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Abordamos em nosso estudo somente dois fatores que atuaram na préhistória do discurso romanesco Um problema muito importante é do mesmo modo o estudo dos gêneros verbais principalmente os estratos familiares da linguagem popular os quais desempenharam um enorme papel na formação do discurso romanesco e que sob um aspecto diferente entraram na composição do gênero romanesco Mas isto já escaparia aos limites do nosso trabalho Aqui como conclusão desejamos assinalar simplesmente que o discurso romanesco nasceu e se desenvolveu não num processo estritamente literário de luta de tendências de estilos de concepções de mundo abstratas mas no meio de um conflito complexo e secular de culturas e línguas Ele está ligado às grandes mutações e crises dos destinos das línguas européias e da vida verbal dos povos A préhistória do discurso romanesco não se insere nos limites estreitos da história dos estilos literários 1940 EPOS E ROMANCE Sobre a metodologia do estudo do romance O estudo do romance enquanto gênero caracterizase por dificuldades particulares Elas são condicionadas pela singularidade do próprio objeto o romance é o único gênero por se constituir e ainda inacabado As forças criadoras dos gêneros agem sob os nossos olhos o nascimento e a formação do gênero romanesco realizamse sob a plena luz da História A ossatura do romance enquanto gênero ainda está longe de ser consolidada e não podemos ainda prever todas as suas possibilidades plásticas Os outros gêneros enquanto tais isto é como autênticos moldes rígidos para a fusão da prática artística já são conhecidos por nós em seu aspecto acabado O processo antigo de sua formulação se coloca além da observação histórica e documentada Encontramos a epopeía não só como algo criado há muito tempo mas também como um gênero já profundamente envelhecido O mesmo se pode dizer com algumas restrições a respeito de outros gêneros básicos até mesmo da tragédia Sua existência histórica tal como a conhecemos é a mesma dos gêneros constituídos com uma ossatura dura e já calcificada Cada um deles tem o seu cânone que age em literatura como uma força histórica real Todos estes gêneros ou em todo caso os seus elementos principais são bem mais velhos do que a escritura e o livro Ainda conservam nos dias de hoje em maior ou menor grau sua antiga natureza oral e declamatória Ao lado dos grandes gêneros só o romance é mais jovem do que a escritura e os livros e só ele está organicamente adaptado às novas formas da percepção silenciosa ou seja à leitura Mas o principal é que o romance não tem o cânone dos outros gêneros historicamente são válidas apenas espécies isoladas de romance mas não um cânone do romance como tal O estudo dos outros gêneros é análogo ao estudo das línguas mortas o do romance é como o estudo das línguas vivas principalmente as jovens Daí vem a extraordinária dificuldade para uma teoria do romance Com efeito esta teoria deveria ter em princípio um objeto de estudo totalmente diferente da teoria dos outros gêneros O romance não é simplesmente mais um gênero ao lado dos outros Tratase do único gênero que ainda está evoluindo no meio de gêneros já há muito formados e parcialmente mortos Ele é o único nascido e alimentado pela era moderna da história mundial e por isso profundamente apartado a ela enquanto que os grandes gêneros são recebidos por ela como um legado dentro de uma forma pronta e só fazem se adaptar melhor ou pior às suas novas condições de existência Em comparação a eles o romance apresentase como uma entidade de outra natureza Ele se acomoda mal com os outros gêneros Ele luta por sua supremacia na literatura e lá onde ele domina os outros gêneros velhos se desagregam Não é sem razão que o melhor livro sobre a história do romance antigo o livro de Erwin Rohde não faz tanto a sua história quanto representa o processo de desagregação de todos os grandes gêneros nobres da Antigüidade É muito importante e interessante o problema da interação de gêneros no interior da unidade da literatura em dado período Em certas épocas no período clássico dos gregos no século de ouro da literatura romana na época do classicismo na grande literatura ou seja na literatura dos grupos sociais preponderantes todos os gêneros em medida significativa completavamse uns aos outros de modo harmonioso e toda literatura enquanto totalidade de gêneros se apresentava em larga medida como uma entidade orgânica de ordem superior Porém é característico o romance não entrava nunca nesta entidade ele não participava da harmonia dos gêneros Naquela época o romance levava uma existência não oficial fora do limiar da grande literatura Na entidade orgânica da literatura organizada hierarquicamente entravam somente gêneros constituídos com personagens fixados e definidos Ele podiam se limitar e se completar mutuamente conservando a natureza de seu gênero Eles eram únicos e aparentados entre si por suas profundas particularidades estruturais As grandes poéticas orgânicas do passado de Aristóteles de Horácio e de Boileau são marcadas pelo profundo sentimento da literatura como um todo e da harmoniosa composição de todos os gêneros nesse todo Tais poéticas como que parecem ouvir concretamente esta harmonia de gêneros Nisto está a força a plenitude incomparável e íntegra e o caráter exaustivo destas poéticas Todas elas sistematicamente ignoram o romance As poéticas científicas do século XIX eram privadas dessa plenitude elas eram ecléticas descritivas aspiravam não a uma totalidade viva e orgânica mas a algo abstratamente enciclopédico orientavamse não para a efetiva possibilidade de uma coexistência de gêneros definidos para a entidade viva da literatura relativa a uma certa época mas para a coexistência deles dentro de uma antologia tão completa quanto possível Naturalmente elas não ignoravam o romance mas simplesmente o colocavam em lugar de honra junto aos gêneros existentes assim como um gênero no meio de gêneros ele também entra numa antologia mas no conjunto vivo da literatura ele entra de uma forma totalmente diferente O romance como dissemos se acomoda mal com os outros gêneros E não se pode falar de uma harmonia possível baseada sobre uma limitação e substituição recíprocas O romance parodia os outros gêneros justamente como gêneros revela o convencionalismo das suas formas e da linguagem elimina alguns gêneros e integra outros à sua construção particular reinterpretandoos e dandolhes um outro tom Os historiadores de literatura às vezes são inclinados a ver nisto somente o conflito de escolas e de movimentos literários Tal conflito certamente existe mas tratase de um fenômeno periférico e historicamente ínfimo Por trás dele é preciso saber ver um conflito de gêneros mais profundo e mais histórico o porvir e o crescimento do arcabouço do gênero literário Observamse fenômenos particularmente interessantes na época em que o romance se estabelece como um gênero predominante Toda literatura é então afetada por um processo de evolução uma espécie de criticismo de gêneros Isto já ocorrera em alguns períodos do Helenismo na época da Idade Média tardia e da Renascença mas foi particularmente forte e claro na segunda metade do século XVIII Na época da supremacia do romance quase todos os gêneros resultantes em maior ou menor grau romancizaramse romancizouse o drama por exemplo o drama de Ibsen o de Hauptmann todo o drama naturalista o poema por exemplo Childed Harold e em particular Don Juan de Byron e até mesmo a lírica um exemplo nítido é a lírica de Heine Aqueles gêneros que conservavam com tenacidade seu antigo cânone adquiriram um caráter de estilização Em geral qualquer comedimento estrito de um gênero a si próprio salvo a vontade do autor começa a dar sinais de estilização às vezes mesmo de estilização paródica Na presença do romance como gênero dominante as linguagens convencionais dos gêneros estritamente canônicos começam a ter uma ressonância diferente diferente daquela época em que o romance não pertencia à grande literatura As estilizações paródicas dos gêneros diretos e dos estilos ocupam lugar essencial no romance Na época da escalada criativa do romance e em particular no período preparatório dessa ascensão a literatura é inundada de paródias e travestimentos de todos os gêneros elevados particularmente de gêneros e não de determinados escri tores ou determinadas correntes são as paródias que se apresentam como precursoras satélites e num certo sentido como esboços do romance Porém é característico que o romance não dê estabilidade a nenhuma das suas variantes particulares Em toda a história do romance desenrolase uma parodiação sistemática ou um travestimento das principais variantes de gênero predominantes ou em voga naquela época e que tendem a se banalizar as paródias do romance de cavalaria a primeira paródia de aventuras é um romance de cavalaria que data do século XIII tratase do Dit dAventures o romance barroco o romance pastoral Le Berger Extravagant de Sorel o romance sentimental de Fielding e Grandison II de Musãus etc Este caráter autocrítico do romance é o seu traço notável como gênero em formação Como se exprime a romancização dos outros gêneros Eles se tornam mais livres e mais soltos sua linguagem se renova por conta do plurilinguismo extraliterário e por conta dos estratos romanesco da língua literária eles dialogizamse e ainda mais são largamente penetrados pelo riso pela ironia pelo humor pelos elementos de autoparodiação finalmente e isto é o mais importante o romance introduz uma problemática um inacabamento semântico específico e o contato vivo com o inacabado com a sua época que está se fazendo o presente ainda não acabado Todos estes fenômenos como veremos adiante são explicados pela transposição dos gêneros para uma nova área de estruturação das representações literárias a área de contato com o presente inacabado área pela primeira vez assimilada pelo romance Certamente não se pode explicar o fenômeno da romancização somente pela influência direta e espontânea do próprio romance em si Mesmo onde semelhante influência possa ser constatada e prontamente demonstrada ela se entrelaça indissoluvelmente com a ação direta das transformações da própria realidade que determinam também o romance e que condicionam a sua supremacia naquela época O romance é o único gênero em evolução por isso ele reflete mais profundamente mais substancialmente mais sensivelmente e mais rapidamente a evolução da própria realidade Somente o que evolui pode compreender a evolução O romance tornouse o principal personagem do drama da evolução literária na era moderna precisamente porque melhor que todos é ele que expressa as tendências evolutivas do novo mundo ele é por isso o único gênero nascido naquele mundo e em tudo semelhante a ele O romance antecipou muito e ainda antecipa a futura evolução de toda literatura Deste modo tornandose o senhor ele contribui para a renovação de todos os outros gêneros ele os contaminou e os contamina por meio da sua evolução e pelo seu próprio inacabamento Ele os atrai imperiosamente à sua órbita justamente porque esta órbita coincide com a orientação fundamental do desenvolvimento de toda literatura Nisto reside a importância excepcional do romance como objeto de estudo para a teoria e para a história da literatura Infelizmente os historiadores da literatura levam habitualmente este conflito do romance com os outros gêneros constituídos e todos os fenômenos de romancização em direção à existência e conflito das escolas e das correntes Eles qualificam por exemplo um poema manceado o que é correto como um poema romântico e pensam que tudo está dito Além do aspecto superficialmente variegado e ruidoso do processo literário eles não vêem os grandes destinos essenciais da literatura e da língua cujos personagens principais são antes de mais nada os gêneros enquanto que as correntes e as escolas são personagens de segunda ou terceira ordem A teoria da literatura revela a sua total incapacidade em relação ao romance Com os outros gêneros ela trabalha correta e precisamente um objeto pronto que foi construído de modo determinado e claro Em todas as épocas clássicas do seu desenvolvimento estes gêneros conservaram a sua estabilidade e o seu cânone suas variações segundo as épocas as correntes e as escolas são periféricas e não tocam a ossatura de gêneros que está neles solidificada Basicamente a teoria destes gêneros acabados não conseguiu até os nossos dias adicionar quase nada de substancial àquilo que já fora feito por Aristóteles Sua poética se tornou o fundamento imutável para a teoria dos gêneros ainda que às vezes ele se aprofunde tanto e não se possa acompanhálo Tudo ia bem enquanto não se tocava no romance Mas já os outros gêneros romancizados colocaram a teoria em xeque Sobre o problema do romance a teoria dos gêneros encontrase em face de uma reformulação radical Graças ao trabalho meticuloso dos sábios foi acumulada uma documentação histórica enorme foi esclarecida uma série de questões ligadas à origem das variedades particulares de romance mas o problema do gênero no seu todo não encontrou uma solução de princípio satisfatória Continuouse a considerálo como um gênero no meio de outros gêneros tentouse fixar suas diferenças de gênero constituído em relação aos outros gêneros constituídos tentouse desvendar o seu cânone interno como um determinado sistema de índices de gênero invariáveis e fixos Os trabalhos sobre o romance levavam na grande maioria dos casos ao registro e à descrição tão completos quanto possíveis sobre as variedades romanescas mas no conjunto tais registros nunca conseguiram dar qualquer fórmula que sintetizasse o romance como um gênero Além do mais os pesquisadores não conseguiram apontar nem um só traço característico do romance invariável e fixo sem qualquer reserva que o anulasse por completo Eis alguns exemplos destes índices de gênero o romance é um gênero de muitos planos mas existem excelentes romances de um único plano o romance é um gênero que implica um enredo surpreendente e dinâmico mas existem romances que atingiram o limite da descrição pura o romance é um gênero de problemas mas o conjunto da produção romanesca corrente apresenta um caráter de pura diversão e frivolidade inacessível a qualquer outro gênero o romance é uma história de amor mas os maiores modelos do romance europeu são inteiramente desprovidos do elemento amoroso o romance é um gênero prosaico mas existem excelentes romances em verso Podese citar ainda grande número de índices de gênero de romance anulados pela restrição que lhes é associada com toda honestidade Muito mais interessantes e lógicas são as definições normativas do romance dadas pelos próprios romancistas que procuram uma variante precisa e a declaram como a única forma correta de romance necessária e atual Tal é por exemplo o célebre prefácio de Rousseau para La Nouvelle Héloïse o prefácio de Wieland para Agathon o de Wetzel para Tobias Knaut tais são as numerosas declarações e opiniões de românticos em torno de Wilhelm Meister e de Lucinda etc Tais declarações que não tentam abranger todos os tipos de romance em uma definição eclética em compensação tomam parte na formação viva do romance enquanto gênero Elas refletem freqüente profunda e exatamente a luta do romance com os outros gêneros e consigo mesmo com as formas de outros tipos de romance determinantes e em voga em dadas etapas do seu desenvolvimento Elas se aproximam da posição singular do romance na literatura posição sem medida comum com os outros gêneros Neste sentido a criação de um novo tipo de romance no século XVIII é acompanhada por uma série de julgamentos particularmente significativos Abrese esta série com os julgamentos de Fielding sobre o seu romance e o seu personagem Tom Jones Em continuação surge o prefácio de Wieland para Agathon mas o elo mais importante é o Ensaio sobre o Romance de Blankenburg Na realidade a conclusão desta série surge com a teoria do romance dada posteriormente por Hegel Para todas estas declarações que refletem a evolução do romance em uma das suas etapas importantes Tom Jones Agathon Wilhelm Meister são características as seguintes exigências 1 O romance não deve ser poético no sentido pelo qual os outros gêneros literários se apresentam como tais 2 O personagem do romance não deve ser heróico nem no sentido épico nem no sentido trágico da palavra ele deve reunir em si tanto os traços positivos quanto os negativos tanto os traços inferiores quanto os elevados tanto os cômicos quanto os sérios 3 O personagem deve ser apresentado não como algo acabado e imutável mas como alguém que evolui que se transforma alguém que é educado pela vida 4 O romance deve ser para o mundo contemporâneo aquilo que a epopeia foi para o mundo antigo esta idéia com toda a clareza foi exposta por Blankenburg e mais tarde retomada por Hegel Todas estas exigências de sustentação têm um lado extremamente importante e produtivo Tratase da crítica do ponto de vista do romance dos outros gêneros e das suas relações com a realidade da sua heroicização enfática do seu convencionalismo do seu poetismo restrito e inerte da sua monotonia e abstração do aspecto acabado e da imutabilidade dos seus personagens Na realidade o que se propõe aqui é uma crítica dos princípios da literaturidade e da poeticidade próprios aos outros gêneros e às formas anteriores do romance o romance heróico barroco o romance sentimental de Richardson Estes julgamentos foram reforçados em medida significativa pela prática destes romancistas Aqui o romance tanto na sua prática quanto na teoria que lhe é correlata apresentase direta e conscientemente como gênero crítico e autocrítico como algo que deve renovar os próprios fundamentos da literaturidade e da poeticidade dominantes O confronto do romance com o epos e a oposição deles apresentase por um lado como um aspecto da crítica de outros gêneros literários em particular do tipo mesmo da heroicização épica por outro lado tem por objetivo elevar a sua significação como gêneromestre da nova literatura As exigênciasteses citadas por nós tornamse um dos vértices da tomada de consciência do romance Isto certamente não é uma teoria do romance Estas afirmações não se distinguem nem mesmo pela grande profundidade filosófica Mas não obstante elas testemunham sobre a natureza do romance como gênero não menos senão até mais que as teorias de romance existentes Posteriormente farei uma tentativa de abordar o romance justamente como um gênero que está por se constituir levandose em conta o processo de evolução de toda a literatura nos tempos modernos Não construirei uma definição do cânone do romance que atue em literatura na sua história como um sistema de índices de gênero invariáveis Porém tentarei descobrir as particularidades estruturais e fundamentais do mais maleável dos gêneros particularidades que determinam a orientação da sua própria versatilidade de sua influência e de sua ação sobre o resto da literatura Aponto três dessas particularidades fundamentais que distinguem o romance de todos os gêneros restantes 1 A tridimensâo estilística do romance ligada à consciência plurilíngüe que se realiza nele 2 A transformação radical das coordenadas temporais das representações literárias no romance 3 Uma nova área de estruturação da 403 imagem literária no romance justamente a área de contato máximo com o presente contemporaneidade no seu aspecto inacabado Todos estes três tipos de particularidades do romance estão ligados organicamente entre si e todos eles estão condicionados por uma determinada crise na história da sociedade européia sua saída das condições de um estado socialmente fechado surdo e semipatrimonial em direção às novas condições de relações internacionais e de ligações interlingüísticas A pluriformidade das línguas das culturas e das épocas revelouse à sociedade européia e se tornou um fator determinante de sua vida e de seu pensamento A primeira particularidade estilística do romance aquela que está ligada ao plurilíngüismo ativo do novo mundo da nova cultura e da nova consciência literária e criadora já foi examinada por mim em outro artigo1 Lembrarei de modo breve o mais essencial O plurilíngüismo sempre teve o seu lugar ele é mais antigo do que o unilingüismo canônico e puro mas ele não foi um fator de criação uma escolha funcional da arte literária não foi o centro criador do processo lingüísticoliterário O grego clássico era sensível às falas às épocas da linguagem aos múltiplos dialetos literários gregos a tragédia é um gênero plurilíngüe mas a consciência criadora realizavase nas línguas puras e fechadas sobre si próprias ainda que elas fossem de fato híbridas O plurilingüismo foi organizado e canonizado entre os gêneros A nova consciência cultural e criadora dos textos literários vive em um mundo ativemente plurilingüístico que se tornou irremediavelmente assim de uma vez por todas Havia terminado o período da coexistência surda e fechada das línguas nacionais As línguas se esclareceram mutuamente pois uma língua só pode ver a si mesma se estiver à luz de uma outra língua Terminará também a coexistência ingênua e consolidada das falas no interior de uma certa língua nacional isto é a coexistência dos dialetos territoriais dos dialetos e dos jargões sociais e profissionais da linguagem literária das linguagens de gêneros dentro da linguagem literária das épocas na linguagem e assim por diante Tudo isto é colocado em movimento e entra no processo da mútuaatuação e mútuoesclarecimento ativos O discurso a língua começam a sentir de outro modo e objetivamente eles deixam de ser o que haviam sido Nas