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Com este livro a Brasiliense inicia a publicação das Obras Escolhidas de Walter Benjamin selecionadas pela Suhrkamp Verlag com a excelente tradução de Sergio Paulo Rouanet e apresentação de Jeanne Marie Gagnebin Constam deste primeiro volume alguns dos mais importantes textos do filósofo como os ensaios sobre o conceito de História o Surrealismo a obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica e a fotografia e as análises das obras de Marcel Proust e Franz Kafka Completando a edição das Obras Escolhidas serão ainda publicados mais dois volumes Rua de Mão Única Figuras do Pensamento Infância em Berlim vol 2 e Charles Baudelaire Um Autor Lírico na Época do Alto Capitalismo vol 3 Walter Benjamin Magia e técnica arte e política Ensaios sobre literatura e história da cultura OBRAS ESCOLHIDAS volume 1 Tradução Sergio Paulo Rouanet Prefácio Jeanne Marie Gagnebin 1ª edição 1985 3ª edição editora brasiliense DIVIDINDO OPINIÕES MULTIPLICANDO CULTURA 1987 WALTER BENJAMIN OBRAS ESCOLHIDAS MAGIA E TÉCNICA ARTE E POLÍTICA 3ª edição editora brasiliense Copyright Suhrkamp Verlag Título original Auswahl in Drei Baenden Copyright da tradução Editora Brasiliense SA para publicação e comercialização somente no Brasil Capa Ettore Bottini Revisão Marcia Copola Elvira da Rocha editora brasiliense sa rua general jardim 160 01223 são paulo sp fone 011 2311422 telex 11 33271 DBLM BR Índice Prefácio Walter Benjamin ou a história aberta Jeanne Marie Gagnebin 7 O surrealismo O último instantâneo da inteligência européia 21 A imagem de Proust 36 Robert Walser 50 A crise do romance Sobre Alexanderplatz de Döblin 54 Teorias do fascismo alemão Sobre a coletânea Guerra e Guerreiros editada por Ernst Jünger 61 Melancolia de esquerda A propósito do novo livro de poemas de Erich Kästner 73 Que é o teatro épico Um estudo sobre Brecht 78 Pequena história da fotografia 91 A doutrina das semelhanças 108 Experiência e pobreza 114 O autor como produtor Conferência pronunciada no Instituto para o Estudo do Fascismo em 27 de abril de 1934 120 Franz Kafka A propósito do décimo aniversário de sua morte 137 A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica 165 O narrador Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov 197 Sobre o conceito da História 222 APÊNDICE Livros infantis antigos e esquecidos 235 História cultural do brinquedo 244 Brinquedo e brincadeira Observações sobre uma obra monumental 1928 249 O narrador Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov Por mais familiar que seja seu nome o narrador não está de fato presente entre nós em sua atualidade viva Ele é algo de distante e que se distancia ainda mais Descrever um Leskov como narrador não significa trazêlo mais perto de nós e sim pelo contrário aumentar a distância que nos separa dele Vistos de uma certa distância os traços grandes e simples que caracterizam o narrador se destacam nele Ou melhor esses traços aparecem como um rosto humano ou um corpo de animal aparecem num rochedo para um observador localizado numa distância apropriada e num ângulo favorável Uma experiência quase cotidiana nos impõe a exigência dessa distância e desse ângulo de observação É a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente Quando Nikolai Leskov nasceu em 1831 na província de Orjol e morreu em 1895 em S Petersburgo Por seus interesses e simpatias pelos camponeses tem certas afinidades com Tolstoi e por sua orientação religiosa com Dostoievski Mas os textos menos duradouros de sua obra são exatamente aqueles em que tais tendências assumem uma expressão dogmática e doutrinária os primeiros romances A significação de Leskov está em suas narrativas que pertencem a uma fase posterior Desde o fim da guerra houve várias tentativas de difundir essas narrativas nos países de língua alemã Além das pequenas coletâneas publicadas pelas editoras Musarion e Georg Müller devemos mencionar com especial destaque a seleção em nove volumes da editora C H Beck se pede num grupo que alguém narre alguma coisa o embaraço se generaliza É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável a faculdade de intercambiar experiências Uma das causas desse fenômeno é óbvia as ações da experiência estão em baixa e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior mas também a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis Com a guerra mundial tornouse manifesto um processo que continua até hoje No final da guerra observouse que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos e sim mais pobres em experiência comunicável E o que se difundiu dez anos depois na enxurrada de livros sobre a guerra nada tinha em comum com uma experiência transmitida de boca em boca Não havia nada de anormal nisso Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras a experiência econômica pela inflação a experiência do corpo pela guerra de material e a experiência ética pelos governantes Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado exceto as nuvens e debaixo delas num campo de forças de torrentes e explosões o frágil e minúsculo corpo humano A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores E entre as narrativas escritas as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos Entre estes existem dois grupos que se interpenetram de múltiplas maneiras A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses dois grupos Quem viaja tem muito que contar diz o povo e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tra dições Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário e outro pelo marinheiro comerciante Na realidade esses dois estilos de vida produziram de certo modo suas respectivas famílias de narradores Cada uma delas conservou no decorrer dos séculos suas características próprias Assim entre os autores alemães modernos Hebel e Gotthelf pertencem à primeira família e Sielsfield e Gerstäcker à segunda No entanto essas duas famílias como já se disse constituem apenas tipos fundamentais A extensão real do reino narrativo em todo o seu alcance histórico só pode ser compreendido se levarmos em conta a interpenetração desses dois tipos arcaicos O sistema corporativo medieval contribuiu especialmente para essa interpenetração O mestre sedentário e os aprendizes migrantes trabalhavam juntos na mesma oficina cada mestre tinha sido um aprendiz ambulante antes de se fixar em sua pátria ou no estrangeiro Se os