguagem bíblica cf Wilhelm Süss Das Problem der lateinischen Bibelsprache Histor minha citação de Bembo figura na página 17 do mesmo autor Studien zur lateinischen Bibel I Ambos estudos fornecem bibliografia de investigações anteriores As partes relevantes em Die antike Kunstprosa de Norden ainda são muito informativas sobre o latim patrístico 19 Tema tratado excelentemente por ER Curtius em Europ Literatur und lat Mittelalter 489 ss no parágrafo sobre Cassiodoro A passagem principal em Cassiodoro é In Psalterium praefatio 15 PL LXX 1922 Cf também Curtius 445 onde a observação do autor sobre as referências de Jerônimo a São Paulo em sua carta a Paulino não transmite o tom e o contexto originais Na verdade Jerônimo está traçando um contraste entre o conhecimento divinamente inspirado e o conhecimento profano A noção de provável origem judaicoalexandrina de que a sabedoria profana e especialmente a grega derivava da sabedoria judaica muito anterior estava disseminada por todo o Ocidente e é expressa com particular frequência por Ambrósio Cf De bono mortis PL XIV 1154 Sobre Aldhelm e Beda cf Curtius 535 não era muito convincente em questões de estilo Ninguém pensava em limitálo ao texto hebraico até porque a maioria dos Padres da Igreja ocidentais com a óbvia exceção de Jerônimo tinha pouco discernimento filológico e freqüentemente tratava o texto latino como se fosse a Bíblia Mas justamente na tradução latina era muito difícil e na verdade impossível encontrar a marca da cultura literária clássica Cassiodoro no Ocidente o defensor mais determinado da tese da origem bíblica de toda eloqüência e sabedoria reconhece a diferença entre a eloqüência bíblica e a secular os tropos e figuras só são encontrados nos salmos in virtute sensuum na força do sentido não in effatione verborum no que dizem as palavras20 Seja como for nenhum apologeta antigo alguma vez duvidou que o latim bíblico fosse algo de distinto da tradição clássica Foi só quando essa tradição havia desaparecido quase completamente por volta de 700 dC que Beda e Aldhelm puderam elogiar a Bíblia como modelo de estilo clássico O contraargumento mais sério e duradouro dos autores cristãos da Antigüidade tardia era diferente eles reconheciam a baixeza do estilo bíblico e descobriam nele uma nova forma do sublime Evitando a questão das traduções essa posição dialética teve sucesso por conta de sua verdade interna a um só tempo ofensiva e defensiva ela se manteve viva por toda a Idade Média até a era moderna e se tornou um motivo importante na formação dos conceitos de estilo e níveis de estilo na Europa Os documentos que o comprovam vêm de longe a idéia já ocorre implicitamente em algumas passagens do Novo Testamento citadas mais acima por exemplo em I Coríntios 1 1821 Não é necessário aqui citar as fontes gregas como a polêmica de Orí 20 In Psalterium praefatio 15 PL LXX 21 53 genes contra Celso21 Exemplos latinos podem ser encontrados por toda a Antigüidade tardia até Isidoro de Sevilha Sent 3 13 PL LXXXIII 6858 Mas a fonte latina mais importante é Santo Agostinho já que ele mesmo protagonizou essa inversão dialética antes de sua conversão pertencia à camada de letrados muito cultos que não acreditavam poder superar sua aversão ante os modos de expressão da Escritura Em suas Confissões III 5 CSEL XXIII 50 ele descreve como inflamado pelo Hortensius de Cícero com o anseio apaixonado por sabedoria começara a ler a Sagrada Escritura sem que entretanto o sentido se lhe revelasse ela seria res incessu humilis successu excelsa et velata mysteriis assunto humilde no começo mas sublime à medida que se avança e velado com mistérios coisa que então ainda não percebia Sed visa est mihi indigna quam Tullianae dignitati compararem Tumor enim meus refugiebat modum eius et acies mea non penetrabat interiora eius Verumtamen illa erat quae cresceret cum parvulis sed ego dedignabar esse parvulus Mas a Sagrada Escritura pareceume indigna de comparar à dignidade ciceroniana Meu orgulho repelía sua simplicidade e minha agudeza não penetrava seu interior A agudeza na verdade cresce junto com as crianças mas eu não me dignava ser criança Só muito mais tarde depois de um longo e árduo desvio e agora sob a influência de Ambrósio em Milão Agostinho começou a entender a autoridade da Sagrada Escritura ele a formula nos seguintes termos Conf VI 5 CSEL XXXIII 121 ss eoque mihi illa venerabilior et sacrosanta fide dignior apparebat auctoritas quo et omnibus ad legendum esset in promptu et secreti sui dignitatem in intellectu profundiore servaret verbis apertissi 21 Cf W Süss Das Problem der lateinischen Bibelsprache 5 54 mis et humillimo genere loquendi se cunctis praebens et exercens intentionem eorum qui non sunt leves corde ut exciperet omnes populari sinu et per angusta foramina paucos ad te traiceret multo tamen plures quam si nec tanto apice auctoritatis emineret nec turbas gremio sanctae humilitatis hauriret sua autoridade da Sagrada Escritura pareceume tanto mais venerável e digna de sacrossanta fé quanto mais era disponível para a leitura de todos e reservava a dignidade de seu mistério à intelecção mais profunda oferecendose a todos com as palavras mais claras e com o mais simples estilo de discurso despertando o interesse daqueles que não são levianos de coração para receber a todos em seu seio comum e pela porta estreita transportar a Ti uns poucos mas muito mais numerosos do que se ela estivesse no elevado cume da autoridade e não atraísse multidões ao regaço da santa humildade As mesmas idéias sob formas variadas ocorrem vez e outra em seus escritos por exemplo no primeiro capítulo do primeiro livro De Trinitate PL XLII 820 sancta Scriptura parvulis congruens nullius generis rerum verba vitavit ex quibus quasi gradatim ad divina atque sublimia noster intellectus velut nutritus assurgeret A Santa Escritura adaptandose a crianças não evitou palavras de nenhum gênero de assuntos a partir dos quais nosso intelecto como que gradativamente alimentado se ergueu até os mais divinos e sublimes ou ainda em várias passagens de De doctrina christiana por exemplo II 42 63 bem como difundidas em seus sermões e comentários A formulação mais completa é talvez a de uma epístola endereçada a Volusiano Epist 137 18 CSEL XLIV 122 ss Modus autem ipse dicendi quo sancta scriptura contexitur quam omnibus accessibilis quamvis paucissimis penetrabilis Ea quae 55 aperta continet quasi amicus familiaris sine fuco ad cor loquitur indoctorum atque doctorum ea vero quae in mysteriis occultat nec ipsa eloquio superbo erigit quo non audeat accedere mens tardiuscula et inerudita quasi pauper ad divitem sed invitat omnes humili sermone quos non solum manifesta pascat sed etiam secreta exerceat veritate hoc in promptis quod in reconditis habens Como é acessível a todo o tipo de discurso pelo qual a Santa Escritura é composta embora penetrável por pouquíssimos O que contêm de evidente ela fala sem artifício como um amigo íntimo ao coração dos cultos e dos incultos O que oculta em mistérios ela mesma não articula em linguagem altiva a que a mente vagarosa e sem erudição não ousaria aproximarse como faz o pobre em relação ao rico mas antes com discurso humilde convida a todos não só para alimentálos em uma verdade manifesta como também para exercitálos em uma verdade secreta possuindo no que expõe aquilo mesmo que possui no que oculta Tornarase claro para ele escreve Santo Agostinho em De doctrina christiana IV 6 9 ss que os autores inspirados pela divina Providência para nossa salvação não poderiam ter escrito de modo diverso do que fizeram Se tivesse tempo suficiente ele mesmo poderia indicar na Escritura todas as figuras e ornamentos da eloquência pagã mas seu encanto inexprimível não derivava do que pudesse ter em comum com os oradores e poetas pagãos mas sim da maneira como se servia da eloquência tradicional para formar sua própria e nova eloquência alteram quandam eloquentiam suam uma eloquência outra sua22 22 Cf Cassiodoro Institutiones ed Mynors 1 15 7 sub finem Maneat ubique incorrupta locutio quae Deo placuisse cognoscitur ita ut fulgore suo niteat non 56 Tentarei agora sintetizar o conteúdo desses exemplos O estilo baixo da Escritura é reconhecido e caracterizado com o termo humilis que também expressa humildade23 O propósito dessa humildade ou baixeza estilística é o de tornar a Escritura acessível a todos mesmo ao último dos homens de modo que cada qual seja atraído e tomado por ela que possa sentirse à vontade nela Mas o conteúdo da Escritura não é imediatamente compreensível ela contém mistérios sentidos ocultos e muitas passagens obscuras Contudo essas coisas não são expressas em estilo culto e soberbo que intimida e afasta os ouvintes mais simples Pelo contrário todo aquele que não for leviano e portanto superficial sem humildade poderá penetrar seu sentido mais profundo a Escritura cresce com as crianças isto é as crianças aprimoramse em sua compreensão E entretanto são poucos os que a compreendem de fato e isso não por falta de erudição mas sim de humildade autêntica De doctrina christiana II 412 correspondente ao estilo do texto As passagens profundas e obscuras não diferem fundamentalmente das passagens claras e simples a não ser pelas camadas mais profundas de entendimento que descortinam Em conseqüência leitores ou ouvintes que anseiam por sabedoria divina e se dão conta da profundeza dos mistérios são mantidos em tensão incessante pois ninguém é capaz de chegar ao cerne último Por útil que possa humano desiderio carpienda subiaceat Que permaneça incorrompida a fala que se sabe que agradou a Deus que brilhe em seu fulgor e não se rebaixe para ser consumida pelo desejo humano 23 Encontramse também rusticus communis simplex e vilis Cf por exemplo o comentário de Jerônimo à Epístola aos Gálatas 3 5 e sua epístola a Paulino 53 9 De Cassiodoro a passagem em Institutiones 1 15 7 citada mais acima e In Psalt praef 15 E finalmente Isidoro Sententiae 3 13 ser a erudição não é condição inescapável para um entendimento mais profundo com efeito Santo Agostinho várias vezes afirmou que na terra uma compreensão verdadeira só é possível por meio de um contato passageiro ictu uma iluminação na qual o destinatário da graça só se conserva por um instante logo depois ele deve retornar a seu estado terreno de costume O estilo dominante na Bíblia é portanto humilis baixo ou humilde Mesmo seus significados secretos secreta recondita são apresentados de maneira baixa Mas seu tema seja ele simples ou obscuro é sempre sublime O tom baixo ou humilde do estilo é a única forma possível e adequada pela qual os mistérios sublimes podem se tornar acessíveis aos homens de forma análoga à Encarnação que também era humilitas nesse sentido uma vez que os homens não teriam suportado o esplendor da natureza divina de Cristo24 O curso terreno da Encarnação não poderia ser narrado de outro modo que não em estilo baixo e humilde O nascimento na manjedoura em Belém a vida entre pescadores publicanos e outras pessoas de ocupações igualmente cotidianas a Paixão com todos seus episódios realistas e indignos nada disso se adequava ao estilo da oratória elevada da tragédia ou da epopéia Nos termos da estética da era de Augusto tal ambiente prestavase no melhor dos casos a um dos gêneros baixos Mas o estilo baixo da Sagrada Escritura abrange a esfera do sublime Há nela vários termos simples por vezes cotidianos e fortemente realistas além de construções corriqueiras e deselegantes mas seu tema é elevado e seu caráter sublime 24 Este é um tema antigo e significante geralmente encontrado em conexão com a interpretação da nuvem em Isaias 19 1 Já ocorre em Tertuliano Adversus Marcionem 2 27 e ainda é freqüente em Bernardo de Clairvaux e mesmo Dante Purg XXX 25 ss Sermo humilis revelase através dessa matéria baixa o sentido oculto está em toda parte Nessa fusão de sublime e baixo o sublime res excelsa et velata mysteriis secreti sui dignitas assunto elevado e velado com mistérios a dignidade de seu segredo confundese freqüentemente com o obscuro e o oculto mas isso jamais impede o homem comum de participar dele O denominador comum desse estilo é sua humildade A Bíblia é história escrita e foi lida ou ouvida pela vasta maioria dos cristãos Ela deu forma à sua visão da história25 e às suas concepções éticas e estéticas Foi modelo de estilo dos escritores cristãos por decisão consciente ou por impregnação inconsciente Muitos deles adaptaramna em alguma medida às formas da retórica tradicional até porque vários Padres da Igreja haviam sido educados nesta Mas a substância bíblicocristã era tão forte que não se deixou submeter à retórica No texto inicial de Santo Agostinho pudemos perceber como apesar dos isócolos anáforas antíteses e apóstrofes o caráter do conjunto permanecia distintamente cristão O mesmo vale para muitos outros textos da literatura patrística como a passagem de Jerônimo sobre o Juízo Final que citamos mais acima com sua conclusão poderosa cerne manus Iudaee cerne latus Romane contempla judeu as mãos contempla romano o flanco Temos aqui uma mistura de sublime retórica popular e terna caritas de 25 Já escrevi várias vezes sobre a concepção cristã da história especialmente em ligação com a exegese tipológica da Bíblia a vida terrena de Cristo como centro da história universal que acredito ter sido conseqüência lógica do cristianismo Ver Figura reeditado em meus Neue Dantestudien Typological Symbolism in Medieval Literature publicado em alemão ligeiramente ampliado como fascículo 2 de Schriften und Vorträge des PetrarcaInstituts in Köln Ver também as últimas páginas de meu ensaio Franz von Assisi in der Komödie in Neue Dantestudien publicado em inglês em Italica XXII e ainda Mimesis passim Ensaios de literatura ocidental força didática e vivacidade cênica dirigida a uma audiência comum e indiscriminada O gosto das massas pelas formas da retórica acabou por dar origem a variedades mais populares o que preparou o caminho para a formação de uma oratória cristã de uma retórica mais popular no sentido do sermo humilis Podese mesmo dizer que uma tal retórica tornouse possível apenas pelo espírito e pelos temas cristãos De fato com a estagnação política do império a retórica pagã há muito fora privada dos temas que lhe garantiam a vitalidade Petrificada em seu formalismo ela começava a definhar Os temas cristãos deramlhe novo alento ao mesmo tempo que lhe modificavam o caráter O que prevalece agora é a humilitas Santo Agostinho recomendou as formas acadêmicas da eloquência pagã e chegou mesmo a utilizálas mas o que chama a atenção e nos deixa uma impressão marcante em seus sermões é a forma com que eles eliminando as barreiras entre os estilos falam diretamente a cada alma individual Como cada ouvinte é considerado um indivíduo cuja salvação está em jogo o sermão é infundido de muito mais emoção do que seria possível numa conferência filosófica ou num debate forense As próprias passagens didáticas estão necessariamente mescladas com o aspecto arrebatador que a teoria retórica identifica ao sublime E a doutrinação faz parte do estilo baixo não apenas porque assim o determina a teoria retórica mas porque o caráter heterogêneo das comunidades de fiéis tornou necessário que se pregasse em estilo simples e acessível a todos Começamos com um sermão Mas o domínio do sermo humilis abarca todas as formas da literatura cristã da Antigüidade tardia inclui as dissertações teóricofilosóficas assim como os relatos pragmáticorealistas de acontecimentos reais Citaremos alguns exemplos para mostrar de um lado como é profunda sua influência no campo teórico e contemplativo e de outro Sermo humilis quais foram os novos problemas que ele solucionou no terreno da narrativa A Patrística mal se dedicou a uma literatura contemplativa ou puramente teórica todas suas forças estavam voltadas para a difusão da doutrina cristã e o combate a judeus pagãos e hereges O interesse polêmico e apologético perpassa toda sua teoria a intenção é sempre obter o máximo de influência e arregimentar o maior número possível de almas Claro que os sermões dirigidos à comunidade de fiéis diferem quanto ao estilo dos tratados dos