condições deste aclaramento recíproco externo e interno das línguas mesmo nas condições de absoluta imutabilidade da sua estrutura lingüística fonética léxica morfológica etc cada língua como que renasce de novo e se torna qualitativamente outra para a consciência criativa que nela se encontra 404 Neste mundo ativemente plurilíngüístico entre a língua e o seu objeto ou melhor o mundo real estabelecemse relações totalmente novas que trazem enormes conseqüências para todos os gêneros constituídos formados na época de um unilingüismo fechado e surdo À diferença dos outros grandes gêneros o romance se formou e se desenvolveu precisamente nas condições de uma ativação aguçada do plurilingüismo exterior e interior Este é o seu elemento natural É por isso que o romance encabeçou o processo de desenvolvimento e renovação da literatura no plano lingüístico e estilístico A profunda peculiaridade estilística do romance que é determinada por sua relação com as condições do plurilíngüismo eu tentei explicála no trabalho já mencionado Passarei a duas outras particularidades que dizem respeito aos aspectos temáticos da estrutura do gênero romanesco Estas particularidades melhor que tudo se desenvolvem e se explicam por intermédio da comparação do romance com a epopeia Do ponto de vista de nosso problema a epopeia como um gênero determinado se caracteriza por três traços constitutivos 1 O passado nacional épico o passado absoluto segundo a terminologia de Goethe e de Schiller serve como objeto da epopeia 2 A lenda nacional e não a experiência pessoal transformada à base da pura invenção atua como fonte da epopeia 3 O mundo épico é isolado da contemporaneidade isto é do tempo do escritor do autor e dos seus ouvintes pela distância épica absoluta Detenhamonos detalhadamente em cada um destes traços constitutivos da epopeia O mundo da epopeia é o passado heróico nacional é o mundo das origens e dos fastígios da história nacional o mundo dos pais e ancestrais o mundo dos primeiros e dos melhores Não é o caso de se saber o modo pelo qual o passado se apresenta como conteúdo da epopeia A referência e a participação do mundo representado no passado é o traço constitutivo formal do gênero épico A epopeia jamais foi um poema sobre o presente sobre o seu tempo ela atua somente para os descendentes como um poema sobre o passado A epopeia como gênero definido e notório desde o seu início foi um poema sobre o passado e a orientação do autor ou seja a diretiva do articulador do discurso épico a qual é imanente e constitutiva da epopeia é a orientação de uma pessoa que fala sobre o passado inacessível a disposição devota de um descendente O discurso épico por seu estilo tom e caráter imagético está infinitamente longe do discurso de um contemporâneo que fala sobre um contemporâneo aos seus contemporâneos Oniêguin meu bom amigo nasceu nas margens do Nievá onde talvez você tenha nascido 405 ou brilhado meu leitor 2 O oedo e o ouvinte imanentes ao gênero épico situamse na mesma época e no mesmo nível de valores hierárquicos mas o mundo representativo dos personagens situase em um nível de valores e tempos totalmente diferente e inacessível separado pela distância épica Interpõese entre eles a lenda nacional Representar um evento em um único nível axiológico e temporal com o seu próprio e com o dos seus contemporâneos e por conseguinte na base de uma experiência pessoal ou de ficção significa fazer uma mudança radical passar do mundo épico para o romanesco Certamente podese perceber o nosso tempo do ponto de vista do seu significado histórico como um tempo heróico e épico que está distanciado como que visto de longe não de nós os contemporâneos mas à luz do porvir e podese perceber o passado de uma maneira familiar como se fosse o nosso presente Mas com isso nós percebemos não o presente no presente nem o passado no passado nós nos arrancamos de nosso tempo da área do seu contato familiar conosco Falamos da epopeia como de um gênero definido e real que chegou até nós Já a encontramos como um gênero acabado até mesmo enrijecido e quase esclerosado Sua perfeição moderação e a total falta de ingenuidade artística falam sobre a sua velhice enquanto gênero sobre o seu longo passado Mas a respeito deste passado nós só podemos conjeturar e é necessário dizer que o fazemos por ora muito mal Não sabemos nada sobre aquelas hipotéticas canções primitivas que precederam a constituição da epopeia e a criação da tradição do gênero épico canções que giravam em torno dos seus contemporâneos e que eram uma ressonância espontânea dos eventos que tinham lugar Sobre isso sobre quais fossem estes cantos primitivos dos aedos ou essas cantilenas nós só podemos conjeturar Não temos motivo algum para pensar que fossem mais parecidas com os cantos épicos posteriores conhecidos por nós do que por exemplo com a nossa crônica ou com a nossa atual tchastúchka3 Os cantos épicos que heroificavam os seus contemporâneos que nos são acessíveis e perfeitamente reais originaramse bem depois da criação da epopeia já em solo da antiga e poderosa tradição épica Eles transferem uma forma épica preparada aos eventos da época e aos seus contemporâneos ou melhor transferemlhes a forma cronológica e axiológica do passado e nos fazem participar do mundo dos pais das origens e dos fastígios como que canonizandoos em vida Em certo sentido nas condições de uma sociedade patriarcal os representantes das classes dominantes pertencem enquanto tais ao mundo dos ancestrais e estão isolados dos restantes por uma distância quase épica A comunhão épica do heróicontemporâneo com o mundo dos antepassados e dos iniciadores é um fenômeno específico nascido em solo há muito preparado pela tradição épica e que por isso mesmo tão pouco explica sobre as origens da epopeia como por exemplo o faz a ode neoclássica Qualquer que tenha sido a sua origem a epopeia real que chegou até nós é a forma de um gênero acabado de maneira absoluta e muito perfeita cujo traço constitutivo é a relação do mundo por ela representado no passado absoluto das origens e dos fastígios nacionais O passado absoluto é uma categoria hierarquia de valores específicos Para a visão do mundo épico o começo o primeiro o fundador o ancestral o predecessor etc não são apenas categorias temporais mas igualmente axiológicas e temporais este é o grau superlativo axiológicotemporal que se realiza tanto pela atitude das pessoas como também pela atitude de todas as coisas e fenômenos do mundo épico neste passado tudo é bom e tudo é essencialmente bom o primeiro unicamente neste passado O passado épico absoluto é a única fonte e origem de tudo que é bom para os tempos futuros Assim afirma a forma da epopeia A memória e não o conhecimento é a principal faculdade criadora e a força da literatura antiga E assim foi não se pode mudar isto a tradição do passado é sagrada Ainda não se tem a consciência da relatividade de todo passado A experiência o conhecimento e a prática o futuro definem o romance Na época do Helenismo começa o contato com os heróis do ciclo épico da guerra de Tróia o épico convertese em romance O material épico transpõese para o romanesco para uma área de contato passando pelo estágio da familiarização e do riso Quando o romance se torna gênero proeminente a teoria do conhecimento se converte na principal disciplina filosófica Não é sem razão que o passado épico é chamado passado absoluto ele que atua simultaneamente como passado de valorização hierárquica está desprovido de qualquer relatividade isto é despojado daquelas transições graduais puramente materiais que o ligariam com o presente Ele está isolado pela fronteira absoluta de todas as épocas futuras e antes de tudo daquele tempo no qual se encontram o cantor e os seus ouvintes Esta fronteira por conseguinte é imanente à própria forma da epopeia e percebese que ela ressoa em cada sua palavra Destruir este limite significa destruir a forma da epopeia enquanto gênero É precisamente por isso que o passado absoluto está separado 407 de todos os tempos posteriores ele é absoluto e perfeito Ele é fechado como um círculo e dentro dele tudo está integralmente pronto e concluído No mundo épico não há nenhum lugar para o inacabado para o que não está resolvido nem para a problemática Nele não são permitidas quaisquer passagens para o futuro ele se satisfaz a si mesmo não pressupõe nenhum prolongamento e nem precisa dele As definições temporais e axiológicas estão fundidas aí num todo indissolúvel como nos antigos estratos semânticos da língua Tudo aquilo que participa deste passado o faz na sua autêntica essencialidade e significação mas por outro lado adquire um acabamento e uma conclusão e despojase por assim dizer de todos os direitos e pretensões a um desenvolvimento real A conclusão absoluta e o seu caráter acabado eis os traços essenciais do passado épico axiológico e temporal Passemos à lenda O passado épico separado das épocas posteriores por uma fronteira impenetrável se mantém e se desvela somente na forma de uma lenda nacional A epopéia apóiase unicamente nesta lenda Não se trata de saber se esta é a fonte efetiva da epopéia o importante é que o suporte da lenda é imanente à própria forma da epopéia do mesmo modo que lhe é imanente o passado absoluto O discurso épico é enunciado sob a forma de lenda O mundo épico do passado absoluto por sua própria natureza é inacessível à experiência individual e não admite pontos de vista e apreciações pessoais Não se pode vêlo sentilo tocálo não pode ser considerado sob nenhum ponto de vista não se pode experimentálo analisálo mostrálo ou penetrar nas suas entranhas Ele é dado somente enquanto lenda sagrada e peremptória que envolve uma apreciação universal e exige uma atitude de reverência para consigo Repetimos e sublinhamos não se trata das fontes efetivas da epopéia nem dos aspectos do seu conteúdo tampouco das afirmações dos seus autores mas tratase do seu traço formal o constitutivo do gênero da epopéia mais precisamente o seu traço formalconteudístico o ponto de apoio numa lenda anônima e irrecusável numa apreciação ou num ponto de vista universal que exclua qualquer possibilidade de outra opção uma profunda veneração com relação ao objeto de representacão e pelo próprio discurso que o evoca enquanto discurso da lenda O passado absoluto como objeto da epopéia a lenda irrecusável como sua única fonte determinam também o caráter da distância épica ou seja o terceiro traço constitutivo da epopéia como tal O passado épico como dizíamos é fechado e separado pela barreira intransponível das épocas posteriores e sobretudo daquele presente dos filhos e dos descendentes que dura ininterruptamente no qual se encontram o aedo e os ouvintes da epopéia onde se desenrola o evento das suas vidas e onde se põe em prática a narração épica Por outro lado a lenda isola o mundo da epopéia da experiência pessoal de todas as novas descobertas de qualquer iniciativa pessoal necessária à sua interpretação e compreensão de novos pontos de vista e apreciações O mundo épico é totalmente acabado não só como evento real de um passado longínquo mas também no seu sentido e no seu valor não se pode modificálo nem reinterpretálo e nem reavaliálo Ele está pronto concluído e imutável tanto no seu fato real no seu sentido e no seu valor Com isto determinase também a distância épica absoluta Podese aceitar o mundo épico somente de forma reverente mas não se pode aproximarse dele ele está fora da área da atividade humana propensa às mudanças e às reavaliações Esta distância existe não só em relação ao material épico isto é aos eventos e aos heróis representados mas também em relação ao ponto de vista e ao julgamento sobre eles o ponto de vista e o julgamento estão ligados ao seu objeto num todo indissolúvel o discurso é inseparável do seu objeto pois para a sua semântica é característica a absoluta junção dos elementos espaçotemporais com os axiológicos hierárquicos Esta junção absoluta e correlativamente a dependência do objeto só foram transcendentais pela primeira vez nas condições do plurilingüismo ativo e do mútuoaclaramento das línguas e desde então a epopéia se tornou um gênero semicondicionado e semimorto Graças à distância épica que exclui qualquer possibilidade de atividade e de modificação o mundo épico adquire sua perfeição excepcional não só do ponto de vista da composição mas também do ponto de vista do seu sentido e do seu valor O mundo épico está construído numa zona de representação longínqua absoluta fora da esfera do possível contato com o presente em devir que é inacessível e por isso mesmo sujeito à reinterpretacão e a reavaliação Os três traços constitutivos da epopéia caracterizados por nós em maior ou menor grau são inerentes aos outros gêneros elevados da Antigüidade clássica e da Idade Média Na base de todos estes gêneros nobres e acabados repousa aquela mesma avaliação do tempo o mesmo papel da lenda uma distância hierárquica análoga A atualidade enquanto tal não é admissível como objeto de representação para nenhum gênero elevado A vida atual pode penetrar nos gêneros elevados somente nos seus níveis hierárquicos superiores já distanciados pela sua colocação na própria atualidade Entretanto penetrando nos gêneros elevados por exemplo nas Odes de Píndaro ou em Simônides os acontecimentos os heróis e os vencedores de uma atualidade sublime como que comuns do passado ligamse por meio de diferentes elas e ligações intermediárias a uma única trama do passado heróico e da lenda Seu valor sua eminência eles adqu rem exatamente através desta comunhão com o passado como fonte de tudo que é autenticamente essencial e de valor Eles por assim dizer se arrancam de seu tempo com o que ele tem de irresoluto de aberto de possível reinterpretação e reavaliação Eles se elevam no nível axiológico do passado e adquirem nele o seu caráter acabado Não se deve esquecer que o passado absoluto não é aquele tempo no nosso sentido limitado e preciso da palavra mas uma certa categoria axiológica temporal e hierárquica Não se pode ser grande no seu tempo Atribuir grandezas é sempre tarefa da posteridade para a qual elas serão do passado aparecerão como uma imagem longínqua tornarseão objeto de memória e não um objeto de visão e de contato vivos No gênero do tipo monumento o poeta constrói sua imagem no plano do futuro longínquo e da sua posteridade futura cf os epitáfios dos déspotas orientais e os de Augusto No mundo da memória um fenômeno aparece em um contexto inteiramente singular nas condições de uma particular conformidade às leis em circunstâncias diferentes daquelas do mundo da visão real e do contato familiar e prático O passado épico é uma forma particular de percepção literária do homem e do acontecimento Ela coincidia quase que completamente com a percepção literária e com a representação em geral A representação literária é uma forma sub specie aeternitatis Representar e imortalizar pelo discurso literário só é possível e viável para aquilo que é digno de ser comemorado e mantido na memória dos descendentes e é no plano antecipado da sua longínqua memória que ele assume a forma Para os seus contemporâneos a atualidade que não virá a ser memória é comemorada em argila e aquela que visa o futuro a posteridade é comemorada em mármore e bronze É importante a correlação dos tempos a acentuação de valores não repousa no futuro o qual não lhe serve e não é na sua presença que os méritos existem eles vivem em face de uma eternidade atemporal eles servem de futura memória para o passado de alargamento para o mundo do passado absoluto enriquecendo com novas imagens às custas da atualidade este mundo o qual sempre se opôs por princípio a qualquer passado transitário A lenda também conserva a sua importância nos gêneros nobres e acabados ainda que o seu papel nas condições da criação individual livre se torna mais convencional do que na epopéia Em seu conjunto o mundo da grande literatura da época clássica é projetado no passado no longínquo plano da memória não dentro de um passado real e relativo que está ligado ao presente por constantes transições temporais mas no passado dos valores dos começos e dos fastígios Este passado está distanciado acabado e fechado como um círculo Isto não significa certamente que nele não haja qualquer movimento Ao contrário as categorias temporais relativas que estão dentro dele são rica e finamente elaboradas as nuances de antes mais tarde a sucessão dos momentos da celeridade da duração etc está presente uma elevada técnica literária do tratamento do tempo Mas todos os pontos deste tempo arredondado e acabado distam igualmente do tempo real e móvel da atualidade ele em sua essência não está localizado num processo histórico real nem é correlacionado ao presente e ao futuro ele conserva por assim dizer toda a plenitude dos tempos sobre si mesmo Conseqüentemente todos os gêneros elevados da época clássica isto é toda a grande literatura era construída na área de uma representação distante fora de qualquer possível contato com o presente em seu caráter inacabado A época contemporânea enquanto tal ou seja enquanto conserva o seu aspecto de atualidade viva não pode como dissemos servir de objeto de representação dos gêneros elevados A atualidade da época é uma atualidade de nível inferior em comparação com o passado épico Menos que tudo ela pode atuar como ponto de partida para a interpretação e avaliação literárias O foco da interpretação e da avaliação só pode se localizar no passado absoluto O presente é algo de transitório fluente é uma espécie de eterno prolongamento sem começo e nem fim ele é desprovido de uma conclusão autêntica e por conseguinte de substância O futuro é pensado ou como algo indiferente no fundo um prolongamento do presente ou como fim destruição final catástrofe As categorias axiológicotemporais do começo e do final absolutos têm um significado excepcional para a percepção do tempo e das ideologias das épocas anteriores O começo é idealizado e o fim se torna sombrio catástrofe crepúsculo dos deuses Esta percepção do tempo e a hierarquia das épocas que é determinada por ela penetraram em todos os gêneros elevados da Antigüidade e da atualidade Elas penetraram tão profundamente nos próprios fundamentos dos gêneros que continuaram a viver dentro deles nas épocas posteriores até o século XIX e mesmo depois A idealização do passado nos gêneros elevados tem um caráter oficial Todas as manifestações exteriores da força e da verdade dominantes de tudo que está concluído organizamse dentro da categoria axiológica e temporal do passado em uma representação distanciada longínqua desde o gesto e o vestuário até o estilo tudo é símbolo do poder Já o romance está ligado aos elementos eternamente vivos da palavra e do pensamento não oficiais a forma festiva o discurso familiar a profanação Os mortos são honrados de maneira diferente eles são retirados da esfera de contato e podem e devem ser evocados em outro estilo O discurso sobre um morto por seu estilo difere profundamente do discurso sobre um vivo Nos gêneros elevados todo poder e privilégio todo valor e prestígio vestuário etiqueta estilo do discurso do personagem e o estilo do discurso sobre ele passam da zona do contato familiar para um plano distante Na orientação à perfeição expressase o classicismo de todos os gêneros não romanescos A vida atual o presente vulgar instável e transitório esta vida sem começo e sem fim era objeto de representação somente dos gêneros inferiores Mas antes de mais nada ela era o principal objeto de representação daquela região mais vasta e rica da criação cômica popular Num trabalho já citado eu tentei mostrar a enorme importância desta região tanto na Antigüidade como nos séculos medievais para a criação e a formação da palavra romanesca Ela teve este mesmo sentido em todos os demais aspectos do gênero romanesco durante o estágio da sua criação e posterior desenvolvimento É justamente aqui no cômico popular que é necessário procurar as autênticas raízes folclóricas do romance O presente a atualidade enquanto tal o eu próprio os meus contemporâneos e o meu tempo foram originariamente o objeto de um riso ambivalente objetos simultâneos de alegria e de destruição E é aqui precisamente que se forma uma nova atitude radical em relação à língua e à palavra Ao lado da representação direta da ridicularização da atualidade vivente floresce a parodização e a travestização de todos os gêneros elevados e das grandes figuras da mitologia nacional O passado absoluto dos deuses dos semideuses e dos heróis nas paródias e particularmente nos travestimentos atualizase rebaixase é representado em nível de atualidade no ambiente dos costumes da época na linguagem vulgar daquele tempo A partir deste elemento natural do riso popular surge espontaneamente no solo clássico um domínio bastante vasto e diversificado da antiga literatura que os antigos denominavam por força de expressões como σπουδόγέοιον spoudogéolion o domínio do sériocômico A esta literatura pertencem os mimos de pequeno enredo de Sofrônio toda a poesia bucólica a fábula a primeira literatura de memórias Ἐπιδημίαι Epidemíai de Ion de Quios o Όμιλιαι Homíliai de Critias e os panfletos A ela pertencem também os antigos diálogos socráticos enquanto gênero e ainda mais a sátira romana Lucílio Horácio Pérsio Juvenal a vasta literatura dos Simpósios e finalmente a sátira menipéia como gênero e os diálogos à maneira de Luciano Todos estes gêneros englobados pelo conceito do sériocômico aparecem como autênticos predecessores do romance e mais alguns deles são gêneros de tipo puramente romanesco que mantém sob a forma embrionária e às vezes sob a forma desenvolvida