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Copyright Boaventura de Sousa Santos Copyright desta edição Boitempo Editorial 2007 Coordenação editorial Editor adjunto Editora assistente Tradução Preparação de texto Revisão Capa Composição Produção Ivana Jinkings João Alexandre Peschanski Ana Paula Castellani Mouzar Benedito Ana Paula Figueiredo Hugo Almeida Guilherme Xavier Cintia de Cerqueira Cesar Marcel Iha Sumário CIPBRASIL CATALOGAÇAONAFONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS RJ S233r Santos Boaventura de Sousa1940 Renovar a teoria critica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos tradução Mouzar Benedito São Paulo Boitempo 2007 Tradução de Renovar la teoria critica y reinventar la emancipación social Encuentros en Buenos Aires Conferencias proferidas em Buenos Aires em 2005 ISBN 9788575590911 1 Teoria critica Discursos conferências etc 2 Movimentos sociais Discursos conferências etc 3 Mudança social Discursos conferências etc 4 Globalização Discursos conferências etc 4 Democracia Discursos conferencias etc I Titulo 070988 CDD 3034 CDU 31642 Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada ou reproduzida sem autorização da editora P edição abril de 2007 BOITEMPO EDITORIAL Jinkings Editores Associados Ltda Rua Euclides de Andrade 27 Perdizes 05030030 São Paulo SP Telfax 11 38757250 38726869 email editorboitempoeditorialcombr site wwwboitempoeditorialcombr Apresentação Gaudêncio Frigotto Prólogo Capítulo I A Sociologia das Ausências e a Sociologia das Emergências para uma ecologia de saberes 17 Capítulo II Uma nova cultura política emancipatória 51 Capítulo III Para uma democracia de alta intensidade 83 Sobre o autor 127 7 13 Apresentação Gaudêncio Frigotto O livro de Boaventura de Sousa Santos Renovar a teo ria crítica e reinventar a emancipação social nos revela de imediato que a capacidade de síntese densa engen drando crítica e anúncio somente pode resultar de au tores abertos ao debate teórico e com compromisso éti copolítico com as lutas de movimentos e organizações sociais e políticas que apostam não apenas na emanci pação política mas sobretudo na emancipação humana e social Vale dizer comprometidos com a práxis transfor madora ou revolucionária das relações sociais cada vez mais violentas do capitalismo realmente existente em es pecial nos países de capitalismo dependente e associado O leitor que conhece a vasta obra de Boaventura em boa parte publicada no Brasil perceberá que a novidade deste livro não reside tanto em novas formulações epistemológicas teó ricas e políticas do autor mas em sua capacidade de colocálas em diálogo crítico com novas realidades e sujeitos Um deba te epistemológico teórico e politico portanto que articula por um lado a natureza singular e particular dos contextos latinoamericanos a dimensões de universalidades históricas dos processos de conhecimento e por outro suas conseqüên cias em termos das lutas pela emancipação social em seus âmbitos local nacional regional e mundial Boaventura de Sousa Santos 9 S Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Com efeito ao apresentar as três conferências e deba tes realizados em 2005 na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires o autor realça a oportunida de e o desafio de expor suas idéias a um público heterogê neo o caráter polêmico dos debates e a densidade deles Os três capítulos do livro correspondentes às referidas conferências obedecem a uma exposição na qual o autor vai da explicitação dos fundamentos epistemológicos do pensa mento sociológico A Sociologia das Ausências e a Sociologia das Emergências para uma ecologia de saberes às implica ções teóricas para Uma nova cultura politica emancipatória Dessas duas dimensões aos desafios politicos Para urna de mocracia de alta intensidade Uma estrutura de exposição que dá ao livro um encadeamento lógico dos temas e com isso uma clareza argumentativa e metodológica Todavia como se pode observar em seu conteúdo central as proble máticas epistemológica teórica e politica aparecem nos três capítulos com ênfases e níveis específicos Assim o leitor encontra no primeiro capítulo um diálogo e uma síntese da produção epistemológica mais ampla do autor dentro de um projeto que busca encon trar as bases e as possibilidades da reinvenção da eman cipação social nas realidades dos países periféricos O ar gumento central é há uma reiterada tensão e crise entre a regulação e a emancipação social e entre a experiência e as expectativas na sociedade moderna ocidental No pla no social há uma regressão que se agrava sobretudo nas últimas décadas com perdas de direitos e de possi bilidades futuras e no plano epistemológico a crise do pensamento hegemônico das ciências sociais centradas em uma razão eurocêntrica e indolente incapazes de produzir novas idéias Vale dizer incapazes de renovar e reinventar a teoria e a emancipação social Para caracterizar essa crise das ciências sociais cen tradas na razão indolente Boaventura valese de figuras de linguagem metonimia e prolepse para designar a razão metonímica que toma a parte pelo todo e a hiper trofia de uma totalidade abstrata e a razão proléptica que engendra um pensamento linear no qual o futuro já está determinado nas idéias de progresso e produtividade nos parâmetros capitalistas O autor instiga a um desafio epistemológico que consiste em combater o pensamento hegemônico desde suas formulações centrandose na So ciologia das Ausências e na ecologia dos saberes A Sociologia das Ausências trata da superação das monoculturas do saber científico do tempo linear da naturalização das diferenças da escola dominante cen trada hoje no universalismo e na globalização além da produtividade mercantil do trabalho e da natureza O caminho proposto pelo autor baseiase na idéia de uma contraposição às cinco monoculturas cinco ecologias cujo espaço e tempos situamse nas sociedades coloca das à margem pelos centros hegemônicos colonizadores nas lutas experiências e saberes das organizações popu lares a ecologia dos saberes que postula um diálogo do saber científico com o saber popular e laico a ecologia das temporalidades que considera diferentes e contraditórios tempos históricos a ecologia do reconhecimento que pres supõe a superação das hierarquias a ecologia da transes cala que possibilita articular projetos locais nacionais e globais e por fim a ecologia das produtividades centrada na valorização dos sistemas alternativos de produção da economia solidária popular e autogestionária A partir dessa nova ecologia dos saberes para o au tor é possível superar a razão proléptica partindo de um futuro concreto e de utopias realistas encontradas em pistas que são forjadas nas organizações nos mo vimentos e nas lutas das classes populares e dos povos historicamente marginalizados A análise empreendida pelo autor no primeiro ca pítulo no plano epistemológico reiterase no segundo capítulo tendo como foco os fundamentos da produção Boaventura de Sousa Santos 11 10 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social teórica nas ciências sociais e sua base cultural Toma como ponto inicial os limites que percebe na teoria marxista a despeito de sua relevância e revitalização no mundo todo Nela percebe os problemas que a mesma engendra em relação à questão do futuro vinculada à idéia de progresso parca abordagem do colonialismo e à questão de aceitar a idéia de uma unidade e universali dade do saber com primazia sobre o saber científico Este é um ponto que por certo renderá debate e dis senso na leitura do livro de Boaventura pelos pesquisadores brasileiros nos quais me incluo cuja matriz é justamente o esforço de historicizar e renovar a teoria marxista e o materialismo histórico Isso não pelas críticas que Boaven tura faz a determinados encaminhamentos dominantes do marxismo ocidental sobre os quais tem ampla razão mas pelo nãodestaque da possibilidade e da necessidade de renovar essa teoria Gramsci já nos anos 30 do século passado advertia para a necessidade de pensar o homem hoje nas condições de hoje não de uma vida qualquer e de um homem qualquer Mas o texto de Boaventura nesse ponto também cumpre seu objetivo provocar um debate aber to no dissenso A produção ou a reinvenção da teoria crítica para o so ciólogo português enfrentam dois problemas resultantes da cultura e da modernidade ocidental o silêncio e a dife rença O primeiro tem origem na cultura hegemônica que teve contato com outras culturas mas foi um contato co lonial e portanto de silenciamento e desprezo O segundo implica uma luta em duas frentes a politica da hegemonia que conduz à idéia de que não há outras culturas críveis e a politica da identidade fundamentalista Desses dois pro blemas Boaventura destaca os desafios de distinguir entre objetividade e neutralidade a questão da produção de sub jetividades rebeldes não apenas subjetividades conformis tas e por fim o desafio de criar uma epistemologia do Sul superadora da matriz colonizadora Essa superação implica para o autor avançar no plano da luta prática das transfor mações sociais Esse é o tema do último capítulo que trata da democracia de alta intensidade Nesse terceiro capítulo ele demarca inicialmente que a questão democrática vinculada à renovação da teo ria crítica e à reinvençäo da emancipação social reivindica uma objetividade engajada Tratase ao mesmo tempo de evitar um duplo viés o subjetivismo e a falsa visão da neutralidade das teorias liberais ou conservadoras Por outro lado a democracia de alta intensidade e portanto de novo tipo demanda a radicalização de subjetividades rebeldes Para essa construção do novo o autor explici ta uma contradição que é da realidade histórica mesma Os instrumentos de que dispomos no plano teórico e epistemológico são os hegemónicos ou seja nos termos do autor as semânticas legítimas da convivência política e social a legalidade a democracia os direitos humanos Essa contradição impõe um duplo esforço como traba lhar esses instrumentos de forma contrahegemônica e tentar perceber nas culturas e formas políticas margina lizadas pela modernidade ocidental indícios sementes e embriões do novo No desdobramento desse capítulo ele discute prin cipalmente a questão da democracia Efetiva um inventá rio histórico do que poderiamos denominar vicissitudes da democracia suas formas seu conteúdo seus limites e impossibilidades Um exercício concreto da provocação que faz ao pensamento e à praxis no duplo movimento de trabalhar os conceitos hegemônicos de forma contrahege mônica buscando indícios de superação das relações sociais capitalistas nos movimentos e lutas sociais concretas cons truídas nas sociedades colonizadas e da periferia do capita lismo Um processo que demanda como o autor finaliza sua exposição a paciência infinita da utopia Esta é uma análise da questão democrática que se relaciona e se potencializa mesmo partindo de uma visão muito diversa do papel do 12 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social materialismo histórico da tese central de Ellen M Wood cujo escopo é a democracia em sua radicalidade é impos sível no âmbito das relações sociais capitalistas o que não elide dentro dessas relações a luta democrática O livro ganha uma originalidade de conteúdo de forma e de método ao trazer a maior parte dos debates com um públi co após cada exposição formado por intelectuais pesquisa dores sindicalistas lideres de movimentos sociais e culturais e jovens estudantes O resultado das exposições instigantes centradas na busca do diálogo critico e aberto e da própria au tocrítica como proposta de renovar as ciências sociais e rein ventar a emancipação social porque ambas estão em crise teria como resultado o que o autor destaca no prólogo deste livro Os jovens debateram muitas de minhas posições tanto porque concordavam como porque estavam em desacordo e fiquei impressionado com essa pouco freqüente combinação de lucidez intelectual e entusiasmo politico A publicação do livro no Brasil amplia a socialização das análises para um público das mesmas características e aposta utópica e revolucionária que fez escuta atenta e debate criti co na Argentina Um esforço que está no ideário do autor na tarefa de construir na teoria e na práxis subjetividades re beldes capazes de produzir uma alternativa à hegemonia con servadora e neoconservadora e seus feitos na ampliação da barbárie humanosocial Tratase de uma busca incessante e sem prazo com a paciência infinita da utopia para criar as condições subjetivas e objetivas de superação das relações so ciais capitalistas E isso na travessia implica constantemente Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Rio de Janeiro março de 2007 Ellen M Wood Democracia contra capitalismo a renovação do ma terialismo histórico São Paulo Boitempo 2003 Prólogo Visitei a Argentina pela primeira vez numa luminosa semana de abril de 2005 a convite do Conselho Latino Americano de Ciências Sociais Clacso e da Embaixada de Portugal em Buenos Aires Foi uma semana intensa na qual participei de várias conferências e seminários nas fa culdades de Direito e de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires UBA e na Universidade de General Sar miento e também de encontros com movimentos sociais e organizações nãogovernamentais Além disso compa reci a encontros de trabalho com advogados populares defensores de direitos humanos e ao lançamento de duas publicações na Feira do Livro de Buenos Aires Reinventar a democracia reinventar o Estado publicado pelo Clacso e A universidade no século XXI para uma reforma democráti ca e emancipadora da universidade publicado pelo Labora tório de Políticas Públicas de Buenos Aires em parceria com a editora Miño y Dávila Desses eventos destacaramse os três seminários que desenvolvi na Faculdade de Ciências Sociais da UBA entre 12 e 14 de abril Participaram com uma assidui dade gratificante cerca de 250 pessoas entre alunos de pósgraduação professores e pesquisadores da UBA e de muitas outras universidades do país assim como mem 14 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 15 bros de organizações sociais Por esse público diverso pouco comum no âmbito de uma universidade agra deço especialmente à Faculdade de Ciências Sociais que possibilitou essa oportunidade de expor minhas idéias e participar de um debate tão vivo e enriquecedor Eu havia proposto em acordo com meus colegas argentinos os temas para os três seminários O desen volvimento desses temas assim como os debates poste riores converteramse nos três capítulos deste livro A Sociologia das Ausências e a Sociologia das Emergências para uma ecologia de saberes Uma nova cultura polí tica emancipatória e Para uma democracia de alta in tensidade Cada um desses capítulos produto de cada seminário é uma unidade em que se sintetizam respecti vamente reflexões epistemológicas teóricas e políticas Estimulado por um público tão numeroso diverso e atento fui muito além de uma mera síntese de meu pensamento Ao final de cada exposição geraramse de bates muito interessantes que me instigaram a explorar questões novas Os jovens debateram muitas de minhas posições tanto porque concordavam como porque es tavam em desacordo e fiquei impressionado com essa pouco freqüente combinação de lucidez intelectual e entusiasmo político Este livro não teria sido possível sem a mediação da amizade do empenho e da solidariedade intelectual de um grupo de colegas que decidiram ceder seu valioso tempo para tornar esses seminários acessíveis ao público leitor A todos meu agradecimento sincero A Norma Giarrac ca Juan Pegoraro e Pedro Krotsch professores e pesqui sadores do Instituto Gino Germani que com o apoio do decano Federico Schuster passaram anos aguardando pacientemente a minha disponibilidade de aceitar o con vite para visitar a Argentina e por conseguinte a Facul dade de Ciências Sociais Quando aceitei o convite eles mesmos programaram os seminários com a inestimável colaboração do secretário de Pesquisa e PósGraduação Pablo Alabarces que enfrentou uma difícil tarefa uma vez que esses seminários tiveram um éxcesso de pedidos de inscrição Do mesmo modo um especial agradecimento a Norma Fernández da Universidade Nacional de Córdoba que realizou a gravação dos seminários Ela junto com Norma Giarracca encarregouse da tarefa de compilar as gravações e transformar as exposições em textos coeren tes tarefa que facilitou muito minha própria revisão À generosidade dessas duas colegas as quais muito admiro tanto os leitores como eu devemos este livro Last but not least meu agradecimento sincero a Ati lio Boron então secretário executivo do Clacso Depois de conhecer e admirar por longos anos a sua obra pude me beneficiar também de sua habilidade administrativa Foi seu empenho que tornou possível a visita à Argenti na programada de forma que pude aproveitar da melhor maneira os poucos e intensos dias que vivi em Buenos Aires Foi ele quem envolveu a Embaixada de Portugal E Marta Pires adido cultural dessa instituição foi quem se converteu em guia segura de meus roteiros por Bue nos Aires Finalmente devo a Atilio Boron o interesse do Clacso em levar a cabo esta publicação Espero que o livro não desmereça a dedicação e a solidariedade de tantos colegas e amigos A edição brasileira devese ao carinho com que Ivana Jinkings acompanha o meu esforço para renovar a teoria crítica e aprofundar a luta política progressista Estou lhe muito grato por isso Capítulo I A Sociologia das Ausências e a Sociologia das Emergências para uma ecologia de saberes Estes três seminários são para mim uma tentativa de dar conta de um trabalho que está em curso e tem o título ge ral de Reinventar a emancipação social Isso significa por um lado que há emancipação social e por outro que é preciso reinventála Provavelmente vamos ter de discutir o que é a emancipação social e por que necessitamos rein ventála Penso que essa questão tem três grandes dimen sões uma epistemológica que vamos discutir hoje outra mais teórica que discutiremos amanhã e outra mais polí tica que veremos depois Hoje portanto me concentro na dimensão epis temológica e em destacar por que decidi trabalhar esse tema O problema é que a emancipação social é um con ceito absolutamente central na modernidade ocidental sobretudo porque esta tem sido organizada por meio de uma tensão entre regulação e emancipação social en tre ordem e progresso entre uma sociedade com mui tos problemas e a possibilidade de resolvêlos em outra melhor que são as expectativas Então é uma sociedade que pela primeira vez cria essa tensão entre experiências correntes do povo que às vezes são ruins infelizes desi guais opressoras e a expectativa de uma vida melhor de Boaventura de Sousa Santos 19 18 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social uma sociedade melhor Isso é novo já que nas sociedades antigas as experiências coincidiam com as expectativas quem nascia pobre morria pobre quem nascia iletrado morria iletrado Agora não quem nasce pobre pode mor rer rico e quem nasce em uma família de iletrados pode morrer como médico ou doutor Essa discrepância entre experiências e expectativas é fundamental para entender o que pensamos e como pensamos a emancipação social na sociedade moderna O problema é que e isso veremos melhor amanhã essa discrepância entre experiências e expectativas entre re gulação e emancipação hoje está desfigurada De alguma maneira vivemos em sociedades com uma dupla crise crise de regulação e crise de emancipação A discrepância entre experiências e expectativas também está desfigura da porque está invertida as expectativas para a grande maioria da população mundial não são mais positivas que as experiências correntes ao contrário tornamse mais negativas Vinte anos atrás quando a primeira página dos jornais dizia reforma da saúde ou reforma da edu cação era para melhor Hoje quando abrimos o jornal e vemos uma notícia sobre reforma da saúde da educação da previdência social é certamente para pior Com efeito há uma inversão nessa discrepância de experiências e expectativas e por isso alguns pensam que não tem sentido falar de emancipação social chega mos ao fim da História e o que resta é festejálo Nós ao contrário pensamos que é preciso continuar com a idéia de emancipação social no entanto o problema é que não podemos continuar pensandoa em termos modernos pois os instrumentos que regularam a dis crepância entre reforma e revolução entre experiências e expectativas entre regulação e emancipação essas formas modernas estão hoje em crise Entretanto não está em crise a idéia de que necessitamos de uma so ciedade melhor de que necessitamos de uma sociedade mais justa As promessas da modernidade a liberdade a igualdade e a solidariedade continuam sendo uma aspiração para a população mundial Nossa situação é um tanto complexa podemos afir mar que temos problemas modernos para os quais não temos soluções modernas E isso dá ao nosso tempo o caráter de transição temos de fazer um esforço muito in sistente pela reinvenção da emancipação social Amanhã tentarei falar mais da parte teórica Alguém como eu que foi destinado a trabalhar em um país semi periférico como Portugal a fazer seu trabalho de campo na América Latina e na África e ao mesmo tempo pas sar parte de seu tempo em um país hegemônico como os Estados Unidos pode muito bem afirmar que não há atualmente uma só idéia nova produzida pelas ciências sociais hegemônicas As ciências sociais estão passando por uma crise porque a meu ver estão constituídas pela modernidade ocidental por esse contexto de tensão en tre regulação e emancipação que deixou de fora as socie dades coloniais nas quais essa tensão foi substituída pela alternativa entre a violência da coerção e a violência da assimilação Algumas correntes das ciências sociais vi saram sobretudo a regulação os estruturalfunciona listas Os outros os marxistas os críticos centraramse mais na emancipação mas a idéia foi sempre uma visão eurocêntrica dessa tensão uma visão portanto colonia lista A crise desse paradigma é geral e por isso inclui com contornos distintos todas as correntes até agora em vigor Portanto pareceme correto que se fale de uma cri se geral das ciências sociais Além disso nossas grandes teorias das ciências so ciais foram produzidas em três ou quatro países do Nor te Então nosso primeiro problema para quem vive no Sul é que as teorias estão fora de lugar não se ajustam realmente a nossas realidades sociais Sempre nos tem sido necessário indagar uma maneira pela qual a teoria 20 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 21 se ajuste a nossa realidade Mas hoje o problema é ain da maior porque nossas sociedades estão vivendo em um contexto de globalização e vemos mais claramente a debilidade das teorias sociais com as quais podemos trabalhar O Fórum Social Mundial FSM por exemplo ocorreu apesar das teorias críticas e não em razão delas a experiência do FSM não estava nas previsões das polí ticas de esquerda Hoje vivemos um problema complicado uma discre pância entre teoria e prática social que é nociva para a teoria e também para a prática Para uma teoria cega a prática social é invisível para uma prática cega a teoria social é irrelevante E essa é uma situação que temos de atravessar se tentamos entrar no âmbito da articulação entre os movimentos sociais Ontem mesmo estava em um programa com dirigentes de movimentos sociais de associações de bairros de piqueteiros de empresas recu peradas e discutíamos exatamente isto não é simples mente de um conhecimento novo que necessitamos o que necessitamos é de um novo modo de produção de co nhecimento Não necessitamos de alternativas necessi tamos é de um pensamento alternativo às alternativas Isso é ainda mais urgente e por isso precisamos fa zer uma reflexão epistemológica já que em nossos países se vê cada vez mais claro que a compreensão do mun do é muito mais ampla que a compreensão ocidental do mundo E por isso nos falta um conhecimento tão glo bal como a globalização Esse é o contexto em que nos encontramos hoje é um desafio enorme para as novas gerações de cientistas sociais O Movimento Piqueteiro contra o desemprego surgiu na Ar gentina em junho de 1996 durante o governo Menem depois da privatização da petroleira YPF quando trabalhadores demitidos pela empresa na província de Neuquén obstruíram rodovias e o movimento se espalhou pelo pais N T Foi nesse contexto que propus um exercício reunir cientistas sociais do Sul e tentar realizar um projeto que se chamou Reinventar a emancipação social a partir do Sul ou seja dos países periféricos e semiperiféricos do sistema mundial para permitir que as ciências sociais se reunissem e organizassem internacionalmente fora dos centros hegemônicos Vocês conhecem a divisão do trabalho se forem aos Estados Unidos ou à Europa verão os estudantes por exemplo na Universidade de Wisconsin onde tra balho fazendo pesquisas sobre a Argentina Bolívia Equador ou Moçambique Em nossos países quantos estudantes trabalham sobre a realidade de outros paí ses Nós trabalhamos sobre nossa realidade eles fazem o trabalho global e nós estamos de certa maneira loca lizados É uma divisão de trabalho eficaz nas ciências sociais porque depois as grandes organizações interna cionais olham o mundo pelos olhos dos cientistas so ciais do centro do Norte Por conseqüência as teorias sociais reproduzem as desigualdades entre o Norte e o Sul Portanto organizei um projeto que reuniu seis países Portugal Colômbia Brasil África do Sul Índia e Moçambique com cerca de sessenta pesquisadores sociais Os livros estão saindo em espanhol também Já há cinco em português italiano e inglês O primeiro se chama Democratizar a democracia e o segundo Pro duzir para viver 2 O terceiro Reconhecer para libertar 2 Boaventura de Sousa Santos org Democratizar a democracia os caminhos da democracia participativa Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2002 Boaventura de Sousa Santos org Produzir para viver os caminhos da produção não capitalista Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2002 Boaventura de Sousa Santos org Reconhecerpara libertar os ca minhos do cosmopolitismo multicultural Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2003 Boaventura de Sousa Santos 23 22 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social O quarto Semear outras soluções4 o quinto Trabalhar o mundo s Apesar de ser o coordenador não tracei um quadro teórico rígido tentei reunir cientistas sociais de outros países para conjuntamente conversar e pensar um projeto E surgiu um projeto no qual tentamos ver quais são as contradições mais persistentes entre o Norte e o Sul O primeiro tema foi a democracia porque há muita inovação democrática que está emergindo do Sul e não do Norte entretanto a teoria da democracia continua sendo produzida no Norte O segundo tema foi a pro dução nãocapitalista as formas de economia solidária de economia social de economia popular que são tão importantes hoje no Sul O terceiro tema que a meu ver vai se tornar um confronto entre o Norte e o Sul é o do multiculturalismo a diversidade cultural a cidadania cultural os direitos indígenas etc E o quarto é a ques tão dos conhecimentos rivais ou seja a capacidade que o Norte tem de negar a validade ou mesmo a existência dos conhecimentos alternativos ao conhecimento cien tífico conhecimentos populares indígenas campone ses etc para transformálos em matériaprima para o desenvolvimento do conhecimento científico Notase muito isso na biodiversidade e surge então a neces sidade de repensar a situação Finalmente outro tema de confronto é a meu ver o do novo internacionalismo operário com o término do antigo que de fato não era internacional tem sido o capital não o movimento ope rário estão emergindo muitas iniciativas SulSul de Boaventura de Sousa Santos org Semear outras soluções os ca minhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2004 Boaventura de Sousa Santos org Trabalhar o mundo os cami nhos do novo internacionalismo operário Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2004 articulação entre os sindicatos ou comissões operárias de trabalhadores da mesma multinacional Esses temas me levaram a uma reflexão epistemo lógica Primeiro não é fácil desenvolver um projeto in ternacional fora dos centros hegemônicos pois somos muito dependentes de seus autores Em segundo lugar quando se trabalha no Sul o que vemos é que as ciências em geral e as ciências sociais em particular convivem com diferentes culturas Na Índia por exemplo a socio logia convive com o hinduísmo como aqui convivemos com os pressupostos da cultura ocidental e na África com tantas culturas africanas Não há ciência pura há um contato cultural de produção de ciência Isso é muito importante já que aprendemos com nossa epistemologia positivista que a ciência é indepen dente da cultura entretanto os pressupostos culturais das ciências são muito claros Vamos portanto discutir como podemos no que diz respeito à ciência ser obje tivos mas não neutros como devemos distinguir entre objetividade e neutralidade Objetividade porque pos suímos metodologias próprias das ciências sociais para ter um conhecimento que queremos que seja rigoroso e que nos defenda de dogmatismos e ao mesmo tempo vivemos em sociedades muito injustas em relação às quais não podemos ser neutros Devemos ser capazes de efetuar essa distinção que é muito importante A terceira idéia resultante foi que tomando ainda as ciências sociais a compreensão do mundo é muito mais ampla que a ocidental Os colegas da África do Sul da Ín dia de Moçambique têm uma maneira de ver a sociolo gia a sociedade e o mundo muito distinta da que existe no Norte Então me pareceu que provavelmente o mais preocupante no mundo de hoje é que tanta experiência social fique desperdiçada porque ocorre em lugares remo tos Experiências muito locais não muito conhecidas nem legitimadas pelas ciências sociais hegemônicas são hosti 24 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 25 lizadas pelos meios de comunicação social e por isso têm permanecido invisíveis desacreditadas A meu ver o pri meiro desafio é enfrentar esse desperdício de experiências sociais que é o mundo e temos algumas teorias que nos di zem não haver alternativa quando na realidade há muitas alternativas A gente vive lutando por coisas novas e eles sim pensam que há alternativas novas Então devemos ver como vamos enfrentar esse problema A outra questão importante desse trabalho com os sessenta pesquisadores foi que durante muito tempo nas ciências sociais realmente insistimos ainda hoje em uma discussão que nos parecia absolutamente central a discussão entre estrutura e ação Qual é a importância disso Temos nos preocupado muito com essas distin ções mas quase esquecemos que uma preocupação ex clusiva com as condições objetivas nos conduziu a uma armadilha desmoralizamos a vontade de transformação social Se as condições objetivas são tão poderosas como podemos transformar a sociedade Estamos diante de um grande problema como in tensificar a vontade Em outras culturas é mais fácil Pro vavelmente vocês se lembram de filmes da China ou da Índia em que com uma concentração de ioga os perso nagens podem por meio de uma intensificação enorme da vontade destruir um pedaço de madeira com a mão Ou seja não há condições objetivas se a vontade é forte Em nossa cultura ao contrário não temos possibilidade disso nossa vontade está muito relacionada às condições objetivas o que não me pareceria mal se complementás semos com outra reflexão que as ciências sociais têm dei xado de fora a distinção entre ação rebelde e ação confor mista Estou mais interessado nessa distinção e em como criar subjetividades rebeldes do que em ficar discutindo os conceitos de estrutura e ação a vida toda Esse também é um desafio que me levou a observar o aspecto epistemológico de que lhes quero falar hoje Depois do que foi dito fica claro que não podemos buscar a solução para alguns desses problemas nas ciências sociais porque se as usamos de maneira convencional elas se tomam parte do problema e não da solução Temos de reinventar as ciên cias sociais porque são um instrumento precioso depois de trabalhálas epistemologicamente devemos fazer com que elas sejam parte da solução e não do problema Ou seja não é um problema das ciências sociais mas sim do tipo de racionalidade subjacente a elas Com efeito a racionalidade que domina no Norte tem tido uma influência enorme em todas as nossas maneiras de pensar em nossas ciências em nossas concepções da vida e do mundo A essa racionalidade seguindo Gottfried Leibniz eu chamo indolente preguiçosa É uma racionalidade que não se exerce muito que não tem necessidade de se exercitar bastante daí por que fiz este livro publicado na Espanha chamado A crítica da razão indolente contra o des perdício da experiência Então o que estou tentando fazer aqui hoje é uma crítica à razão indolente preguiçosa que se considera única exclusiva e que não se exercita o su ficiente para poder ver a riqueza inesgotável do mundo Penso que o mundo tem uma diversidade epistemológica inesgotável e nossas categorias são muito reducionistas A razão indolente se manifesta de diferentes formas Duas me parecem particularmente importantes a razão metonímica e a razão proléptica A razão metonímica Metonimia é uma figura da teo ria literária e da retórica que significa tomar a parte pelo todo E essa é uma racionalidade que facilmente toma a parte pelo todo porque tem um conceito de totalidade feito de partes homogêneas e nada do que fica fora des 6 Boaventura de Sousa Santos A crítica da razão indolente contra o desperdício da experiencia São Paulo Cortez 2000 Mais especificamente a definição de sinédoque um tipo de meto nímia NE Boaventura de Sousa Santos 27 26 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social sa totalidade interessa Então tem um conceito restrito de totalidade construído por partes homogêneas Esse modo da razão indolente que chamo razão metonímica faz algo que a meu ver é um dos dois aspectos do des perdício da experiência contrai diminui subtrai o pre sente Ou seja temos uma concepção do presente que é contraída precisamente porque a concepção da raciona lidade que possuímos não nos permite ter uma visão am pla de nosso presente Um grande filósofo alemão Ernst Bloch dizia se vivemos sempre no presente por que ele é tão passageiro tão fugaz Em nosso conceito o presen te é um momento mas é um momento entre o passado e o futuro no qual vivemos sempre nunca vivemos no passado nem no futuro Então esse conceito de razão me tonímica contrai o presente porque deixa de fora muita realidade muita experiência e ao deixálas de fora ao tornálas invisíveis desperdiça a experiência A razão proléptica é a segunda forma Prolepse é uma figura literária bastante encontrada em romances nos quais o narrador sugere claramente a idéia de que conhece bem o fim mas não vai contálo É conhecer no presente a história futura Nossa razão ocidental é muito proléptica no sentido de que já sabemos qual é o futuro o progresso o desenvolvimento do que temos É mais crescimento eco nômico é um tempo ideal linear que de alguma maneira permite uma coisa espantosa o futuro é infinito A meu ver expande demais o futuro A razão indolente então tem essa dupla característica como razão metonímica contrai diminui o presente como razão proléptica expan de infinitamente o futuro E o que vou lhes propor é uma estratégia oposta expandir o presente e contrair o futuro Ampliar o presente para incluir nele muito mais experiên cias e contrair o futuro para preparálo Vocês viram essa coisa espantosa que é a discre pãncia entre o nosso futuro individual e o futuro de nossa sociedade Sabemos que nosso futuro é limitado porque nossa vida é limitada por isso tanto quanto podemos cuidamos de nossa saúde de nossa alimen tação cuidamos de nosso futuro porque ele é limitado Com a sociedade não ocorre o mesmo não é necessário cuidar do futuro da sociedade porque ele é infinito O que estou propondo é visarmos o futuro de nossas so ciedades quase como se fosse nosso futuro pessoal É preciso contrair o futuro e ao mesmo tempo ampliar o presente É um procedimento epistemológico que es pero possamos ver juntos como fazer Vamos começar pela razão metonímica ou seja por essa idéia de totalidade que é muito reducionista porque contrai o presente ao deixar de fora muita realidade que não é considerada relevante e que se desperdiça Baseia se em duas idéias uma delas é a simetria dicotômica que esconde sempre uma hierarquia Vivemos em um conheci mento preguiçoso que é por natureza um conhecimento dicotômico homemmulher nortesul culturanatureza branconegro São dicotomias que parecem simétricas mas sabemos que escondem diferenças e hierarquias Podemos nos perguntar se na China ou na Índia há uma racionali dade mais ampla Eu respondo que sim pois não têm o mesmo tipo de racionalidade A questão é para onde nos conduz uma racionalidade tão estreita como a nossa Uma coisa é clara nossas formas de racionalidade emergem da periferia do mundo Vocês têm de ver que há uma angústia uma inquietude no Ocidente ser a perife ria do Oriente O conhecimento oriental é muito mais glo bal mais holístico é totalidade não é dicotômico Todas essas dicotomias são vistas de outra maneira no Oriente porque não existem como dicotomias existem como par tes que são articuladas em totalidades cósmicas muito mais amplas em multiplicidades de tempos tempos circulares tempos lineares tempos de metempsicose ou seja da reencarnação É uma racionalidade mais comple xa que vemos totalmente limitada por nossa forma de 28 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 29 racionalidade Nossa racionalidade se baseia na idéia da transformação do real mas não na compreensão do real E este é nosso problema hoje a transformação sem compreensão está nos levando a situações de desastre Um grande filósofo alemão Franz Wieacker dizia a ciên cia ocidental faz perguntas mas não pode se perguntar sobre o fundamento de suas perguntas Isso me parece bastante verdadeiro para as ciências sociais Então a ra zão metonímica tem essa dupla idéia das dicotomias e das hierarquias por isso não é possível pensar fora das totalidades não posso pensar o sul sem o norte a mu lher sem o homem não posso pensar o escravo sem o amo Mas o que devemos inquirir é se nessas realidades não há coisas que estão fora dessa totalidade o que há na mulher que não depende da relação com o homem o que há no sul que não depende da relação com o norte o que há no escravo que não depende da relação com o amo Ou seja pensar fora da totalidade Não é fácil mas é o que proponho porque essas totalidades de redução nos têm conduzido a essa contradição do presente Como se faz Em que consiste a contração do presen te Fazse por meio da redução da diversidade da realidade a alguns tipos concretos muito limitados reduzidos de realidade Como se pode demonstrar que realmente há muitas outras realidades fora dessa realidade Pro ponho para combater a razão metonímica utilizar uma Sociologia das Ausências O que isso quer dizer Que muito do que não existe em nossa realidade é produzido ativamente como nãoexistente e por isso a armadilha maior para nós é reduzir a realidade ao que existe Assim de imediato compartimos essa racionalidade preguiçosa que realmente produz como ausente muita realidade que poderia estar presente A Sociologia das Ausências é um procedimento transgressivo uma sociologia insurgente para tentar mostrar que o que não existe é produzido ativamente como nãoexistente como uma alternativa nãocrível como uma alternativa descartável invisível à realidade hegemônica do mundo E é isso o que produz a contra dição do presente o que diminui a riqueza do presente Como se produzem as ausências Não existe uma ma neira única mas cinco modos de produção de ausências em nossa racionalidade ocidental que nossas ciências sociais compartem A primeira é a monocultura do saber e do rigor a idéia de que o único saber rigoroso é o saber científico por tanto outros conhecimentos não têm a validade nem o rigor do conhecimento científico Essa monocultura re duz de imediato contrai o presente porque elimina mui ta realidade que fica fora das concepções científicas da sociedade porque há práticas sociais que estão baseadas em conhecimentos populares conhecimentos indígenas conhecimentos camponeses conhecimentos urbanos mas que não são avaliados como importantes ou rigoro sos E como tal todas as práticas sociais que se organi zam segundo esse tipo de conhecimentos não são criveis não existem não são visíveis Essa monocultura do rigor baseiase desde a expansão européia em uma realidade a da ciência ocidental Ao constituirse como monocultura como a soja destrói outros conhecimentos produz o que chamo epis temicídio a morte de conhecimentos alternativos Reduz realidade porque descredibiliza não somente os conheci mentos alternativos mas também os povos os grupos so ciais cujas práticas são construídas nesses conhecimentos alternativos Qual é o modo pelo qual essa cultura cria ine xistência A primeira forma de produção de inexistência de ausência é a ignorancia A segunda monocultura é a do tempo linear a idéia de que a história tem um sentido uma direção e de que os países desenvolvidos estão na dianteira E como estão na dianteira tudo o que existe nos países desenvolvidos Boaventura de Sousa Santos 31 30 Renovar a teoria critica e reinventar a emancipação social é por definição mais progressista que o que existe nos países subdesenvolvidos suas instituições suas formas de sociabilidade suas maneiras de estar no mundo Esse conceito de monocultura do tempo linear inclui o concei to de progresso modernização desenvolvimento e agora globalização São termos que dão a idéia de um tempo li near no qual os mais avançados sempre estão na dianteira e todos os países que são assimétricos com a realidade dos países mais desenvolvidos são considerados atrasados ou residuais Então a segunda forma de produção de ausên cias é a residual o que tem sido chamado prémoderno simples primitivo selvagem etc Já se pode observar qual é a implicação dessa monocultura nesse modelo é impos sível pensar que os países menos desenvolvidos possam ser mais desenvolvidos que os desenvolvidos em alguns aspectos Podemse pensar alguns aspectos que são total mente funcionais para os países do Norte os países menos desenvolvidos podem por exemplo ter paisagens melho res para o turismo mas nada mais A terceira monocultura é a da naturalização das dife renças que ocultam hierarquias das quais a classificação racial a étnica a sexual e a de castas na Índia são as mais persistentes Ao contrário da relação capitaltra balho aqui a hierarquia não é a causa das diferenças mas sua conseqüência porque os que são inferiores nessas classificações naturais o são por natureza e por isso a hierarquia é uma conseqüência de sua inferioridade desse modo se naturalizam as diferenças Esta é outra característica da racionalidade preguiçosa ocidental não sabe pensar diferenças com igualdade as diferen ças são sempre desiguais Por conseguinte o terceiro modo de produzir ausência é inferiorizar que é uma maneira desqualificada de alternativa ao hegemônico precisamente por ser inferior A quarta monocultura de produção de ausência é a monocultura da escala dominante A racionalidade meto nímica tem a idéia de que há uma escala dominante nas coisas Na tradição ocidental essa escala dominante tem tido historicamente dois nomes universalismo e ago ra globalização O que é o universalismo Simplesmente é toda idéia ou entidade que é válida independentemente do contexto no qual ocorre Por sua vez a globalização é uma identidade que se expande no mundo e ao se ex pandir adquire a prerrogativa de nomear como locais as entidades ou realidades rivais Ou seja não há globaliza ção sem localização Quando você localiza o McDonalds localiza suas comidas tornaas étnicas locais E não há universalismo sem particularismo E aqui nessas duas formas há uma maneira de criar ausências que é o par ticular e o local A realidade particular e local não tem dignidade como alternativa crível a uma realidade global universal O global e universal é hegemônico o particu lar e local não conta é invisível descartável desprezível A última monocultura é a monocultura do produti vismo capitalista que se aplica tanto ao trabalho como à natureza É a idéia de que o crescimento econômico e a produtividade mensurada em um ciclo de produção determinam a produtividade do trabalho humano ou da natureza e tudo o mais não conta Essa é uma maneira contrária a toda outra forma de organizar a produtivi dade Por exemplo para os indígenas ou os camponeses a produtividade da terra não é definida em um ciclo de produção mas em vários se a terra está produtiva este ano no ano seguinte ela não é cultivada para que des canse e em seguida voltamos a cultivála Toda a selva está organizada dessa maneira Então há outra lógica produtiva que não conta A lógica produtiva é uma no vidade da racionalidade ocidental existe há quase cem anos quando nasceram os produtos químicos na agri cultura e a terra passou a ser produtiva em um ciclo de produção porque os fertilizantes mudaram p conceito de produtividade da natureza apareceu ao mesmo Boaventura de Sousa Santos 33 32 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social tempo que o conceito de produtividade no trabalho Tudo o que não é produtivo nesse contexto é considera do improdutivo ou estéril Aqui a maneira de produzir ausência é com a improdutividade 1lá cinco formas de ausência que criam essa razão metonímica preguiçosa indolente o ignorante o resi dual o inferior o local ou particular e o improdutivo Tudo o que tem essa designação não é uma alternativa crível às práticas científicas avançadas superiores glo bais universais produtivas Essa idéia de que não são críveis gera o que chamo a subtração do presente porque deixa de fora como nãoexistente invisível descredibi lizada muita experiência social Se queremos inverter essa situação por meio da Sociologia das Ausências temos de fazer que o que está ausente esteja presente que as experiências que já existem mas são invisíveis e nãocríveis estejam disponíveis ou seja transformar os objetos ausentes em objetos presentes Nossa sociologia não está preparada para isso não sabemos trabalhar com objetos ausentes trabalhamos com objetos presentes essa é a herança do positivismo Estou propondo pois uma Sociologia insurgente Se é assim essa falta essa ausência é um desperdício de experiência A maneira pela qual procede a Sociologia das Ausências é substituir as monoculturas pelas ecolo gias e o que lhes proponho são cinco ecologias em que podemos inverter essa situação e criar a possibilidade de que essas experiências ausentes se tornem presentes As cinco ecologias são as seguintes A ecologia dos saberes Não se trata de descredibili zar as ciências nem de um fundamentalismo essencia lista anticiência como cientistas sociais não podemos fazer isso O que vamos tentar fazer é um uso contra hegemônico da ciência hegemônica Ou seja a possibili dade de que a ciência entre não como monocultura mas como parte de uma ecologia mais ampla de saberes em que o saber científico possa dialogar com o saber laico com o saber popular com o saber dos indígenas com o saber das populações urbanas marginais com o saber camponês Isso não significa que tudo vale o mesmo Discutiremos isso com o tempo Somos contra as hierar quias abstratas de conhecimento das monoculturas que dizem por princípio a ciência é a única não há outros saberes Vamos iniciar nesta ecologia afirmando que o importante não é ver como o conhecimento representa o real mas conhecer o que determinado conhecimen to produz na realidade a intervenção no real Estamos tentando uma concepção pragmática do saber Por quê Porque é importante saber qual é o tipo de intervenção que o saber produz Não há dúvida de que para levar o homem ou a mulher à Lua não há conhecimento melhor do que o científico o problema é que hoje também sabe mos que para preservar a biodiversidade de nada serve a ciência moderna Ao contrário ela a destrói Porque o que vem conservando e mantendo a biodiversidade são os conhecimentos indígenas e camponeses Seria apenas coincidência que 80 da biodiversidade se encontre em territórios indígenas Não É porque a natureza neles é a Pachamama não é um recurso natural É parte de nossa sociabilidade é parte de nossa vida é um pensamento antidicotômico Então o que tenho de avaliar é se se vai à Lua mas também se se preserva a biodiversidade Se queremos as duas coisas temos de entender que necessi tamos de dois tipos de conhecimento e não simplesmen te de dm deles É realmente um saber ecológico o que estou propondo A segunda é a ecologia das temporalidades O im portante é saber que embora haja um tempo linear também existem outros tempos Os camponeses por exemplo têm tempos estacionais muito importantes Divindade inca que se identifica com a Mãe Terra N T 34 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 35 Em comunidades da Africa o tempo dos antepassados é fundamental Vivi a experiência com as autoridades tradicionais na África se estamos em uma reunião os antepassados fazem parte dessa reunião não estão an tes estão presentes E vivi isso também na selva com os ticunas na Colômbia e no Brasil É outra concepção do tempo porque os que estão antes estão conosco é uma concepção muito mais rica Devemos entender essa ecologia de temporalidades para ampliar a con temporaneidade porque o que fizemos com a nacionali dade metonímica foi pensar que encontros simultâneos não são contemporãneos O camponês africano ou la tinoamericano pode se encontrar com o executivo do Banco Mundial é um encontro simultâneo mas não contemporâneo porque o camponês latinoamericano ou africano é residual e o executivo é avançado O importante então é reconhecer que o camponês é à sua maneira tão contemporâneo como o executivo e eliminar o conceito de residualidade Para isso é pre ciso deixar que cada forma de sociabilidade tenha sua própria temporalidade porque se vou reduzir tudo à temporalidade linear estou afastando todas as outras coisas que têm uma lógica distinta da minha Quando o subcomandante Marcos diz pudemos ficar calados durante quinhentos anos para nós é incompreensível Também posso lhes contar histórias maravilhosas de diferentes tipos de temporalidade que mostram como é realmente necessário ter essa ecologia Em um projeto no qual estávamos trabalhando na Colômbia havia uma luta muito grande pela exploração de petróleo na Sierra Nevada de Santa Marta onde vivem os uwas um povo indígena que ameaçou se suicidar coletivamente caso explorassem o petróleo em suas terras por uma razão muito simples o petróleo é sangue da terra e o sangue da terra é seu próprio sangue sem sangue não se vive No século XVII quando os espanhóis tentaram colonizar essa região as famílias dos uwas realmente se mataram pularam de um penhasco no lago e ficou só um grupo de famílias para manter a tradição Essa era uma amea ça muito grande e em certo momento o ministro do Meio Ambiente da Colômbia decidiu falar com os taitas anciões os chefes indígenas Chegou de helicóptero à Sierra Nevada para se reunir com eles e averiguar por que não aceitavam a exploração do petróleo dizendo que eram territórios sagrados Na reunião o ministro falou e os taitas ficaram calados O ministro pergun tou por que não falavam se era porque não queriam falar com ele Até que um disse Não nós queremos o problema é que temos de consultar os antepassados O ministro perguntou quanto tempo levaria isso e o taita respondeu Veja depende da lua isso nós con sultamos à noite E quem conhece