comentários e das epístolas destinadas a amigos ou opositores dentro do clero No entanto mesmo neste último caso o elemento didático é tão forte a dicção é tão pessoal e animada que o sermo humilis assume uma feição especificamente cristã Por esse motivo meu exemplo foi retirado mais uma vez de Santo Agostinho pensei inicialmente em escolher um texto polêmico mas concluí que uma passagem puramente contemplativa e teórica seria ainda mais característica pelo fato de representar um caso extremo de sermo humilis O trecho encontrase no terceiro parágrafo do oitavo livro De Trinitate PL XLII 948 ss Santo Agostinho quer deixar claro que Deus não é nem corpóreo nem passível de mudança nem um ser criado por mais que imaginássemos a maior e a mais sublime das coisas por exemplo o Sol como infinitamente maior ou mais fulgurante do que realmente é por mais que concebêssemos todos os anjos milla millium que movem os corpos celestes como unidos num único ser mesmo isso não seria Deus E então prossegue Ecce vide si potes o anima praegravata corpore quod corrumpitur et onusta terrenis cogitationibus multis et variis ecce vide si potes Deus Veritas est Hoc enim scriptum est Quoniam Deus lux est I João 1 5 non quomodo isti oculi vident sed quomodo videt cor cum audis Veritas est Noli quaerere quid sit veritas statim enim se opponet caligines imaginum corporalium et nubila phantasmatu et perturbabunt serenitatem quae primo ictu diluxit tibi cum dicerem Veritas Ecce in ipso primo ictu quo velut coruscatione perstringeris cum dicitur Veritas mane si potes sed non potes relaberis in ista solita atque terrena Ora vê se és capaz ó alma sobrepesada pelo corpo que se corrompe e carregada de muitos e variados cuidados terrenos então vê se és capaz Deus é Verdade Pois isto está escrito Porque Deus é luz I João 1 5 vê não como estes olhos vêem mas como vê o coração quando ouves Ele é Verdade Não preguntes o que é verdade pois logo nevoeiros de imagens corporais e nuvens de fantasmas vão interporse e perturbar a serenidade que num primeiro rapto brilhou para ti quando eu disse Verdade Eis exatamente neste primeiro rapto pelo qual como que por um raio és atingido quando se diz Verdade permanece se és capaz mas não és capaz cairás de novo neste costumeiro e terreno Logo em seguida 3 4 ele tenta outra abordagem Ecce iterum vide si potes Non amas certe nisi bonum quia bona est terra altitudine montium et temperamento collium et planitie camporum et bonum praedium amoenum et fertile et bona domus paribus membris disposita et ampla et lucida et bona animalia animata corpora et bonus aer modestus et salubris et bonus cibus suavis atque aptus valetudini et bona valetudo sine doloribus et lassitudine et bona facies hominis dimensa pariliter et affecta hilariter et luculenter colorata et bonus animus amici consensionis dulcedine et amoris fide et bonus vir justus et bonae divitiae quia facile expediunt et bonum coelum cum sole et luna et stellis suis et boni Angeli sancta obedientia et bona locutio suaviter docens et congruenter monens audientem et bonum carmen canorum numeris et sententiis grave Quid plura et plura Bonum hoc et bonum illud tolle hoc et illud et vide ipsum bonum si potes ita Deum videbis non alio bono bonum sed bonum omnis boni Ora de novo vê se és capaz Não amas por certo a não ser o bem porque boa é a terra por causa da altura de suas montanhas da suavidade de suas colinas da planura de seus campos e boa é a quinta amena e fértil e boa a casa disposta em proporções iguais e ampla e iluminada e bons os corpos vivos dos animais e bom o ar brando e saudável e bom o alimento suave e apto para a saúde e boa a saúde sem dores e cansaço e boa a face do homem de regular medida e de jovial expressão e de cor vivaz e bom o amigo pela doçura da concórdia e pela fidelidade do amor e bom o homem justo e boas as riquezas porque tornam fácil a existência e bom o céu com o sol e a lua e suas estrelas e bons os Anjos de santa obediência e boa a fala que suavemente ensina e adequadamente adverte quem ouve e bom o poema melodioso pelo ritmo e grave pelo tema O que mais o que mais Bom é isto e bom é aquilo toma isto e aquilo e vê o próprio bem se és capaz assim verás Deus que não é um bem por meio de outro bem mas é o bem daquilo mesmo que é bom Tais idéias são ao mesmo tempo neoplatônicas e cristãs Expressas em sua forma mais simples são absolutamente abstratas estão entre as idéias a partir das quais se desenvolveu o grande jogo de abstrações da Idade Média Deus é a verdade e apenas numa iluminação momentânea somos capazes de conhecêLo Deus é o bem absoluto fonte de todos os bens particulares e não tem outra fonte além de Si mesmo Esta seria a forma mais sim ples de exprimilo A partir dessa formulação Santo Agostinho compôs um drama retórico e comovente na primeira parte com o movimento anafórico e antitético ecce vide si potes ecce vide si potes noli quaerere ecce mane si potes sed non potes ora vê se és capaz ora vê se és capaz não pergunte permanece se és capaz mas não és capaz no segundo trecho novamente anafórico com sua enumeração suave e profundamente terrena de todos os bens aprazíveis e a repentina e tempestuosa mudança no final Bonum hoc et bonum illud tolle hoc et illud Bom é isto e bom é aquilo toma isto e aquilo A ascensão dramática a partir das profundezas mundanas presentes mesmo quando Santo Agostinho enleva a si mesmo e a seus leitores arrebatandoos ao ápice do êxtase e da abstração a urgência impetuosa de seu argumento no qual a teoria parece ter sido descartada o apelo direto ao leitor quem quer que ele seja tudo isso destrói as barreiras entre o eu e o tu tal nível estilístico seria praticamente inconcebível numa época anterior Ecce vide si potes e tolle hoc et illud são formas simultaneamente retóricas e coloquiais Já se observou várias vezes que Santo Agostinho utiliza vulgarismos conta anedotas e emprega imagens realistas26 em seus sermões como nos de Jerônimo há também passagens satíricas Mas essa não é nossa preocupação central neste momento Claro que vulgarismos e imagens realistas são sintomas significativos do sermo humilis cristão mas apenas porque são utilizados para tratar de assuntos sérios e profundos pois então tais lo 26 Várias passagens relevantes são citadas em trabalhos recentes como JT Welter LExemplum dans la littérature religieuse J H Baxter ALMA III com uma passagem característica do Sermo 5 3 H F Muller LÉpoque mérovingienne 415 E ainda P Charles LÉlément populaire dans les sermons de saint Augustin além é claro de J Schrijnen Charakteristik des altchristlichen Latein passim Sermo humilis cuções baixas são remodeladas no contato com o sério e o sublime A questão realmente central e decisiva porém é a amplitude dessa polaridade E o sermo humilis que tento descrever aqui possui outras características além de vulgarismos e traços afins um é a proximidade ou o contato humano direto entre o eu e o tu dado que não figurava no estilo elevado da Antigüidade romana outro é sua capacidade de exprimir a consciência imediata do vínculo que une a comunidade humana todos nós aqui e agora Muitas vezes é verdade tal expressão de fraternidade e proximidade entre os homens degenerou numa fórmula vazia mas de tempos em tempos ela ganha novo alento Exatamente para mostrar que esse estilo penetrou também nos textos mais especulativos e menos populares citei aqui uma passagem do livro sobre a Trindade Creio que Joseph Schrijnen a quem devemos a ele e a sua escola27 o conceito de latim cristão além de investigações extremamente interessantes sobre o assunto superestima a diferença entre o latim culto e o latim vulgar dos primeiros cristãos Certamente ela existe não há dúvida quanto a isso Santo Agostinho por exemplo escreve seus sermões de maneira diversa daquela em que redige os textos exegéticos ou dogmáticos Gregório Magno usa um estilo muito mais popular em seus diálogos do que nas Moralia Mas o espírito do sermo humilis é sempre o mesmo E quando Schrijnen tenta negar que as figuras de linguagem empregadas nos sermões tenham relação com a retórica acadêmica sucumbe ao precon 27 Ver nota anterior Maiores referências a Schrijnen e sua escola em Christine Mohrmann Le Latin commun et le latin des chrétiens in Vigiliae Christianae Amsterdã I 1947 especialmente números 1 e 4 O meticuloso e instrutivo Manuel du latin chrétien 1955 de Albert Blaise apareceu apenas após a publicação do presente estudo 1952 Cf particularmente o resumo do parágrafo 45 646 65 Ensaios de literatura ocidental ceito expresso por ele mesmo da seguinte forma Onde a alma elevase até Deus quer o faça em latim culto ou popular não há lugar na opinião de Santo Agostinho para a retórica ou para os artifícios artísticos apenas para os ritmos populares da fala humana cotidiana28 Isso segundo me parece é uma hipóstase de conceitos artifícios artísticos ritmos populares que nós mesmos criamos com o fim de classificar o material e nos orientar provisoriamente mas que aplicados à história concreta dificilmente podem ser distinguidos de forma clara Shakespeare ou os dramaturgos espanhóis do siglo de oro são a prova de que os artifícios mais sutis no emprego de palavras ou sons podem tornarse parte da tradição popular Se a arte retórica termina quando a alma se eleva a Deus seríamos obrigados a concluir que poucos dos grandes escritores cristãos teriam alcançado tal experiência O que dizer de Ambrósio e Jerônimo de Bernardo de Clairvaux de Juan de la Cruz de Bossuet O que dizer aliás do apóstolo Paulo A retórica de Santo Agostinho está sempre baseada na tradição clássica nenhum escritor valendose apenas do simples ritmo popular pode opor ou combinar incessantemente antíteses e pares conceituais em períodos sonoros Por outro lado mesmo a retórica mais refinada tem sua fonte original no instinto básico dos homens para o ritmo e para as correspondências entre o som e o sentido e na Antigüidade tardia as formas artísticas tornaramse uma herança popular pelo menos no sentido de que um grande número de pessoas sabia desfrutálas Como já mostra o início de sua carreira Santo Agostinho foi um mestre da retórica a retórica tornouse sua segunda natureza como costuma acontecer com grandes virtuosos Mas a suprema habilidade técnica pode muito bem servir aos sentimentos mais autên 28 Charakteristik des altchristlichen Latein 21 e passim 66 Sermo humilis ticos e profundos e a simplicidade popular não é uma garantia contra o vazio do coração Pareceme que seria um erro procurar a especificidade de uma linguagem cristã apenas nos aspectos populares fortes ou vigorosos É evidente que o latim cristão contêm vários elementos da linguagem popular pois um movimento de tais proporções envolveu muitas pessoas e estendeuse finalmente a todo o povo até mesmo porque este último era numericamente muito superior às classes altas O aspecto característico dessa linguagem porém reside no fato de que muitos se não a totalidade dos vulgarismos no emprego e na formação de palavras nas mudanças de sentido e na estrutura das frases perderam seu caráter vulgar assim que se tornaram parte do latim cristão foram introduzidos numa outra esfera e ganharam nova dignidade Isso vale até mesmo para casos tão extremos como manducare e eructare literalmente devorar às dentadas e arrota r Estas palavras foram reiteradamente ridicularizadas mas as comunidades de fiéis não as puseram de lado foram inscritas em passagens tão importantes quanto o início do Salmo 44 e o relato da Última Ceia I Coríntios 11 24 Tais termos foram exaltados e santificados sanctificantur o mesmo aconteceu com as palavras compostas rudes e inexpressivas para o gosto clássico e das quais sanctificare é apenas um exemplo entre muitos Vivificare honorificare glorificare salvator fornicator mediator tribulatio prostitutio redemptio carnalis spiritualis inscrutabilis inenarrabilis ineffabiliter inseparabiliter para escolher algumas delas não são propriamente formas populares não surgiram da língua do diaadia mas correspondem a construções intelectuais criadas por pessoas apenas parcialmente versadas no espírito linguístico do latim antigo visando tornar compreensíveis as manifestações de um novo mundo intelectual Todas elas têm algo de canhestro de iletrado e de grosseiramente pedante ao mes 67 mo tempo o espírito que as anima conferelhes algo de convincente e coeso Formam um conjunto mas também se amoldam a outros elementos puramente populares da língua cristã Em cada uma e em todas elas expressase um novo mundo um mundo forte o bastante não há dúvida para criar sua linguagem particular mas não é essa a mesma linguagem que em breve será a de todos ou que pelo menos irá saturar a linguagem universal com sua índole característica Seja como for interessa apenas ao historiador moderno saber que a linguagem especificamente cristã formouse a partir de diversos elementos o mesmo não vale para seus contemporâneos para eles era indiferente se um determinado traço do material linguístico provinha da linguagem falada dos esforços semiletrados de cunhar expressões para conteúdos novos ou de influências gregas e semíticas tais elementos afinal de contas foram fundidos na língua da comunidade cristã O que Paulo I Coríntios 12 13 diz a respeito dos homens vale também para as palavras e as formas do discurso Etenim in uno Spiritu omnes nos in unum corpus baptisati sumus sive Iudaei sive gentiles sive servi sive liberi Pois num só Espírito todos nós fomos batizados para ser um só corpo judeus e gregos escravos e livres Tertuliano é prova de quão cedo a comunidade de fala latina adquiriu sua própria individualidade Nosso terceiro e último texto antigo é retirado desse período À diferença do trecho do livro De Trinitate ele mostra a força narrativa realista do sermo humilis ao mesmo tempo esboça os novos problemas da narrativa realista surgidos com a difusão do cristianismo Tratase da Passio SS Perpetuae et Felicitatis um dos primeiros martirológios29 Os eventos narrados passamse no iní 29 Texto na Acta Sanctorum para 7 de janeiro mais facilmente acessível em Ausgewählte Märtyrerakten O L von Gebhardt e R Knopf orgs terceira edição cio do século III em Cartago durante as perseguições comandadas por Sétimo Severo O narrador que provavelmente não é Tertuliano inclui em seu texto as notas escritas na prisão por dois mártires Perpétua e Sátiro Citamos a seguir a introdução do narrador II e o início dos apontamentos de Perpétua III IV II Apprehensi sunt adolescentes catechumeni Revocatus et Felicitas conserva eius Saturninus et Secundulus inter hos et Vibia Perpetua honeste nata liberaliter instituta matronaliter nupta habens patrem et matrem et fratres duos alterum aeque catechumenum et filium infantem ad ubera Erat autem ipsa circiter annorum viginti duo Haec ordinem totum martyrii sui iam hinc ipsa narrauit sicut conscriptum manu sua et suo senso reliquit III Cum adhuc inquit cum prosecutoribus essemus et me pater verbis evertere cupiret et deicere pro sua affectione perseveraret Pater inquam vides verbi gratia vas hoc iacens urceolum sive aliud Et dixit Video Et ego dixi ei Numquid alio nomine vocari potest quam quod est Et ait Non Sic et ego aliud me dicere non possum nisi quod sum Christiana Tunc pater motus hoc verbo mittit se in me ut oculos mihi eruere sed vexavit tantum et profectus est victus cum argumentis a cargo de G Krüger Edição mais recente Passio Sanctarum Perpetuae et Felicitatis J M J van Beek org Em inglês Some Authentic Acts of the Early Martyrs E C E Owen org 7892 Não examinei as traduções alemãs de Rauschen Bibliothek der Kirchenväter e de Hagemeyer Com a descoberta de uma versão grega em 1939 muitos especialistas emitiram a opinião de que o texto grego seria o original Parti do pressuposto de que o texto em latim é o original ponto de vista partilhado pela maioria dos especialistas hoje em dia Ver E Rupprecht em Rheinisches Museum 1941 Um estudo abrangente com tradução francesa está em H Leclercq in DACL verbete Perpétue et Félicité Saintes diaboli Tunc paucis diebus quod caruissem patre Domino gratias egi et refrigeravi absentia illius In ipso spatio paucorum dierum baptisati sumus et mihi Spiritus