os principais elementos das mais importantes variantes posteriores do romance europeu A verdadeira essência do romance enquanto gênero em devir está presente num grau incomparavelmente maior do que nos chamados romances gregos o único gênero que é digno deste nome O romance grego exerceu uma forte influência no romance europeu precisamente no período barroco bem na época em que se iniciava a elaboração da teoria do romance abade Huet quando se refinava e consolidava o próprio termo romance Por isso de todas as produções romancescas da Antigüidade ele se consolidou unicamente por força do romance grego Entretanto os chamados gêneros sériocômicos ainda que fossem desprovidos desta sólida ossatura composicional e de enredo que estamos acostumados a exigir do gênero romanesco anteciparam as etapas mais essenciais da evolução do romance dos tempos modernos Isto concerne particularmente aos diálogos socráticos os quais parafraseandose Friedrich Schlegel podem ser chamados de romances daqueles tempos e ainda à sátira menipéia incluindose o Satírocon de Petrônio cujo papel foi enorme na história do romance e que ainda está longe de ser devidamente apreciado pela ciência Todos esses gêneros sériocômicos representam a primeira etapa legítima e essencial para a evolução do romance enquanto gênero em devir Em que consiste então a essência romanesca desses gêneros sériocômicos Em que se apóia a sua importância como primeira etapa para a formação do romance A atualidade serve como seu objeto e o que é mais importante como ponto de partida para a compreensão a avaliação e a formulação Pela primeira vez o objeto de uma representação literária séria na verdade também cômica é dado sem qualquer distanciamento em nível de atualidade dentro de uma zona de contato direto e grosseiro E até lá onde o passado e o mito servem como objeto de representação destes gêneros a distância épica está ausente pois é a atualidade que fornece o ponto de partida No processo de destruição das distâncias o princípio cômico destes gêneros extraído do folclore o riso popular adquire um significado especial É justamente o riso que destrói a distância épica e em geral qualquer hierarquia de afastamento axiológico Um objeto não pode ser cômico numa imagem distante é imprescindível aproximálo para que se torne cômico todo cômico é próximo toda obra cômica trabalha na zona da máxima aproximação O riso tem o extraordinário poder de aproximar o objeto ele o coloca na zona do contato direto onde se pode apalpálo sem cerimônia por todos os lados revirálo virálo do avesso examinálo de alto a baixo quebrar o seu envoltório externo penetrar nas suas entranhas duvidar dele estendêlo desmembrálo desmascarálo desnudálo examinálo e experimentálo à vontade O riso destrói o temor e a veneração para com o objeto e com o mundo colocao em contato familiar e com isto preparao para uma investigação absolutamente livre O riso é um fator essencial à criação desta premissa da intrepidez sem a qual não seria possível a compreensão realística do mundo Ao aproximar e familiarizar o objeto o riso como que o coloca nas mãos intrépidas da experiência tanto científica quanto literária que se utiliza dos meios e da imaginação que esta prática experimenta livremente A familiarização do mundo pelo riso e pela fala popular marca uma etapa extraordinariamente importante e indispensável no caminho para o estabelecimento do livre conhecimento científico e para a criação artisticamente realista da humanidade européia O plano da representação cômica satírica é um plano específico tanto em relação ao tempo como também ao espaço O papel da memória aqui é mínimo não há nada para a memória e para a lenda a fazer no mundo cômico ridicularizase para esquecer Esta é a zona do contato familiar e tosco o riso a invectiva a descompostura Na verdade tratase de uma dessacralização isto é exatamente a retirada do objeto do plano distante a destruição da distância épica e de qualquer plano longínquo em geral Neste plano o plano do riso podese contornar o objeto por todos os lados de maneira irreverente e mais o dorso a parte posterior do objeto e do mesmo modo as suas entranhas que não convém mostrar adquirem um sentido particular neste plano O objeto é quebrado desnudado o seu arranjo hierárquico é retirado despido ele é ridículo como também é ridícula a sua roupa vazia retirada e separada da sua pessoa Ocorre a operação cômica do desmembramento O objeto cômico pode ser representado isto é atualizado o objeto do jogo é a simbólica literária original do espaço e do tempo o alto o baixo o frontal o traseiro o anterior o posterior o primeiro o último o passado o presente o breve o imediato o longo etc A lógica literária da análise do desmembramento e da morte é preponderante Temos um documento notável que reflete o nascimento simultâneo do conceito científico e da nova personagem romanesca na arte literária em prosa Tratase dos diálogos socráticos Tudo é característico neste gênero magnífico nascido no final da Antigüidade clássica Característico é o fato de que ele tenha surgido como apomnemoumate isto é como gênero do tipo memórias como anotações a partir da memória pessoal de conversas verídicas com os contemporâneos4 além disso é característico o fato de que a figura central do gênero seja uma pessoa que fala e que conversa característica 4 Nas memórias e nas autobiografias a memória tem um caráter particular tratase da memória que se tem da sua época e de si mesmo Não se trata de uma memória heroicizante nela há um elemento de automatismo e de anota é a associação na personagem de Sócrates herói principal deste gênero da máscara popular de um bobo que não compreende nada quase um Marguitta com traços de um pensador elevado no espírito das lendas dos sete sábios o resultado desta composição é a imagem ambivalente da sábia ignorância É característica enfim a autoglorificação ambivalente do diálogo socrático Eu sou o mais sábio de todos por isso eu sei que não sei nada Na figura de Sócrates podese estudar um novo tipo de heroicização prosaica Ao redor desta figura surgem as lendas carnavalescas por exemplo a relação de Sócrates com Xantipa o personagem principal se transforma em bufão cf a carnavalização posterior das lendas em torno de Dante Púchkín etc É característico ainda mais o diálogo narrado emoldurado por uma narração dialógica e canônica para este gênero a característica é a vizinhança tão próxima quanto possível para o grego clássico da linguagem desse gênero com a linguagem coloquial popular e é extremamente característico que estes diálogos tenham revelado à prosa ática e que eles estejam ligados à renovação fundamental da prosa literária e prosaica por meio da substituição das línguas característico ainda é que este gênero seja ao mesmo tempo um sistema bastante complexo de estilos e mesmo de dialetos que o penetram como modelos de linguagens e de estilos com diferentes graus de parodicidade para nós portanto tratase de um gênero multiestilístico tal como o verdadeiro romance a própria figura de Sócrates é característica atuando como um notável exemplo de heroicização romanesca em prosa tão diferente da épica finalmente profundamente característico e isto é o mais importante para nós é a combinação do cômico da ironia socrática e de todos os sistemas de rebaixamento socráticos com uma investigação séria elevada e pela primeira vez livre do mundo do homem e do pensamento humano O riso socrático abafado até a ironia e os seus rebaixamentos todo um sistema de metáforas e de comparaçães tomados das baixas esferas da vida dos ofícios da vida cotidiana etc aproximam e tornam o mundo familiar para que se possa examinálo sem receios e livremente O ponto de partida é a atualidade as pessoas da época e as suas opiniões A partir disto desta atualidade de muitas vozes e línguas da experiência e do conhecimento pessoais realizase a orientação no mundo e no tempo inclusive no passado absoluto da lenda Mesmo um pretexto fútil e fortuito e isto era canônico para o gênero serve como ponto de partida aparente e imediato para o 414 415 diálogo como que realçando o dia de hoje e a sua conjuntura fortuita um encontro fortuito etc Nos outros gêneros sériocômicos encontraremos outros aspectos nuances e consequências daquele mesmo deslocamento radical do centro axiológicotemporal da orientação artística e daquela revolução na hierarquia das épocas Algumas palavras agora sobre a sátira menipéia Suas raízes folclóricas são as mesmas do diálogo socrático ao qual ela está ligada geneticamente em geral a consideram como o produto da desagregação do diálogo socrático Aqui o papel familiarizante do riso é muito mais forte incisivo e grosseiro Por vezes a liberdade nos denegrimentos grosseiros é aquela maneira de virar do avesso os aspectos nobres do mundo e as concepções humanas pode estarrecer Porém a esta extraordinária familiaridade do riso está associada uma problemática aguda e um fantástico utópico Não restou nada da longínqua representação épica do passado absoluto o mundo inteiro e tudo o que ele tem de mais sagrado são dados sem quaisquer distâncias na zona de contato brutal onde se pode agarrar tudo com as mãos Neste mundo inteiramente familiar o enredo se desenvolve com uma liberdade fantástica e excepcional do céu à terra da terra ao inferno do presente ao passado do passado ao futuro Nas visões satíricas do alémtúmulo da sátira menipéia as personagens do passado absoluto os atuantes das diversas épocas do passado histórico por exemplo Alexandre o Grande e os contemporâneos vivos colocamse frente a frente de maneira familiar para conversar e até mesmo para brigar É extremamente típico este entrechoque de épocas segundo o ponto de vista da atualidade Os argumentos desenfreadamente fantásticos e as situações da sátira menipéia estão subordinados a uma finalidade pôr à prova e desmascarar idéias e ideólogos Tratase de argumentos experimentais e provocadores É significativa a aparição do elemento utópico neste gênero na verdade hesitante e superficial o presente inacabado começa a se sentir mais próximo do futuro do que do passado começa a procurar nele os suportes de valores mesmo que este futuro se retrate por ora como um retorno ao século de ouro de Saturno no solo romano a sátira menipéia era uma imagem estreita ligada às saturnais e à liberdade do seu riso A sátira menipéia é dialógica cheia de paródias e de travestizações dotada de numerosos estilos e que não teme nem mesmo os elementos do bilinguísmo em Varrão e sobretudo na Consolação Pela Filosofia de Boécio Que a sátira menipéia possa tecer uma enorme tela que é uma reflexão socialmente multiforme e polifônica de sua época isto se atesta no Satiricon de Petrônio Quase todos os gêneros da esfera sériocômica citados por nós se caracterizam pela presença de um elemento declaradamente autobiográfico e memorialista O deslocamento do centro temporal da orientação literária permite ao autor sob todas as suas máscaras e aspectos moverse livremente no campo do mundo que é representado o qual na epopéia era absolutamente inacessível e fechado este deslocamento coloca de um lado o autor e os seus ouvintes e de outro os heróis e o mundo por ele representados naquele mesmo e único plano axiológico e temporal num único nível que atua através dos seus contemporâneos dos possíveis conhecidos dos amigos que familiariza suas atitudes lembro outra vez o início manifestada e acentuadamente romanesco de Oniégin O campo de representação do mundo modificase segundo os gêneros e as épocas de desenvolvimento da literatura Ele é organizado de maneiras diferentes e limitado de vários modos no espaço e no tempo Este campo é sempre específico O romance está ligado aos elementos do presente inacabado que não o deixam se enrijecer O romancista gravita em torno de tudo aquilo que não está ainda acabado Ele pode aparecer no campo da representação em qualquer atitude pode representar os momentos reais da sua vida ou fazer uma alusão pode se intrometer na conversa dos personagens pode polemizar abertamente com os seus inimigos literários etc Não se trata somente da aparição da imagem do autor no campo da representação tratase também do fato que o autor autêntico formal e primeiro o autor da imagem do autor redunda em novas relações com o mundo representado elas se encontram agora naquelas mesmas medidas axiológicas e temporais que representam num único plano o discurso do autor com o discurso do personagem representado e que pode atuar junto com ele mais exatamente não pode deixar de atuar nas mútuas relações dialógicas e nas combinações híbridas É exatamente esta nova posição do autor primeiro e formal na zona de contato com o mundo representado que torna possível a sua aparição no campo de representação da imagem do autor Esta nova situação do autor é um dos mais importantes resultados para a superação da distância hierárquica épica Notese a enorme significação formal composicional e estilística que tem esta nova posição do autor para a especificidade do gênero romanesco não é preciso dar explicações Neste sentido nos referimos às Almas Mortas de Gógol Para ele a Divina Comédia figuravase como a forma para a sua epopéia ele parecia ver nesta forma a grandeza do seu trabalho mas foi uma sátira menipéia o que ele conseguiu Ele foi incapaz de sair daquela esfera do contato familiar uma vez entrado nela e não pôde transferir para esta esfera as imagens concretas distanciadas As imagens distanciadas 416 417 da epopéia e as imagens do contato familiar não poderiam se encontrar de modo algum num único campo de representação o patético irrompera no mundo da sátira menipéia como um corpo estranho este patético concreto tornouse abstrato e ficou escapando à obra Gógol não teria tido êxito em passar do inferno e da escuridão para o purgatório e para o paraíso com as mesmas personagens e na mesma obra era impossível uma passagem contínua A tragédia de Gógol é em certa medida a tragédia do gênero entendendose o gênero não no sentido formalista mas como zona e campo da percepção de valores e da representação do mundo Gógol perdeu de vista a Rússia isto é perdeu o plano da sua percepção e representação emaranhouse entre a memória e o contato familiar grosso modo ele não conseguiu focalizar a sua objetiva Mas a contemporaneidade como novo ponto de partida da orientação literária não exclui absolutamente a representação do passado heróico ainda por cima sem qualquer travestização Um exemplo é a Ciropedia de Xenofonte que certamente já não pertence ao domínio do sériocômico mas situase nas suas fronteiras O objeto de representação é o passado o herói é o Grande Ciro Mas o ponto de partida da representação é a realidade da época de Xenofonte é justamente ela que dita os pontos de vista e as orientações para certos valores É característico que o passado heróico escolhido pelo autor não seja o nacional mas o estrangeiro o bárbaro O mundo já havia desmoronado aquele mundo monolítico e fechado tal como era na epopéia dera lugar a um mundo vasto e aberto ao mesmo tempo seu e dos outros A escolha de um heroísmo estrangeiro característica da época de Xenofonte era determinada por um interesse especial pelo Oriente pela cultura oriental pela ideologia pelas formas sociais e políticas esperavase uma luz do Oriente Tinha início a reciprocidade de culturas ideologias e línguas Além disso era característica a idealização do déspota oriental e aqui ressoa a atualidade de Xenofonte com a sua idéia partilhada por um círculo considerado de seus contemporâneos de renovação das formas políticas da Grécia num sentido próximo à autocracia oriental Semelhante idealização do autocrata oriental era sem dúvida profundamente estranha para todo o espírito da tradição nacional helênica Característica ainda e extremamente atual para a época era a idéia da educação do homem posteriormente ela se tornou uma das principais idéias formativas do novo romance europeu E ainda é característica a transferência intencional e bastante evidente para a imagem do Grande Ciro dos traços de Ciro o Jovem contemporâneo de Xenofonte que tinha tomado parte na sua campanha que sofre ainda a influência de um outro contemporâneo próximo a Xenofonte Sócrates E com isto se introduz o elemento de memórias na obra Finalmente também é característica a forma da obra os diálogos emoldurados pela narração Deste modo a atualidade e a sua problemática são o ponto de partida e o centro de interpretação de uma apreciação literária e ideológica do passado Este passado é dado sem distanciamento no nível da atualidade em verdade não em camadas baixas mas em seu plano elevado no nível da sua problemática avançada Notamos como que uma nuance utópica nesta obra como que um reflexo ligeiro e tímido do movimento do presente que parte do passado para o futuro A Ciropedia é um romance no sentido intrínseco da palavra A representação do passado no romance não implica absolutamente a modernização deste passado em Xenofonte há certamente elementos desta modernização Pelo contrário a representação autenticamente objetiva do passado enquanto tal só se torna possível no romance A atualidade com sua experiência nova persiste na sua mesma forma de visão na profundidade na agudeza na amplidão e na vivacidade dessa visão mas ela não deve penetrar em absoluto no próprio conteúdo da representação como uma força que moderniza e que altera a singularidade do passado Pois toda atualidade importante e séria tem necessidade de uma imagem autêntica do passado da autêntica linguagem estrangeira de um passado estrangeiro A revolução na hierarquia dos tempos que foi caracterizada por nós determina também uma mudança radical na estrutura da representação literária No seu conjunto ainda que não seja exatamente um conjunto o presente é por assim dizer em princípio e em essência algo não acabado ele exige uma continuidade com todo o seu ser Ele marcha para o futuro e quanto mais ativa e conscientemente ele vai adiante para este futuro tanto mais sensível e mais notável é o seu caráter de inacabado Por isso quando o presente se torna o centro da orientação humana no tempo e no mundo o tempo e o mundo perdem o seu caráter acabado tanto no seu todo como também em cada parte O modelo temporal do mundo modificase radicalmente este se torna um mundo onde não existe a palavra primordial a origem perfeita e onde a última ainda não foi dita Para a consciência literária e ideológica o tempo e o mundo tornamse históricos pela primeira vez eles se revelam se bem que no início ainda obscura e confusamente como algo que vai ser como um eterno movimento para um futuro real com um único processo inacabado que abarca todas as coisas Todo evento qualquer que seja todo fenômeno toda coisa e em geral todo objeto de representação literária perde aquele caráter acabado aquele desesperador aspecto de pronto e imutável inerente ao mundo épico do passado absoluto protegido por uma fronteira inacessível do presente que se prolonga e não tem fim Graças ao contato com o presente o 418 419 objeto se integra no processo inacabado do mundo a vir e nele deixa a sua marca de inacabado Qualquer que seja a sua distância de nós no tempo ele está ligado ao nosso presente inacabado pelas contínuas mutações temporais e entra em relações com a nossa incompletude com o nosso presente e este presente avança para um futuro ainda não perfeito Neste contexto inacabado perdese o caráter de imutabilidade semântica do objeto o seu sentido e o seu significado se renovam e crescem à medida que esse contexto se desenvolve posteriormente Isto conduz a transformações radicais na estrutura da representação literária que adquire uma atualidade específica Ela entra em relação numa ou outra forma ou medida com aquele acontecimento da vida que está se desenvolvendo agora ao qual também nós autor e leitores estamos ligados de maneira substancial Com isto criase uma zona de estruturação de representações radicalmente nova no romance uma zona de contato máximo do objeto de representação com o presente na sua imperfeição e por conseguinte também com o futuro A profecia é própria da epopéia a predição é própria do romance A profecia épica se realiza totalmente nos limites do passado absoluto se não em dada epopéia ao menos nos limites da tradição que a envolve Ela não diz respeito ao leitor e ao seu tempo real Já o romance quer profetizar os fatos predizer e influenciar o futuro real o futuro do autor e dos leitores O romance tem uma problemática nova e específica seus traços distintivos são a reinterpretação e a reavaliação permanentes O centro da dinâmica da percepção e da justificativa do passado é transferido para o futuro A modernidade do romance é indestrutível modernidade esta relegada a uma avaliação injusta dos tempos Lembremos a reavaliação do passado na Renascença as trevas da idade gótica no século XVIII Voltaire no positivismo a denúncia dos mitos das lendas da heroicização o afastamento máximo da memória e antes do empirismo a redução do conceito de conhecimento o progressismo mecanicista como critério supremo qualquer parte Por isso podese elaborar e apresentar qualquer parte como um todo Não é possível abarcar todo o mundo do passado absoluto e ele é único quanto ao argumento numa única epopéia isto significaria recontar toda a tradição nacional e é difícil abarcar até mesmo alguma das suas partes significativas Mas isto importa pouco pois a estrutura do todo se repete em cada parte e cada parte é acabada e fechada como um todo Podese começar a narração a qualquer momento e terminála a qualquer momento A ltiada apresentase como um extrato fortuito do ciclo troiano O seu final as exéquias de Heitor do