sua etnologia sabe que isso é verdade que não era uma farsa era o que pensavam O ministro disse que ele não podia ficar até a noite que o helicóptero não tinha luzes suficientes que já havia perdido duas horas de seu tempo conversando Foi embora e os taitas continuaram sem falar E claro no dia seguinte os jornais de Bogotá diziam Os taitas não querem falar com o ministro Queriam falar sim mas em seu tempo Então a ecologia das temporalida des é a meu ver imprescindível A terceira é a ecologia do reconhecimento O procedi mento que proponho é descolonizar nossas mentes para poder produzir algo que distinga em uma diferença o que é produto da hierarquia e o que não é Somente deve mos aceitar as diferenças que restem depois que as hie rarquias forem descartadas Ou seja mulher e homem são distintos depois que fizermos uma sociologia ecoló gica para ver o que não está conectado com a hierarquia As diferenças que permanecerem depois de eliminarmos as hierarquias são as que valem Mais adiantç vamos fa lar do princípio de igualdade e do princípio da diferença Boaventura de Sousa Santos 37 36 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social A quarta é a ecologia da transescala muito importan te hoje para o FSM e para todo o nosso trabalho e que constitui a possibilidade de articular em nossos projetos as escalas Locais nacionais e globais Como cientistas sociais fomos criados na escala nacional como a política como tudo Os antropólogos tratavam um pouco o local os soció logos e os cientistas políticos o nacional Nesse quadro tudo o que é local será embrionário se puder conduzir ao nacional os movimentos locais são importantes se po dem tornarse nacionais Mas hoje temos de ser capazes de trabalhar entre as escalas articular análises de escalas locais globais e nacionais É muito difícil porque nunca observamos fenômenos nas ciências sociais Observamos escalas de fenômenos e por isso muitos dos discursos dos executivos ou das agências transnacionais têm uma esca la para ver os fenômenos que não é a nossa ou que não é a dos trabalhadores ou dos camponeses Portanto é preciso analisar como é possível ver através das escalas E finalmente há a ecologia dasprodutividades No domí nio da quinta lógica a lógica produtivista a Sociologia das Ausências consiste na recuperação e valorização dos sis temas alternativos de produção das organizações econô micas populares das cooperativas operárias das empresas autogestionadas da economia solidária etc que a ortodo xia produtivista capitalista ocultou ou desacreditou Os movimentos de camponeses pelo acesso à terra e à propriedade desta ou contra os megaprojetos de desenvol vimento por exemplo as grandes represas que obrigam o deslocamento de muitos milhares de pessoas movimentos urbanos pelo direito à moradia movimentos econômicos populares movimentos indígenas para defender ou recupe rar seus territórios históricos e os recursos naturais que ne les foram descobertos movimentos das castas inferiores da Índia com o objetivo de proteger suas terras e seus bosques movimentos pela sustentabilidade ecológica movimentos contra a privatização da água ou contra a privatização dos serviços de bemestar social todos eles baseiam suas pre tensões e lutas na ecologia das produtividades Quero me dedicar agora a analisar a crítica da razão proléptica As ecologias vão nos permitir dilatar o pre sente com muitas experiências que nos são relevantes agora vamos tentar contrair o futuro Substituir um in finito que é homogêneo que é vazio como dizia Walter Benjamin por um futuro concreto de utopias realis tas suficientemente utópicas para desafiar a realidade que existe mas realistas para não serem descartadas facilmente A crítica da razão proléptica é feita por ou tra sociologia insurgente a Sociologia das Emergências Enquanto a razão metonímica é confrontada com a So ciologia das Ausências a razão proléptica é enfrentada pela Sociologia das Emergências Tentaremos ver quais são os sinais as pistas latên cias possibilidades que existem no presente e que são si nais do futuro que são possibilidades emergentes e que são descredibilizadas porque são embriões porque são coisas não muito visíveis Nas ciências sociais por exem plo não gostamos das pistas dos sinais Trabalhamos com indicadores Mas os médicos na saúde trabalham com pistas sinais os detetives também Somos muito cé ticos a respeito das possibilidades da emergência Entre o nada e o tudo que é uma maneira muito estática de pensar a realidade eu lhes proponho o ainda não Ou seja um conceito intermédio que provém de um filósofo alemão Ernst Bloch o que não existe mas está emergin do um sinal de futuro Assim na Sociologia das Emergências temos de fa zer uma ampliação simbólica por exemplo de um pe queno movimento social uma pequena ação coletiva Às vezes somos culpáveis de descredibilizar Isto não é uma democracia local não tem sustentabilidade Ao contrário sem romantismos devemos buscar credibili zar ampliar simbolicamente as possibilidades de ver o 38 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 39 futuro a partir daqui A razão que é enfrentada pela So ciologia das Ausências torna presentes experiências dis poníveis mas que estão produzidas como ausentes e é necessário fazer presentes A Sociologia das Emergências produz experiências possíveis que não estão dadas por que não existem alternativas para isso mas são possíveis e já existem como emergência Não se trata de um futuro abstrato é um futuro do qual temos pistas e sinais temos gente envolvida dedi cando sua vida muitas vezes morrendo a essas inicia tivas A Sociologia das Emergências é a que nos permite abandonar essa idéia de um futuro sem limites e substi tuíla pela de um futuro concreto baseado nessas emer gências por aí vamos construindo o futuro O que estou propondo é um duplo procedimento ampliar o presente e contrair o futuro por meio de procedimentos e ferra mentas que estamos discutindo O último problema é que a Sociologia das Ausências e a Sociologia das Emergências vão produzir uma enor me quantidade de realidade que não existia antes Va mos nos confrontar com uma realidade muito mais rica ainda muito mais fragmentada mais caótica Como en contrar sentido em tudo isso Se nós mesmos estamos rechaçando o conceito de progresso como tempo linear como idéia de que há um sentido único da História é possível pensar um mundo novo sem estarmos seguros de que ele surgirá Não temos receitas para esse mun do Por isso já não se trata do conceito do socialismo científico é outra idéia muito mais aberta Tampouco é a idéia de Rosa Luxemburgo socialismo ou barbárie Rosa abriu a proposta de Marx ou seja a possibilidade do socialismo não é a única há a possibilidade da bar bárie e é preciso lutar para que uma delas seja a que se realize Nós estamos ainda mais abertos hoje dizemos que outro mundo é possível um mundo cheio de alter nativas e possibilidades Essa fragmentação vai nos levar a outra questão como gerar sentido a partir disso Qual seria a receita da razão indolente que temos compartido na ciência ociden tal Uma resposta simples seria vamos criar a teoria geral dessas coisas de todas essas experiências Eu lhes digo que não Não é possível hoje uma epistemologia geral não é possível hoje uma teoria geral A diversidade do mundo é inesgotável não há teoria geral que possa organizar toda essa realidade Estamos em um processo de transição e provavelmente o possível seja o que chamo um universa lismo negativo neste momento neste trajeto não neces sitamos de uma teoria geral Não é possível e tampouco desejável mas necessitamos de uma teoria sobre a impos sibilidade de uma teoria geral Estamos de acordo que nin guém tem a receita ninguém tem a teoria Isso vai criar outra maneira de entender outra ma neira de articular conhecimentos práticas ações cole tivas de articular sujeitos coletivos Mas não podemos permanecer com uma fragmentação total é necessário criar inteligibilidade recíproca no interior da pluralidade Como é possível articular por exemplo o movimento fe minista com o indígena ou com o camponês ou com os urbanos Não posso reduzir toda a heterogeneidade do mundo a uma homogeneidade que seria de novo uma to talidade que deixaria de fora muitas outras coisas Então não é possível a teoria geral Mas como produzir sentido Minha proposta é um procedimento de tradução A tradução é um processo intercultural intersocial Utilizamos uma metáfora transgressora da tradução lin güística é traduzir saberes em outros saberes traduzir práticas e sujeitos de uns aos outros é buscar inteligibi lidade sem canibalização sem homogeneização Nesse sentido tratase de fazer tradução ao revés da tradução lingüística Tentar saber o que há de comum entre um mo vimento de mulheres e um movimento indígena entre um movimento indígena e outro de afrodescendentes entre 40 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 41 este último e um movimento urbano ou camponês entre um movimento camponês da África e um da Ásia onde estão as distinções e as semelhanças Por quê Porque é preciso criar inteligibilidade sem destruir a diversidade Um exemplo simples os movimentos indígenas deste continente nunca falam de emancipação social mas de dig nidade e respeito que são dois conceitos básicos O mo vimento operário ainda fala de emancipação e de luta de classes As feministas usam muito o conceito de liberação também os afrodescendentes É necessário não preferir uma palavra a outra mas traduzir dignidade e respeito por emancipação ou por lutas de classes ver quais são as dife renças e quais as semelhanças Por quê Porque há muitas linguagens para falar da dignidade humana para falar de um futuro melhor de uma sociedade mais justa Cremos que esse é o princípio fundamental da epistemologia que lhes proponho e que chamo a Epistemologia do Sul que se baseia nesta idéia central não há justiça social global sem justiça cognitiva global ou seja sem justiça entre os co nhecimentos Portanto é preciso tentar uma maneira nova de relacionar conhecimentos é por isso que lhes proponho o procedimento da tradução Por exemplo com o concei to de direitos humanos faço uma tradução intercultural entre este conceito que é de fato um conceito ocidental o conceito de umma do Isla e o conceito de dharma8 no hin duísmo são três conceitos distintos para falar da dignidade Provém da cultura muçulmana e significa unirse a uma nova co munidade a umma ou comunidade de crenças Significa também a aceitação de um conjunto de categorias de direitos e deveres que supera a solidariedade tribal ou étnica Dharma significa proteção Par meio da prática os ensinamen tos do Buda nos protegem de sofrimentos e problemas Nessa fi losofia todos os problemas que experimentamos na vida diária originamse na ignorância e o método para eliminar a ignorância é a prática do dharma wwwaboutdharmacom humana Todos têm problemas todos são incompletos mas é preciso fazer a tradução entre eles examinar sua re latividade sua incompletude Em nossa concepção por exemplo há uma simetria enganadora entre direitos e deveres porque geralmente em nossa cultura falamos de direitos humanos mas não de deveres humanos A simetria é que não podemos con ceder direitos àqueles dos quais não podemos exigir de veres só podemos outorgar direitos a quem tem deveres Por isso em nossa cultura de direitos humanos a nature za não tem direitos porque tampouco tem deveres As gerações futuras não têm direitos porque tampouco têm deveres Isso não é assim no conceito de umma nem no de dharma mas esses conceitos têm outros problemas vêem a dignidade em termos coletivos e também é pre ciso que vejam em termos individuais Nunca vi uma so ciedade sofrer fisicamente homens e mulheres sofrem há um elemento individual no sofrimento humano que é inegável e isso deve ser visto pelos direitos humands Não há nenhuma cultura que seja completa e então é preciso fazer tradução para ver a diversidade sem re lativismo porque os que estamos comprometidos com mudanças sociais não podemos ser relativistas Mas é preciso captar toda a riqueza para não desperdiçar a ex periência já que só sobre a base de uma experiência rica não desperdiçada podemos realmente pensar em uma so ciedade mais justa Esse procedimento de tradução é um processo pelo qual vamos criando e dando sentido a um mundo que não tem realmente um sentido único porque é um sentido de todos nós não pode ser um sentido que seja distribuído criado desenhado concebido no Norte e imposto ao restante do mundo onde estão três quartos das pessoas É um processo distinto e por isso o chamo a Epistemologia do Sul que tem conseqüências políticas e naturalmente teóricas para criar uma novaconcepção de dignidade humana e de consciência humana Boaventura de Sousa Santos 43 42 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social DEBATE COM O PÚBLICO Pelo que entendi a metonimia foi definida a partir da lingüís tica e tem sido reformada pelo estruturalismo e pela psicaná lise Isso tem que ver com propor as relações por contigüidade onde o que se deixa de fora é o que não é contíguo suponho que por isso o senhor diz que é reducionista Se é assim toda a proposição que fez sobre levar em conta a ausência ampliar o universo simbólico do presente e trazer o futuro tem muito que ver para mim com a metáfora inclusive com a idéia de tradução onde não há uma equivalência unívoca entre um discurso e outro mas sim que se trata de encontrar seme lhanças e diferenças Eu me perguntava então se se pode falar nesse sentido de uma racionalidade metafórica Eu tenho alguma dificuldade com a idéia de que pos samos falar de uma racionalidade metafórica sobretudo porque normalmente em nosso tempo de transição essa é uma maneira de desqualificar a racionalidade é metafórica não é real não é literal Penso de maneira distinta por outro caminho porque me parece que es ses são demasiado ocidentais dentro de uma pluralidade epistemológica de um saber que é o científico e eu estou buscando uma ecologia mais ampla do saber Todo o co nhecimento começa por ser metafórico Quando falamos de corrente elétrica algum de nós se dá conta de que isso é uma metáfora Mas originalmente é quando inventa ram a eletricidade não sabiam como chamála o que co nheciam era a corrente dos rios que lhes pareceu seme lhante e passouse metaforicamente a chamála assim e hoje está literalizada Não se produz ciência sem metá foras meu debate com os positivistas muito duro é pre cisamente porque penso que a própria ciência da vida a biologia por exemplo não funciona sem metáforas Não se devem desperdiçar experiências se há tradução de uma origem lingüística se é um conceito que além dis so foi utilizado de maneira hegemônica é outra reprodu ção da razão preguiçosa Traduzir assim é canibalizar e o que estou propondo é uma tradução recíproca eu tra duzo e você traduz e nos traduzimos reciprocamente É uma maneira de buscar os conceitos que existem e trans formálos Pertence à teoria geral da linguagem Não po demos pensar no novo senão com conceitos do velho da linguagem do que temos e ainda quando queremos no mear coisas novas devemos fazêlo a partir de coisas que são velhas É preciso reconhecer isso sem limitar nossa capacidade de imaginação epistemológica O que estou propondo é um exercício de imaginação epistemológica e de imaginação democrática as duas são formas da ima ginação sociológica do século XXI Se temos de trabalhar para que dialoguem duas formas de conhecimento e às vezes queremos as duas coisas a No diversidade e chegar à Lua o que ocorre se uma coisa destrói a outra Como é possível o diálogo Essa é uma questão importante Quando há incompa tibilidade há formas de incompatibilidade que são falsas e outras que são reais Um exemplo de incompatibilidade falsa nos anos 1960 houve na Índia e outros países uma revolução verde uma tentativa de incrementar a pro dução agrícola por meio da substituição dos grãos que produziam milho e arroz por outros que consideravam mais produtivos e assim também buscar outra forma de estrutura agrária e o uso de agroquímicos Em Bali uma ilha da Indonésia havia um sistema de irrigação do ar roz ancestral milenar organizado e administrado pelos sacerdotes da deusa Dewi Danu que é a deusa das águas do hinduísmo nessa região Quando chegaram os agentes da revolução verde ajudados pelos dirigentes do Banco Mundial disseram que essa forma de irrigação era ilógi ca irracional parte do que os antropólogos chamavam Boaventura de Sousa Santos 45 44 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social o culto ou magia do arroz ou seja que era mágica Di ziam Como vamos ter uma agricultura capitalista forte com sacerdotes administrando o sistema de irrigação Desmantelaramno todo e o substituíram por um sistema tecnológico com engenharia de irrigação nova foi um de sastre total porque nas montanhas de Bali é muito difícil organizar um sistema diferente do tradicional A perda da produção foi tão desastrosa que as autoridades da In donésia decidiram eliminar o novo sistema de irrigação e voltar ao anterior Aí alguns cientistas das novas ciências é parte da disputa epistemológica que temos que são as ciências da complexidade as teorias do caos os sistemas autoorganizados os novos modelos de ação computacio nal fizeram um estudo sobre os sistemas de irrigação de Bali por meio da modelação computacional e chegaram à conclusão de que o sistema tradicional era o melhor para essa realidade Ou seja tratavase de uma falsa incompa tibilidade foi um conhecimento científico deficiente e er rado o que declarou a incompatibilidade Mas há outras incompatibilidades reais e penso que não existe outra possibilidade senão tratar de conhecer as diferenças de poder entre cada grupo que está por trás de cada prática A epistemologia que proponho faz uma distinção muito cla ra entre critérios cognitivos e critérios éticopolíticos mas os dois estão sempre presentes Os critérios cognitivos são os que administram certa forma de saber mas decidir so bre o tipo de intervenção no real não é cognitivo essa é a armadilha dos engenheiros dos técnicos que dizem Esta é a única solução técnica Não é produto de um critério ético e político É uma disputa política e se realmente houvesse uma incompatibilidade entre ir à Lua e preser var a biodiversidade deveríamos ter um debate global na Terra para dizer se necessitamos disto ou daquilo aonde vai o dinheiro qual é o reconhecimento que vamos dar a cada uma são disputas políticas mais globais que necessi tamos trazer à epistemologia Não há outra possibilidade por meio da argumentação não podemos ter argumentos automáticos que digam este é o que vale porque está sus tentado por conhecimentos científicos porque já sabe mos em demasia que as coisas não são assim Penso que o que necessitamos como diria John Dewey é de outro diálogo da humanidade Trabalhamos com organizações camponesas e ficamos bastante atraídos pela sua proposta de tradução mas acha mos que de alguma maneira continuamos compreendendo e produzindo em nosso contexto de produção e ainda que pre tendamos tornar visíveis essas experiências silenciadas esses saberes calados apesar disso continuamos escrevendo em contextos nos quais somos sempre sociólogos politicólogos Escrevemos para outros cientistas sociais Às vezes quando nos encontramos com os camponeses temos justamente que traduzira nós mesmos Então nessa aposta de uma teoria da tradução não seria preciso também traduzir ou ressignificar nossos próprios espaços de produção dessa teoria da tradu ção Temos de continuar nas universidades Qual o espaço acadêmico mas também social porque senão em seus ter mos não seria viável da teoria da tradução Agradeço muito a pergunta porque estou trabalhan do bastante nesta questão que é muito séria como fazer a tradução de maneira que não traia os objetivos da tradu ção fazer uma Epistemologia do Sul que não acabe sendo outra forma de Epistemologia do Norte Devemos ficar totalmente vigilantes Penso que esse novo conhecimen to tem de ser produzido de outra forma muito mais hori zontal muito mais autóctone muito mais compartilhada e provavelmente as universidades tenham de passar por uma reestruturaçäo muito forte E não sei se conseguirão fazêlo Por isso propus no FSM uma Universidade Popu 46 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 47 lar dos Movimentos Sociais 9 que é a tentativa de organi zar nesse âmbito um encontro sistemático entre cientis tas sociais e líderes dos movimentos para que possamos realmente pensar com os movimentos os dirigentes os ativistas em outros contextos que não os eruditos Mas não se muda o mundo de uma vez é importante fazer as duas coisas trabalhar dentro da universidade convencio nal e criar instituições paralelas Durante muito tempo vamos ter de trabalhar assim Isso é característico de um tempo de transição trabalhar o velho para renoválo até o limite A universidade tem um máximo de consciência possível é preciso explorálo E podese fazer ecologia de saberes dentro da universidade Para mim é a extensão universitária ao contrário a extensão convencional é le var a universidade para fora a ecologia de saberes é trazer outros conhecimentos para dentro da universidade uma nova forma de pesquisaação em que a sociologia latino americana tem tradições muito fortes que infelizmente têm sido bastante descartadas pelas novas gerações de cientistas sociais deste continente Então você tem razão devemos encontrar outros espaços espaços públicos não estatais onde compartilhar conhecimentos fazer permu ta de conhecimentos e análises Ontem estava em uma reunião com movimentos sociais daqui onde em quinze minutos cada um dos líderes apresentou seu trabalho e eu não quis falar mais de quinze minutos para não tirar tempo do debate porque habitualmente o conhecimen to teórico erudito tem prioridade sobre o conhecimento prático local O debate posterior foi maravilhoso Penso que é preciso encontrar formas que incluam mais debate Os novos modos de produção de conhecimento exigem outros espaços Eu falava também com estudantes de di reito que disseram haver professores muito progressistas que mantêm relação com movimentos sociais e outros q Ver wwwcesucpt mas que nas aulas são muito conservadores Por que essa esquizofrenia É preciso trazer à aula o direito como um fenômeno político de alta intensidade e contraditório como um campo de disputa Vários de seus conceitos parecem próximos do conceito de complexidade de Morin É isso mesmo Claro que o pensamento de Edgard Morin tem sido muito importante para nós acredito que na América Latina também Procuramos partir daí com outros insu mos com outras preocupações porque provavelmente o que estou indagando agora não é o mesmo que busca va Morin quando começou Todos temos os problemas de nosso tempo Eu estou buscando uma epistemologia adequada para entender o FSM uma globalização alter nativa os conhecimentos que se juntam e não estou pensando somente em tradução entre diferentes cultu ras e sim por exemplo entre poesia e ciência Veja o que aconteceu quando estivemos em Mumbai para o IV Fó rum Social Mundial qual é a grande forma de comunicar a luta quando não se compartilha a língua Há milhares de línguas na Índia os 33 mil dalits as castas mais in feriores cantavam dançavam a música era uma expres são de emancipação social Nossa cultura é totalmente logocêntrica Por isso o ministro da Colômbia teve de ir embora porque o silêncio não nos cai bem somos uma cultura de palavras Há outras culturas que cultivam o silêncio ou outras formas a poesia a espiritualidade Como vamos ver a questão da espiritualidade por exem Os dalits são a casta que ocupa o lugar mais baixo na pirâmide so cial indiana A eles cabem os trabalhos considerados degradantes ou indignos por outras castas N T Boaventura de Sousa Santos 49 48 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social plo com tantos movimentos que são progressistas que lutam contra a indignidade do capitalismo que querem uma sociedade nãocapitalista mas formulam suas rei vindicações em termos que parecem religiosos se você vem de uma cultura onde houve laicização e seculariza ção onde ser religioso pode ser reacionário a menos que se trate da Teologia da Libertação que agora com este papa será ainda mais difícil Em nossas ciências sociais não somos capazes de ver a espiritualidade porque não há indicadores para isso como não há indicadores para a felicidade mas necessitamos de uma epistemologia que dê conta disso O que é novo ao contrário da mobiliza ção moderna sobretudo a sindical ou dos partidos é que hoje a mobilização exige razões para se mobilizar não pode ser um comitê ou direção central quem decide não as pessoas querem discutir razões e buscar razões para a mobilização e exigem outra epistemologia O au toritarismo da ciência positivista estava de certa maneira conectado com o autoritarismo em política inclusive na esquerda Então tudo isso tem de ser construído ao mes mo tempo lentamente e correndo riscos Não temos ou tra opção são nossos corpos que estão incorporados em uma história E a materialidade de nosso corpo a partir da qual tentamos pensar o que está fora do corpo Só esse é o limite do que podemos pensar Como solucionar o grande problema de dar nomes de ser mos fiéis à novidade com os velhos termos com que lidamos Essa é a pergunta mais dilemática Não há possi bilidade é preciso haver uma vigilância epistemológica muito grande é preciso discutir é preciso ver onde ne cessitamos criar conceitos novos conceitos nômades é preciso lutar sempre contra o reducionismo Existem três grandes erros dessa razão indolente que domina a epis temologia positivista o reducionismo o determinismo e o dualismo Seus três grandes eixos Devese lutar contra cada um deles e é preciso fazer transgressões Muitas vezes buscamos o novo nos interstícios o que está entre as realidades porque a realidade lingüística como a rea lidade social como a de nossas subjetividades é um pa limpsesto Ou seja é um conjunto de estratos geológicos de nossa sociabilidade que estão articulados de maneira muito complexa Muitas vezes precisamos migrar de um campo a outro de um estrato a outro de uma linguagem a outra de uma ciência a outra a transdisciplinaridade é em parte isso Temos ainda de buscar conceitos que venham de outros conhecimentos Por exemplo se não quero traduzir desenvolvimento em uma discussão com pessoas da Índia tenho de começar com o concei to de swadeshi que era o conceito de Gandhi para essa idéia muito mais amplo porque é um conceito também religioso não é só econômico como o nosso tem que ver com se os seus deuses não o agradam invente outros mas seus O hinduísmo é a religião mais democrática não é necessário um papa para beatificar ou santificar eles podem como comunidade ter seus próprios santos e suas próprias divindades Falam de uma lógica de proxi midade mas também espiritual e então não é fácil tra duzir Se uso o conceito de swadeshi vão me dizer Você é gandhiano Temos sempre uma grande ansiedade de pertença e isso também torna difícil pensar o novo Capítulo II Uma nova cultura política emancipatória As grandes teorias às quais nos acostumamos de alguma maneira o marxismo e outras correntes e tradições não parecem nos servir totalmente neste momento Servemnos em parte e acredito que hoje há uma volta ao marxismo em todo o mundo Isso não me surpreende porque a crise do marxismo de alguma maneira coincidiu com a marxização do mundo a idéia de que o mundo era cada vez mais pa recido com o que Marx havia diagnosticado As difi culdades aparecem ao passarmos do diagnóstico para uma visão do futuro questão que rio marxismo nos traz muitos problemas Mas há outras dificuldades O materialismo his tórico converteu o capitalismo em um fator de pro gresso em uma fase de progresso da humanidade e isso nos trouxe problemas pelo fato de essa idéia ter deixado de fora uma questão que para nós é fun damental a questão colonial O colonialismo não tem sido bem tratado nessa teoria e além disso em alguns textos de Marx vemos uma justificação so bretudo na Índia do colonialismo como fator do ca pitalismo colonialismo é capitalismo e é muito im portante que recordemos isso 52 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 53 A outra conseqüência foi tornar invisíveis esconder outras formas de opressão de discriminação e de exclu são que para nós hoje são muito importantes o racismo o sexismo as castas etc Outra conseqüência problemá tica é que o marxismo de alguma maneira compartilha o ideal da unidade do saber da universalidade do saber científico e de sua primazia Se propomos hoje a neces sidade de uma ecologia de saberes estamos falando de algo distinto Finalmente toda a teoria crítica tem sido bastante monocultural e hoje estamos cada dia mais conscientes da realidade intercultural de nosso tempo Por essa razão chegamos à conclusão de que provavel mente a razão que critica não pode ser a mesma que pen sa constrói e legitima o que é criticável Necessitamos de outro tipo de racionalidade e aí começamos a pensar um tipo de racionalidade mais ampla precisamente para reinventar a teoria crítica de acordo com nossas necessidades hoje Uma coisa clara para nós é que não há conhecimento geral tampouco há ignorância geral Somos ignorantes de certo conhe cimento mas não de todos Todo conhecimento se dis tingue por seu tipo de trajetória que vai de um ponto A chamado ignorância a um ponto B chamado saber e os saberes e conhecimentos se distinguem exatamente pela definição das trajetórias pelos pontos A e B Po demos dizer que na matriz da modernidade ocidental há dois modelos dois tipos de conhecimento que po dem se distinguir da seguinte maneira o conhecimento de regulação e o conhecimento de emancipação A tensão política é também epistemológica Tanto o conhecimentoregulação CR como o co nhecimentoemancipação CE têm um ponto A que é de ignorância e um ponto B que é de saber A ignorância no CR é caos ser ignorante é viver em um caos da rea lidade incontrolada e incontrolável seja na natureza ou na sociedade e conhecer saber é ordem A trajetória do CR vai do caos à ordem Saber é pôr ordem nas coisas na realidade na sociedade Mas houve na matriz da socie dade ocidental outro conhecimento o CE que tem um ponto A chamado colonialismo ou seja a incapacidade de reconhecer o outro como igual a objetivação do outro transformar o outro em objeto e o ponto B que é o que poderíamos chamar autonomia solidária Aqui o conhecer vai do colonialismo à autonomia solidária Esses dois modelos estão inscritos na matriz da modernidade ocidental mas o CR dominou por inteiro quando a modernidade ocidental passou a coincidir com o capitalismo As potencialidades da modernidade oci dental pertencem à matriz colonial mas poderiam ima ginar outros horizontes distintos o capitalismo e o so cialismo são um bom exemplo Entretanto o CR passou a dominar e quando o fez foi recodificando o CE em seus próprios termos O que era conhecimentosaber auto nomia solidária passou a ser no CE uma forma de caos a solidariedade entre as classes é perigosa a solidariedade no povo é uma forma de caos que é necessário controlar portanto o que era conhecimento passou a ser no CR ignorância E ao contrário o que era ignorância no CE passa a ser saber no CR ou seja o colonialismo pas sa a ser uma forma de ordem Essa é a maneira com que tento ver o que se passou e por que é necessário reinventar o conhecimentoeman cipação Porque de alguma maneira a ciência moderna se desenvolveu totalmente no quadro do conhecimentore gulação que recodificou canibalizou perverteu as possi bilidades do CE E é por isso que o CE tem de ser uma ecologia de saberes não pode ser simplesmente o saber científico moderno que temos este é importante ne cessário mas tem de estar incluído em uma ecologia de saberes mais ampla É muito importante fazer essa mu dança de uma epistemologia baseada somente em uma forma de conhecimento para outra de ecologia Quando Boaventura de Sousa Santos 55 54 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social há uma ecologia de saberes a ignorância não é necessa riamente um ponto de partida pode ser um ponto de chegada Quando um estudante da Índia entra na uni versidade norteamericana provavelmente vai aprender muitas coisas mas vai desaprender muitas outras Devemos fazer uma nova pergunta o que você aprende vale o que desaprende ou esquece Há conheci mentos próprios e isso que pode parecer uma coisa mar ginal é um problema absolutamente central na África na Ásia e também na América Latina Existe outra maneira de ver a ignorância porque a utopia de uma ecologia de saberes é que possamos aprender outros conhecimen tos sem esquecer nossos próprios conhecimentos Mas nosso ensino nas universidades nossa maneira de criar teoria reprime totalmente o conhecimento próprio o deslegitima o desacredita o inviabiliza Portanto temos de enfrentar desafios exigentes como estou propondo neste seminário O primeiro desafio é reinventar as possibilidades emancipatórias que havia nesse conhecimento emanci pador uma utopia crítica Vivemos hoje em um mundo dominado por utopias conservadoras Franz Hinkelam mert as definiu muito bem como a radicalização do presente A utopia do neoliberalismo é conservadora porque o que se deve fazer para resolver todos os proble mas é radicalizar o presente Essa é a teoria que está por trás do neoliberalismo Ou seja há fome no mundo há desnutrição há desastre ecológico a razão de tudo isso é que o mercado não conseguiu se expandir totalmente Quando o fizer o problema estará resolvido Temos de mudar essa utopia conservadora para uma utopia críti ca porque também as utopias críticas da modernidade como o socialismo centralizado se converteram com o tempo em uma utopia conservadora Estamos em um contexto em que é necessário ten tar outras aprendizagens de utopia crítica Sobretudo porque a hegemonia mudou Até agora ela se baseava na idéia do consenso de que algo é bom para todos e näo somente para os que diretamente se beneficiavam dele é bom inclusive para os que de fato vão sofrer com isso A hegemonia é uma tentativa de criar consenso basea da na idéia de que o que ela produz é bom para todos Mas houve uma mudança nessa hegemonia e hoje o que existe deve ser aceito não porque seja bom mas porque é inevitável pois não há nenhuma alternativa Isso a meu ver torna ainda mais importante a necessidade de uma utopia crítica mas tem também algumas dificuldades Há dois problemas teóricos muito importantes o do silêncio e o da diferença O silêncio é o resultado do silen ciamento a cultura ocidental e a modernidade têm uma ampla experiência histórica de contato com outras cultu ras mas foi um contato colonial um contato de desprezo e por isso silenciaram muitas dessas culturas algumas das quais destruíram Por isso quando queremos tentar um novo discurso ou teoria intercultural enfrentamos um problema há nos oprimidos aspirações que não são proferíveis porque foram consideradas improferíveis depois de séculos de opressão O diálogo não é possível simplesmente porque as pessoas não sabem dizer não porque não tenham o que dizer Mas porque suas aspira ções são improferíveis E o dilema é como fazer o silêncio falar por meio de linguagens de racionalidades que não são as mesmas que produziram o silêncio no primeiro momento Esse é um dos desafios mais fortes que temos como fazer o silêncio falar de uma maneira que produza autonomia e não a reprodução do silenciamento A diferença é outro desafio muito importante porque a tradução tem alguns problemas além da reciprocidade como por exemplo a idéia da incomensurabilidade No diálogo intercultural temos de produzir uma luta con tra duas frentes Uma é a política de hegemonia não há outras culturas críveis A outra é a política de identidade Boaventura de Sousa Santos 57 56 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social absoluta há outras culturas mas são incomensuráveis Não nos serve nem uma política de hegemonia nem uma política identitária fundamentalista mas como sempre uma via nova não é fácil porque às vezes temos de en contrar o que é semelhante e o semelhante é um ponto de partida não de chegada Um debate interessante hoje na filosofia versa sobre a possibilidade de uma filosofia africana É um grande de bate entre tradicionalistas e modernistas Há os que dizem que há uma filosofia africana conectada com sua cultura e como tal não é uma filosofia que pode dialogar com a filosofia ocidental são os tradicionalistas E há outros que dizem que não há uma filosofia africana há uma filosofia universal o fato de ter começado no Ocidente o que é um erro como sabemos começou na África é só uma questão de tempo amanhã os africanos estarão com Aristóteles Platão são os modernistas Aqui o problema é ver como vamos desenvolver uma posição entre os que querem por um lado reconhecer a filosofia africana e por outro poder pensar que há um diálogo entre as filosofias Qual é a dificuldade para nós Temos de nos acostu mar a ser interdisciplinares Começamos com um concei to muito simples que é um princípio fundamental para toda a filosofia cartesiana Penso logo existo Um gran de filósofo africano Kwasi Wiredu diz veja só eu venho da Nigéria meu povo é o akan e em minha língua africa na eu não posso traduzir isso pensar em minha língua é medir algo Então esse conceito não tem sentido Além disso o sou também não existe em minha língua nós sempre estamos num lugar tenho de dizer sempre que estou em um território em um lugar em uma posição e essa localização reduz de imediato o pressuposto univer salista do penso logo existo Aqui existe uma incomensurabilidade e muitos pen sam que é uma debilidade da filosofia africana não poder dar um conceito tão simples como o cogito ergo sum Mas temos de ir além disso O debate hoje é como reconhecer isso quais são as idéias na filosofia africana que não po dem ser expressas na ocidental E há muitíssimas idéias a de que nós somos toda a humanidade por exemplo em uma unidade muito concreta com a natureza isso se vê muito também na filosofia andina É preciso encon trar outro tipo de diálogo entre as diferentes filosofias e também aqui aparece o desafio É preciso conversar mui to mais dialogar muito mais buscar outra metodologia de saber ensinar aprender O terceiro desafio é distinguir entre objetividade e neutralidade É a idéia de que devemos ter uma distância crítica em relação à realidade mas ao mesmo tempo não podemos nos isolar totalmente das conseqüências e da natureza do nosso saber porque ele está contex tualizado culturalmente todo saber é local todos os sistemas de saber são locais inclusive as ciências Aqui o desafio vem de algo muito concreto que faz parte da ciência moderna uma discrepância que provavelmente passa despercebida mas é muito importante a capaci dade de ação científica é muito maior que a capacidade de previsão das conseqüências da ação científica Temos muitos problemas ecológicos sociológicos políticos que derivam dessa discrepância a ação científica de um economista em um país é uma coisa a análise científica das conseqüências dessa ação é outra as conseqüências fazem muito mais ruído Hoje na ciência moderna as ações científicas são sempre mais científicas que as conseqüências dessas ações Se queremos ter uma ati tude pragmática para observar as conseqüências para intervir na realidade temos de enfrentar essa discre pância que existe na ciência moderna mas não existe por exemplo da mesma maneira em outros saberes O quarto desafio é a necessidade de nos concentrarmos em como desenvolver subjetividades rebeldes e não apenas subjetividades conformistas Assim a questão fundamen Boaventura de Sousa Santos 59 58 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social tal é como intensificar a vontade um problema também complicado para nossa construção teórica porque há uma dimensão que chamamos racional dos argumentos mas há também uma dimensão mítica em todos os saberes que é a crença a fé na validade de nossos conhecimentos Todos os nossos conhecimentos têm um elemento de logos e um elemento de mythos que é a emoção a fé o sentimento que certo conhecimento nos proporciona pelo fato de o termos a repugnância ou o amor que nos provoca Há uma dimensão emocional no conhecimento que costumamos trabalhar muito mal e então devemos ver o que distingue as duas correntes de nossa vida tanto nas sociedades como nos indivíduos a corrente fria e a corrente quente Todos temos as duas a corrente fria é a consciência dos obstáculps a corrente quente é a von tade de ultrapassálos As culturas distinguemse pela primazia que dão à corrente fria ou à corrente quente Acredito que a corrente fria é absolutamente necessária para que não nos enganemos e também a corrente quen te é muito importante para não desistirmos facilmente Hoje temos a idéia de que é necessário encontrar qua dros teóricos e políticos que continuem tentando não ser enganados mas ao mesmo tempo sem desistir sem en trar no que chamamos a razão cínica a celebração do que existe porque não há nada além Esse é outro desafio Finalmente existe um quinto desafio O objetivo da Sociologia das Ausências e do procedimento da tradução é a tentativa de criar uma Epistemologia do Sul Essa epistemologia tem uma exigência que não incluímos muito facilmente em nossas teorias o póscolonialismo É a idéia de que a modernidade ocidental tem uma vio lência matricial a violência colonial e nem sequer as correntes mais críticas de um pósmodernismo de oposi ção como as que defendi no passado se dão conta é uma autocrítica que faço de minhas primeiras formulações dessa violência matricial que é o colonialismo Será que podemos dizer que o colonialismo passou e que com poucas exceções só há países independentes Não Em nossas teorias temos de incluir a perspectiva póscolo nial que tem duas idéias muito categóricas A primeira é que terminou o colonialismo politico mas não o colonialismo social ou cultural vivemos em sociedades nas quais não se pode entender a opressão ou a dominação a desigualdade sem a idéia de que continuamos sendo em muitos aspec tos sociedades coloniais Não é um colonialismo politico é de outra índole mas existe Aníbal Quijano sociólogo pe ruano fala da colonialidade do poder O outro princípio do póscolonialismo é uma primazia na construção teórica das relações NorteSul para tentar pensar o Sul fora dessa rela ção É preciso analisar muito detalhadamente essa relação para tentar criar alternativas porque o Sul imperial é um produto do Norte Há um Sul imperial e um Sul antiimpe rial contrahegemónico emancipatório Por isso para uma Epistemologia do Sul é necessário saber o que é o Sul porque no Sul imperial está o Norte É preciso criar esse Sul contrahegemónico e o póscolonialis mo é a meu ver muito importante pois tem também uma terceira idéia das margens se vêem melhor as estruturas de poder Devemos analisar as estruturas de poder da socie dade a partir das margens e mostrar que o centro está nas margens de uma maneira que às vezes escapa a toda nossa análise Para essa concepção colonialismo são todas as tro cas todos os intercâmbios as relações em que urna parte mais fraca é expropriada de sua humanidade Há muitas sociedades hoje que não podemos entender de verdade sem essa idéia de privação da humanidade das pessoas Dessa teoria póscolonial advém outra coisa impor tante é preciso provincializar o Norte Um autor da Índia Dipesh Chakrabarty escreveu um livro com esse nome Dipesh Chakrabarty ProvincializingEurope postcolonial thought and historical difference Princeton Princeton University Press 2000 60 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 61 mas acredito que para nós os de língua espanhola ou por tuguesa ele não serve porque essa idéia de provincializar a Europa a essencializa e muitos dos estudos póscoloniais dominantes vêm de autores que pertencem à diáspora do colonialismo inglês Nosso colonialismo é ibérico muito diferente do colonialismo anglosaxão Portugal ao mesmo tempo que centro de um império foi uma colônia informal da Inglaterra Em nossas sociedades o póscolonialismo se aplica em alguns aspectos tanto aos colonizadores como aos colonizados Por outro lado o colonialismo ibérico na América Latina conduziu a processos de independência as independências foram conquistadas pelos descenden tes dos colonos e não pelos povos originais que nos obri gam a dar uma atenção muito especial aos colonialismos internos Temos de ver como distinguir nossa história a do colonialismo ibérico para descobrir quais são as raízes de uma luta póscolonial em nossos países E esse também é um desafio complicado Com isso encerro os desafios que estão diante de nós e vamos tentar ver que avanços teóricos são possí veis à luz desses desafios Não estamos tentando criar um pensamento de vanguarda o que estamos fazendo é compreender o mundo e transformálo junto com os movimentos e as associações que compartilham essa paixão conosco É uma paixão uma emoção uma cor rente quente que tem de ser introduzida na nacionali dade ocidental Por isso não se pode avançar muito se a prática não avança O Fórum Social Mundial tem sido muito importante para permitirmos alguns avanços na teoria Ajudanos a renovar a teoria social e política em diferentes níveis Um nível é uma concepção mais ampla de poder e de opressão Durante muito tempo e este é também um dos limites de nossa tradição marxista que continua sendo muito importante mas deve ser objeto de uma ecologia de outros saberes fomos obrigados a nos concentrar em uma só forma de opressão ou dominação a do capitaltra balho O FSM nos ensinou que há diferentes formas de opressão e de poder e que talvez não seja possível deter minar em geral para todo o mundo o que é sempre mais importante em uma luta Os que estão nos movimentos e nas associações sabem que às vezes a prioridade de uma luta e de uma forma de opressão não pode ser determina da de maneira geral mas apenas contextual nas condições concretas Aprendemos bastante com os zapatistas por exemplo quando em 11 de março de 2001 chegaram à Cidade do México eles eram o movimento hegemônico ali a contradição hegemônica do México porque é uma luta indígena que tenta envolver todas as outras formas de luta no país que tem ele próprio outras formas de opressão E quando finalmente conseguem falar no Congresso quem fala é uma mulher a comandante Esther porque os zapa tistas querem mostrar uma articulação muito forte entre a opressão indígena e a opressão das mulheres Devemos ver de forma mais ampla Entre os cientistas sociais cada um tem sua opção A minha é que não se deve ficar tão centrado na estrutura ou na ação e sim na rebeldia ou no conformismo As estruturas pertencem à corrente fria que é necessária mas tem havido até agora uma manei ra reducionista de ver esses obstáculos estruturais Por isso no trabalho eu faço distinção entre seis espaços estruturais nos quais se geram seis formas distintas de poder São es paçostempo formas de sociabilidade que implicam lugares mas também temporalidades duração ritmos o espaçotempo doméstico onde a forma de poder é o patriarcado as relações sociais de sexo o espaçotempo da produção onde o modo de po der é a exploração o espaçotempo da comunidade onde a forma de poder é a diferenciação desigual entre quem per tence à comunidade e quem não pertence Boaventura de Sousa Santos 63 62 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social o espaço estrutural do mercado onde a forma de poder é o fetichismo das mercadorias o espaçotempo da cidadania o que normalmente chamamos de espaço público aí a forma de poder é a dominação o fato de que há uma solidariedade vertical entre os cidadãos e o Estado o espaçotempo mundial em cada sociedade que está incorporado em cada país onde a forma de po der é o intercâmbio desigual Essas são as seis formas fundamentais de poder Provavelmente há outras mas patriarcado exploração fetichismo das mercadorias diferenciação desigual do minação e intercâmbio desigual são a meu ver instru mentos analíticos que podem ser vistos como modos de produção de poder e de saber Há um sentido comum que se cria em cada um desses espaçostempo cada um tem sua lógica de desenvolvimento Esse trabalho está expos to no livro A crítica da razão indolente Mas o importante é que se estamos tentando fazer uma teoria política nova uma democracia radical de alta intensidade sabemos que isso será somente por meio da democratização de to dos os espaços Então minha definição de democracia é substituir relações de poder por relações de autoridade compartilhada É um trabalho democrático muito mais amplo do que se pensava até agora A segunda inovação teórica é necessitamos cons truir a emancipação a partir de uma nova relação entre o respeito da igualdade e o princípio do reconhecimento da diferença Na modernidade ocidental seja nas teorias funcionalistas conservadoras seja nas teorias críticas até agora não tratamos isso de maneira adequada porque sobretudo na teoria crítica toda a energia emancipató ria teórica foi orientada pelo princípio da igualdade não pelo princípio do reconhecimento das diferenças Agora temos de tentar uma construção teórica em que as duas estejam presentes e saber que uma luta pela igualdade tem de ser também uma luta pelo reconhecimento da di ferença porque o importante não é a homogeneização mas as diferenças iguais Isso não é fácil temos de tentar também uma re novação teórica as sociedades capitalistas têm vários sistemas mas os seis espaços diferentes podem ser re duzidos a duas formas de domínio hierarquizado Os dois sistemas são o sistema de desigualdade e o sistema de exclusão Eles são distintos e muito freqüentemente só vemos o sistema da diferença porque o sistema de desigualdade é um sistema de domínio hierarquizado que cria integração social uma integração hierarquiza da também mas onde o que está embaixo está dentro e tem de estar dentro porque senão o sistema não funcio na O sistema típico de desigualdade nas sociedades ca pitalistas é a relação capitaltrabalho os trabalhadores têm de estar dentro não há capitalistas sem trabalha dores e Marx foi um grande teorizador disso Mas há um sistema de exclusão de domínio hierar quizado onde o que está embaixo está fora não existe é descartável é desprezível desaparece A Sociologia das Ausências tenta trazer para o centro de nossa discussão o sistema de exclusão Michel Foucault foide grande im portância com seus estudos sobre a normalização para ver como se cria exclusão um sistema em que alguém fica totalmente de fora Neste momento temos de ana lisar essas duas formas de desigualdadeexclusão por várias razões Primeiro porque o que está acontecendo hoje sem que o saibamos muito bem ainda não teori zamos é que cada vez mais gente passa do sistema de desigualdade ao sistema de exclusão de estar dentro de uma maneira subordinada a estar fora a sair do contra to social da sociedade civil são os desocupados que não têm esperança de voltar a ser ocupados e os jovens em milhares de guetos urbanos das grandes cidades 64 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 65 O trabalho é atualmente um recurso global sem que haja um mercado global de trabalho Esse é para mim o fator sociológico que está por trás desse intercâmbio cada vez maior entre o sistema de desigualdade e o sis tema de exclusão porque essa discrepância permite de fato que o trabalho deixe de ser um fator de cidadania e de inclusão ainda que subordinada e possa existir com a mais total exclusão Por outro lado o segundo fator ao qual também não temos dado importância devemos re construir a teoria por meio dele é que há formas híbri das que se identificam com elementos de desigualdade e de exclusão as duas mais importantes para nós são o racismo e o sexismo O racismo é uma forma de