camponeses e os marujos foram os primeiros mestres da arte de narrar foram os artífices que a aperfeiçoaram No sistema corporativo associavase o saber das terras distantes trazidos para casa pelos migrantes com o saber do passado recolhido pelo trabalhador sedentário Leskov está à vontade tanto na distância espacial como na distância temporal Pertencia à Igreja Ortodoxa grega e tinha um genuíno interesse religioso Mas sua hostilidade pela burocracia eclesiástica não era menos genuína Como suas relações com o funcionalismo leigo não eram melhores os cargos oficiais que exerceu não foram de longa duração O emprego de agente russo de uma firma inglesa que ocupou durante muito tempo foi provavelmente de todos os empregos possíveis o mais útil para sua produção literária A serviço dessa firma viajou pela Rússia e essas viagens enriqueceram tanto a sua experiência do mundo como seus conhecimentos sobre as condições russas Desse modo teve ocasião de conhecer o funcionamento das seitas rurais o que deixou traços em suas narrativas Nos contos lendários russos Leskov encontrou aliados em seu combate contra a burocracia orto doxa Escreveu uma série de contos desse gênero cujo personagem central é o justo raramente um asceta em geral um homem simples e ativo que se transforma em santo com a maior naturalidade A exaltação mística é alheia a Leskov Embora ocasionalmente se interessasse pelo maravilhoso em questões de piedade preferia uma atitude solidamente natural Seu ideal é o homem que aceita o mundo sem se prender demasiadamente a ele Seu comportamento em questões temporais correspondia a essa atitude É coerente com tal comportamento que ele tenha começado tarde a escrever ou seja com 29 anos depois de suas viagens comerciais Seu primeiro texto impresso se intitulava Por que são os livros caros em Kiev Seus contos foram precedidos por uma série de escritos sobre a classe operária sobre o alcoolismo sobre os médicos da polícia e sobre os vendedores desempregados 4 O senso prático é uma das características de muitos narradores natos Mais tipicamente que em Leskov encontramos esse atributo num Gotthelf que dá conselhos de agronomia a seus camponeses num Nodier que se preocupa com os perigos da iluminação a gás e num Hebel que transmite a seus leitores pequenas informações científicas em seu Schatzkästlein Caixa de tesouros Tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa Ela tem sempre em si às vezes de forma latente uma dimensão utilitária Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral seja numa sugestão prática seja num provérbio ou numa norma de vida de qualquer maneira o narrador é um homem que sabe dar conselhos Mas se dar conselhos parece hoje algo de antiquado é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis Em consequência não podemos dar conselhos nem a nós mesmos nem aos outros Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada Para obter essa sugestão é necessário primeiro saber narrar a história sem contar que um homem só é receptivo a um conselho na medida em que verbaliza a sua situação O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome sabedoria A arte de narrar está definhando porque a sabedoria o lado épico da verdade está em extinção Porém esse processo vem de longe Nada seria mais tolo que ver nele um sintoma de decadência ou uma característica moderna Na realidade esse processo que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução secular das forças produtivas 5 O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno O que separa o romance da narrativa e da epopeia no sentido estrito é que ele está essencialmente vinculado ao livro A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa A tradição oral patrimônio da poesia épica tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa contos de fada lendas e mesmo novelas é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta Ele se distingue especialmente da narrativa O narrador retira da experiência o que ele conta sua própria experiência ou a relatada pelos outros E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes O romancista segregase A origem do romance é o indivíduo isolado que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dálos Escrever um romance significa na descrição de uma vida humana levar o incomensurável a seus últimos limites Na riqueza dessa vida e na descrição dessa riqueza o romance anuncia a profunda perplexidade de quem a vive O primeiro grande livro do gênero Dom Quixote mostra como a grandeza de alma a coragem e a generosidade de um dos mais nobres heróis da literatura são totalmente refratárias ao conselho e não contém a menor centelha de sabedoria Quando no correr dos séculos se tentou ocasionalmente incluir no romance algum ensinamento talvez o melhor exemplo seja Wilhelm Meisters Wanderjahre Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister essas tentativas resultaram sempre na transformação da própria forma romanesca O romance de formação Bindungsroman por outro lado não se afasta absolutamente da estrutura fundamental do romance Ao integrar o processo da vida social na vida de uma pessoa ele justifica de modo extremamente frágil as leis que determinam tal processo A legitimação dessas leis nada tem a ver com sua realidade No romance de formação é essa insuficiência que está na base da ação 6 Devemos imaginar a transformação das formas épicas segundo ritmos comparáveis aos que presidiram à transformação da crosta terrestre no decorrer dos milênios Poucas formas de comunicação humana evoluíram mais lentamente e se extinguiram mais lentamente O romance cujos primórdios remontam à Antiguidade precisou de centenas de anos para encontrar na burguesia ascendente os elementos favoráveis a seu florescimento Quando esses elementos surgiram a narrativa começou pouco a pouco a tornarse arcaica sem dúvida ela se apropriou de múltiplas formas do novo conteúdo mas não foi determinada verdadeiramente por ele Por outro lado verificamos que com a consolidação da burguesia da qual a imprensa no alto capitalismo é um dos instrumentos mais importantes destacouse uma forma de comunicação que por mais antigas que fossem suas origens nunca havia influenciado decisivamente a forma épica Agora ela exerce essa influência Ela é tão estranha à narrativa como o romance mas é mais ameaçadora e de resto provoca uma crise no próprio romance Essa nova forma de comunicação é a informação Villemessant