ponto de vista romanesco não poderia servir de modo algum como fim para um romance mas o caráter de acabamento épico não se ressente disto O interesse particular suscitado pelo fim e como terminará a guerra Quem vencerá Quer será de Aquiles etc é totalmente excluído na atitude do material épico tanto pelos seus motivos externos quanto pelos internos o aspecto de enredo na tradição já era conhecido de antemão O interesse particular pelo o que vem depois o que vai acontecer e o interesse pela conclusão como terminará são característicos unicamente para o romance e possíveis somente na zona de proximidade e de contato impossíveis numa representação remota Na representação à distância todo evento é dado e é impossível o interesse pelo sujeito que não se conhece Já o romance especula sobre as categorias da ignorância Surgem diversas formas e métodos para a utilização dos excessos do autor aquilo que o herói não sabe e não vê Podese utilizar externamente estes excessos no enredo e na elaboração para a conclusão fundamental e na exteriorização específica do romance da representação do homem Surge também o problema de outra eventualidade diferente As singularidades da zona romanesca nas suas diferentes variantes se manifestam de vários modos Um romance pode ser isento de qualquer problemática Tomemos por exemplo um romance de folhetim Nele não há nada da problemática filosófica ou sóciopolítica e nem de psicologia por conseguinte não é através das suas esferas que se pode estabelecer o contato com algum evento inacabado da nossa existência A ausência de distância e de zona de contato são tratados aqui de maneira diferente no lugar da nossa vida enfadonha nos oferecem um sucedâneo é verdade mas se trata de uma existência fascinante e brilhante Podese participar dessas aventuras e se autoidentificar com os seus personagens tais romances quase sempre servem de substituto da nossa vida particular Nada de semelhante é possível com relação à epopéia e aos outros gêneros distanciados É aqui que se revela também um perigo específico desta zona de contato romanesco é possível introduzirse a si próprio no romance jamais na epopéia e nos outros gêneros distanciados Daí a possibili dade de fenômenos tais como a substituição da vida particular pela leitura imoderada de romances ou por sonhos à maneira romanesca como o personagem das Noites Brancas como o bovarismo como a manifestação da vida dos personagens romanescos em voga desencantados demoníacos etc Os outros gêneros só são capazes de gerar fenômenos semelhantes quando se romancizam isto é se transportam para a zona de contato romanesca por exemplo os poemas de Byron Uma outra manifestação da maior importância para a história do romance ligase à nova orientação temporal e à zona de contato tratase das relações particulares do romance para com os gêneros extraliterários a vida corrente e a ideologia Já desde o começo o romance e os seus gêneros precursores apoiavamse em diversas formas extraliterárias da vida pública e privada sobretudo retóricas e existe até mesmo uma teoria que derivava o romance da retórica E nas épocas seguintes de sua evolução o romance se utilizou larga e substancialmente das cartas dos diários das confissões dos métodos da nova retórica judicial etc Construído na zona de contato com um evento da atualidade inacabada o romance freqüentemente ultrapassou as fronteiras da arte literária específica transformandose então ora num sermão moralizador ora num tratado filosófico ora em verdadeira diatribe política ora em algo que se degenerera numa obscura confissão íntima primária em grito da alma etc Todos estes fenômenos são extremamente característicos do romance enquanto gênero que está por se constituir Pois as fronteiras entre o artístico e o extraliterário entre a literatura e a não literatura etc não são mais estabelecidas pelos deuses Toda especificidade é histórica O porvir da literatura não é só crescimento e mudança nos limites das inabaláveis fronteiras de sua especificidade ele abala as próprias fronteiras O processo de modificação das fronteiras pelo domínio da cultura inclusive da literatura é um processo extremamente lento e complexo Violações isoladas das fronteiras desse specjticum como aquelas acima indicadas não são mais do que sintomas deste processo que se desenvolve a grande profundidade No romance enquanto gênero que se constitui estes sintomas da transformação da especificidade revelamse muito mais freqüentes nítidos e bem mais características pois é o romance que os encabeça O romance pode servir como documento para a previsão dos grandes destinos ainda longínquos da evolução literária Porém a modificação da orientação temporal e da zona de edificação das representações não revela nada mais profundo e essencial do que a reestruturação da representação do homem na literatura Entretanto nos limites do presente estudo eu só poderei abordar de maneira rápida e superficial esta grande e complexa questão O homem dos grandes gêneros distanciados é o homem de um passado absoluto e de uma representação longínqua Como tal ele é inteiramente perfeito e terminado Ele é concluído num alto nível heróico mas está desesperadoramente pronto ele está todo ali do começo ao fim ele coincide consigo próprio e é igual a si mesmo Ademais ele é completamente exteriorizado Entre a sua verdadeira essência e o seu aspecto exterior não há a menor discrepância Todo o seu potencial e todas as suas possibilidade são realizadas até o fim na situação do seu ambiente social em todo o seu destino e até mesmo na sua aparência à parte este destino definido e esta situação precisa não resta nada dele Ele se tornou tudo aquilo que poderia tornarse e não poderia terse tornado outra coisa que não fosse isto Ele está completamente exteriorizado no sentido mais elementar e quase literal da palavra nele tudo é aberto e se manifesta a alta voz o seu mundo interior e todos os seus traços externos comportamentos e ações estão situados num único nível Seu ponto de vista sobre si mesmo coincide plenamente com o ponto de vista dos outros sobre ele seu meio sua coletividade seu cantor e seus ouvintes Neste sentido abordemos o problema da autoglorificação em Plutarco e em outros O eu próprio num plano distante existe não de si e para si mas para os descendentes para a lembrança antecipada da posteridade Eu reconheço a mim e a minha imagem num plano distanciado e longínquo minha consciência está isolada de mim neste plano distanciado da memória eu me vejo pelos olhos de outrem Esta coincidência de formas dos pontos de vista sobre si memo e sobre outrem tem um caráter ingênuo e íntegro sem discrepâncias entre si não há ainda a confissãoautoacusação Aquilo que se representa coincide com aquilo que é representado5 Ele vê e sabe de si somente aquilo que os outros vêem e sabem Tudo o que outros ou o autor dizem dele ele poderá dizer sobre si mesmo viceversa Não há nada para procurar nele nada para adivinhar não se pode desmascarálo nem provocálo ele está totalmente do lado de fora sem envoltório e sem núcleo Além do mais o homem épico é desprovido de qualquer iniciativa ideológica assim como as personagens e o autor O mundo épico conhece uma só e única concepção de mundo inteiramente acabada igualmente obrigatória e indiscutível para os personagens para o autor e para os ouvintes O homem épico está igualmente desprovido de iniciativa lingüística o mundo épico conhece uma só e única língua constituída Por 5 O epos se desintegra então quando começa a procura de um novo ponto de vista sobre si próprio sem misturar os pontos de vista dos outros O gesto romanesco expressivo se apresenta como um desvio da norma mas este seu caráter errôneo revela por sua vez o seu sentido subjetivo No início há um desvio da norma depois a problemática da própria norma isso nem a concepção de mundo e tampouco a língua podem servir como fatores de delimitação e de constituição das representações do homem e das suas individualizações Aqui os indivíduos são delimitados constituídos individualizados por situações e destinos diversos mas não por verdades diferentes Nem mesmo os deuses estão separados dos humanos por alguma verdade particular eles têm a mesma língua a mesma concepção de mundo o mesmo destino a mesma extroversão ininterrupta Estas particularidades do homem épico partilhadas basicamente por outros gêneros distanciados elevados originam a beleza excepcional a coesão a claridade cristalina e o polimento literário desta representação do homem mas por outro lado elas também engendram a sua limitação e uma certa irrealidade nas novas condições da existência humana A destruição da distância épica a passagem da imagem do homem do plano distante para a zona de contato com um evento inacabado do presente e por conseguinte também do futuro conduz a uma reestruturação radical da representação do homem no romance e portanto em toda literatura Neste processo as fontes folclóricas e cômicopopulares do romance exerceram um papel considerável A primeira etapa essencial para a formação foi a familiarização cômica da figura humana O cômico destruiu a distância épica e pôsse a explorar o homem com liberdade e de maneira familiar a virálo do avesso a denunciar a disparidade entre a sua aparência e o seu fundo entre as possibilidades e a sua realização Uma importante dinâmica foi introduzida na representação do homem a dinâmica da incompatibilidade e da discrepância entre seus diversos aspectos o homem deixou de coincidir consigo mesmo e portanto também o enredo deixou de revelar o homem por inteiro De todas estas divergências e discrepâncias o riso tira antes de tudo os efeitos cômicos e não apenas cômicos originando já nos gêneros sériocômicos da Antigüidade figuras de outra ordem como por exemplo a figura grandiosa e heróica de Sócrates tratada na sua totalidade de maneira nova e complexa Característica é a estrutura literária das máscaras populares estáveis que têm exercido enorme influência na formação da representação humana no romance nos estágios mais importantes da sua evolução os gêneros sériocômicos da Antigüidade Rabelais Cervantes O herói épico e trágico não está nada fora do seu destino e do enredo que o condiciona Ele não pode se tornar herói de um destino diferente de um outro enredo As máscaras populares Makkus Polichinelo Arlequim ao contrário podem seguir qualquer destino e figurar em quaisquer situações às vezes mesmo no interior de uma só peça mas elas jamais se deixam esgotar mantendo sempre sobre qualquer situação e dest no o seu excedente de alegria conservando em todos os momentos a sua face humana pouco complicada e inextraurível Por isso tais máscaras podem atuar e falar foradoenredo melhor dizendo é exatamente nas suas apresentações improvisadas nas trices das atelanas nos lazzi da comédia italiana que elas melhor revelam o seu rosto Nem o herói épico nem o trágico pode se apresentar por sua própria natureza numa pausa improvisada ou num entreato para isto ele não tem rosto nem gesto e nem palavras nisto reside a sua força e também a sua limitação Épico ou trágico é o herói que perece pois esta é a sua natureza As máscaras populares ao contrário jamais perecem nem um só tema das atelanas das comédias italianas ou das comédias francesas italianizadas prevê ou pode prever a morte real de Makkus de Polichinelo ou de Arlequim Em compensação muitos prevêem sua morte fictícia e cômica com a subseqüente ressurreição São os heróis das improvisações livres e não aqueles da tradição os heróis de um processo indestrutível eternamente renovado sempre atual da vida não são os heróis do passado absoluto Estas máscaras e a sua estrutura não coincidentes consigo mesmas e que em cada situação dada é extravasamento de alegria e inexauribilidade de verve exerceram repetimos uma enorme influência na representação do homem no romance Esta se conservou nele mas sob uma forma mais complexa mais aprofundada e mais séria ou sériocômica quanto ao conteúdo Um dos principais temas interiores do romance é justamente o tema da inadequação de um personagem ao seu destino e à sua situação O homem ou é superior ao seu destino ou é inferior à sua humanidade Ele não pode se tornar inteira e totalmente funcionário ou senhor de terras comerciante noivo rival pai etc Se um personagem do romance consegueo isto é se ele se ajusta inteiramente à sua situação e ao seu destino o personagem de gênero da vida quotidiana a maioria dos personagens secundários do romance então o seu excedente de humanidade pode se realizar na imagem principal do herói e este excedente sempre se realizará segundo a orientação formal e conteudística do autor nos moldes da sua visão e da representação do homem A mesma zona de contato com o presente inacabado e por conseguinte com o futuro cria a necessidade de tal não coincidência do homem consigo mesmo Nela sempre permanecem as virtualidades irrealizadas e as exigências não satisfeitas Há um porvir e este porvir não pode deixar de se referir à imagem do homem de ter suas raízes nele O homem não se encarna totalmente na substância sóciohistórica do seu tempo Não existem as formas que poderiam encarnar totalmente todas as possibilidades e exigências humanas onde ele poderia dar tudo de si até a última palavra como o herói épico ou trágico formas que ele poderia preencher até os limites e ao mesmo tempo sem extravasar Sempre resta um excedente de humanidade não realizado sempre fica a necessidade de um futuro e de um lugar indispensável para ele Todos os hábitos existentes são estreitos e portanto cômicos para o homem Mas esta humanidade excedente não encarnada pode se realizar não no personagem mas no ponto de vista do autor por exemplo em Gógol Quanto à realidade romanesca ela é uma das realidades eventuais ela não é indispensável ela é fortuita e carrega em si outras possibilidades A entidade épica do homem se desagrega no romance segundo outras linhas surge uma divergência fundamental entre o homem aparente e o homem interior e como resultado leva o aspecto subjetivo do homem a tornarse objeto de experiência e de representação Inicialmente no plano cômico e familiarizante constatase uma antinomia específica de aspectos o homem visto por si mesmo e pelos olhos de outrem Esta desintegração da entidade épica e trágica do homem no romance vai de encontro aos pródromos de uma entidade nova e complexa um estágio mais elevado da evolução humana Finalmente o homem adquire no romance uma iniciativa ideológica e lingüística que modifica a sua figura um tipo novo e superior de individualização do personagem Já no antigo estágio da sua evolução o romance apresentava as notáveis figuras dos personagens ideólogos tal como Sócrates ou Epicteto rindo no chamado Romance de Hipócrates ou ainda a figura profundamente romanesca de Diógenes na vasta literatura dialogada dos cínicos e na sátira menipéia aqui ele se aproxima fortemente da imagem da máscara popular e finalmente Menipo em Luciano O personagem de romance como regra é um ideólogo em maior ou menor grau Eis apresentado um esquema um tanto abstrato e simplificado da maneira como o homem é reconstruído no romance Tiremos algumas conclusões O presente com seu caráter inacabado considerado como ponto de partida e centro de orientação literárioideológica marca uma revolução grandiosa na consciência criadora do homem No mundo europeu esta reorientação e destruição da antiga hierarquia dos tempos receberam o seu caráter fundamental de gênero nas fronteiras da Antigüdade clássica e do Helenismo e nos tempos modernos no período tardio da Idade Média e na Renascença Durante esse período são lançadas as bases do gênero romanesco se bem que esses elementos já há muito estivessem preparados e suas raízes penetradas no folclore Todos os outros gêneros elevados nesta época já há muito eram gêneros constituídos velhos e quase esclerorados impregnados de alto a baixo pela antiga hierarquia dos tempos O romance enquanto gênero desde o início se constituiu e se desenvolveu no solo de uma nova sensibilidade em relação ao tempo O passado absoluto a tradição a distância hierárquica não tiveram nenhuma parte no processo da sua formação como gênero eles desempenharam somente um papel insignificante em certos períodos da sua evolução quando este era submetido a uma certa epização como por exemplo o romance barroco O romance se formou precisamente no processo de destruição da distância épica no processo da familiarização cômica do mundo e do homem no abaixamento do objeto da representação artística ao nível de uma realidade atual inacabada e fluida Desde o início o romance foi construído não na imagem distante do passado absoluto mas na zona do contato direto com esta atualidade inacabada Sua base repousava na experiência pessoal e na livre invenção criadora A nova e sóbria imagem da arte romanesca em prosa e a nova concepção crítica científica fundamentada na experiência pessoal se formaram lado a lado e simultaneamente O romance deste modo desde o princípio foi feito de uma massa diferente daquela dos outros gêneros acabados Ele é de uma natureza diferente Com ele e nele em certa medida se originou o futuro de toda literatura Por isso uma vez nascido ele não pode ser simplesmente um gênero ao lado dos outros gêneros e tampoco pode estabelecer relações mútuas com eles no sentido de uma coexistência pacífica e harmoniosa Diante do romance todos os gêneros começam a ressoar de maneira diferente Tem início um longo conflito pela romancização dos outros gêneros pelo engajamento deles na zona de contato com a atualidade inacabada O curso deste conflicto será complexo e sinuoso A romancização da literatura não implica em absoluto a imposição aos outros gêneros de um cânone estrangeiro e não peculiar pois o próprio romance está privado deste cânone ele por sua natureza é acanônico Tratase da sua plasticidade um gênero que eternamente se procura se analisa e que reconsidera todas as suas formas adquiridas Tal coisa só é possível ao gênero que é construído numa zona de contato direto com o presente em devir Por isso a romancização dos outros gêneros não implica a sua submissão a cânones estranhos ao contrário tratase de liberálos de tudo aquilo que é convencional necrosado empolado e amorfo de tudo aquilo que freia sua própria evolução e de tudo aquilo que os transforma ao lado do romance em estilizações de formas obsoletas Desenvolvi minhas posições de uma forma um tanto abstrata ilustreias somente com alguns exemplos da antiga etapa da formação do romance Esta minh am escolha foi determinada pelo fato de que entre nós na Rússia a significação desta etapa tem sido fortemente menosprezada Mesmo que se fale de um antigo estágio do romance 427 15 temse tido em vista por tradição unicamente o romance grego Ora a antiga etapa do romance tem um enorme significado para a exata compreensão da natureza deste gênero Mas em solo antigo o romance não podia desenvolver efetivamente todas aquelas possibilidades que se revelaram no mundo moderno Notamos que em certas cenas da Antigüidade o presente inacabado começava a se sentir mais perto do futuro do que do passado Todavia no solo sem perspectivas da sociedade antiga este processo de reorientação para um futuro real não podia ser concebido pois este futuro real não existia Esta reorientação se concretizou pela primeira vez no período da Renascença Nesta época o presente a atualidade se fizerem sentir não só como um prolongamento sem fim do passado mas também como um novo e verdadeiro começo heróico Perceber as coisas no nível de sua atualidade significava não só diminuir a atualidade mas também levantála para uma nova esfera heróica Pela primeira vez na época da Renascença o presente se fez sentir com toda nitidez e consciência incomparavelmente mais próximo e mais aparentado ao futuro do que ao passado O processo de evolução do romance não está concluído Ele entra atualmente numa nova fase Nossa época se caracteriza pela complexidade e pela extensão insólitas de nosso mundo pelo extraordinário crescimento das exigências pela lucidez e pelo espírito crítico Estes traços determinam igualmente o desenvolvimento do romance 1941 428 RABELAIS E GÓGOL Arte do discurso e cultura cômica popular No livro sobre Rabelais tentamos mostrar que os princípios fundamentais da obra deste grande artista foram determinados pela cultura cômica popular do passado Uma das falhas essenciais da crítica literária moderna está no fato de que ela tenta colocar toda a literatura em particular a renascenista nos moldes de uma cultura oficial enquanto que só se pode compreender efetivamente a obra de Rabelais no fluxo da cultura popular que sempre em todas as etapas do seu desenvolvimento tem resistido à cultura oficial e tem produzido o seu ponto de vista particular sobre o mundo e suas próprias formas para refletílo A crítica literária e a estética partem em geral de manifestações estreitas e empobrecidas da literatura cômica dos últimos três séculos e igualmente tentam encaixar à força o riso da Renascença nestas suas concepções restritas de riso e de cômico entretanto tais concepções estão longe de ser suficientes até mesmo para se compreender Molière Rabelais é o herdeiro e o realizador de um riso popular milenar Sua obra é a chave insubstituível para toda a cultura cômica européia nas suas manifestações mais vigorosas profundas e originais Abordaremos aqui o fenômeno mais significativo da literatura cômica dos tempos modernos a obra de Gógol Interessamnos unicamente os elementos da cultura cômica popular na sua obra Não tocaremos na questão relativa à influência direta ou indireta de Rabelais sobre Gógol através de Sterne e da escola naturalista 429