exclusão mas cada vez mais está no sistema de desigualdade é a racionalização da força de trabalho primeiro no colonialismo depois na emigração Sabemos que hoje a etnização da força de trabalho ou a racialização importar imigrantes de ou tras culturas na Europa por exemplo é uma forma de desvalorizar a força de trabalho e os trabalhadores imi grantes compartilham a exclusão com o sistema de desi gualdade porque trabalham para ele E no sexismo ocorre o mesmo o papel da mulher primeiro na reconstrução da força de trabalho do homem e mais tarde sua entrada subordinada no mercado de trabalho Esses dois sistemas têm autonomia mas muitas ve zes se confundem e têm formas extremas de destruição O sistema de exclusão tem um extremismo que todos nós conhecemos foi por exemplo o extermínio dos judeus e dos ciganos no Holocausto e que hoje acontece no Su dão como ocorreu em Ruanda e Burundi O sistema de desigualdade também tem uma forma extrema a escra vidão O problema é que as formas extremas continuam existindo não são parte do passado mas do presente sa bemos hoje que o trabalho escravo é cada vez mais flores cente no mundo Há escritórios das Nações Unidas para detectálo e no Brasil eles têm agora a função de iden tificálo porque existe uma determinação de que todas as propriedades agrícolas onde haja trabalho escravo po dem ser expropriadas para a reforma agrária Imaginam a luta política que isso significa Nós também tivemos uma idéia errônea e por isso me expressei contra o conceito de progresso a idéia dessa forma linear que fazia pensar que tudo passava de uma fase para outra fase melhor Não a opressão tal como a emancipação a subjetividade é um palimpsesto em que as formas mais extremas de desigualdade e de exclusão convivem com outras mais inclusivas e menos extremas Por isso é preciso ter uma teoria sociológica política que dê conta dessas especificidades O terceiro avanço teórico que o FSM nos permite ver o primeiro é um conceito mais amplo de opressão o se gundo é essa nova relação entre o princípio de igualdade e o do reconhecimento da diferença é toda a relação entre inconformismo rebeldia revolução e transformação social E aqui há um aspecto importante a relação entre ação direta e ação institucional entre as ações ilegais pacíficas e as ações institucionais Entre a legalidade e a ilegalidade temos de reconstruir uma dialética porque as classes dominantes sempre a tiveram impõem a legalida de mas nunca a cumpriram sua hegemonia se baseia em uma dialética às vezes nada sutil entre legalidade e ilega lidade entre legalidade e impunidade entre legalidade e imunidade Creio que se queremos pensar a emancipação social temos de entrar nisso A outra questão que o FSM nos traz com bastante força é que provavelmente não devemos nos martirizar tanto porque isso não é muito produtivo em discus sões gerais sobre as vantagens relativas de uma estraté gia reformista ou uma revolucionária As duas estão em crise em sua forma moderna é preciso repensálas e provavelmente necessitamos de outros padrões Os mo 66 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 67 vimentos que se reúnem no FSM se dizem revolucioná rios se dizem reformistas ou nem uma coisa nem outra porque os dois são eurocêntricos produto do Ociden te É preciso criar outra forma de insurgencia Quando começamos a ter um conhecimento da prática global da globalização alternativa é que nos damos conta de que o que antes acreditávamos ser universal de fato é local é ocidental Participei de debates que me causa ram grande impacto porque coisas que eu considerava um patrimônio universal não o são e isso a meu ver é algo que também temos de discutir Finalmente o outro grande desafio em que nos ajuda o FSM porque isso é uma reconstrução teórica minha e de outros companheiros mas baseada em toda a práti ca que vai emergindo no mundo é que estamos vivendo uma nova forma de internacionalismo e as teorias sociais não estão preparadas para isso não são internacionais e menos ainda internacionalistas ao contrário Então se há um novo internacionalismo em curso é preciso se dar con ta dele e ver como pode ser contrahegemônico é aquilo pelo que eu luto É preciso conviver e entrar em conflito com o internacionalismo da globalização neoliberal Aqui os movimentos partem de duas idéias que me parecem muito importantes uma é a desnacionalização do Estado O papel do Estado é um campo de disputa mas hoje de fato há um processo muito claro de desna cionalização cada vez mais as políticas nos países pa recem ser imposições externas Se realmente o são é às vezes duvidoso porque as classes dominantes internas se aproveitam dessas imposições para ter uma nova acu mulação primitiva como foi a última forma em muitos países a privatizadoo de bens públicos Se vocês vão à Africa provavelmente na Argentina ocorra o mesmo vêem isto como é possível que o presidente de Moçam bique seja o homem mais rico da África Tratase de um exguerrilheiro da luta anticolonial que comprou grande parte dos bens que foram privatizados depois de o FMI ter obrigado Moçambique a privatizar tudo Na África do Sul temos também algo semelhante com a African Renaissance que é de fato a criação de um capitalismo negro um fenômeno interessante a idéia de reconstruir uma classe capitalista racializada para revalorizála pe rante a desvalorização dos imigrantes negros na Europa A outra idéia que nos obriga a trabalhar bastante em termos teóricos e políticos é a desestatizaçäo da regulação social A crise da regulação social ocorre para substituir uma forma de regulação centrada no Estado por outra em que o Estado é um sócio Está se desestatizando por exem plo por meio de institutos públicos de regulação Muitos paises têm essa característica os reguladores são regen tes dos regulados e isso dá outra idéia da importância do Estado hoje A debilidade do Estado é produzida por um Estado suficientemente forte para produzir sua própria debilidade Essa centralidade do Estado em seu processo de descentramento é algo que nos escapa É necessário um trabalho teórico muito importante sobre essa questão A outra dimensão desse novo universalismo que está em curso é a idéia de que temos de produzir teoria e prá ticas transescalares em que as escalas locais se articulem com as escalas nacionais e com as globais Em relação a isso a teoria e a prática nos têm demonstrado que às vezes as trajetórias são distintas de alguma maneira em 1994 os zapatistas passaram quase diretamente do local ao global e depois ao nacional Outros vão do local ao nacional e depois ao internacional como é o caso do MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Brasil Há diferentes trajetórias mas é muito impor tante que consideremos em nosso trabalho teórico a ne cessidade de relacionar as diferentes escalas E aqui concluo se esses são os desafios e os avan ços que é possível ter em conta temos de ver como ar ticular essa teoria que estamos tentando desenvolver Boaventura de Sousa Santos 69 68 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social com uma nova política e em um contexto no qual só nos restam instrumentos hegemônicos Estamos em um contexto no qual legalidade direitos humanos e democracia são realmente instrumentos hegemônicos portanto não vão conseguir por si mesmos a emanci pação social seu papel ao contrário é impedila O central em nossa questão é saber se os instrumentos hegemônicos podem ter um uso contrahegemônico Como criar e fazer um uso contrahegemônico da le galidade Como fazer um uso contrahegemônico dos direitos humanos e da democracia Eu acredito que a ecologia de saberes que lhes pro ponho vai ter muitas possibilidades de enfrentar esse problema sobretudo para ultrapassar algumas tradi ções funestas e nefastas na teoria e na prática crítica da modernidade DEBATE COMO PÚBLICO Sou da Universidade de Fortaleza no Brasil Um dos princi pais desafios que vimos trabalhando a partir do direito como fator de mudança social tem que ver com a legitimidade Em nossa intervenção em um projeto de cidadania ativa percebe mos uma assimetria de pautas que dificulta a busca de legiti midade porque na universidade temos nossas próprias pau tas e a comunidade tem um ritmo diferente do nosso Mais além da tradução bilateral em duplo sentido da qual o senhor fala queria ter indicações sinais de como trabalhar a legitimidade dos saberes da universidade com os saberes e as necessidades da comunidade A legitimidade é para onde vai hoje meu trabalho sobre a universidade Paço distinção entre três crises na universidade pública contemporãnea a crise de hegemo nia a de legitimidade e a institucional A crise de hege monia tem que ver com o fato de que a universidade era a única instituição na produção de conhecimento de ex celência e hoje a confrontação é entre produzir conheci mentos exemplares sofisticados e ao mesmo tempo ter de se democratizar com o acesso de mais gente ao ensino público como um direito Essa confrontação não tem per mitido que a universidade cumpra seus objetivos o que levou a uma crise de legitimidade E há uma crise insti tucional a idéia de que por um lado a universidade foi criada na autonomia e por outro agora se busca cada vez mais que seja conduzida e administrada como uma em presa com critérios de eficácia que são típicos do mundo empresarial Isso está degradando as relações entre estu dantes e professores e está também proletarizando toda a comunidade universitária com a criação de um merca do global de serviços universitários Por isso creio que o mundo vai caminhando sobre o que me parece é a solu ção penso que a crise de hegemonia é irreversível não é preciso resolvêla o que é preciso resolver é a crise de legitimidade e a crise institucional e devemos começar o quanto antes A crise de legitimidade tem que ver com a criação de uma universidade de proximidade de um bem público que realmente seja acessível com qualidade que esteja relacionado com os problemas da sociedade onde está situada A torre de marfim passou quando as uni versidades começaram foi necessário certo isolamento porque com as estruturas do poder religioso na Europa sobretudo era muito importante dizer que o conheci mento que estavam produzindo era neutro não tinha que ver com a sociedade era uma maneira de defender a universidade das autoridades religiosas das inquisições Mas hoje as condições são absolutamente distintas ao contrário necessitamos de um compromisso político da universidade com a sociedade que a envolve E por isso a crise de legitimidade assinalou cinco áreas fundamen tais 1 o acesso muitos países têm de fazer ações afir mativas como sistemas de cotas 2 uma nova forma de extensão universitária que em muitos países está se 70 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 71 concentrando em todas as formas rentáveis de serviços universitários para a comunidade é uma forma com a qual a universidade pública ganha recursos extras mas a meu ver é uma perversão do que deveria ser a autêntica extensão que é solidária com as comunidades 3 a pes quisaação vocês têm uma grande tradição na América Latina o homem que melhor teorizou a pesquisa social um grande amigo e um grande sociólogo Orlando Fals Borda quase não passou às gerações mais jovens e era muito importante nos anos 1960 e 70 A meu ver não passou porque era muito forte a idéia do positivismo científico que de alguma maneira as ditaduras contri buíram muito para impor nas universidades e também podemos dizer que em condições de ditadura o positi vismo foi uma defesa quase como nos tempos religiosos contra as inquisições Mas os tempos são outros e às ve zes os povos perdem a memória de suas forças das coi sas inovadoras que fizeram no passado e que poderiam assumir de novo 4 outra é a ecologia de saberes que é a inversão da extensão é trazer outros conhecimentos para dentro da universidade e S buscar uma nova re lação entre a universidade pública e a escola pública há em todos os países uma degradação da escola primária e secundária e as pessoas não se dão conta de quanto es sas coisas estão relacionadas a universidade pública não vai se legitimar se não fizer uma aliança estratégica com o ensino primário e secundário Em muitos países a pre paração de professores do ensino fundamental e médio saiu do controle da universidade e muitas vezes está em escolas privadas Há experiências como as butiques de ciência scienceshops uma nova forma de pesquisaação em que os projetos não são iniciativas dos universitários mas de associações cívicas de cidadãos que não podem pagar por serviços caros e buscam as universidades para por meio de um trabalho interdisciplinar resolver pro blemas como aids emprego questões ecológicas etc Isso inclui alguma novidade interessante porque em alguns países como a Dinamarca os estudantes podem fazer seu curso ou programa de estudos da universidade em um scienceshop ou seja seu trabalho é de contribuição a essa associação com um projeto em que os diferentes conhecimentos estão se unindo Em meu livro sobre a universidade analiso uma transformação que me pa rece interessante do conhecimento universitário para o que chamo conhecimento pluriuniversitário z E isso está ocorrendo de muitas formas Sou de Ciências Sociais e minha pergunta referese às múltiplas facetas da opressão que postulava e que têm que ver também com a idéia de identidadefortaleza quando identidades de raça ou de gênero simultaneamente são cons titutivas mas no desenvolvimento de um movimento social a identidade de gênero por exemplo fica incluída nos objetivos mais gerais do movimento Como é possível interpretar esse tipo de identidadefortaleza Esta segunda pergunta referese se a entendi bem às situações em que temos projetos e movimentos com componentes identitários muito fortes as identidades as sumem a forma de certo fundamentalismo e se transfor mam em identidadesfortaleza Eu faço distinção entre as identidadesforça e as identidadesameba as últimas são as que realmente se misturam e procuram se articular com outras identidades As identidades são identificações em curso não devemos ter uma concepção cristalizada de identidade e isso é muito importante nos movimentos porque há conflitos muito fortes Por exemplo as discus sões entre o movimento feminista e o movimento operá A universidade no século XXI para urna reforma democrática e eman cipatória da universidade São Paulo Cortez 2004 72 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 73 rio são significativas para saber como podemos compa tibilizar na luta uma perspectiva de gênero nas relações sociais de sexo com uma luta pelos direitos humanos por emprego ou em uma greve Às vezes há a idéia de que alguma das demandas identitárias pode pôr em pe rigo as demandas principais Penso que deve haver uma análise concreta do que é prioritário em certa demanda mas também que as demandas são mais capazes de criar potencialidades transformadoras se se combinam se se articulam se perdem sua pureza sua identidade total e se abrem para as lutas Hoje por exemplo o movimento feminista que está muito fragmentado se divide e não me parece uma coisa mim quando as mulheres negras não se identificam com as mulheres de classe média e quando as mulheres indígenas também não se identifi cam com elas Estas últimas buscam transformar uma agenda que no final possa integrar as diferentes perspec tivas de gênero para incluir um componente de classe e um componente racial ou étnico se não os têm não vão conseguir se articular em uma luta social Sou da Faculdade de Ciências Sociais e queria perguntar a respeito do FSM e todo esse movimento de internacionali zação dos movimentos sociais Como o senhor vê essa passa gem da idéia de movimento social ã oenegeização deles e a configuração de uma espécie de altruísmo internacional que produz ressentimento em nível local por exemplo ao ver uma burocracia do feminismo do movimento gay do movi mento de luta contra a aids ou do movimento indígena Fala se até de uma indústria dessas conferências das Nações Uni das E a suspeita de que essa insurgência definitivamente é financiada pelo Estado com as fundações internacionais até pelo Banco Mundial ou seja a idéia de que o ativismo e a liderança social acabem passando a responsabilidade para seus financiadores e não para suas bases comunitárias E ou tra coisa ligada ao FSM chegaram notícias de que estaria se formando uma direção do Fórum e que muitos movimentos são contra certa burocratização do FSM Como está se pro cessando essa espécie de institucionalização do Fórum Contesto ambas dizse que o FSM pode acabar sendo uma coisa burocrática e gerenciada pelo Banco Mundial Essa é uma crítica que se faz e me parece extremamente injusta Eu e todos os outros que nos sentimos envolvidos com o FSM não falo em nome do FSM porque ninguém pode fazêlo ninguém o representa podemos contestar com diferentes concepções A meu ver o que está por trás das críticas mais radicais é essa tradição na esquerda bas tante dogmática sempre em busca da luta pura e as lutas não são puras são impuras têm elementos de perversão e é preciso ter uma vigilância epistemológica teórica e po lítica sobre os movimentos É preciso distinguir os que re chaçam completamente a idéia do FSM dos que o criticam construtivamente Creio que rechaçar a idéia do FSM vem de diferentes formas e tradições da esquerda Por exem plo em alguns dos fóruns tivemos coisas interessantes críticas muito radicais se transformaram em fóruns alter nativos Ou seja a idéia de fórum vai ultrapassar as dife renças Em Mumbai onde se realizou o IV Fórum Social Mundial formouse um fórum alternativo que ficou do outro lado da rodovia o Mumbai Resistence composto de divisões dos partidos comunistas da Índia que não aceita ram o rechaço da luta armada como um instrumento poli tico da Carta de Princípios do FSM e criaram seu próprio FSM De fato eu também participei desse fórum alterna tivo e fui ver o que se passava ali No Fórum Temático de Cartagena sobre Democracia também houve um fórum al ternativo de gente que pensava que o FSM estava oene geizando ou seja a idéia de que os movimentos perdem autonomia e as ONGs prevalecem Isso é parte do proble ma que não é só essa passagem de movimentos para 74 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 75 ONGs mas sim o papel das organizações muito podero sas internacionais quase todas do Norte Em meu livro sobre o FSM faço uma análise das organizações que com põem o Conselho Internacional mais de 50 vêm da Eu ropa e da América do Norte 3 Então o FSM não é mundial É preciso fazer um projeto e minha contribuição anali sando o que fazem as organizações e de onde vêm é para mostrar que é necessário impulsionar uma mundialização do próprio FSM é uma crítica construtiva para poder am pliar o FSM E por isso hoje a Comissão de Expansão do Conselho Internacional do Fórum é fundamental porque sabemos que as organizações da África estão ausentes e as da Ásia também e quando vêm da África são represen tantes de organizações ou movimentos que estão articula dos com as grandes ONGs do Norte que têm seus subsi diários suas franquias no Sul os que estão fora das franquias não vêm Aqui também aparece a Sociologia das Ausências que realmente é preciso produzir no FSM A mundialização é um dos desafios o outro é a democracia interna não tenho uma visão de burocratização ou insti tucionalização do FSM E um campo de disputa Houve um Secretariado Internacional em que o grupo brasileiro teve um poder muito forte porque foi ele quem o iniciou Neste momento o Secretariado está constituído porbrasi leiros e pessoas da Índia mas sabemos que pelas próprias condições trazer os indianos a São Paulo é muito difícil não é possível que as tarefas sejam totalmente divididas Há um Conselho Internacional CI e um processo pelo qual esse CI tentou ter mais poder para configurar o FSM e para que o Secretariado seja mais executivo Mas a demo cracia interna se articula com a idéia da mundialização Ter democracia interna em um fórum que apesar do nome não é mundial é uma questão que também devemos incluir E depois vem a tensão entre movimentos e ONGs 0 Fórum Social Mundial manual de uso São Paulo Cortez 2005 que é um campo de disputa muito forte Penso que é uma luta e uma disputa produtiva que é preciso continuar ten tando realizar sobretudo para saber se o FSM vai ser um movimento de movimentos ou se vai se institucionalizar como qualquer outra entidade socialdemocrata há uma luta e ela é aberta E há uma tensão entre a Assembléia dos Movimentos Sociais e a organização do FSM porque o FSM não produz declarações finais e a Assembléia sim Às vezes as declarações finais da Assembléia são consideradas no mundo como decisões do FSM e isso cria uma tensão interna Dentro do FSM há gente com diferentes visões por exemplo acredito que há uma posição dominante que é a idéia de que o Fórum é um espaço de reflexão que não deve tomar decisões demais para não expulsar gente Eu vejo nisso um grande perigo e tenho discutido isso com muitos porque creio que não devemos transformar o FSM em um partido mundial o que é impossível porque o poder de inclusão do FSM é algo novo sua capacidade de agregação é mais rica mas não compreendo como o FSM não possa vir a ter por exemplo uma posição sobre a dívi da a reforma das Nações Unidas a privatização da água ou seja sobre as questões em que há consenso Dentro do FSM deveria haver posições sobre isso mas dentro do CI há diferentes posições é um campo de luta A questão do financiamento tem sido muito discutida um grupo anar quista creio que argentino expôs uma análise com os detalhes financeiros de todas as organizações que finan ciaram o FSM para deslegitimálo Creio que é impossível O FSM não é um processo revolucionário autônomo é uma tentativa de pensar de criar uma escala de resistência política que se ajuste ã globalização de hoje porque nossas resistências até agora eram locais e nacionais Em 1994 os zapatistas começaram com a idéia de que era necessário ter uma resistência global depois temos Seattle e em se guida aparece o FSM Então a idéia de globalizálo como se faz isso Trazendo gente Mas não há dinheiro que pos Boaventura de Sousa Santos 77 76 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social sa trazer as pessoas o problema não é tanto o financia mento mas suas condições e aqui nem tudo é claro e transparente Na Índia por exemplo há organizações com uma vasta tradição de resistência às fundações ocidentais e com muito boas razões A Fundação Ford foi na Índia o grande agente de esterilização de mulheres e da revolução verde Como as pessoas do FSM na Índia podem estar sa tisfeitas se as fundações ocidentais vêm com dinheiro para esse processo Compreendese e se respeitou isso mas em outros países houve casos em que o financiamento não criou condições de controle sobre o que se ia fazer As ONGs mais poderosas podem ter uma presença maior Por exemplo neste último Fórum tentouse uma nova meto dologia para que todas as atividades fossem autogestiona das sabemos que as organizações mais fortes trouxeram as estrelas e outras pessoas e as hospedaram nos melhores hotéis Não vamos acabar com isso de imediato Hebe de Bonafini que é uma amiga muito querida disse e escre veu há dois fóruns o das estrelas e o dos soldados Real mente essa tensão existe Penso que até agora o financia mento não o destruiu mas é o mesmo que acontece com os partidos tivemos uma grande influência do PT no FSM e acredito que o PT não pôde manipular o FSM que cres ceu muito mais Na Índia tivemos três partidos comunis tas dois partidos socialistas e os movimentos gandhianos por trás do FSM Houve negociações muito difíceis mas finalmente se chegou a um acordo e Mumbai foi um dos fóruns mais bemsucedidos que tivemos Neste momento está se discutindo no CI como vamos fazer para que orga nizações da África e da Ásia possam ir ao FSM sem perten cer às ONGs mais poderosas da Europa e dos Estados Uni dos para que mais pessoas que não estão conectadas possam fazêlo E temos agora essa idéia de descentralizar o FSM em 2006 que também é um pouco isso haverá um na Venezuela outro na África e outro na Ásia Sempre são condições políticas e também não queremos que na Vene zuela seja um FSM do presidente Chávez mas um temáti co hemisférico que tem de ser acolhido em Caracas mas com autonomia Todas essas questões são a meu ver coi sas que estão sendo discutidas Fezse um estudo sobre a composição social dos participantes do FSM de 2003 e eu analisei os resultados 73 têm curso universitário com pleto ou incompleto Onde estão os oprimidos É um pro cesso e também não conseguimos trazer as pessoas que vivem nos bairros pobres de Porto Alegre Agora o que falta é saber se porque a idéia não é pura e tem problemas devemos abandonála Esse é o erro que a esquerda come teu durante muito tempo Neste momento não podemos desperdiçar experiências é preciso lutar por isso meu convite aos grupos mais radicais é que entrem e se organi zem e permitam um diálogo Em Cartagena fui a La Bo quilla que é um bairro popular para trabalhar com as pes soas que estavam promovendo um fórum social alternativo porque diziam que estavam retirando os afrodescendentes do Caribe colombiano para atrair o turismo a essas praias e eu lhes disse Estou contente de estar aqui mas se vocês organizassem isto num lugar com três mil pessoas seria muito mais fácil chamar a atenção da imprensa internacio nal sobre a luta de La Boquilla Claro que há tensões na Colômbia naturalmente quanto a conexões ou não com a guerrilha Tudo é complexo nada é puro e por isso é pre ciso lutar com essas contradições Me parece que seria bom avançar sobre que atra tivos tem o pensamento monocultural a metonimia o pensamento linear o conhecimento científico porque me recordo daquela idéia de Rousseau de que os homens nas cem bons e as instituições os tornam maus e aqui pare ceria que as ideologias ou a hegemonia fazem mal a um homem que nasce bom Boaventura de Sousa Santos 79 78 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Sobre o atrativo do monoculturalismo creio que você tem razão Quando tentamos fazer uma crítica é com base na idéia ecológica de que a tradição ocidental pode ser resgatada no que tem de positivo concepções de Estado de espaço público de cidadania de seculari zação São elementos ao mesmo tempo indispensáveis e inadequados se você tem como quadro uma luta global que além disso deve estar ancorada na realidade cultu ral de cada país e cada comunidade Mas a idéia ecológica é que não se apresente como monocultural porque o mo noculturalismo é sempre uma idéia de força Realmente o mundo é diverso e por isso quando uma idéia mono cultural tem atrativo é porque tem por trás uma força Quando o cristianismo chegou a este continente tinha um atrativo mas veio com canhões essa é a força da idéia de força Hoje quando Condolezza Rice diz que vai impor a democracia em todos os países pode criar uma situação colonial em um país como o Iraque para impor a demo cracia Seria interessante para os doutorandos atuais fa zer uma distinção entre os missionários do século XVII e os missionários do Banco Mundial da democracia e dos direitos humanos os do século XVI e XVII teriam vanta gens porque pelo menos aprendiam as línguas estuda vam o lugar e os costumes para controlar claro mas os de hoje impõem suas leis e vão embora Sou da Faculdade de Ciências Sociais também e fiquei pensando no que o senhor dizia sobre os movimentos que se proclamam reformistas ou revolucionários e como naAméri ca Latina há diferentes formas de alternativas políticas e mo vimentos sociais o zapatismo com a autonomia e sem aspirar ao poder outros com outra relação com o Estado além de di ferentes opções políticas como o caso da Venezuela Uruguai etc Alguns se dizem reformistas outros revolucionários e os zapa tistas se dizem rebeldes por exemplo Como convivem essas distintas formas de poder alternativo Temos ações que surgem como revolucionárias e depois parecem reformistas como para muitos são os zapatistas ações reformistas que depois parecem re volucionárias como é o caso de Chávez e ações refor mistas que nem sequer parecem reformistas como o caso de Lula E vamos ver o que vai acontecer com o Uruguai que é um país com uma tradição belíssima e que está em uma situação muito difícil com um proces so maravilhoso de movimentos sociais e que realizou uma das conquistas mais importantes ao garantir que a água não seja privatizada por meio de um plebiscito e uma nova lei constitucional Há aqui uma criatividade enorme e o movimento indígena tem uma importân cia que não é suficientemente respeitada nas teorias da esquerda Trabalho muito na América Latina há vários anos e me choca como os movimentos comunistas so cialistas estão tão distantes das lutas dos movimentos indígenas Meus colegas socialistas do Equador me di ziam que os indígenas são racistas às avessas e deve mos nos defender disso claro que é preciso levar em conta o Movimento Pachakutik com todas as divisões O Movimento de Unidade Plurinacional PachakutikNovo Pais MUPPNP se formou em 1995 numa década marcada pela emer gência do movimento indígena e por sua configuração como prin cipal ator político do Equador Seus eixos centrais eram a oposição ao neoliberalismo e a construção de uma alternativa nacional que possibilitasse uma forma diferente de desenvolvimento econõmi co político social e cultural centrado no ser humano e na defesa da vida Desde 1996 o Pachakutik participa de eleições para al caides presidentes de câmaras municipais que exercem também o Poder Executivo prefeitos vereadores deputados provinciais e nacionais verbete escrito por Alejandra Santillana Ortiz em Latinoamericana enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe São Paulo Boitempo 20061 p 8878 N E 80 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 81 internas do movimento indígena e a globalização do que se vayan todos argentino Penso que é um cam po no qual é preciso trabalhar também neste país uma das coisas que mais me interessam é como se faz arti culação política a distância entre a vitalidade do movi mento social e um sistema político que não muda Na Argentina a gente podia imaginar que depois da crise de 2001 haveria uma mudança total do sistema políti co o que estou observando é que ao contrário do que aconteceu na Itália com as mãos limpas da corrupção aqui não há realmente articulação Há uma criatividade enorme do movimento social que provavelmente está em refluxo não sei e uma grande dificuldade na arti culação política porque os partidos não mudam e sem isso podemos estar criando duas inércias paralelas que seriam muito prejudiciais a um processo de democra cia de alta intensidade Ou seja uma inércia dos movi mentos que não conseguem se multiplicar e acumular energia transformadora e uma inércia dos partidos que continuam no poder mais ou menos oligárquico mais ou menos dominante que sempre tiveram É uma questão complexa Sou da Faculdade de Ciências Sociais A questão da dife rença nos leva ao problema das lógicas às quais recorrer para interpretála e para enfrentar os desafios ou as novidades do Fora todos poderia ser a tradução Em 21 de dezembro de 2001 mais de um milhão de argentinos saíram às mas num protesto indig nado contra a politica neoliberal que provocou recessão desemprego e pobreza Foi uma espécie de Basta do povo contra todos os polí ticos de todos os partidos burocratas corporações multinacionais FMI Suprema Corte etc Que se vayan todos foio Lema do protesto que derrubou quatro presidentes em duas semanas N T mundo atual Em que lógica você está pensando Uma lógica dialética ou uma mais ligada ao hermenêutico ao paradoxal ao estilo desconstrucionista ou uma nova lógica que seria ne cessário incorporar a estes novos tempos Creio que hoje uma das coisas mais interessantes epistemologicamente é ver o impacto das teorias da complexidade as teorias do caos e a lógica informal Isso está mudando todos os conceitos anteriores da lógica dialética hermenêutica analítica Está criando outra maneira que a meu ver tem uma potencialidade enor me de entender um pouco melhor o mundo em termos políticos e epistemológicos Por exemplo a questão do construtivismo de que se falou era um dos debates da razão indolente Nós no Ocidente temos debates furio sos enormes que no contexto do mundo não significam quase nada são indolentes por exemplo entre realismo e construtivismo Nas duas posições há matizes enormes porque em todos os movimentos sociais nada pode ser totalmente construtivista quando a polícia vem e nos espanca qual é a construção social da polícia Há uma dor física no corpo o real se opõe a nós e então não po demos ter uma atitude construtivista total diante das ações repressivas temos de ter o que chamamos hoje um realismo pragmático Há representação real nos termos em que a realidade se opõe mas não temos uma maneira imediata de conhecer a realidade e por isso somos sem pre construtivistas O que não é possível é ser descons trutivista essa é uma luta muito grande minha com as tradições filosóficas da desconstruçäo porque até certo limite é um produto típico da teoria crítica ocidental O problema é que não podemos desconstruir até o ponto de desconstruir a capacidade de resistência Então toda a desconstrução de alguém de grupos de movimentos ou de teorias que queiram reconstruir a emancipação social tem de ter um elemento construtivista e realista um ele mento de desconstrução e um elemento de reconstrução 82 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Derrida demonstrou muito bem nos últimos livros sobre Marx como a desconstrução o deixava sem resistência e o mesmo aconteceu com Foucault Penso que temos de sair desses debates se quisermos realmente enfrentar a questão do sofrimento humano ou da resistência às cau sas do sofrimento humano Capítulo III Para uma democracia de alta intensidade Quando o senhor falou em pensar a Sociologia do Sul e trabalhar com outra dinâmica que não seja a da oposição me ocorreu pensar no estruturalismo que justamente pro põe a diferença em relação à oposição A sua proposta leva em conta a diferença Com respeito à questão do estruturalismo não estou dizendo que não seja uma discussão importante Prova velmente é indolente porque para mim hoje o mais eficaz é a distinção e o trabalho de como criar subjetividades rebeldes contra a banalização do horror que cria subjeti vidades conformistas e resignação Mas claro eu mesmo faço distinção entre seis espaços estruturais então há a presença do estruturalismo É um debate que podemos ter se o estruturalismo trabalhou bem os dois princípios da igualdade e do respeito às diferenças A meu ver não o estruturalismo trabalhou bem o princípio da igualdade mas não trabalhou bem o princípio do reconhecimento da diferença Esse é um debate teórico importante que é preciso discutir no contexto desses outros debates aos quais os convido As perspectivas epistemológica teórica e política estão muito conectadas nesses desafios que identificamos para a reconstrução de uma utopia crítica para passar de uma teoria crítica monocultural a outra multicultural para distinguir entre objetividade e neutralidade para passar da problemática estruturaação à problemática ação con formistaação rebelde para analisar a questão do pós colonialismo e também a dos dois sistemas de domínio hierarquizado que existem no capitalismo Dessas pro blemáticas surgiam alguns desafios importantes para a teoria uma concepção ampla do poder e da opressão os seis espaçostempo estruturais e suas formas de poder a equivalência entre o princípio de igualdade e o princípio de diferença quando falamos dos sistemas o da desi gualdade e o da exdusão assim como a mescla que exis te entre os dois Nós nos referimos às formas de ação e continuando vamos nos concentrar na questão da ação institucional e da ação direta Por outro lado nos referi mos também à emergência do Fórum Social Mundial e à necessidade de um novo internacionalismo descentrali zado multicultural Essas são as exigências teóricas das quais viemos e devemos ver quais são as conseqüências politiéas e quais Boaventura de Sousa Santos 85 84 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social são os instrumentos com que contamos A mensagem foi sempre que necessitamos de um conhecimento muito sofisticado e exigente porque temos de conhecer muito bem a tradição e ao mesmo tempo contestála enfren tála e inovar a partir dessa tradição Roberto Fernández Retamar um grande crítico literário cubano costuma di zer que temos uma dupla tarefa sobretudo a partir da situação póscolonial por um lado a de conhecer mui to bem o centro hegemônico e por outro a de conhecer muito bem a alternativa ao centro hegemônico Ou seja devemos gerar um duplo conhecimento que é fundamen tal para todos nós sobretudo para os jovens cientistas sociais de hoje Que instrumentos temos Na realidade contamos só com instrumentos hegemônicos para tentar enfrentar tudo isso porque os conceitos para enfrentar o novo a des continuidade a ruptura a revolução hoje nós não temos Os instrumento hegemônicos que temos são as semânti cas legítimas da convivência política e social a legalidade a democracia os direitos humanos Isso é realmente o que temos hoje para enfrentar todos esses desafios É um problema complicado porque se são instru mentos hegemônicos por definição não vão resolver nossas inquietações nossas aspirações e não vão conse guir o que queremos alcançar que é uma sociedade mais justa reinventar a emancipação social Então temos de fazer um trabalho dobrado Por um lado tentar ver se os instrumentos hegemônicos podem ser utilizados de ma neira contrahegemônica se podemos desenvolver um conceito contrahegemônico de legalidade de direitos humanos e de democracia E por outro lado ver se nas culturas e nas formas políticas que foram marginalizadas e oprimidas pela modernidade ocidental muitas delas no próprio Ocidente porque a modernidade ocidental é feita de muitas modernidades uma das quais dominou todas as outras podemos encontrar embriões semen tes de coisas novas Um duplo trabalho de arqueologia nessas ruínas de destruição e nos instrumentos hegemô nicos que temos Nesse sentido vou me concentrar na questão da democracia mas depois no debate podemos trabalhar mais sobre os direitos humanos Vamos ver qual era a situação da democracia nos anos 1960 Naquele momen to a teoria da democracia tinha certas características sobretudo vista de uma perspectiva crítica Em primeiro Lugar havia vários modelos de democracia a democracia representativa liberal a democracia popular a democra cia participativa a democracia dos países que se desen volviam a partir do colonialismo Havia portanto uma grande variedade de modelos democráticos Em segundo lugar a discussão central da teoria críti ca da teoria da democracia em geral Robert Dahl Bar rington Moore era a questão das condições da democra cia o grande problema de discussão então era por que a democracia só se fazia possível em um pequeno pedaço do mundo em um pequeno número de países A resposta era porque lá existiam condições para isso sociais políti cas econômicas Falavase por exemplo de uma reforma agrária como condição para criar uma população cidadã para a democracia ou da necessidade de fortalecer as ca madas médias como forma de estabilizar a democracia e como tais coisas não existiam na maioria dos países não se podia discutir a democracia Por outro lado havia uma tensão criativa entre demo cracia e capitalismo porque a democracia era um processo que por meio da metáfora do contrato social lutava por uma inclusão mais ampla O contrato social sempre foi se letivo excluiu muita gente e muitos temas mas desde o sé culo XIX a luta política é de alguma maneira pela inclusão no contrato Os operários as mulheres os imigrantes as minorias às vezes as maiorias étnicas todos estavam em uma luta pela inclusão que apresentava uma característi Boaventura de Sousa Santos 87 86 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social ca envolvia alguma redistribuição social que se dava na forma de direitos econômicos e sociais Por isso o contra to social é a possibilidade de fazer alguma redistribuição Mas o capitalismo não gosta de redistribuição e se produz uma tensão a tensão criativa entre regulação e emancipa ção que é epistemológica é teórica e também política E o contrato social regula a tensão entre regulação social e emancipação entre ordem e progresso Nesse contrato há dois grandes princípios o de igualdade e o de liberdade e a distinção entre as forças políticas que aceitam o jogo democrático porque há toda a rota dos anarquistas e do socialismo revolucionário que não aceitam esse jogo é entre as demoliberais que privilegiam o princípio da liber dade e os demosocialistas que tentam perseguir os dois princípios ao mesmo tempo por isso os demosocialistas são mais favoráveis a concessões às classes trabalhadoras à construção do direito social etc A quarta característica desse modelo que está cen trado no Estado é pensar que este é a solução e a socie dade é o problema A sociedade é problemática porque há crimes há prostituição há escassez de moradias há toda uma desestruturação que a revolução industrial criou e o Estado deve solucionar E pretendese que esse Estado seja democraticamente forte para produzir uma sociedade civil forte Ou seja há uma simetria entre uma sociedade civil forte e um Estado democraticamen te forte não há contradição Esse é um modelo que se assenta sobre muitos pressupostos o livro que apre sentamos na Feira do Livro fala deles mas o que de vemos entender é o que aconteceu com essa posição do Estado como solução Há dois processos muito claros Um é a socialização da economia que vai ser algo inovador no centro e também nos países semiperiféricos Reinventar a democracia reinventar o Estado Buenos Aires Clacso 2005 da América Latina e da Ásia A Índia é um exemplo mui to importante nesse caso mostrar que a economia não é somente capital fatores de produção e mercado A econo mia é também gente trabalhadores famílias necessida des aspirações desejos paixões que devem ser regulados de alguma maneira e isso é o processo de socialização da economia O segundo processo é a politização do Estado Se para os conservadores o Estado tinha simplesmente o papel de estabelecer e manter a ordem pública e defender a soberania nacional nas concepções demoliberais e demo socialistas isso já não é assim e a politização do Estado vai consistir na produção de quatro bens públicos fundamen tais O primeiro é a identidade nacional os hinos a edu cação as histórias nacionais o modo como aprendemos a ser argentinos brasileiros portugueses O segundo é o bemestar individual e coletivo a idéia do bemestar social que é parte do contrato O terceiro é a segurança individual e coletiva E o quarto é a soberania nacional Esse modelo entrou em uma crise enorme nos úl timos vinte anos e analisaremos muito brevemente o que sucedeu Em primeiro lugar dentre todos os mo delos de democracia que havia apenas um permaneceu a democracia liberal representativa As outras formas de democracia desapareceram não se fala mais delas Assim pois a primeira idéia que quero lhes comuni car é que assim como temos biodiversidade e a vamos perdendo creio que nos últimos vinte anos também perdemos demodiversidade perdemos a diversidade de formas democráticas alternativas em que o jogo a competição entre elas de alguma maneira dava força à teoria democrática Em segundo lugar a tensão entre capitalismo e de mocracia desapareceu porque a democracia começou a ser um regime que em vez de produzir redistribuição social a destrói É o modelo neoliberal de democracia imposto pelo Consenso de Washington Uma democra Boaventura de Sousa Santos 89 88 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social cia sem redistribuição social não tem nenhum problema com o capitalismo ao contrário é o outro lado do capita lismo é a forma mais legítima de um Estado fraco Essa é a razão pela qual o Banco Mundial e o FMI propõem e impõem essa forma de democracia Então com a falta de redistribuição social essa discrepância entre experiên cias e expectativas vai sofrer um colapso De fato nossa definição de sociedade nas ciências sociais a mais sim ples e mais complexa ao mesmo tempo diz que ela é um conjunto de expectativas estabilizadas sociedade é rece ber o salário no fim do mês é o ônibus que chega numa hora determinada é a expectativa estabilizada O que está ocorrendo hojeé que para muita gente não há expectativas estabilizadas e por isso tenho dito que estamos na crise do contrato social Estamos expul sando gente da sociedade civil para o estado de nature za que era o estado anterior ao da sociedade civil para Locke para Hobbes e para Rousseau Estamos falando da maioria da população mundial em alguns países mais em outros menos pode ser 60 30 mas isso é o que está acontecendo no mundo neste momento com a manutenção da democracia política representati va sem redistribuição social Meu primeiro diagnóstico radical de nossa situação presente em nível mundial é que vivemos em sociedades politicamente democráti cas mas socialmente fascistas Ou seja está emergindo uma nova forma de fascismo que não é um regime polí tico mas um regime social É a situação de gente muito poderosa que tem poder de veto sobre os setores mais fracos da população Quando digo crise do contrato social alguns podem assinalar que isso é contraditório nós vemos os informes do Banco Mundial nossa imprensa e eles estão sempre fa lando de contratualismo Isso não tem nada que ver com o contrato social é o contratualismo individual entre partes que têm poderes muito distintos e que a meu ver cria uma forma de fascismo social o fascismo contratual No livro Reinventar a democracia reinventar o Estado faço distinção entre cinco formas de fascismo social O importante agora é ver como o fato de se passar muito facilmente do sistema de desigualdade ao sistema de exclusão está produzindo uma situação nova que é essa de haver brutais desigualdades sociais que são invisíveis que estão aceitas que estão natu ralizadas ainda que se mantenham a idéia democrática o Estado democrático Por isso entramos em um processo no qual o neolibera lismo não tem nada que ver com o liberalismo do século XIX e sim com o conservadorismo desse século mas por sua vez é novo no século XIX o conservadorismo queria criar um quadro jurídico para os negócios a fim de garantir a pro priedade individual e as obrigações contratuais e defender a soberania nacional O novo conservadorismo tem despre zado o conceito de soberania nacional o nacionalismo dos conservadores não existe mais O terceiro efeito dessa crise é que em vinte anos essa fórmula do Estado como solução e a sociedade como problema se inverteu Agora a sociedade civil é a solução e o Estado é o problema E isso passou qua se despercebido para muita gente O Estado é ineficiente O Estado é a causa de todos os problemas etc O outro fator foi que o Estado ao invés de ser es pelho da sociedade civil é agora seu oposto para criar uma sociedade civil forte temos de ter um Estado fraco Um Estado democraticamente forte não pode conduzir a uma sociedade civil forte Então isso nos leva a outra característica importante que se desdobra em duas e é o que chamo de desnacionalização do Estado por um lado ou seja o Estado cada vez mais gerindo as pres sões globais e a desestatização da regulação social por outro O Estado deixa de ter o controle da regulação social criamse institutos para isso e o Estado passa a ser apenas um sócio não tem o monopólio daregulação social Por isso vamos ter o problema da relação entre Boaventura de Sousa Santos 91 90 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social reguladores e nãoregulados e freqüentemente os regu lados são reféns dos reguladores Este primeiro diagnóstico é duro mas me parece que tem que ver claramente com a crise do modelo Outros as pectos que não vamos poder desenvolver em sua totalidade são o fascismo social que não é produzido pelo Estado mas tem a cumplicidade do Estado e o novo Estado de Exceção Conduindo dessa situação resultam algumas coisas que são desafios para nós se quisermos reinventar uma prática e uma teoria politica Primeiro porque vemos que no primado do direito que se anuncia por todos os lados a reforma do sis tema social a centralidade dos tribunais etc consagrase o direito mas desconsagramse outros direitos os direitos sociais e politicos Em segundo lugar é a emergência de um constitu cionalismo global das empresas multinacionais que pre valece sobre as leis nacionais e as viola freqüentemente mas tem prioridade sobre elas como antes a lei consti tucional tinha prioridade sobre as leis ordinárias E de tudo isso resulta o que chamo uma democracia de baixa intensidade vivemos em sociedades de democracia de baixa intensidade O problema está em compreender que a democracia é parte do problema e temos de reinventá la se quisermos que seja parte da solução Por exemplo o que seria um ideal democrático segundo Rousseau é preciso distinguir sempre a democracia como prática da democracia como ideal é muito interessante Rousseau dizia que é democrática somente uma sociedade na qual ninguém seja tão pobre que tenha de se vender nem nin guém seja tão rico que possa comprar alguém Em nossas sociedades há de fato muita gente que tem de se vender e muita gente que tem dinheiro para comprar essa gente Estamos muito longe do ideal democrático de Rous seau e por isso é preciso ver se podemos criar uma contra hegemonia Mas não é fácil neste momento Nosso pro pósito e minha tese central neste seminário é que temos de reinventar a demodiversidade provavelmente é possível reinventar e reconstruir algumas dessas formas de demo diversidade E a principal que vou propor é a relação entre democracia representativa e democracia participativa As razôes pelas quais temos de ver essa solução contrahege mônica partem de uma análise rigorosa em cada país da democracia de baixa intensidade que se apresenta de várias maneiras mas tem em geral e por isso vamos ter de cons truir alternativas a partir disso algumas características que é importante rever A primeira é que esse modelo se funda em dois mer cados O mercado econômico em que se intercambiam valores com preço e o mercado político em que se inter cambiam valores sem preço idéias políticas ideologias Vemos hoje que esses dois mercados se confundem cada vez mais estamos entrando em um processo no qual so mente tem valor o que tem preço e portanto o mercado econômico e o mercado político se confundem Com isso se naturaliza a corrupção que é fundamental para man ter essa democracia de baixa intensidade porque natura liza a distância dos cidadãos em relação à política todos são corruptos os politicos são todos iguais etc o que é funcional ao sistema para manter os cidadãos afastados Por isso a naturalização da corrupção é um aspecto fun damental desse processo Esse modelo tem duas pernas a democracia represen tativa é por um lado autorização e por outro prestação de contas Na teoria democrática original essas duas idéias são fundamentais autorização porque com o voto eu au torizo alguém a decidir por mim mas por outro lado ele tem de me prestar contas O que está acontecendo com esse modelo é que continua havendo uma autorização mas não há prestação de contas no jogo democrático atual quanto mais se fala de transparência menos transparên cia há Então dado que a prestação de contas não aconte ce a autorização entra em crise por meio de duas patolo 92 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 93 gias muito fortes a da representação os representados não se sentem representados por seus representantes e a da participação abstencionismo muito freqüente Não vou