dictavit non aliud petendum ab aqua nisi suffereutiam carnis Post paucos dies recipimur in carcerem et expavi quia nunquam experta eram tales tenebras O diem asperum Aestus validus turbarum beneficio concussurae militum Novissime macerabar sollicitudine infantis ibi Tunc Tertius et Pomponius benedicti diaconi qui nobis ministrabant constituerunt praemio uti paucis horis emissi in meliorem locum carceris refrigeraremus Tunc exeuntes de carceri universi sibi vacabant Ego infantem lactabam iam inedia defectum solicita pro eo adloquebar matrem et confortabam fratrem commendabam filium tabescebam ideo quod illos tabescere videram mei beneficio Tales sollicitudines multis diebus passa sum et usurpavi ut mecum infans in carcere maneret et statim convalluit et relevata sum a labore et sollicitudine infantis et factus est mihi carcer subito praetorium ut ibi mallem esse quam alicubi IV Tunc dixit mihi frater meus Domina soror iam in magna dignatione es tanta ut postules visionem et ostendatur tibi an passio sit an commeatus Et ego quae me sciebam fabulri cum Domino cuius beneficia tanta experta eram fidente repromisi ei dicens Crastina die tibi renuntiabo Et postulavi et ostensum est mihi hoc Video scalam aeream mirae magnitudinis pertangentem usque ad caelum A tradução que segue inclui também alguns comentários não estou certo de ter sempre encontrado a interpretação correta II Foram presos os jovens catecúmenos Revocato Felicidade sua companheira de escravidão Saturnino e Secúndulo Entre eles também Víbia Perpétua bemnascida cuidadosamente educada legitimamente casada com pai Sermo humilis mãe dois irmãos um dos quais igualmente catecúmeno e um filho ainda de colo Tinha cerca de vinte e dois anos Daqui em diante ela mesma narrou toda a seqüência de seu martírio que deixou escrito por sua própria mão e com sua própria percepção III Estávamos ainda em mãos de nossos perseguidores e como meu pai desejava demoverme com palavras e insistia em dissuadirme eu lhe disse Pai estás vendo por exemplo este vaso aqui ao lado ou aquele jarro ali Estou disse ele Então eu lhe disse Por acaso pode ser chamado com outro nome que não aquele que diz o que é Não disse ele Assim também eu não posso dizer que sou outra coisa que não aquilo que sou Cristã Então meu pai enfurecido pelas minhas palavras lançase contra mim como para arrancarme os olhos mas apenas sacudiume e partiu vencido junto com os argumentos do diabo Então fiquei uns poucos dias sem ver meu pai e dei graças a Deus e descansei com a ausência dele Neste mesmo espaço de poucos dias fomos batizados e o Espírito mandoume que nada buscase da água a não ser o sofrimento da carne Depois de alguns dias fomos recolhidos ao cárcere e fiquei apavorada porque nunca tinha experimentado tal escuridão Que dia difícil Era forte o calor por causa do acúmulo de gente os maustratos dos guardas Eu me afligia preocupada com meu filho num lugar daqueles Então Tércio e Pompônio benditos diáconos que nos assistiam conseguiram com dinheiro que fôssemos enviados por poucas horas a um lugar melhor da prisão e nos recuperássemos Então saindo da pior parte do cárcere todos puderam ocuparse de si mesmos Eu dava de mamar ao bebê já fraco de fome preocupada por ele falava com minha mãe confortava meu irmão e confiavalhes meu filho Eu me consumia de ver que 71 Ensaios de literatura ocidental se consumiam por minha causa Suportei tais preocupações por muitos dias e consegui que meu filho permanecesse comigo na prisão imediatamente recobrei minhas forças e soerguime do sofrimento e da preocupação pelo bebê e de repente o cárcere para mim transformouse num palácio onde mais do que em outro local eu queria estar IV Então meu irmão me disse Senhora irmã estás em estado de grande exaltação mística tão grande que podes pedir uma visão em que se revele a ti se isto é martírio ou provação passageira E eu que sabia que conversava com o Senhor de quem experimentei tantos favores com fé prometi a meu irmão respondendolhe Amanhã ficarás sabendo E eu pedi e foime revelado o seguinte Vejo uma escada de bronze de admirável grandeza que atinge o céu Não há artifício retórico algum na narrativa de Perpétua A cuidadosa educação que recebeu exerce pouca influência em seu estilo Seu vocabulário é limitado a estrutura de suas frases tem pouca desenvoltura os conectivos uso freqüente do tunc nem sempre são claros O especialista logo percebe vários vulgarismos como mittit se no lugar de ruit e locuções tipicamente cristãs refrigerare A linguagem é em geral quebradiça pouco literária e um tanto acanhada quase infantil E contudo Perpétua é bastante expressiva Descreve coisas sem correspondente na literatura antiga o zelo obstinado com que demonstra a seu pai ilustrando seu argumento com um jarro que é uma cristã e não pode ser chamada de outro modo o acesso de raiva impotente de seu pai as primeiras horas na prisão na escuridão sufocante em meio aos soldados com a criança faminta como começa a sentirse feliz na prisão e talvez o mais impressionante de tudo seu diálogo com o irmão ambos tão jovens radiantes de entusiasmo com tal provação Domina soror iam in magna 72 Sermo humilis dignatione es Irmã minha senhora estás em estado de grande exaltação mística E ela cheia de confiança Amanhã ficarás sabendo A literatura antiga teve sua Antígona mas nada de comparável a isso nem poderia ter tido30 não existia um gênero literário capaz de expor tal realidade com tamanha dignidade e elevação tampouco havia uma gloria passionis Antígona encaminhase para a morte cheia de dignidade mas lamentandose não triunfando Talvez se objete que martirológios como o de Perpétua não são documentos literários Isso é verdade pois não foram concebidos a exemplo dos mimos e da sátira como obras literárias Destinamse porém a correr mundo centenas de milhares de pessoas ouvirão a respeito fatos semelhantes ocorrerão em outras localidades a outras pessoas e estes serão por sua vez relatados e em torno deles será tecido um fio narrativo Um gênero literário começará a se desenvolver e aqui o vemos nascer Em seu início ele desvenda toda a força da crua realidade algumas pessoas eleitas ao acaso para o martírio celebram o triunfo de seus sofrimentos os perseguidores a cena do martírio a vida numa família parcial ou totalmente pagã tudo isso é tratado como algo costumeiro como uma realidade sem adornos O cotidiano humilde transformase e cobra uma nova gravitas O pai com seus argumentos diabólicos é um personagem trágico Perpétua sente isso mas não pode ajudálo Mais adiante VI durante o julgamento ele tenta desesperadamente dissuadila de seu propósito e apenas os açoites dos guardas do tribunal são capazes de separálos Sobre isso ela escreve et doluit mihi patris 73 30 É óbvio que isso se aplica apenas à questão do estilo que discutimos aqui Tenho consciência de que muitas idéias antigas estão contidas na Passio de Perpétua Cf em especial F J Dölger Antike Parallelen zum leidenden Dinocrates in der Passio Perpetuae in Antike und Christentum II 140 Ensaios de literatura ocidental mei quasi ego fuissem percussa sic dolui pro senecta eius misera e doeram em mim os golpes em meu pai como se eu tivesse sido açoitada assim sofri por sua infeliz velhice No relato que segue referindo os acontecimentos na prisão interrompido às vezes por visões o estilo é totalmente novo O destino da escrava Felicitas que tem um parto prematuro na prisão é interpretado por meio de uma antítese triunfal seus companheiros de prisão e ela mesma enchemse de alegria por ela poder assim compartilhar o martírio com os demais XVIII a sanguine ad sanguinem ab obstetrice ad retiarium lotura post partum baptismo secundo do sangue para o sangue da parteira para o gladiador ela há de se lavar por um segundo batismo após o parto Todos estavam familiarizados com a idéia do batismo de sangue Quando Sáturo o líder que converteu a todos é retirado da arena banhado em sangue o povo grita Salvum lotum salvum lotum Banho salutar banho salutar Esta era uma frase que em geral se proferia após os banhos Mas o narrador interpreta tal aclamação cruelmente irônica como secundi baptismatis testimonium Plane utique salvus erat qui hoc modo laverat o testemunho do segundo batismo com toda a certeza estava salvo quem tinha se lavado deste modo A mistura evidenciada no martírio de Perpétua e em textos afins de elementos que antes pareciam incompatíveis o aspecto trágico ou sublime retratado em meio à vida cotidiana e de forma extremamente realista tem seu modelo na literatura como na realidade na história da Paixão de Cristo narrada nos Evangelhos Dela procede também o tema da gloria passionis o triunfo do sofrimento31 31 Ver meu Gloria passionis texto redigido como apêndice a Sermo humilis incluído neste volume 74 Sermo humilis Poucos textos são comparáveis a este mesmo as narrativas do século III raramente fazem uma descrição tão pormenorizada e penetrante de pessoas e situações Na maioria dos casos a dramaticidade e a vivacidade limitamse às cenas do julgamento e algumas vezes até mesmo em documentos autênticos há um certo pendor para a tipicidade lendária Mais tarde quando a época das perseguições já chegara ao fim os martirológios tornaramse de fato um gênero literário em que predominavam os tipos miraculosos e lendários32 Apesar do esquematismo todas essas obras revelam o mesmo espírito que afinal é intrínseco ao objeto Tratase sempre de um indivíduo comum que é afastado de seu cotidiano prosaico de sua família de sua classe social ou de seu ofício mesmo que isso seja retratado da forma mais esquemática ou lendária possível e chamado a prestar testemunho a natureza sublime e sagrada do acontecimento cresce no solo do cotidiano e a despeito das provações e tormentos infligidos ao santo permanece sempre um fundo de realismo Foi esse realismo que pretendi assinalar tomando como base o texto sobre Perpétua Ele se encaixa nas características previamente discutidas do sermo humilis é acessível a todos voltado para a caridade secretamente sublime e próximo da comunidade cristã Acredito que em seu conjunto pode ser compreendido mais fácil e concretamente como o fizemos aqui como uma mistura de duas esferas a sublime e a humilde expressa na evolução semântica do termo humilis Esse tipo de sermo humilis foi empregado na literatura cristã ao longo de toda a Idade Média e mesmo depois O maior documento desse sublime cristão é a Divina comédia de Dante por 32 É de interesse aqui H Delehaye Les Passions des martyrs et les genres littéraires Bruxelas 1921 75 Ensaios de literatura ocidental esse motivo quero encerrar este ensaio com uma citação de Benvenuto da Imola o comentador de Dante cujo ensinamento foi o primeiro a me indicar muitos anos atrás a via para lidar com o problema Referindose ao Inferno II 56 e cominciommi a dir soave e piana Benvenuto faz a seguinte observação et bene dicit quia sermo divinus est suavis et planus non altus et superbus sicut sermo Virgilii et poetarum e diz bem porque a fala divina é suave e chã não elevada e soberba como a fala de Virgílio e dos poetas33 33 Ver meus Neue Dantestudien 76
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Sermo humilis una voce modesta forse qual fu dallangelo a Maria Dante Paradiso XIV 356 Um sermão de Santo Agostinho o de número 256 na edição maurista¹ pregado em ocasião cuja data por acaso conhecemos² começa da seguinte maneira Quoniam placuit Domino Deo nostro ut hic constituti praesentia corporali etiam cum vestra Charitate illi cantaremus Alleluia quod Latine interpretatur Laudate Dominum laudemus Dominum fratres vita et lingua corde et ore vocibus et moribus Sic enim sibi dici vult Deus Alleluia ut non sit in laudante discordia Concordent ergo prius in nobis ipsis lingua cum vita os cum conscientia Concordent inquam voces cum moribus ne forte bonae voces testimonium dicant contra malos mores O felix Alleluia in coelo ubi templum Dei Angeli sunt Ibi enim concordia summa laudantium ubi est exultatio secura cantantium ubi nulla lex in membris repugnat legi mentis ubi non est rixa cupiditatis in qua periclitetur victoria charitatis Hic ergo cantemus Alleluia adhuc sollicit ut illic possimus aliquando cantare securi Quare hic solliciti Non vis ut sim sollicitus quando ¹ Patrologia Latina XXXVIII 1190 ² Um concílio de bispos celebrado em Cartago em 5 de maio de 418 Ver Wilmart na Revue Bénédictine XLII 1930 p 142 29 Ensaios de literatura ocidental lego Numquid non tentatio est vita hominum super terram Job 7 1 Non vis ut sim sollicitus quando mihi adhuc dicitur Vigilate et orate ne intretis in tentationem Marc 14 38 Non vis ut sim sollicitus ubi sic abundat tentatio ut nobis ipsa praescribat oratio quando dicimus Dimitte nobis debita nostra sicut et nos dimittimus debitoribus nostris Quotidie petitores quotidie debitores Vis ut sim securus ubi quotidie peto indulgentiam pro peccatis adiutorium pro periculis Cum enim dixero propter praeterita peccata Dimitte nobis debita nostra sicut et nos dimittimus debitoribus nostris continuo propter futura pericula addo et adiungo Ne nos inferas in tentationem Quomodo est autem populus in bono quando mecum clamat libera nos a malo Et tamen fratres in isto adhuc malo cantemus Alleluia Deo bono qui nos liberat a malo Quid circum inspicis unde te liberet quando te liberat a malo Noli longe ire noli aciem mentis circumquaque distendere Ad te redi te respice tu es adhuc malus Quando ergo Deus te ipsum liberat a te ipso tunc te liberat a malo Apostolum audi et ibi intellegi a quo malo sis liberandus Condelectur enim inquit legi Dei secundum interiorem hominem video autem aliam legem in membris meis repugnantem legi mentis meae et captivantem me in lege peccati quae est ubi captivantem inquit me in lege peccati quae est in membris meis Putavi quia captivavit te sub nescio quibus ignotis barbaris putavi quia captivavit te sub nescio quibus gentibus alienis vel sub nescio quibus hominibus dominis Quae est inquit in membris meis Exclama ergo cum illo Miser ego homo quis me liberabit Unde quis liberabit Dic unde Alius dicit ab optione alius de carcere alius de barbarorum captivitate alius de febre atque langore Dic tu apostole non quo mittamur aut quo ducamur sed quid nobiscum portemus quid nos ipsi simus dic De corpore mortis huius De corpore mortis huius De corpore inquit mortis huius Rom 7 22 ss 30 Sermo humilis Como agradou a Deus Nosso Senhor que nós corporalmente presentes aqui reunidos convosco e com vossa Caridade a ele cantássemos Aleluia que em latim quer dizer Louvai o Senhor louvemos o Senhor irmãos com vida e palavras com coração e boca com vozes e costumes Pois Deus quer que se lhe diga Aleluia para que não haja discórdia em quem louva Portanto que primeiro em nós mesmos sejam concordes fala e vida voz e consciência Que sejam concordes afirmo palavras e costumes para que boas palavras não venham a testemunhar contra maus costumes Ah feliz Aleluia no céu onde os Anjos são o templo do Senhor Pois é máxima a concórdia dos que louvam onde é sem temor a alegria dos que cantam onde nos membros nenhuma lei luta contra a lei da razão onde não há conflito de desejos em que corra perigo a vitória da caridade Por isso cantemos aqui Aleluia ainda inquietos para que possamos alguma vez cantar ali seguros Por que aqui inquietos Não queres que me inquiete quando leio não é a tentação a vida dos homens sobre a terra Jó 7 1 Não queres que me inquiete quando ainda me dizem Vigiai e orai para que não entreis em tentação Mc 14 38 Não queres que me inquiete aqui onde a tentação é tão grande que a própria oração nos previne quando dizemos Perdoanos nossas dívidas como nós também perdoamos aos nossos devedores Diariamente suplicantes diariamente devedores Queres que eu esteja seguro quando diariamente suplico indulgência pelos pecados auxílio nos perigos Pois toda vez que pelos pecados passados eu digo Perdoanos nossas dívidas como nós também perdoamos aos nossos devedores de imediato pelos pecados futuros eu completo acrescentando e não nos deixes cair em tentação Como um povo pode estar no bem quando comigo exclama livranos do mal E no entanto irmãos embora ainda estejamos neste mal can 31 temos