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Abordamos em nosso estudo somente dois fatores que atuaram na préhistória do discurso romanesco Um problema muito importante é do mesmo modo o estudo dos gêneros verbais principalmente os estratos familiares da linguagem popular os quais desempenharam um enorme papel na formação do discurso romanesco e que sob um aspecto diferente entraram na composição do gênero romanesco Mas isto já escaparia aos limites do nosso trabalho Aqui como conclusão desejamos assinalar simplesmente que o discurso romanesco nasceu e se desenvolveu não num processo estritamente literário de luta de tendências de estilos de concepções de mundo abstratas mas no meio de um conflito complexo e secular de culturas e línguas Ele está ligado às grandes mutações e crises dos destinos das línguas européias e da vida verbal dos povos A préhistória do discurso romanesco não se insere nos limites estreitos da história dos estilos literários 1940 EPOS E ROMANCE Sobre a metodologia do estudo do romance O estudo do romance enquanto gênero caracterizase por dificuldades particulares Elas são condicionadas pela singularidade do próprio objeto o romance é o único gênero por se constituir e ainda inacabado As forças criadoras dos gêneros agem sob os nossos olhos o nascimento e a formação do gênero romanesco realizamse sob a plena luz da História A ossatura do romance enquanto gênero ainda está longe de ser consolidada e não podemos ainda prever todas as suas possibilidades plásticas Os outros gêneros enquanto tais isto é como autênticos moldes rígidos para a fusão da prática artística já são conhecidos por nós em seu aspecto acabado O processo antigo de sua formulação se coloca além da observação histórica e documentada Encontramos a epopeía não só como algo criado há muito tempo mas também como um gênero já profundamente envelhecido O mesmo se pode dizer com algumas restrições a respeito de outros gêneros básicos até mesmo da tragédia Sua existência histórica tal como a conhecemos é a mesma dos gêneros constituídos com uma ossatura dura e já calcificada Cada um deles tem o seu cânone que age em literatura como uma força histórica real Todos estes gêneros ou em todo caso os seus elementos principais são bem mais velhos do que a escritura e o livro Ainda conservam nos dias de hoje em maior ou menor grau sua antiga natureza oral e declamatória Ao lado dos grandes gêneros só o romance é mais jovem do que a escritura e os livros e só ele está organicamente adaptado às novas formas da percepção silenciosa ou seja à leitura Mas o principal é que o romance não tem o cânone dos outros gêneros historicamente são válidas apenas espécies isoladas de romance mas não um cânone do romance como tal O estudo dos outros gêneros é análogo ao estudo das línguas mortas o do romance é como o estudo das línguas vivas principalmente as jovens Daí vem a extraordinária dificuldade para uma teoria do romance Com efeito esta teoria deveria ter em princípio um objeto de estudo totalmente diferente da teoria dos outros gêneros O romance não é simplesmente mais um gênero ao lado dos outros Tratase do único gênero que ainda está evoluindo no meio de gêneros já há muito formados e parcialmente mortos Ele é o único nascido e alimentado pela era moderna da história mundial e por isso profundamente apartado a ela enquanto que os grandes gêneros são recebidos por ela como um legado dentro de uma forma pronta e só fazem se adaptar melhor ou pior às suas novas condições de existência Em comparação a eles o romance apresentase como uma entidade de outra natureza Ele se acomoda mal com os outros gêneros Ele luta por sua supremacia na literatura e lá onde ele domina os outros gêneros velhos se desagregam Não é sem razão que o melhor livro sobre a história do romance antigo o livro de Erwin Rohde não faz tanto a sua história quanto representa o processo de desagregação de todos os grandes gêneros nobres da Antigüidade É muito importante e interessante o problema da interação de gêneros no interior da unidade da literatura em dado período Em certas épocas no período clássico dos gregos no século de ouro da literatura romana na época do classicismo na grande literatura ou seja na literatura dos grupos sociais preponderantes todos os gêneros em medida significativa completavamse uns aos outros de modo harmonioso e toda literatura enquanto totalidade de gêneros se apresentava em larga medida como uma entidade orgânica de ordem superior Porém é característico o romance não entrava nunca nesta entidade ele não participava da harmonia dos gêneros Naquela época o romance levava uma existência não oficial fora do limiar da grande literatura Na entidade orgânica da literatura organizada hierarquicamente entravam somente gêneros constituídos com personagens fixados e definidos Ele podiam se limitar e se completar mutuamente conservando a natureza de seu gênero Eles eram únicos e aparentados entre si por suas profundas particularidades estruturais As grandes poéticas orgânicas do passado de Aristóteles de Horácio e de Boileau são marcadas pelo profundo sentimento da literatura como um todo e da harmoniosa composição de todos os gêneros nesse todo Tais poéticas como que parecem ouvir concretamente esta harmonia de gêneros Nisto está a força a plenitude incomparável e íntegra e o caráter exaustivo destas poéticas Todas elas sistematicamente ignoram o romance As poéticas científicas do século XIX eram privadas dessa plenitude elas eram ecléticas descritivas aspiravam não a uma totalidade viva e orgânica mas a algo abstratamente enciclopédico orientavamse não para a efetiva possibilidade de uma coexistência de gêneros definidos para a entidade viva da literatura relativa a uma certa época mas para a coexistência deles dentro de uma antologia tão completa quanto possível Naturalmente elas não ignoravam o romance mas simplesmente o colocavam em lugar de honra junto aos gêneros existentes assim como um gênero no meio de gêneros ele também entra numa antologia mas no conjunto vivo da literatura ele entra de uma forma totalmente diferente O romance como dissemos se acomoda mal com os outros gêneros E não se pode falar de uma harmonia possível baseada sobre uma limitação e substituição recíprocas O romance parodia os outros gêneros justamente como gêneros revela o convencionalismo das suas formas e da linguagem elimina alguns gêneros e integra outros à sua construção particular reinterpretandoos e dandolhes um outro tom Os historiadores de literatura às vezes são inclinados a ver nisto somente o conflito de escolas e de movimentos literários Tal conflito certamente existe mas tratase de um fenômeno periférico e historicamente ínfimo Por trás dele é preciso saber ver um conflito de gêneros mais profundo e mais histórico o porvir e o crescimento do arcabouço do gênero literário Observamse fenômenos particularmente interessantes na época em que o romance se estabelece como um gênero predominante Toda literatura é então afetada por um processo de evolução uma espécie de criticismo de gêneros Isto já ocorrera em alguns períodos do Helenismo na época da Idade Média tardia e da Renascença mas foi particularmente forte e claro na segunda metade do século XVIII Na época da supremacia do romance quase todos os gêneros resultantes em maior ou menor grau romancizaramse romancizouse o drama por exemplo o drama de Ibsen o de Hauptmann todo o drama naturalista o poema por exemplo Childed Harold e em particular Don Juan de Byron e até mesmo a lírica um exemplo nítido é a lírica de Heine Aqueles gêneros que conservavam com tenacidade seu antigo cânone adquiriram um caráter de estilização Em geral qualquer comedimento estrito de um gênero a si próprio salvo a vontade do autor começa a dar sinais de estilização às vezes mesmo de estilização paródica Na presença do romance como gênero dominante as linguagens convencionais dos gêneros estritamente canônicos começam a ter uma ressonância diferente diferente daquela época em que o romance não pertencia à grande literatura As estilizações paródicas dos gêneros diretos e dos estilos ocupam lugar essencial no romance Na época da escalada criativa do romance e em particular no período preparatório dessa ascensão a literatura é inundada de paródias e travestimentos de todos os gêneros elevados particularmente de gêneros e não de determinados escri tores ou determinadas correntes são as paródias que se apresentam como precursoras satélites e num certo sentido como esboços do romance Porém é característico que o romance não dê estabilidade a nenhuma das suas variantes particulares Em toda a história do romance desenrolase uma parodiação sistemática ou um travestimento das principais variantes de gênero predominantes ou em voga naquela época e que tendem a se banalizar as paródias do romance de cavalaria a primeira paródia de aventuras é um romance de cavalaria que data do século XIII tratase do Dit dAventures o romance barroco o romance pastoral Le Berger Extravagant de Sorel o romance sentimental de Fielding e Grandison II de Musãus etc Este caráter autocrítico do romance é o seu traço notável como gênero em formação Como se exprime a romancização dos outros gêneros Eles se tornam mais livres e mais soltos sua linguagem se renova por conta do plurilinguismo extraliterário e por conta dos estratos romanesco da língua literária eles dialogizamse e ainda mais são largamente penetrados pelo riso pela ironia pelo humor pelos elementos de autoparodiação finalmente e isto é o mais importante o romance introduz uma problemática um inacabamento semântico específico e o contato vivo com o inacabado com a sua época que está se fazendo o presente ainda não acabado Todos estes fenômenos como veremos adiante são explicados pela transposição dos gêneros para uma nova área de estruturação das representações literárias a área de contato com o presente inacabado área pela primeira vez assimilada pelo romance Certamente não se pode explicar o fenômeno da romancização somente pela influência direta e espontânea do próprio romance em si Mesmo onde semelhante influência possa ser constatada e prontamente demonstrada ela se entrelaça indissoluvelmente com a ação direta das transformações da própria realidade que determinam também o romance e que condicionam a sua supremacia naquela época O romance é o único gênero em evolução por isso ele reflete mais profundamente mais substancialmente mais sensivelmente e mais rapidamente a evolução da própria realidade Somente o que evolui pode compreender a evolução O romance tornouse o principal personagem do drama da evolução literária na era moderna precisamente porque melhor que todos é ele que expressa as tendências evolutivas do novo mundo ele é por isso o único gênero nascido naquele mundo e em tudo semelhante a ele O romance antecipou muito e ainda antecipa a futura evolução de toda literatura Deste modo tornandose o senhor ele contribui para a renovação de todos os outros gêneros ele os contaminou e os contamina por meio da sua evolução e pelo seu próprio inacabamento Ele os atrai imperiosamente à sua órbita justamente porque esta órbita coincide com a orientação fundamental do desenvolvimento de toda literatura Nisto reside a importância excepcional do romance como objeto de estudo para a teoria e para a história da literatura Infelizmente os historiadores da literatura levam habitualmente este conflito do romance com os outros gêneros constituídos e todos os fenômenos de romancização em direção à existência e conflito das escolas e das correntes Eles qualificam por exemplo um poema manceado o que é correto como um poema romântico e pensam que tudo está dito Além do aspecto superficialmente variegado e ruidoso do processo literário eles não vêem os grandes destinos essenciais da literatura e da língua cujos personagens principais são antes de mais nada os gêneros enquanto que as correntes e as escolas são personagens de segunda ou terceira ordem A teoria da literatura revela a sua total incapacidade em relação ao romance Com os outros gêneros ela trabalha correta e precisamente um objeto pronto que foi construído de modo determinado e claro Em todas as épocas clássicas do seu desenvolvimento estes gêneros conservaram a sua estabilidade e o seu cânone suas variações segundo as épocas as correntes e as escolas são periféricas e não tocam a ossatura de gêneros que está neles solidificada Basicamente a teoria destes gêneros acabados não conseguiu até os nossos dias adicionar quase nada de substancial àquilo que já fora feito por Aristóteles Sua poética se tornou o fundamento imutável para a teoria dos gêneros ainda que às vezes ele se aprofunde tanto e não se possa acompanhálo Tudo ia bem enquanto não se tocava no romance Mas já os outros gêneros romancizados colocaram a teoria em xeque Sobre o problema do romance a teoria dos gêneros encontrase em face de uma reformulação radical Graças ao trabalho meticuloso dos sábios foi acumulada uma documentação histórica enorme foi esclarecida uma série de questões ligadas à origem das variedades particulares de romance mas o problema do gênero no seu todo não encontrou uma solução de princípio satisfatória Continuouse a considerálo como um gênero no meio de outros gêneros tentouse fixar suas diferenças de gênero constituído em relação aos outros gêneros constituídos tentouse desvendar o seu cânone interno como um determinado sistema de índices de gênero invariáveis e fixos Os trabalhos sobre o romance levavam na grande maioria dos casos ao registro e à descrição tão completos quanto possíveis sobre as variedades romanescas mas no conjunto tais registros nunca conseguiram dar qualquer fórmula que sintetizasse o romance como um gênero Além do mais os pesquisadores não conseguiram apontar nem um só traço característico do romance invariável e fixo sem qualquer reserva que o anulasse por completo Eis alguns exemplos destes índices de gênero o romance é um gênero de muitos planos mas existem excelentes romances de um único plano o romance é um gênero que implica um enredo surpreendente e dinâmico mas existem romances que atingiram o limite da descrição pura o romance é um gênero de problemas mas o conjunto da produção romanesca corrente apresenta um caráter de pura diversão e frivolidade inacessível a qualquer outro gênero o romance é uma história de amor mas os maiores modelos do romance europeu são inteiramente desprovidos do elemento amoroso o romance é um gênero prosaico mas existem excelentes romances em verso Podese citar ainda grande número de índices de gênero de romance anulados pela restrição que lhes é associada com toda honestidade Muito mais interessantes e lógicas são as definições normativas do romance dadas pelos próprios romancistas que procuram uma variante precisa e a declaram como a única forma correta de romance necessária e atual Tal é por exemplo o célebre prefácio de Rousseau para La Nouvelle Héloïse o prefácio de Wieland para Agathon o de Wetzel para Tobias Knaut tais são as numerosas declarações e opiniões de românticos em torno de Wilhelm Meister e de Lucinda etc Tais declarações que não tentam abranger todos os tipos de romance em uma definição eclética em compensação tomam parte na formação viva do romance enquanto gênero Elas refletem freqüente profunda e exatamente a luta do romance com os outros gêneros e consigo mesmo com as formas de outros tipos de romance determinantes e em voga em dadas etapas do seu desenvolvimento Elas se aproximam da posição singular do romance na literatura posição sem medida comum com os outros gêneros Neste sentido a criação de um novo tipo de romance no século XVIII é acompanhada por uma série de julgamentos particularmente significativos Abrese esta série com os julgamentos de Fielding sobre o seu romance e o seu personagem Tom Jones Em continuação surge o prefácio de Wieland para Agathon mas o elo mais importante é o Ensaio sobre o Romance de Blankenburg Na realidade a conclusão desta série surge com a teoria do romance dada posteriormente por Hegel Para todas estas declarações que refletem a evolução do romance em uma das suas etapas importantes Tom Jones Agathon Wilhelm Meister são características as seguintes exigências 1 O romance não deve ser poético no sentido pelo qual os outros gêneros literários se apresentam como tais 2 O personagem do romance não deve ser heróico nem no sentido épico nem no sentido trágico da palavra ele deve reunir em si tanto os traços positivos quanto os negativos tanto os traços inferiores quanto os elevados tanto os cômicos quanto os sérios 3 O personagem deve ser apresentado não como algo acabado e imutável mas como alguém que evolui que se transforma alguém que é educado pela vida 4 O romance deve ser para o mundo contemporâneo aquilo que a epopeia foi para o mundo antigo esta idéia com toda a clareza foi exposta por Blankenburg e mais tarde retomada por Hegel Todas estas exigências de sustentação têm um lado extremamente importante e produtivo Tratase da crítica do ponto de vista do romance dos outros gêneros e das suas relações com a realidade da sua heroicização enfática do seu convencionalismo do seu poetismo restrito e inerte da sua monotonia e abstração do aspecto acabado e da imutabilidade dos seus personagens Na realidade o que se propõe aqui é uma crítica dos princípios da literaturidade e da poeticidade próprios aos outros gêneros e às formas anteriores do romance o romance heróico barroco o romance sentimental de Richardson Estes julgamentos foram reforçados em medida significativa pela prática destes romancistas Aqui o romance tanto na sua prática quanto na teoria que lhe é correlata apresentase direta e conscientemente como gênero crítico e autocrítico como algo que deve renovar os próprios fundamentos da literaturidade e da poeticidade dominantes O confronto do romance com o epos e a oposição deles apresentase por um lado como um aspecto da crítica de outros gêneros literários em particular do tipo mesmo da heroicização épica por outro lado tem por objetivo elevar a sua significação como gêneromestre da nova literatura As exigênciasteses citadas por nós tornamse um dos vértices da tomada de consciência do romance Isto certamente não é uma teoria do romance Estas afirmações não se distinguem nem mesmo pela grande profundidade filosófica Mas não obstante elas testemunham sobre a natureza do romance como gênero não menos senão até mais que as teorias de romance existentes Posteriormente farei uma tentativa de abordar o romance justamente como um gênero que está por se constituir levandose em conta o processo de evolução de toda a literatura nos tempos modernos Não construirei uma definição do cânone do romance que atue em literatura na sua história como um sistema de índices de gênero invariáveis Porém tentarei descobrir as particularidades estruturais e fundamentais do mais maleável dos gêneros particularidades que determinam a orientação da sua própria versatilidade de sua influência e de sua ação sobre o resto da literatura Aponto três dessas particularidades fundamentais que distinguem o romance de todos os gêneros restantes 1 A tridimensâo estilística do romance ligada à consciência plurilíngüe que se realiza nele 2 A transformação radical das coordenadas temporais das representações literárias no romance 3 Uma nova área de estruturação da 403 imagem literária no romance justamente a área de contato máximo com o presente contemporaneidade no seu aspecto inacabado Todos estes três tipos de particularidades do romance estão ligados organicamente entre si e todos eles estão condicionados por uma determinada crise na história da sociedade européia sua saída das condições de um estado socialmente fechado surdo e semipatrimonial em direção às novas condições de relações internacionais e de ligações interlingüísticas A pluriformidade das línguas das culturas e das épocas revelouse à sociedade européia e se tornou um fator determinante de sua vida e de seu pensamento A primeira particularidade estilística do romance aquela que está ligada ao plurilíngüismo ativo do novo mundo da nova cultura e da nova consciência literária e criadora já foi examinada por mim em outro artigo1 Lembrarei de modo breve o mais essencial O plurilíngüismo sempre teve o seu lugar ele é mais antigo do que o unilingüismo canônico e puro mas ele não foi um fator de criação uma escolha funcional da arte literária não foi o centro criador do processo lingüísticoliterário O grego clássico era sensível às falas às épocas da linguagem aos múltiplos dialetos literários gregos a tragédia é um gênero plurilíngüe mas a consciência criadora realizavase nas línguas puras e fechadas sobre si próprias ainda que elas fossem de fato híbridas O plurilingüismo foi organizado e canonizado entre os gêneros A nova consciência cultural e criadora dos textos literários vive em um mundo ativemente plurilingüístico que se tornou irremediavelmente assim de uma vez por todas Havia terminado o período da coexistência surda e fechada das línguas nacionais As línguas se esclareceram mutuamente pois uma língua só pode ver a si mesma se estiver à luz de uma outra língua Terminará também a coexistência ingênua e consolidada das falas no interior de uma certa língua nacional isto é a coexistência dos dialetos territoriais dos dialetos e dos jargões sociais e profissionais da linguagem literária das linguagens de gêneros dentro da linguagem literária das épocas na linguagem e assim por diante Tudo isto é colocado em movimento e entra no processo da mútuaatuação e mútuoesclarecimento ativos O discurso a língua começam a sentir de outro modo e objetivamente eles deixam de ser o que haviam sido Nas