participar porque meu voto não tem importância ou porque acontece sempre a mesma coisa Essas são a meu ver as condições dentro das quais temos de encontrar alguma alternativa A situação da qual partimos realmente muito difícil tem essas carac terísticas gerais uma cidadania bloqueada na medida em que a muita gente que é a característica do sistema democrático representativo não se garantem as condi ções de participação ou seja uma cidadania que se baseia na idéia de participação mas não garante suas condições materiais Por exemplo três condições são fundamentais para poder participar temos de ter nossa sobrevivência garantida porque se estamos morrendo de fome não vamos participar temos de ter um mínimo de liberdade para que não haja uma ameaça quando vamos votar e finalmente temos de ter acesso à informação Pareceme que com essa cidadania bloqueada está se banalizando a participação participamos cada vez mais do que é menos importante cada vez mais somos chamados a ter uma opinião sobre coisas que são cada vez mais banais para a reprodução do poder E isto é algo que também me parece importante há um novo processo de assimilacionismo que se exerceu em relação aos indígenas e agora se expande a toda a so ciedade e consiste em participar sem poder discutir as regras de participação Então a partir disso temos de desenvolver outro modelo democrático que consiga de fato vencer essa situação Na democracia representativa elegemos os que tomam decisões políticas na democra cia participativa os cidadãos decidem tomam as deci sões Mas essa polarização deve ser matizada primeiro a democracia representativa tem também uma parte de participação O voto é isso mas é uma participação com plexa porque envolve a idéia de renúncia à participação e por isso é limitada A democracia participativa ao con trário também tem delegações e formas de representa ção há concelhios e delegados Todos os estudos que te mos sobre os pressupostos participativos por exemplo ainda em nível local como em Porto Alegre mostram claramente que todas as formas de democracia participa tiva têm também elementos de representação z Vejamos quais são as condições para poder efetuar essa complementaridade que não é de nenhuma maneira fácil Penso que ela inclui três problemas a relação entre Estado e movimentos sociais entre partidos e movimen tos sociais e dos movimentos sociais entre si São as três vias nas quais se pode construir uma articulação entre democracia representativa e democracia participativa que talvez constitua a criação de uma forma de complementa ridade Os caminhos de complementaridade entre ambas são muito complexos não estou dizendo que seja fácil rea lizála em nenhum lugar Se observamos a situação por exemplo dos partidos e dos movimentos percebemos que enfrentamos em muitos países uma situação totalmente hostil à complementaridade os partidos têm um funda mentalismo antimovimentos sociais pensam que têm o monopólio da organização política e que os movimento sociais não são representativos Quando estava fazendo meu trabalho de pesquisa em Porto Alegre entrevistei os principais deputados e senadores que me diziam Veja só eu fui eleito com 40 mil votos quanta gente vai a uma reunião da assembléia Mil duas mil pessoas Então sou mais representativo A idéia de representação é muito complexa e mais ainda se existe esse fundamentalismo que é muito claro No Equador por exemplo me dei conta Pertencente a um concelho distrital N E Ver meu livro Democracia y participación el ejemplo del presupuesto participativo en Porto Alegre Madri El Viejo Topo 2003 Boaventura de Sousa Santos 95 94 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social da distância entre os partidos de esquerda e os movimen tos sociais como o dos indígenas Há uma hostilidade de princípios que é preciso superar Existe outro fundamentalismo inverso a esse o fun damentalismo antipartidos políticos dos movimentos so ciais que é a idéia de que os movimentos sociais têm de ser totalmente autônomos porque a alternativa é a cooptação que significa a destruição do movimento eles têm a idéia de que não é possível a relação entre partidos e movimen tos Assim então não é possível uma articulação entre democracia representativa e participativa porque a repre sentativa está dominada pelos partidos e a participativa está dominada pelos movimentos sociais e pelas associa ções de bairros de vizinhos etc Se não há uma articulação política entre as duas não é possível uma articulação entre democracia representativa e participativa É preciso ven cer esses dois fundamentalismos E há outro obstáculo os partidos privilegiam to talmente a ação institucional dentro do quadro legal dentro do parlamento etc Os movimentos sociais ao contrário dividemse entre os que utilizam mais a ação institucional e os que usam mais a ação direta E essa é a meu ver uma das razões mais persistentes que dificul tam enfrentar essa complementaridade Por outro lado também podemos dizer que os par tidos tendem a homogeneizar suas bases sociais eles gostam cada vez mais de fazer isso por meio do que cha mamos perda de ideologia nos acontecimentos dos quais fazem parte Os movimentos ao contrário têm temas específicos trabalham sobre a diferença cultural a dife rença sexual a diferença territorial trabalham com ou tros conceitos que são distintos Temos de inventar uma nova cultura política que possa exatamente vencer essas dificuldades Como se faz isso Mostrando na prática as vantagens de uma articulação Há muitas experiências no Sul em que a democracia participativa emerge como pressuposto participativo como o plebiscito ou as con sultas populares como concelhos sociais ou de gestão de políticas públicas como no Brasil onde são muito for tes neste momento e se começa a ver uma complemen taridade Ainda é limitada porque as experiências que temos de articulação entre democracia participativa e re presentativa são em nível local Temos aqui um problema de escala como desenvolver essa complementaridade em nível nacional e global Quando o Partido dos Trabalhadores PT do Brasil chegou ao poder muitos estávamos envolvidos em pro por idéias para uma democracia participativa para um pressuposto participativo em nível federal E discutimos idéias interessantes porque não pode ser o mesmo que em uma cidade tem de ter outra forma mas é possível De fato o PT no governo descartou totalmente a possi bilidade de uma democracia participativa em nível nacio nal Então temos isto uma democracia participativa no nível local consegue articular autorização com prestação de contas cria realmente uma transparência limita a corrupção de fato isso está demonstrado e consegue redistribuição social Podese provar isso nas cidades da América Latina e da Europa onde há um pressuposto participativo de redistribuição social Mas o problema é este podemos ter cidades mais justas mas as sociedades em nível geral continuam sen do cada vez mais injustas porque o âmbito local não con segue uma articulação nacional Os partidos poderiam desenvolvêla mas não o fazem Esse é o único dos li mites mais persistentes que temos mas começam a se tornar claras algumas coisas muito importantes nessa articulação a democracia participativa consegue ampliar a agenda política Há muitos problemas nos parlamen tos da América Latina e Europa agora que estes surgem diretamente das lutas populares dos movimentos so ciais Em meu país por exemplo está se desenvolvendo Boaventura de Sousa Santos 97 96 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social um plebiscito contra a penalização do aborto resultado direto do movimento popular que força os partidos de esquerda a enfrentar essa questão no parlamento A participação dos partidos é realmente importante se eles tiverem credibilidade em seus países O problema é muito claro a articulação democracia participativade mocracia representativa exige a credibilidade dos parti dos E os partidos podem sustentar uma agenda política melhor que os movimentos O problema dos movimen tos sociais é que em determinado momento eles têm uma atividade enorme estão todos os dias na imprensa e no mês seguinte já não estão estão em refluxo as pessoas já não vão às reuniões ou às assembléias Essa idéia de sustentabilidade da mobilização é um problema muito sério em muitos países porque para que se consiga uma continuidade uma participação é preciso haver articula ção política Se não há temos estas duas inércias de que falávamos antes por um lado a inércia e o refluxo dos movimentos sociais que não conseguem se multiplicar e densificar a luta e por outro os partidos que se mantêm como antes e não mudam em nada suas políticas A meu ver esse é o desafio que enfrentamos hoje para superar tais problemas e quando se decide se con seguem muitas coisas Por exemplo trabalhando com experiências concretas notase que os partidos ao ter vocação de poder costumam trabalhar bem a questão dos desequilíbrios dentro do espaço público porque competem pelo poder não querem transformálo que rem tomálo Os movimentos sociais ao contrário sa bem que muitas vezes as formas de opressão vêm do Es tado mas também de atores econômicos e sociais muito fortes motivo pelo qual a distinção entre a opressão pública e a opressão privada não é demasiado impor tante Os sindicatos por exemplo têm uma experiência notável de luta contra atores privados os patrões e as empresas Então há também nesse processo uma capa cidade enorme de ampliar a luta contra a opressão E nos países em que a democracia participativa se enraíza nas experiências que temos é possível de fato que se desenvolva neste momento uma luta mais ampla contra diferentes formas de opressão Há fatores que favorecem seu surgimento e por isso ela está aparecendo em muitos países O primeiro é que os partidos políticos estão perdendo o controle da agenda política nunca descumpriram tanto suas promessas eleitorais quando chegaram ao poder como ultimamente Um dos estudos mais interessantes é ob servar os programas dos partidos e depois sua prática política Sempre foi assim mas agora é ainda mais por que há uma pressão da globalização neoliberal que não pode entrar na agenda política de um partido Nenhum deles pode dizer quando chegar ao poder vou seguir totalmente as instruções do Banco Mundial e do FMI porque se disser isso não vai ter votos já que as pessoas sabem as conseqüências disso Tem de dizer que vai dar mais emprego educação saúde etc mas quando che ga ao poder não faz nada disso Esse descumprimento faz com que a deslegimitação dos partidos seja cada vez maior em um número cada vez maior de países Essa perda do controle da agenda política somente pode ser recuperada por meio dos movimentos popula res Não me parece que possa ser de outra forma senão por meio de uma pressão de baixo para cima vinda dos movimentos e com outra característica deve ser legal e ilegal Não pode ser somente uma luta institucional tem de ser uma luta institucional e uma luta direta Além disso em alguns contextos tem de ser cada vez mais direta porque com a criminalização da contesta ção está se reduzindo a possibilidade de uma luta insti tucional e se esta se reduz temos de abrir espaços para a possibilidade de uma luta direta ilegal e pacífica O que estou sugerindo é que temos de criar uma dialética Boaventura de Sousa Santos 99 98 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social entre legalidade e ilegalidade que de fato é a prática das classes dominantes desde sempre usam a legalidade e a ilegalidade quando lhes convêm Por isso não pode haver um fetichismo legal Eu que trabalho muito a questão do sistema judicial como sociólogo do direito em vários países da Amé rica Latina e da África tenho uma consciência muito clara de que essa tensão é necessária De fato todos os movimentos fundadores da democracia foram ile gais greves protestos e até funerais Por exemplo na África do Sul um dos movimentos de construção da nova democracia foram os funerais dos negros assassi nados Ilegalizados pelo apartheid foram um ato fun dador de pertença Já que não pertencemos na vida pertencemos na morte Isso é uma coisa que vem de muito longe Vocês sabem quais foram as primeiras so ciedades mútuas dos trabalhadores criadas no século XIX na Europa Eram para comprar um ataúde para os funerais quando morria o trabalhador ou seja o trabalhador não tinha dignidade em vida mas queria ter dignidade na morte E ainda hoje em alguns países há sociedades mútuas de funerais Essa foi a criativi dade das lutas pela sobrevivência de gente que estava excluída totalmente do contrato social e por isso essa mescla de legalidade e ilegalidade é para mim muito necessária e muito forte Claro que a relação entre Estado e movimentos e entre partidos e movimentos depende de algo que chamo de condições de oportunidade política Não po demos generalizar essas condições há condições polí ticas em que as classes que estão no poder são muito repressivas muito monolíticas há outras em que são mais abertas menos monolíticas e há muita compe tição entre elas Quanto mais competição entre elites mais brechas se abrem para que por elas entrem o mo vimento popular e a democracia participativa E aqui o que me choca mais é que os movimentos em separado não vêem as possibilidades que têm a seu alcance não aproveitam as oportunidades Isso é o que devemos analisar sobre a relação mo vimentosmovimentos Se os movimentos vão se man ter separados feministas de um lado operários in dígenas e ecologistas de outro direitos humanos aqui sociedades de bairros ali sem articulação não ire mos muito longe Há um excesso de teorias de separa ção e muito poucas teorias de união por uma tradição nefasta a meu ver na política de esquerda a crença de que politizar uma questão é polarizar uma diferença Para nossa tradição politizar significa polarizar Den tro dos movimentos das classes populares é preciso buscar outra cultura política que tem de se basear no que chamo de pluralidades despolarizadas Há uma discrepância total entre a prática e a teo ria da esquerda e dos movimentos na América Latina para uma teoria cega a prática é invisível para uma prática cega a teoria é irrelevante É o que ocorre hoje e é preciso superar isso Se vocês observarem as con dições dos movimentos verão que partem dessa po larização e também de outra coisa nunca como hoje no pensamento de esquerda houve uma discrepância tão grande entre as possibilidades de curto prazo e as incertezas de longo prazo Antes falávamos de socia lismo ou barbárie agora passamos a falar que outro mundo é possível A tolerancia é totalmente distinta o longo prazo é muito inclusivo mas também muito vago É preciso concentrar essa condição que é proble mática e ainda permite uma despolarização Ao anali sarmos os textos de toda a reflexão da esquerda desde o século XIX vemos muito claramente que as polariza ções incidiam sobretudo no longo prazo Houve algu mas no curto prazo Por exemplo na Primeira Guerra Mundial os operários se dividiram entre os que esta Boaventura de Sousa Santos 101 100 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social vam a favor da guerra e os que estavam contra mas as grandes divisões são a longo prazo Creio que hoje há condições para vencer algumas questões que parecem muito tenazes De alguma ma neira o que vou propor sobre as pluralidades despolari zadas parece ir contra um novo extremismo que existe dentro do pensamento crítico Há três extremismos que a meu ver são muito nefastos Um é sobre o su jeito histórico o extremismo entre os que continuam acreditando que o sujeito histórico é a classe operária e os que acreditam que é a massa É um extremismo mui to maior que faz trinta anos quando se discutia o que era a classe operária se a pequena burguesia era parte dela qual era o papel dos camponeses e quem eram os aliados Agora é entre o extremo da classe operária e o da massa Marcos diz pessoas comuns e portanto re beldes Michael Hardt diz em Império e disse também no FSM de 2005 todos somos comunistas Esse extremismo a meu ver ridículo está tentando confundir as coisas porque é totalmente irrelevante An tes as facções dentro dos partidos comunistas socialis tas eram divisões que tinham conseqüências políticas alguém podia ser expulso de um partido ou podia mor rer Ou seja o extremismo as posições distintas tinha conseqüências Hoje não têm conseqüências é um ex tremismo tão grande como inconseqüente desprovido de relevância A mesma coisa acontece com as formas de organização ou temos as tradicionais de partidos e sindicatos ou tudo é espontâneo não pode haver uma organização porque se houver não há democracia direta e se não há democracia direta não há movimento popu lar puro Esse extremismo é totalmente irrelevante mas gera muitos debates improdutivos Há também outro extremismo que é pensar por um lado que é necessário tomar o poder e por outro idéias como a de Holloway por exemplo que diz Não não temos nada que ver com o poder não se deve tomar o poder mas ignorálo Continua sendo muito difícil encontrar um caminho intermediário e somos vários os que estamos buscando outra via na qual a questão não é tomar ou não o poder mas transformálo so bretudo a partir de um princípio que é fundamental em todas as lutas os conflitos são determinados pelas classes ou grupos dominantes Quando lhes falo do uso contrahegemônico de um instrumento hegemô nico parto dos termos do conflito porque não está na agenda política uma transformação global Ou seja estamos em um momento em um período de transi ção que é tardio demais para ser pósrevolucionário e prematuro demais para ser prérevolucionário Essa é uma situação que traz em si toda essa ten são e oportunidade criativa que temos para poder construir uma alternativa democrática Por isso pen so que nessas condições temos de partir dos conflitos Como se mede hoje o êxito de uma luta Por sua capa cidade de mudar os termos do conflito Por exemplo os indígenas têm visto como seu êxito vai de pequenas lutas culturais para a defesa da autodeterminação da autonomia Articulamse as lutas mudando os termos Essa pluralidade despolarizada que lhes proponho terá muitas conseqüências e creio que o FSM é um embrião de realidades em que podemos começar a ver algumas dessas despolarizações pluralidades que são despola rizadas E aqui concluo minha exposição se comecei epistemologicamente com a ecologia dos saberes ter mino com as pluralidades despolarizadas Ou seja o lado político de uma epistemologia dos saberes é a in completude de propostas políticas e a necessidade de unilas sem uma teoria geral O conceito de pluralidades despolarizadas tem uma série de condições das quais não vou falar aqui mas tem sobretudo essa necessidade de uma inteligi 102 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 103 3 bilidade uma articulação de ações coletivas cada vez maior Isso está emergindo em muitos movimentos no movimento feminista no movimento indígena etc Há coisas que são totalmente inovadoras Por exemplo em meu país o movimento sindical apóia o movimen to gay e este tem muita presença nas manifestações vinte anos atrás os sindicatos nunca tinham partici pado de uma marcha de orgulho gay eram totalmente antigay e faziam uma articulação com a Igreja Católica mais conservadora Hoje essas articulações são pos síveis Para que possam ser possíveis sem uma teoria geral que diga qual é o mais importante é necessário o procedimento da tradução Tratase de criar inteligibilidade por meio da argu mentação porque apesar de todas as dificuldades que enunciamos um caminho que não é brilhante que não tem receitas prontas que é reversível é uma das tradi ções filosóficas mais interessantes O que acontece com a argumentação eu estou a ponto de ser convencido por um argumento mas você me diz uma coisa que me ofen de e eu saio dali Quando não temos conhecimento de monstrativo temos um conhecimento argumentativo Toda possibilidade de compreensão é boa mas é reversí vel porque é preciso conduzila de maneira que não nos expulse do processo argumentativo E não é fácil porque há um problema de língua há um problema de poder de argumentação há uma história por trás dos movimentos Por exemplo em minha prática de levar sindicalistas a falar com as fe ministas muitas vezes os sindicatos pensam Nós so mos o verdadeiro movimento social e toleramos um pouco a presença de vocês E como passar da tolerãn cia ao respeito mútuo recíproco P um processo polí tico nada se consegue de hoje para amanhã De fato a paciência da utopia é infinita DEBATE COM O PÚBLICO Perguntas e comentários 3 Queria fazer um comentário sabre essa experiência de complementaridade entre a democracia representativa e a participativa que o senhor dizia se dar mais no local e me chama muito a atenção a experiência que temos tido com a campanha continental contra a Alca na América Latina Nasce no FSM se desenvolve diante da ameaça da Alca mas diferentemente do FSM a campanha continental permite a participação de partidos políticos e tem um pouco as regras das assembléias sociais A partir daí sucederam muitas coi sas porque as dinâmicas são de fluxo e refluxo No caso ar gentino nos permitiu uma consulta popular de 2 milhões de votos no Brasil também mas na Bolívia a partir do reforço pela busca do Tratado de Livre Comércio Andino TLC apa rece o eixo político que toma o governo e produz toda a última parte que levou ao governo de Mesa Na semana passada em Quito o movimento indígena que é um dos que mais têm de senvolvido a luta contra o TLC nos surpreendeu porque se re tirou das negociações pelo tratado que estavam acontecendo na área andina Pareceme que já é uma luta mais que local e que pode ser pensada nos mesmos termos Vou tratar de elaborar a pergunta porque tenho muitas dúvidas Hoje foi talvez o Boaventura mais moderno e menos inovador que escutei hoje talvez pelas questões que apre sentou houve um desperdício da experiência Eric Wolfe Eric No terceiro dia foi muito difícil coordenar as perguntas com as respostas pelo grande número de intervenções do público o que levou o professor Boaventura de Sousa Santos a responder algu mas de forma particular e outras em conjunto Em primeiro lugar apresentamos aqui as intervenções respondidas e çlepois as que foram comentadas de maneira geral Boaventura de Sousa Santos 105 104 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Hobsbawm quando fazem suas análises sobre o campesinato dizem que eram anarquistas por natureza mas é interessan te pensar que talvez possam ser vistos como anarquistas por sua experiência na relação com o Estado Na Argentina agora falo como participante de assembléias como cidadão que viveu a experiência desses anos nossa relação com a democracia re presentativa é bastante complicada Quando nos politizamos como pessoas comuns diria Marcos temos certas tendências porque aprendemos na relação com o Estado Alguns trabalhos de pesquisa sobre a contestação na Argentina dizem que em dez anos neoliberais o Estado não deu em mais de 95 das contes tações nenhum tipo de resposta salvo a repressão Isso deixa marcas Pensar que determinada experiência não tem nada que ver com sua postura e sua aposta em relação à democracia representativa seria em todo caso desconhecer a construção dos movimentos sociais Nesse sentido me pareceria normativo demais pensar como deve ser a articulação entre democracia representativa e participativa e não me animo a dizer aos mo vimentos sociais por que não são capazes de articular esses dois níveis na procura de um projeto emancipatório Em todo caso seria interessante pensar o que está em tensão por baixo des sa relação entre as duas democracias que na realidade partem de lógicas de organização territorial distintas Não li isso em sua análise como funciona a produção do território porque o Estado tem sua produção territorial mas os movimentos têm outras Pensemos nos movimentos indígenas nos movimentos camponeses na atualidade dos movimentos urbanos que tra tam de reconfigurar os espaços E a política não vive no ar vive em determinados territórios que se produzem pelos sujeitos Nesse sentido parece bastante fraca ou pouco inovadora essa proposta de apostar em uma articulação entre democracia re presentativa e participativa em função também dos atores que hoje em nível global nacional e local se esforçam por distintas construções do território Pensemos nas multinacionais nos Estados fracos nos distintos movimentos locais etc Se partirmos de um pressuposto entre ordem e conflito entre política institucional e o político em que se institucio naliza o conflito por meio de uma nova ordem com o que se pode falar de expansão da democracia em que medida essa articulação que o senhor propõe entre democracia represen tativa e participativa não pressuporia uma nova regulação Queria que pudéssemos nos aprofundar em dois te mas o Estado de Exceção e o outro que aborrece muito a certos teóricos que padecemos de alguns fundamentalis mos sobre a possibilidade de democratização da relação de exploração o que é complicado Isso que o senhor disse sobre a democracia representati va e sobre a articulação com a participativa é um debate velho que recupera a discussão levantada por Pareto sobre o voto re presentativo Ou seja que a democracia representativa sempre tem a tendência de não respeitar o mandato imperativo é mais ou menos a essência dessa democracia representar globalmen te e não o mandato imperativo que falaria de uma prestação de contas do dito mandato Pareceme que isso que o senhor dizia sobre a prestação de contas na democracia representativa é quase uma contradição em seus termos Respostas do autor Sobre a primeira pergunta queria dizerlhe que de fato é verdade e de alguma maneira começo a responder a segunda é realmente preciso analisar cada vez mais as formas de participação e de articulação popular que estão se organizando no nível global O problema para mim é a sustentabilidade disso É possível por exemplo que as feministas do continente se articulem hoje com as asiá ticas sobretudo da Índia para algumas contestações e ações políticas locais E aqui temos visto que a única coisa que pode articular o local com o global ou seja a emer Boaventura de Sousa Santos 107 106 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social gência de formas de participação no nível global é que haja um fundamento uma razão local para que o movi mento seja global No caso da Alca se vê isso muito clara mente Conseguimos demonstrar que esse projeto global tinha conseqüências locais Foi possível demonstrar por exemplo as conseqüências do Nafta para a agricultura do México Nem sempre é fácil fazer isso Em 15 de fevereiro de 2003 quando houve uma manifestação contra a guer ra do Iraque pela primeira vez as feministas dos Estados Unidos conseguiram realizar a mais importante mobili zação contra a guerra Isso é inovador antes eram outros movimentos que a convocavam agora foram as feminis tas que fizeram porque articularam uma agenda local com a global já que Bush era contra a luta pelos direitos reprodutivos da mulher contra a legalização do aborto e outras questões e as feministas conseguiram articular uma luta nacional com a luta global Isso nem sempre é possível e é preciso procurar casos em cada país Quanto mais global for a luta mais dificuldade existe Por exem plo um movimento interessante é o dos povos indígenas contra as represas Ontem eu falava com uma compa nheira mapuche e estava lhe dando informações sobre o grande movimento de populações desalojadas por causa de represas que está sendo articulado em vários países no Brasil é forte na Índia é forte e poderíamos organizá lo aqui também assim como também articulálo com a luta contra a privatização da água podese aí fazer uma articulação muito clara entre o local o nacional e o glo bal Nos casos da África e da América Latina há também a questão da dívida Continuo com a segunda pergunta muito interes sante Aceito sua análise Não sei se estou mais moderno mas talvez menos inovador porque não quero produzir um conhecimento de vanguarda que crie novidade por novidade Quero avançar com aquilo que é possível em certo momento procuro radicalizar as possibilidades do momento E talvez não tenha dito tudo eu me centrei nesse tema da democracia representativa e participati va com todos os problemas que há nele Mas você tem razão quanto a isso não ser inovador é bastante anti go O problema é este nossas soluções neste momento não são heróicas Se vocês falarem com os movimentos populares verão que não falam de socialismo Alguns dirigentes fazem isso mas se a pessoa está morrendo de fome quer que não haja desperdício não só da expe riência mas também do lixo de que se alimenta Essa é a realidade neste tempo Então um pensamento heróico nessas condições é irresponsável é o que penso de Ne gri ou de Holloway porque impede a possibilidade de mudança Eu quero ser medíocre para radicalizar tudo o que existe e que pode se desenvolver Uma questão com a qual tenho trabalhado bastante é que nenhuma arti culação entre democracia representativa e participativa é possível se não houver uma globalização contrahege mônica se não houver uma luta no nível global que faça a sociedade se sentir cada vez mais incômoda na repro dução do capitalismo Porque se deixarmos produzi rá mais e mais capitalismo e cada vez mais perigos É preciso criar incomodidade é preciso mudar os termos do conflito Por isso falei do quadro local e do nacional não falei da dimensão global sem a qual isso não tem sentido mas está presente em todo o meu trabalho a necessidade da globalização contrahegemônica Há outra questão que não mencionei as possi bilidades de participação as possibilidades que há hoje de coisas novas mas que tem uma presença importante em todo o trabalho com os movimentos indígenas Existem dois livros coletivos meus um é um trabalho que fizemos na Colômbia onde desenvol vemos a questão de justiça e a democracia a partir da experiência indígena com vários capítulos sobre como se criou a justiça própria dos indígenas e como ela se Boaventura de Sousa Santos 109 108 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social articula com a justiça nacional Ou seja a idéia de que a esquerda é hoje pluricultural E por isso dizia como traduzo dignidade e respeito dos indígenas em luta de classes para o sindicato É preciso traduzir Algumas feministas no Brasil hoje nunca usam o conceito de emancipação Falavam de liberação No Brasil durante muito tempo os sindicatos falavam de emancipação social e diziam às mulheres que estavam no movimen to sindical sempre que elas traziam a questão de sexo de gênero Olhe primeiro vamos conseguir a emanci pação social e depois vamos resolver seu problema o problema principal é o da exploração e os outros vêm depois Elas se mantiveram hostis à idéia de eman cipação social porque era um mecanismo de opressão para elas de descredibilização de sua luta Então vou eliminar o conceito Não vou articular vou tradu zir O trabalho do movimento popular não é tão herói co como se pensa Muitas vezes 90 é rotina falar de coisas escrever documentos muitas vezes não sabe mos o sentido das coisas Por isso é muito importante a proposta da Universidade Popular dos Movimentos Sociais que estou fazendo para que por um lado os líderes ativistas tenham a possibilidade de reconstruir teoricamente sua atividade a fim de darlhe outro âm bito teórico analítico inovador e por outro lado que os cientistas sociais artistas e filósofos também se re novem no contato com essa realidade Pareceme que há muita experiência social a ser resgatada e talvez haja aqui uma riqueza nos movimentos muito inova dora e isso talvez o leve a dizer que não tem muito sentido na Argentina buscar uma articulação entre de mocracia representativa e participativa Estou pronto para aceitar que você me diga qual é a alternativa por Boaventura de Sousa Santos Maurício G Villegas orgs El caleidos copio de lasjusticias en Colombia Bogotá Siglo del Hombre 2001 que fazer a revolução a luta armada não creio que seja possível neste momento Sobre a pergunta que menciona Pareto quero dizer que a democracia representativa tem por natureza pro blemas talvez incontroláveis com a prestação de contas inclusive pela utilização das eleições Porque de fato o que são as eleições livres Se virmos o que se faz na prática teremos muitas dúvidas Quando um presidente como Clinton dos mais populares foi eleito só por 25 da população dos Estados Unidos qual foi sua represen tatividade Isso é verdade mas meu problema é o que temos neste momento Vivi parte de minha existência na ditadura vocês também e sabemos que a diferença não é formal Esta reunião não seria possível em meu país em 1973 No auditório haveria vários policiais que informa riam sobre a minha fala Em 1973 eu estava ensinan do os fundadores da sociologia Weber Durkheim e Marx e escrevia o nome de Marx em português Mar ques porque os policiais não entendiam Essas são coisas que para a nova geração não têm muito sentido mas a diferença entre democracia representativa e di tadura não é formal é muito real Por isso a democra cia representativa é falsa porque é pouca Vamos deixar essa luta Quando falo em Angola ou em Moçambique os contextos são distintos Mas neste momento quando os movimentos de libertação são corruptos e é preciso criar alternativas temos uma destas duas ou criamos alter nativas dentro do movimento de libertação que agora é um partido ou criamos outros partidos Vocês têm esse problema aqui de estar dentro ou fora do justicialis mo É preciso criar uma tensão Até que ponto Há paí ses em que esse discurso não tem sentido algum não há movimentos populares nem uma democracia represen tativa minimamente crível Provavelmente em algumas condições a democracia representativa é revolucionária A mera idéia de que haja outros partidos pode leválo à Boaventura de Sousa Santos 111 110 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social prisão Então entre a descredibilização total dos par tidos em muitos países e a possibilidade de reinventar é preciso tentar criar um discurso hegemônico a partir de uma contrahegemonia criar uma hegemonia alter nativa que é Essa democracia não nos serve Por isso falo de uma democracia de baixa intensidade que convive com o fascismo social Temos duas opções uma alterna tiva à democracia ou uma democracia alternativa Neste momento não vejo uma alternativa à democracia de alta intensidade que proponho Por exemplo outro aspecto do qual não falei é como se faz uma democratização radi cal Os seis espaços estruturais são formas de poder que têm de ter uma democratização Não se democratiza a família como se democratiza a fábrica ou a comunidade Como democratizamos a democracia Esse é o desafio Poderíamos pensar em algo alternativo se eu aceitar como diz o colega que realmente nunca há prestação de contas na democracia representativa Não vou dizer que nunca houve nem que em algum país é mais factível que em outros não posso generalizar tenho de fazer análises concretas de situações concretas O que digo é que agora se torna cada vez mais difícil na democracia representa tiva a prestação de contas e não vejo alternativa senão o enfrentamento por meio de mecanismos de democracia participativa usando legalidade e ilegalidade ação dire ta e ação institucional Isso não é inovador mas é o que temos e já é muito em muitos países não é possível fa zer isso Para mim o modelo é o MST do Brasil Sou tão inovador quanto eles Não posso avançar mais que a prá tica mais avançada Aqui na Argentina vejo que ou es tamos fora do Estado ou estamos cooptados pelo Estado Eu venho de outra experiência na qual estamos simul taneamente fora e dentro do Estado invadimos terras fazemos contestações ilegais ocupamos ministérios e ao mesmo tempo alguns dos nossos dirigentes estão no go verno e vamos ter uma conversa com o governo na qual o MST decide que não vai criticar Lula na eleição de 2006 se o orçamento para a reforma agrária for dobrado e as sinarão documentos Isso é possível no Brasil agora mas não era possível com Fernando Henrique Cardoso não se pode generalizar Falei aqui de uma construção teórica suficientemente aberta às diferentes realidades dos paí ses para que ninguém seja escusado de não pensar sobre sua realidade Esse é um pensamento que nos obriga a pensar nossa realidade por oposição isso não me serve e se não me serve tenho de buscar uma alternativa É o que aconteceu em meu país que teve uma revolução em 1974 todos os que estão no governo conservador eram maoístas naquele tempo Por que se passou de uma ex trema esquerda a uma direita Porque foi realmente um extremismo inconseqüente Temos de fundamentar nos sos avanços com os avanços da prática Tem sentido hoje um intelectual comprometido com os movimentos o que é uma posição que estamos inventando e que não é herói ca porque não é nem o intelectual orgânico de Gramsci nem o pensamento de vanguarda que tínhamos À pergunta sobre se essa articulação pode se trans formar em uma nova regulação respondo sem dúvida No livro sobre reinventar a democracia por exemplo falo de uma coisa que é absolutamente chocante para alguns considerar que o Estado é o mais recente mo vimento social Creio que o erro mais dramático da es querda seja dizer que o Estado é irrelevante que é total mente corrupto e que não temos de nos preocupar mais com ele Penso que é preciso lutar dentro e fora do Esta do não há alternativa O novo é isto na regulação o Es tado é um sócio o que chamamos hoje de governança é a armadilha mais recente de toda a ideologia neolibe ral Tenho alguns textos de crítica radical a isso por que esvazia todos os conflitos sociais em nome de uma forma de regulação que possui várias altergativas Uma delas é que o Estado não deve compartir a regulação 112 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 113 já que há institutos públicos ou organizações privadas que exercem a regulação social É uma visão extrema da por exemplo a regulação das escolas no Texas Há gente da esquerda crítica da América do Norte como Charles Sabel que pensa que essa é a solução A meu ver é uma armadilha porque o que é mais persistente É a idéia de que o cidadão individualmente ou mesmo organizado tem no máximo a capacidade de distinguir um problema mas nunca a capacidade de propor uma solução porque a solução vem dos profissionais da po lítica e do conhecimento científico A profissionalização da política mais o conhecimento técnicocientífico está tirando as pessoas dessa cidadania bloqueada Ai sim há realmente um processo de nova regulação Em relação ao Estado de Exceção o fascismo social está eliminando os direitos sociais e econômicos é o re sultado do desmoronamento dos direitos sociais e nes te momento há também um ataque aos direitos civis e políticos Já não são somente os sociais e econômicos são todos E nesse novo Estado de Exceção tal como há política democrática e fascismo social não há suspensão das liberdades a Constituição está em vigor mas há um novo Estado de emergência que se assenta na idéia de que sua legitimidade se baseia hoje na governabilidade ou seja na possibilidade de governar sociedades que são cada vez mais ingovernáveis Está se criando a idéia de que o governo tem de se defender de atores hostis que estão fora e dentro do sistema e podem ser cidadãos ou organizações o que se chama de inimigo interno Surge um direito penal do inimigo já teorizado na Alemanha totalmente distinto do direito penal dos cidadãos Toda a legislação antiterrorista é parte desse processo de atuar Ver Boaventura de Sousa Santos César RodriguezGaravito orgs Law and Globalization from Below Cambridge Cambridge University Press 2005 contra o inimigo interno A outra dimensão são os no vos serviços secretos nos diferentes países e o controle dos dados pessoais Hoje não podemos enviar um cor reio eletrônico e pensar que ele não vai ser observado por um controle global que busca palavraschave nos nossos emails e se alguma delas se articula com outra nosso email vai demorar um pouco mais de tempo porque vai ser verificado primeiro de maneira eletrônica e depois de maneira manual Essa é outra forma de luta contra a privacidade que ostenta o novo Estado de Exceção O terceiro aspecto é o crescimento das políticas privadas os bairros fechados A divisão das cidades entre zonas civilizadas e zonas selvagens é uma forma de fascismo social O mesmo Estado e a mesma polícia nos mata nas zonas selvagens e ajuda nosso filho a atravessar a rua nas zonas civilizadas facilitam e reprimem com o mes mo treinamento e o mesmo Estado Essa é para mim outra forma de Estado de Exceção porque há articula ções contra os direitos humanos entre polícias privadas e polícia pública Na Espanha há 100 mil policiais priva dos e 40 mil públicos e as articulações entre as polícias privada e pública estão crescendo cada vez mais não es tamos longe de todos os cidadãos nas zonas civilizadas das cidades terem seus guardacostas sua polícia priva da Se continuarmos com essa economia e sociedade de mercado com desigualdades brutais vamos ter de fato essa repressão pois as ações hostis podem vir de dentro do Estado Em muitos países há juízes progressistas ad vogados populares gente que está tentando lutar contra a corrupção e que são expulsos de seus trabalhos Neste continente mudar a Corte Suprema é um costume Na Itália depois da luta contra a corrupção por parte dos juízes houve um ataque total à atividade judicial no qual Berlusconi tentou promulgar uma lei que impede aos juí zes fazer interpretações criativas da lei O que quer dizer isso Que não podem utilizar o direito para lutar 114 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 115 por uma justiça social pela cidadania pela democracia Essas são algumas das dimensões que vejo na emergén cia do Estado de Exceção que também não está teoriza do e que não existe somente em nível nacional existe em nível global As leis antiterroristas são hoje parte das condicionalidades do Banco Mundial e do FMI temos de privatizar a economia conseguir aprovar leis de pa tentes e agora leis antiterroristas e é por isso que Paul Wolfowitz foi designado presidente do Banco Mundial Aqui há uma articulação entre o global e o local Como lutar contra isso Temos de conduzir uma luta nacional e uma luta global Nessas diferenças que houve nos mo vimentos sobre como analisar o Banco Mundial houve uma divisão dentro do FSM entre os que pensavam que o Banco Mundial poderia ser democratizado no sistema das Nações Unidas e outros que diziam que nunca o seria e que devíamos lutar pela sua eliminação Hoje só a se gunda opção tem sentido Perguntas do público Queria que aprofundasse um pouco em um tema que mencionou mas não desenvolveu os direitos humanos sobre tudo em sua matriz exclusivamente ocidental e individual e também nessa idéia de que os perpetradores dos direitos hu manos são vistos só em nível de Estados nacionais Por haver poucas certezas há muito a esclarecer mui tas perguntas e a articulação de que você falava entre os mo vimentos sociais e os partidos políticos para mim seria como voltar a uma certeza que pode estar esgotada para muitas experiências dentro da Argentina e da América Latina pelo menos como corrente de pensamento Hoje na Argentina há uma série de articulações entre os movimentos sociais e os partidos políticos pareceu até ser mais hegemônica no cam po popular essa articulação ligada por um lado ao oficialis mo ou ao Estado e por outro a partidos de esquerda mas também continua sendo ainda que hoje pareça mais invi sibilizado o processo que se foi forjando durante a década de 1990 em diferentes grupos que nasceram nos bairros em movimentos camponeses que retomaram lutas anteriores mas de outra maneira É o que é hoje o movimento campo nês de Córdoba a União dos Trabalhadores Sem Terra de Mendoza o Mocase Movimento Campesino de Santiago del Estero ou em direitos humanos a renovação do Hijos que surgiu há dez anos como um grupo de jovens que começou a se organizar de maneira diferente fora das lógicas dos parti dos políticos São as novas formas de organização um pouco mais horizontais ou mais democráticas e todo esse proces so que floresceu depois de 19 e 20 de dezembro Continua havendo articulações que não passam pelos partidos políti cos Por exemplo os camponeses com alguns movimentos de desempregados pequenos emergentes que não são hegemó nicos mas estão acontecendo ou as assembléias de bairros que hoje estão em refluxo total No interior houve diversas articulações que ainda não são conhecidas mas que existem e precisam ser resgatadas Para mim os partidos políticos soam como um filho dileto da modernidade por sua própria lógica que não permite uma articulação com o movimento social porque sempre quer submetêlo Pensando no tema do poder e da prática política que muda quando se chega ao po der vimos a experiência do Equador a Conaie Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador e o Pachakutik que hoje estão divididos e desarticulados Luis Macas o novo presidente da Conaie disse em seu discurso de posse Temos Hijos Hijosporla Identidad la Justicia contra el Olvidoy el Silencio Filhos pela Identidade pela Justiça contra o Esquecimento e o Silên cio organização de direitos humanos criada em 1994 na Argenti na formada basicamente por filhos de pessoas atingidas de alguma maneira pela repressão prisão exilio desaparecimento N T De 2001 No dia 21 houve a edosão do Que se vayan todos N T 116 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 117 de voltar a nossas fontes a construir as comunidades a par tir da base da autonomia Hoje não estão participando do movimento popular do Equador como antes e haviam sido os criadores dele Por outro lado não afirmo que não existe o Estado ou que ele é irrelevante existe e tem políticas a fa vor ou contra os movimentos Os zapatistas propuseram em certo momento fóruns da reforma do Estado discutem com ele mas também vão gerando esses processos de construção da autonomia como Los Caracoles municípios autônomos a justiça própria a educação própria por aí afora Talvez eu possa pensar nas experiências de poder local a partir do pro cesso eleitoral movimentos sociais que ganham municípios e os administram mas me parece muito difícil pensar nessa ar ticulação de modo emancipatório em nível nacional quando se fala que é preciso tomar o poder para a partir daí conseguir mudar E com respeito a esses espaços de dominação que o senhor mencionava se formos esperar que o Estado mude não se vai chegar nunca a mudálos Minha pergunta tem que ver com o impacto político do FSM e queria saber o que pensa sobre como participar na renovação de nossa relação com o político por um lado e ex cluir os partidos políticos por outro Isso não representa uma ameaça para a descredibilização dessa articulação entre a esfera política e a dos movimentos sociais Queria perguntar sobre a utilização de instrumentos hegemônicos com fins contrahegemônicos e o caso dos za patistas no México o caso de Chávez na Venezuela e o do PT no Brasil Queria perguntar a respeito dessa articulação entre movimentos sociais e partidos políticos e também outros se tores que têm capacidade de incidência ou poder de decisão no que é a transformação de uma política a respeito de quais são os instrumentos ou as experiências conhecidas além do FSM de espaços de articulação alternativa que possam ter sido construídos e aos quais possamos nos remeter para pen sar experiências próprias Entendo a partir do que o senhor vem dizendo que existe a possibilidade de articular políticas com potencial emancipatório o que a meu ver pode ser hoje uma política de reforma agrária que poderíamos pensar de maneira diferente e não só fazer a interpelação para o campo popular Pareceme também que teríamos de começar a pen sar uma ação forte rumo aos partidos políticos como estru tura ou seja como funcionam e qual é o papel que poderiam chegar a prestar ao projeto a que estamos nos propondo Faço a última pergunta duas questões A primeira é sobre a diferença que tinha o movimento sindical em sua de manda aos setores privados e em sua demanda ao Estado que apareciam como muito claras e diferentes e que hoje não são vistas dessa forma nos movimentos sociais Eu me pergunto se isso não tem que ver com essa preocupação que aparece sobre resgatar o Estado da colonização que sofreu por parte dos interesses privados e se isso tem volta A outra questão é sobre o Estado como único gerador de direitos sociais eu me perguntava se não havia aí novamente essa falácia de tomar uma parte pelo todo porque na América Latina há uma série de experiências de formas societárias nãoestatais regionais que têm gerado direitos e justiça desde o século XIX como as repúblicas independentes negras no Brasil os movimentos indígenas etc Se não há aí uma forma de pensar o que faz o Estado nacional coma universal Respostas do autor As questões agora são cada vez mais complicadas O as sunto é como se pode fazer um uso contrahegemônico dos direitos humanos DH Creio que os DH foram parte da Guerra Fria são monoculturais porque sua concepção da natureza e do indivíduo é uma concepção ocidental Não há de fato direitos humanos universais que são 118 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 119 sentidos por todas as diferentes culturas do mundo como seus A Declaração Universal foi produzida por um grupo muito pequeno de países e sua universalidade é falsa no sentido sociológico político e cultural O que me choca mais no FSM por exemplo é que muitos movimentos que lutam contra a globalização neoliberal não formulam suas lutas em termos de DH Quando falávamos disso na Índia muitos movimentos de lá nos diziam Veja os DH são mais uma armadilha ocidental A linguagem dos DH é uma das linguagens sobre a dignidade humana e não vou descartála mas tenho de fazer uma ecologia de con cepções de dignidade e de concepções no nível cultural Existe a concepção de umma que é a comunidade do Co rão do Islã e a concepção do dharma no hinduísmo que é uma concepção de organização e integração cósmica muito parecida com as concepções indígenas da nature za e do homem no cosmos como a Pachamama Há um trabalho de tradução intercultural que temos de fazer en tre os DH e outras concepções de dignidade humana Os DH são individuais e é preciso que haja uma luta pelos DH coletivos Os povos indígenas lutam há trinta anos por uma declaração das Nações Unidas sobre seus direi tos coletivos e não conseguiram nada até agora porque de acordo com a ONU houve uma autodeterminação dos países coloniais nos processos de independência como já näo há colonialismo político já não é necessária a auto determinação Os indígenas contestam dizendo Nossa autodeterminação não inclui a idéia de independéncia não queremos ser independentes queremos nossa auto determinação e nosso território E não conseguem por que os Estados se opõem esse é outro trabalho contra hegemônico que é preciso fazer O outro trabalho é que as práticas hegemônicas dos DH denunciam muitas vio lações para ocultar outras maiores eu lhes dou o exem plo dos soldados americanos torturadores na prisão de Abu Ghraib vistos em todas as televisões para ocultar a maior violação dos DH que foi a invasão do Iraque De nunciam uma violação para ocultar outra muito maior mais maciça Por último não há deliberação democrática sem negociação das regras da deliberação Os países peri féricos e semiperiféricos não participaram do esboço dos DH Por exemplo o direito ao desenvolvimento proposto pelos africanos foi ignorado durante anos Os DH em sua imensa seletividade nunca discutem os planos do Norte dos países desenvolvidos do Centro sobre o desenvol vimento que é realmente uma grande tecnologia para impedir o desenvolvimento O problema dos DH não é o Sul é o Norte é uma violação