o fundador do Figaro caracterizou a essência da informação com uma fórmula famosa Para meus leitores costumava dizer o incêndio num sótão do Quartier Latin é mais importante que uma revolução em Madri Essa fórmula lapidar mostra claramente que o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre acontecimentos próximos O saber que vinha de longe do longe espacial das terras estranhas ou do longe temporal contido na tradição dispunha de uma autoridade que era válida mesmo que não fosse controlável pela experiência Mas a informação aspira a uma verificação imediata Antes de mais nada ela precisa ser compreensível em si e para si Muitas vezes não é mais exata que os relatos antigos Porém enquanto esses relatos recorriam freqüentemente ao miraculoso é indispensável que a informação seja plausível Nisso ela é incompatível com o espírito da narrativa Se a arte da narrativa é hoje rara a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo E no entanto somos pobres em histórias surpreendentes A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações Em outras palavras quase nada do que acontece está a serviço da narrativa e quase tudo está a serviço da informação Metade da arte narrativa está em evitar explicações Nisso Leskov é magistral Pensemos em textos como A fraude ou A águia branca O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor Ele é livre para interpretar a história como quiser e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação 7 Leskov freqüentou a escola dos Antigos O primeiro narrador grego foi Heródoto No capítulo XIV do terceiro livro de suas Histórias encontramos um relato muito instrutivo Seu tema é Psammenit Quando o rei egípcio Psammenit foi derrotado e reduzido ao cativeiro pelo rei persa Cambises este resolveu humilhar seu cativo Deu ordens para que Psammenit fosse posto na rua em que passaria o cortejo triunfal dos persas Organizou esse cortejo de modo que o prisioneiro pudesse ver sua filha degradada à condição de criada indo ao poço com um jarro para buscar água Enquanto todos os egípcios se lamentavam com esse espetáculo Psammenit ficou silencioso e imóvel com os olhos no chão e quando logo em seguida viu seu filho caminhando no cortejo para ser executado continuou imóvel Mas quando viu um dos seus servi 204 WALTER BENJAMIN beça com os punhos e mostrou os sinais do mais profundo desespero Essa história nos ensina o que é a verdadeira narrativa A informação só tem valor no momento em que é nova Ela só vive nesse momento precisa entregarse inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar nele Muito diferente é a narrativa Ela não se entrega Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver Assim Montaigne alude à história do rei egípcio e pergunta porque ele só se lamenta quando reconhece o seu servidor Sua resposta é que ele já estava tão cheio de tristeza que uma gota a mais bastaria para derrubar as comportas É a explicação de Montaigne Mas poderíamos também dizer O destino da família real não afeta o rei porque é o seu próprio destino Ou muitas coisas que não nos afetam na vida nos afetam no palco e para o rei o criado era apenas um ator Ou as grandes dores são contidas e só irrompem quando ocorre uma distensão O espetáculo do servidor foi essa distensão Heródoto não explica nada Seu relato é dos mais secos Por isso essa história do antigo Egito ainda é capaz depois de milênios de suscitar espanto e reflexão Ela se assemelha a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças germinativas 8 Nada facilita mais a memorização das narrativas que aquela sóbria concisão que as salva da análise psicológica Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte mais completamente ela se assimilará à sua própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontála um dia Esse processo de assimilação se dá em camadas muito profundas e exige um estado de distensão que se torna cada vez mais raro Se o sono é o ponto mais alto da distensão física o tédio é o ponto mais alto da distensão psíquica O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência O menor sussuro nas folhagens o assusta Seus ninhos as atividades intimamente associadas ao tédio já se extinguiram na cidade e estão em vias de extinção no campo Com isso desaparece o dom de ouvir e desaparece a comunidade dos ouvintes Contar histórias sempre foi a arte de contálas de novo e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo mais profundamente se grava nele o que é ouvido Quando o ritmo do trabalho se apodera dele ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrálas Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados depois de ter sido tecida há milênios em torno das mais antigas formas de trabalho manual 9 A narrativa que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão no campo no mar e na cidade é ela própria num certo sentido uma forma artesanal de comunicação Ela não está interessada em transmitir o puro emsi da coisa narrada como uma informação ou um relatório Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirála dele Assim se imprime na narrativa a marca do narrador como a mão do oleiro na argila do vaso Os narradores gostam de começar sua história com uma descrição das circunstâncias em que foram informados dos fatos que vão contar a seguir a menos que prefiram atribuir essa história a uma experiência autobiográfica Leskov começa A fraude com uma descrição de uma viagem de trem na qual ouviu de um companheiro de viagem os episódios que vai narrar ou pensa no enterro de Dostoiévski no qual travou conhecimento com a heroína de A propósito da Sonata de Kreuzer ou evoca uma reunião num círculo de leitura no qual soube dos fatos relatados em Homens interessantes Assim seus vestígios estão presentes de muitas maneiras nas coisas narradas seja na qualidade de quem as viveu seja na qualidade de quem as relata O próprio Leskov considerava essa arte artesanal a narrativa como um ofício manual A literatura diz ele em uma carta não é para mim uma arte mas um trabalho manual Não admira que ele tenha se sentido ligado ao trabalho manual e estranho à técnica industrial Tolstoi que tinha afinidades com essa atitude alude de passagem a esse elemento central do talento narrativo de Leskov quando diz que ele foi o primeiro a apontar a insuficiência do progresso econômico É estranho que Dostoievski seja tão lido Em compensação não compreendo por que não se lê Leskov Ele