condições deste aclaramento recíproco externo e interno das línguas mesmo nas condições de absoluta imutabilidade da sua estrutura lingüística fonética léxica morfológica etc cada língua como que renasce de novo e se torna qualitativamente outra para a consciência criativa que nela se encontra 404 Neste mundo ativemente plurilíngüístico entre a língua e o seu objeto ou melhor o mundo real estabelecemse relações totalmente novas que trazem enormes conseqüências para todos os gêneros constituídos formados na época de um unilingüismo fechado e surdo À diferença dos outros grandes gêneros o romance se formou e se desenvolveu precisamente nas condições de uma ativação aguçada do plurilingüismo exterior e interior Este é o seu elemento natural É por isso que o romance encabeçou o processo de desenvolvimento e renovação da literatura no plano lingüístico e estilístico A profunda peculiaridade estilística do romance que é determinada por sua relação com as condições do plurilíngüismo eu tentei explicála no trabalho já mencionado Passarei a duas outras particularidades que dizem respeito aos aspectos temáticos da estrutura do gênero romanesco Estas particularidades melhor que tudo se desenvolvem e se explicam por intermédio da comparação do romance com a epopeia Do ponto de vista de nosso problema a epopeia como um gênero determinado se caracteriza por três traços constitutivos 1 O passado nacional épico o passado absoluto segundo a terminologia de Goethe e de Schiller serve como objeto da epopeia 2 A lenda nacional e não a experiência pessoal transformada à base da pura invenção atua como fonte da epopeia 3 O mundo épico é isolado da contemporaneidade isto é do tempo do escritor do autor e dos seus ouvintes pela distância épica absoluta Detenhamonos detalhadamente em cada um destes traços constitutivos da epopeia O mundo da epopeia é o passado heróico nacional é o mundo das origens e dos fastígios da história nacional o mundo dos pais e ancestrais o mundo dos primeiros e dos melhores Não é o caso de se saber o modo pelo qual o passado se apresenta como conteúdo da epopeia A referência e a participação do mundo representado no passado é o traço constitutivo formal do gênero épico A epopeia jamais foi um poema sobre o presente sobre o seu tempo ela atua somente para os descendentes como um poema sobre o passado A epopeia como gênero definido e notório desde o seu início foi um poema sobre o passado e a orientação do autor ou seja a diretiva do articulador do discurso épico a qual é imanente e constitutiva da epopeia é a orientação de uma pessoa que fala sobre o passado inacessível a disposição devota de um descendente O discurso épico por seu estilo tom e caráter imagético está infinitamente longe do discurso de um contemporâneo que fala sobre um contemporâneo aos seus contemporâneos Oniêguin meu bom amigo nasceu nas margens do Nievá onde talvez você tenha nascido 405 ou brilhado meu leitor 2 O oedo e o ouvinte imanentes ao gênero épico situamse na mesma época e no mesmo nível de valores hierárquicos mas o mundo representativo dos personagens situase em um nível de valores e tempos totalmente diferente e inacessível separado pela distância épica Interpõese entre eles a lenda nacional Representar um evento em um único nível axiológico e temporal com o seu próprio e com o dos seus contemporâneos e por conseguinte na base de uma experiência pessoal ou de ficção significa fazer uma mudança radical passar do mundo épico para o romanesco Certamente podese perceber o nosso tempo do ponto de vista do seu significado histórico como um tempo heróico e épico que está distanciado como que visto de longe não de nós os contemporâneos mas à luz do porvir e podese perceber o passado de uma maneira familiar como se fosse o nosso presente Mas com isso nós percebemos não o presente no presente nem o passado no passado nós nos arrancamos de nosso tempo da área do seu contato familiar conosco Falamos da epopeia como de um gênero definido e real que chegou até nós Já a encontramos como um gênero acabado até mesmo enrijecido e quase esclerosado Sua perfeição moderação e a total falta de ingenuidade artística falam sobre a sua velhice enquanto gênero sobre o seu longo passado Mas a respeito deste passado nós só podemos conjeturar e é necessário dizer que o fazemos por ora muito mal Não sabemos nada sobre aquelas hipotéticas canções primitivas que precederam a constituição da epopeia e a criação da tradição do gênero épico canções que giravam em torno dos seus contemporâneos e que eram uma ressonância espontânea dos eventos que tinham lugar Sobre isso sobre quais fossem estes cantos primitivos dos aedos ou essas cantilenas nós só podemos conjeturar Não temos motivo algum para pensar que fossem mais parecidas com os cantos épicos posteriores conhecidos por nós do que por exemplo com a nossa crônica ou com a nossa atual tchastúchka3 Os cantos épicos que heroificavam os seus contemporâneos que nos são acessíveis e perfeitamente reais originaramse bem depois da criação da epopeia já em solo da antiga e poderosa tradição épica Eles transferem uma forma épica preparada aos eventos da época e aos seus contemporâneos ou melhor transferemlhes a forma cronológica e axiológica do passado e nos fazem participar do mundo dos pais das origens e dos fastígios como que canonizandoos em vida Em certo sentido nas condições de uma sociedade patriarcal os representantes das classes dominantes pertencem enquanto tais ao mundo dos ancestrais e estão isolados dos restantes por uma distância quase épica A comunhão épica do heróicontemporâneo com o mundo dos antepassados e dos iniciadores é um fenômeno específico nascido em solo há muito preparado pela tradição épica e que por isso mesmo tão pouco explica sobre as origens da epopeia como por exemplo o faz a ode neoclássica Qualquer que tenha sido a sua origem a epopeia real que chegou até nós é a forma de um gênero acabado de maneira absoluta e muito perfeita cujo traço constitutivo é a relação do mundo por ela representado no passado absoluto das origens e dos fastígios nacionais O passado absoluto é uma categoria hierarquia de valores específicos Para a visão do mundo épico o começo o primeiro o fundador o ancestral o predecessor etc não são apenas categorias temporais mas igualmente axiológicas e temporais este é o grau superlativo axiológicotemporal que se realiza tanto pela atitude das pessoas como também pela atitude de todas as coisas e fenômenos do mundo épico neste passado tudo é bom e tudo é essencialmente bom o primeiro unicamente neste passado O passado épico absoluto é a única fonte e origem de tudo que é bom para os tempos futuros Assim afirma a forma da epopeia A memória e não o conhecimento é a principal faculdade criadora e a força da literatura antiga E assim foi não se pode mudar isto a tradição do passado é sagrada Ainda não se tem a consciência da relatividade de todo passado A experiência o conhecimento e a prática o futuro definem o romance Na época do Helenismo começa o contato com os heróis do ciclo épico da guerra de Tróia o épico convertese em romance O material épico transpõese para o romanesco para uma área de contato passando pelo estágio da familiarização e do riso Quando o romance se torna gênero proeminente a teoria do conhecimento se converte na principal disciplina filosófica Não é sem razão que o passado épico é chamado passado absoluto ele que atua simultaneamente como passado de valorização hierárquica está desprovido de qualquer relatividade isto é despojado daquelas transições graduais puramente materiais que o ligariam com o presente Ele está isolado pela fronteira absoluta de todas as épocas futuras e antes de tudo daquele tempo no qual se encontram o cantor e os seus ouvintes Esta fronteira por conseguinte é imanente à própria forma da epopeia e percebese que ela ressoa em cada sua palavra Destruir este limite significa destruir a forma da epopeia enquanto gênero É precisamente por isso que o passado absoluto está separado 407 de todos os tempos posteriores ele é absoluto e perfeito Ele é fechado como um círculo e dentro dele tudo está integralmente pronto e concluído No mundo épico não há nenhum lugar para o inacabado para o que não está resolvido nem para a problemática Nele não são permitidas quaisquer passagens para o futuro ele se satisfaz a si mesmo não pressupõe nenhum prolongamento e nem precisa dele As definições temporais e axiológicas estão fundidas aí num todo indissolúvel como nos antigos estratos semânticos da língua Tudo aquilo que participa deste passado o faz na sua autêntica essencialidade e significação mas por outro lado adquire um acabamento e uma conclusão e despojase por assim dizer de todos os direitos e pretensões a um desenvolvimento real A conclusão absoluta e o seu caráter acabado eis os traços essenciais do passado épico axiológico e temporal Passemos à lenda O passado épico separado das épocas posteriores por uma fronteira impenetrável se mantém e se desvela somente na forma de uma lenda nacional A epopéia apóiase unicamente nesta lenda Não se trata de saber se esta é a fonte efetiva da epopéia o importante é que o suporte da lenda é imanente à própria forma da epopéia do mesmo modo que lhe é imanente o passado absoluto O discurso épico é enunciado sob a forma de lenda O mundo épico do passado absoluto por sua própria natureza é inacessível à experiência individual e não admite pontos de vista e apreciações pessoais Não se pode vêlo sentilo tocálo não pode ser considerado sob nenhum ponto de vista não se pode experimentálo analisálo mostrálo ou penetrar nas suas entranhas Ele é dado somente enquanto lenda sagrada e peremptória que envolve uma apreciação universal e exige uma atitude de reverência para consigo Repetimos e sublinhamos não se trata das fontes efetivas da epopéia nem dos aspectos do seu conteúdo tampouco das afirmações dos seus autores mas tratase do seu traço formal o constitutivo do gênero da epopéia mais precisamente o seu traço formalconteudístico o ponto de apoio numa lenda anônima e irrecusável numa apreciação ou num ponto de vista universal que exclua qualquer possibilidade de outra opção uma profunda veneração com relação ao objeto de representacão e pelo próprio discurso que o evoca enquanto discurso da lenda O passado absoluto como objeto da epopéia a lenda irrecusável como sua única fonte determinam também o caráter da distância épica ou seja o terceiro traço constitutivo da epopéia como tal O passado épico como dizíamos é fechado e separado pela barreira intransponível das épocas posteriores e sobretudo daquele presente dos filhos e dos descendentes que dura ininterruptamente no qual se encontram o aedo e os ouvintes da epopéia onde se desenrola o evento das suas vidas e onde se põe em prática a narração épica Por outro lado a lenda isola o mundo da epopéia da experiência pessoal de todas as novas descobertas de qualquer iniciativa pessoal necessária à sua interpretação e compreensão de novos pontos de vista e apreciações O mundo épico é totalmente acabado não só como evento real de um passado longínquo mas também no seu sentido e no seu valor não se pode modificálo nem reinterpretálo e nem reavaliálo Ele está pronto concluído e imutável tanto no seu fato real no seu sentido e no seu valor Com isto determinase também a distância épica absoluta Podese aceitar o mundo épico somente de forma reverente mas não se pode aproximarse dele ele está fora da área da atividade humana propensa às mudanças e às reavaliações Esta distância existe não só em relação ao material épico isto é aos eventos e aos heróis representados mas também em relação ao ponto de vista e ao julgamento sobre eles o ponto de vista e o julgamento estão ligados ao seu objeto num todo indissolúvel o discurso é inseparável do seu objeto pois para a sua semântica é característica a absoluta junção dos elementos espaçotemporais com os axiológicos hierárquicos Esta junção absoluta e correlativamente a dependência do objeto só foram transcendentais pela primeira vez nas condições do plurilingüismo ativo e do mútuoaclaramento das línguas e desde então a epopéia se tornou um gênero semicondicionado e semimorto Graças à distância épica que exclui qualquer possibilidade de atividade e de modificação o mundo épico adquire sua perfeição excepcional não só do ponto de vista da composição mas também do ponto de vista do seu sentido e do seu valor O mundo épico está construído numa zona de representação longínqua absoluta fora da esfera do possível contato com o presente em devir que é inacessível e por isso mesmo sujeito à reinterpretacão e a reavaliação Os três traços constitutivos da epopéia caracterizados por nós em maior ou menor grau são inerentes aos outros gêneros elevados da Antigüidade clássica e da Idade Média Na base de todos estes gêneros nobres e acabados repousa aquela mesma avaliação do tempo o mesmo papel da lenda uma distância hierárquica análoga A atualidade enquanto tal não é admissível como objeto de representação para nenhum gênero elevado A vida atual pode penetrar nos gêneros elevados somente nos seus níveis hierárquicos superiores já distanciados pela sua colocação na própria atualidade Entretanto penetrando nos gêneros elevados por exemplo nas Odes de Píndaro ou em Simônides os acontecimentos os heróis e os vencedores de uma atualidade sublime como que comuns do passado ligamse por meio de diferentes elas e ligações intermediárias a uma única trama do passado heróico e da lenda Seu valor sua eminência eles adqu rem exatamente através desta comunhão com o passado como fonte de tudo que é autenticamente essencial e de valor Eles por assim dizer se arrancam de seu tempo com o que ele tem de irresoluto de aberto de possível reinterpretação e reavaliação Eles se elevam no nível axiológico do passado e adquirem nele o seu caráter acabado Não se deve esquecer que o passado absoluto não é aquele tempo no nosso sentido limitado e preciso da palavra mas uma certa categoria axiológica temporal e hierárquica Não se pode ser grande no seu tempo Atribuir grandezas é sempre tarefa da posteridade para a qual elas serão do passado aparecerão como uma imagem longínqua tornarseão objeto de memória e não um objeto de visão e de contato vivos No gênero do tipo monumento o poeta constrói sua imagem no plano do futuro longínquo e da sua posteridade futura cf os epitáfios dos déspotas orientais e os de Augusto No mundo da memória um fenômeno aparece em um contexto inteiramente singular nas condições de uma particular conformidade às leis em circunstâncias diferentes daquelas do mundo da visão real e do contato familiar e prático O passado épico é uma forma particular de percepção literária do homem e do acontecimento Ela coincidia quase que completamente com a percepção literária e com a representação em geral A representação literária é uma forma sub specie aeternitatis Representar e imortalizar pelo discurso literário só é possível e viável para aquilo que é digno de ser comemorado e mantido na memória dos descendentes e é no plano antecipado da sua longínqua memória que ele assume a forma Para os seus contemporâneos a atualidade que não virá a ser memória é comemorada em argila e aquela que visa o futuro a posteridade é comemorada em mármore e bronze É importante a correlação dos tempos a acentuação de valores não repousa no futuro o qual não lhe serve e não é na sua presença que os méritos existem eles vivem em face de uma eternidade atemporal eles servem de futura memória para o passado de alargamento para o mundo do passado absoluto enriquecendo com novas imagens às custas da atualidade este mundo o qual sempre se opôs por princípio a qualquer passado transitário A lenda também conserva a sua importância nos gêneros nobres e acabados ainda que o seu papel nas condições da criação individual livre se torna mais convencional do que na epopéia Em seu conjunto o mundo da grande literatura da época clássica é projetado no passado no longínquo plano da memória não dentro de um passado real e relativo que está ligado ao presente por constantes transições temporais mas no passado dos valores dos começos e dos fastígios Este passado está distanciado acabado e fechado como um círculo Isto não significa certamente que nele não haja qualquer movimento Ao contrário as categorias temporais relativas que estão dentro dele são rica e finamente elaboradas as nuances de antes mais tarde a sucessão dos momentos da celeridade da duração etc está presente uma elevada técnica literária do tratamento do tempo Mas todos os pontos deste tempo arredondado e acabado distam igualmente do tempo real e móvel da atualidade ele em sua essência não está localizado num processo histórico real nem é correlacionado ao presente e ao futuro ele conserva por assim dizer toda a plenitude dos tempos sobre si mesmo Conseqüentemente todos os gêneros elevados da época clássica isto é toda a grande literatura era construída na área de uma representação distante fora de qualquer possível contato com o presente em seu caráter inacabado A época contemporânea enquanto tal ou seja enquanto conserva o seu aspecto de atualidade viva não pode como dissemos servir de objeto de representação dos gêneros elevados A atualidade da época é uma atualidade de nível inferior em comparação com o passado épico Menos que tudo ela pode atuar como ponto de partida para a interpretação e avaliação literárias O foco da interpretação e da avaliação só pode se localizar no passado absoluto O presente é algo de transitório fluente é uma espécie de eterno prolongamento sem começo e nem fim ele é desprovido de uma conclusão autêntica e por conseguinte de substância O futuro é pensado ou como algo indiferente no fundo um prolongamento do presente ou como fim destruição final catástrofe As categorias axiológicotemporais do começo e do final absolutos têm um significado excepcional para a percepção do tempo e das ideologias das épocas anteriores O começo é idealizado e o fim se torna sombrio catástrofe crepúsculo dos deuses Esta percepção do tempo e a hierarquia das épocas que é determinada por ela penetraram em todos os gêneros elevados da Antigüidade e da atualidade Elas penetraram tão profundamente nos próprios fundamentos dos gêneros que continuaram a viver dentro deles nas épocas posteriores até o século XIX e mesmo depois A idealização do passado nos gêneros elevados tem um caráter oficial Todas as manifestações exteriores da força e da verdade dominantes de tudo que está concluído organizamse dentro da categoria axiológica e temporal do passado em uma representação distanciada longínqua desde o gesto e o vestuário até o estilo tudo é símbolo do poder Já o romance está ligado aos elementos eternamente vivos da palavra e do pensamento não oficiais a forma festiva o discurso familiar a profanação Os mortos são honrados de maneira diferente eles são retirados da esfera de contato e podem e devem ser evocados em outro estilo O discurso sobre um morto por seu estilo difere profundamente do discurso sobre um vivo Nos gêneros elevados todo poder e privilégio todo valor e prestígio vestuário etiqueta estilo do discurso do personagem e o estilo do discurso sobre ele passam da zona do contato familiar para um plano distante Na orientação à perfeição expressase o classicismo de todos os gêneros não romanescos A vida atual o presente vulgar instável e transitório esta vida sem começo e sem fim era objeto de representação somente dos gêneros inferiores Mas antes de mais nada ela era o principal objeto de representação daquela região mais vasta e rica da criação cômica popular Num trabalho já citado eu tentei mostrar a enorme importância desta região tanto na Antigüidade como nos séculos medievais para a criação e a formação da palavra romanesca Ela teve este mesmo sentido em todos os demais aspectos do gênero romanesco durante o estágio da sua criação e posterior desenvolvimento É justamente aqui no cômico popular que é necessário procurar as autênticas raízes folclóricas do romance O presente a atualidade enquanto tal o eu próprio os meus contemporâneos e o meu tempo foram originariamente o objeto de um riso ambivalente objetos simultâneos de alegria e de destruição E é aqui precisamente que se forma uma nova atitude radical em relação à língua e à palavra Ao lado da representação direta da ridicularização da atualidade vivente floresce a parodização e a travestização de todos os gêneros elevados e das grandes figuras da mitologia nacional O passado absoluto dos deuses dos semideuses e dos heróis nas paródias e particularmente nos travestimentos atualizase rebaixase é representado em nível de atualidade no ambiente dos costumes da época na linguagem vulgar daquele tempo A partir deste elemento natural do riso popular surge espontaneamente no solo clássico um domínio bastante vasto e diversificado da antiga literatura que os antigos denominavam por força de expressões como σπουδόγέοιον spoudogéolion o domínio do sériocômico A esta literatura pertencem os mimos de pequeno enredo de Sofrônio toda a poesia bucólica a fábula a primeira literatura de memórias Ἐπιδημίαι Epidemíai de Ion de Quios o Όμιλιαι Homíliai de Critias e os panfletos A ela pertencem também os antigos diálogos socráticos enquanto gênero e ainda mais a sátira romana Lucílio Horácio Pérsio Juvenal a vasta literatura dos Simpósios e finalmente a sátira menipéia como gênero e os diálogos à maneira de Luciano Todos estes gêneros englobados pelo conceito do sériocômico aparecem como autênticos predecessores do romance e mais alguns deles são gêneros de tipo puramente romanesco que mantém sob a forma embrionária e às vezes sob a forma desenvolvida