inqualificável dos direi tos Os processos de privatização da água são uma viola ção maciça dos DH mas se falarmos disso na Federação Internacional dos DH vão dizer que somos radicais que isso não é uma violação dos DH Ou seja há muito sofri mento humano que não conta como violação dos DH há muito sofrimento humano injusto que se considera um legítimo custo social Isso é o uso hegemônico dos DH e há muitos movimentos que já não usam mais esses con ceitos Outros estão tentando fazer o que proponho uma reconstrução multicultural contrahegemónica dos DH E além disso os DH são muito ocidentais porque há coisas que não ocorrem em outra cultura Por exemplo essa falsa simetria entre direitos e deveres sempre fa lamos de direitos humanos nunca de deveres humanos 56 se concedem direitos àqueles dos quais se podem exi gir deveres Por isso a natureza não tem direitos porque não tem deveres e as futuras gerações não têm direitos porque também não têm deveres Isso é impossível no hinduísmo esse dualismo não existe Mas o hinduísmo também tem problemas com a dignidade humana como o fato de não ver a questão individual a autonomia indi vidual que é também um aspecto fundamental dos DH nunca vi uma sociedade sofrer os sofrimentos são sem pre nos corpos e indivíduos Todas as concepções sobre Boaventura de Sousa Santos 121 120 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social 6 dignidade humana são incompletas é preciso fazer um trabalho multicultural Sobre a questão das mudanças nas articulações de novo a experiência argentina e esse é o problema hoje na teoria social mostra que não devemos generalizar nunca inclusive essa Epistemologia do Sul que estamos tentando desenvolver pode entrar na armadilha de querer generalizar demais Não se pode fazer isso porque hou ve situações em que partidos interessantes emergiram de movimentos sociais o PT do Brasil por exemplo ou tras em que movimentos sociais produziram novos parti dos o Pachakutik no Equador mas aqui na Argentina a crise social não produziu um novo partido articulado com os movimentos O que vocês têm de analisar é por que não ocorreu aqui É preciso fazer o diagnóstico e ten tar uma luta porque os partidos têm de ter credibilidade devem ampliar a agenda política Senão essa articulação fica muito dificil E claro não tive tempo de analisar uma coisa que você propõe e é fundamental a articulação mo vimentomovimento A obrigação de um cientista social comprometido com os movimentos é credibilizar as arti culações e tentar que elas se sustentem se ampliem se densifiquem e para isso é necessário manter a luta polí tica da pluralidade mas despolarizada no sentido de não dizer Já não quero mais falar com você porque você é meu inimigo O capitalismo vive da possibilidade de que as classes populares confundam os inimigos e pensem que o que está mais próximo é o mais importante como inimi go de fato quase nunca é Não digo que não será possível acontecer uma idéia de revolução e além disso penso que vai acontecer mais cedo ou mais tarde quando vejo países onde cada vez mais o Estado se destrói por dentro falase de uma divisão do Equador em dois falase de uma divisão da Bolívia em duas o Estado está em uma situação muito frágil Perguntei a Evo Morales o que ele vai dizer quando quiserem dividir a Bolívia e perguntei a Nina Pacari uma líder indígena do Pachakutik o que vai decidir se houver uma tentativa de dividir o Equador e lhe digo os indíge nas querem a identidade nacional É contraditório porque esses países não são viáveis como estão mas sabem que com uma divisão vai ser ainda pior ainda mais com as di visões internas que têm O Pachakutik é fraco porque Luis Macas que é um grande político criador da Universida de dos Povos Indígenas tem hoje problemas com a atual direção da Conaies e por sua vez esta não se articula bem com a Cofenaie Confederação de Nacionalidades Indíge nas da Amazônia Equatoriana porque assim como há um conflito entre Guayaquil e Quito na sociedade burguesa há também um conflito entre os indígenas da selva e os indígenas andinos A Coica Confederação de Organiza ções Indígenas da Bacia Amazônica por exemplo tem uma relação muito tensa com a Conaie e então no FSM o espaço indígena foi organizado pela Coica a participação da Conaie foi muito fraca e do movimento indígena bra sileiro também É a realidade os movimentos estão divi didos é preciso lutar pela união ainda que não seja fácil E você tem razão quando diz que há uma distinção para além da que existe entre ação direta e ação institucional é a questão da dupla institucionalidade Se vocês lerem os dois textos maravilhosos de Lenin e Trotski sobre o poder dual na Revolução Russa verão duas análises diferentes no período 190517 uma dupla institucionalidade entre os sovietes e o governo E é também o caso dos zapatistas com Los Caracoles e as Juntas de Bom Governo é uma Luis Macas foi eleito recentemente presidente da Conaie Bacia em espanhol Cuenca N T As Juntas de Bom Governo sediadas em Los Caracoles resolvem problemas em comunidades implementam as decisões zapatistas e intermedeiam as relações entre zapatistas e nàozapatistas e também com organismos nacionais e internacionais N T Boaventura de Sousa Santos 123 122 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social institucionalidade um município de fato mas totalmente fora do Estado ao contrário em Oaxaca há municípios indígenas que são reconhecidos pelo Estado e proclama dos segundo os usos e costumes indígenas Um tema fun damental na democracia de alta intensidade é a questão da interculturalidade Por exemplo ver se as autoridades tradicionais da África é um debate do qual participo em Moçambique podem ser consideradas elementos de uma democracia alternativa porque se trata de uma moderni dade alternativa que tem como característica a resistência dos países africanos à globalização neoliberal O tradicio nal é hoje o moderno africano que não pode ser globaliza do As assembléias tradicionais africanas as autoridades indígenas não podem ser globalizadas têm seu território e um conceito forte dele Há uma criatividade nessa dupla institucionalidade que vai aparecendo e ela pode ser de mocrática mas constituir também a secessão de um país Muitos países estão à beira de se dividir Na África isso é muito freqüente a Nigéria um país tão rico em petróleo e pobre em tudo o mais está nessa situação A terceira pergunta é sobre o impacto político do FSM O interessante aí é ver que em alguns países e em algumas circunstâncias é possível uma articulação ino vadora entre partidos e movimentos Provavelmente na Argentina não mas por exemplo no Fórum de Mum bai houve partidos que tiveram um papel importantís simo na organização dos movimentos sociais e quando se pensou nesse fórum a idéia era que havia um perigo porque na Índia tudo é diferente Queríamos movimen tos sociais autônomos totalmente independentes e na Índia provavelmente eles foram dominados por partidos que têm frentes de massas Os partidos tiveram lá um papel importantíssimo na articulação você imagina tra zer ao FSM de Mumbai 33 mil pessoas do movimento local de dalits a casta dos intocáveis sem uma organiza ção por trás Claro que houve partidos políticos por trás comunistas socialistas gandhianos que são adeptos de uma luta política legal ou ilegal mas pacífica E os mo vimentos que não querem rechaçar a luta armada fica ram em um fórum social alternativo chamado Mumbai Resistente do outro lado da rodovia Creio que o FSM agora pode ajudar as articulações o grande problema do Fórum de Caracas é que muita gente está preocupada em não haver autonomia se Chávez quiser controlar o FSM Penso que é um problema que deve ser resolvido mas estava mais preocupado em saber se em Marrocos que é uma ditadura o rei ia deixar que houvesse um FSM autônomo e minha suposição certa o rei de Marrocos disse não sobretudo em janeiro para que não houves se uma confrontação com o Fórum Econômico Mundial de Davos Queremos criar uma autonomia mas é muito difícil Na Europa também há partidos em que se con segue por exemplo uma articulação muito interessante com movimentos sociais Curiosamente o partido comu nista italiano que decidiu se manter fiel ao comunismo e se chama Refundação Comunista faz o trabalho mais criativo com os movimentos sociais na Itália hoje quan do se realizou o último congresso do partido no último dia não foram os dirigentes partidários que falaram mas sim os dirigentes de movimentos sociais Outros parti dos que se dizem mais próximos dos movimentos vão mais longe ainda Aqui há um campo que não se esgota e isso de alguma maneira se articula com o que dizia dos zapatistas há coisas que são em sua origem revolucio nárias mas têm uma forte dimensão reformista e são ainda mais complexas porque são reformistas quando querem os acordos de San Andrés e quando querem têm dupla institucionalidade como em Los Caracoles e nas Juntas de Bom Governo Um movimento forte tem hoje essa flexibilidade que para mim 6 o mais in teressante não há dogmatismo Devemos lutar segundo 124 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 125 as oportunidades e ter os olhos bem abertos para saber onde estão porque senão veremos passar as oportunida des O que hoje é possível amanhã já não é Carpe diem aproveite a oportunidade A respeito da articulação de movimentos sociais ela pode sim se realizar e devemos saber quais são as arti culações em que há mais possibilidade de ocorrer uma transformação política em relação a outras A reforma agrária é um debate interessantíssimo na América La tina porque os sociólogos de esquerda estão divididos alguns dizem que já não é necessária que houve mu danças com nomes que foram muito influentes como Zander Navarro e outros dizem o contrário O proble ma é articular lutas por exemplo neste momento no Brasil é importante a articulação de coisas elementares proponho aos estudantes que façam teses sobre água e sobre terra os grandes conflitos que vão emergir é uma bombarelógio em muitos países como a Colômbia e o Brasil Três movimentos lutam pela terra mas estão to talmente separados movimentos camponeses como os Sem Terra movimentos indígenas e o movimento dos afrocolombianos ou afrobrasileiros dos quilombos E aqui a colega tem razão há territorialidades autônomas onde se criaram realmente possibilidades novas de pro teção social há direitos civis e políticos autônomos Há outros exemplos interessantes como as Comunidades de Paz na Colômbia quando em meio à violência vários povoados o mais famoso é San José de Apartadó em Antióquia fazem uma coisa inovadora talvez vocês tenham tido algo assim em 2001 nós em Portugal ti vemos algo parecido durante a Revolução dos Cravos em 1974 que são as constituições locais as pessoas se juntam e organizam uma constituição local de paz em que os comerciantes as próprias pessoas se recusam a ter qualquer relação com atores armados o Exército a guerrilha e os paramilitares as mulheres por exemplo são proibidas de fazer sexo com eles há um boicote to tal à força armada Assim se criaram as Comunidades de Paz que são muitas na Colômbia e que mantêm além disso uma aliança global Aqui temos uma alter nativa institucional O que estou dizendo é que essas alternativas necessitam para sua sustentabilidade de um Estado que não seja totalmente repressivo Algumas Comunidades de Paz foram destruídas porque o Exérci to entrou e disse que não podiam continuar É preciso ver também aí se o direito não é repressivo demais Por outro lado isso não se sustenta sem uma globalização contrahegemônica sem a solidariedade internacional os dirigentes de San José de Apartadó foram à Europa visitaram parlamentares viajaram para os Estados Uni dos e os convidaram a visitar a cidade e então vieram senadores e deputados dos Estados Unidos e Europa visitar as Comunidades de Paz o que teve um impacto enorme e durante muito tempo evitou os massacres Penso que é possível criar essa dupla institucionalidade Minha luta contra o desperdício da experiência é exata mente isto lutar quando há condições dentro do Estado trabalhar e lutar sempre fora do Estado poder criar si tuações de poder dual ou dupla institucionalidade sem pre porque neste momento a privatização do Estado é não digo irreversível nós sociólogos somos muito bons para prever o passado nunca o futuro mas im portante Pode ser que haja uma luta democrática que o Estado termine com uma implosão total não sabe mos o que vai acontecer mas hoje não há Estado e sim Estados distintos em diferentes países com realidades totalmente distintas Não posso comparar facilmente o Estado da Argentina com o Estado de Moçambique ou mesmo com o da Colômbia São coisas distintas e é pre ciso ver as possibilidades de alternativas O importante é ver que essa ampliação do presente para não desper 126 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social diçar experiências nos permite ser mais inclusivos nas possibilidades de luta e quanto mais inclusivos somos mais possibilidades temos de aproveitar as alternativas Muito obrigado Sobre o autor Boaventura de Sousa Santos nasceu em Coimbra Portugal em 1940 É doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale professor catedrático da Fa culdade de Economia da Universidade de Coimbra e pro fessor visitante da University of WisconsinMadison Law School Dirige o Centro de Documentação 25 de Abril e o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra Intelectual sobrevivente da ditadura de Salazar e cons trutor de um novo país é um dos idealizadores do Fórum Social Mundial Alguns títulos publicados no Brasil Pela mão de Alice o social e o político na pósmodernidade São Paulo Cortez 1995 A critica da razão indolente contra o desperdício da experiên cia São Paulo Cortez 2000 Democratizar a democracia os caminhos da democracia par ticipativa Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2002 Conhecimento prudente para uma vida decente um discurso sobre as ciências revisitado São Paulo Cortez 2004 O Fórum Social Mundial manual de uso São Paulo Cortez 2005 Trabalhar o mundo os caminhos do novo internacionalismo operário Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2005 Um discurso sobre as ciências 4 ed São Paulo Cortez 2006 A gramática do tempo para uma nova cultura política São Paulo Cortez 2006 A universidade no século XXI para uma reforma democrática e emancipatoria da universidade 2 ed São Paulo Cortez 2006
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Copyright Boaventura de Sousa Santos Copyright desta edição Boitempo Editorial 2007 Coordenação editorial Editor adjunto Editora assistente Tradução Preparação de texto Revisão Capa Composição Produção Ivana Jinkings João Alexandre Peschanski Ana Paula Castellani Mouzar Benedito Ana Paula Figueiredo Hugo Almeida Guilherme Xavier Cintia de Cerqueira Cesar Marcel Iha Sumário CIPBRASIL CATALOGAÇAONAFONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS RJ S233r Santos Boaventura de Sousa1940 Renovar a teoria critica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos tradução Mouzar Benedito São Paulo Boitempo 2007 Tradução de Renovar la teoria critica y reinventar la emancipación social Encuentros en Buenos Aires Conferencias proferidas em Buenos Aires em 2005 ISBN 9788575590911 1 Teoria critica Discursos conferências etc 2 Movimentos sociais Discursos conferências etc 3 Mudança social Discursos conferências etc 4 Globalização Discursos conferências etc 4 Democracia Discursos conferencias etc I Titulo 070988 CDD 3034 CDU 31642 Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada ou reproduzida sem autorização da editora P edição abril de 2007 BOITEMPO EDITORIAL Jinkings Editores Associados Ltda Rua Euclides de Andrade 27 Perdizes 05030030 São Paulo SP Telfax 11 38757250 38726869 email editorboitempoeditorialcombr site wwwboitempoeditorialcombr Apresentação Gaudêncio Frigotto Prólogo Capítulo I A Sociologia das Ausências e a Sociologia das Emergências para uma ecologia de saberes 17 Capítulo II Uma nova cultura política emancipatória 51 Capítulo III Para uma democracia de alta intensidade 83 Sobre o autor 127 7 13 Apresentação Gaudêncio Frigotto O livro de Boaventura de Sousa Santos Renovar a teo ria crítica e reinventar a emancipação social nos revela de imediato que a capacidade de síntese densa engen drando crítica e anúncio somente pode resultar de au tores abertos ao debate teórico e com compromisso éti copolítico com as lutas de movimentos e organizações sociais e políticas que apostam não apenas na emanci pação política mas sobretudo na emancipação humana e social Vale dizer comprometidos com a práxis transfor madora ou revolucionária das relações sociais cada vez mais violentas do capitalismo realmente existente em es pecial nos países de capitalismo dependente e associado O leitor que conhece a vasta obra de Boaventura em boa parte publicada no Brasil perceberá que a novidade deste livro não reside tanto em novas formulações epistemológicas teó ricas e políticas do autor mas em sua capacidade de colocálas em diálogo crítico com novas realidades e sujeitos Um deba te epistemológico teórico e politico portanto que articula por um lado a natureza singular e particular dos contextos latinoamericanos a dimensões de universalidades históricas dos processos de conhecimento e por outro suas conseqüên cias em termos das lutas pela emancipação social em seus âmbitos local nacional regional e mundial Boaventura de Sousa Santos 9 S Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Com efeito ao apresentar as três conferências e deba tes realizados em 2005 na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires o autor realça a oportunida de e o desafio de expor suas idéias a um público heterogê neo o caráter polêmico dos debates e a densidade deles Os três capítulos do livro correspondentes às referidas conferências obedecem a uma exposição na qual o autor vai da explicitação dos fundamentos epistemológicos do pensa mento sociológico A Sociologia das Ausências e a Sociologia das Emergências para uma ecologia de saberes às implica ções teóricas para Uma nova cultura politica emancipatória Dessas duas dimensões aos desafios politicos Para urna de mocracia de alta intensidade Uma estrutura de exposição que dá ao livro um encadeamento lógico dos temas e com isso uma clareza argumentativa e metodológica Todavia como se pode observar em seu conteúdo central as proble máticas epistemológica teórica e politica aparecem nos três capítulos com ênfases e níveis específicos Assim o leitor encontra no primeiro capítulo um diálogo e uma síntese da produção epistemológica mais ampla do autor dentro de um projeto que busca encon trar as bases e as possibilidades da reinvenção da eman cipação social nas realidades dos países periféricos O ar gumento central é há uma reiterada tensão e crise entre a regulação e a emancipação social e entre a experiência e as expectativas na sociedade moderna ocidental No pla no social há uma regressão que se agrava sobretudo nas últimas décadas com perdas de direitos e de possi bilidades futuras e no plano epistemológico a crise do pensamento hegemônico das ciências sociais centradas em uma razão eurocêntrica e indolente incapazes de produzir novas idéias Vale dizer incapazes de renovar e reinventar a teoria e a emancipação social Para caracterizar essa crise das ciências sociais cen tradas na razão indolente Boaventura valese de figuras de linguagem metonimia e prolepse para designar a razão metonímica que toma a parte pelo todo e a hiper trofia de uma totalidade abstrata e a razão proléptica que engendra um pensamento linear no qual o futuro já está determinado nas idéias de progresso e produtividade nos parâmetros capitalistas O autor instiga a um desafio epistemológico que consiste em combater o pensamento hegemônico desde suas formulações centrandose na So ciologia das Ausências e na ecologia dos saberes A Sociologia das Ausências trata da superação das monoculturas do saber científico do tempo linear da naturalização das diferenças da escola dominante cen trada hoje no universalismo e na globalização além da produtividade mercantil do trabalho e da natureza O caminho proposto pelo autor baseiase na idéia de uma contraposição às cinco monoculturas cinco ecologias cujo espaço e tempos situamse nas sociedades coloca das à margem pelos centros hegemônicos colonizadores nas lutas experiências e saberes das organizações popu lares a ecologia dos saberes que postula um diálogo do saber científico com o saber popular e laico a ecologia das temporalidades que considera diferentes e contraditórios tempos históricos a ecologia do reconhecimento que pres supõe a superação das hierarquias a ecologia da transes cala que possibilita articular projetos locais nacionais e globais e por fim a ecologia das produtividades centrada na valorização dos sistemas alternativos de produção da economia solidária popular e autogestionária A partir dessa nova ecologia dos saberes para o au tor é possível superar a razão proléptica partindo de um futuro concreto e de utopias realistas encontradas em pistas que são forjadas nas organizações nos mo vimentos e nas lutas das classes populares e dos povos historicamente marginalizados A análise empreendida pelo autor no primeiro ca pítulo no plano epistemológico reiterase no segundo capítulo tendo como foco os fundamentos da produção Boaventura de Sousa Santos 11 10 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social teórica nas ciências sociais e sua base cultural Toma como ponto inicial os limites que percebe na teoria marxista a despeito de sua relevância e revitalização no mundo todo Nela percebe os problemas que a mesma engendra em relação à questão do futuro vinculada à idéia de progresso parca abordagem do colonialismo e à questão de aceitar a idéia de uma unidade e universali dade do saber com primazia sobre o saber científico Este é um ponto que por certo renderá debate e dis senso na leitura do livro de Boaventura pelos pesquisadores brasileiros nos quais me incluo cuja matriz é justamente o esforço de historicizar e renovar a teoria marxista e o materialismo histórico Isso não pelas críticas que Boaven tura faz a determinados encaminhamentos dominantes do marxismo ocidental sobre os quais tem ampla razão mas pelo nãodestaque da possibilidade e da necessidade de renovar essa teoria Gramsci já nos anos 30 do século passado advertia para a necessidade de pensar o homem hoje nas condições de hoje não de uma vida qualquer e de um homem qualquer Mas o texto de Boaventura nesse ponto também cumpre seu objetivo provocar um debate aber to no dissenso A produção ou a reinvenção da teoria crítica para o so ciólogo português enfrentam dois problemas resultantes da cultura e da modernidade ocidental o silêncio e a dife rença O primeiro tem origem na cultura hegemônica que teve contato com outras culturas mas foi um contato co lonial e portanto de silenciamento e desprezo O segundo implica uma luta em duas frentes a politica da hegemonia que conduz à idéia de que não há outras culturas críveis e a politica da identidade fundamentalista Desses dois pro blemas Boaventura destaca os desafios de distinguir entre objetividade e neutralidade a questão da produção de sub jetividades rebeldes não apenas subjetividades conformis tas e por fim o desafio de criar uma epistemologia do Sul superadora da matriz colonizadora Essa superação implica para o autor avançar no plano da luta prática das transfor mações sociais Esse é o tema do último capítulo que trata da democracia de alta intensidade Nesse terceiro capítulo ele demarca inicialmente que a questão democrática vinculada à renovação da teo ria crítica e à reinvençäo da emancipação social reivindica uma objetividade engajada Tratase ao mesmo tempo de evitar um duplo viés o subjetivismo e a falsa visão da neutralidade das teorias liberais ou conservadoras Por outro lado a democracia de alta intensidade e portanto de novo tipo demanda a radicalização de subjetividades rebeldes Para essa construção do novo o autor explici ta uma contradição que é da realidade histórica mesma Os instrumentos de que dispomos no plano teórico e epistemológico são os hegemónicos ou seja nos termos do autor as semânticas legítimas da convivência política e social a legalidade a democracia os direitos humanos Essa contradição impõe um duplo esforço como traba lhar esses instrumentos de forma contrahegemônica e tentar perceber nas culturas e formas políticas margina lizadas pela modernidade ocidental indícios sementes e embriões do novo No desdobramento desse capítulo ele discute prin cipalmente a questão da democracia Efetiva um inventá rio histórico do que poderiamos denominar vicissitudes da democracia suas formas seu conteúdo seus limites e impossibilidades Um exercício concreto da provocação que faz ao pensamento e à praxis no duplo movimento de trabalhar os conceitos hegemônicos de forma contrahege mônica buscando indícios de superação das relações sociais capitalistas nos movimentos e lutas sociais concretas cons truídas nas sociedades colonizadas e da periferia do capita lismo Um processo que demanda como o autor finaliza sua exposição a paciência infinita da utopia Esta é uma análise da questão democrática que se relaciona e se potencializa mesmo partindo de uma visão muito diversa do papel do 12 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social materialismo histórico da tese central de Ellen M Wood cujo escopo é a democracia em sua radicalidade é impos sível no âmbito das relações sociais capitalistas o que não elide dentro dessas relações a luta democrática O livro ganha uma originalidade de conteúdo de forma e de método ao trazer a maior parte dos debates com um públi co após cada exposição formado por intelectuais pesquisa dores sindicalistas lideres de movimentos sociais e culturais e jovens estudantes O resultado das exposições instigantes centradas na busca do diálogo critico e aberto e da própria au tocrítica como proposta de renovar as ciências sociais e rein ventar a emancipação social porque ambas estão em crise teria como resultado o que o autor destaca no prólogo deste livro Os jovens debateram muitas de minhas posições tanto porque concordavam como porque estavam em desacordo e fiquei impressionado com essa pouco freqüente combinação de lucidez intelectual e entusiasmo politico A publicação do livro no Brasil amplia a socialização das análises para um público das mesmas características e aposta utópica e revolucionária que fez escuta atenta e debate criti co na Argentina Um esforço que está no ideário do autor na tarefa de construir na teoria e na práxis subjetividades re beldes capazes de produzir uma alternativa à hegemonia con servadora e neoconservadora e seus feitos na ampliação da barbárie humanosocial Tratase de uma busca incessante e sem prazo com a paciência infinita da utopia para criar as condições subjetivas e objetivas de superação das relações so ciais capitalistas E isso na travessia implica constantemente Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Rio de Janeiro março de 2007 Ellen M Wood Democracia contra capitalismo a renovação do ma terialismo histórico São Paulo Boitempo 2003 Prólogo Visitei a Argentina pela primeira vez numa luminosa semana de abril de 2005 a convite do Conselho Latino Americano de Ciências Sociais Clacso e da Embaixada de Portugal em Buenos Aires Foi uma semana intensa na qual participei de várias conferências e seminários nas fa culdades de Direito e de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires UBA e na Universidade de General Sar miento e também de encontros com movimentos sociais e organizações nãogovernamentais Além disso compa reci a encontros de trabalho com advogados populares defensores de direitos humanos e ao lançamento de duas publicações na Feira do Livro de Buenos Aires Reinventar a democracia reinventar o Estado publicado pelo Clacso e A universidade no século XXI para uma reforma democráti ca e emancipadora da universidade publicado pelo Labora tório de Políticas Públicas de Buenos Aires em parceria com a editora Miño y Dávila Desses eventos destacaramse os três seminários que desenvolvi na Faculdade de Ciências Sociais da UBA entre 12 e 14 de abril Participaram com uma assidui dade gratificante cerca de 250 pessoas entre alunos de pósgraduação professores e pesquisadores da UBA e de muitas outras universidades do país assim como mem 14 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 15 bros de organizações sociais Por esse público diverso pouco comum no âmbito de uma universidade agra deço especialmente à Faculdade de Ciências Sociais que possibilitou essa oportunidade de expor minhas idéias e participar de um debate tão vivo e enriquecedor Eu havia proposto em acordo com meus colegas argentinos os temas para os três seminários O desen volvimento desses temas assim como os debates poste riores converteramse nos três capítulos deste livro A Sociologia das Ausências e a Sociologia das Emergências para uma ecologia de saberes Uma nova cultura polí tica emancipatória e Para uma democracia de alta in tensidade Cada um desses capítulos produto de cada seminário é uma unidade em que se sintetizam respecti vamente reflexões epistemológicas teóricas e políticas Estimulado por um público tão numeroso diverso e atento fui muito além de uma mera síntese de meu pensamento Ao final de cada exposição geraramse de bates muito interessantes que me instigaram a explorar questões novas Os jovens debateram muitas de minhas posições tanto porque concordavam como porque es tavam em desacordo e fiquei impressionado com essa pouco freqüente combinação de lucidez intelectual e entusiasmo político Este livro não teria sido possível sem a mediação da amizade do empenho e da solidariedade intelectual de um grupo de colegas que decidiram ceder seu valioso tempo para tornar esses seminários acessíveis ao público leitor A todos meu agradecimento sincero A Norma Giarrac ca Juan Pegoraro e Pedro Krotsch professores e pesqui sadores do Instituto Gino Germani que com o apoio do decano Federico Schuster passaram anos aguardando pacientemente a minha disponibilidade de aceitar o con vite para visitar a Argentina e por conseguinte a Facul dade de Ciências Sociais Quando aceitei o convite eles mesmos programaram os seminários com a inestimável colaboração do secretário de Pesquisa e PósGraduação Pablo Alabarces que enfrentou uma difícil tarefa uma vez que esses seminários tiveram um éxcesso de pedidos de inscrição Do mesmo modo um especial agradecimento a Norma Fernández da Universidade Nacional de Córdoba que realizou a gravação dos seminários Ela junto com Norma Giarracca encarregouse da tarefa de compilar as gravações e transformar as exposições em textos coeren tes tarefa que facilitou muito minha própria revisão À generosidade dessas duas colegas as quais muito admiro tanto os leitores como eu devemos este livro Last but not least meu agradecimento sincero a Ati lio Boron então secretário executivo do Clacso Depois de conhecer e admirar por longos anos a sua obra pude me beneficiar também de sua habilidade administrativa Foi seu empenho que tornou possível a visita à Argenti na programada de forma que pude aproveitar da melhor maneira os poucos e intensos dias que vivi em Buenos Aires Foi ele quem envolveu a Embaixada de Portugal E Marta Pires adido cultural dessa instituição foi quem se converteu em guia segura de meus roteiros por Bue nos Aires Finalmente devo a Atilio Boron o interesse do Clacso em levar a cabo esta publicação Espero que o livro não desmereça a dedicação e a solidariedade de tantos colegas e amigos A edição brasileira devese ao carinho com que Ivana Jinkings acompanha o meu esforço para renovar a teoria crítica e aprofundar a luta política progressista Estou lhe muito grato por isso Capítulo I A Sociologia das Ausências e a Sociologia das Emergências para uma ecologia de saberes Estes três seminários são para mim uma tentativa de dar conta de um trabalho que está em curso e tem o título ge ral de Reinventar a emancipação social Isso significa por um lado que há emancipação social e por outro que é preciso reinventála Provavelmente vamos ter de discutir o que é a emancipação social e por que necessitamos rein ventála Penso que essa questão tem três grandes dimen sões uma epistemológica que vamos discutir hoje outra mais teórica que discutiremos amanhã e outra mais polí tica que veremos depois Hoje portanto me concentro na dimensão epis temológica e em destacar por que decidi trabalhar esse tema O problema é que a emancipação social é um con ceito absolutamente central na modernidade ocidental sobretudo porque esta tem sido organizada por meio de uma tensão entre regulação e emancipação social en tre ordem e progresso entre uma sociedade com mui tos problemas e a possibilidade de resolvêlos em outra melhor que são as expectativas Então é uma sociedade que pela primeira vez cria essa tensão entre experiências correntes do povo que às vezes são ruins infelizes desi guais opressoras e a expectativa de uma vida melhor de Boaventura de Sousa Santos 19 18 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social uma sociedade melhor Isso é novo já que nas sociedades antigas as experiências coincidiam com as expectativas quem nascia pobre morria pobre quem nascia iletrado morria iletrado Agora não quem nasce pobre pode mor rer rico e quem nasce em uma família de iletrados pode morrer como médico ou doutor Essa discrepância entre experiências e expectativas é fundamental para entender o que pensamos e como pensamos a emancipação social na sociedade moderna O problema é que e isso veremos melhor amanhã essa discrepância entre experiências e expectativas entre re gulação e emancipação hoje está desfigurada De alguma maneira vivemos em sociedades com uma dupla crise crise de regulação e crise de emancipação A discrepância entre experiências e expectativas também está desfigura da porque está invertida as expectativas para a grande maioria da população mundial não são mais positivas que as experiências correntes ao contrário tornamse mais negativas Vinte anos atrás quando a primeira página dos jornais dizia reforma da saúde ou reforma da edu cação era para melhor Hoje quando abrimos o jornal e vemos uma notícia sobre reforma da saúde da educação da previdência social é certamente para pior Com efeito há uma inversão nessa discrepância de experiências e expectativas e por isso alguns pensam que não tem sentido falar de emancipação social chega mos ao fim da História e o que resta é festejálo Nós ao contrário pensamos que é preciso continuar com a idéia de emancipação social no entanto o problema é que não podemos continuar pensandoa em termos modernos pois os instrumentos que regularam a dis crepância entre reforma e revolução entre experiências e expectativas entre regulação e emancipação essas formas modernas estão hoje em crise Entretanto não está em crise a idéia de que necessitamos de uma so ciedade melhor de que necessitamos de uma sociedade mais justa As promessas da modernidade a liberdade a igualdade e a solidariedade continuam sendo uma aspiração para a população mundial Nossa situação é um tanto complexa podemos afir mar que temos problemas modernos para os quais não temos soluções modernas E isso dá ao nosso tempo o caráter de transição temos de fazer um esforço muito in sistente pela reinvenção da emancipação social Amanhã tentarei falar mais da parte teórica Alguém como eu que foi destinado a trabalhar em um país semi periférico como Portugal a fazer seu trabalho de campo na América Latina e na África e ao mesmo tempo pas sar parte de seu tempo em um país hegemônico como os Estados Unidos pode muito bem afirmar que não há atualmente uma só idéia nova produzida pelas ciências sociais hegemônicas As ciências sociais estão passando por uma crise porque a meu ver estão constituídas pela modernidade ocidental por esse contexto de tensão en tre regulação e emancipação que deixou de fora as socie dades coloniais nas quais essa tensão foi substituída pela alternativa entre a violência da coerção e a violência da assimilação Algumas correntes das ciências sociais vi saram sobretudo a regulação os estruturalfunciona listas Os outros os marxistas os críticos centraramse mais na emancipação mas a idéia foi sempre uma visão eurocêntrica dessa tensão uma visão portanto colonia lista A crise desse paradigma é geral e por isso inclui com contornos distintos todas as correntes até agora em vigor Portanto pareceme correto que se fale de uma cri se geral das ciências sociais Além disso nossas grandes teorias das ciências so ciais foram produzidas em três ou quatro países do Nor te Então nosso primeiro problema para quem vive no Sul é que as teorias estão fora de lugar não se ajustam realmente a nossas realidades sociais Sempre nos tem sido necessário indagar uma maneira pela qual a teoria 20 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 21 se ajuste a nossa realidade Mas hoje o problema é ain da maior porque nossas sociedades estão vivendo em um contexto de globalização e vemos mais claramente a debilidade das teorias sociais com as quais podemos trabalhar O Fórum Social Mundial FSM por exemplo ocorreu apesar das teorias críticas e não em razão delas a experiência do FSM não estava nas previsões das polí ticas de esquerda Hoje vivemos um problema complicado uma discre pância entre teoria e prática social que é nociva para a teoria e também para a prática Para uma teoria cega a prática social é invisível para uma prática cega a teoria social é irrelevante E essa é uma situação que temos de atravessar se tentamos entrar no âmbito da articulação entre os movimentos sociais Ontem mesmo estava em um programa com dirigentes de movimentos sociais de associações de bairros de piqueteiros de empresas recu peradas e discutíamos exatamente isto não é simples mente de um conhecimento novo que necessitamos o que necessitamos é de um novo modo de produção de co nhecimento Não necessitamos de alternativas necessi tamos é de um pensamento alternativo às alternativas Isso é ainda mais urgente e por isso precisamos fa zer uma reflexão epistemológica já que em nossos países se vê cada vez mais claro que a compreensão do mun do é muito mais ampla que a compreensão ocidental do mundo E por isso nos falta um conhecimento tão glo bal como a globalização Esse é o contexto em que nos encontramos hoje é um desafio enorme para as novas gerações de cientistas sociais O Movimento Piqueteiro contra o desemprego surgiu na Ar gentina em junho de 1996 durante o governo Menem depois da privatização da petroleira YPF quando trabalhadores demitidos pela empresa na província de Neuquén obstruíram rodovias e o movimento se espalhou pelo pais N T Foi nesse contexto que propus um exercício reunir cientistas sociais do Sul e tentar realizar um projeto que se chamou Reinventar a emancipação social a partir do Sul ou seja dos países periféricos e semiperiféricos do sistema mundial para permitir que as ciências sociais se reunissem e organizassem internacionalmente fora dos centros hegemônicos Vocês conhecem a divisão do trabalho se forem aos Estados Unidos ou à Europa verão os estudantes por exemplo na Universidade de Wisconsin onde tra balho fazendo pesquisas sobre a Argentina Bolívia Equador ou Moçambique Em nossos países quantos estudantes trabalham sobre a realidade de outros paí ses Nós trabalhamos sobre nossa realidade eles fazem o trabalho global e nós estamos de certa maneira loca lizados É uma divisão de trabalho eficaz nas ciências sociais porque depois as grandes organizações interna cionais olham o mundo pelos olhos dos cientistas so ciais do centro do Norte Por conseqüência as teorias sociais reproduzem as desigualdades entre o Norte e o Sul Portanto organizei um projeto que reuniu seis países Portugal Colômbia Brasil África do Sul Índia e Moçambique com cerca de sessenta pesquisadores sociais Os livros estão saindo em espanhol também Já há cinco em português italiano e inglês O primeiro se chama Democratizar a democracia e o segundo Pro duzir para viver 2 O terceiro Reconhecer para libertar 2 Boaventura de Sousa Santos org Democratizar a democracia os caminhos da democracia participativa Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2002 Boaventura de Sousa Santos org Produzir para viver os caminhos da produção não capitalista Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2002 Boaventura de Sousa Santos org Reconhecerpara libertar os ca minhos do cosmopolitismo multicultural Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2003 Boaventura de Sousa Santos 23 22 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social O quarto Semear outras soluções4 o quinto Trabalhar o mundo s Apesar de ser o coordenador não tracei um quadro teórico rígido tentei reunir cientistas sociais de outros países para conjuntamente conversar e pensar um projeto E surgiu um projeto no qual tentamos ver quais são as contradições mais persistentes entre o Norte e o Sul O primeiro tema foi a democracia porque há muita inovação democrática que está emergindo do Sul e não do Norte entretanto a teoria da democracia continua sendo produzida no Norte O segundo tema foi a pro dução nãocapitalista as formas de economia solidária de economia social de economia popular que são tão importantes hoje no Sul O terceiro tema que a meu ver vai se tornar um confronto entre o Norte e o Sul é o do multiculturalismo a diversidade cultural a cidadania cultural os direitos indígenas etc E o quarto é a ques tão dos conhecimentos rivais ou seja a capacidade que o Norte tem de negar a validade ou mesmo a existência dos conhecimentos alternativos ao conhecimento cien tífico conhecimentos populares indígenas campone ses etc para transformálos em matériaprima para o desenvolvimento do conhecimento científico Notase muito isso na biodiversidade e surge então a neces sidade de repensar a situação Finalmente outro tema de confronto é a meu ver o do novo internacionalismo operário com o término do antigo que de fato não era internacional tem sido o capital não o movimento ope rário estão emergindo muitas iniciativas SulSul de Boaventura de Sousa Santos org Semear outras soluções os ca minhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2004 Boaventura de Sousa Santos org Trabalhar o mundo os cami nhos do novo internacionalismo operário Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2004 articulação entre os sindicatos ou comissões operárias de trabalhadores da mesma multinacional Esses temas me levaram a uma reflexão epistemo lógica Primeiro não é fácil desenvolver um projeto in ternacional fora dos centros hegemônicos pois somos muito dependentes de seus autores Em segundo lugar quando se trabalha no Sul o que vemos é que as ciências em geral e as ciências sociais em particular convivem com diferentes culturas Na Índia por exemplo a socio logia convive com o hinduísmo como aqui convivemos com os pressupostos da cultura ocidental e na África com tantas culturas africanas Não há ciência pura há um contato cultural de produção de ciência Isso é muito importante já que aprendemos com nossa epistemologia positivista que a ciência é indepen dente da cultura entretanto os pressupostos culturais das ciências são muito claros Vamos portanto discutir como podemos no que diz respeito à ciência ser obje tivos mas não neutros como devemos distinguir entre objetividade e neutralidade Objetividade porque pos suímos metodologias próprias das ciências sociais para ter um conhecimento que queremos que seja rigoroso e que nos defenda de dogmatismos e ao mesmo tempo vivemos em sociedades muito injustas em relação às quais não podemos ser neutros Devemos ser capazes de efetuar essa distinção que é muito importante A terceira idéia resultante foi que tomando ainda as ciências sociais a compreensão do mundo é muito mais ampla que a ocidental Os colegas da África do Sul da Ín dia de Moçambique têm uma maneira de ver a sociolo gia a sociedade e o mundo muito distinta da que existe no Norte Então me pareceu que provavelmente o mais preocupante no mundo de hoje é que tanta experiência social fique desperdiçada porque ocorre em lugares remo tos Experiências muito locais não muito conhecidas nem legitimadas pelas ciências sociais hegemônicas são hosti 24 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 25 lizadas pelos meios de comunicação social e por isso têm permanecido invisíveis desacreditadas A meu ver o pri meiro desafio é enfrentar esse desperdício de experiências sociais que é o mundo e temos algumas teorias que nos di zem não haver alternativa quando na realidade há muitas alternativas A gente vive lutando por coisas novas e eles sim pensam que há alternativas novas Então devemos ver como vamos enfrentar esse problema A outra questão importante desse trabalho com os sessenta pesquisadores foi que durante muito tempo nas ciências sociais realmente insistimos ainda hoje em uma discussão que nos parecia absolutamente central a discussão entre estrutura e ação Qual é a importância disso Temos nos preocupado muito com essas distin ções mas quase esquecemos que uma preocupação ex clusiva com as condições objetivas nos conduziu a uma armadilha desmoralizamos a vontade de transformação social Se as condições objetivas são tão poderosas como podemos transformar a sociedade Estamos diante de um grande problema como in tensificar a vontade Em outras culturas é mais fácil Pro vavelmente vocês se lembram de filmes da China ou da Índia em que com uma concentração de ioga os perso nagens podem por meio de uma intensificação enorme da vontade destruir um pedaço de madeira com a mão Ou seja não há condições objetivas se a vontade é forte Em nossa cultura ao contrário não temos possibilidade disso nossa vontade está muito relacionada às condições objetivas o que não me pareceria mal se complementás semos com outra reflexão que as ciências sociais têm dei xado de fora a distinção entre ação rebelde e ação confor mista Estou mais interessado nessa distinção e em como criar subjetividades rebeldes do que em ficar discutindo os conceitos de estrutura e ação a vida toda Esse também é um desafio que me levou a observar o aspecto epistemológico de que lhes quero falar hoje Depois do que foi dito fica claro que não podemos buscar a solução para alguns desses problemas nas ciências sociais porque se as usamos de maneira convencional elas se tomam parte do problema e não da solução Temos de reinventar as ciên cias sociais porque são um instrumento precioso depois de trabalhálas epistemologicamente devemos fazer com que elas sejam parte da solução e não do problema Ou seja não é um problema das ciências sociais mas sim do tipo de racionalidade subjacente a elas Com efeito a racionalidade que domina no Norte tem tido uma influência enorme em todas as nossas maneiras de pensar em nossas ciências em nossas concepções da vida e do mundo A essa racionalidade seguindo Gottfried Leibniz eu chamo indolente preguiçosa É uma racionalidade que não se exerce muito que não tem necessidade de se exercitar bastante daí por que fiz este livro publicado na Espanha chamado A crítica da razão indolente contra o des perdício da experiência Então o que estou tentando fazer aqui hoje é uma crítica à razão indolente preguiçosa que se considera única exclusiva e que não se exercita o su ficiente para poder ver a riqueza inesgotável do mundo Penso que o mundo tem uma diversidade epistemológica inesgotável e nossas categorias são muito reducionistas A razão indolente se manifesta de diferentes formas Duas me parecem particularmente importantes a razão metonímica e a razão proléptica A razão metonímica Metonimia é uma figura da teo ria literária e da retórica que significa tomar a parte pelo todo E essa é uma racionalidade que facilmente toma a parte pelo todo porque tem um conceito de totalidade feito de partes homogêneas e nada do que fica fora des 6 Boaventura de Sousa Santos A crítica da razão indolente contra o desperdício da experiencia São Paulo Cortez 2000 Mais especificamente a definição de sinédoque um tipo de meto nímia NE Boaventura de Sousa Santos 27 26 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social sa totalidade interessa Então tem um conceito restrito de totalidade construído por partes homogêneas Esse modo da razão indolente que chamo razão metonímica faz algo que a meu ver é um dos dois aspectos do des perdício da experiência contrai diminui subtrai o pre sente Ou seja temos uma concepção do presente que é contraída precisamente porque a concepção da raciona lidade que possuímos não nos permite ter uma visão am pla de nosso presente Um grande filósofo alemão Ernst Bloch dizia se vivemos sempre no presente por que ele é tão passageiro tão fugaz Em nosso conceito o presen te é um momento mas é um momento entre o passado e o futuro no qual vivemos sempre nunca vivemos no passado nem no futuro Então esse conceito de razão me tonímica contrai o presente porque deixa de fora muita realidade muita experiência e ao deixálas de fora ao tornálas invisíveis desperdiça a experiência A razão proléptica é a segunda forma Prolepse é uma figura literária bastante encontrada em romances nos quais o narrador sugere claramente a idéia de que conhece bem o fim mas não vai contálo É conhecer no presente a história futura Nossa razão ocidental é muito proléptica no sentido de que já sabemos qual é o futuro o progresso o desenvolvimento do que temos É mais crescimento eco nômico é um tempo ideal linear que de alguma maneira permite uma coisa espantosa o futuro é infinito A meu ver expande demais o futuro A razão indolente então tem essa dupla característica como razão metonímica contrai diminui o presente como razão proléptica expan de infinitamente o futuro E o que vou lhes propor é uma estratégia oposta expandir o presente e contrair o futuro Ampliar o presente para incluir nele muito mais experiên cias e contrair o futuro para preparálo Vocês viram essa coisa espantosa que é a discre pãncia entre o nosso futuro individual e o futuro de nossa sociedade Sabemos que nosso futuro é limitado porque nossa vida é limitada por isso tanto quanto podemos cuidamos de nossa saúde de nossa alimen tação cuidamos de nosso futuro porque ele é limitado Com a sociedade não ocorre o mesmo não é necessário cuidar do futuro da sociedade porque ele é infinito O que estou propondo é visarmos o futuro de nossas so ciedades quase como se fosse nosso futuro pessoal É preciso contrair o futuro e ao mesmo tempo ampliar o presente É um procedimento epistemológico que es pero possamos ver juntos como fazer Vamos começar pela razão metonímica ou seja por essa idéia de totalidade que é muito reducionista porque contrai o presente ao deixar de fora muita realidade que não é considerada relevante e que se desperdiça Baseia se em duas idéias uma delas é a simetria dicotômica que esconde sempre uma hierarquia Vivemos em um conheci mento preguiçoso que é por natureza um conhecimento dicotômico homemmulher nortesul culturanatureza branconegro São dicotomias que parecem simétricas mas sabemos que escondem diferenças e hierarquias Podemos nos perguntar se na China ou na Índia há uma racionali dade mais ampla Eu respondo que sim pois não têm o mesmo tipo de racionalidade A questão é para onde nos conduz uma racionalidade tão estreita como a nossa Uma coisa é clara nossas formas de racionalidade emergem da periferia do mundo Vocês têm de ver que há uma angústia uma inquietude no Ocidente ser a perife ria do Oriente O conhecimento oriental é muito mais glo bal mais holístico é totalidade não é dicotômico Todas essas dicotomias são vistas de outra maneira no Oriente porque não existem como