Aleluia ao bom Deus que nos livra do mal Por que olhas em volta de ti para saber do que ele te livra quando é do mal que ele te livra Não vás longe não voltes teu pensamento para todo lado Voltate para ti olha para ti mesmo tu ainda és mau Quando pois Deus te livra de ti mesmo livrate do mal Ouve o Apóstolo e compreende ali de que mal deves ser livrado Eu me deleito diz ele na lei de Deus segundo o homem interior mas percebo outra lei em meus membros que peleja contra a lei da minha razão e que me acorrenta à lei do pecado que existe onde que me acorrenta diz ele à lei do pecado que existe em meus membros Pensei que ela te aprisionava entre não sei que bárbaros desconhecidos pensei que te aprisionava em não sei que nações estrangeiras ou sob o jugo de não sei que homens ou senhores Mas ele diz que existe em meus membros Então exclama junto com ele Infeliz de mim Quem me livrará Quem me livrará do quê Dizeme do quê Do arbítrio um diz Do cárcere diz outro Da escravidão dos bárbaros diz um outro Da febre e da enfermidade diz outro ainda Dize tu apóstolo não para onde somos enviados ou para onde somos conduzidos mas o que carregamos conosco o que nós mesmos somos dize Corpo desta morte Do corpo desta morte Do corpo ele responde desta morte Rm 7 22 ss O texto trata da servidão humana aos pecados ao corpo desta morte Na sequência do sermão que não reproduzimos acima dizse que o corpo da morte do qual Paulo quer se livrar pertence a nós mesmos não podemos nos livrar dele pois mesmo ao morrermos não o estaremos abandonando para sempre Ele permanecerá junto a nós nós o reencontraremos mas não mais como corpo da morte e sim como corpo espiritual e imortal Sermo humilis A apresentação como logo se percebe é retórica ao extremo quase cênica basta ler o texto lentamente e tentar imaginálo proferido pelo pregador Logo no começo o forte e dramático Laudemus Dominum responde a um Laudate Dominum introduzido como simples tradução seguido então do vocativo fratres e das três unidades idênticas vita et lingua corde et ore vocibus et moribus Em grupos sonoros alternantes e antitéticos3 o tom se eleva ao júbilo angélico no qual exultatio secura cantantium contrasta com concordia summa laudantium lex mentis com lex in membris citação do apóstolo Paulo rixa cupiditatis com victoria charitatis para retornar ao Alleluia sobre a terra quando então o tema terreno solliciti aparece em oposição ao securi celestial Uma série de perguntas anáforas isócolos e antíteses4 levanos à fonte da aflição ao mal de que buscamos libertação Perguntas e respostas dominam o resto da passagem o que procuras fora de ti Procura em ti tu mesmo és o mal O mesmo apóstolo é invocado como testemunha e suas palavras que já ressoavam no texto são agora dramatizadas como num interrogatório com repetidas expressões de espanto novas perguntas e confirmações do já dito De que devemos ser libertados Dize de quê Um diz que disso outro diz que daquilo Dize tu apóstolo Do corpo desta morte Do corpo desta morte Do corpo responde ele desta morte Esse modo retórico de expressão deriva no todo como em cada uma de suas partes da tradição acadêmica da Antigüidade 3 Laudatelaudemuslaudantelaudantium cordediscordiaconcordentconcordent voces cum moribus bonae voces malos mores 4 Anáforas Non vis ut sim sollicitus três vezes seguido de vis ut sim securus Quotidie noli Isócolos antitéticos notadamente indulgentiam pro peccatis oposto a adiutorium pro periculis Cf também os ecos sonoros de quomodo quando libera bono malo in te te tu prosseguindo com liberandus Não apenas as figuras sonoras os membros de medidas idênticas com finais homófonos as anáforas perguntas e antíteses mas também o próprio diálogo simulado eram parte do legado das escolas retóricas A pregação cristã desenvolveuse desde cedo segundo o modelo da diatribe da declamação acadêmica sobre temas de filosofia moral na qual as opiniões do adversário eram reproduzidas em discursos simulados a que o próprio orador em seguida respondia formando assim uma cena dramática5 São vários os exemplos alguns provenientes do início mesmo da era cristã É característico o inquit que aparece várias vezes até a última linha de nosso texto6 À época de Santo Agostinho por volta de 400 dC havia muito que não prevaleciam mais as formas de expressão da literatura cristã primitiva nada ou pouco refinadas e por isso tão desagradáveis para ouvidos antigos educados na tradição grecolatina No Oriente como no Ocidente ocorrera uma fusão ou adaptação A pregação cristã serviase da tradição retórica que impregnava todo o mundo antigo falava por meio das formas a que estavam acostumados os ouvintes todos eles inclinados a julgar um discurso pelo efeito sonoro das palavras O gosto pela oratória difundirse até mesmo na África púnica onde entretanto não se falava absolutamente um latim puro Os ouvintes aplaudiam e se empolgavam quando uma figura retórica lhes agradava de modo especial atestamno os pregadores famosos do 5 U von WilamowitzMöllendorf Der kynische Prediger Tales in Philologische Untersuchungen IV 1881 292 E Norden Die antike Kunstprosa 129 e especialmente 556 Wendland Die hellenistischrömische Kultur cap V 6 Há uma reminiscência literária na própria formulação Sêneca escreve Ad Luc Epist 75 4 quod sentimus loquamur quod loquimur sentiamus concordet sermo cum vita o que sentimos falemos o que falamos sintamos que a fala concorde com a vida Oriente como São João Crisóstomo e do Ocidente como o próprio Santo Agostinho As figuras retóricas parecemnos artificiais pedantes e refinadas demais De fato elas o são e contudo têm raiz no amor universal às eufonias e jogos de palavras de resto o que parece arte refinada a uma certa época pode parecer simples convenção algumas gerações mais tarde As figuras do nosso texto derivam da tradição retórica acadêmica mas o efeito final é de simplicidade subordinadas que estão à clareza pedagógica e a construção das frases soa por vezes quase coloquial Temos aqui uma retórica pragmática composta de elementos solenes e cotidianos destinada à doutrinação e à admoestação Os isócolos sonoros gravamse na mente a exclamação lírica O felix Alleluia in coelo com seus ubi e ibi é simples e didática como se fosse infantil e se não coloquial a pergunta anafórica Non vis ut sim sollicitus está escrita no mais simples dos estilos Finalmente os trechos de diálogo que seguem primeiro a procura pelo mal depois o interrogatório do apóstolo com a tríplice repetição da resposta a cada vez com entoação diferente são uma espécie de teatro didático onde cenas e gestos não se limitam a ensinar a lição mas buscam também representar as reações que a lição deve suscitar A lição de que se trata aqui é entretanto uma das mais difíceis do cristianismo e além disso uma das mais estranhas aos modos de pensar da Antigüidade nós perpetramos o mal apesar de conhecermos e querermos o bem porque estamos sujeitos ao pecado ao corpo diante do qual são impotentes a força de nosso conhecimento do bem e nossa vontade de praticálo Devemos libertarnos de nós mesmos do corpo desta morte e contudo esse corpo nos pertence estará novamente conosco quando da ressurreição Aqui como em milhares de outras ocasiões as formas da retórica antiga servem para apresentar um paradoxo tão difícil e insondável quanto este como algo de estabe 35 lecido e indubitável7 O público de então era igualmente receptivo a tais formas retóricas antigas e a tais conteúdos cristãos Nossa questão é saber quais modificações as formas tradicionais sofreram sob o peso dos novos conteúdos e ao mesmo tempo em que medida elas em sua variante cristã podem ainda ser acomodadas no sistema da retórica antiga Esse sistema consiste em uma hierarquia de níveis de estilo queremos então saber em qual nível dessa hierarquia seria possível encaixar os níveis de estilo presentes em nosso texto O próprio Santo Agostinho manifestouse a respeito Em De doctrina christiana IV 12 ss ele fala da utilização da retórica acadêmica na pregação cristã Não tinha dúvidas sobre a necessidade de o fazer não haveria sentido algum diz ele em abandonar as armas da eloqüência aos representantes da mentira e proibilas aos representantes da verdade Sua concepção dos três níveis tradicionais de estilo o sublime o médio e o baixo segue a de Cícero especialmente no Orator 69 ss Para o ensino e a exegese recomenda o estilo baixo o qual segundo Cícero se não deve ser adornado nem por isso pode ser displicente ou incorreto o médio temperatum onde as figuras retóricas têm seu lugar natural caberia ao elogio e à repreensão à admoestação e à dissuasão e o estilo grandioso ou sublime que não exclui mas também não depende das figuras retóricas deveria suscitar os grandes transportes de emoção destinados a induzir os homens à ação Santo Agostinho crê poder encontrar exemplos dos três níveis de estilo na literatura cristã anterior a sua própria obra 7 Nem sempre com a mesma mestria No Ocidente dificilmente havia outro orador comparável a Santo Agostinho e no Oriente havia poucos Sobre o estilo dos sermões de Santo Agostinho cf Edith Schuchter Zum Predigstil des hl Augustinus LII 1934 115 ss 36 Os exemplos que recolhe nas epístolas paulinas e nos sermões de Cipriano e Ambrósio dão mostra de sua admiração por aquelas passagens em estilo médio compostas de membros sintáticos curtos e estruturalmente idênticos dispostos em pares antitéticos8 Os exemplos de estilo baixo ocupamse principalmente da interpretação de trechos da Bíblia os de estilo médio dois dos quais dedicados ao elogio da virgindade são descritivos e admoestativos sendo que as citações de Cipriano e Ambrósio são suaves e quase ternas Quanto ao estilo sublime Santo Agostinho cita igualmente trechos que utilizam as figuras retóricas granditer et ornate e outros que não o fazem comum a ambos é o tom passional Vale ainda notar que ele recomenda a utilização dos três níveis de estilo no mesmo discurso em nome da variedade seguindo neste ponto a tradição antiga ver por exemplo Quintiliano XII 10 58 ss9 Nos capítulos 22 e 23 indica os modos de variação do discurso advertindo sobretudo contra a introdução abrupta e a utilização prolongada do estilo sublime aconselha utilizar com freqüência o estilo baixo seja com o fim de esclarecer um problema seja para dar maior realce às passagens adornadas ou sublimes 8 De doctr chr IV 20 40 illa pulchriora sunt in quibus propria propriis tamquam debita reddita decenter excurrunt são mais belas as passagens nas quais as palavras restituídas aos seus próprios significados como dívidas pagas fluem adequadamente E mais adiante sobre Romanos 12 16 Et quam pulchre ista omnia sic effusa bimembri circuitu terminantur e quão belamente se encerram todas aquelas falas como que derramadas em períodos bimembres isto é non alta sapientes sed humilibus consentientes sem pretensões de grandeza mas sentindose solidários com os humildes 9 Cícero no começo de De optimo genere oratorum Quintiliano X 2 22 Cf também a eloquendi varietas variedade de elocução em Plínio Epist VI 33 II 5 III 13 etc 37 Ensaios de literatura ocidental Seria possível concluir que segundo a concepção agostiniana o texto que examinamos pertenceria essencialmente ao nível médio com alguma mistura de estilo baixo e didático A riqueza de paralelos e figuras retóricas mais o tom descritivo admoestativo e levemente lírico do começo indicam o estilo médio Um pouco adiante com o elemento didático dos diálogos simulados da diatribe temos o estilo baixo Um uso igualmente vivaz das formas coloquiais da linguagem pode ser encontrado nas passagens tiradas da Epístola aos Gálatas 4 216 que Santo Agostinho no começo do capítulo 20 remete ao estilo baixo É fácil seguir essas idéias de Santo Agostinho quando se tem em mente que sua intenção é dar preceitos práticos para a utilização dos níveis de estilo antigos e que para tanto se apóia em Cícero especialmente na definição ciceroniana do sermo baixo inteiramente voltada para a oratória política e forense Mas seus pressupostos são inteiramente diferentes Quando Cícero citado por Santo Agostinho em De doctrina christiana IV 17 diz no Orator 101 que is igitur erit eloquens qui poterit parva submisse modica temperate magna granditer dicere será eloqüente aquele que conseguir falar de modo submisso sobre coisas pequenas de modo comedido sobre coisas medianas de modo elevado sobre coisas grandiosas ele entende esses graus parva modica magna de modo absoluto parva designa algo de absolutamente baixo como as minúcias dos assuntos de dinheiro e demais acontecimentos cotidianos que devam ser esclarecidos ao longo de um discurso forense O orador cristão não reconhece graus absolutos separando os temas possíveis somente o contexto e a intenção conforme seu objetivo seja instruir admoestar comover passionalmente determinam qual nível de estilo utilizar O tema do orador cristão é sempre a revelação cristã e esta não pode jamais ser um tema baixo ou médio Quando Santo Agostinho ensina que temas cristãos devem ser tratados em estilo médio ou 38 Sermo humilis baixo seu preceito referese tãosomente aos modos de apresentação que devem variar para ser inteligíveis e eficazes a hierarquia pagã não conserva validade alguma O que a literatura antiga e pagã tem a oferecer como temas sublimes ou agradáveis é nãocristão e repreensível com estranheza e embaraço Santo Agostinho aponta em Cipriano uma passagem idílica e média no sentido pagão do termo Mas é no capítulo 18 logo após a citação de Cícero já mencionada que Santo Agostinho se declara mais claramente contra a hierarquia antiga dos temas Parafraseio em seguida essa passagem de forma ligeiramente resumida A tripartição ciceroniana sustentase apenas para os casos forenses não para os temas espirituais com que lidamos Cícero chama de pequenos os temas referentes ao dinheiro e de grandes os que lidam com a salvação e a vida da humanidade os médios estariam entre esses dois casos Isso não pode servir para nós cristãos para nós são grandes todos os temas especialmente quando falamos ao povo do alto do púlpito nosso tema é sempre a salvação da humanidade não só a salvação terrena mas também a eterna de modo que até mesmo questões de dinheiro tornamse importantes a despeito da soma envolvida A justiça não é menor por ser praticada em pequenas questões monetárias pois o Senhor disse Quem é fiel nas coisas mínimas é fiel também no muito Lucas 16 10 São pequenos os pequenos negócios mas é grande quem permanece honesto mesmo neles Santo Agostinho cita em seguida I Coríntios 6 19 onde São Paulo repreende aqueles membros da comunidade que se haviam dirigido aos tribunais pagãos por causa de disputas legais Por que se indigna o apóstolo Por que reage tão energicamente Por que repreende vitupera e ameaça dessa maneira Por que deixa sua irritação aflorar em tom tão amargo e abrupto Qual é afinal o motivo para falar com tanta paixão e em estilo tão grandioso sobre temas tão pequenos As coisas terrenas têm tanto sig39 Ensaios de literatura ocidental nificado assim para ele De modo algum Age assim tãosomente em nome da justiça do amor ao próximo da piedade nenhum homem de mente sã pode duvidar que essas são coisas sublimes mesmo nos casos mais insignificantes Onde quer que falemos do que nos preserva da danação e nos leva à felicidade eterna seja para o povo reunido ou em conversa privada com uma só pessoa ou com muitas com amigos ou com inimigos num discurso ininterrupto ou numa discussão em sermões ou em livros o tema permanece sublime Um copo de água fresca é decerto coisa menor e de pouco valor mas estaria o Senhor a falar de coisas menores e de pouco valor quando promete que aquele que oferecer um copo de água fresca ao último de seus criados não deixará de ter sua recompensa Mateus 10 42 E o pregador que fala a respeito em sua igreja deveria ele pensar que fala de algo menor tendo portanto de utilizar não o estilo médio não o estilo alto mas sim o estilo baixo Mas não se viu há pouco que enquanto falávamos ao povo a respeito e não sem perícia pois Deus estava conosco uma espécie de chama irrompeu naquela água fresca algo que inflamou os frios corações dos homens e por meio da esperança na