os principais elementos das mais importantes variantes posteriores do romance europeu A verdadeira essência do romance enquanto gênero em devir está presente num grau incomparavelmente maior do que nos chamados romances gregos o único gênero que é digno deste nome O romance grego exerceu uma forte influência no romance europeu precisamente no período barroco bem na época em que se iniciava a elaboração da teoria do romance abade Huet quando se refinava e consolidava o próprio termo romance Por isso de todas as produções romancescas da Antigüidade ele se consolidou unicamente por força do romance grego Entretanto os chamados gêneros sériocômicos ainda que fossem desprovidos desta sólida ossatura composicional e de enredo que estamos acostumados a exigir do gênero romanesco anteciparam as etapas mais essenciais da evolução do romance dos tempos modernos Isto concerne particularmente aos diálogos socráticos os quais parafraseandose Friedrich Schlegel podem ser chamados de romances daqueles tempos e ainda à sátira menipéia incluindose o Satírocon de Petrônio cujo papel foi enorme na história do romance e que ainda está longe de ser devidamente apreciado pela ciência Todos esses gêneros sériocômicos representam a primeira etapa legítima e essencial para a evolução do romance enquanto gênero em devir Em que consiste então a essência romanesca desses gêneros sériocômicos Em que se apóia a sua importância como primeira etapa para a formação do romance A atualidade serve como seu objeto e o que é mais importante como ponto de partida para a compreensão a avaliação e a formulação Pela primeira vez o objeto de uma representação literária séria na verdade também cômica é dado sem qualquer distanciamento em nível de atualidade dentro de uma zona de contato direto e grosseiro E até lá onde o passado e o mito servem como objeto de representação destes gêneros a distância épica está ausente pois é a atualidade que fornece o ponto de partida No processo de destruição das distâncias o princípio cômico destes gêneros extraído do folclore o riso popular adquire um significado especial É justamente o riso que destrói a distância épica e em geral qualquer hierarquia de afastamento axiológico Um objeto não pode ser cômico numa imagem distante é imprescindível aproximálo para que se torne cômico todo cômico é próximo toda obra cômica trabalha na zona da máxima aproximação O riso tem o extraordinário poder de aproximar o objeto ele o coloca na zona do contato direto onde se pode apalpálo sem cerimônia por todos os lados revirálo virálo do avesso examinálo de alto a baixo quebrar o seu envoltório externo penetrar nas suas entranhas duvidar dele estendêlo desmembrálo desmascarálo desnudálo examinálo e experimentálo à vontade O riso destrói o temor e a veneração para com o objeto e com o mundo colocao em contato familiar e com isto preparao para uma investigação absolutamente livre O riso é um fator essencial à criação desta premissa da intrepidez sem a qual não seria possível a compreensão realística do mundo Ao aproximar e familiarizar o objeto o riso como que o coloca nas mãos intrépidas da experiência tanto científica quanto literária que se utiliza dos meios e da imaginação que esta prática experimenta livremente A familiarização do mundo pelo riso e pela fala popular marca uma etapa extraordinariamente importante e indispensável no caminho para o estabelecimento do livre conhecimento científico e para a criação artisticamente realista da humanidade européia O plano da representação cômica satírica é um plano específico tanto em relação ao tempo como também ao espaço O papel da memória aqui é mínimo não há nada para a memória e para a lenda a fazer no mundo cômico ridicularizase para esquecer Esta é a zona do contato familiar e tosco o riso a invectiva a descompostura Na verdade tratase de uma dessacralização isto é exatamente a retirada do objeto do plano distante a destruição da distância épica e de qualquer plano longínquo em geral Neste plano o plano do riso podese contornar o objeto por todos os lados de maneira irreverente e mais o dorso a parte posterior do objeto e do mesmo modo as suas entranhas que não convém mostrar adquirem um sentido particular neste plano O objeto é quebrado desnudado o seu arranjo hierárquico é retirado despido ele é ridículo como também é ridícula a sua roupa vazia retirada e separada da sua pessoa Ocorre a operação cômica do desmembramento O objeto cômico pode ser representado isto é atualizado o objeto do jogo é a simbólica literária original do espaço e do tempo o alto o baixo o frontal o traseiro o anterior o posterior o primeiro o último o passado o presente o breve o imediato o longo etc A lógica literária da análise do desmembramento e da morte é preponderante Temos um documento notável que reflete o nascimento simultâneo do conceito científico e da nova personagem romanesca na arte literária em prosa Tratase dos diálogos socráticos Tudo é característico neste gênero magnífico nascido no final da Antigüidade clássica Característico é o fato de que ele tenha surgido como apomnemoumate isto é como gênero do tipo memórias como anotações a partir da memória pessoal de conversas verídicas com os contemporâneos4 além disso é característico o fato de que a figura central do gênero seja uma pessoa que fala e que conversa característica 4 Nas memórias e nas autobiografias a memória tem um caráter particular tratase da memória que se tem da sua época e de si mesmo Não se trata de uma memória heroicizante nela há um elemento de automatismo e de anota é a associação na personagem de Sócrates herói principal deste gênero da máscara popular de um bobo que não compreende nada quase um Marguitta com traços de um pensador elevado no espírito das lendas dos sete sábios o resultado desta composição é a imagem ambivalente da sábia ignorância É característica enfim a autoglorificação ambivalente do diálogo socrático Eu sou o mais sábio de todos por isso eu sei que não sei nada Na figura de Sócrates podese estudar um novo tipo de heroicização prosaica Ao redor desta figura surgem as lendas carnavalescas por exemplo a relação de Sócrates com Xantipa o personagem principal se transforma em bufão cf a carnavalização posterior das lendas em torno de Dante Púchkín etc É característico ainda mais o diálogo narrado emoldurado por uma narração dialógica e canônica para este gênero a característica é a vizinhança tão próxima quanto possível para o grego clássico da linguagem desse gênero com a linguagem coloquial popular e é extremamente característico que estes diálogos tenham revelado à prosa ática e que eles estejam ligados à renovação fundamental da prosa literária e prosaica por meio da substituição das línguas característico ainda é que este gênero seja ao mesmo tempo um sistema bastante complexo de estilos e mesmo de dialetos que o penetram como modelos de linguagens e de estilos com diferentes graus de parodicidade para nós portanto tratase de um gênero multiestilístico tal como o verdadeiro romance a própria figura de Sócrates é característica atuando como um notável exemplo de heroicização romanesca em prosa tão diferente da épica finalmente profundamente característico e isto é o mais importante para nós é a combinação do cômico da ironia socrática e de todos os sistemas de rebaixamento socráticos com uma investigação séria elevada e pela primeira vez livre do mundo do homem e do pensamento humano O riso socrático abafado até a ironia e os seus rebaixamentos todo um sistema de metáforas e de comparaçães tomados das baixas esferas da vida dos ofícios da vida cotidiana etc aproximam e tornam o mundo familiar para que se possa examinálo sem receios e livremente O ponto de partida é a atualidade as pessoas da época e as suas opiniões A partir disto desta atualidade de muitas vozes e línguas da experiência e do conhecimento pessoais realizase a orientação no mundo e no tempo inclusive no passado absoluto da lenda Mesmo um pretexto fútil e fortuito e isto era canônico para o gênero serve como ponto de partida aparente e imediato para o 414 415 diálogo como que realçando o dia de hoje e a sua conjuntura fortuita um encontro fortuito etc Nos outros gêneros sériocômicos encontraremos outros aspectos nuances e consequências daquele mesmo deslocamento radical do centro axiológicotemporal da orientação artística e daquela revolução na hierarquia das épocas Algumas palavras agora sobre a sátira menipéia Suas raízes folclóricas são as mesmas do diálogo socrático ao qual ela está ligada geneticamente em geral a consideram como o produto da desagregação do diálogo socrático Aqui o papel familiarizante do riso é muito mais forte incisivo e grosseiro Por vezes a liberdade nos denegrimentos grosseiros é aquela maneira de virar do avesso os aspectos nobres do mundo e as concepções humanas pode estarrecer Porém a esta extraordinária familiaridade do riso está associada uma problemática aguda e um fantástico utópico Não restou nada da longínqua representação épica do passado absoluto o mundo inteiro e tudo o que ele tem de mais sagrado são dados sem quaisquer distâncias na zona de contato brutal onde se pode agarrar tudo com as mãos Neste mundo inteiramente familiar o enredo se desenvolve com uma liberdade fantástica e excepcional do céu à terra da terra ao inferno do presente ao passado do passado ao futuro Nas visões satíricas do alémtúmulo da sátira menipéia as personagens do passado absoluto os atuantes das diversas épocas do passado histórico por exemplo Alexandre o Grande e os contemporâneos vivos colocamse frente a frente de maneira familiar para conversar e até mesmo para brigar É extremamente típico este entrechoque de épocas segundo o ponto de vista da atualidade Os argumentos desenfreadamente fantásticos e as situações da sátira menipéia estão subordinados a uma finalidade pôr à prova e desmascarar idéias e ideólogos Tratase de argumentos experimentais e provocadores É significativa a aparição do elemento utópico neste gênero na verdade hesitante e superficial o presente inacabado começa a se sentir mais próximo do futuro do que do passado começa a procurar nele os suportes de valores mesmo que este futuro se retrate por ora como um retorno ao século de ouro de Saturno no solo romano a sátira menipéia era uma imagem estreita ligada às saturnais e à liberdade do seu riso A sátira menipéia é dialógica cheia de paródias e de travestizações dotada de numerosos estilos e que não teme nem mesmo os elementos do bilinguísmo em Varrão e sobretudo na Consolação Pela Filosofia de Boécio Que a sátira menipéia possa tecer uma enorme tela que é uma reflexão socialmente multiforme e polifônica de sua época isto se atesta no Satiricon de Petrônio Quase todos os gêneros da esfera sériocômica citados por nós se caracterizam pela presença de um elemento declaradamente autobiográfico e memorialista O deslocamento do centro temporal da orientação literária permite ao autor sob todas as suas máscaras e aspectos moverse livremente no campo do mundo que é representado o qual na epopéia era absolutamente inacessível e fechado este deslocamento coloca de um lado o autor e os seus ouvintes e de outro os heróis e o mundo por ele representados naquele mesmo e único plano axiológico e temporal num único nível que atua através dos seus contemporâneos dos possíveis conhecidos dos amigos que familiariza suas atitudes lembro outra vez o início manifestada e acentuadamente romanesco de Oniégin O campo de representação do mundo modificase segundo os gêneros e as épocas de desenvolvimento da literatura Ele é organizado de maneiras diferentes e limitado de vários modos no espaço e no tempo Este campo é sempre específico O romance está ligado aos elementos do presente inacabado que não o deixam se enrijecer O romancista gravita em torno de tudo aquilo que não está ainda acabado Ele pode aparecer no campo da representação em qualquer atitude pode representar os momentos reais da sua vida ou fazer uma alusão pode se intrometer na conversa dos personagens pode polemizar abertamente com os seus inimigos literários etc Não se trata somente da aparição da imagem do autor no campo da representação tratase também do fato que o autor autêntico formal e primeiro o autor da imagem do autor redunda em novas relações com o mundo representado elas se encontram agora naquelas mesmas medidas axiológicas e temporais que representam num único plano o discurso do autor com o discurso do personagem representado e que pode atuar junto com ele mais exatamente não pode deixar de atuar nas mútuas relações dialógicas e nas combinações híbridas É exatamente esta nova posição do autor primeiro e formal na zona de contato com o mundo representado que torna possível a sua aparição no campo de representação da imagem do autor Esta nova situação do autor é um dos mais importantes resultados para a superação da distância hierárquica épica Notese a enorme significação formal composicional e estilística que tem esta nova posição do autor para a especificidade do gênero romanesco não é preciso dar explicações Neste sentido nos referimos às Almas Mortas de Gógol Para ele a Divina Comédia figuravase como a forma para a sua epopéia ele parecia ver nesta forma a grandeza do seu trabalho mas foi uma sátira menipéia o que ele conseguiu Ele foi incapaz de sair daquela esfera do contato familiar uma vez entrado nela e não pôde transferir para esta esfera as imagens concretas distanciadas As imagens distanciadas 416 417 da epopéia e as imagens do contato familiar não poderiam se encontrar de modo algum num único campo de representação o patético irrompera no mundo da sátira menipéia como um corpo estranho este patético concreto tornouse abstrato e ficou escapando à obra Gógol não teria tido êxito em passar do inferno e da escuridão para o purgatório e para o paraíso com as mesmas personagens e na mesma obra era impossível uma passagem contínua A tragédia de Gógol é em certa medida a tragédia do gênero entendendose o gênero não no sentido formalista mas como zona e campo da percepção de valores e da representação do mundo Gógol perdeu de vista a Rússia isto é perdeu o plano da sua percepção e representação emaranhouse entre a memória e o contato familiar grosso modo ele não conseguiu focalizar a sua objetiva Mas a contemporaneidade como novo ponto de partida da orientação literária não exclui absolutamente a representação do passado heróico ainda por cima sem qualquer travestização Um exemplo é a Ciropedia de Xenofonte que certamente já não pertence ao domínio do sériocômico mas situase nas suas fronteiras O objeto de representação é o passado o herói é o Grande Ciro Mas o ponto de partida da representação é a realidade da época de Xenofonte é justamente ela que dita os pontos de vista e as orientações para certos valores É característico que o passado heróico escolhido pelo autor não seja o nacional mas o estrangeiro o bárbaro O mundo já havia desmoronado aquele mundo monolítico e fechado tal como era na epopéia dera lugar a um mundo vasto e aberto ao mesmo tempo seu e dos outros A escolha de um heroísmo estrangeiro característica da época de Xenofonte era determinada por um interesse especial pelo Oriente pela cultura oriental pela ideologia pelas formas sociais e políticas esperavase uma luz do Oriente Tinha início a reciprocidade de culturas ideologias e línguas Além disso era característica a idealização do déspota oriental e aqui ressoa a atualidade de Xenofonte com a sua idéia partilhada por um círculo considerado de seus contemporâneos de renovação das formas políticas da Grécia num sentido próximo à autocracia oriental Semelhante idealização do autocrata oriental era sem dúvida profundamente estranha para todo o espírito da tradição nacional helênica Característica ainda e extremamente atual para a época era a idéia da educação do homem posteriormente ela se tornou uma das principais idéias formativas do novo romance europeu E ainda é característica a transferência intencional e bastante evidente para a imagem do Grande Ciro dos traços de Ciro o Jovem contemporâneo de Xenofonte que tinha tomado parte na sua campanha que sofre ainda a influência de um outro contemporâneo próximo a Xenofonte Sócrates E com isto se introduz o elemento de memórias na obra Finalmente também é característica a forma da obra os diálogos emoldurados pela narração Deste modo a atualidade e a sua problemática são o ponto de partida e o centro de interpretação de uma apreciação literária e ideológica do passado Este passado é dado sem distanciamento no nível da atualidade em verdade não em camadas baixas mas em seu plano elevado no nível da sua problemática avançada Notamos como que uma nuance utópica nesta obra como que um reflexo ligeiro e tímido do movimento do presente que parte do passado para o futuro A Ciropedia é um romance no sentido intrínseco da palavra A representação do passado no romance não implica absolutamente a modernização deste passado em Xenofonte há certamente elementos desta modernização Pelo contrário a representação autenticamente objetiva do passado enquanto tal só se torna possível no romance A atualidade com sua experiência nova persiste na sua mesma forma de visão na profundidade na agudeza na amplidão e na vivacidade dessa visão mas ela não deve penetrar em absoluto no próprio conteúdo da representação como uma força que moderniza e que altera a singularidade do passado Pois toda atualidade importante e séria tem necessidade de uma imagem autêntica do passado da autêntica linguagem estrangeira de um passado estrangeiro A revolução na hierarquia dos tempos que foi caracterizada por nós determina também uma mudança radical na estrutura da representação literária No seu conjunto ainda que não seja exatamente um conjunto o presente é por assim dizer em princípio e em essência algo não acabado ele exige uma continuidade com todo o seu ser Ele marcha para o futuro e quanto mais ativa e conscientemente ele vai adiante para este futuro tanto mais sensível e mais notável é o seu caráter de inacabado Por isso quando o presente se torna o centro da orientação humana no tempo e no mundo o tempo e o mundo perdem o seu caráter acabado tanto no seu todo como também em cada parte O modelo temporal do mundo modificase radicalmente este se torna um mundo onde não existe a palavra primordial a origem perfeita e onde a última ainda não foi dita Para a consciência literária e ideológica o tempo e o mundo tornamse históricos pela primeira vez eles se revelam se bem que no início ainda obscura e confusamente como algo que vai ser como um eterno movimento para um futuro real com um único processo inacabado que abarca todas as coisas Todo evento qualquer que seja todo fenômeno toda coisa e em geral todo objeto de representação literária perde aquele caráter acabado aquele desesperador aspecto de pronto e imutável inerente ao mundo épico do passado absoluto protegido por uma fronteira inacessível do presente que se prolonga e não tem fim Graças ao contato com o presente o 418 419 objeto se integra no processo inacabado do mundo a vir e nele deixa a sua marca de inacabado Qualquer que seja a sua distância de nós no tempo ele está ligado ao nosso presente inacabado pelas contínuas mutações temporais e entra em relações com a nossa incompletude com o nosso presente e este presente avança para um futuro ainda não perfeito Neste contexto inacabado perdese o caráter de imutabilidade semântica do objeto o seu sentido e o seu significado se renovam e crescem à medida que esse contexto se desenvolve posteriormente Isto conduz a transformações radicais na estrutura da representação literária que adquire uma atualidade específica Ela entra em relação numa ou outra forma ou medida com aquele acontecimento da vida que está se desenvolvendo agora ao qual também nós autor e leitores estamos ligados de maneira substancial Com isto criase uma zona de estruturação de representações radicalmente nova no romance uma zona de contato máximo do objeto de representação com o presente na sua imperfeição e por conseguinte também com o futuro A profecia é própria da epopéia a predição é própria do romance A profecia épica se realiza totalmente nos limites do passado absoluto se não em dada epopéia ao menos nos limites da tradição que a envolve Ela não diz respeito ao leitor e ao seu tempo real Já o romance quer profetizar os fatos predizer e influenciar o futuro real o futuro do autor e dos leitores O romance tem uma problemática nova e específica seus traços distintivos são a reinterpretação e a reavaliação permanentes O centro da dinâmica da percepção e da justificativa do passado é transferido para o futuro A modernidade do romance é indestrutível modernidade esta relegada a uma avaliação injusta dos tempos Lembremos a reavaliação do passado na Renascença as trevas da idade gótica no século XVIII Voltaire no positivismo a denúncia dos mitos das lendas da heroicização o afastamento máximo da memória e antes do empirismo a redução do conceito de conhecimento o progressismo mecanicista como critério supremo qualquer parte Por isso podese elaborar e apresentar qualquer parte como um todo Não é possível abarcar todo o mundo do passado absoluto e ele é único quanto ao argumento numa única epopéia isto significaria recontar toda a tradição nacional e é difícil abarcar até mesmo alguma das suas partes significativas Mas isto importa pouco pois a estrutura do todo se repete em cada parte e cada parte é acabada e fechada como um todo Podese começar a narração a qualquer momento e terminála a qualquer momento A ltiada apresentase como um extrato fortuito do ciclo troiano O seu final as exéquias de Heitor do