dicotomias existem como par tes que são articuladas em totalidades cósmicas muito mais amplas em multiplicidades de tempos tempos circulares tempos lineares tempos de metempsicose ou seja da reencarnação É uma racionalidade mais comple xa que vemos totalmente limitada por nossa forma de 28 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 29 racionalidade Nossa racionalidade se baseia na idéia da transformação do real mas não na compreensão do real E este é nosso problema hoje a transformação sem compreensão está nos levando a situações de desastre Um grande filósofo alemão Franz Wieacker dizia a ciên cia ocidental faz perguntas mas não pode se perguntar sobre o fundamento de suas perguntas Isso me parece bastante verdadeiro para as ciências sociais Então a ra zão metonímica tem essa dupla idéia das dicotomias e das hierarquias por isso não é possível pensar fora das totalidades não posso pensar o sul sem o norte a mu lher sem o homem não posso pensar o escravo sem o amo Mas o que devemos inquirir é se nessas realidades não há coisas que estão fora dessa totalidade o que há na mulher que não depende da relação com o homem o que há no sul que não depende da relação com o norte o que há no escravo que não depende da relação com o amo Ou seja pensar fora da totalidade Não é fácil mas é o que proponho porque essas totalidades de redução nos têm conduzido a essa contradição do presente Como se faz Em que consiste a contração do presen te Fazse por meio da redução da diversidade da realidade a alguns tipos concretos muito limitados reduzidos de realidade Como se pode demonstrar que realmente há muitas outras realidades fora dessa realidade Pro ponho para combater a razão metonímica utilizar uma Sociologia das Ausências O que isso quer dizer Que muito do que não existe em nossa realidade é produzido ativamente como nãoexistente e por isso a armadilha maior para nós é reduzir a realidade ao que existe Assim de imediato compartimos essa racionalidade preguiçosa que realmente produz como ausente muita realidade que poderia estar presente A Sociologia das Ausências é um procedimento transgressivo uma sociologia insurgente para tentar mostrar que o que não existe é produzido ativamente como nãoexistente como uma alternativa nãocrível como uma alternativa descartável invisível à realidade hegemônica do mundo E é isso o que produz a contra dição do presente o que diminui a riqueza do presente Como se produzem as ausências Não existe uma ma neira única mas cinco modos de produção de ausências em nossa racionalidade ocidental que nossas ciências sociais compartem A primeira é a monocultura do saber e do rigor a idéia de que o único saber rigoroso é o saber científico por tanto outros conhecimentos não têm a validade nem o rigor do conhecimento científico Essa monocultura re duz de imediato contrai o presente porque elimina mui ta realidade que fica fora das concepções científicas da sociedade porque há práticas sociais que estão baseadas em conhecimentos populares conhecimentos indígenas conhecimentos camponeses conhecimentos urbanos mas que não são avaliados como importantes ou rigoro sos E como tal todas as práticas sociais que se organi zam segundo esse tipo de conhecimentos não são criveis não existem não são visíveis Essa monocultura do rigor baseiase desde a expansão européia em uma realidade a da ciência ocidental Ao constituirse como monocultura como a soja destrói outros conhecimentos produz o que chamo epis temicídio a morte de conhecimentos alternativos Reduz realidade porque descredibiliza não somente os conheci mentos alternativos mas também os povos os grupos so ciais cujas práticas são construídas nesses conhecimentos alternativos Qual é o modo pelo qual essa cultura cria ine xistência A primeira forma de produção de inexistência de ausência é a ignorancia A segunda monocultura é a do tempo linear a idéia de que a história tem um sentido uma direção e de que os países desenvolvidos estão na dianteira E como estão na dianteira tudo o que existe nos países desenvolvidos Boaventura de Sousa Santos 31 30 Renovar a teoria critica e reinventar a emancipação social é por definição mais progressista que o que existe nos países subdesenvolvidos suas instituições suas formas de sociabilidade suas maneiras de estar no mundo Esse conceito de monocultura do tempo linear inclui o concei to de progresso modernização desenvolvimento e agora globalização São termos que dão a idéia de um tempo li near no qual os mais avançados sempre estão na dianteira e todos os países que são assimétricos com a realidade dos países mais desenvolvidos são considerados atrasados ou residuais Então a segunda forma de produção de ausên cias é a residual o que tem sido chamado prémoderno simples primitivo selvagem etc Já se pode observar qual é a implicação dessa monocultura nesse modelo é impos sível pensar que os países menos desenvolvidos possam ser mais desenvolvidos que os desenvolvidos em alguns aspectos Podemse pensar alguns aspectos que são total mente funcionais para os países do Norte os países menos desenvolvidos podem por exemplo ter paisagens melho res para o turismo mas nada mais A terceira monocultura é a da naturalização das dife renças que ocultam hierarquias das quais a classificação racial a étnica a sexual e a de castas na Índia são as mais persistentes Ao contrário da relação capitaltra balho aqui a hierarquia não é a causa das diferenças mas sua conseqüência porque os que são inferiores nessas classificações naturais o são por natureza e por isso a hierarquia é uma conseqüência de sua inferioridade desse modo se naturalizam as diferenças Esta é outra característica da racionalidade preguiçosa ocidental não sabe pensar diferenças com igualdade as diferen ças são sempre desiguais Por conseguinte o terceiro modo de produzir ausência é inferiorizar que é uma maneira desqualificada de alternativa ao hegemônico precisamente por ser inferior A quarta monocultura de produção de ausência é a monocultura da escala dominante A racionalidade meto nímica tem a idéia de que há uma escala dominante nas coisas Na tradição ocidental essa escala dominante tem tido historicamente dois nomes universalismo e ago ra globalização O que é o universalismo Simplesmente é toda idéia ou entidade que é válida independentemente do contexto no qual ocorre Por sua vez a globalização é uma identidade que se expande no mundo e ao se ex pandir adquire a prerrogativa de nomear como locais as entidades ou realidades rivais Ou seja não há globaliza ção sem localização Quando você localiza o McDonalds localiza suas comidas tornaas étnicas locais E não há universalismo sem particularismo E aqui nessas duas formas há uma maneira de criar ausências que é o par ticular e o local A realidade particular e local não tem dignidade como alternativa crível a uma realidade global universal O global e universal é hegemônico o particu lar e local não conta é invisível descartável desprezível A última monocultura é a monocultura do produti vismo capitalista que se aplica tanto ao trabalho como à natureza É a idéia de que o crescimento econômico e a produtividade mensurada em um ciclo de produção determinam a produtividade do trabalho humano ou da natureza e tudo o mais não conta Essa é uma maneira contrária a toda outra forma de organizar a produtivi dade Por exemplo para os indígenas ou os camponeses a produtividade da terra não é definida em um ciclo de produção mas em vários se a terra está produtiva este ano no ano seguinte ela não é cultivada para que des canse e em seguida voltamos a cultivála Toda a selva está organizada dessa maneira Então há outra lógica produtiva que não conta A lógica produtiva é uma no vidade da racionalidade ocidental existe há quase cem anos quando nasceram os produtos químicos na agri cultura e a terra passou a ser produtiva em um ciclo de produção porque os fertilizantes mudaram p conceito de produtividade da natureza apareceu ao mesmo Boaventura de Sousa Santos 33 32 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social tempo que o conceito de produtividade no trabalho Tudo o que não é produtivo nesse contexto é considera do improdutivo ou estéril Aqui a maneira de produzir ausência é com a improdutividade 1lá cinco formas de ausência que criam essa razão metonímica preguiçosa indolente o ignorante o resi dual o inferior o local ou particular e o improdutivo Tudo o que tem essa designação não é uma alternativa crível às práticas científicas avançadas superiores glo bais universais produtivas Essa idéia de que não são críveis gera o que chamo a subtração do presente porque deixa de fora como nãoexistente invisível descredibi lizada muita experiência social Se queremos inverter essa situação por meio da Sociologia das Ausências temos de fazer que o que está ausente esteja presente que as experiências que já existem mas são invisíveis e nãocríveis estejam disponíveis ou seja transformar os objetos ausentes em objetos presentes Nossa sociologia não está preparada para isso não sabemos trabalhar com objetos ausentes trabalhamos com objetos presentes essa é a herança do positivismo Estou propondo pois uma Sociologia insurgente Se é assim essa falta essa ausência é um desperdício de experiência A maneira pela qual procede a Sociologia das Ausências é substituir as monoculturas pelas ecolo gias e o que lhes proponho são cinco ecologias em que podemos inverter essa situação e criar a possibilidade de que essas experiências ausentes se tornem presentes As cinco ecologias são as seguintes A ecologia dos saberes Não se trata de descredibili zar as ciências nem de um fundamentalismo essencia lista anticiência como cientistas sociais não podemos fazer isso O que vamos tentar fazer é um uso contra hegemônico da ciência hegemônica Ou seja a possibili dade de que a ciência entre não como monocultura mas como parte de uma ecologia mais ampla de saberes em que o saber científico possa dialogar com o saber laico com o saber popular com o saber dos indígenas com o saber das populações urbanas marginais com o saber camponês Isso não significa que tudo vale o mesmo Discutiremos isso com o tempo Somos contra as hierar quias abstratas de conhecimento das monoculturas que dizem por princípio a ciência é a única não há outros saberes Vamos iniciar nesta ecologia afirmando que o importante não é ver como o conhecimento representa o real mas conhecer o que determinado conhecimen to produz na realidade a intervenção no real Estamos tentando uma concepção pragmática do saber Por quê Porque é importante saber qual é o tipo de intervenção que o saber produz Não há dúvida de que para levar o homem ou a mulher à Lua não há conhecimento melhor do que o científico o problema é que hoje também sabe mos que para preservar a biodiversidade de nada serve a ciência moderna Ao contrário ela a destrói Porque o que vem conservando e mantendo a biodiversidade são os conhecimentos indígenas e camponeses Seria apenas coincidência que 80 da biodiversidade se encontre em territórios indígenas Não É porque a natureza neles é a Pachamama não é um recurso natural É parte de nossa sociabilidade é parte de nossa vida é um pensamento antidicotômico Então o que tenho de avaliar é se se vai à Lua mas também se se preserva a biodiversidade Se queremos as duas coisas temos de entender que necessi tamos de dois tipos de conhecimento e não simplesmen te de dm deles É realmente um saber ecológico o que estou propondo A segunda é a ecologia das temporalidades O im portante é saber que embora haja um tempo linear também existem outros tempos Os camponeses por exemplo têm tempos estacionais muito importantes Divindade inca que se identifica com a Mãe Terra N T 34 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 35 Em comunidades da Africa o tempo dos antepassados é fundamental Vivi a experiência com as autoridades tradicionais na África se estamos em uma reunião os antepassados fazem parte dessa reunião não estão an tes estão presentes E vivi isso também na selva com os ticunas na Colômbia e no Brasil É outra concepção do tempo porque os que estão antes estão conosco é uma concepção muito mais rica Devemos entender essa ecologia de temporalidades para ampliar a con temporaneidade porque o que fizemos com a nacionali dade metonímica foi pensar que encontros simultâneos não são contemporãneos O camponês africano ou la tinoamericano pode se encontrar com o executivo do Banco Mundial é um encontro simultâneo mas não contemporâneo porque o camponês latinoamericano ou africano é residual e o executivo é avançado O importante então é reconhecer que o camponês é à sua maneira tão contemporâneo como o executivo e eliminar o conceito de residualidade Para isso é pre ciso deixar que cada forma de sociabilidade tenha sua própria temporalidade porque se vou reduzir tudo à temporalidade linear estou afastando todas as outras coisas que têm uma lógica distinta da minha Quando o subcomandante Marcos diz pudemos ficar calados durante quinhentos anos para nós é incompreensível Também posso lhes contar histórias maravilhosas de diferentes tipos de temporalidade que mostram como é realmente necessário ter essa ecologia Em um projeto no qual estávamos trabalhando na Colômbia havia uma luta muito grande pela exploração de petróleo na Sierra Nevada de Santa Marta onde vivem os uwas um povo indígena que ameaçou se suicidar coletivamente caso explorassem o petróleo em suas terras por uma razão muito simples o petróleo é sangue da terra e o sangue da terra é seu próprio sangue sem sangue não se vive No século XVII quando os espanhóis tentaram colonizar essa região as famílias dos uwas realmente se mataram pularam de um penhasco no lago e ficou só um grupo de famílias para manter a tradição Essa era uma amea ça muito grande e em certo momento o ministro do Meio Ambiente da Colômbia decidiu falar com os taitas anciões os chefes indígenas Chegou de helicóptero à Sierra Nevada para se reunir com eles e averiguar por que não aceitavam a exploração do petróleo dizendo que eram territórios sagrados Na reunião o ministro falou e os taitas ficaram calados O ministro pergun tou por que não falavam se era porque não queriam falar com ele Até que um disse Não nós queremos o problema é que temos de consultar os antepassados O ministro perguntou quanto tempo levaria isso e o taita respondeu Veja depende da lua isso nós con sultamos à noite E quem conhece sua etnologia sabe que isso é verdade que não era uma farsa era o que pensavam O ministro disse que ele não podia ficar até a noite que o helicóptero não tinha luzes suficientes que já havia perdido duas horas de seu tempo conversando Foi embora e os taitas continuaram sem falar E claro no dia seguinte os jornais de Bogotá diziam Os taitas não querem falar com o ministro Queriam falar sim mas em seu tempo Então a ecologia das temporalida des é a meu ver imprescindível A terceira é a ecologia do reconhecimento O procedi mento que proponho é descolonizar nossas mentes para poder produzir algo que distinga em uma diferença o que é produto da hierarquia e o que não é Somente deve mos aceitar as diferenças que restem depois que as hie rarquias forem descartadas Ou seja mulher e homem são distintos depois que fizermos uma sociologia ecoló gica para ver o que não está conectado com a hierarquia As diferenças que permanecerem depois de eliminarmos as hierarquias são as que valem Mais adiantç vamos fa lar do princípio de igualdade e do princípio da diferença Boaventura de Sousa Santos 37 36 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social A quarta é a ecologia da transescala muito importan te hoje para o FSM e para todo o nosso trabalho e que constitui a possibilidade de articular em nossos projetos as escalas Locais nacionais e globais Como cientistas sociais fomos criados na escala nacional como a política como tudo Os antropólogos tratavam um pouco o local os soció logos e os cientistas políticos o nacional Nesse quadro tudo o que é local será embrionário se puder conduzir ao nacional os movimentos locais são importantes se po dem tornarse nacionais Mas hoje temos de ser capazes de trabalhar entre as escalas articular análises de escalas locais globais e nacionais É muito difícil porque nunca observamos fenômenos nas ciências sociais Observamos escalas de fenômenos e por isso muitos dos discursos dos executivos ou das agências transnacionais têm uma esca la para ver os fenômenos que não é a nossa ou que não é a dos trabalhadores ou dos camponeses Portanto é preciso analisar como é possível ver através das escalas E finalmente há a ecologia dasprodutividades No domí nio da quinta lógica a lógica produtivista a Sociologia das Ausências consiste na recuperação e valorização dos sis temas alternativos de produção das organizações econô micas populares das cooperativas operárias das empresas autogestionadas da economia solidária etc que a ortodo xia produtivista capitalista ocultou ou desacreditou Os movimentos de camponeses pelo acesso à terra e à propriedade desta ou contra os megaprojetos de desenvol vimento por exemplo as grandes represas que obrigam o deslocamento de muitos milhares de pessoas movimentos urbanos pelo direito à moradia movimentos econômicos populares movimentos indígenas para defender ou recupe rar seus territórios históricos e os recursos naturais que ne les foram descobertos movimentos das castas inferiores da Índia com o objetivo de proteger suas terras e seus bosques movimentos pela sustentabilidade ecológica movimentos contra a privatização da água ou contra a privatização dos serviços de bemestar social todos eles baseiam suas pre tensões e lutas na ecologia das produtividades Quero me dedicar agora a analisar a crítica da razão proléptica As ecologias vão nos permitir dilatar o pre sente com muitas experiências que nos são relevantes agora vamos tentar contrair o futuro Substituir um in finito que é homogêneo que é vazio como dizia Walter Benjamin por um futuro concreto de utopias realis tas suficientemente utópicas para desafiar a realidade que existe mas realistas para não serem descartadas facilmente A crítica da razão proléptica é feita por ou tra sociologia insurgente a Sociologia das Emergências Enquanto a razão metonímica é confrontada com a So ciologia das Ausências a razão proléptica é enfrentada pela Sociologia das Emergências Tentaremos ver quais são os sinais as pistas latên cias possibilidades que existem no presente e que são si nais do futuro que são possibilidades emergentes e que são descredibilizadas porque são embriões porque são coisas não muito visíveis Nas ciências sociais por exem plo não gostamos das pistas dos sinais Trabalhamos com indicadores Mas os médicos na saúde trabalham com pistas sinais os detetives também Somos muito cé ticos a respeito das possibilidades da emergência Entre o nada e o tudo que é uma maneira muito estática de pensar a realidade eu lhes proponho o ainda não Ou seja um conceito intermédio que provém de um filósofo alemão Ernst Bloch o que não existe mas está emergin do um sinal de futuro Assim na Sociologia das Emergências temos de fa zer uma ampliação simbólica por exemplo de um pe queno movimento social uma pequena ação coletiva Às vezes somos culpáveis de descredibilizar Isto não é uma democracia local não tem sustentabilidade Ao contrário sem romantismos devemos buscar credibili zar ampliar simbolicamente as possibilidades de ver o 38 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 39 futuro a partir daqui A razão que é enfrentada pela So ciologia das Ausências torna presentes experiências dis poníveis mas que estão produzidas como ausentes e é necessário fazer presentes A Sociologia das Emergências produz experiências possíveis que não estão dadas por que não existem alternativas para isso mas são possíveis e já existem como emergência Não se trata de um futuro abstrato é um futuro do qual temos pistas e sinais temos gente envolvida dedi cando sua vida muitas vezes morrendo a essas inicia tivas A Sociologia das Emergências é a que nos permite abandonar essa idéia de um futuro sem limites e substi tuíla pela de um futuro concreto baseado nessas emer gências por aí vamos construindo o futuro O que estou propondo é um duplo procedimento ampliar o presente e contrair o futuro por meio de procedimentos e ferra mentas que estamos discutindo O último problema é que a Sociologia das Ausências e a Sociologia das Emergências vão produzir uma enor me quantidade de realidade que não existia antes Va mos nos confrontar com uma realidade muito mais rica ainda muito mais fragmentada mais caótica Como en contrar sentido em tudo isso Se nós mesmos estamos rechaçando o conceito de progresso como tempo linear como idéia de que há um sentido único da História é possível pensar um mundo novo sem estarmos seguros de que ele surgirá Não temos receitas para esse mun do Por isso já não se trata do conceito do socialismo científico é outra idéia muito mais aberta Tampouco é a idéia de Rosa Luxemburgo socialismo ou barbárie Rosa abriu a proposta de Marx ou seja a possibilidade do socialismo não é a única há a possibilidade da bar bárie e é preciso lutar para que uma delas seja a que se realize Nós estamos ainda mais abertos hoje dizemos que outro mundo é possível um mundo cheio de alter nativas e possibilidades Essa fragmentação vai nos levar a outra questão como gerar sentido a partir disso Qual seria a receita da razão indolente que temos compartido na ciência ociden tal Uma resposta simples seria vamos criar a teoria geral dessas coisas de todas essas experiências Eu lhes digo que não Não é possível hoje uma epistemologia geral não é possível hoje uma teoria geral A diversidade do mundo é inesgotável não há teoria geral que possa organizar toda essa realidade Estamos em um processo de transição e provavelmente o possível seja o que chamo um universa lismo negativo neste momento neste trajeto não neces sitamos de uma teoria geral Não é possível e tampouco desejável mas necessitamos de uma teoria sobre a impos sibilidade de uma teoria geral Estamos de acordo que nin guém tem a receita ninguém tem a teoria Isso vai criar outra maneira de entender outra ma neira de articular conhecimentos práticas ações cole tivas de articular sujeitos coletivos Mas não podemos permanecer com uma fragmentação total é necessário criar inteligibilidade recíproca no interior da pluralidade Como é possível articular por exemplo o movimento fe minista com o indígena ou com o camponês ou com os urbanos Não posso reduzir toda a heterogeneidade do mundo a uma homogeneidade que seria de novo uma to talidade que deixaria de fora muitas outras coisas Então não é possível a teoria geral Mas como produzir sentido Minha proposta é um procedimento de tradução A tradução é um processo intercultural intersocial Utilizamos uma metáfora transgressora da tradução lin güística é traduzir saberes em outros saberes traduzir práticas e sujeitos de uns aos outros é buscar inteligibi lidade sem canibalização sem homogeneização Nesse sentido tratase de fazer tradução ao revés da tradução lingüística Tentar saber o que há de comum entre um mo vimento de mulheres e um movimento indígena entre um movimento indígena e outro de afrodescendentes entre 40 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 41 este último e um movimento urbano ou camponês entre um movimento camponês da África e um da Ásia onde estão as distinções e as semelhanças Por quê Porque é preciso criar inteligibilidade sem destruir a diversidade Um exemplo simples os movimentos indígenas deste continente nunca falam de emancipação social mas de dig nidade e respeito que são dois conceitos básicos O mo vimento operário ainda fala de emancipação e de luta de classes As feministas usam muito o conceito de liberação também os afrodescendentes É necessário não preferir uma palavra a outra mas traduzir dignidade e respeito por emancipação ou por lutas de classes ver quais são as dife renças e quais as semelhanças Por quê Porque há muitas linguagens para falar da dignidade humana para falar de um futuro melhor de uma sociedade mais justa Cremos que esse é o princípio fundamental da epistemologia que lhes proponho e que chamo a Epistemologia do Sul que se baseia nesta idéia central não há justiça social global sem justiça cognitiva global ou seja sem justiça entre os co nhecimentos Portanto é preciso tentar uma maneira nova de relacionar conhecimentos é por isso que lhes proponho o procedimento da tradução Por exemplo com o concei to de direitos humanos faço uma tradução intercultural entre este conceito que é de fato um conceito ocidental o conceito de umma do Isla e o conceito de dharma8 no hin duísmo são três conceitos distintos para falar da dignidade Provém da cultura muçulmana e significa unirse a uma nova co munidade a umma ou comunidade de crenças Significa também a aceitação de um conjunto de categorias de direitos e deveres que supera a solidariedade tribal ou étnica Dharma significa proteção Par meio da prática os ensinamen tos do Buda nos protegem de sofrimentos e problemas Nessa fi losofia todos os problemas que experimentamos na vida diária originamse na ignorância e o método para eliminar a ignorância é a prática do dharma wwwaboutdharmacom humana Todos têm problemas todos são incompletos mas é preciso fazer a tradução entre eles examinar sua re latividade sua incompletude Em nossa concepção por exemplo há uma simetria enganadora entre direitos e deveres porque geralmente em nossa cultura falamos de direitos humanos mas não de deveres humanos A simetria é que não podemos con ceder direitos àqueles dos quais não podemos exigir de veres só podemos outorgar direitos a quem tem deveres Por isso em nossa cultura de direitos humanos a nature za não tem direitos porque tampouco tem deveres As gerações futuras não têm direitos porque tampouco têm deveres Isso não é assim no conceito de umma nem no de dharma mas esses conceitos têm outros problemas vêem a dignidade em termos coletivos e também é pre ciso que vejam em termos individuais Nunca vi uma so ciedade sofrer fisicamente homens e mulheres sofrem há um elemento individual no sofrimento humano que é inegável e isso deve ser visto pelos direitos humands Não há nenhuma cultura que seja completa e então é preciso fazer tradução para ver a diversidade sem re lativismo porque os que estamos comprometidos com mudanças sociais não podemos ser relativistas Mas é preciso captar toda a riqueza para não desperdiçar a ex periência já que só sobre a base de uma experiência rica não desperdiçada podemos realmente pensar em uma so ciedade mais justa Esse procedimento de tradução é um processo pelo qual vamos criando e dando sentido a um mundo que não tem realmente um sentido único porque é um sentido de todos nós não pode ser um sentido que seja distribuído criado desenhado concebido no Norte e imposto ao restante do mundo onde estão três quartos das pessoas É um processo distinto e por isso o chamo a Epistemologia do Sul que tem conseqüências políticas e naturalmente teóricas para criar uma novaconcepção de dignidade humana e de consciência humana Boaventura de Sousa Santos 43 42 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social DEBATE COM O PÚBLICO Pelo que entendi a metonimia foi definida a partir da lingüís tica e tem sido reformada pelo estruturalismo e pela psicaná lise Isso tem que ver com propor as relações por contigüidade onde o que se deixa de fora é o que não é contíguo suponho que por isso o senhor diz que é reducionista Se é assim toda a proposição que fez sobre levar em conta a ausência ampliar o universo simbólico do presente e trazer o futuro tem muito que ver para mim com a metáfora inclusive com a idéia de tradução onde não há uma equivalência unívoca entre um discurso e outro mas sim que se trata de encontrar seme lhanças e diferenças Eu me perguntava então se se pode falar nesse sentido de uma racionalidade metafórica Eu tenho alguma dificuldade com a idéia de que pos samos falar de uma racionalidade metafórica sobretudo porque normalmente em nosso tempo de transição essa é uma maneira de desqualificar a racionalidade é metafórica não é real não é literal Penso de maneira distinta por outro caminho porque me parece que es ses são demasiado ocidentais dentro de uma pluralidade epistemológica de um saber que é o científico e eu estou buscando uma ecologia mais ampla do saber Todo o co nhecimento começa por ser metafórico Quando falamos de corrente elétrica algum de nós se dá conta de que isso é uma metáfora Mas originalmente é quando inventa ram a eletricidade não sabiam como chamála o que co nheciam era a corrente dos rios que lhes pareceu seme lhante e passouse metaforicamente a chamála assim e hoje está literalizada Não se produz ciência sem metá foras meu debate com os positivistas muito duro é pre cisamente porque penso que a própria ciência da vida a biologia por exemplo não funciona sem metáforas Não se devem desperdiçar experiências se há tradução de uma origem lingüística se é um conceito que além dis so foi utilizado de maneira hegemônica é outra reprodu ção da razão preguiçosa Traduzir assim é canibalizar e o que estou propondo é uma tradução recíproca eu tra duzo e você traduz e nos traduzimos reciprocamente É uma maneira de buscar os conceitos que existem e trans formálos Pertence à teoria geral da linguagem Não po demos pensar no novo senão com conceitos do velho da linguagem do que temos e ainda quando queremos no mear coisas novas devemos fazêlo a partir de coisas que são velhas É preciso reconhecer isso sem limitar nossa capacidade de imaginação epistemológica O que estou propondo é um exercício de imaginação epistemológica e de imaginação democrática as duas são formas da ima ginação sociológica do século XXI Se temos de trabalhar para que dialoguem duas formas de conhecimento e às vezes queremos as duas coisas a No diversidade e chegar à Lua o que ocorre se uma coisa destrói a outra Como é possível o diálogo Essa é uma questão importante Quando há incompa tibilidade há formas de incompatibilidade que são falsas e outras que são reais Um exemplo de incompatibilidade falsa nos anos 1960 houve na Índia e outros países uma revolução verde uma tentativa de incrementar a pro dução agrícola por meio da substituição dos grãos que produziam milho e arroz por outros que consideravam mais produtivos e assim também buscar outra forma de estrutura agrária e o uso de agroquímicos Em Bali uma ilha da Indonésia havia um sistema de irrigação do ar roz ancestral milenar organizado e administrado pelos sacerdotes da deusa Dewi Danu que é a deusa das águas do hinduísmo nessa região Quando chegaram os agentes da revolução verde ajudados pelos dirigentes do Banco Mundial disseram que essa forma de irrigação era ilógi ca irracional parte do que os antropólogos chamavam Boaventura de Sousa Santos 45 44 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social o culto ou magia do arroz ou seja que era mágica Di ziam Como vamos ter uma agricultura capitalista forte com sacerdotes administrando o sistema de irrigação Desmantelaramno todo e o substituíram por um sistema tecnológico com engenharia de irrigação nova foi um de sastre total porque nas montanhas de Bali é muito difícil organizar um sistema diferente do tradicional A perda da produção foi tão desastrosa que as autoridades da In donésia decidiram eliminar o novo sistema de irrigação e voltar ao anterior Aí alguns cientistas das novas ciências é parte da disputa epistemológica que temos que são as ciências da complexidade as teorias do caos os sistemas autoorganizados os novos modelos de ação computacio nal fizeram um estudo sobre os sistemas de irrigação de Bali por meio da modelação computacional e chegaram à conclusão de que o sistema tradicional era o melhor para essa realidade Ou seja tratavase de uma falsa incompa tibilidade foi um conhecimento científico deficiente e er rado o que declarou a incompatibilidade Mas há outras incompatibilidades reais e penso que não existe outra possibilidade senão tratar de conhecer as diferenças de poder entre cada grupo que está por trás de cada prática A epistemologia que proponho faz uma distinção muito cla ra entre critérios cognitivos e critérios éticopolíticos mas os dois estão sempre presentes Os critérios cognitivos são os que administram certa forma de saber mas decidir so bre o tipo de intervenção no real não é cognitivo essa é a armadilha dos engenheiros dos técnicos que dizem Esta é a única solução técnica Não é produto de um critério ético e político É uma disputa política e se realmente houvesse uma incompatibilidade entre ir à Lua e preser var a biodiversidade deveríamos ter um debate global na Terra para dizer se necessitamos disto ou daquilo aonde vai o dinheiro qual é o reconhecimento que vamos dar a cada uma são disputas políticas mais globais que necessi tamos trazer à epistemologia Não há outra possibilidade por meio da argumentação não podemos ter argumentos automáticos que digam este é o que vale porque está sus tentado por conhecimentos científicos porque já sabe mos em demasia que as coisas não são assim Penso que o que necessitamos como diria John Dewey é de outro diálogo da humanidade Trabalhamos com organizações camponesas e ficamos bastante atraídos pela sua proposta de tradução mas acha mos que de alguma maneira continuamos compreendendo e produzindo em nosso contexto de produção e ainda que pre tendamos tornar visíveis essas experiências silenciadas esses saberes calados apesar disso continuamos escrevendo em contextos nos quais somos sempre sociólogos politicólogos Escrevemos para outros cientistas sociais Às vezes quando nos encontramos com os camponeses temos justamente que traduzira nós mesmos Então nessa aposta de uma teoria da tradução não seria preciso também traduzir ou ressignificar nossos próprios espaços de produção dessa teoria da tradu ção Temos de continuar nas universidades Qual o espaço acadêmico mas também social porque senão em seus ter mos não seria viável da teoria da tradução Agradeço muito a pergunta porque estou trabalhan do bastante nesta questão que é muito séria como fazer a tradução de maneira que não traia os objetivos da tradu ção fazer uma Epistemologia do Sul que não acabe sendo outra forma de Epistemologia do Norte Devemos ficar totalmente vigilantes Penso que esse novo conhecimen to tem de ser produzido de outra forma muito mais hori zontal muito mais autóctone muito mais compartilhada e provavelmente as universidades tenham de passar por uma reestruturaçäo muito forte E não sei se conseguirão fazêlo Por isso propus no FSM uma Universidade Popu 46 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 47 lar dos Movimentos Sociais 9 que é a tentativa de organi zar nesse âmbito um encontro sistemático entre cientis tas sociais e líderes dos movimentos para que possamos realmente pensar com os movimentos os dirigentes os ativistas em outros contextos que não os eruditos Mas não se muda o mundo de uma vez é importante fazer as duas coisas trabalhar dentro da universidade convencio nal e criar instituições paralelas Durante muito tempo vamos ter de trabalhar assim Isso é característico de um tempo de transição trabalhar o velho para renoválo até o limite A universidade tem um máximo de consciência possível é preciso explorálo E podese fazer ecologia de saberes dentro da universidade Para mim é a extensão universitária ao contrário a extensão convencional é le var a universidade para fora a ecologia de saberes é trazer outros conhecimentos para dentro da universidade uma nova forma de pesquisaação em que a sociologia latino americana tem tradições muito fortes que infelizmente têm sido bastante descartadas pelas novas gerações de cientistas sociais deste continente Então você tem razão devemos encontrar outros espaços espaços públicos não estatais onde compartilhar conhecimentos fazer permu ta de conhecimentos e análises Ontem estava em uma reunião com movimentos sociais daqui onde em quinze minutos cada um dos líderes apresentou seu trabalho e eu não quis falar mais de quinze minutos para não tirar tempo do debate porque habitualmente o conhecimen to teórico erudito tem prioridade sobre o conhecimento prático local O debate posterior foi maravilhoso Penso que é preciso encontrar formas que incluam mais debate Os novos modos de produção de conhecimento exigem outros espaços Eu falava também com estudantes de di reito que disseram haver professores muito progressistas que mantêm relação com movimentos sociais e outros q Ver wwwcesucpt mas que nas aulas são muito conservadores Por que essa esquizofrenia É preciso trazer à aula o direito como um fenômeno político de alta intensidade e contraditório como um campo de disputa Vários de seus conceitos parecem próximos do conceito de complexidade de Morin É isso mesmo Claro que o pensamento de Edgard Morin tem sido muito importante para nós acredito que na América Latina também Procuramos partir daí com outros insu mos com outras preocupações porque provavelmente o que estou indagando agora não é o mesmo que busca va Morin quando começou Todos temos os problemas de nosso tempo Eu estou buscando uma epistemologia adequada para entender o FSM uma globalização alter nativa os conhecimentos que se juntam e não estou pensando somente em tradução entre diferentes cultu ras e sim por exemplo entre poesia e ciência Veja o que aconteceu quando estivemos em Mumbai para o IV Fó rum Social Mundial qual é a grande forma de comunicar a luta quando não se compartilha a língua Há milhares de línguas na Índia os 33 mil dalits as castas mais in feriores cantavam dançavam a música era uma expres são de emancipação social Nossa cultura é totalmente logocêntrica Por isso o ministro da Colômbia teve de ir embora porque o silêncio não nos cai bem somos uma cultura de palavras Há outras culturas que cultivam o silêncio ou outras formas a poesia a espiritualidade Como vamos ver a questão da espiritualidade por exem Os dalits são a casta que ocupa o lugar mais baixo na pirâmide so cial indiana A eles cabem os trabalhos considerados degradantes ou indignos por outras castas N T Boaventura de Sousa Santos 49 48 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social plo com tantos movimentos que são progressistas que lutam contra a indignidade do capitalismo que querem uma sociedade nãocapitalista mas formulam suas rei vindicações em termos que parecem religiosos se você vem de uma cultura onde houve laicização e seculariza ção onde ser religioso pode ser reacionário a menos que se trate da Teologia da Libertação que agora com este papa será ainda mais difícil Em nossas ciências sociais não somos capazes de ver a espiritualidade porque não há indicadores para isso como não há indicadores para a felicidade mas necessitamos de uma epistemologia que dê conta disso O que é novo ao contrário da mobiliza ção moderna sobretudo a sindical ou dos partidos é que hoje a mobilização exige razões para se mobilizar não pode ser um comitê ou direção central quem decide não as pessoas querem discutir razões e buscar razões para a mobilização e exigem outra epistemologia O au toritarismo da ciência positivista estava de certa maneira conectado com o autoritarismo em política inclusive na esquerda Então tudo isso tem de ser construído ao mes mo tempo lentamente e correndo riscos Não temos ou tra opção são nossos corpos que estão incorporados em uma história E a materialidade de nosso corpo a partir da qual tentamos pensar o que está fora do corpo Só esse é o limite do que podemos pensar Como solucionar o grande problema de dar nomes de ser mos fiéis à novidade com os velhos termos com que lidamos Essa é a pergunta mais dilemática Não há possi bilidade é preciso haver uma vigilância epistemológica muito grande é preciso discutir é preciso ver onde ne cessitamos criar conceitos novos conceitos nômades é preciso lutar sempre contra o reducionismo Existem três grandes erros dessa razão indolente que domina a epis temologia positivista o reducionismo o determinismo e o dualismo Seus três grandes eixos Devese lutar contra cada um deles e é preciso fazer transgressões Muitas vezes buscamos o novo nos interstícios o que está entre as realidades porque a realidade lingüística como a rea lidade social como a de nossas subjetividades é um pa limpsesto Ou seja é um conjunto de estratos geológicos de nossa sociabilidade que estão articulados de maneira muito complexa Muitas vezes precisamos migrar de um campo a outro de um estrato a outro de uma linguagem a outra de uma ciência a outra a transdisciplinaridade é em parte isso Temos ainda de buscar conceitos que venham de outros conhecimentos Por exemplo se não quero traduzir desenvolvimento em uma discussão com pessoas da Índia tenho de começar com o concei to de swadeshi que era o conceito de Gandhi para essa idéia muito mais amplo porque é um conceito também religioso não é só econômico como o nosso tem que ver com se os seus deuses não o agradam invente outros mas seus O hinduísmo é a religião mais democrática não é necessário um papa para beatificar ou santificar eles podem como comunidade ter seus próprios santos e suas próprias divindades Falam de uma lógica de proxi midade mas também espiritual e então não é fácil tra duzir Se uso o conceito de swadeshi vão me dizer Você é gandhiano Temos sempre uma grande ansiedade de pertença e isso também torna difícil pensar o novo Capítulo II Uma nova cultura política emancipatória As grandes teorias às quais nos acostumamos de alguma maneira o marxismo e outras correntes e tradições não parecem nos servir totalmente neste momento Servemnos em parte e acredito que hoje há uma volta ao marxismo em todo o mundo Isso não me surpreende porque a crise do marxismo de alguma maneira coincidiu com a marxização do mundo a idéia de que o mundo era cada vez mais pa recido com o que Marx havia diagnosticado As difi culdades aparecem ao passarmos do diagnóstico para uma visão do futuro questão que rio marxismo nos traz muitos problemas Mas há outras dificuldades O materialismo his tórico converteu o capitalismo em um fator de pro gresso em uma fase de progresso da humanidade e isso nos trouxe problemas pelo fato de essa idéia ter deixado de fora uma questão que para nós é fun damental a questão colonial O colonialismo não tem sido bem tratado nessa teoria e além disso em alguns textos de Marx vemos uma justificação so bretudo na Índia do colonialismo como fator do ca pitalismo colonialismo é capitalismo e é muito im portante que recordemos isso 52 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 53 A outra conseqüência foi tornar invisíveis esconder outras formas de opressão de discriminação e de exclu são que para nós hoje são muito importantes o racismo o sexismo as castas etc Outra conseqüência problemá tica é que o marxismo de alguma maneira compartilha o ideal da unidade do saber da universalidade do saber científico e de sua primazia Se propomos hoje a neces sidade de uma ecologia de saberes estamos falando de algo distinto Finalmente toda a teoria crítica tem sido bastante monocultural e hoje estamos cada dia mais conscientes da realidade intercultural de nosso tempo Por essa razão chegamos à conclusão de que provavel mente a razão que critica não pode ser a mesma que pen sa constrói e legitima o que é criticável Necessitamos de outro tipo de racionalidade e aí começamos a pensar um tipo de racionalidade mais ampla precisamente para reinventar a teoria crítica de acordo com nossas necessidades hoje Uma coisa clara para nós é que não há conhecimento geral tampouco há ignorância geral Somos ignorantes de certo conhe cimento mas não de todos Todo conhecimento se dis tingue por seu tipo de trajetória que vai de um ponto A chamado ignorância a um ponto B chamado saber e os saberes e conhecimentos se distinguem exatamente pela definição das trajetórias pelos pontos A e B Po demos dizer que na matriz da modernidade ocidental há dois modelos dois tipos de conhecimento que po dem se distinguir da seguinte maneira o conhecimento de regulação e o conhecimento de emancipação A tensão política é também epistemológica Tanto o conhecimentoregulação CR como o co nhecimentoemancipação CE têm um ponto A que é de ignorância e um ponto B que é de saber A ignorância no CR é caos ser ignorante é viver em um caos da rea lidade incontrolada e incontrolável seja na natureza ou na sociedade e conhecer saber é ordem A trajetória do CR vai do caos à ordem Saber é pôr ordem nas coisas na realidade na sociedade Mas houve na matriz da socie dade ocidental outro conhecimento o CE que tem um ponto A chamado colonialismo ou seja a incapacidade de reconhecer o outro como igual a objetivação do outro transformar o outro em objeto e o ponto B que é o que poderíamos chamar autonomia solidária Aqui o conhecer vai do colonialismo à autonomia solidária Esses dois modelos estão inscritos na matriz da modernidade ocidental mas o CR dominou por inteiro quando a modernidade ocidental passou a coincidir com o capitalismo As potencialidades da modernidade oci dental pertencem à matriz colonial mas poderiam ima ginar outros horizontes distintos o capitalismo e o so cialismo são um bom exemplo Entretanto o CR passou a dominar e quando o fez foi recodificando o CE em seus próprios termos O que era conhecimentosaber auto nomia solidária passou a ser no CE uma forma de caos a solidariedade entre as classes é perigosa a solidariedade no povo é uma forma de caos que é necessário controlar portanto o que era conhecimento passou a ser no CR ignorância E ao contrário o que era ignorância no CE passa a ser saber no CR ou seja o colonialismo pas sa a ser uma forma de ordem Essa é a maneira com que tento ver o que se passou e por que é necessário reinventar o conhecimentoeman cipação Porque de alguma maneira a ciência moderna se desenvolveu totalmente no quadro do conhecimentore gulação que recodificou canibalizou perverteu as possi bilidades do CE E é por isso que o CE tem de ser uma ecologia de saberes não pode ser simplesmente o saber científico moderno que temos este é importante ne cessário mas tem de estar incluído em uma ecologia de saberes mais ampla É muito importante fazer essa mu dança de uma epistemologia baseada somente em uma forma de conhecimento para outra de ecologia Quando Boaventura de Sousa Santos 55 54 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social há uma ecologia de saberes a ignorância não é necessa riamente um ponto de partida pode ser um ponto de chegada Quando um estudante da Índia entra na uni versidade norteamericana provavelmente vai aprender muitas coisas mas vai desaprender muitas outras Devemos fazer uma nova pergunta o que você aprende vale o que desaprende ou esquece Há conheci mentos próprios e isso que pode parecer uma coisa mar ginal é um problema absolutamente central na África na Ásia e também na América Latina Existe outra maneira de ver a ignorância porque a utopia de uma ecologia de saberes é que possamos aprender outros conhecimen tos sem esquecer nossos próprios conhecimentos Mas nosso ensino nas universidades nossa maneira de criar teoria reprime totalmente o conhecimento próprio o deslegitima o desacredita o inviabiliza Portanto temos de enfrentar desafios exigentes como estou propondo neste seminário O primeiro desafio é reinventar as possibilidades emancipatórias que havia nesse conhecimento emanci pador uma utopia crítica Vivemos hoje em um mundo dominado por utopias conservadoras Franz Hinkelam mert as definiu muito bem como a radicalização do presente A utopia do neoliberalismo é conservadora porque o que se deve fazer para resolver todos os proble mas é radicalizar o presente Essa é a teoria que está por trás do neoliberalismo Ou seja há fome no mundo há desnutrição há desastre ecológico a razão de tudo isso é que o mercado não conseguiu se expandir totalmente Quando o fizer o problema estará resolvido Temos de mudar essa utopia conservadora para uma utopia críti ca porque também as utopias críticas da modernidade como o socialismo centralizado se converteram com o tempo em uma utopia conservadora Estamos em um contexto em que é necessário ten tar outras aprendizagens de utopia crítica Sobretudo porque a hegemonia mudou Até agora ela se baseava na idéia do consenso de que algo é bom para todos e näo somente para os que diretamente se beneficiavam dele é bom inclusive para os que de fato vão sofrer com isso A hegemonia é uma tentativa de criar consenso basea da na idéia de que o que ela produz é bom para todos Mas houve uma mudança nessa hegemonia e hoje o que existe deve ser aceito não porque seja bom mas porque é inevitável pois não há nenhuma alternativa Isso a meu ver torna ainda mais importante a necessidade de uma utopia crítica mas tem também algumas dificuldades Há dois problemas teóricos muito importantes o do silêncio e o da diferença O silêncio é o resultado do silen ciamento a cultura ocidental e a modernidade têm uma ampla experiência histórica de contato com outras cultu ras mas foi um contato colonial um contato de desprezo e por isso silenciaram muitas dessas culturas algumas das quais destruíram Por isso quando queremos tentar um novo discurso ou teoria intercultural enfrentamos um problema há nos oprimidos aspirações que não são proferíveis porque foram consideradas improferíveis depois de séculos de opressão O diálogo não é possível simplesmente porque as pessoas não sabem dizer não porque não tenham o que dizer Mas porque suas aspira ções são improferíveis E o dilema é como fazer o silêncio falar por meio de linguagens de racionalidades que não são as mesmas que produziram o silêncio no primeiro momento Esse é um dos desafios mais fortes que temos como fazer o silêncio falar de uma maneira que produza autonomia e não a reprodução do silenciamento A diferença é outro desafio muito importante porque a tradução tem alguns problemas além da reciprocidade como por exemplo a idéia da incomensurabilidade No diálogo intercultural temos de produzir uma luta con tra duas frentes Uma é a política de hegemonia não há outras culturas críveis A outra é a política de identidade Boaventura de Sousa Santos 57 56 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social absoluta há outras culturas mas são incomensuráveis Não nos serve nem uma política de hegemonia nem uma política identitária fundamentalista mas como sempre uma via nova não é fácil porque às vezes temos de en contrar o que é semelhante e o semelhante é um ponto de partida não de chegada Um debate interessante hoje na filosofia versa sobre a possibilidade de uma filosofia africana É um grande de bate entre tradicionalistas e modernistas Há os que dizem que há uma filosofia africana conectada com sua cultura e como tal não é uma filosofia que pode dialogar com a filosofia ocidental são os tradicionalistas E há outros que dizem que não há uma filosofia africana há uma filosofia universal o fato de ter começado no Ocidente o que é um erro como sabemos começou na África é só uma questão de tempo amanhã os africanos estarão com Aristóteles Platão são os modernistas Aqui o problema é ver como vamos desenvolver uma posição entre os que querem por um lado reconhecer a filosofia africana e por outro poder pensar que há um diálogo entre as filosofias Qual é a dificuldade para nós Temos de nos acostu mar a ser interdisciplinares Começamos com um concei to muito simples que é um princípio fundamental para toda a filosofia cartesiana Penso logo existo Um gran de filósofo africano Kwasi Wiredu diz veja só eu venho da Nigéria meu povo é o akan e em minha língua africa na eu não posso traduzir isso pensar em minha língua é medir algo Então esse conceito não tem sentido Além disso o sou também não existe