recompensa celestial impeliuos a obras de misericórdia Só depois dessa advertência aliás em estilo passionalmente elevado começa Santo Agostinho a explicar em que medida a doutrina da tripartição dos estilos pode ser utilizada na prática pelo orador cristão A advertência é de significado fundamental os objetos baixos ou corriqueiros uma questão de dinheiro ou um copo de água fresca perdem esse caráter quando introduzidos num contexto cristão prestandose então ao estilo sublime e inversamente como se poderá depreender dos esclarecimentos seguintes de Santo Agostinho os maiores mistérios da fé podem ser expostos nas palavras simples e acessíveis do estilo baixo Isso representa um desvio tão marcante da tradiçã 40 retórica e literária que chega quase a destruir seus fundamentos A tradição baseavase na idéia de gêneros oratórios ou literários nos quais temas e modos de expressão deveriam concordar quanto à dignidade era por isso essencial classificar os temas desse ponto de vista Mas os temas classificados como baixos eram muito variados o baixo abrangia a informação factual os objetos considerados insignificantes ou desimportantes os temas da vida privada e do cotidiano o cômico o erotismo jocoso o registro satírico realista ou obsceno Além da sátira do mimo do iambo incluíamse aí tanto a fábula de animais como o discurso forense a respeito de temas privados ou econômicos assim era incerta a fronteira com os gêneros médios Em conseqüência dessa variedade também eram muito diversas as descrições dos modos de expressão e tratamento nos gêneros baixos sendo igualmente várias as subclasses Já mencionamos acima a descrição de Cícero no Orator da qual parte Santo Agostinho para Cícero o estilo baixo não deve ser adornado mas de uma elegância transparente à primeira vista fácil de praticar mas que exige verdadeira mestria o estilo baixo tornase então dificilmente discernível do ideal ático deloûs tornar manifesto e não psykhagogeîn seduzir Mas a concepção dominante prescrevia ao estilo baixo um realismo vivo e um tom fortemente popular nos temas como nos modos de expressão10 A separação de 41 10 Não é este o lugar de analisar as variantes dessas concepções e as diferentes opiniões e tendências entre os autores antigos a esse respeito Entre as publicações mais recentes podese mencionar C Jensen Herakleides von Pontos 1936 e F Wehrli em Phyllobolia für Peter von der Mühll 1946 Característica da concepção mais elegante do estilo baixo é o termo subtilis que ocorre não somente em Cícero Orator 100 mas também na passagem frequentemente citada dos comentários de Porfírio a Horácio Carmina IV 2 278 onde se diz que à diferença de Píndaro Horácio escreve suas odes em estilo modesto e menor e contudo estilos é particularmente nítida no teatro antigo a comédia põe em cena pessoas e situações da vida cotidiana em estilo baixo ou ocasionalmente médio enquanto a tragédia lida com personagens lendários príncipes e heróis Em todos os casos atribuise máxima importância à noção de harmonia entre o tema e o modo de expressão É ridículo e monstruoso kakozelia tapeinosis indecorum tratar de temas elevados e sublimes em termos cotidianos baixos ou realistas bem como tratar de coisas cotidianas em estilo sublime Volta e meia encontrase tal idéia em Cícero Horácio Quintiliano no autor de Peri Hypsous Do sublime e mais tarde nos incontáveis retores que propagaram a teoria clássica A doutrina persistiu como um fantasma por toda a Idade Média até recobrar vida nova com o Humanismo Vale lembrar que os grandes oradores e críticos da Antigüidade tardia não eram pedantes de espírito estreito eram elásticos o bastante para reconhecer a eficácia de uma expressão energicamente realista no interior de uma peça sublime11 e sabiam perceber e muitas ve refinado e doce parva quidem et humilia sed subtilia ac dulcia Sobre o realismo cf outra passagem em Porfírio a respeito de Horácio Sat I 10 56 Quanto ao estilo dramático cf a passagem famosa e influente na Ars Poetica de Horácio especialmente 89 ss e 225 ss Uma passagem interessante sobre um pintor realista encontrase em Plínio Hist nat XXXV 112 e quibus fuit Piraeicus humilia quidem secutus humilitatis tamen summam adeptus est gloriam Tonstrinas sutrinasque pinxit et asellos et obsonia ac similia ob haec cognominatus rhyparographos in iis consummatae voluptatis quippe eae pluris veniene quam maximae multorum entre os quais estava Pireico que tendo se ocupado de temas humildes nessa humildade porém obteve o ápice da glória Pintou barbearias e lojas de sapateiros burricos comestíveis e coisas semelhantes tendo sido por isso chamado pintor de objetos vis rhyparographos E nisso sua satisfação foi completa pois suas pinturas foram vendidas a preço maior do que as maiores pinturas de muitos 11 Cf por exemplo Peri Hypsous XXI 1 e Quintiliano VII 3 20 ss 42 zes admirar a variação expressiva em um mesmo nível estilístico ou em uma mesma obra mas até isso pressupunha a hierarquia de temas e a noção da harmonia entre tema e expressão Em Santo Agostinho porém o princípio dos três níveis fundamentavase nos propósitos específicos do autor De doctr chr XIX ensinar docere condenar ou elogiar vituperare sive laudare e persuadir flectere Algo assim encontravase já em Cícero mas Santo Agostinho rejeita o pressuposto ciceroniano de que ao primeiro propósito prestase o estilo baixo ao segundo o médio e ao terceiro o sublime Os temas da literatura cristã são todos igualmente elevados e sublimes qualquer tema baixo em que ela tenha ocasião de tocar tornarseá por isso mesmo significativo Não obstante a tripartição dos estilos conserva sua utilidade prática para o orador cristão visto que a doutrina cristã além de ser sublime permanece obscura e difícil e como ela se destina a todos e todos devem compreendêla praticála e vivêla devese apresentála em estilo baixo médio ou elevado conforme o exija a situação Ainda teremos de precisar melhor o significado disso Como ponto de partida pode ser útil uma investigação semântica de um termo latino humilis que deriva sua força dos vários conteúdos que nele convergem Humilis está relacionado a humus solo e significa literalmente baixo em lugar baixo de baixa estatura Em seus sentidos figurados o termo expandiuse em várias direções De modo extremamente geral significa reles diminuto insignificante tanto absoluta quanto comparativamente No âmbito social e político designa origens obscuras educação deficiente pobreza falta de poder ou de prestígio na esfera da moral ações e atitudes baixas e indignas servilismo nas palavras e nos gestos vileza Além disso pode significar ainda desanimado pusilânime ou covarde Volta e meia quando no termo se combi 43 nam o destino infeliz e adverso a miséria e o medo tornase difícil distinguir as conotações morais das sociais Como em alemão utilizase o termo para uma vida em degradação ou para uma morte degradante muitas vezes significa ainda modesto deselegante de má qualidade gasto uma casa um pórtico uma estalagem uma peça de roupa podem ser ditos humilis Quando aplicado a ocupações e atividades quer dizer subalterno e Amiano Marcelino XVI 5 67 aparentemente de acordo com a tradição aristotélica chama a poesia e a retórica de humiliora membra philosophiae partes mais baixas da filosofia A noção de hierarquia está sempre presente e até mesmo vícios e delitos menores são denominados humiliora Nem sempre o sentido é negativo modéstia sábia moderação pia submissão e obediência estiveram desde sempre incluídas em seu campo semântico mesmo assim fora da literatura cristã o sentido predominante foi o pejorativo Em Sêneca são muitas as ocasiões em que o termo indica a insignificância da vida terrena em contraste com a vida eterna após a morte12 A partir do significado de grau ou nível inferior humilis tornouse uma das denominações mais usuais para o estilo baixo sermo humilis Havia muitas outras tenuis attenuatus subtilis quotidianus submissus demissus pedester planus communis abiectus comicus trivialis vilis sordidus tênue atenuado sutil quotidiano submisso baixo pedestre chão comum rasteiro cômico trivial vil sórdido mas a maioria destas tinha conotação demasiado específica de modo que muito poucas prestavam se tão bem quanto humilis a designar do modo mais geral possível a ampla esfera do estilo baixo Cícero Horácio Propércio Sêneca Quintiliano os dois Plínios e todos os retores comentadores e gramáticos posteriores continuamente utilizam humilis humiliter humilitas nesse sentido As teorias cristãs e medievais adotaramno e o termo veio a ser usado como denominação estilística em todas as línguas românicas e mesmo em inglês Por outro lado e aqui aparece a combinação que dá ao termo a força semântica já mencionada humilis tornouse o termo mais importante a designar a Encarnação nessa sua acepção ganhou tal preponderância que na literatura cristã latina exprime tanto o ambiente quanto o nível da vida e dos sofrimentos de Cristo A palavra nível é pouco usual nesse contexto mas não sei de outra que compreenda simultaneamente aspectos éticos sociais espirituais e estéticoestilísticos todos eles implicados aqui como logo se verá Foi justamente por meio da irradiação de seus significados humilde socialmente baixo inculto esteticamente tosco ou mesmo repugnante que humilis alcançou posição tão dominante e tão sugestiva Notase então especialmente no âmbito moral a inversão de significados desaparece o tom pejorativo e ganha relevo o aspecto positivo fraco e raro na literatura pagã Mesmo assim várias das antigas associações de palavras mantêmse inalteradas lado a lado com humilis surgem por exemplo abiectus e contemptus ou ainda mitis e mansuetus como antônimos ocorrem altus e sublimis além de superbus A passagem mais importante a respeito é Filipenses 2 78 onde se diz Sed semetipsum exinanivit formam servi accipiens in similitudinem hominum factus et habitu inventus ut homo Humiliavit semetipsum factus obediens usque ad mortem mortem autem crucis Mas esvaziouse a si mesmo tomando a forma de servo fazendose semelhante aos homens e achado com aspecto de homem Humilhouse a si mesmo tendo se tornado obediente até a morte e morte de cruz Além desta há a passagem sobre a conversão do eunuco etíope em Atos 8 26 ss com a referência a Isaias 52 1353 12 e Mateus 11 29 Outras numerosas passagens que não exprimem tão exata e diretamente o mesmo ponto prestavamse de um modo ou de outro a introduzir e desenvolver a nova atitude Entre essas estão Mateus 11 25 e 23 12 com as passagens correspondentes em Lucas 14 11 e 18 14 Romanos 12 16 I Coríntios 1 2629 Filipenses 3 21 e muitas mais O tema da humildade da Encarnação podia ser desenvolvido em várias direções A Encarnação como tal fora uma degradação voluntária como se vê na vida em condição subalterna na vida terrena entre os pobres de posses e de espírito na doutrina e nos atos de Cristo tudo isso coroado pela Paixão abjeta e cruel A partir daí e ao longo do conflito com as tendências espiritualizantes das seitas heréticas e das doutrinas pagãs desenvolveuse a insistência sobre a natureza corpórea de Cristo ao lado da doutrina da ressurreição universal A humildade da Encarnação alcança sua força máxima no contraste com a natureza divina constituindose dessa maneira a antítese paradoxal mais profunda da doutrina cristã homem e Deus baixeza e altura humilis et sublimis extremos inconcebíveis incomensuráveis peraltissima humilitas Para os fins desta investigação esse grupo de idéias forma o fundamento primeiro do motivo cristão do humilis ligado diretamente a Cristo Como se sabe são numerosos os exemplos na literatura cristã de todas as épocas citaremos a seguir apenas algumas passagens relevantes de Santo Agostinho13 A natureza corpórea de Cristo na Terra e após a Ressurreição verbum caro factum palavra tornada carne já formulada anteriormente por Tertuliano entre outros em sua luta contra Márcion é afirmada por Santo Agostinho por meio da noção de humilitas os exemplos mais conhecidos são as passagens polêmicas contra o platonismo como De civitate Dei X 29 nas quais a humilitas de Cristo é contraposta à superbia dos platônicos a seu desprezo pela carne Christus humilis vos superbi Esse motivo é o fundamento da importância dada aos eventos concretos na doutrina cristã logo voltaremos a este ponto O texto mais significativo que conheço para a humilitas passionis ainda que nele não ocorra o termo humilis consta das Enarrationes in Psalmos 96 4 Ille qui stetit ante iudicem ille qui alapas accepit ille qui flagellatus est qui consputus est ille qui spinis coronatus est ille qui colaphis caesus est ille qui in ligno suspensus est ille cui pendenti in ligno insultatum est ille qui in cruce mortuus est ille qui lancea percussus est ille qui sepultus est ipse resurrexit Saeviant quantum possunt regna quid sunt factura Regi regnorum Dominum omnium regum Creatori omnium saeculorum Aquele que se esteve diante do juiz aquele que levou tapas aquele que foi flagelado aquele que levou cuspidas aquele que foi coroado de espinhos aquele que foi coberto de golpes aquele que foi pendurado numa árvore aquele que pendurado na árvore foi insultado aquele que morreu na cruz aquele que foi ferido com a lança aquele que foi sepultado este mesmo ressuscitou Cometam os reinos quantas crueldades possam o que farão contra o Rei dos reinos contra o Senhor de todos os reis contra o Criador de todos os séculos Santo Agostinho In Ioannis Evangelium tractatus 40 2 a propósito de João 12 32 illa exaltatio humiliatio fuit aquela exaltação foi humilhação des possam o que farão contra o Rei dos reinos contra o Senhor de todos os reis contra o Criador de todos os séculos Em nenhum outro lugar o tema humilissublimis ligado à humilhação concreta da divindade foi elaborado tão nitidamente como neste Um segundo grupo de idéias ligase a este primeiro Tratase agora da humilitas social e espiritual dos destinatários da doutrina a quem portanto esta deve ser acessível as passagens bíblicas mais importantes são Mateus 11 25 Lucas 10 21 Atos 4 13 Romanos 12 16 I Coríntios 1 1821 Tiago 4 6 Há ainda inúmeros desdobramentos na literatura patrística em alguns poucos casos meramente descritivos mas em sua maioria com intenção polêmica em face da sabedoria mundana que despreza como inculta e baixa a mensagem de Cristo e seus apóstolos Leiamse por exemplo o começo do sermão de Natal 184 de Santo Agostinho PL XXXVIII 995 De civ Dei 18 49 CCSL 48 647 e em outros sermões passagens como 43 6 ou 87 12 PL XXXVIII 256 ss e 537 Deus diz Santo Agostinho não elegeu um orador ou um senador mas um pescador non oratorem non senatorern sed piscatorein Ele chama os apóstolos de humiliter nati de baixa extração inhonorati sem prestígio illiterati iletrados ou imperitissimi et abiectissimi muito ignorantes e de baixíssima condição e caracterizaos como piscatores et publicani pescadores e publicanos Dentre os autores mais 14 Cf por exemplo Hilário Commen in Matt 18 3 sobre Mateus 18 7 Patrologia Latina IX 1019 Humilitas passionis scandalum mundo est In hoc enim maxime ignorantia detinetur humana quod sub deformitate crucis aeternae gloriae Dominum nolit accipere A humildade da paixão é um escândalo para o mundo É aí pois que se embaraça a ignorância do homem porque sob o ultraje da cruz não quer aceitar o Senhor de glória eterna antigos menciono Arnóbio Adversus nationes 1 58 CSEL IV 39 entre os contemporâneos de Santo Agostinho cito Jerônimo que tem várias passagens longas a respeito Em seu comentário à Epístola aos Gálatas 3 1 PL XXXVI 401 ss ele escreve Quotusquisque nunc Aristotelem legit Rusticanus vero et piscatores nostros totus orbius loquitur universus mundus sonat Quantos são os poucos que lêem Aristóteles hoje Mas de nossos camponeses de nossos pescadores todo mundo fala o universo inteiro ecoa e na epístola 53 ad Paulinum presbyterum 53 3 ss CSEL LIV 449 depois de se referir a Pedro e João como theodidaktoi Hoc doctus Plato nescivit hoc Demosthenes eloquens ignoravit Isto o douto Platão não soube isto Demóstenes eloquente não conheceu ou ainda com mais força na epístola 14 ad Heliodorum monachum a passagem sobre o Juízo Final 14 11 CSEL LIV 61 Veniet