é um escritor fiel à verdade No malicioso e petulante A pulga de aço intermediário entre a lenda e a farsa Leskov exalta nos ourives de Tula o trabalho artesanal Sua obraprima a pulga de aço chega aos olhos de Pedro o Grande e o convence de que os russos não precisam envergonharse dos ingleses Talvez ninguém tenha descrito melhor que Paul Valéry a imagem espiritual desse mundo de artífices do qual provêm o narrador Falando das coisas perfeitas que se encontram na natureza pérolas imaculadas vinhos encorpados e maduros criaturas realmente completas ele as descreve como o produto precioso de uma longa cadeia de causas semelhantes entre si O acúmulo dessas causas só teria limites temporais quando fosse atingida a perfeição Antigamente o homem imitava essa paciência prossegue Valéry Iluminuras marfins profundamente entalhados pedras duras perfeitamente polidas e claramente gravadas lacas e pinturas obtidas pela superposição de uma quantidade de camadas finas e translúcidas todas essas produções de uma indústria tenaz e virtuosística cessaram e já passou o tempo em que o tempo não contava O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado Com efeito o homem conseguiu abreviar até a narrativa Assistimos em nossos dias ao nascimento da short story que se emancipou da tradição oral e não mais permite essa lenta superposição de camadas finas e translúcidas que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem à luz do dia como coroamento das várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas MAGIA E TÉCNICA ARTE E POLÍTICA 207 10 Valéry conclui suas reflexões com as seguintes palavras dirseia que o enfraquecimento nos espíritos da idéia de eternidade coincide com uma aversão cada vez maior ao trabalho prolongado A idéia da eternidade sempre teve na morte sua fonte mais rica Se essa idéia está se atrofiando temos que concluir que o rosto da morte deve ter assumido outro aspecto Essa transformação é a mesma que reduziu a comunicabilidade da experiência à medida que a arte de narrar se extinguia No decorrer dos últimos séculos podese observar que a idéia da morte vem perdendo na consciência coletiva sua onipresença e sua força de evocação Esse processo se acelera em suas últimas etapas Durante o século XIX a sociedade burguesa produziu com as instituições higiênicas e sociais privadas e públicas um efeito colateral que inconscientemente talvez tivesse sido seu objetivo principal permitir aos homens evitarem o espetáculo da morte Morrer era antes um episódio público na vida do indivíduo e seu caráter era altamente exemplar recordemse as imagens da Idade Média nas quais o leito de morte se transforma num trono em direção ao qual se precipita o povo através das portas escancaradas Hoje a morte é cada vez mais expulsa do universo dos vivos Antes não havia uma só casa e quase nenhum quarto em que não tivesse morrido alguém A Idade Média conhecia a contrapartida espacial daquele sentimento temporal expresso num relógio solar de Ibiza ultima multis Hoje os burgueses vivem em espaços depurados de qualquer morte e quando chegar sua hora serão depositados por seus herdeiros em sanatórios e hospitais Ora é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida e é dessa substância que são feitas as histórias assumem pela primeira vez uma forma transmissível Assim como no interior do agonizante desfilam inúmeras imagens visões de si mesmo nas quais ele se havia encontrado sem se dar conta disso assim o inesquecível aflora de repente em seus gestos e olhares conferindo a tudo o que lhe diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobrediabo possui ao morrer 208 WALTER BENJAMIN para os vivos em seu redor Na origem da narrativa está essa autoridade 11 A morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar É da morte que ele deriva sua autoridade Em outras palavras suas histórias remetem à história natural Esse fenômeno é ilustrado exemplarmente numa das mais belas narrativas do incomparável Johann Peter Hebel Ela faz parte do Schatzkästlein des rheinischen Hausfreunde Caixa de tesouros do amigo renano das famílias e chamase Unverhofftes Wiedersehen Reencontro inesperado A história começa com o noivado de um jovem aprendiz que trabalha nas minas de Falun Na véspera do casamento o rapaz morre em um acidente no fundo da sua galeria subterrânea Sua noiva se mantém fiel além da morte e vive o suficiente para reconhecer um dia já extremamente velha o cadáver do noivo encontrado em sua galeria perdida e preservado da decomposição pelo vitriólo ferroso A anciã morre pouco depois Ora Hebel precisava mostrar palpavelmente o longo tempo decorrido desde o início da história e sua solução foi a seguinte Entremontes a cidade de Lisboa foi destruída por um terremoto e a guerra dos Sete Anos terminou e o imperador Francisco I morreu e a ordem dos jesuítas foi dissolvida e a Polônia foi retalhada e a imperatriz Maria Teresa morreu e Struensee foi executado a América se tornou independente e a potência combinada da França e da Espanha não pôde conquistar Gibraltar Os turcos prenderam o general Stein na grota dos veteranos na Hungria e o imperador José morreu também O rei Gustavo da Suécia tomou a Finlândia dos russos e a Revolução Francesa e as grandes guerras começaram e o rei Leopoldo II faleceu também Napoleão conquistou a Prússia e os ingleses bombardearam Copenhague e os camponeses semeavam e ceifavam O moleiro moeu e os ferreiros forjaram e os mineiros cavaram à procura de filões metálicos em suas oficinas subterrâneas Mas quando no ano de 1809 os mineiros de Falun Jamais outro narrador conseguiu inscrever tão profundamente sua história na história natural como Hebel com essa cronologia Leiase com atenção a morte reaparece nela tão regularmente como o esqueleto com sua foice nos cortejos que desfilam ao meiodia nos relógios das catedrais 12 Cada vez que se pretende estudar uma certa forma épica é necessário investigar a relação entre essa forma e a historiografia Podemos ir mais longe e perguntar se a historiografia não representa uma zona de indiferenção criadora com relação a todas as formas épicas Nesse caso a história escrita se relacionaria com as formas épicas como a luz branca com as cores do espectro Como quer que seja entre todas as formas épicas a crônica é aquela cuja inclusão na luz pura e incolor da história escrita é mais incontestável E no amplo espectro da crônica todas as maneiras com que uma