ponto de vista romanesco não poderia servir de modo algum como fim para um romance mas o caráter de acabamento épico não se ressente disto O interesse particular suscitado pelo fim e como terminará a guerra Quem vencerá Quer será de Aquiles etc é totalmente excluído na atitude do material épico tanto pelos seus motivos externos quanto pelos internos o aspecto de enredo na tradição já era conhecido de antemão O interesse particular pelo o que vem depois o que vai acontecer e o interesse pela conclusão como terminará são característicos unicamente para o romance e possíveis somente na zona de proximidade e de contato impossíveis numa representação remota Na representação à distância todo evento é dado e é impossível o interesse pelo sujeito que não se conhece Já o romance especula sobre as categorias da ignorância Surgem diversas formas e métodos para a utilização dos excessos do autor aquilo que o herói não sabe e não vê Podese utilizar externamente estes excessos no enredo e na elaboração para a conclusão fundamental e na exteriorização específica do romance da representação do homem Surge também o problema de outra eventualidade diferente As singularidades da zona romanesca nas suas diferentes variantes se manifestam de vários modos Um romance pode ser isento de qualquer problemática Tomemos por exemplo um romance de folhetim Nele não há nada da problemática filosófica ou sóciopolítica e nem de psicologia por conseguinte não é através das suas esferas que se pode estabelecer o contato com algum evento inacabado da nossa existência A ausência de distância e de zona de contato são tratados aqui de maneira diferente no lugar da nossa vida enfadonha nos oferecem um sucedâneo é verdade mas se trata de uma existência fascinante e brilhante Podese participar dessas aventuras e se autoidentificar com os seus personagens tais romances quase sempre servem de substituto da nossa vida particular Nada de semelhante é possível com relação à epopéia e aos outros gêneros distanciados É aqui que se revela também um perigo específico desta zona de contato romanesco é possível introduzirse a si próprio no romance jamais na epopéia e nos outros gêneros distanciados Daí a possibili dade de fenômenos tais como a substituição da vida particular pela leitura imoderada de romances ou por sonhos à maneira romanesca como o personagem das Noites Brancas como o bovarismo como a manifestação da vida dos personagens romanescos em voga desencantados demoníacos etc Os outros gêneros só são capazes de gerar fenômenos semelhantes quando se romancizam isto é se transportam para a zona de contato romanesca por exemplo os poemas de Byron Uma outra manifestação da maior importância para a história do romance ligase à nova orientação temporal e à zona de contato tratase das relações particulares do romance para com os gêneros extraliterários a vida corrente e a ideologia Já desde o começo o romance e os seus gêneros precursores apoiavamse em diversas formas extraliterárias da vida pública e privada sobretudo retóricas e existe até mesmo uma teoria que derivava o romance da retórica E nas épocas seguintes de sua evolução o romance se utilizou larga e substancialmente das cartas dos diários das confissões dos métodos da nova retórica judicial etc Construído na zona de contato com um evento da atualidade inacabada o romance freqüentemente ultrapassou as fronteiras da arte literária específica transformandose então ora num sermão moralizador ora num tratado filosófico ora em verdadeira diatribe política ora em algo que se degenerera numa obscura confissão íntima primária em grito da alma etc Todos estes fenômenos são extremamente característicos do romance enquanto gênero que está por se constituir Pois as fronteiras entre o artístico e o extraliterário entre a literatura e a não literatura etc não são mais estabelecidas pelos deuses Toda especificidade é histórica O porvir da literatura não é só crescimento e mudança nos limites das inabaláveis fronteiras de sua especificidade ele abala as próprias fronteiras O processo de modificação das fronteiras pelo domínio da cultura inclusive da literatura é um processo extremamente lento e complexo Violações isoladas das fronteiras desse specjticum como aquelas acima indicadas não são mais do que sintomas deste processo que se desenvolve a grande profundidade No romance enquanto gênero que se constitui estes sintomas da transformação da especificidade revelamse muito mais freqüentes nítidos e bem mais características pois é o romance que os encabeça O romance pode servir como documento para a previsão dos grandes destinos ainda longínquos da evolução literária Porém a modificação da orientação temporal e da zona de edificação das representações não revela nada mais profundo e essencial do que a reestruturação da representação do homem na literatura Entretanto nos limites do presente estudo eu só poderei abordar de maneira rápida e superficial esta grande e complexa questão O homem dos grandes gêneros distanciados é o homem de um passado absoluto e de uma representação longínqua Como tal ele é inteiramente perfeito e terminado Ele é concluído num alto nível heróico mas está desesperadoramente pronto ele está todo ali do começo ao fim ele coincide consigo próprio e é igual a si mesmo Ademais ele é completamente exteriorizado Entre a sua verdadeira essência e o seu aspecto exterior não há a menor discrepância Todo o seu potencial e todas as suas possibilidade são realizadas até o fim na situação do seu ambiente social em todo o seu destino e até mesmo na sua aparência à parte este destino definido e esta situação precisa não resta nada dele Ele se tornou tudo aquilo que poderia tornarse e não poderia terse tornado outra coisa que não fosse isto Ele está completamente exteriorizado no sentido mais elementar e quase literal da palavra nele tudo é aberto e se manifesta a alta voz o seu mundo interior e todos os seus traços externos comportamentos e ações estão situados num único nível Seu ponto de vista sobre si mesmo coincide plenamente com o ponto de vista dos outros sobre ele seu meio sua coletividade seu cantor e seus ouvintes Neste sentido abordemos o problema da autoglorificação em Plutarco e em outros O eu próprio num plano distante existe não de si e para si mas para os descendentes para a lembrança antecipada da posteridade Eu reconheço a mim e a minha imagem num plano distanciado e longínquo minha consciência está isolada de mim neste plano distanciado da memória eu me vejo pelos olhos de outrem Esta coincidência de formas dos pontos de vista sobre si memo e sobre outrem tem um caráter ingênuo e íntegro sem discrepâncias entre si não há ainda a confissãoautoacusação Aquilo que se representa coincide com aquilo que é representado5 Ele vê e sabe de si somente aquilo que os outros vêem e sabem Tudo o que outros ou o autor dizem dele ele poderá dizer sobre si mesmo viceversa Não há nada para procurar nele nada para adivinhar não se pode desmascarálo nem provocálo ele está totalmente do lado de fora sem envoltório e sem núcleo Além do mais o homem épico é desprovido de qualquer iniciativa ideológica assim como as personagens e o autor O mundo épico conhece uma só e única concepção de mundo inteiramente acabada igualmente obrigatória e indiscutível para os personagens para o autor e para os ouvintes O homem épico está igualmente desprovido de iniciativa lingüística o mundo épico conhece uma só e única língua constituída Por 5 O epos se desintegra então quando começa a procura de um novo ponto de vista sobre si próprio sem misturar os pontos de vista dos outros O gesto romanesco expressivo se apresenta como um desvio da norma mas este seu caráter errôneo revela por sua vez o seu sentido subjetivo No início há um desvio da norma depois a problemática da própria norma isso nem a concepção de mundo e tampouco a língua podem servir como fatores de delimitação e de constituição das representações do homem e das suas individualizações Aqui os indivíduos são delimitados constituídos individualizados por situações e destinos diversos mas não por verdades diferentes Nem mesmo os deuses estão separados dos humanos por alguma verdade particular eles têm a mesma língua a mesma concepção de mundo o mesmo destino a mesma extroversão ininterrupta Estas particularidades do homem épico partilhadas basicamente por outros gêneros distanciados elevados originam a beleza excepcional a coesão a claridade cristalina e o polimento literário desta representação do homem mas por outro lado elas também engendram a sua limitação e uma certa irrealidade nas novas condições da existência humana A destruição da distância épica a passagem da imagem do homem do plano distante para a zona de contato com um evento inacabado do presente e por conseguinte também do futuro conduz a uma reestruturação radical da representação do homem no romance e portanto em toda literatura Neste processo as fontes folclóricas e cômicopopulares do romance exerceram um papel considerável A primeira etapa essencial para a formação foi a familiarização cômica da figura humana O cômico destruiu a distância épica e pôsse a explorar o homem com liberdade e de maneira familiar a virálo do avesso a denunciar a disparidade entre a sua aparência e o seu fundo entre as possibilidades e a sua realização Uma importante dinâmica foi introduzida na representação do homem a dinâmica da incompatibilidade e da discrepância entre seus diversos aspectos o homem deixou de coincidir consigo mesmo e portanto também o enredo deixou de revelar o homem por inteiro De todas estas divergências e discrepâncias o riso tira antes de tudo os efeitos cômicos e não apenas cômicos originando já nos gêneros sériocômicos da Antigüidade figuras de outra ordem como por exemplo a figura grandiosa e heróica de Sócrates tratada na sua totalidade de maneira nova e complexa Característica é a estrutura literária das máscaras populares estáveis que têm exercido enorme influência na formação da representação humana no romance nos estágios mais importantes da sua evolução os gêneros sériocômicos da Antigüidade Rabelais Cervantes O herói épico e trágico não está nada fora do seu destino e do enredo que o condiciona Ele não pode se tornar herói de um destino diferente de um outro enredo As máscaras populares Makkus Polichinelo Arlequim ao contrário podem seguir qualquer destino e figurar em quaisquer situações às vezes mesmo no interior de uma só peça mas elas jamais se deixam esgotar mantendo sempre sobre qualquer situação e dest no o seu excedente de alegria conservando em todos os momentos a sua face humana pouco complicada e inextraurível Por isso tais máscaras podem atuar e falar foradoenredo melhor dizendo é exatamente nas suas apresentações improvisadas nas trices das atelanas nos lazzi da comédia italiana que elas melhor revelam o seu rosto Nem o herói épico nem o trágico pode se apresentar por sua própria natureza numa pausa improvisada ou num entreato para isto ele não tem rosto nem gesto e nem palavras nisto reside a sua força e também a sua limitação Épico ou trágico é o herói que perece pois esta é a sua natureza As máscaras populares ao contrário jamais perecem nem um só tema das atelanas das comédias italianas ou das comédias francesas italianizadas prevê ou pode prever a morte real de Makkus de Polichinelo ou de Arlequim Em compensação muitos prevêem sua morte fictícia e cômica com a subseqüente ressurreição São os heróis das improvisações livres e não aqueles da tradição os heróis de um processo indestrutível eternamente renovado sempre atual da vida não são os heróis do passado absoluto Estas máscaras e a sua estrutura não coincidentes consigo mesmas e que em cada situação dada é extravasamento de alegria e inexauribilidade de verve exerceram repetimos uma enorme influência na representação do homem no romance Esta se conservou nele mas sob uma forma mais complexa mais aprofundada e mais séria ou sériocômica quanto ao conteúdo Um dos principais temas interiores do romance é justamente o tema da inadequação de um personagem ao seu destino e à sua situação O homem ou é superior ao seu destino ou é inferior à sua humanidade Ele não pode se tornar inteira e totalmente funcionário ou senhor de terras comerciante noivo rival pai etc Se um personagem do romance consegueo isto é se ele se ajusta inteiramente à sua situação e ao seu destino o personagem de gênero da vida quotidiana a maioria dos personagens secundários do romance então o seu excedente de humanidade pode se realizar na imagem principal do herói e este excedente sempre se realizará segundo a orientação formal e conteudística do autor nos moldes da sua visão e da representação do homem A mesma zona de contato com o presente inacabado e por conseguinte com o futuro cria a necessidade de tal não coincidência do homem consigo mesmo Nela sempre permanecem as virtualidades irrealizadas e as exigências não satisfeitas Há um porvir e este porvir não pode deixar de se referir à imagem do homem de ter suas raízes nele O homem não se encarna totalmente na substância sóciohistórica do seu tempo Não existem as formas que poderiam encarnar totalmente todas as possibilidades e exigências humanas onde ele poderia dar tudo de si até a última palavra como o herói épico ou trágico formas que ele poderia preencher até os limites e ao mesmo tempo sem extravasar Sempre resta um excedente de humanidade não realizado sempre fica a necessidade de um futuro e de um lugar indispensável para ele Todos os hábitos existentes são estreitos e portanto cômicos para o homem Mas esta humanidade excedente não encarnada pode se realizar não no personagem mas no ponto de vista do autor por exemplo em Gógol Quanto à realidade romanesca ela é uma das realidades eventuais ela não é indispensável ela é fortuita e carrega em si outras possibilidades A entidade épica do homem se desagrega no romance segundo outras linhas surge uma divergência fundamental entre o homem aparente e o homem interior e como resultado leva o aspecto subjetivo do homem a tornarse objeto de experiência e de representação Inicialmente no plano cômico e familiarizante constatase uma antinomia específica de aspectos o homem visto por si mesmo e pelos olhos de outrem Esta desintegração da entidade épica e trágica do homem no romance vai de encontro aos pródromos de uma entidade nova e complexa um estágio mais elevado da evolução humana Finalmente o homem adquire no romance uma iniciativa ideológica e lingüística que modifica a sua figura um tipo novo e superior de individualização do personagem Já no antigo estágio da sua evolução o romance apresentava as notáveis figuras dos personagens ideólogos tal como Sócrates ou Epicteto rindo no chamado Romance de Hipócrates ou ainda a figura profundamente romanesca de Diógenes na vasta literatura dialogada dos cínicos e na sátira menipéia aqui ele se aproxima fortemente da imagem da máscara popular e finalmente Menipo em Luciano O personagem de romance como regra é um ideólogo em maior ou menor grau Eis apresentado um esquema um tanto abstrato e simplificado da maneira como o homem é reconstruído no romance Tiremos algumas conclusões O presente com seu caráter inacabado considerado como ponto de partida e centro de orientação literárioideológica marca uma revolução grandiosa na consciência criadora do homem No mundo europeu esta reorientação e destruição da antiga hierarquia dos tempos receberam o seu caráter fundamental de gênero nas fronteiras da Antigüdade clássica e do Helenismo e nos tempos modernos no período tardio da Idade Média e na Renascença Durante esse período são lançadas as bases do gênero romanesco se bem que esses elementos já há muito estivessem preparados e suas raízes penetradas no folclore Todos os outros gêneros elevados nesta época já há muito eram gêneros constituídos velhos e quase esclerorados impregnados de alto a baixo pela antiga hierarquia dos tempos O romance enquanto gênero desde o início se constituiu e se desenvolveu no solo de uma nova sensibilidade em relação ao tempo O passado absoluto a tradição a distância hierárquica não tiveram nenhuma parte no processo da sua formação como gênero eles desempenharam somente um papel insignificante em certos períodos da sua evolução quando este era submetido a uma certa epização como por exemplo o romance barroco O romance se formou precisamente no processo de destruição da distância épica no processo da familiarização cômica do mundo e do homem no abaixamento do objeto da representação artística ao nível de uma realidade atual inacabada e fluida Desde o início o romance foi construído não na imagem distante do passado absoluto mas na zona do contato direto com esta atualidade inacabada Sua base repousava na experiência pessoal e na livre invenção criadora A nova e sóbria imagem da arte romanesca em prosa e a nova concepção crítica científica fundamentada na experiência pessoal se formaram lado a lado e simultaneamente O romance deste modo desde o princípio foi feito de uma massa diferente daquela dos outros gêneros acabados Ele é de uma natureza diferente Com ele e nele em certa medida se originou o futuro de toda literatura Por isso uma vez nascido ele não pode ser simplesmente um gênero ao lado dos outros gêneros e tampoco pode estabelecer relações mútuas com eles no sentido de uma coexistência pacífica e harmoniosa Diante do romance todos os gêneros começam a ressoar de maneira diferente Tem início um longo conflito pela romancização dos outros gêneros pelo engajamento deles na zona de contato com a atualidade inacabada O curso deste conflicto será complexo e sinuoso A romancização da literatura não implica em absoluto a imposição aos outros gêneros de um cânone estrangeiro e não peculiar pois o próprio romance está privado deste cânone ele por sua natureza é acanônico Tratase da sua plasticidade um gênero que eternamente se procura se analisa e que reconsidera todas as suas formas adquiridas Tal coisa só é possível ao gênero que é construído numa zona de contato direto com o presente em devir Por isso a romancização dos outros gêneros não implica a sua submissão a cânones estranhos ao contrário tratase de liberálos de tudo aquilo que é convencional necrosado empolado e amorfo de tudo aquilo que freia sua própria evolução e de tudo aquilo que os transforma ao lado do romance em estilizações de formas obsoletas Desenvolvi minhas posições de uma forma um tanto abstrata ilustreias somente com alguns exemplos da antiga etapa da formação do romance Esta minh am escolha foi determinada pelo fato de que entre nós na Rússia a significação desta etapa tem sido fortemente menosprezada Mesmo que se fale de um antigo estágio do romance 427 15 temse tido em vista por tradição unicamente o romance grego Ora a antiga etapa do romance tem um enorme significado para a exata compreensão da natureza deste gênero Mas em solo antigo o romance não podia desenvolver efetivamente todas aquelas possibilidades que se revelaram no mundo moderno Notamos que em certas cenas da Antigüidade o presente inacabado começava a se sentir mais perto do futuro do que do passado Todavia no solo sem perspectivas da sociedade antiga este processo de reorientação para um futuro real não podia ser concebido pois este futuro real não existia Esta reorientação se concretizou pela primeira vez no período da Renascença Nesta época o presente a atualidade se fizerem sentir não só como um prolongamento sem fim do passado mas também como um novo e verdadeiro começo heróico Perceber as coisas no nível de sua atualidade significava não só diminuir a atualidade mas também levantála para uma nova esfera heróica Pela primeira vez na época da Renascença o presente se fez sentir com toda nitidez e consciência incomparavelmente mais próximo e mais aparentado ao futuro do que ao passado O processo de evolução do romance não está concluído Ele entra atualmente numa nova fase Nossa época se caracteriza pela complexidade e pela extensão insólitas de nosso mundo pelo extraordinário crescimento das exigências pela lucidez e pelo espírito crítico Estes traços determinam igualmente o desenvolvimento do romance 1941 428 RABELAIS E GÓGOL Arte do discurso e cultura cômica popular No livro sobre Rabelais tentamos mostrar que os princípios fundamentais da obra deste grande artista foram determinados pela cultura cômica popular do passado Uma das falhas essenciais da crítica literária moderna está no fato de que ela tenta colocar toda a literatura em particular a renascenista nos moldes de uma cultura oficial enquanto que só se pode compreender efetivamente a obra de Rabelais no fluxo da cultura popular que sempre em todas as etapas do seu desenvolvimento tem resistido à cultura oficial e tem produzido o seu ponto de vista particular sobre o mundo e suas próprias formas para refletílo A crítica literária e a estética partem em geral de manifestações estreitas e empobrecidas da literatura cômica dos últimos três séculos e igualmente tentam encaixar à força o riso da Renascença nestas suas concepções restritas de riso e de cômico entretanto tais concepções estão longe de ser suficientes até mesmo para se compreender Molière Rabelais é o herdeiro e o realizador de um riso popular milenar Sua obra é a chave insubstituível para toda a cultura cômica européia nas suas manifestações mais vigorosas profundas e originais Abordaremos aqui o fenômeno mais significativo da literatura cômica dos tempos modernos a obra de Gógol Interessamnos unicamente os elementos da cultura cômica popular na sua obra Não tocaremos na questão relativa à influência direta ou indireta de Rabelais sobre Gógol através de Sterne e da escola naturalista 429