veniet illa dies Tunc ad vocem tubae pavebit terra cum populis tu gaudebis adducetur et cum suis stultus Plato discipulis Aristotelis argumenta non proderunt Tunc tu rusticanus et pauper exultabis ridebis et dices Ecce crucifixus Deus meus ecce iudex qui obvolutus panis in praesepio vagit Hic est ille operarii et quaestuariae filius hic qui matris gestatu sinu hominem Deus fugit in Aegyptum hic vestitus coccino hic sentibus coronatus hic magus daemonium habens et Samarites Cerne manus Iudaee quas fixeras cerne latus Romane quod foderas Videte corpus an idem sit Virá virá aquele dia Então ao som da trombeta a terra com seus povos terá pavor tu te regozijarás Comparecerá em juízo o néscio Platão com seus discípulos os argumentos de Aristóteles não lhe serão úteis Então tu camponês e pobre vais exultar vais rir e vais dizer Eis meu Deus crucificado eis o juiz que envolto em panos chora na manjedoura Este é aque le filho de trabalhador e trabalhadora este o que carregado como homem no colo da mãe embora fosse Deus fugiu para o Egito este o que foi vestido de escarlate este o que foi de espinhos coroado este o que foi chamado de mago que carregava um demônio e de Samaritano Contempla judeu as mãos que pregaste contempla romano o flanco que perfuraste Vede o corpo acaso é Também aqui domina a antítese não apenas entre stultitia e sapientia mas de modo geral a antítese entre baixo e alto recomendandose então a via pietatis ab humilitate ad superna surgens o caminho da piedade elevandose da humildade às coisas celestes De civ Dei II 7 O terceiro grupo de idéias é o mais importante para nós trata da humilitas do estilo da Sagrada Escritura e está de tal modo ligado ao grupo anterior que muitas das passagens já citadas servem também aqui O motivo do sermo humilis da Bíblia logo alcançou grande importância na apologética A maioria dos pagãos cultos considerava a literatura paleocristã em grego e especialmente em latim como ridícula confusa e repugnante Não apenas o conteúdo parecialhes uma superstição infantil e absurda também a forma representava um insulto a seu gosto o vocabulário e a sintaxe pareciam ineptos vulgares e eivados de hebraísmos quando não exagerados e grotescos Algumas passagens de força inegável davam a impressão de mistura turva fruto de mentes incultas fanáticas e sectárias A reação era de mofa desprezo e horror Parecialhes inconcebível e inaceitável a pretensão desses escritos de tratar dos problemas mais profundos Cf sobretudo a passagem estruturalmente análoga no final de Tertuliano De spectaculis XXX 6 Sermo humilis dos de oferecer iluminação e redenção aos homens Em tais circunstâncias seria de se esperar que já nos primeiros tempos da nova religião os cristãos letrados procurassem ultrapassar esse obstáculo corrigindo e adaptando à linguagem literária as traduções dos primeiros autores cristãos incultos e inexperientes Mas isso não aconteceu O estilo criado pelos primeiros tradutores latinos não foi jamais substituído por um texto bíblico ao gosto clássico Os textos da Vetus Latina16 haviam tão prontamente conquistado autoridade junto às comunidades e correspondiam tão bem à situação social e espiritual dos cristãos de língua latina17 que logo vieram a formar uma tradição duradoura e de raízes firmes de modo que uma versão mais literária e culta jamais teria tido chance de se impor A reelaboração de Jerônimo veio bastante tarde por volta de 400 dC e não atingiu todos os textos uniformemente e onde sua versão divergia mais fortemente da anterior seus textos tiveram mais dificuldade para se estabelecer nas comunidades De resto o latim bíblico já se firmara muito antes de Jerônimo começar seu trabalho e ele mesmo estava imerso demais nesse estilo como aliás em toda a espiritualidade cristã original para ser capaz de destruir sua atmosfera característica Por significativa que tenha sido sua atividade de tradutor ela se mantém nos quadros do estilo anterior Na Antigüidade tardia encontramse por vezes paráfrases clássicas de passagens bíblicas Fulgêncio Placiades De aetatibus mundi ed Helm parafraseia da seguinte maneira as palavras de Deus a Moisés Êxodo 3 7 Duros populi mei ex operationis ergastulo gemitus intellexi Eu ouvi os duros gemidos de meu povo nas prisões da labuta Há muitos outros exemplos dessa tendência que entretanto permaneceu pouco influente Só os humanistas Valla Erasmo Bembo viriam a tentar algo semelhante Bembo substitui spiritus sanctus espírito santo por divinae mentis aura sopro da mente divina18 Desse modo o corpus da Sagrada Escritura permaneceu um corpo estranho dentro da tradição clássica da literatura latina enquanto persistiram esta e seu público Contra os que desprezavam a linguagem bíblica os apologetas entre eles Santo Agostinho não deixaram de chamar atenção para as figuras de linguagem que se encontravam na Sagrada Escritura chegando mesmo a afirmar que todos os povos antigos haviam desenvolvido sua arte da eloquência e sua sabedoria a partir do Velho Testamento muito anterior às culturas pagãs19 Mas o argumento 18 Sobre a linguagem bíblica cf Wilhelm Süss Das Problem der lateinischen Bibelsprache Histor minha citação de Bembo figura na página 17 do mesmo autor Studien zur lateinischen Bibel I Ambos estudos fornecem bibliografia de investigações anteriores As partes relevantes em Die antike Kunstprosa de Norden ainda são muito informativas sobre o latim patrístico 19 Tema tratado excelentemente por ER Curtius em Europ Literatur und lat Mittelalter 489 ss no parágrafo sobre Cassiodoro A passagem principal em Cassiodoro é In Psalterium praefatio 15 PL LXX 1922 Cf também Curtius 445 onde a observação do autor sobre as referências de Jerônimo a São Paulo em sua carta a Paulino não transmite o tom e o contexto originais Na verdade Jerônimo está traçando um contraste entre o conhecimento divinamente inspirado e o conhecimento profano A noção de provável origem judaicoalexandrina de que a sabedoria profana e especialmente a grega derivava da sabedoria judaica muito anterior estava disseminada por todo o Ocidente e é expressa com particular frequência por Ambrósio Cf De bono mortis PL XIV 1154 Sobre Aldhelm e Beda cf Curtius 535 não era muito convincente em questões de estilo Ninguém pensava em limitálo ao texto hebraico até porque a maioria dos Padres da Igreja ocidentais com a óbvia exceção de Jerônimo tinha pouco discernimento filológico e freqüentemente tratava o texto latino como se fosse a Bíblia Mas justamente na tradução latina era muito difícil e na verdade impossível encontrar a marca da cultura literária clássica Cassiodoro no Ocidente o defensor mais determinado da tese da origem bíblica de toda eloqüência e sabedoria reconhece a diferença entre a eloqüência bíblica e a secular os tropos e figuras só são encontrados nos salmos in virtute sensuum na força do sentido não in effatione verborum no que dizem as palavras20 Seja como for nenhum apologeta antigo alguma vez duvidou que o latim bíblico fosse algo de distinto da tradição clássica Foi só quando essa tradição havia desaparecido quase completamente por volta de 700 dC que Beda e Aldhelm puderam elogiar a Bíblia como modelo de estilo clássico O contraargumento mais sério e duradouro dos autores cristãos da Antigüidade tardia era diferente eles reconheciam a baixeza do estilo bíblico e descobriam nele uma nova forma do sublime Evitando a questão das traduções essa posição dialética teve sucesso por conta de sua verdade interna a um só tempo ofensiva e defensiva ela se manteve viva por toda a Idade Média até a era moderna e se tornou um motivo importante na formação dos conceitos de estilo e níveis de estilo na Europa Os documentos que o comprovam vêm de longe a idéia já ocorre implicitamente em algumas passagens do Novo Testamento citadas mais acima por exemplo em I Coríntios 1 1821 Não é necessário aqui citar as fontes gregas como a polêmica de Orí 20 In Psalterium praefatio 15 PL LXX 21 53 genes contra Celso21 Exemplos latinos podem ser encontrados por toda a Antigüidade tardia até Isidoro de Sevilha Sent 3 13 PL LXXXIII 6858 Mas a fonte latina mais importante é Santo Agostinho já que ele mesmo protagonizou essa inversão dialética antes de sua conversão pertencia à camada de letrados muito cultos que não acreditavam poder superar sua aversão ante os modos de expressão da Escritura Em suas Confissões III 5 CSEL XXIII 50 ele descreve como inflamado pelo Hortensius de Cícero com o anseio apaixonado por sabedoria começara a ler a Sagrada Escritura sem que entretanto o sentido se lhe revelasse ela seria res incessu humilis successu excelsa et velata mysteriis assunto humilde no começo mas sublime à medida que se avança e velado com mistérios coisa que então ainda não percebia Sed visa est mihi indigna quam Tullianae dignitati compararem Tumor enim meus refugiebat modum eius et acies mea non penetrabat interiora eius Verumtamen illa erat quae cresceret cum parvulis sed ego dedignabar esse parvulus Mas a Sagrada Escritura pareceume indigna de comparar à dignidade ciceroniana Meu orgulho repelía sua simplicidade e minha agudeza não penetrava seu interior A agudeza na verdade cresce junto com as crianças mas eu não me dignava ser criança Só muito mais tarde depois de um longo e árduo desvio e agora sob a influência de Ambrósio em Milão Agostinho começou a entender a autoridade da Sagrada Escritura ele a formula nos seguintes termos Conf VI 5 CSEL XXXIII 121 ss eoque mihi illa venerabilior et sacrosanta fide dignior apparebat auctoritas quo et omnibus ad legendum esset in promptu et secreti sui dignitatem in intellectu profundiore servaret verbis apertissi 21 Cf W Süss Das Problem der lateinischen Bibelsprache 5 54 mis et humillimo genere loquendi se cunctis praebens et exercens intentionem eorum qui non sunt leves corde ut exciperet omnes populari sinu et per angusta foramina paucos ad te traiceret multo tamen plures quam si nec tanto apice auctoritatis emineret nec turbas gremio sanctae humilitatis hauriret sua autoridade da Sagrada Escritura pareceume tanto mais venerável e digna de sacrossanta fé quanto mais era disponível para a leitura de todos e reservava a dignidade de seu mistério à intelecção mais profunda oferecendose a todos com as palavras mais claras e com o mais simples estilo de discurso despertando o interesse daqueles que não são levianos de coração para receber a todos em seu seio comum e pela porta estreita transportar a Ti uns poucos mas muito mais numerosos do que se ela estivesse no elevado cume da autoridade e não atraísse multidões ao regaço da santa humildade As mesmas idéias sob formas variadas ocorrem vez e outra em seus escritos por exemplo no primeiro capítulo do primeiro livro De Trinitate PL XLII 820 sancta Scriptura parvulis congruens nullius generis rerum verba vitavit ex quibus quasi gradatim ad divina atque sublimia noster intellectus velut nutritus assurgeret A Santa Escritura adaptandose a crianças não evitou palavras de nenhum gênero de assuntos a partir dos quais nosso intelecto como que gradativamente alimentado se ergueu até os mais divinos e sublimes ou ainda em várias passagens de De doctrina christiana por exemplo II 42 63 bem como difundidas em seus sermões e comentários A formulação mais completa é talvez a de uma epístola endereçada a Volusiano Epist 137 18 CSEL XLIV 122 ss Modus autem ipse dicendi quo sancta scriptura contexitur quam omnibus accessibilis quamvis paucissimis penetrabilis Ea quae 55 aperta continet quasi amicus familiaris sine fuco ad cor loquitur indoctorum atque doctorum ea vero quae in mysteriis occultat nec ipsa eloquio superbo erigit quo non audeat accedere mens tardiuscula et inerudita quasi pauper ad divitem sed invitat omnes humili sermone quos non solum manifesta pascat sed etiam secreta exerceat veritate hoc in promptis quod in reconditis habens Como é acessível a todo o tipo de discurso pelo qual a Santa Escritura é composta embora penetrável por pouquíssimos O que contêm de evidente ela fala sem artifício como um amigo íntimo ao coração dos cultos e dos incultos O que oculta em mistérios ela mesma não articula em linguagem altiva a que a mente vagarosa e sem erudição não ousaria aproximarse como faz o pobre em relação ao rico mas antes com discurso humilde convida a todos não só para alimentálos em uma verdade manifesta como também para exercitálos em uma verdade secreta possuindo no que expõe aquilo mesmo que possui no que oculta Tornarase claro para ele escreve Santo Agostinho em De doctrina christiana IV 6 9 ss que os autores inspirados pela divina Providência para nossa salvação não poderiam ter escrito de modo diverso do que fizeram Se tivesse tempo suficiente ele mesmo poderia indicar na Escritura todas as figuras e ornamentos da eloquência pagã mas seu encanto inexprimível não derivava do que pudesse ter em comum com os oradores e poetas pagãos mas sim da maneira como se servia da eloquência tradicional para formar sua própria e nova eloquência alteram quandam eloquentiam suam uma eloquência outra sua22 22 Cf Cassiodoro Institutiones ed Mynors 1 15 7 sub finem Maneat ubique incorrupta locutio quae Deo placuisse cognoscitur ita ut fulgore suo niteat non 56 Tentarei agora sintetizar o conteúdo desses exemplos O estilo baixo da Escritura é reconhecido e caracterizado com o termo humilis que também expressa humildade23 O propósito dessa humildade ou baixeza estilística é o de tornar a Escritura acessível a todos mesmo ao último dos homens de modo que cada qual seja atraído e tomado por ela que possa sentirse à vontade nela Mas o conteúdo da Escritura não é imediatamente compreensível ela contém mistérios sentidos ocultos e muitas passagens obscuras Contudo essas coisas não são expressas em estilo culto e soberbo que intimida e afasta os ouvintes mais simples Pelo contrário todo aquele que não for leviano e portanto superficial sem humildade poderá penetrar seu sentido mais profundo a Escritura cresce com as crianças isto é as crianças aprimoramse em sua compreensão E entretanto são poucos os que a compreendem de fato e isso não por falta de erudição mas sim de humildade autêntica De doctrina christiana II 412 correspondente ao estilo do texto As passagens profundas e obscuras não diferem fundamentalmente das passagens claras e simples a não ser pelas camadas mais profundas de entendimento que descortinam Em conseqüência leitores ou ouvintes que anseiam por sabedoria divina e se dão conta da profundeza dos mistérios são mantidos em tensão incessante pois ninguém é capaz de chegar ao cerne último Por útil que possa humano desiderio carpienda subiaceat Que permaneça incorrompida a fala que se sabe que agradou a Deus que brilhe em seu fulgor e não se rebaixe para ser consumida pelo desejo humano 23 Encontramse também rusticus communis simplex e vilis Cf por exemplo o comentário de Jerônimo à Epístola aos Gálatas 3 5 e sua epístola a Paulino 53 9 De Cassiodoro a passagem em Institutiones 1 15 7 citada mais acima e In Psalt praef 15 E finalmente Isidoro Sententiae 3 13 ser a erudição não é condição inescapável para um entendimento mais profundo com efeito Santo Agostinho várias vezes afirmou que na terra uma compreensão verdadeira só é possível por meio de um contato passageiro ictu uma iluminação na qual o destinatário da graça só se conserva por um instante logo depois ele deve retornar a seu estado terreno de costume O estilo dominante na Bíblia é portanto humilis baixo ou humilde Mesmo seus significados secretos secreta recondita são apresentados de maneira baixa Mas seu tema seja ele simples ou obscuro é sempre sublime O tom baixo ou humilde do estilo é a única forma possível e adequada pela qual os mistérios sublimes podem se tornar acessíveis aos homens de forma análoga à Encarnação que também era humilitas nesse sentido uma vez que os homens não teriam suportado o esplendor da natureza divina de Cristo24 O curso terreno da Encarnação não poderia ser narrado de outro modo que não em estilo baixo e humilde O nascimento na manjedoura em Belém a vida entre pescadores publicanos e outras pessoas de ocupações igualmente cotidianas a Paixão com todos seus episódios realistas e indignos nada disso