história pode ser narrada se estratificam como se fossem variações da mesma cor O cronista é o narrador da história Pensese no trecho de Hebel citado acima cujo tom é claramente o da crônica e notarseá facilmente a diferença entre quem escreve a história o historiador e quem a narra o cronista O historiador é obrigado a explicar de uma ou outra maneira os episódios com que lida e não pode absolutamente contentarse em representálos como modelos da história do mundo É exatamente o que faz o cronista especialmente através dos seus representantes clássicos os cronistas medievais precursores da historiografia moderna Na base de sua historiografia está o plano da salvação de origem divina indevassável em seus desígnios e com isso desde o início se libertaram do ônus da explicação verificável Ela é substituída pela exegese que não se preocupa com o encadeamento exato de fatos determinados mas com a maneira de sua inserção no fluxo insondável das coisas Não importa se esse fluxo se inscreve na história sagrada ou se tem caráter natural No narrador o cronista conservouse transformado e por assim dizer secularizado Entre eles Leskov é aquele cuja obra demonstra mais claramente esse fenômeno Tanto o cronista vinculado à história sagrada como o narrador vinculado à história profana participam igualmente da natureza dessa obra a tal ponto que em muitas de suas narrativas é difícil decidir se o fundo sobre o qual elas se destacam é a trama dourada de uma concepção religiosa da história ou a trama colorida de uma concepção profana Pensese por exemplo no conto A alexandrita que coloca o leitor nos velhos tempos em que as pedras nas entranhas da terra e os planetas nas esferas celestes se preocupavam ainda com o destino do homem ao contrário dos dias de hoje em que tanto no céu como na terra tudo se tornou indiferente à sorte dos seres humanos e em que nenhuma voz venha de onde vier lhes dirige a palavra ou lhes obedece Os planetas recémdescobertos não desempenham mais nenhum papel no horóscopo e existem inúmeras pedras novas todas medidas e pesadas e com seu peso específico e sua densidade exatamente calculados mas elas não nos anunciam nada e não têm nenhuma utilidade para nós O tempo já passou em que elas conversavam com os homens Como se vê é difícil caracterizar inequivocamente o curso das coisas como Leskov o ilustra nessa narrativa É determinado pela história sagrada ou pela história natural Só se sabe que enquanto tal o curso das coisas escapa a qualquer categoria verdadeiramente histórica Já se foi a época diz Leskov em que o homem podia sentirse em harmonia com a natureza Schiller chamava essa época o tempo da literatura ingênua O narrador mantém sua fidelidade a essa época e seu olhar não se desvia do relógio diante do qual desfila a procissão das criaturas na qual a morte tem seu lugar ou à frente do cortejo ou como retardatária miserável 13 Não se percebeu devidamente até agora que a relação ingênua entre o ouvinte e o narrador é dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado Para o ouvinte imparcial o importante é assegurar a possibilidade da reprodução A memória é a mais épica de todas as faculdades Somente uma memória abrangente permite à poesia épica apropriarse do curso das coisas por um lado e resignarse por outro lado com o desaparecimento dessas coisas com o poder da morte Não admira que para um personagem de Leskov um simples homem do povo o czar o centro do mundo e em torno do qual gravita toda a história disponha de uma memória excepcional Nosso imperador e toda a sua família têm com efeito uma surpreendente memória Mnemosyne a deusa da reminiscência era para os gregos a musa da poesia épica Esse nome chama a atenção para uma decisiva guinada histórica Se o registro escrito do que foi transmitido pela reminiscência a historiografia representa uma zona de indiferenção criadora com relação às várias formas épicas como a grande prosa representa uma zona de indiferenção criadora com relação às diversas formas métricas sua forma mais antiga a epopeia propriamente dita contém em si por uma espécie de indiferenção a narrativa e o romance Quando no decorrer dos séculos o romance começou a emergir do seio da epopeia ficou evidente que nele a musa épica a reminiscência aparecia sob outra forma que na narrativa A reminiscência funda a cadeia da tradição que transmite os acontecimentos de geração em geração Ela corresponde à musa épica no sentido mais amplo Ela inclui todas as variedades da forma épica Entre elas encontrase em primeiro lugar a encarnada pelo narrador Ela tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si Uma se articula na outra como demonstraram todos os outros narradores principalmente os orientais Em cada um deles vive uma Scherazade que imagina uma nova história em cada passagem da história que está contando Tal é a memória épica e a musa da narração Mas a esta musa deve se opor outra a musa do romance que habita a epopeia ainda indiferenciada da musa da narrativa Porém ela já pode ser pressentida na poesia épica Assim por exemplo nas invocações solenes das Musas que abrem os poemas homéricos O que se prenuncia nessas passagens é a memória perpetuadora do romancista em contraste com a breve memória do narrador A primeira é consagrada a um herói uma peregrinação um combate a segunda a muitos fatos difusos Em outras palavras a rememoração musa do romance surge ao lado da memória musa da narrativa depois que a desagregação da poesia épica apagou a unidade de sua origem comum na reminiscência Como disse Pascal ninguém morre tão pobre que não deixe alguma coisa atrás de si Em todo caso ele deixa reminiscência embora nem sempre elas encontrem um herdeiro O romancista recebe a sucessão quase sempre com uma profunda melancolia Pois assim como se diz num romance de Arnold Bennet que uma pessoa que acabara de morrer não tinha de fato vivido o mesmo costuma acontecer com as somas que o romancista recebe de herança Georg Lukács viu com grande lucidez esse fenômeno Para ele o romance é a forma do desenraizamento transcendental Ao mesmo tempo o romance segundo Lukács é a única forma que inclui o tempo entre os seus princípios constitutivos O tempo diz a Teoria do romance só pode ser constitutivo quando cessa a ligação com a pátria transcendental Somente o romance separa o sentido e a vida e portanto o essencial e o temporal podemos quase dizer que toda a ação interna do romance não é senão