em minha língua nós sempre estamos num lugar tenho de dizer sempre que estou em um território em um lugar em uma posição e essa localização reduz de imediato o pressuposto univer salista do penso logo existo Aqui existe uma incomensurabilidade e muitos pen sam que é uma debilidade da filosofia africana não poder dar um conceito tão simples como o cogito ergo sum Mas temos de ir além disso O debate hoje é como reconhecer isso quais são as idéias na filosofia africana que não po dem ser expressas na ocidental E há muitíssimas idéias a de que nós somos toda a humanidade por exemplo em uma unidade muito concreta com a natureza isso se vê muito também na filosofia andina É preciso encon trar outro tipo de diálogo entre as diferentes filosofias e também aqui aparece o desafio É preciso conversar mui to mais dialogar muito mais buscar outra metodologia de saber ensinar aprender O terceiro desafio é distinguir entre objetividade e neutralidade É a idéia de que devemos ter uma distância crítica em relação à realidade mas ao mesmo tempo não podemos nos isolar totalmente das conseqüências e da natureza do nosso saber porque ele está contex tualizado culturalmente todo saber é local todos os sistemas de saber são locais inclusive as ciências Aqui o desafio vem de algo muito concreto que faz parte da ciência moderna uma discrepância que provavelmente passa despercebida mas é muito importante a capaci dade de ação científica é muito maior que a capacidade de previsão das conseqüências da ação científica Temos muitos problemas ecológicos sociológicos políticos que derivam dessa discrepância a ação científica de um economista em um país é uma coisa a análise científica das conseqüências dessa ação é outra as conseqüências fazem muito mais ruído Hoje na ciência moderna as ações científicas são sempre mais científicas que as conseqüências dessas ações Se queremos ter uma ati tude pragmática para observar as conseqüências para intervir na realidade temos de enfrentar essa discre pância que existe na ciência moderna mas não existe por exemplo da mesma maneira em outros saberes O quarto desafio é a necessidade de nos concentrarmos em como desenvolver subjetividades rebeldes e não apenas subjetividades conformistas Assim a questão fundamen Boaventura de Sousa Santos 59 58 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social tal é como intensificar a vontade um problema também complicado para nossa construção teórica porque há uma dimensão que chamamos racional dos argumentos mas há também uma dimensão mítica em todos os saberes que é a crença a fé na validade de nossos conhecimentos Todos os nossos conhecimentos têm um elemento de logos e um elemento de mythos que é a emoção a fé o sentimento que certo conhecimento nos proporciona pelo fato de o termos a repugnância ou o amor que nos provoca Há uma dimensão emocional no conhecimento que costumamos trabalhar muito mal e então devemos ver o que distingue as duas correntes de nossa vida tanto nas sociedades como nos indivíduos a corrente fria e a corrente quente Todos temos as duas a corrente fria é a consciência dos obstáculps a corrente quente é a von tade de ultrapassálos As culturas distinguemse pela primazia que dão à corrente fria ou à corrente quente Acredito que a corrente fria é absolutamente necessária para que não nos enganemos e também a corrente quen te é muito importante para não desistirmos facilmente Hoje temos a idéia de que é necessário encontrar qua dros teóricos e políticos que continuem tentando não ser enganados mas ao mesmo tempo sem desistir sem en trar no que chamamos a razão cínica a celebração do que existe porque não há nada além Esse é outro desafio Finalmente existe um quinto desafio O objetivo da Sociologia das Ausências e do procedimento da tradução é a tentativa de criar uma Epistemologia do Sul Essa epistemologia tem uma exigência que não incluímos muito facilmente em nossas teorias o póscolonialismo É a idéia de que a modernidade ocidental tem uma vio lência matricial a violência colonial e nem sequer as correntes mais críticas de um pósmodernismo de oposi ção como as que defendi no passado se dão conta é uma autocrítica que faço de minhas primeiras formulações dessa violência matricial que é o colonialismo Será que podemos dizer que o colonialismo passou e que com poucas exceções só há países independentes Não Em nossas teorias temos de incluir a perspectiva póscolo nial que tem duas idéias muito categóricas A primeira é que terminou o colonialismo politico mas não o colonialismo social ou cultural vivemos em sociedades nas quais não se pode entender a opressão ou a dominação a desigualdade sem a idéia de que continuamos sendo em muitos aspec tos sociedades coloniais Não é um colonialismo politico é de outra índole mas existe Aníbal Quijano sociólogo pe ruano fala da colonialidade do poder O outro princípio do póscolonialismo é uma primazia na construção teórica das relações NorteSul para tentar pensar o Sul fora dessa rela ção É preciso analisar muito detalhadamente essa relação para tentar criar alternativas porque o Sul imperial é um produto do Norte Há um Sul imperial e um Sul antiimpe rial contrahegemónico emancipatório Por isso para uma Epistemologia do Sul é necessário saber o que é o Sul porque no Sul imperial está o Norte É preciso criar esse Sul contrahegemónico e o póscolonialis mo é a meu ver muito importante pois tem também uma terceira idéia das margens se vêem melhor as estruturas de poder Devemos analisar as estruturas de poder da socie dade a partir das margens e mostrar que o centro está nas margens de uma maneira que às vezes escapa a toda nossa análise Para essa concepção colonialismo são todas as tro cas todos os intercâmbios as relações em que urna parte mais fraca é expropriada de sua humanidade Há muitas sociedades hoje que não podemos entender de verdade sem essa idéia de privação da humanidade das pessoas Dessa teoria póscolonial advém outra coisa impor tante é preciso provincializar o Norte Um autor da Índia Dipesh Chakrabarty escreveu um livro com esse nome Dipesh Chakrabarty ProvincializingEurope postcolonial thought and historical difference Princeton Princeton University Press 2000 60 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 61 mas acredito que para nós os de língua espanhola ou por tuguesa ele não serve porque essa idéia de provincializar a Europa a essencializa e muitos dos estudos póscoloniais dominantes vêm de autores que pertencem à diáspora do colonialismo inglês Nosso colonialismo é ibérico muito diferente do colonialismo anglosaxão Portugal ao mesmo tempo que centro de um império foi uma colônia informal da Inglaterra Em nossas sociedades o póscolonialismo se aplica em alguns aspectos tanto aos colonizadores como aos colonizados Por outro lado o colonialismo ibérico na América Latina conduziu a processos de independência as independências foram conquistadas pelos descenden tes dos colonos e não pelos povos originais que nos obri gam a dar uma atenção muito especial aos colonialismos internos Temos de ver como distinguir nossa história a do colonialismo ibérico para descobrir quais são as raízes de uma luta póscolonial em nossos países E esse também é um desafio complicado Com isso encerro os desafios que estão diante de nós e vamos tentar ver que avanços teóricos são possí veis à luz desses desafios Não estamos tentando criar um pensamento de vanguarda o que estamos fazendo é compreender o mundo e transformálo junto com os movimentos e as associações que compartilham essa paixão conosco É uma paixão uma emoção uma cor rente quente que tem de ser introduzida na nacionali dade ocidental Por isso não se pode avançar muito se a prática não avança O Fórum Social Mundial tem sido muito importante para permitirmos alguns avanços na teoria Ajudanos a renovar a teoria social e política em diferentes níveis Um nível é uma concepção mais ampla de poder e de opressão Durante muito tempo e este é também um dos limites de nossa tradição marxista que continua sendo muito importante mas deve ser objeto de uma ecologia de outros saberes fomos obrigados a nos concentrar em uma só forma de opressão ou dominação a do capitaltra balho O FSM nos ensinou que há diferentes formas de opressão e de poder e que talvez não seja possível deter minar em geral para todo o mundo o que é sempre mais importante em uma luta Os que estão nos movimentos e nas associações sabem que às vezes a prioridade de uma luta e de uma forma de opressão não pode ser determina da de maneira geral mas apenas contextual nas condições concretas Aprendemos bastante com os zapatistas por exemplo quando em 11 de março de 2001 chegaram à Cidade do México eles eram o movimento hegemônico ali a contradição hegemônica do México porque é uma luta indígena que tenta envolver todas as outras formas de luta no país que tem ele próprio outras formas de opressão E quando finalmente conseguem falar no Congresso quem fala é uma mulher a comandante Esther porque os zapa tistas querem mostrar uma articulação muito forte entre a opressão indígena e a opressão das mulheres Devemos ver de forma mais ampla Entre os cientistas sociais cada um tem sua opção A minha é que não se deve ficar tão centrado na estrutura ou na ação e sim na rebeldia ou no conformismo As estruturas pertencem à corrente fria que é necessária mas tem havido até agora uma manei ra reducionista de ver esses obstáculos estruturais Por isso no trabalho eu faço distinção entre seis espaços estruturais nos quais se geram seis formas distintas de poder São es paçostempo formas de sociabilidade que implicam lugares mas também temporalidades duração ritmos o espaçotempo doméstico onde a forma de poder é o patriarcado as relações sociais de sexo o espaçotempo da produção onde o modo de po der é a exploração o espaçotempo da comunidade onde a forma de poder é a diferenciação desigual entre quem per tence à comunidade e quem não pertence Boaventura de Sousa Santos 63 62 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social o espaço estrutural do mercado onde a forma de poder é o fetichismo das mercadorias o espaçotempo da cidadania o que normalmente chamamos de espaço público aí a forma de poder é a dominação o fato de que há uma solidariedade vertical entre os cidadãos e o Estado o espaçotempo mundial em cada sociedade que está incorporado em cada país onde a forma de po der é o intercâmbio desigual Essas são as seis formas fundamentais de poder Provavelmente há outras mas patriarcado exploração fetichismo das mercadorias diferenciação desigual do minação e intercâmbio desigual são a meu ver instru mentos analíticos que podem ser vistos como modos de produção de poder e de saber Há um sentido comum que se cria em cada um desses espaçostempo cada um tem sua lógica de desenvolvimento Esse trabalho está expos to no livro A crítica da razão indolente Mas o importante é que se estamos tentando fazer uma teoria política nova uma democracia radical de alta intensidade sabemos que isso será somente por meio da democratização de to dos os espaços Então minha definição de democracia é substituir relações de poder por relações de autoridade compartilhada É um trabalho democrático muito mais amplo do que se pensava até agora A segunda inovação teórica é necessitamos cons truir a emancipação a partir de uma nova relação entre o respeito da igualdade e o princípio do reconhecimento da diferença Na modernidade ocidental seja nas teorias funcionalistas conservadoras seja nas teorias críticas até agora não tratamos isso de maneira adequada porque sobretudo na teoria crítica toda a energia emancipató ria teórica foi orientada pelo princípio da igualdade não pelo princípio do reconhecimento das diferenças Agora temos de tentar uma construção teórica em que as duas estejam presentes e saber que uma luta pela igualdade tem de ser também uma luta pelo reconhecimento da di ferença porque o importante não é a homogeneização mas as diferenças iguais Isso não é fácil temos de tentar também uma re novação teórica as sociedades capitalistas têm vários sistemas mas os seis espaços diferentes podem ser re duzidos a duas formas de domínio hierarquizado Os dois sistemas são o sistema de desigualdade e o sistema de exclusão Eles são distintos e muito freqüentemente só vemos o sistema da diferença porque o sistema de desigualdade é um sistema de domínio hierarquizado que cria integração social uma integração hierarquiza da também mas onde o que está embaixo está dentro e tem de estar dentro porque senão o sistema não funcio na O sistema típico de desigualdade nas sociedades ca pitalistas é a relação capitaltrabalho os trabalhadores têm de estar dentro não há capitalistas sem trabalha dores e Marx foi um grande teorizador disso Mas há um sistema de exclusão de domínio hierar quizado onde o que está embaixo está fora não existe é descartável é desprezível desaparece A Sociologia das Ausências tenta trazer para o centro de nossa discussão o sistema de exclusão Michel Foucault foide grande im portância com seus estudos sobre a normalização para ver como se cria exclusão um sistema em que alguém fica totalmente de fora Neste momento temos de ana lisar essas duas formas de desigualdadeexclusão por várias razões Primeiro porque o que está acontecendo hoje sem que o saibamos muito bem ainda não teori zamos é que cada vez mais gente passa do sistema de desigualdade ao sistema de exclusão de estar dentro de uma maneira subordinada a estar fora a sair do contra to social da sociedade civil são os desocupados que não têm esperança de voltar a ser ocupados e os jovens em milhares de guetos urbanos das grandes cidades 64 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 65 O trabalho é atualmente um recurso global sem que haja um mercado global de trabalho Esse é para mim o fator sociológico que está por trás desse intercâmbio cada vez maior entre o sistema de desigualdade e o sis tema de exclusão porque essa discrepância permite de fato que o trabalho deixe de ser um fator de cidadania e de inclusão ainda que subordinada e possa existir com a mais total exclusão Por outro lado o segundo fator ao qual também não temos dado importância devemos re construir a teoria por meio dele é que há formas híbri das que se identificam com elementos de desigualdade e de exclusão as duas mais importantes para nós são o racismo e o sexismo O racismo é uma forma de exclusão mas cada vez mais está no sistema de desigualdade é a racionalização da força de trabalho primeiro no colonialismo depois na emigração Sabemos que hoje a etnização da força de trabalho ou a racialização importar imigrantes de ou tras culturas na Europa por exemplo é uma forma de desvalorizar a força de trabalho e os trabalhadores imi grantes compartilham a exclusão com o sistema de desi gualdade porque trabalham para ele E no sexismo ocorre o mesmo o papel da mulher primeiro na reconstrução da força de trabalho do homem e mais tarde sua entrada subordinada no mercado de trabalho Esses dois sistemas têm autonomia mas muitas ve zes se confundem e têm formas extremas de destruição O sistema de exclusão tem um extremismo que todos nós conhecemos foi por exemplo o extermínio dos judeus e dos ciganos no Holocausto e que hoje acontece no Su dão como ocorreu em Ruanda e Burundi O sistema de desigualdade também tem uma forma extrema a escra vidão O problema é que as formas extremas continuam existindo não são parte do passado mas do presente sa bemos hoje que o trabalho escravo é cada vez mais flores cente no mundo Há escritórios das Nações Unidas para detectálo e no Brasil eles têm agora a função de iden tificálo porque existe uma determinação de que todas as propriedades agrícolas onde haja trabalho escravo po dem ser expropriadas para a reforma agrária Imaginam a luta política que isso significa Nós também tivemos uma idéia errônea e por isso me expressei contra o conceito de progresso a idéia dessa forma linear que fazia pensar que tudo passava de uma fase para outra fase melhor Não a opressão tal como a emancipação a subjetividade é um palimpsesto em que as formas mais extremas de desigualdade e de exclusão convivem com outras mais inclusivas e menos extremas Por isso é preciso ter uma teoria sociológica política que dê conta dessas especificidades O terceiro avanço teórico que o FSM nos permite ver o primeiro é um conceito mais amplo de opressão o se gundo é essa nova relação entre o princípio de igualdade e o do reconhecimento da diferença é toda a relação entre inconformismo rebeldia revolução e transformação social E aqui há um aspecto importante a relação entre ação direta e ação institucional entre as ações ilegais pacíficas e as ações institucionais Entre a legalidade e a ilegalidade temos de reconstruir uma dialética porque as classes dominantes sempre a tiveram impõem a legalida de mas nunca a cumpriram sua hegemonia se baseia em uma dialética às vezes nada sutil entre legalidade e ilega lidade entre legalidade e impunidade entre legalidade e imunidade Creio que se queremos pensar a emancipação social temos de entrar nisso A outra questão que o FSM nos traz com bastante força é que provavelmente não devemos nos martirizar tanto porque isso não é muito produtivo em discus sões gerais sobre as vantagens relativas de uma estraté gia reformista ou uma revolucionária As duas estão em crise em sua forma moderna é preciso repensálas e provavelmente necessitamos de outros padrões Os mo 66 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 67 vimentos que se reúnem no FSM se dizem revolucioná rios se dizem reformistas ou nem uma coisa nem outra porque os dois são eurocêntricos produto do Ociden te É preciso criar outra forma de insurgencia Quando começamos a ter um conhecimento da prática global da globalização alternativa é que nos damos conta de que o que antes acreditávamos ser universal de fato é local é ocidental Participei de debates que me causa ram grande impacto porque coisas que eu considerava um patrimônio universal não o são e isso a meu ver é algo que também temos de discutir Finalmente o outro grande desafio em que nos ajuda o FSM porque isso é uma reconstrução teórica minha e de outros companheiros mas baseada em toda a práti ca que vai emergindo no mundo é que estamos vivendo uma nova forma de internacionalismo e as teorias sociais não estão preparadas para isso não são internacionais e menos ainda internacionalistas ao contrário Então se há um novo internacionalismo em curso é preciso se dar con ta dele e ver como pode ser contrahegemônico é aquilo pelo que eu luto É preciso conviver e entrar em conflito com o internacionalismo da globalização neoliberal Aqui os movimentos partem de duas idéias que me parecem muito importantes uma é a desnacionalização do Estado O papel do Estado é um campo de disputa mas hoje de fato há um processo muito claro de desna cionalização cada vez mais as políticas nos países pa recem ser imposições externas Se realmente o são é às vezes duvidoso porque as classes dominantes internas se aproveitam dessas imposições para ter uma nova acu mulação primitiva como foi a última forma em muitos países a privatizadoo de bens públicos Se vocês vão à Africa provavelmente na Argentina ocorra o mesmo vêem isto como é possível que o presidente de Moçam bique seja o homem mais rico da África Tratase de um exguerrilheiro da luta anticolonial que comprou grande parte dos bens que foram privatizados depois de o FMI ter obrigado Moçambique a privatizar tudo Na África do Sul temos também algo semelhante com a African Renaissance que é de fato a criação de um capitalismo negro um fenômeno interessante a idéia de reconstruir uma classe capitalista racializada para revalorizála pe rante a desvalorização dos imigrantes negros na Europa A outra idéia que nos obriga a trabalhar bastante em termos teóricos e políticos é a desestatizaçäo da regulação social A crise da regulação social ocorre para substituir uma forma de regulação centrada no Estado por outra em que o Estado é um sócio Está se desestatizando por exem plo por meio de institutos públicos de regulação Muitos paises têm essa característica os reguladores são regen tes dos regulados e isso dá outra idéia da importância do Estado hoje A debilidade do Estado é produzida por um Estado suficientemente forte para produzir sua própria debilidade Essa centralidade do Estado em seu processo de descentramento é algo que nos escapa É necessário um trabalho teórico muito importante sobre essa questão A outra dimensão desse novo universalismo que está em curso é a idéia de que temos de produzir teoria e prá ticas transescalares em que as escalas locais se articulem com as escalas nacionais e com as globais Em relação a isso a teoria e a prática nos têm demonstrado que às vezes as trajetórias são distintas de alguma maneira em 1994 os zapatistas passaram quase diretamente do local ao global e depois ao nacional Outros vão do local ao nacional e depois ao internacional como é o caso do MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Brasil Há diferentes trajetórias mas é muito impor tante que consideremos em nosso trabalho teórico a ne cessidade de relacionar as diferentes escalas E aqui concluo se esses são os desafios e os avan ços que é possível ter em conta temos de ver como ar ticular essa teoria que estamos tentando desenvolver Boaventura de Sousa Santos 69 68 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social com uma nova política e em um contexto no qual só nos restam instrumentos hegemônicos Estamos em um contexto no qual legalidade direitos humanos e democracia são realmente instrumentos hegemônicos portanto não vão conseguir por si mesmos a emanci pação social seu papel ao contrário é impedila O central em nossa questão é saber se os instrumentos hegemônicos podem ter um uso contrahegemônico Como criar e fazer um uso contrahegemônico da le galidade Como fazer um uso contrahegemônico dos direitos humanos e da democracia Eu acredito que a ecologia de saberes que lhes pro ponho vai ter muitas possibilidades de enfrentar esse problema sobretudo para ultrapassar algumas tradi ções funestas e nefastas na teoria e na prática crítica da modernidade DEBATE COMO PÚBLICO Sou da Universidade de Fortaleza no Brasil Um dos princi pais desafios que vimos trabalhando a partir do direito como fator de mudança social tem que ver com a legitimidade Em nossa intervenção em um projeto de cidadania ativa percebe mos uma assimetria de pautas que dificulta a busca de legiti midade porque na universidade temos nossas próprias pau tas e a comunidade tem um ritmo diferente do nosso Mais além da tradução bilateral em duplo sentido da qual o senhor fala queria ter indicações sinais de como trabalhar a legitimidade dos saberes da universidade com os saberes e as necessidades da comunidade A legitimidade é para onde vai hoje meu trabalho sobre a universidade Paço distinção entre três crises na universidade pública contemporãnea a crise de hegemo nia a de legitimidade e a institucional A crise de hege monia tem que ver com o fato de que a universidade era a única instituição na produção de conhecimento de ex celência e hoje a confrontação é entre produzir conheci mentos exemplares sofisticados e ao mesmo tempo ter de se democratizar com o acesso de mais gente ao ensino público como um direito Essa confrontação não tem per mitido que a universidade cumpra seus objetivos o que levou a uma crise de legitimidade E há uma crise insti tucional a idéia de que por um lado a universidade foi criada na autonomia e por outro agora se busca cada vez mais que seja conduzida e administrada como uma em presa com critérios de eficácia que são típicos do mundo empresarial Isso está degradando as relações entre estu dantes e professores e está também proletarizando toda a comunidade universitária com a criação de um merca do global de serviços universitários Por isso creio que o mundo vai caminhando sobre o que me parece é a solu ção penso que a crise de hegemonia é irreversível não é preciso resolvêla o que é preciso resolver é a crise de legitimidade e a crise institucional e devemos começar o quanto antes A crise de legitimidade tem que ver com a criação de uma universidade de proximidade de um bem público que realmente seja acessível com qualidade que esteja relacionado com os problemas da sociedade onde está situada A torre de marfim passou quando as uni versidades começaram foi necessário certo isolamento porque com as estruturas do poder religioso na Europa sobretudo era muito importante dizer que o conheci mento que estavam produzindo era neutro não tinha que ver com a sociedade era uma maneira de defender a universidade das autoridades religiosas das inquisições Mas hoje as condições são absolutamente distintas ao contrário necessitamos de um compromisso político da universidade com a sociedade que a envolve E por isso a crise de legitimidade assinalou cinco áreas fundamen tais 1 o acesso muitos países têm de fazer ações afir mativas como sistemas de cotas 2 uma nova forma de extensão universitária que em muitos países está se 70 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 71 concentrando em todas as formas rentáveis de serviços universitários para a comunidade é uma forma com a qual a universidade pública ganha recursos extras mas a meu ver é uma perversão do que deveria ser a autêntica extensão que é solidária com as comunidades 3 a pes quisaação vocês têm uma grande tradição na América Latina o homem que melhor teorizou a pesquisa social um grande amigo e um grande sociólogo Orlando Fals Borda quase não passou às gerações mais jovens e era muito importante nos anos 1960 e 70 A meu ver não passou porque era muito forte a idéia do positivismo científico que de alguma maneira as ditaduras contri buíram muito para impor nas universidades e também podemos dizer que em condições de ditadura o positi vismo foi uma defesa quase como nos tempos religiosos contra as inquisições Mas os tempos são outros e às ve zes os povos perdem a memória de suas forças das coi sas inovadoras que fizeram no passado e que poderiam assumir de novo 4 outra é a ecologia de saberes que é a inversão da extensão é trazer outros conhecimentos para dentro da universidade e S buscar uma nova re lação entre a universidade pública e a escola pública há em todos os países uma degradação da escola primária e secundária e as pessoas não se dão conta de quanto es sas coisas estão relacionadas a universidade pública não vai se legitimar se não fizer uma aliança estratégica com o ensino primário e secundário Em muitos países a pre paração de professores do ensino fundamental e médio saiu do controle da universidade e muitas vezes está em escolas privadas Há experiências como as butiques de ciência scienceshops uma nova forma de pesquisaação em que os projetos não são iniciativas dos universitários mas de associações cívicas de cidadãos que não podem pagar por serviços caros e buscam as universidades para por meio de um trabalho interdisciplinar resolver pro blemas como aids emprego questões ecológicas etc Isso inclui alguma novidade interessante porque em alguns países como a Dinamarca os estudantes podem fazer seu curso ou programa de estudos da universidade em um scienceshop ou seja seu trabalho é de contribuição a essa associação com um projeto em que os diferentes conhecimentos estão se unindo Em meu livro sobre a universidade analiso uma transformação que me pa rece interessante do conhecimento universitário para o que chamo conhecimento pluriuniversitário z E isso está ocorrendo de muitas formas Sou de Ciências Sociais e minha pergunta referese às múltiplas facetas da opressão que postulava e que têm que ver também com a idéia de identidadefortaleza quando identidades de raça ou de gênero simultaneamente são cons titutivas mas no desenvolvimento de um movimento social a identidade de gênero por exemplo fica incluída nos objetivos mais gerais do movimento Como é possível interpretar esse tipo de identidadefortaleza Esta segunda pergunta referese se a entendi bem às situações em que temos projetos e movimentos com componentes identitários muito fortes as identidades as sumem a forma de certo fundamentalismo e se transfor mam em identidadesfortaleza Eu faço distinção entre as identidadesforça e as identidadesameba as últimas são as que realmente se misturam e procuram se articular com outras identidades As identidades são identificações em curso não devemos ter uma concepção cristalizada de identidade e isso é muito importante nos movimentos porque há conflitos muito fortes Por exemplo as discus sões entre o movimento feminista e o movimento operá A universidade no século XXI para urna reforma democrática e eman cipatória da universidade São Paulo Cortez 2004 72 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 73 rio são significativas para saber como podemos compa tibilizar na luta uma perspectiva de gênero nas relações sociais de sexo com uma luta pelos direitos humanos por emprego ou em uma greve Às vezes há a idéia de que alguma das demandas identitárias pode pôr em pe rigo as demandas principais Penso que deve haver uma análise concreta do que é prioritário em certa demanda mas também que as demandas são mais capazes de criar potencialidades transformadoras se se combinam se se articulam se perdem sua pureza sua identidade total e se abrem para as lutas Hoje por exemplo o movimento feminista que está muito fragmentado se divide e não me parece uma coisa mim quando as mulheres negras não se identificam com as mulheres de classe média e quando as mulheres indígenas também não se identifi cam com elas Estas últimas buscam transformar uma agenda que no final possa integrar as diferentes perspec tivas de gênero para incluir um componente de classe e um componente racial ou étnico se não os têm não vão conseguir se articular em uma luta social Sou da Faculdade de Ciências Sociais e queria perguntar a respeito do FSM e todo esse movimento de internacionali zação dos movimentos sociais Como o senhor vê essa passa gem da idéia de movimento social ã oenegeização deles e a configuração de uma espécie de altruísmo internacional que produz ressentimento em nível local por exemplo ao ver uma burocracia do feminismo do movimento gay do movi mento de luta contra a aids ou do movimento indígena Fala se até de uma indústria dessas conferências das Nações Uni das E a suspeita de que essa insurgência definitivamente é financiada pelo Estado com as fundações internacionais até pelo Banco Mundial ou seja a idéia de que o ativismo e a liderança social acabem passando a responsabilidade para seus financiadores e não para suas bases comunitárias E ou tra coisa ligada ao FSM chegaram notícias de que estaria se formando uma direção do Fórum e que muitos movimentos são contra certa burocratização do FSM Como está se pro cessando essa espécie de institucionalização do Fórum Contesto ambas dizse que o FSM pode acabar sendo uma coisa burocrática e gerenciada pelo Banco Mundial Essa é uma crítica que se faz e me parece extremamente injusta Eu e todos os outros que nos sentimos envolvidos com o FSM não falo em nome do FSM porque ninguém pode fazêlo ninguém o representa podemos contestar com diferentes concepções A meu ver o que está por trás das críticas mais radicais é essa tradição na esquerda bas tante dogmática sempre em busca da luta pura e as lutas não são puras são impuras têm elementos de perversão e é preciso ter uma vigilância epistemológica teórica e po lítica sobre os movimentos É preciso distinguir os que re chaçam completamente a idéia do FSM dos que o criticam construtivamente Creio que rechaçar a idéia do FSM vem de diferentes formas e tradições da esquerda Por exem plo em alguns dos fóruns tivemos coisas interessantes críticas muito radicais se transformaram em fóruns alter nativos Ou seja a idéia de fórum vai ultrapassar as dife renças Em Mumbai onde se realizou o IV Fórum Social Mundial formouse um fórum alternativo que ficou do outro lado da rodovia o Mumbai Resistence composto de divisões dos partidos comunistas da Índia que não aceita ram o rechaço da luta armada como um instrumento poli tico da Carta de Princípios do FSM e criaram seu próprio FSM De fato eu também participei desse fórum alterna tivo e fui ver o que se passava ali No Fórum Temático de Cartagena sobre Democracia também houve um fórum al ternativo de gente que pensava que o FSM estava oene geizando ou seja a idéia de que os movimentos perdem autonomia e as ONGs prevalecem Isso é parte do proble ma que não é só essa passagem de movimentos para 74 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 75 ONGs mas sim o papel das organizações muito podero sas internacionais quase todas do Norte Em meu livro sobre o FSM faço uma análise das organizações que com põem o Conselho Internacional mais de 50 vêm da Eu ropa e da América do Norte 3 Então o FSM não é mundial É preciso fazer um projeto e minha contribuição anali sando o que fazem as organizações e de onde vêm é para mostrar que é necessário impulsionar uma mundialização do próprio FSM é uma crítica construtiva para poder am pliar o FSM E por isso hoje a Comissão de Expansão do Conselho Internacional do Fórum é fundamental porque sabemos que as organizações da África estão ausentes e as da Ásia também e quando vêm da África são represen tantes de organizações ou movimentos que estão articula dos com as grandes ONGs do Norte que têm seus subsi diários suas franquias no Sul os que estão fora das franquias não vêm Aqui também aparece a Sociologia das Ausências que realmente é preciso produzir no FSM A mundialização é um dos desafios o outro é a democracia interna não tenho uma visão de burocratização ou insti tucionalização do FSM E um campo de disputa Houve um Secretariado Internacional em que o grupo brasileiro teve um poder muito forte porque foi ele quem o iniciou Neste momento o Secretariado está constituído porbrasi leiros e pessoas da Índia mas sabemos que pelas próprias condições trazer os indianos a São Paulo é muito difícil não é possível que as tarefas sejam totalmente divididas Há um Conselho Internacional CI e um processo pelo qual esse CI tentou ter mais poder para configurar o FSM e para que o Secretariado seja mais executivo Mas a demo cracia interna se articula com a idéia da mundialização Ter democracia interna em um fórum que apesar do nome não é mundial é uma questão que também devemos incluir E depois vem a tensão entre movimentos e ONGs 0 Fórum Social Mundial manual de uso São Paulo Cortez 2005 que é um campo de disputa muito forte Penso que é uma luta e uma disputa produtiva que é preciso continuar ten tando realizar sobretudo para saber se o FSM vai ser um movimento de movimentos ou se vai se institucionalizar como qualquer outra entidade socialdemocrata há uma luta e ela é aberta E há uma tensão entre a Assembléia dos Movimentos Sociais e a organização do FSM porque o FSM não produz declarações finais e a Assembléia sim Às vezes as declarações finais da Assembléia são consideradas no mundo como decisões do FSM e isso cria uma tensão interna Dentro do FSM há gente com diferentes visões por exemplo acredito que há uma posição dominante que é a idéia de que o Fórum é um espaço de reflexão que não deve tomar decisões demais para não expulsar gente Eu vejo nisso um grande perigo e tenho discutido isso com muitos porque creio que não devemos transformar o FSM em um partido mundial o que é impossível porque o poder de inclusão do FSM é algo novo sua capacidade de agregação é mais rica mas não compreendo como o FSM não possa vir a ter por exemplo uma posição sobre a dívi da a reforma das Nações Unidas a privatização da água ou seja sobre as questões em que há consenso Dentro do FSM deveria haver posições sobre isso mas dentro do CI há diferentes posições é um campo de luta A questão do financiamento tem sido muito discutida um grupo anar quista creio que argentino expôs uma análise com os detalhes financeiros de todas as organizações que finan ciaram o FSM para deslegitimálo Creio que é impossível O FSM não é um processo revolucionário autônomo é uma tentativa de pensar de criar uma escala de resistência política que se ajuste ã globalização de hoje porque nossas resistências até agora eram locais e nacionais Em 1994 os zapatistas começaram com a idéia de que era necessário ter uma resistência global depois temos Seattle e em se guida aparece o FSM Então a idéia de globalizálo como se faz isso Trazendo gente Mas não há dinheiro que pos Boaventura de Sousa Santos 77 76 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social sa trazer as pessoas o problema não é tanto o financia mento mas suas condições e aqui nem tudo é claro e transparente Na Índia por exemplo há organizações com uma vasta tradição de resistência às fundações ocidentais e com muito boas razões A Fundação Ford foi na Índia o grande agente de esterilização de mulheres e da revolução verde Como as pessoas do FSM na Índia podem estar sa tisfeitas se as fundações ocidentais vêm com dinheiro para esse processo Compreendese e se respeitou isso mas em outros países houve casos em que o financiamento não criou condições de controle sobre o que se ia fazer As ONGs mais poderosas podem ter uma presença maior Por exemplo neste último Fórum tentouse uma nova meto dologia para que todas as atividades fossem autogestiona das sabemos que as organizações mais fortes trouxeram as estrelas e outras pessoas e as hospedaram nos melhores hotéis Não vamos acabar com isso de imediato Hebe de Bonafini que é uma amiga muito querida disse e escre veu há dois fóruns o das estrelas e o dos soldados Real mente essa tensão existe Penso que até agora o financia mento não o destruiu mas é o mesmo que acontece com os partidos tivemos uma grande influência do PT no FSM e acredito que o PT não pôde manipular o FSM que cres ceu muito mais Na Índia tivemos três partidos comunis tas dois partidos socialistas e os movimentos gandhianos por trás do FSM Houve negociações muito difíceis mas finalmente se chegou a um acordo e Mumbai foi um dos fóruns mais bemsucedidos que tivemos Neste momento está se discutindo no CI como vamos fazer para que orga nizações da África e da Ásia possam ir ao FSM sem perten cer às ONGs mais poderosas da Europa e dos Estados Uni dos para que mais pessoas que não estão conectadas possam fazêlo E temos agora essa idéia de descentralizar o FSM em 2006 que também é um pouco isso haverá um na Venezuela outro na África e outro na Ásia Sempre são condições políticas e também não queremos que na Vene zuela seja um FSM do presidente Chávez mas um temáti co hemisférico que tem de ser acolhido em Caracas mas com autonomia Todas essas questões são a meu ver coi sas que estão sendo discutidas Fezse um estudo sobre a composição social dos participantes do FSM de 2003 e eu analisei os resultados 73 têm curso universitário com pleto ou incompleto Onde estão os oprimidos É um pro cesso e também não conseguimos trazer as pessoas que vivem nos bairros pobres de Porto Alegre Agora o que falta é saber se porque a idéia não é pura e tem problemas devemos abandonála Esse é o erro que a esquerda come teu durante muito tempo Neste momento não podemos desperdiçar experiências é preciso lutar por isso meu convite aos grupos mais radicais é que entrem e se organi zem e permitam um diálogo Em Cartagena fui a La Bo quilla que é um bairro popular para trabalhar com as pes soas que estavam promovendo um fórum social alternativo porque diziam que estavam retirando os afrodescendentes do Caribe colombiano para atrair o turismo a essas praias e eu lhes disse Estou contente de estar aqui mas se vocês organizassem isto num lugar com três mil pessoas seria muito mais fácil chamar a atenção da imprensa internacio nal sobre a luta de La Boquilla Claro que há tensões na Colômbia naturalmente quanto a conexões ou não com a guerrilha Tudo é complexo nada é puro e por isso é pre ciso lutar com essas contradições Me parece que seria bom avançar sobre que atra tivos tem o pensamento monocultural a metonimia o pensamento linear o conhecimento científico porque me recordo daquela idéia de Rousseau de que os homens nas cem bons e as instituições os tornam maus e aqui pare ceria que as ideologias ou a hegemonia fazem mal a um homem que nasce bom Boaventura de Sousa Santos 79 78 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Sobre o atrativo do monoculturalismo creio que você tem razão Quando tentamos fazer uma crítica é com base na idéia ecológica de que a tradição ocidental pode ser resgatada no que tem de positivo concepções de Estado de espaço público de cidadania de seculari zação São elementos ao mesmo tempo indispensáveis e inadequados se você tem como quadro uma luta global que além disso deve estar ancorada na realidade cultu ral de cada país e cada comunidade Mas a idéia ecológica é que não se apresente como monocultural porque o mo noculturalismo é sempre uma idéia de força Realmente o mundo é diverso e por isso quando uma idéia mono cultural tem atrativo é porque tem por trás uma força Quando o cristianismo chegou a este continente tinha um atrativo mas veio com canhões essa é a força da idéia de força Hoje quando Condolezza Rice diz que vai impor a democracia em todos os países pode criar uma situação colonial em um país como o Iraque para impor a demo cracia Seria interessante para os doutorandos atuais fa zer uma distinção entre os missionários do século XVII e os missionários do Banco Mundial da democracia e dos direitos humanos os do século XVI e XVII teriam vanta gens porque pelo menos aprendiam as línguas estuda vam o lugar e os costumes para controlar claro mas os de hoje impõem suas leis e vão embora Sou da Faculdade de Ciências Sociais também e fiquei pensando no que o senhor dizia sobre os movimentos que se proclamam reformistas ou revolucionários e como naAméri ca Latina há diferentes formas de alternativas políticas e mo vimentos sociais o zapatismo com a autonomia e sem aspirar ao poder outros com outra relação com o Estado além de di ferentes opções políticas como o caso da Venezuela Uruguai etc Alguns se dizem reformistas outros revolucionários e os zapa tistas se dizem rebeldes por exemplo Como convivem essas distintas formas de poder alternativo Temos ações que surgem como revolucionárias e depois parecem reformistas como para muitos são os zapatistas ações reformistas que depois parecem re volucionárias como é o caso de Chávez e ações refor mistas que nem sequer parecem reformistas como o caso de Lula E vamos ver o que vai acontecer com o Uruguai que é um país com uma tradição belíssima e que está em uma situação muito difícil com um proces so maravilhoso de movimentos sociais e que realizou uma das conquistas mais importantes ao garantir que a água não seja privatizada por meio de um plebiscito e uma nova lei constitucional Há aqui uma criatividade enorme e o movimento indígena tem uma importân cia que não é suficientemente respeitada nas teorias da esquerda Trabalho muito na América Latina há vários anos e me choca como os movimentos comunistas so cialistas estão tão distantes das lutas dos movimentos indígenas Meus colegas socialistas do Equador me di ziam que os indígenas são racistas às avessas e deve mos nos defender disso claro que é preciso levar em conta o Movimento Pachakutik com todas as divisões O Movimento de Unidade Plurinacional PachakutikNovo Pais MUPPNP se formou em 1995 numa década marcada pela emer gência do movimento indígena e por sua configuração como prin cipal ator político do Equador Seus eixos centrais eram a oposição ao neoliberalismo e a construção de uma alternativa nacional que possibilitasse uma forma diferente de desenvolvimento econõmi co político social e cultural centrado no ser humano e na defesa da vida Desde 1996 o Pachakutik participa de eleições para al caides presidentes de câmaras municipais que exercem também o Poder Executivo prefeitos vereadores deputados provinciais e nacionais verbete escrito por Alejandra Santillana Ortiz em Latinoamericana enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe São Paulo Boitempo 20061 p 8878 N E 80 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 81 internas do movimento indígena e a globalização do que se vayan todos argentino Penso que é um cam po no qual é preciso trabalhar também neste país uma das coisas que mais me interessam é como se faz arti culação política a distância entre a vitalidade do movi mento social e um sistema político que não muda Na Argentina a gente podia imaginar que depois da crise de 2001 haveria uma mudança total do sistema políti co o que estou observando é que ao contrário do que aconteceu na Itália com as mãos limpas da corrupção aqui não há realmente articulação Há uma criatividade enorme do movimento social que provavelmente está em refluxo não sei e uma grande dificuldade na arti culação política porque os partidos não mudam e sem isso podemos estar criando duas inércias paralelas que seriam muito prejudiciais a um processo de democra cia de alta intensidade Ou seja uma inércia dos movi mentos que não conseguem se multiplicar e acumular energia transformadora e uma inércia dos partidos que continuam no poder mais ou menos oligárquico mais ou menos dominante que sempre tiveram É uma questão complexa Sou da Faculdade de Ciências Sociais A questão da dife rença nos leva ao problema das lógicas às quais recorrer para interpretála e para enfrentar os desafios ou as novidades do Fora todos poderia ser a tradução Em 21 de dezembro de 2001 mais de um milhão de argentinos saíram às mas num protesto indig nado contra a politica neoliberal que provocou recessão desemprego e pobreza Foi uma espécie de Basta do povo contra todos os polí ticos de todos os partidos burocratas corporações multinacionais FMI Suprema Corte etc Que se vayan todos foio Lema do protesto que derrubou quatro presidentes em duas semanas N T mundo atual Em que lógica você está pensando Uma lógica dialética ou uma mais ligada ao hermenêutico ao paradoxal ao estilo desconstrucionista ou uma nova lógica que seria ne cessário incorporar a estes novos tempos Creio que hoje uma das coisas mais interessantes epistemologicamente é ver o impacto das teorias da complexidade as teorias do caos e a lógica informal Isso está mudando todos os conceitos anteriores da lógica dialética hermenêutica analítica Está criando outra maneira que a meu ver tem uma potencialidade enor me de entender um pouco melhor o mundo em termos políticos e epistemológicos Por exemplo a questão do construtivismo de que se falou era um dos debates da razão indolente Nós no Ocidente temos debates furio sos enormes que no contexto do mundo não significam quase nada são indolentes por exemplo entre realismo e construtivismo Nas duas posições há matizes enormes porque em todos os movimentos sociais nada pode ser totalmente construtivista quando a polícia vem e nos espanca qual é a construção social da polícia Há uma dor física no corpo o real se opõe a nós e então não po demos ter uma atitude construtivista total diante das ações repressivas temos de ter o que chamamos hoje um realismo pragmático Há representação real nos termos em que a realidade se opõe mas não temos uma maneira imediata de conhecer a realidade e por isso somos sem pre construtivistas O que não é possível é ser descons trutivista essa é uma luta muito grande minha com as tradições filosóficas da desconstruçäo porque até certo limite é um produto típico da teoria crítica ocidental O problema é que não podemos desconstruir até o ponto de desconstruir a capacidade de resistência Então toda a desconstrução de alguém de grupos de movimentos ou de teorias que queiram reconstruir a emancipação social tem de ter um elemento construtivista e realista um ele mento de desconstrução e um elemento de reconstrução 82 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Derrida demonstrou muito bem nos últimos livros sobre Marx como a desconstrução o deixava sem resistência e o mesmo aconteceu com Foucault Penso que temos de sair desses debates se quisermos realmente enfrentar a questão do sofrimento humano ou da resistência às cau sas do sofrimento humano Capítulo III Para uma democracia de alta intensidade Quando o senhor falou em pensar a Sociologia do Sul e trabalhar com outra dinâmica que não seja a da oposição me ocorreu pensar no estruturalismo que justamente pro põe a diferença em relação à oposição A sua proposta leva em conta a diferença Com respeito à questão do estruturalismo não estou dizendo que não seja uma discussão importante Prova velmente é indolente porque para mim hoje o mais eficaz é a distinção e o trabalho de como criar subjetividades rebeldes contra a banalização do horror que cria subjeti vidades conformistas e resignação Mas claro eu mesmo faço distinção entre seis espaços estruturais então há a presença do estruturalismo É um debate que podemos ter se o estruturalismo trabalhou bem os dois princípios da igualdade e do respeito às diferenças A meu ver não o estruturalismo trabalhou bem o princípio da igualdade mas não trabalhou bem o princípio do reconhecimento da diferença Esse é um debate teórico importante que é preciso discutir no contexto desses outros debates aos quais os convido As perspectivas epistemológica teórica e política estão muito conectadas nesses desafios que identificamos para a reconstrução de uma utopia crítica para passar de uma teoria crítica monocultural a outra multicultural para distinguir entre objetividade e neutralidade para passar da problemática estruturaação à problemática ação con formistaação rebelde para analisar a questão do pós colonialismo e também a dos dois sistemas de domínio hierarquizado que existem no capitalismo Dessas pro blemáticas surgiam alguns desafios importantes para a teoria uma concepção ampla do poder e da opressão os seis espaçostempo estruturais e suas formas de poder a equivalência entre o princípio de igualdade e o princípio de diferença quando falamos dos sistemas o da desi gualdade e o da exdusão assim como a mescla que exis te entre os dois Nós nos referimos às formas de ação e continuando vamos nos concentrar na questão da ação institucional e da ação direta Por outro lado nos referi mos também à emergência do Fórum Social Mundial e à necessidade de um novo internacionalismo descentrali zado multicultural Essas são as exigências teóricas das quais viemos e devemos ver quais são as conseqüências politiéas e quais Boaventura de Sousa Santos 85 84 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social são os instrumentos com que contamos A mensagem foi sempre que necessitamos de um conhecimento muito sofisticado e exigente porque temos de conhecer muito bem a tradição e ao mesmo tempo contestála enfren tála e inovar a partir dessa tradição Roberto Fernández Retamar um grande crítico literário cubano costuma di zer que temos uma dupla tarefa sobretudo a partir da situação póscolonial por um lado a de conhecer mui to bem o centro hegemônico e por outro a de conhecer muito bem a alternativa ao centro hegemônico Ou seja devemos gerar um duplo conhecimento que é fundamen tal para todos nós sobretudo para os jovens cientistas sociais de hoje Que instrumentos temos Na realidade contamos só com instrumentos hegemônicos para tentar enfrentar tudo isso porque os conceitos para enfrentar o novo a des continuidade a ruptura a revolução hoje nós não temos Os instrumento hegemônicos que temos são as semânti cas legítimas da convivência política e social a legalidade a democracia os direitos humanos Isso é realmente o que temos hoje para enfrentar todos esses desafios É um problema complicado porque se são instru mentos hegemônicos por definição não vão resolver nossas inquietações