se adequava ao estilo da oratória elevada da tragédia ou da epopéia Nos termos da estética da era de Augusto tal ambiente prestavase no melhor dos casos a um dos gêneros baixos Mas o estilo baixo da Sagrada Escritura abrange a esfera do sublime Há nela vários termos simples por vezes cotidianos e fortemente realistas além de construções corriqueiras e deselegantes mas seu tema é elevado e seu caráter sublime 24 Este é um tema antigo e significante geralmente encontrado em conexão com a interpretação da nuvem em Isaias 19 1 Já ocorre em Tertuliano Adversus Marcionem 2 27 e ainda é freqüente em Bernardo de Clairvaux e mesmo Dante Purg XXX 25 ss Sermo humilis revelase através dessa matéria baixa o sentido oculto está em toda parte Nessa fusão de sublime e baixo o sublime res excelsa et velata mysteriis secreti sui dignitas assunto elevado e velado com mistérios a dignidade de seu segredo confundese freqüentemente com o obscuro e o oculto mas isso jamais impede o homem comum de participar dele O denominador comum desse estilo é sua humildade A Bíblia é história escrita e foi lida ou ouvida pela vasta maioria dos cristãos Ela deu forma à sua visão da história25 e às suas concepções éticas e estéticas Foi modelo de estilo dos escritores cristãos por decisão consciente ou por impregnação inconsciente Muitos deles adaptaramna em alguma medida às formas da retórica tradicional até porque vários Padres da Igreja haviam sido educados nesta Mas a substância bíblicocristã era tão forte que não se deixou submeter à retórica No texto inicial de Santo Agostinho pudemos perceber como apesar dos isócolos anáforas antíteses e apóstrofes o caráter do conjunto permanecia distintamente cristão O mesmo vale para muitos outros textos da literatura patrística como a passagem de Jerônimo sobre o Juízo Final que citamos mais acima com sua conclusão poderosa cerne manus Iudaee cerne latus Romane contempla judeu as mãos contempla romano o flanco Temos aqui uma mistura de sublime retórica popular e terna caritas de 25 Já escrevi várias vezes sobre a concepção cristã da história especialmente em ligação com a exegese tipológica da Bíblia a vida terrena de Cristo como centro da história universal que acredito ter sido conseqüência lógica do cristianismo Ver Figura reeditado em meus Neue Dantestudien Typological Symbolism in Medieval Literature publicado em alemão ligeiramente ampliado como fascículo 2 de Schriften und Vorträge des PetrarcaInstituts in Köln Ver também as últimas páginas de meu ensaio Franz von Assisi in der Komödie in Neue Dantestudien publicado em inglês em Italica XXII e ainda Mimesis passim Ensaios de literatura ocidental força didática e vivacidade cênica dirigida a uma audiência comum e indiscriminada O gosto das massas pelas formas da retórica acabou por dar origem a variedades mais populares o que preparou o caminho para a formação de uma oratória cristã de uma retórica mais popular no sentido do sermo humilis Podese mesmo dizer que uma tal retórica tornouse possível apenas pelo espírito e pelos temas cristãos De fato com a estagnação política do império a retórica pagã há muito fora privada dos temas que lhe garantiam a vitalidade Petrificada em seu formalismo ela começava a definhar Os temas cristãos deramlhe novo alento ao mesmo tempo que lhe modificavam o caráter O que prevalece agora é a humilitas Santo Agostinho recomendou as formas acadêmicas da eloquência pagã e chegou mesmo a utilizálas mas o que chama a atenção e nos deixa uma impressão marcante em seus sermões é a forma com que eles eliminando as barreiras entre os estilos falam diretamente a cada alma individual Como cada ouvinte é considerado um indivíduo cuja salvação está em jogo o sermão é infundido de muito mais emoção do que seria possível numa conferência filosófica ou num debate forense As próprias passagens didáticas estão necessariamente mescladas com o aspecto arrebatador que a teoria retórica identifica ao sublime E a doutrinação faz parte do estilo baixo não apenas porque assim o determina a teoria retórica mas porque o caráter heterogêneo das comunidades de fiéis tornou necessário que se pregasse em estilo simples e acessível a todos Começamos com um sermão Mas o domínio do sermo humilis abarca todas as formas da literatura cristã da Antigüidade tardia inclui as dissertações teóricofilosóficas assim como os relatos pragmáticorealistas de acontecimentos reais Citaremos alguns exemplos para mostrar de um lado como é profunda sua influência no campo teórico e contemplativo e de outro Sermo humilis quais foram os novos problemas que ele solucionou no terreno da narrativa A Patrística mal se dedicou a uma literatura contemplativa ou puramente teórica todas suas forças estavam voltadas para a difusão da doutrina cristã e o combate a judeus pagãos e hereges O interesse polêmico e apologético perpassa toda sua teoria a intenção é sempre obter o máximo de influência e arregimentar o maior número possível de almas Claro que os sermões dirigidos à comunidade de fiéis diferem quanto ao estilo dos tratados dos comentários e das epístolas destinadas a amigos ou opositores dentro do clero No entanto mesmo neste último caso o elemento didático é tão forte a dicção é tão pessoal e animada que o sermo humilis assume uma feição especificamente cristã Por esse motivo meu exemplo foi retirado mais uma vez de Santo Agostinho pensei inicialmente em escolher um texto polêmico mas concluí que uma passagem puramente contemplativa e teórica seria ainda mais característica pelo fato de representar um caso extremo de sermo humilis O trecho encontrase no terceiro parágrafo do oitavo livro De Trinitate PL XLII 948 ss Santo Agostinho quer deixar claro que Deus não é nem corpóreo nem passível de mudança nem um ser criado por mais que imaginássemos a maior e a mais sublime das coisas por exemplo o Sol como infinitamente maior ou mais fulgurante do que realmente é por mais que concebêssemos todos os anjos milla millium que movem os corpos celestes como unidos num único ser mesmo isso não seria Deus E então prossegue Ecce vide si potes o anima praegravata corpore quod corrumpitur et onusta terrenis cogitationibus multis et variis ecce vide si potes Deus Veritas est Hoc enim scriptum est Quoniam Deus lux est I João 1 5 non quomodo isti oculi vident sed quomodo videt cor cum audis Veritas est Noli quaerere quid sit veritas statim enim se opponet caligines imaginum corporalium et nubila phantasmatu et perturbabunt serenitatem quae primo ictu diluxit tibi cum dicerem Veritas Ecce in ipso primo ictu quo velut coruscatione perstringeris cum dicitur Veritas mane si potes sed non potes relaberis in ista solita atque terrena Ora vê se és capaz ó alma sobrepesada pelo corpo que se corrompe e carregada de muitos e variados cuidados terrenos então vê se és capaz Deus é Verdade Pois isto está escrito Porque Deus é luz I João 1 5 vê não como estes olhos vêem mas como vê o coração quando ouves Ele é Verdade Não preguntes o que é verdade pois logo nevoeiros de imagens corporais e nuvens de fantasmas vão interporse e perturbar a serenidade que num primeiro rapto brilhou para ti quando eu disse Verdade Eis exatamente neste primeiro rapto pelo qual como que por um raio és atingido quando se diz Verdade permanece se és capaz mas não és capaz cairás de novo neste costumeiro e terreno Logo em seguida 3 4 ele tenta outra abordagem Ecce iterum vide si potes Non amas certe nisi bonum quia bona est terra altitudine montium et temperamento collium et planitie camporum et bonum praedium amoenum et fertile et bona domus paribus membris disposita et ampla et lucida et bona animalia animata corpora et bonus aer modestus et salubris et bonus cibus suavis atque aptus valetudini et bona valetudo sine doloribus et lassitudine et bona facies hominis dimensa pariliter et affecta hilariter et luculenter colorata et bonus animus amici consensionis dulcedine et amoris fide et bonus vir justus et bonae divitiae quia facile expediunt et bonum coelum cum sole et luna et stellis suis et boni Angeli sancta obedientia et bona locutio suaviter docens et congruenter monens audientem et bonum carmen canorum numeris et sententiis grave Quid plura et plura Bonum hoc et bonum illud tolle hoc et illud et vide ipsum bonum si potes ita Deum videbis non alio bono bonum sed bonum omnis boni Ora de novo vê se és capaz Não amas por certo a não ser o bem porque boa é a terra por causa da altura de suas montanhas da suavidade de suas colinas da planura de seus campos e boa é a quinta amena e fértil e boa a casa disposta em proporções iguais e ampla e iluminada e bons os corpos vivos dos animais e bom o ar brando e saudável e bom o alimento suave e apto para a saúde e boa a saúde sem dores e cansaço e boa a face do homem de regular medida e de jovial expressão e de cor vivaz e bom o amigo pela doçura da concórdia e pela fidelidade do amor e bom o homem justo e boas as riquezas porque tornam fácil a existência e bom o céu com o sol e a lua e suas estrelas e bons os Anjos de santa obediência e boa a fala que suavemente ensina e adequadamente adverte quem ouve e bom o poema melodioso pelo ritmo e grave pelo tema O que mais o que mais Bom é isto e bom é aquilo toma isto e aquilo e vê o próprio bem se és capaz assim verás Deus que não é um bem por meio de outro bem mas é o bem daquilo mesmo que é bom Tais idéias são ao mesmo tempo neoplatônicas e cristãs Expressas em sua forma mais simples são absolutamente abstratas estão entre as idéias a partir das quais se desenvolveu o grande jogo de abstrações da Idade Média Deus é a verdade e apenas numa iluminação momentânea somos capazes de conhecêLo Deus é o bem absoluto fonte de todos os bens particulares e não tem outra fonte além de Si mesmo Esta seria a forma mais sim ples de exprimilo A partir dessa formulação Santo Agostinho compôs um drama retórico e comovente na primeira parte com o movimento anafórico e antitético ecce vide si potes ecce vide si potes noli quaerere ecce mane si potes sed non potes ora vê se és capaz ora vê se és capaz não pergunte permanece se és capaz mas não és capaz no segundo trecho novamente anafórico com sua enumeração suave e profundamente terrena de todos os bens aprazíveis e a repentina e tempestuosa mudança no final Bonum hoc et bonum illud tolle hoc et illud Bom é isto e bom é aquilo toma isto e aquilo A ascensão dramática a partir das profundezas mundanas presentes mesmo quando Santo Agostinho enleva a si mesmo e a seus leitores arrebatandoos ao ápice do êxtase e da abstração a urgência impetuosa de seu argumento no qual a teoria parece ter sido descartada o apelo direto ao leitor quem quer que ele seja tudo isso destrói as barreiras entre o eu e o tu tal nível estilístico seria praticamente inconcebível numa época anterior Ecce vide si potes e tolle hoc et illud são formas simultaneamente retóricas e coloquiais Já se observou várias vezes que Santo Agostinho utiliza vulgarismos conta anedotas e emprega imagens realistas26 em seus sermões como nos de Jerônimo há também passagens satíricas Mas essa não é nossa preocupação central neste momento Claro que vulgarismos e imagens realistas são sintomas significativos do sermo humilis cristão mas apenas porque são utilizados para tratar de assuntos sérios e profundos pois então tais lo 26 Várias passagens relevantes são citadas em trabalhos recentes como JT Welter LExemplum dans la littérature religieuse J H Baxter ALMA III com uma passagem característica do Sermo 5 3 H F Muller LÉpoque mérovingienne 415 E ainda P Charles LÉlément populaire dans les sermons de saint Augustin além é claro de J Schrijnen Charakteristik des altchristlichen Latein passim Sermo humilis cuções baixas são remodeladas no contato com o sério e o sublime A questão realmente central e decisiva porém é a amplitude dessa polaridade E o sermo humilis que tento descrever aqui possui outras características além de vulgarismos e traços afins um é a proximidade ou o contato humano direto entre o eu e o tu dado que não figurava no estilo elevado da Antigüidade romana outro é sua capacidade de exprimir a consciência imediata do vínculo que une a comunidade humana todos nós aqui e agora Muitas vezes é verdade tal expressão de fraternidade e proximidade entre os homens degenerou numa fórmula vazia mas de tempos em tempos ela ganha novo alento Exatamente para mostrar que esse estilo penetrou também nos textos mais especulativos e menos populares citei aqui uma passagem do livro sobre a Trindade Creio que Joseph Schrijnen a quem devemos a ele e a sua escola27 o conceito de latim cristão além de investigações extremamente interessantes sobre o assunto superestima a diferença entre o latim culto e o latim vulgar dos primeiros cristãos Certamente ela existe não há dúvida quanto a isso Santo Agostinho por exemplo escreve seus sermões de maneira diversa daquela em que redige os textos exegéticos ou dogmáticos Gregório Magno usa um estilo muito mais popular em seus diálogos do que nas Moralia Mas o espírito do sermo humilis é sempre o mesmo E quando Schrijnen tenta negar que as figuras de linguagem empregadas nos sermões tenham relação com a retórica acadêmica sucumbe ao precon 27 Ver nota anterior Maiores referências a Schrijnen e sua escola em Christine Mohrmann Le Latin commun et le latin des chrétiens in Vigiliae Christianae Amsterdã I 1947 especialmente números 1 e 4 O meticuloso e instrutivo Manuel du latin chrétien 1955 de Albert Blaise apareceu apenas após a publicação do presente estudo 1952 Cf particularmente o resumo do parágrafo 45 646 65 Ensaios de literatura ocidental ceito expresso por ele mesmo da seguinte forma Onde a alma elevase até Deus quer o faça em latim culto ou popular não há lugar na opinião de Santo Agostinho para a retórica ou para os artifícios artísticos apenas para os ritmos populares da fala humana cotidiana28 Isso segundo me parece é uma hipóstase de conceitos artifícios artísticos ritmos populares que nós mesmos criamos com o fim de classificar o material e nos orientar provisoriamente mas que aplicados à história concreta dificilmente podem ser distinguidos de forma clara Shakespeare ou os dramaturgos espanhóis do siglo de oro são a prova de que os artifícios mais sutis no emprego de palavras ou sons podem tornarse parte da tradição popular Se a arte retórica termina quando a alma se eleva a Deus seríamos obrigados a concluir que poucos dos grandes escritores cristãos teriam alcançado tal experiência O que dizer de Ambrósio e Jerônimo de Bernardo de Clairvaux de Juan de la Cruz de Bossuet O que dizer aliás do apóstolo Paulo A retórica de Santo Agostinho está sempre baseada na tradição clássica nenhum escritor valendose apenas do simples ritmo popular pode opor ou combinar incessantemente antíteses e pares conceituais em períodos sonoros Por outro lado mesmo a retórica mais refinada tem sua fonte original no instinto básico dos homens para o ritmo e para as correspondências entre o som e o sentido e na Antigüidade tardia as formas artísticas tornaramse uma herança popular pelo menos no sentido de que um grande número de pessoas sabia desfrutálas Como já mostra o início de sua carreira Santo Agostinho foi um mestre da retórica a retórica tornouse sua segunda natureza como costuma acontecer com grandes virtuosos Mas a suprema habilidade técnica pode muito bem servir aos sentimentos mais autên 28 Charakteristik des altchristlichen Latein 21 e passim 66 Sermo humilis ticos e profundos e a simplicidade popular não é uma garantia contra o vazio do coração Pareceme que seria um erro procurar a especificidade de uma linguagem cristã apenas nos aspectos populares fortes ou vigorosos É evidente que o latim cristão contêm vários elementos da linguagem popular pois um movimento de tais proporções envolveu muitas pessoas e estendeuse finalmente a todo o povo até mesmo porque este último era numericamente muito superior às classes altas O aspecto característico dessa linguagem porém reside no fato de que muitos se não a totalidade dos vulgarismos no emprego e na formação de palavras nas mudanças de sentido e na estrutura das frases perderam seu caráter vulgar assim que se tornaram parte do latim