a luta contra o poder do tempo Desse combate emergem as experiências temporais autenticamente épicas a esperança e a reminiscência Somente no romance ocorre uma reminiscência criadora que atinge seu objeto e o transforma O sujeito só pode ultrapassar o dualismo da interioridade e da exterioridade quando percebe a unidade de toda a sua vida na corrente vital do seu passado resumida na reminiscência A visão capaz de perceber essa unidade é a apreensão divinatória e intuitiva do sentido da vida inatingido e portanto inexprimível Com efeito o sentido da vida é o centro em torno do qual se movimenta o romance Mas essa questão não é outra coisa que a expressão da perplexidade do leitor quando mergulha na descrição dessa vida Num caso o sentido da vida e no outro a moral da história essas duas palavras de ordem distinguem entre si o romance e a narrativa permitindonos compreender o estatuto histórico completamente diferente de uma e outra forma Se o modelo mais antigo do romance é Dom Quixote o mais recente talvez seja A educação sentimental As últimas palavras deste romance mostram como o sentido do período burguês no início do seu declínio se depositou como um sedimento no copo da vida Frédéric e Deslauriers amigos de juventude recordamse de sua mocidade e lembram um pequeno episódio uma vez entraram no bordel de sua cidade natal furtiva e timidamente e limitaramse a oferecer à dona da casa um ramo de flores que tinham colhido no jardim Falavase ainda dessa história três anos depois Eles a contaram prolixamente um completando as lembranças do outro e quando terminaram Frédéric exclamou Foi o que nos aconteceu de melhor Sim talvez Foi o que nos aconteceu de melhor disse Deslauriers Com essa descoberta o romance chega a seu fim e este é mais rigoroso que em qualquer narrativa Com efeito numa narrativa a pergunta e o que aconteceu depois é plenamente justificada O romance ao contrário não pode dar um único passo além daquele limite em que escrevendo na parte inferior da página a palavra fim convida o leitor a refletir sobre o sentido de uma vida 15 Quem escuta uma história está em companhia do narrador mesmo quem a lê partilha dessa companhia Mas o leitor de um romance é solitário Mais solitário que qualquer outro leitor pois mesmo quem lê um poema está disposto a declamálo em voz alta para um ouvinte ocasional Nessa solidão o leitor do romance se apodera ciosamente da matéria de sua leitura Quer transformála em coisa sua devorála de certo modo Sim ele destrói devora a substância lida como o fogo devora lenha na lareira A tensão que atravessa o romance se assemelha muito à corrente de ar que alimenta e reanima a chama O interesse ardente do leitor se nutre de um material seco O que significa isto Um homem que morre com trinta e cinco anos disse certa vez Moritz Heimann é em cada momento de sua vida um homem que morre com trinta e cinco anos Nada mais duvidoso Mas apenas porque o autor se engana na dimensão do tempo A verdade contida na frase é a seguinte um homem que morre aos trinta e cinco anos aparecerá sempre na rememoração em cada momento de sua vida como um homem que morre com trinta e cinco anos Em outras palavras a frase que não tem nenhum sentido com relação à vida real tornase incontestável com relação à vida lembrada Impossível descrever melhor a essência dos personagens do romance A frase diz que o sentido da sua vida somente se revela a partir de sua morte Porém o leitor do romance procura realmente homens nos quais possa ler o sentido da vida Ele precisa portanto estar seguro de antemão de um modo ou outro de que participará de sua morte Se necessário a morte no sentido figurado o fim do romance Mas de preferência a morte verdadeira Como esses personagens anunciam que a morte já está à sua espera uma morte determinada num lugar determinado É dessa questão que se alimenta o interesse absorvente do leitor Em consequência o romance não é significativo por descrever pedagogicamente um destino alheio mas porque esse destino alheio graças à chama que o consome pode darnos o calor que não podemos encontrar em nosso próprio destino O que seduz o leitor no romance é a esperança de aquecer sua vida gelada com a morte descrita no livro 16 Segundo Gorki Leskov é o escritor mais profundamente enraizado no povo e o mais inteiramente livre de influências estrangeiras O grande narrador tem sempre suas raízes no povo principalmente nas camadas artesanais Contudo assim como essas camadas abrangem o estrato camponês marítimo e urbano nos múltiplos estágios do seu desenvolvimento econômico e técnico assim também se estratificam de múltiplas maneiras os conceitos em que o acervo de experiências dessas camadas se manifesta para nós Para não falar da contribuição nada desprezível dos comerciantes ao desenvolvimento da arte narrativa não tanto no sentido de aumentarem seu conteúdo didático mas no de refinarem as astúcias destinadas a prender a atenção dos ouvintes Os comerciantes deixaram marcas profundas no ciclo narrativo de As mil e uma noites Em suma independentemente do papel elementar que a narrativa desempenha no patrimônio da humanidade são múltiplos os conceitos através dos quais seus frutos podem ser colhidos O que em Leskov pode ser interpretado numa perspectiva religiosa parece em Hebel ajustarse espontaneamente às categorias pedagógicas do Iluminismo surge em Poe como tradição hermética e encontra um último asilo em Kipling no círculo dos marinheiros e soldados coloniais britânicos Comum a todos os grandes narradores é a facilidade com que se movem para cima e para baixo nos degraus de sua experiência como numa escada Uma escada que chega até o centro da terra e que se perde nas nuvens é a imagem de uma experiência coletiva para a qual mesmo o mais profundo choque da experiência individual a morte não representa nem um escândalo nem um impedimento E se não morreram vivem até hoje diz o conto de fadas Ele é ainda hoje o primeiro conselheiro das crianças porque foi o primeiro da humanidade e sobrevive secretamente na narrativa O primeiro narrador verdadeiro é e continua sendo o narrador de contos de fadas Esse conto sabia dar um bom conselho quando ele era difícil de obter e oferecer sua ajuda em caso de emergência Era a emergência provocada pelo mito O conto de fadas nos revela as primeiras medidas tomadas pela humanidade para libertarse do pesadelo mítico O personagem do tolo nos mostra como a humanidade se fez de tola para protegerse do mito o personagem do irmão caçula mostranos como aumentam as possibilidades do homem quando ele se afasta da préhistória mítica o personagem do rapaz que saiu de casa para aprender a ter medo mostra que as coisas que tememos podem ser devastadas o personagem inteligente mostra que as perguntas feitas pelo mito são tão simples quanto as feitas pela esfinge o personagem do animal que socorre uma criança mostra que a natureza prefere associarse ao homem que ao mito O conto de fadas ensinou há muitos séculos à humanidade e continua ensinando hoje às crianças que o mais aconselhável é enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e arrogância Assim o conto de fadas dialetiza a coragem Mut desdobrandoa em dois pólos de um lado Untermut isto é astúcia e de outro Übermut isto é arrogância O feitiço libertador do conto de fadas não põe em cena a natureza como uma entidade mítica mas indica a sua cumplicidade com o homem liberado O adulto só percebe essa cumplicidade ocasionalmente isto é quando está feliz para a criança ela aparece pela primeira vez no conto de fadas e provoca nela uma sensação de felicidade Poucos narradores tiveram uma afinidade tão profunda pelo espírito do conto de fadas como Leskov Essas tendências foram favorecidas pelos dogmas da Igreja Ortodoxa grega Nesses dogmas como se sabe a especulação de Orígenes rejeitada pela Igreja de Roma sobre a apocatastasis a admissão de todas as almas ao Paraíso desempenha um papel significativo Leskov foi muito influenciado por Orígenes Tinha a intenção de traduzir sua obra Dos primeiros princípios No espírito das crenças populares russas interpretou a ressurreição menos como uma transfiguração que como um desencantamento num sentido semelhante ao do conto de fada Essa interpretação de Orígenes é o fundamento da narrativa O peregrino encantado Essa história como tantas outras de Leskov é um híbrido de contos de fadas e lenda semelhante ao híbrido de contos de fadas e saga descrito por Ernst Bloch numa passagem em que retoma à sua maneira nossa distinção entre mito e conto de fadas Segundo Bloch nessa mescla de conto de fadas e saga o elemento mítico é figurado no sentido de que age de forma estática e cativante mas nunca fora do homem Míticos nesse sentido são certos personagens de saga de tipo taoísta sobretudo os muito arcaicos como o casal Filemon e Baucis salvos como nos contos de fada embora em repouso como na natureza Existe certamente uma relação desse tipo no taoísmo muito menos pronunciado de Gotthelf ele priva ocasionalmente a saga do encantamento local salva a luz da vida a luz própria à vida humana que arde serenamente por fora e por dentro Salvos como nos contos de fadas são os seres à frente do cortejo humano de Leskov os justos Pavlin Figura o cabeleireiro o domador de ursos a sentinela prestimosa todos eles encarnando a sabedoria a bondade e o consolo do mundo circundam o narrador É incontestável que são todos derivações da imago materna Segundo a descrição de Leskov ela era tão bondosa que não podia fazer mal a ninguém nem mesmo aos animais Não comia nem peixe nem carne tal sua compaixão por todas as criaturas vivas De vez em quando meu pai costumava censurála Mas ela respondia eu mesma criei esses animaizinhos eles são como meus filhos Não posso comer meus próprios filhos Mesmo na casa dos vizinhos ela se abs tinha de carne dizendo eu vi esses animais vivos são meus conhecidos Não posso comer meus conhecidos O justo é o portavoz da criatura e ao mesmo tempo sua mais alta encarnação Ele tem em Leskov traços maternais que às vezes atingem o plano mítico pondo em perigo assim a pureza da sua condição de conto de fadas Característico nesse sentido é o personagem central da narrativa Kotin o provedor e Platônida Esse personagem um camponês chamado Pisonski é hermafrodita Durante doze anos a mãe o educou como menina Seu lado masculino e o feminino amadurecem simultaneamente e seu hermafroditismo transformase em símbolo do HomemDeus Leskov vê nesse símbolo o ponto mais alto da criatura e ao mesmo tempo uma ponte entre o mundo terreno e o supraterreno Porque essas poderosas figuras masculinas telúricas e maternais sempre retomadas pela imaginação de Leskov foram arrancadas no apogeu de sua força à escravidão do instinto sexual Mas nem por isso encarnam um ideal ascético a castidade desses justos tem um caráter tão pouco individual que ela se transforma na antítese elementar da luxúria desenfreada representada na Lady Macbeth de Mzensk Se a distância entre Pavlin e essa mulher de comerciante representa a amplitude do mundo das criaturas na hierarquia dos seus personagens Leskov sondou também a profundidade desse mundo 18 A hierarquia do mundo das criaturas que culmina na figura do justo desce por múltiplos estratos até os abismos do inanimado Convém ter em mente a esse respeito uma circunstância especial Para Leskov esse mundo se exprime menos através da voz humana que através do que ele chama num dos seus contos mais significativos A voz da natureza Seu personagem central é um pequeno funcionário Filip Filipovitch que usa todos os meios a seu dispor para hospedar em sua casa um marechaldecampo que passa por sua cidade Seu desejo é atendido O hóspede a princípio admirado com a insistência do funcionário com o tempo julga reconhecer nele alguém que havia encontrado antes Quem Não consegue lembrarse O mais estranho é que o dono da casa nada faz para revelar sua identidade Em vez disso ele consola seu ilustre hóspede dia após dia dizendo que a voz da natureza não deixará de se fazer ouvir um dia As coisas continuam assim até que o hóspede no momento de continuar sua viagem dá ao funcionário a permissão por este solicitada de fazer ouvir a voz da natureza A mulher do anfitrião se afasta Ela voltou com uma corneta de caça de cobre polido e entregoua a seu marido Ele pegou a corneta colocoua na boca e sofreu uma verdadeira metamorfose Mal enchera a boca produzindo um som forte como um trovão o marechaldecampo gritou Pára Já sei irmão agora te reconheço És o músico do regimento de caçadores que como recompensa por sua honestidade enviei para vigiar um intendente corrupto É verdade Excelência respondeu o dono da casa Eu não queria recordar esse fato a Vossa Excelência e sim deixar que a voz da natureza falasse A profundidade dessa história escondida atrás de sua estupidez aparente dá uma idéia do extraordinário humor de Leskov