cristão foram introduzidos numa outra esfera e ganharam nova dignidade Isso vale até mesmo para casos tão extremos como manducare e eructare literalmente devorar às dentadas e arrota r Estas palavras foram reiteradamente ridicularizadas mas as comunidades de fiéis não as puseram de lado foram inscritas em passagens tão importantes quanto o início do Salmo 44 e o relato da Última Ceia I Coríntios 11 24 Tais termos foram exaltados e santificados sanctificantur o mesmo aconteceu com as palavras compostas rudes e inexpressivas para o gosto clássico e das quais sanctificare é apenas um exemplo entre muitos Vivificare honorificare glorificare salvator fornicator mediator tribulatio prostitutio redemptio carnalis spiritualis inscrutabilis inenarrabilis ineffabiliter inseparabiliter para escolher algumas delas não são propriamente formas populares não surgiram da língua do diaadia mas correspondem a construções intelectuais criadas por pessoas apenas parcialmente versadas no espírito linguístico do latim antigo visando tornar compreensíveis as manifestações de um novo mundo intelectual Todas elas têm algo de canhestro de iletrado e de grosseiramente pedante ao mes 67 mo tempo o espírito que as anima conferelhes algo de convincente e coeso Formam um conjunto mas também se amoldam a outros elementos puramente populares da língua cristã Em cada uma e em todas elas expressase um novo mundo um mundo forte o bastante não há dúvida para criar sua linguagem particular mas não é essa a mesma linguagem que em breve será a de todos ou que pelo menos irá saturar a linguagem universal com sua índole característica Seja como for interessa apenas ao historiador moderno saber que a linguagem especificamente cristã formouse a partir de diversos elementos o mesmo não vale para seus contemporâneos para eles era indiferente se um determinado traço do material linguístico provinha da linguagem falada dos esforços semiletrados de cunhar expressões para conteúdos novos ou de influências gregas e semíticas tais elementos afinal de contas foram fundidos na língua da comunidade cristã O que Paulo I Coríntios 12 13 diz a respeito dos homens vale também para as palavras e as formas do discurso Etenim in uno Spiritu omnes nos in unum corpus baptisati sumus sive Iudaei sive gentiles sive servi sive liberi Pois num só Espírito todos nós fomos batizados para ser um só corpo judeus e gregos escravos e livres Tertuliano é prova de quão cedo a comunidade de fala latina adquiriu sua própria individualidade Nosso terceiro e último texto antigo é retirado desse período À diferença do trecho do livro De Trinitate ele mostra a força narrativa realista do sermo humilis ao mesmo tempo esboça os novos problemas da narrativa realista surgidos com a difusão do cristianismo Tratase da Passio SS Perpetuae et Felicitatis um dos primeiros martirológios29 Os eventos narrados passamse no iní 29 Texto na Acta Sanctorum para 7 de janeiro mais facilmente acessível em Ausgewählte Märtyrerakten O L von Gebhardt e R Knopf orgs terceira edição cio do século III em Cartago durante as perseguições comandadas por Sétimo Severo O narrador que provavelmente não é Tertuliano inclui em seu texto as notas escritas na prisão por dois mártires Perpétua e Sátiro Citamos a seguir a introdução do narrador II e o início dos apontamentos de Perpétua III IV II Apprehensi sunt adolescentes catechumeni Revocatus et Felicitas conserva eius Saturninus et Secundulus inter hos et Vibia Perpetua honeste nata liberaliter instituta matronaliter nupta habens patrem et matrem et fratres duos alterum aeque catechumenum et filium infantem ad ubera Erat autem ipsa circiter annorum viginti duo Haec ordinem totum martyrii sui iam hinc ipsa narrauit sicut conscriptum manu sua et suo senso reliquit III Cum adhuc inquit cum prosecutoribus essemus et me pater verbis evertere cupiret et deicere pro sua affectione perseveraret Pater inquam vides verbi gratia vas hoc iacens urceolum sive aliud Et dixit Video Et ego dixi ei Numquid alio nomine vocari potest quam quod est Et ait Non Sic et ego aliud me dicere non possum nisi quod sum Christiana Tunc pater motus hoc verbo mittit se in me ut oculos mihi eruere sed vexavit tantum et profectus est victus cum argumentis a cargo de G Krüger Edição mais recente Passio Sanctarum Perpetuae et Felicitatis J M J van Beek org Em inglês Some Authentic Acts of the Early Martyrs E C E Owen org 7892 Não examinei as traduções alemãs de Rauschen Bibliothek der Kirchenväter e de Hagemeyer Com a descoberta de uma versão grega em 1939 muitos especialistas emitiram a opinião de que o texto grego seria o original Parti do pressuposto de que o texto em latim é o original ponto de vista partilhado pela maioria dos especialistas hoje em dia Ver E Rupprecht em Rheinisches Museum 1941 Um estudo abrangente com tradução francesa está em H Leclercq in DACL verbete Perpétue et Félicité Saintes diaboli Tunc paucis diebus quod caruissem patre Domino gratias egi et refrigeravi absentia illius In ipso spatio paucorum dierum baptisati sumus et mihi Spiritus dictavit non aliud petendum ab aqua nisi suffereutiam carnis Post paucos dies recipimur in carcerem et expavi quia nunquam experta eram tales tenebras O diem asperum Aestus validus turbarum beneficio concussurae militum Novissime macerabar sollicitudine infantis ibi Tunc Tertius et Pomponius benedicti diaconi qui nobis ministrabant constituerunt praemio uti paucis horis emissi in meliorem locum carceris refrigeraremus Tunc exeuntes de carceri universi sibi vacabant Ego infantem lactabam iam inedia defectum solicita pro eo adloquebar matrem et confortabam fratrem commendabam filium tabescebam ideo quod illos tabescere videram mei beneficio Tales sollicitudines multis diebus passa sum et usurpavi ut mecum infans in carcere maneret et statim convalluit et relevata sum a labore et sollicitudine infantis et factus est mihi carcer subito praetorium ut ibi mallem esse quam alicubi IV Tunc dixit mihi frater meus Domina soror iam in magna dignatione es tanta ut postules visionem et ostendatur tibi an passio sit an commeatus Et ego quae me sciebam fabulri cum Domino cuius beneficia tanta experta eram fidente repromisi ei dicens Crastina die tibi renuntiabo Et postulavi et ostensum est mihi hoc Video scalam aeream mirae magnitudinis pertangentem usque ad caelum A tradução que segue inclui também alguns comentários não estou certo de ter sempre encontrado a interpretação correta II Foram presos os jovens catecúmenos Revocato Felicidade sua companheira de escravidão Saturnino e Secúndulo Entre eles também Víbia Perpétua bemnascida cuidadosamente educada legitimamente casada com pai Sermo humilis mãe dois irmãos um dos quais igualmente catecúmeno e um filho ainda de colo Tinha cerca de vinte e dois anos Daqui em diante ela mesma narrou toda a seqüência de seu martírio que deixou escrito por sua própria mão e com sua própria percepção III Estávamos ainda em mãos de nossos perseguidores e como meu pai desejava demoverme com palavras e insistia em dissuadirme eu lhe disse Pai estás vendo por exemplo este vaso aqui ao lado ou aquele jarro ali Estou disse ele Então eu lhe disse Por acaso pode ser chamado com outro nome que não aquele que diz o que é Não disse ele Assim também eu não posso dizer que sou outra coisa que não aquilo que sou Cristã Então meu pai enfurecido pelas minhas palavras lançase contra mim como para arrancarme os olhos mas apenas sacudiume e partiu vencido junto com os argumentos do diabo Então fiquei uns poucos dias sem ver meu pai e dei graças a Deus e descansei com a ausência dele Neste mesmo espaço de poucos dias fomos batizados e o Espírito mandoume que nada buscase da água a não ser o sofrimento da carne Depois de alguns dias fomos recolhidos ao cárcere e fiquei apavorada porque nunca tinha experimentado tal escuridão Que dia difícil Era forte o calor por causa do acúmulo de gente os maustratos dos guardas Eu me afligia preocupada com meu filho num lugar daqueles Então Tércio e Pompônio benditos diáconos que nos assistiam conseguiram com dinheiro que fôssemos enviados por poucas horas a um lugar melhor da prisão e nos recuperássemos Então saindo da pior parte do cárcere todos puderam ocuparse de si mesmos Eu dava de mamar ao bebê já fraco de fome preocupada por ele falava com minha mãe confortava meu irmão e confiavalhes meu filho Eu me consumia de ver que 71 Ensaios de literatura ocidental se consumiam por minha causa Suportei tais preocupações por muitos dias e consegui que meu filho permanecesse comigo na prisão imediatamente recobrei minhas forças e soerguime do sofrimento e da preocupação pelo bebê e de repente o cárcere para mim transformouse num palácio onde mais do que em outro local eu queria estar IV Então meu irmão me disse Senhora irmã estás em estado de grande exaltação mística tão grande que podes pedir uma visão em que se revele a ti se isto é martírio ou provação passageira E eu que sabia que conversava com o Senhor de quem experimentei tantos favores com fé prometi a meu irmão respondendolhe Amanhã ficarás sabendo E eu pedi e foime revelado o seguinte Vejo uma escada de bronze de admirável grandeza que atinge o céu Não há artifício retórico algum na narrativa de Perpétua A cuidadosa educação que recebeu exerce pouca influência em seu estilo Seu vocabulário é limitado a estrutura de suas frases tem pouca desenvoltura os conectivos uso freqüente do tunc nem sempre são claros O especialista logo percebe vários vulgarismos como mittit se no lugar de ruit e locuções tipicamente cristãs refrigerare A linguagem é em geral quebradiça pouco literária e um tanto acanhada quase infantil E contudo Perpétua é bastante expressiva Descreve coisas sem correspondente na literatura antiga o zelo obstinado com que demonstra a seu pai ilustrando seu argumento com um jarro que é uma cristã e não pode ser chamada de outro modo o acesso de raiva impotente de seu pai as primeiras horas na prisão na escuridão sufocante em meio aos soldados com a criança faminta como começa a sentirse feliz na prisão e talvez o mais impressionante de tudo seu diálogo com o irmão ambos tão jovens radiantes de entusiasmo com tal provação Domina soror iam in magna 72 Sermo humilis dignatione es Irmã minha senhora estás em estado de grande exaltação mística E ela cheia de confiança Amanhã ficarás sabendo A literatura antiga teve sua Antígona mas nada de comparável a isso nem poderia ter tido30 não existia um gênero literário capaz de expor tal realidade com tamanha dignidade e elevação tampouco havia uma gloria passionis Antígona encaminhase para a morte cheia de dignidade mas lamentandose não triunfando Talvez se objete que martirológios como o de Perpétua não são documentos literários Isso é verdade pois não foram concebidos a exemplo dos mimos e da sátira como obras literárias Destinamse porém a correr mundo centenas de milhares de pessoas ouvirão a respeito fatos semelhantes ocorrerão em outras localidades a outras pessoas e estes serão por sua vez relatados e em torno deles será tecido um fio narrativo Um gênero literário começará a se desenvolver e aqui o vemos nascer Em seu início ele desvenda toda a força da crua realidade algumas pessoas eleitas ao acaso para o martírio celebram o triunfo de seus sofrimentos os perseguidores a cena do martírio a vida numa família parcial ou totalmente pagã tudo isso é tratado como algo costumeiro como uma realidade sem adornos O cotidiano humilde transformase e cobra uma nova gravitas O pai com seus argumentos diabólicos é um personagem trágico Perpétua sente isso mas não pode ajudálo Mais adiante VI durante o julgamento ele tenta desesperadamente dissuadila de seu propósito e apenas os açoites dos guardas do tribunal são capazes de separálos Sobre isso ela escreve et doluit mihi patris 73 30 É óbvio que isso se aplica apenas à questão do estilo que discutimos aqui Tenho consciência de que muitas idéias antigas estão contidas na Passio de Perpétua Cf em especial F J Dölger Antike Parallelen zum leidenden Dinocrates in der Passio Perpetuae in Antike und Christentum II 140 Ensaios de literatura ocidental mei quasi ego fuissem percussa sic dolui pro senecta eius misera e doeram em mim os golpes em meu pai como se eu tivesse sido açoitada assim sofri por sua infeliz velhice No relato que segue referindo os acontecimentos na prisão interrompido às vezes por visões o estilo é totalmente novo O destino da escrava Felicitas que tem um parto prematuro na prisão é interpretado por meio de uma antítese triunfal seus companheiros de prisão e ela mesma enchemse de alegria por ela poder assim compartilhar o martírio com os demais XVIII a sanguine ad sanguinem ab obstetrice ad retiarium lotura post partum baptismo secundo do sangue para o sangue da parteira para o gladiador ela há de se lavar por um segundo batismo após o parto Todos estavam familiarizados com a idéia do batismo de sangue Quando Sáturo o líder que converteu a todos é retirado da arena banhado em sangue o povo grita Salvum lotum salvum lotum Banho salutar banho salutar Esta era uma frase que em geral se proferia após os banhos Mas o narrador interpreta tal aclamação cruelmente irônica como secundi baptismatis testimonium Plane utique salvus erat qui hoc modo laverat o testemunho do segundo batismo com toda a certeza estava salvo quem tinha se lavado deste modo A mistura evidenciada no martírio de Perpétua e em textos afins de elementos que antes pareciam incompatíveis o aspecto trágico ou sublime retratado em meio à vida cotidiana e de forma extremamente realista tem seu modelo na literatura como na realidade na história da Paixão de Cristo narrada nos Evangelhos Dela procede também o tema da gloria passionis o triunfo do sofrimento31 31 Ver meu Gloria passionis texto redigido como apêndice a Sermo humilis incluído neste volume 74 Sermo humilis Poucos textos são comparáveis a este mesmo as narrativas do século III raramente fazem uma descrição tão pormenorizada e penetrante de pessoas e situações Na maioria dos casos a dramaticidade e a vivacidade limitamse às cenas do julgamento e algumas vezes até mesmo em documentos autênticos há um certo pendor para a tipicidade lendária Mais tarde quando a época das perseguições já chegara ao fim os martirológios tornaramse de fato um gênero literário em que predominavam os tipos miraculosos e lendários32 Apesar do esquematismo todas essas obras revelam o mesmo espírito que afinal é intrínseco ao objeto Tratase sempre de um indivíduo comum que é afastado de seu cotidiano prosaico de sua família de sua classe social ou de seu ofício mesmo que isso seja retratado da forma mais esquemática ou lendária possível e chamado a prestar testemunho a natureza sublime e sagrada do acontecimento cresce no solo do cotidiano e a despeito das provações e tormentos infligidos ao santo permanece sempre um fundo de realismo Foi esse realismo que pretendi assinalar tomando como base o texto sobre Perpétua Ele se encaixa nas características previamente discutidas do sermo humilis é acessível a todos voltado para a caridade secretamente sublime e próximo da comunidade cristã Acredito que em seu conjunto pode ser compreendido mais fácil e concretamente como o fizemos aqui como uma mistura de duas esferas a sublime e a humilde expressa na evolução semântica do termo humilis Esse tipo de sermo humilis foi empregado na literatura cristã ao longo de toda a Idade Média e mesmo depois O maior documento desse sublime cristão é a Divina comédia de Dante por 32 É de interesse aqui H Delehaye Les Passions des martyrs et les genres littéraires Bruxelas 1921 75 Ensaios de literatura ocidental esse motivo quero encerrar este ensaio com uma citação de Benvenuto da Imola o comentador de Dante cujo ensinamento foi o primeiro a me indicar muitos anos atrás a via para lidar com o problema Referindose ao Inferno II 56 e cominciommi a dir soave e piana Benvenuto faz a seguinte observação et bene dicit quia sermo divinus est suavis et planus non altus et superbus sicut sermo Virgilii et poetarum e diz bem porque a fala divina é suave e chã não elevada e soberba como a fala de Virgílio e dos poetas33 33 Ver meus Neue Dantestudien 76