Esse humor reaparece na mesma história de modo ainda mais discreto Sabemos que o pequeno funcionário fora enviado como recompensa por sua honestidade para vigiar um intendente corrupto Essas palavras estão no final na cena do reconhecimento Porém no começo da história lemos o seguinte sobre o dono da casa os habitantes do lugar conheciam o homem e sabiam que não tinha uma posição de destaque pois não era nem alto funcionário do Estado nem militar mas apenas um pequeno fiscal no modesto serviço de intendência onde juntamente com os ratos roía os biscoitos e as botas do Estado chegando com o tempo a roer para si uma bela casinha de madeira Manifestase assim como se vê a simpatia tradicional do narrador pelos patifes e malandros Toda a literatura burlesca partilha essa simpatia que se encontra mesmo nas culminâncias da arte os companheiros mais fiéis de Hebel são o Zumdelfrieder o Zundelheiner e Dieter o ruivo No entanto também para Hebel o justo desempenha o papel principal no theatrum mundi Mas como ninguém está à altura desse papel ele passa de uns para outros Ora é o vagabundo ora o judeu avarento ora o imbecil que entram em cena para representar esse papel A peça varia segundo as circunstâncias é uma improvisação moral MAGIA E TÊCNICA ARTE E POLÍTICA Hebel é um casuísta Ele não se solidariza por nenhum preço com nenhum princípio mas não rejeita nenhum porque cada um deles pode se tornar um instrumento dos justos Comparese essa atitude com a de Leskov Tenho consciência escreve ele em A propósito da Sonata de Kreuzer de que minhas idéias se baseiam muito mais numa concepção prática da vida do que na filosofia abstrata ou numa moral elevada mas já me habituei a pensar assim De resto as catástrofes morais que ocorrem no universo de Leskov se relacionam com os incidentes morais que ocorrem no universo de Hebel como a vasta e silenciosa torrente do Volga se relaciona com o riacho tagarela e saltitante que faz girar o moinho Entre as narrativas históricas de Leskov existem várias nas quais as paixões são tão destruidoras como a ira de Aquiles ou o ódio de Hagen É surpreendente verificar como o mundo pode ser sombrio para esse autor e com que majestade o mal pode empunhar o seu cetro Obviamente Leskov conheceu estados de espírito em que estava muito próximos de uma ética antinomística e esse é talvez um dos seus poucos pontos de contato com Dostoiévski As naturezas elementares dos seus Contos dos velhos tempos vão até o fim em sua paixão implacável Mas esse fim é justamente o ponto em que para os místicos a mais profunda abjeção se converte em santidade 220 WALTER BENJAMIN Alexandre II O narrador ou antes o homem a quem ele transmite o seu saber é um lapidador chamado Wenzel que levou sua arte à mais alta perfeição Podemos aproximálo dos ourives de Tula e dizer que segundo Leskov o artífice perfeito tem acesso aos arcanos mais secretos do mundo criado Ele é a encarnação do homem piedoso Leskov diz o seguinte desse lapidador Ele segurou de repente a minha mão na qual estava o anel com a alexandrita que como se sabe emite um brilho rubro quando exposta a uma iluminação artificial e gritou Olhe eila aqui a pedra russa profética Ó siberiana astuta Ela sempre foi verde como a esperança e somente à noite assume uma cor de sangue Ela sempre foi assim desde a origem do mundo mas escondeuse por muito tempo e ficou enterrada na terra e só consentiu em ser encontrada no dia da maioridade do czar Alexandre quando um grande feiticeiro visitou a Sibéria para achála a pedra um mágico Que tolices o Sr está dizendo interrompio Não foi nenhum mágico que achou essa pedra foi um sábio chamado Nordenskjöld Um mágico digolhe eu um mágico gritou Wenzel em voz alta Veja que pedra Ela contém manhãs verdes e noites sangrentas Esse é o destino o destino do nobre czar Alexandre Assim dizendo o velho Wenzel voltouse para a parede apoiouse nos cotovelos e começou a soluçar Para esclarecer o significado dessa importante narrativa não há melhor comentário que o trecho seguinte de Valéry escrito num contexto completamente diferente A observação do artista pode atingir uma profundidade quase mística Os objetos iluminados perdem os seus nomes sombras e claridades formam sistemas e problemas particulares que não dependem de nenhuma ciência que não aludem a nenhuma prática mas que recebem toda sua existência e todo o seu valor de certas afinidades singulares entre a alma o olho e a mão de uma pessoa nascida para surpreender tais afinidades em si mesmo e para as produzir A alma o olho e a mão estão assim inscritos no mesmo campo Interagindo eles definem uma prática Essa prática deixou de nos ser familiar O papel da mão no trabalho produtivo tornouse mais modesto e o lugar que ela ocupava durante a narração está agora vazio Pois a narração em seu aspecto sensível não é de modo algum o produto exclusivo da MAGIA E TÉCNICA ARTE E POLÍTICA voz Na verdadeira narração a mão intervém decisivamente com seus gestos aprendidos na experiência do trabalho que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito A antiga coordenação da alma do olhar e da mão que transparece nas palavras de Valéry é típica do artesão e é ela que encontramos sempre onde quer que a arte de narrar seja praticada Podemos ir mais longe e perguntar se a relação entre o narrador e sua matéria a vida humana não seria ela própria uma relação artesanal Não seria sua tarefa trabalhar a matériaprima da experiência a sua e a dos outros transformandoa num produto sólido útil e único Talvez se tenha uma noção mais clara desse processo através do provérbio concebido como uma espécie de ideograma de uma narrativa Podemos dizer que os provérbios são ruínas de antigas narrativas nas quais a moral da história abraça um acontecimento como a hera abraça um muro Assim definido o narrador figura entre os mestres e os sábios Ele sabe dar conselhos não para alguns casos como o provérbio mas para muitos casos como o sábio Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida uma vida que não inclui apenas a própria experiência mas em grande parte a experiência alheia O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer Seu dom é poder contar sua vida sua dignidade é contála inteira O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida Dai a atmosfera incomparável que circunda o narrador em Leskov como em Hauff em Poe como em Stenvenson O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo 1936