nossas aspirações e não vão conse guir o que queremos alcançar que é uma sociedade mais justa reinventar a emancipação social Então temos de fazer um trabalho dobrado Por um lado tentar ver se os instrumentos hegemônicos podem ser utilizados de ma neira contrahegemônica se podemos desenvolver um conceito contrahegemônico de legalidade de direitos humanos e de democracia E por outro lado ver se nas culturas e nas formas políticas que foram marginalizadas e oprimidas pela modernidade ocidental muitas delas no próprio Ocidente porque a modernidade ocidental é feita de muitas modernidades uma das quais dominou todas as outras podemos encontrar embriões semen tes de coisas novas Um duplo trabalho de arqueologia nessas ruínas de destruição e nos instrumentos hegemô nicos que temos Nesse sentido vou me concentrar na questão da democracia mas depois no debate podemos trabalhar mais sobre os direitos humanos Vamos ver qual era a situação da democracia nos anos 1960 Naquele momen to a teoria da democracia tinha certas características sobretudo vista de uma perspectiva crítica Em primeiro Lugar havia vários modelos de democracia a democracia representativa liberal a democracia popular a democra cia participativa a democracia dos países que se desen volviam a partir do colonialismo Havia portanto uma grande variedade de modelos democráticos Em segundo lugar a discussão central da teoria críti ca da teoria da democracia em geral Robert Dahl Bar rington Moore era a questão das condições da democra cia o grande problema de discussão então era por que a democracia só se fazia possível em um pequeno pedaço do mundo em um pequeno número de países A resposta era porque lá existiam condições para isso sociais políti cas econômicas Falavase por exemplo de uma reforma agrária como condição para criar uma população cidadã para a democracia ou da necessidade de fortalecer as ca madas médias como forma de estabilizar a democracia e como tais coisas não existiam na maioria dos países não se podia discutir a democracia Por outro lado havia uma tensão criativa entre demo cracia e capitalismo porque a democracia era um processo que por meio da metáfora do contrato social lutava por uma inclusão mais ampla O contrato social sempre foi se letivo excluiu muita gente e muitos temas mas desde o sé culo XIX a luta política é de alguma maneira pela inclusão no contrato Os operários as mulheres os imigrantes as minorias às vezes as maiorias étnicas todos estavam em uma luta pela inclusão que apresentava uma característi Boaventura de Sousa Santos 87 86 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social ca envolvia alguma redistribuição social que se dava na forma de direitos econômicos e sociais Por isso o contra to social é a possibilidade de fazer alguma redistribuição Mas o capitalismo não gosta de redistribuição e se produz uma tensão a tensão criativa entre regulação e emancipa ção que é epistemológica é teórica e também política E o contrato social regula a tensão entre regulação social e emancipação entre ordem e progresso Nesse contrato há dois grandes princípios o de igualdade e o de liberdade e a distinção entre as forças políticas que aceitam o jogo democrático porque há toda a rota dos anarquistas e do socialismo revolucionário que não aceitam esse jogo é entre as demoliberais que privilegiam o princípio da liber dade e os demosocialistas que tentam perseguir os dois princípios ao mesmo tempo por isso os demosocialistas são mais favoráveis a concessões às classes trabalhadoras à construção do direito social etc A quarta característica desse modelo que está cen trado no Estado é pensar que este é a solução e a socie dade é o problema A sociedade é problemática porque há crimes há prostituição há escassez de moradias há toda uma desestruturação que a revolução industrial criou e o Estado deve solucionar E pretendese que esse Estado seja democraticamente forte para produzir uma sociedade civil forte Ou seja há uma simetria entre uma sociedade civil forte e um Estado democraticamen te forte não há contradição Esse é um modelo que se assenta sobre muitos pressupostos o livro que apre sentamos na Feira do Livro fala deles mas o que de vemos entender é o que aconteceu com essa posição do Estado como solução Há dois processos muito claros Um é a socialização da economia que vai ser algo inovador no centro e também nos países semiperiféricos Reinventar a democracia reinventar o Estado Buenos Aires Clacso 2005 da América Latina e da Ásia A Índia é um exemplo mui to importante nesse caso mostrar que a economia não é somente capital fatores de produção e mercado A econo mia é também gente trabalhadores famílias necessida des aspirações desejos paixões que devem ser regulados de alguma maneira e isso é o processo de socialização da economia O segundo processo é a politização do Estado Se para os conservadores o Estado tinha simplesmente o papel de estabelecer e manter a ordem pública e defender a soberania nacional nas concepções demoliberais e demo socialistas isso já não é assim e a politização do Estado vai consistir na produção de quatro bens públicos fundamen tais O primeiro é a identidade nacional os hinos a edu cação as histórias nacionais o modo como aprendemos a ser argentinos brasileiros portugueses O segundo é o bemestar individual e coletivo a idéia do bemestar social que é parte do contrato O terceiro é a segurança individual e coletiva E o quarto é a soberania nacional Esse modelo entrou em uma crise enorme nos úl timos vinte anos e analisaremos muito brevemente o que sucedeu Em primeiro lugar dentre todos os mo delos de democracia que havia apenas um permaneceu a democracia liberal representativa As outras formas de democracia desapareceram não se fala mais delas Assim pois a primeira idéia que quero lhes comuni car é que assim como temos biodiversidade e a vamos perdendo creio que nos últimos vinte anos também perdemos demodiversidade perdemos a diversidade de formas democráticas alternativas em que o jogo a competição entre elas de alguma maneira dava força à teoria democrática Em segundo lugar a tensão entre capitalismo e de mocracia desapareceu porque a democracia começou a ser um regime que em vez de produzir redistribuição social a destrói É o modelo neoliberal de democracia imposto pelo Consenso de Washington Uma democra Boaventura de Sousa Santos 89 88 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social cia sem redistribuição social não tem nenhum problema com o capitalismo ao contrário é o outro lado do capita lismo é a forma mais legítima de um Estado fraco Essa é a razão pela qual o Banco Mundial e o FMI propõem e impõem essa forma de democracia Então com a falta de redistribuição social essa discrepância entre experiên cias e expectativas vai sofrer um colapso De fato nossa definição de sociedade nas ciências sociais a mais sim ples e mais complexa ao mesmo tempo diz que ela é um conjunto de expectativas estabilizadas sociedade é rece ber o salário no fim do mês é o ônibus que chega numa hora determinada é a expectativa estabilizada O que está ocorrendo hojeé que para muita gente não há expectativas estabilizadas e por isso tenho dito que estamos na crise do contrato social Estamos expul sando gente da sociedade civil para o estado de nature za que era o estado anterior ao da sociedade civil para Locke para Hobbes e para Rousseau Estamos falando da maioria da população mundial em alguns países mais em outros menos pode ser 60 30 mas isso é o que está acontecendo no mundo neste momento com a manutenção da democracia política representati va sem redistribuição social Meu primeiro diagnóstico radical de nossa situação presente em nível mundial é que vivemos em sociedades politicamente democráti cas mas socialmente fascistas Ou seja está emergindo uma nova forma de fascismo que não é um regime polí tico mas um regime social É a situação de gente muito poderosa que tem poder de veto sobre os setores mais fracos da população Quando digo crise do contrato social alguns podem assinalar que isso é contraditório nós vemos os informes do Banco Mundial nossa imprensa e eles estão sempre fa lando de contratualismo Isso não tem nada que ver com o contrato social é o contratualismo individual entre partes que têm poderes muito distintos e que a meu ver cria uma forma de fascismo social o fascismo contratual No livro Reinventar a democracia reinventar o Estado faço distinção entre cinco formas de fascismo social O importante agora é ver como o fato de se passar muito facilmente do sistema de desigualdade ao sistema de exclusão está produzindo uma situação nova que é essa de haver brutais desigualdades sociais que são invisíveis que estão aceitas que estão natu ralizadas ainda que se mantenham a idéia democrática o Estado democrático Por isso entramos em um processo no qual o neolibera lismo não tem nada que ver com o liberalismo do século XIX e sim com o conservadorismo desse século mas por sua vez é novo no século XIX o conservadorismo queria criar um quadro jurídico para os negócios a fim de garantir a pro priedade individual e as obrigações contratuais e defender a soberania nacional O novo conservadorismo tem despre zado o conceito de soberania nacional o nacionalismo dos conservadores não existe mais O terceiro efeito dessa crise é que em vinte anos essa fórmula do Estado como solução e a sociedade como problema se inverteu Agora a sociedade civil é a solução e o Estado é o problema E isso passou qua se despercebido para muita gente O Estado é ineficiente O Estado é a causa de todos os problemas etc O outro fator foi que o Estado ao invés de ser es pelho da sociedade civil é agora seu oposto para criar uma sociedade civil forte temos de ter um Estado fraco Um Estado democraticamente forte não pode conduzir a uma sociedade civil forte Então isso nos leva a outra característica importante que se desdobra em duas e é o que chamo de desnacionalização do Estado por um lado ou seja o Estado cada vez mais gerindo as pres sões globais e a desestatização da regulação social por outro O Estado deixa de ter o controle da regulação social criamse institutos para isso e o Estado passa a ser apenas um sócio não tem o monopólio daregulação social Por isso vamos ter o problema da relação entre Boaventura de Sousa Santos 91 90 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social reguladores e nãoregulados e freqüentemente os regu lados são reféns dos reguladores Este primeiro diagnóstico é duro mas me parece que tem que ver claramente com a crise do modelo Outros as pectos que não vamos poder desenvolver em sua totalidade são o fascismo social que não é produzido pelo Estado mas tem a cumplicidade do Estado e o novo Estado de Exceção Conduindo dessa situação resultam algumas coisas que são desafios para nós se quisermos reinventar uma prática e uma teoria politica Primeiro porque vemos que no primado do direito que se anuncia por todos os lados a reforma do sis tema social a centralidade dos tribunais etc consagrase o direito mas desconsagramse outros direitos os direitos sociais e politicos Em segundo lugar é a emergência de um constitu cionalismo global das empresas multinacionais que pre valece sobre as leis nacionais e as viola freqüentemente mas tem prioridade sobre elas como antes a lei consti tucional tinha prioridade sobre as leis ordinárias E de tudo isso resulta o que chamo uma democracia de baixa intensidade vivemos em sociedades de democracia de baixa intensidade O problema está em compreender que a democracia é parte do problema e temos de reinventá la se quisermos que seja parte da solução Por exemplo o que seria um ideal democrático segundo Rousseau é preciso distinguir sempre a democracia como prática da democracia como ideal é muito interessante Rousseau dizia que é democrática somente uma sociedade na qual ninguém seja tão pobre que tenha de se vender nem nin guém seja tão rico que possa comprar alguém Em nossas sociedades há de fato muita gente que tem de se vender e muita gente que tem dinheiro para comprar essa gente Estamos muito longe do ideal democrático de Rous seau e por isso é preciso ver se podemos criar uma contra hegemonia Mas não é fácil neste momento Nosso pro pósito e minha tese central neste seminário é que temos de reinventar a demodiversidade provavelmente é possível reinventar e reconstruir algumas dessas formas de demo diversidade E a principal que vou propor é a relação entre democracia representativa e democracia participativa As razôes pelas quais temos de ver essa solução contrahege mônica partem de uma análise rigorosa em cada país da democracia de baixa intensidade que se apresenta de várias maneiras mas tem em geral e por isso vamos ter de cons truir alternativas a partir disso algumas características que é importante rever A primeira é que esse modelo se funda em dois mer cados O mercado econômico em que se intercambiam valores com preço e o mercado político em que se inter cambiam valores sem preço idéias políticas ideologias Vemos hoje que esses dois mercados se confundem cada vez mais estamos entrando em um processo no qual so mente tem valor o que tem preço e portanto o mercado econômico e o mercado político se confundem Com isso se naturaliza a corrupção que é fundamental para man ter essa democracia de baixa intensidade porque natura liza a distância dos cidadãos em relação à política todos são corruptos os politicos são todos iguais etc o que é funcional ao sistema para manter os cidadãos afastados Por isso a naturalização da corrupção é um aspecto fun damental desse processo Esse modelo tem duas pernas a democracia represen tativa é por um lado autorização e por outro prestação de contas Na teoria democrática original essas duas idéias são fundamentais autorização porque com o voto eu au torizo alguém a decidir por mim mas por outro lado ele tem de me prestar contas O que está acontecendo com esse modelo é que continua havendo uma autorização mas não há prestação de contas no jogo democrático atual quanto mais se fala de transparência menos transparên cia há Então dado que a prestação de contas não aconte ce a autorização entra em crise por meio de duas patolo 92 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 93 gias muito fortes a da representação os representados não se sentem representados por seus representantes e a da participação abstencionismo muito freqüente Não vou participar porque meu voto não tem importância ou porque acontece sempre a mesma coisa Essas são a meu ver as condições dentro das quais temos de encontrar alguma alternativa A situação da qual partimos realmente muito difícil tem essas carac terísticas gerais uma cidadania bloqueada na medida em que a muita gente que é a característica do sistema democrático representativo não se garantem as condi ções de participação ou seja uma cidadania que se baseia na idéia de participação mas não garante suas condições materiais Por exemplo três condições são fundamentais para poder participar temos de ter nossa sobrevivência garantida porque se estamos morrendo de fome não vamos participar temos de ter um mínimo de liberdade para que não haja uma ameaça quando vamos votar e finalmente temos de ter acesso à informação Pareceme que com essa cidadania bloqueada está se banalizando a participação participamos cada vez mais do que é menos importante cada vez mais somos chamados a ter uma opinião sobre coisas que são cada vez mais banais para a reprodução do poder E isto é algo que também me parece importante há um novo processo de assimilacionismo que se exerceu em relação aos indígenas e agora se expande a toda a so ciedade e consiste em participar sem poder discutir as regras de participação Então a partir disso temos de desenvolver outro modelo democrático que consiga de fato vencer essa situação Na democracia representativa elegemos os que tomam decisões políticas na democra cia participativa os cidadãos decidem tomam as deci sões Mas essa polarização deve ser matizada primeiro a democracia representativa tem também uma parte de participação O voto é isso mas é uma participação com plexa porque envolve a idéia de renúncia à participação e por isso é limitada A democracia participativa ao con trário também tem delegações e formas de representa ção há concelhios e delegados Todos os estudos que te mos sobre os pressupostos participativos por exemplo ainda em nível local como em Porto Alegre mostram claramente que todas as formas de democracia participa tiva têm também elementos de representação z Vejamos quais são as condições para poder efetuar essa complementaridade que não é de nenhuma maneira fácil Penso que ela inclui três problemas a relação entre Estado e movimentos sociais entre partidos e movimen tos sociais e dos movimentos sociais entre si São as três vias nas quais se pode construir uma articulação entre democracia representativa e democracia participativa que talvez constitua a criação de uma forma de complementa ridade Os caminhos de complementaridade entre ambas são muito complexos não estou dizendo que seja fácil rea lizála em nenhum lugar Se observamos a situação por exemplo dos partidos e dos movimentos percebemos que enfrentamos em muitos países uma situação totalmente hostil à complementaridade os partidos têm um funda mentalismo antimovimentos sociais pensam que têm o monopólio da organização política e que os movimento sociais não são representativos Quando estava fazendo meu trabalho de pesquisa em Porto Alegre entrevistei os principais deputados e senadores que me diziam Veja só eu fui eleito com 40 mil votos quanta gente vai a uma reunião da assembléia Mil duas mil pessoas Então sou mais representativo A idéia de representação é muito complexa e mais ainda se existe esse fundamentalismo que é muito claro No Equador por exemplo me dei conta Pertencente a um concelho distrital N E Ver meu livro Democracia y participación el ejemplo del presupuesto participativo en Porto Alegre Madri El Viejo Topo 2003 Boaventura de Sousa Santos 95 94 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social da distância entre os partidos de esquerda e os movimen tos sociais como o dos indígenas Há uma hostilidade de princípios que é preciso superar Existe outro fundamentalismo inverso a esse o fun damentalismo antipartidos políticos dos movimentos so ciais que é a idéia de que os movimentos sociais têm de ser totalmente autônomos porque a alternativa é a cooptação que significa a destruição do movimento eles têm a idéia de que não é possível a relação entre partidos e movimen tos Assim então não é possível uma articulação entre democracia representativa e participativa porque a repre sentativa está dominada pelos partidos e a participativa está dominada pelos movimentos sociais e pelas associa ções de bairros de vizinhos etc Se não há uma articulação política entre as duas não é possível uma articulação entre democracia representativa e participativa É preciso ven cer esses dois fundamentalismos E há outro obstáculo os partidos privilegiam to talmente a ação institucional dentro do quadro legal dentro do parlamento etc Os movimentos sociais ao contrário dividemse entre os que utilizam mais a ação institucional e os que usam mais a ação direta E essa é a meu ver uma das razões mais persistentes que dificul tam enfrentar essa complementaridade Por outro lado também podemos dizer que os par tidos tendem a homogeneizar suas bases sociais eles gostam cada vez mais de fazer isso por meio do que cha mamos perda de ideologia nos acontecimentos dos quais fazem parte Os movimentos ao contrário têm temas específicos trabalham sobre a diferença cultural a dife rença sexual a diferença territorial trabalham com ou tros conceitos que são distintos Temos de inventar uma nova cultura política que possa exatamente vencer essas dificuldades Como se faz isso Mostrando na prática as vantagens de uma articulação Há muitas experiências no Sul em que a democracia participativa emerge como pressuposto participativo como o plebiscito ou as con sultas populares como concelhos sociais ou de gestão de políticas públicas como no Brasil onde são muito for tes neste momento e se começa a ver uma complemen taridade Ainda é limitada porque as experiências que temos de articulação entre democracia participativa e re presentativa são em nível local Temos aqui um problema de escala como desenvolver essa complementaridade em nível nacional e global Quando o Partido dos Trabalhadores PT do Brasil chegou ao poder muitos estávamos envolvidos em pro por idéias para uma democracia participativa para um pressuposto participativo em nível federal E discutimos idéias interessantes porque não pode ser o mesmo que em uma cidade tem de ter outra forma mas é possível De fato o PT no governo descartou totalmente a possi bilidade de uma democracia participativa em nível nacio nal Então temos isto uma democracia participativa no nível local consegue articular autorização com prestação de contas cria realmente uma transparência limita a corrupção de fato isso está demonstrado e consegue redistribuição social Podese provar isso nas cidades da América Latina e da Europa onde há um pressuposto participativo de redistribuição social Mas o problema é este podemos ter cidades mais justas mas as sociedades em nível geral continuam sen do cada vez mais injustas porque o âmbito local não con segue uma articulação nacional Os partidos poderiam desenvolvêla mas não o fazem Esse é o único dos li mites mais persistentes que temos mas começam a se tornar claras algumas coisas muito importantes nessa articulação a democracia participativa consegue ampliar a agenda política Há muitos problemas nos parlamen tos da América Latina e Europa agora que estes surgem diretamente das lutas populares dos movimentos so ciais Em meu país por exemplo está se desenvolvendo Boaventura de Sousa Santos 97 96 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social um plebiscito contra a penalização do aborto resultado direto do movimento popular que força os partidos de esquerda a enfrentar essa questão no parlamento A participação dos partidos é realmente importante se eles tiverem credibilidade em seus países O problema é muito claro a articulação democracia participativade mocracia representativa exige a credibilidade dos parti dos E os partidos podem sustentar uma agenda política melhor que os movimentos O problema dos movimen tos sociais é que em determinado momento eles têm uma atividade enorme estão todos os dias na imprensa e no mês seguinte já não estão estão em refluxo as pessoas já não vão às reuniões ou às assembléias Essa idéia de sustentabilidade da mobilização é um problema muito sério em muitos países porque para que se consiga uma continuidade uma participação é preciso haver articula ção política Se não há temos estas duas inércias de que falávamos antes por um lado a inércia e o refluxo dos movimentos sociais que não conseguem se multiplicar e densificar a luta e por outro os partidos que se mantêm como antes e não mudam em nada suas políticas A meu ver esse é o desafio que enfrentamos hoje para superar tais problemas e quando se decide se con seguem muitas coisas Por exemplo trabalhando com experiências concretas notase que os partidos ao ter vocação de poder costumam trabalhar bem a questão dos desequilíbrios dentro do espaço público porque competem pelo poder não querem transformálo que rem tomálo Os movimentos sociais ao contrário sa bem que muitas vezes as formas de opressão vêm do Es tado mas também de atores econômicos e sociais muito fortes motivo pelo qual a distinção entre a opressão pública e a opressão privada não é demasiado impor tante Os sindicatos por exemplo têm uma experiência notável de luta contra atores privados os patrões e as empresas Então há também nesse processo uma capa cidade enorme de ampliar a luta contra a opressão E nos países em que a democracia participativa se enraíza nas experiências que temos é possível de fato que se desenvolva neste momento uma luta mais ampla contra diferentes formas de opressão Há fatores que favorecem seu surgimento e por isso ela está aparecendo em muitos países O primeiro é que os partidos políticos estão perdendo o controle da agenda política nunca descumpriram tanto suas promessas eleitorais quando chegaram ao poder como ultimamente Um dos estudos mais interessantes é ob servar os programas dos partidos e depois sua prática política Sempre foi assim mas agora é ainda mais por que há uma pressão da globalização neoliberal que não pode entrar na agenda política de um partido Nenhum deles pode dizer quando chegar ao poder vou seguir totalmente as instruções do Banco Mundial e do FMI porque se disser isso não vai ter votos já que as pessoas sabem as conseqüências disso Tem de dizer que vai dar mais emprego educação saúde etc mas quando che ga ao poder não faz nada disso Esse descumprimento faz com que a deslegimitação dos partidos seja cada vez maior em um número cada vez maior de países Essa perda do controle da agenda política somente pode ser recuperada por meio dos movimentos popula res Não me parece que possa ser de outra forma senão por meio de uma pressão de baixo para cima vinda dos movimentos e com outra característica deve ser legal e ilegal Não pode ser somente uma luta institucional tem de ser uma luta institucional e uma luta direta Além disso em alguns contextos tem de ser cada vez mais direta porque com a criminalização da contesta ção está se reduzindo a possibilidade de uma luta insti tucional e se esta se reduz temos de abrir espaços para a possibilidade de uma luta direta ilegal e pacífica O que estou sugerindo é que temos de criar uma dialética Boaventura de Sousa Santos 99 98 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social entre legalidade e ilegalidade que de fato é a prática das classes dominantes desde sempre usam a legalidade e a ilegalidade quando lhes convêm Por isso não pode haver um fetichismo legal Eu que trabalho muito a questão do sistema judicial como sociólogo do direito em vários países da Amé rica Latina e da África tenho uma consciência muito clara de que essa tensão é necessária De fato todos os movimentos fundadores da democracia foram ile gais greves protestos e até funerais Por exemplo na África do Sul um dos movimentos de construção da nova democracia foram os funerais dos negros assassi nados Ilegalizados pelo apartheid foram um ato fun dador de pertença Já que não pertencemos na vida pertencemos na morte Isso é uma coisa que vem de muito longe Vocês sabem quais foram as primeiras so ciedades mútuas dos trabalhadores criadas no século XIX na Europa Eram para comprar um ataúde para os funerais quando morria o trabalhador ou seja o trabalhador não tinha dignidade em vida mas queria ter dignidade na morte E ainda hoje em alguns países há sociedades mútuas de funerais Essa foi a criativi dade das lutas pela sobrevivência de gente que estava excluída totalmente do contrato social e por isso essa mescla de legalidade e ilegalidade é para mim muito necessária e muito forte Claro que a relação entre Estado e movimentos e entre partidos e movimentos depende de algo que chamo de condições de oportunidade política Não po demos generalizar essas condições há condições polí ticas em que as classes que estão no poder são muito repressivas muito monolíticas há outras em que são mais abertas menos monolíticas e há muita compe tição entre elas Quanto mais competição entre elites mais brechas se abrem para que por elas entrem o mo vimento popular e a democracia participativa E aqui o que me choca mais é que os movimentos em separado não vêem as possibilidades que têm a seu alcance não aproveitam as oportunidades Isso é o que devemos analisar sobre a relação mo vimentosmovimentos Se os movimentos vão se man ter separados feministas de um lado operários in dígenas e ecologistas de outro direitos humanos aqui sociedades de bairros ali sem articulação não ire mos muito longe Há um excesso de teorias de separa ção e muito poucas teorias de união por uma tradição nefasta a meu ver na política de esquerda a crença de que politizar uma questão é polarizar uma diferença Para nossa tradição politizar significa polarizar Den tro dos movimentos das classes populares é preciso buscar outra cultura política que tem de se basear no que chamo de pluralidades despolarizadas Há uma discrepância total entre a prática e a teo ria da esquerda e dos movimentos na América Latina para uma teoria cega a prática é invisível para uma prática cega a teoria é irrelevante É o que ocorre hoje e é preciso superar isso Se vocês observarem as con dições dos movimentos verão que partem dessa po larização e também de outra coisa nunca como hoje no pensamento de esquerda houve uma discrepância tão grande entre as possibilidades de curto prazo e as incertezas de longo prazo Antes falávamos de socia lismo ou barbárie agora passamos a falar que outro mundo é possível A tolerancia é totalmente distinta o longo prazo é muito inclusivo mas também muito vago É preciso concentrar essa condição que é proble mática e ainda permite uma despolarização Ao anali sarmos os textos de toda a reflexão da esquerda desde o século XIX vemos muito claramente que as polariza ções incidiam sobretudo no longo prazo Houve algu mas no curto prazo Por exemplo na Primeira Guerra Mundial os operários se dividiram entre os que esta Boaventura de Sousa Santos 101 100 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social vam a favor da guerra e os que estavam contra mas as grandes divisões são a longo prazo Creio que hoje há condições para vencer algumas questões que parecem muito tenazes De alguma ma neira o que vou propor sobre as pluralidades despolari zadas parece ir contra um novo extremismo que existe dentro do pensamento crítico Há três extremismos que a meu ver são muito nefastos Um é sobre o su jeito histórico o extremismo entre os que continuam acreditando que o sujeito histórico é a classe operária e os que acreditam que é a massa É um extremismo mui to maior que faz trinta anos quando se discutia o que era a classe operária se a pequena burguesia era parte dela qual era o papel dos camponeses e quem eram os aliados Agora é entre o extremo da classe operária e o da massa Marcos diz pessoas comuns e portanto re beldes Michael Hardt diz em Império e disse também no FSM de 2005 todos somos comunistas Esse extremismo a meu ver ridículo está tentando confundir as coisas porque é totalmente irrelevante An tes as facções dentro dos partidos comunistas socialis tas eram divisões que tinham conseqüências políticas alguém podia ser expulso de um partido ou podia mor rer Ou seja o extremismo as posições distintas tinha conseqüências Hoje não têm conseqüências é um ex tremismo tão grande como inconseqüente desprovido de relevância A mesma coisa acontece com as formas de organização ou temos as tradicionais de partidos e sindicatos ou tudo é espontâneo não pode haver uma organização porque se houver não há democracia direta e se não há democracia direta não há movimento popu lar puro Esse extremismo é totalmente irrelevante mas gera muitos debates improdutivos Há também outro extremismo que é pensar por um lado que é necessário tomar o poder e por outro idéias como a de Holloway por exemplo que diz Não não temos nada que ver com o poder não se deve tomar o poder mas ignorálo Continua sendo muito difícil encontrar um caminho intermediário e somos vários os que estamos buscando outra via na qual a questão não é tomar ou não o poder mas transformálo so bretudo a partir de um princípio que é fundamental em todas as lutas os conflitos são determinados pelas classes ou grupos dominantes Quando lhes falo do uso contrahegemônico de um instrumento hegemô nico parto dos termos do conflito porque não está na agenda política uma transformação global Ou seja estamos em um momento em um período de transi ção que é tardio demais para ser pósrevolucionário e prematuro demais para ser prérevolucionário Essa é uma situação que traz em si toda essa ten são e oportunidade criativa que temos para poder construir uma alternativa democrática Por isso pen so que nessas condições temos de partir dos conflitos Como se mede hoje o êxito de uma luta Por sua capa cidade de mudar os termos do conflito Por exemplo os indígenas têm visto como seu êxito vai de pequenas lutas culturais para a defesa da autodeterminação da autonomia Articulamse as lutas mudando os termos Essa pluralidade despolarizada que lhes proponho terá muitas conseqüências e creio que o FSM é um embrião de realidades em que podemos começar a ver algumas dessas despolarizações pluralidades que são despola rizadas E aqui concluo minha exposição se comecei epistemologicamente com a ecologia dos saberes ter mino com as pluralidades despolarizadas Ou seja o lado político de uma epistemologia dos saberes é a in completude de propostas políticas e a necessidade de unilas sem uma teoria geral O conceito de pluralidades despolarizadas tem uma série de condições das quais não vou falar aqui mas tem sobretudo essa necessidade de uma inteligi 102 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 103 3 bilidade uma articulação de ações coletivas cada vez maior Isso está emergindo em muitos movimentos no movimento feminista no movimento indígena etc Há coisas que são totalmente inovadoras Por exemplo em meu país o movimento sindical apóia o movimen to gay e este tem muita presença nas manifestações vinte anos atrás os sindicatos nunca tinham partici pado de uma marcha de orgulho gay eram totalmente antigay e faziam uma articulação com a Igreja Católica mais conservadora Hoje essas articulações são pos síveis Para que possam ser possíveis sem uma teoria geral que diga qual é o mais importante é necessário o procedimento da tradução Tratase de criar inteligibilidade por meio da argu mentação porque apesar de todas as dificuldades que enunciamos um caminho que não é brilhante que não tem receitas prontas que é reversível é uma das tradi ções filosóficas mais interessantes O que acontece com a argumentação eu estou a ponto de ser convencido por um argumento mas você me diz uma coisa que me ofen de e eu saio dali Quando não temos conhecimento de monstrativo temos um conhecimento argumentativo Toda possibilidade de compreensão é boa mas é reversí vel porque é preciso conduzila de maneira que não nos expulse do processo argumentativo E não é fácil porque há um problema de língua há um problema de poder de argumentação há uma história por trás dos movimentos Por exemplo em minha prática de levar sindicalistas a falar com as fe ministas muitas vezes os sindicatos pensam Nós so mos o verdadeiro movimento social e toleramos um pouco a presença de vocês E como passar da tolerãn cia ao respeito mútuo recíproco P um processo polí tico nada se consegue de hoje para amanhã De fato a paciência da utopia é infinita DEBATE COM O PÚBLICO Perguntas e comentários 3 Queria fazer um comentário sabre essa experiência de complementaridade entre a democracia representativa e a participativa que o senhor dizia se dar mais no local e me chama muito a atenção a experiência que temos tido com a campanha continental contra a Alca na América Latina Nasce no FSM se desenvolve diante da ameaça da Alca mas diferentemente do FSM a campanha continental permite a participação de partidos políticos e tem um pouco as regras das assembléias sociais A partir daí sucederam muitas coi sas porque as dinâmicas são de fluxo e refluxo No caso ar gentino nos permitiu uma consulta popular de 2 milhões de votos no Brasil também mas na Bolívia a partir do reforço pela busca do Tratado de Livre Comércio Andino TLC apa rece o eixo político que toma o governo e produz toda a última parte que levou ao governo de Mesa Na semana passada em Quito o movimento indígena que é um dos que mais têm de senvolvido a luta contra o TLC nos surpreendeu porque se re tirou das negociações pelo tratado que estavam acontecendo na área andina Pareceme que já é uma luta mais que local e que pode ser pensada nos mesmos termos Vou tratar de elaborar a pergunta porque tenho muitas dúvidas Hoje foi talvez o Boaventura mais moderno e menos inovador que escutei hoje talvez pelas questões que apre sentou houve um desperdício da experiência Eric Wolfe Eric No terceiro dia foi muito difícil coordenar as perguntas com as respostas pelo grande número de intervenções do público o que levou o professor Boaventura de Sousa Santos a responder algu mas de forma particular e outras em conjunto Em primeiro lugar apresentamos aqui as intervenções respondidas e çlepois as que foram comentadas de maneira geral Boaventura de Sousa Santos 105 104 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Hobsbawm quando fazem suas análises sobre o campesinato dizem que eram anarquistas por natureza mas é interessan te pensar que talvez possam ser vistos como anarquistas por sua experiência na relação com o Estado Na Argentina agora falo como participante de assembléias como cidadão que viveu a experiência desses anos nossa relação com a democracia re presentativa é bastante complicada Quando nos politizamos como pessoas comuns diria Marcos temos certas tendências porque aprendemos na relação com o Estado Alguns trabalhos de pesquisa sobre a contestação na Argentina dizem que em dez anos neoliberais o Estado não deu em mais de 95 das contes tações nenhum tipo de resposta salvo a repressão Isso deixa marcas Pensar que determinada experiência não tem nada que ver com sua postura e sua aposta em relação à democracia representativa seria em todo caso desconhecer a construção dos movimentos sociais Nesse sentido me pareceria normativo demais pensar como deve ser a articulação entre democracia representativa e participativa e não me animo a dizer aos mo vimentos sociais por que não são capazes de articular esses dois níveis na procura de um projeto emancipatório Em todo caso seria interessante pensar o que está em tensão por baixo des sa relação entre as duas democracias que na realidade partem de lógicas de organização territorial distintas Não li isso em sua análise como funciona a produção do território porque o Estado tem sua produção territorial mas os movimentos têm outras Pensemos nos movimentos indígenas nos movimentos camponeses na atualidade dos movimentos urbanos que tra tam de reconfigurar os espaços E a política não vive no ar vive em determinados territórios que se produzem pelos sujeitos Nesse sentido parece bastante fraca ou pouco inovadora essa proposta de apostar em uma articulação entre democracia re presentativa e participativa em função também dos atores que hoje em nível global nacional e local se esforçam por distintas construções do território Pensemos nas multinacionais nos Estados fracos nos distintos movimentos locais etc Se partirmos de um pressuposto entre ordem e conflito entre política institucional e o político em que se institucio naliza o conflito por meio de uma nova ordem com o que se pode falar de expansão da democracia em que medida essa articulação que o senhor propõe entre democracia represen tativa e participativa não pressuporia uma nova regulação Queria que pudéssemos nos aprofundar em dois te mas o Estado de Exceção e o outro que aborrece muito a certos teóricos que padecemos de alguns fundamentalis mos sobre a possibilidade de democratização da relação de exploração o que é complicado Isso que o senhor disse sobre a democracia representati va e sobre a articulação com a participativa é um debate velho que recupera a discussão levantada por Pareto sobre o voto re presentativo Ou seja que a democracia representativa sempre tem a tendência de não respeitar o mandato imperativo é mais ou menos a essência dessa democracia representar globalmen te e não o mandato imperativo que falaria de uma prestação de contas do dito mandato Pareceme que isso que o senhor dizia sobre a prestação de contas na democracia representativa é quase uma contradição em seus termos Respostas do autor Sobre a primeira pergunta queria dizerlhe que de fato é verdade e de alguma maneira começo a responder a segunda é realmente preciso analisar cada vez mais as formas de participação e de articulação popular que estão se organizando no nível global O problema para mim é a sustentabilidade disso É possível por exemplo que as feministas do continente se articulem hoje com as asiá ticas sobretudo da Índia para algumas contestações e ações políticas locais E aqui temos visto que a única coisa que pode articular o local com o global ou seja a emer Boaventura de Sousa Santos 107 106 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social gência de formas de participação no nível global é que haja um fundamento uma razão local para que o movi mento seja global No caso da Alca se vê isso muito clara mente Conseguimos demonstrar que esse projeto global tinha conseqüências locais Foi possível demonstrar por exemplo as conseqüências do Nafta para a agricultura do México Nem sempre é fácil fazer isso Em 15 de fevereiro de 2003 quando houve uma manifestação contra a guer ra do Iraque pela primeira vez as feministas dos Estados Unidos conseguiram realizar a mais importante mobili zação contra a guerra Isso é inovador antes eram outros movimentos que a convocavam agora foram as feminis tas que fizeram porque articularam uma agenda local com a global já que Bush era contra a luta pelos direitos reprodutivos da mulher contra a legalização do aborto e outras questões e as feministas conseguiram articular uma luta nacional com a luta global Isso nem sempre é possível e é preciso procurar casos em cada país Quanto mais global for a luta mais dificuldade existe Por exem plo um movimento interessante é o dos povos indígenas contra as represas Ontem eu falava com uma compa nheira mapuche e estava lhe dando informações sobre o grande movimento de populações desalojadas por causa de represas que está sendo articulado em vários países no Brasil é forte na Índia é forte e poderíamos organizá lo aqui também assim como também articulálo com a luta contra a privatização da água podese aí fazer uma articulação muito clara entre o local o nacional e o glo bal Nos casos da África e da América Latina há também a questão da dívida Continuo com a segunda pergunta muito interes sante Aceito sua análise Não sei se estou mais moderno mas talvez menos inovador porque não quero produzir um conhecimento de vanguarda que crie novidade por novidade Quero avançar com aquilo que é possível em certo momento procuro radicalizar as possibilidades do momento E talvez não tenha dito tudo eu me centrei nesse tema da democracia representativa e participati va com todos os problemas que há nele Mas você tem razão quanto a isso não ser inovador é bastante anti go O problema é este nossas soluções neste momento não são heróicas Se vocês falarem com os movimentos populares verão que não falam de socialismo Alguns dirigentes fazem isso mas se a pessoa está morrendo de fome quer que não haja desperdício não só da expe riência mas também do lixo de que se alimenta Essa é a realidade neste tempo Então um pensamento heróico nessas condições é irresponsável é o que penso de Ne gri ou de Holloway porque impede a possibilidade de mudança Eu quero ser medíocre para radicalizar tudo o que existe e que pode se desenvolver Uma questão com a qual tenho trabalhado bastante é que nenhuma arti culação entre democracia representativa e participativa é possível se não houver uma globalização contrahege mônica se não houver uma luta no nível global que faça a sociedade se sentir cada vez mais incômoda na repro dução do capitalismo Porque se deixarmos produzi rá mais e mais capitalismo e cada vez mais perigos É preciso criar incomodidade é preciso mudar os termos do conflito Por isso falei do quadro local e do nacional não falei da dimensão global sem a qual isso não tem sentido mas está presente em todo o meu trabalho a necessidade da globalização contrahegemônica Há outra questão que não mencionei as possi bilidades de participação as possibilidades que há hoje de coisas novas mas que tem uma presença importante em todo o trabalho com os movimentos indígenas Existem dois livros coletivos meus um é um trabalho que fizemos na Colômbia onde desenvol vemos a questão de justiça e a democracia a partir da experiência indígena com vários capítulos sobre como se criou a justiça própria dos indígenas e como ela se Boaventura de Sousa Santos 109 108 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social articula com a justiça nacional Ou seja a idéia de que a esquerda é hoje pluricultural E por isso dizia como traduzo dignidade e respeito dos indígenas em luta de classes para o sindicato É preciso traduzir Algumas feministas no Brasil hoje nunca usam o conceito de emancipação Falavam de liberação No Brasil durante muito tempo os sindicatos falavam de emancipação social e diziam às mulheres que estavam no movimen to sindical sempre que elas traziam a questão de sexo de gênero Olhe primeiro vamos conseguir a emanci pação social e depois vamos resolver seu problema o problema principal é o da exploração e os outros vêm depois Elas se mantiveram hostis à idéia de eman cipação social porque era um mecanismo de opressão para elas de descredibilização de sua luta Então vou eliminar o conceito Não vou articular vou tradu zir O trabalho do movimento popular não é tão herói co como se pensa Muitas vezes 90 é rotina falar de coisas escrever documentos muitas vezes não sabe mos o sentido das coisas Por isso é muito importante a proposta da Universidade Popular dos Movimentos Sociais que estou fazendo para que por um lado os líderes ativistas tenham a possibilidade de reconstruir teoricamente sua atividade a fim de darlhe outro âm bito teórico analítico inovador e por outro lado que os cientistas sociais artistas e filósofos também se re novem no contato com essa realidade Pareceme que há muita experiência social a ser resgatada e talvez haja aqui uma riqueza nos movimentos muito inova dora e isso talvez o leve a dizer que não tem muito sentido na Argentina buscar uma articulação entre de mocracia representativa e participativa Estou pronto para aceitar que você me diga qual é a alternativa por Boaventura de Sousa Santos Maurício G Villegas orgs El caleidos copio de lasjusticias en Colombia Bogotá Siglo del Hombre 2001 que fazer a revolução a luta armada não creio que seja possível neste momento Sobre a pergunta que menciona Pareto quero dizer que a democracia representativa tem por natureza pro blemas talvez incontroláveis com a prestação de contas inclusive pela utilização das eleições Porque de fato o que são as eleições livres Se virmos o que se faz na prática teremos muitas dúvidas Quando um presidente como Clinton dos mais populares foi eleito só por 25 da população dos Estados Unidos qual foi sua represen tatividade Isso é verdade mas meu problema é o que temos neste momento Vivi parte de minha existência na ditadura vocês também e sabemos que a diferença não é formal Esta reunião não seria possível em meu país em 1973 No auditório haveria vários policiais que informa riam sobre a minha fala Em 1973 eu estava ensinan do os fundadores da sociologia Weber Durkheim e Marx e escrevia o nome de Marx em português Mar ques porque os policiais não entendiam Essas são coisas que para a nova geração não têm muito sentido mas a diferença entre democracia representativa e di tadura não é formal é muito real Por isso a democra cia representativa é falsa porque é pouca Vamos deixar essa luta Quando falo em Angola ou em Moçambique os contextos são distintos Mas neste momento quando os movimentos de libertação são corruptos e é preciso criar alternativas temos uma destas duas ou criamos alter nativas dentro do movimento de libertação que agora é um partido ou criamos outros partidos Vocês têm esse problema aqui de estar dentro ou fora do justicialis mo É preciso criar uma tensão Até que ponto Há paí ses em que esse discurso não tem sentido algum não há movimentos populares nem uma democracia represen tativa minimamente crível Provavelmente em algumas condições a democracia representativa é revolucionária A mera idéia de que haja outros partidos pode leválo à Boaventura de Sousa Santos 111 110 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social prisão Então entre a descredibilização total dos par tidos em muitos países e a possibilidade de reinventar é preciso tentar criar um discurso hegemônico a partir de uma contrahegemonia criar uma hegemonia alter nativa que é Essa democracia não nos serve Por isso falo de uma democracia de baixa intensidade que convive com o fascismo social Temos duas opções uma alterna tiva à democracia ou uma democracia alternativa Neste momento não vejo uma alternativa à democracia de alta intensidade que proponho Por exemplo outro aspecto do qual não falei é como se faz uma democratização radi cal Os seis espaços estruturais são formas de poder que têm de ter uma democratização Não se democratiza a família como se democratiza a fábrica ou a comunidade Como democratizamos a democracia Esse é o desafio Poderíamos pensar em algo alternativo se eu aceitar como diz o colega que realmente nunca há prestação de contas na democracia representativa Não vou dizer que nunca houve nem que em algum país é mais factível que em outros não posso generalizar tenho de fazer análises concretas de situações concretas O que digo é que agora se torna cada vez mais difícil na democracia representa tiva a prestação de contas e não vejo alternativa senão o enfrentamento por meio de mecanismos de democracia participativa usando legalidade e ilegalidade ação dire ta e ação institucional Isso não é inovador mas é o que temos e já é muito em muitos países não é possível fa zer isso Para mim o modelo é o MST do Brasil Sou tão inovador quanto eles Não posso avançar mais que a prá tica mais avançada Aqui na Argentina vejo que ou es tamos fora do Estado ou estamos cooptados pelo Estado Eu venho de outra experiência na qual estamos simul taneamente fora e dentro do Estado invadimos terras fazemos contestações ilegais ocupamos ministérios e ao mesmo tempo alguns dos nossos dirigentes estão no go verno e vamos ter uma conversa com o governo na qual o MST decide que não vai criticar Lula na eleição de 2006 se o orçamento para a reforma agrária for dobrado e as sinarão documentos Isso é possível no Brasil agora mas não era possível com Fernando Henrique Cardoso não se pode generalizar Falei aqui de uma construção teórica suficientemente aberta às diferentes realidades dos paí ses para que ninguém seja escusado de não pensar sobre sua realidade Esse é um pensamento que nos obriga a pensar nossa realidade por oposição isso não me serve e se não me serve tenho de buscar uma alternativa É o que aconteceu em meu país que teve uma revolução em 1974 todos os que estão no governo conservador eram maoístas naquele tempo Por que se passou de uma ex trema esquerda a uma direita Porque foi realmente um extremismo inconseqüente Temos de fundamentar nos sos avanços com os avanços da prática Tem sentido hoje um intelectual comprometido com os movimentos o que é uma posição que estamos inventando e que não é herói ca porque não é nem o intelectual orgânico de Gramsci nem o pensamento de vanguarda que tínhamos À pergunta sobre se essa articulação pode se trans formar em uma nova regulação respondo sem dúvida No livro sobre reinventar a democracia por exemplo falo de uma coisa que é absolutamente chocante para alguns considerar que o Estado é o mais recente mo vimento social Creio que o erro mais dramático da es querda seja dizer que o Estado é irrelevante que é total mente corrupto e que não temos de nos preocupar mais com ele Penso que é preciso lutar dentro e fora do Esta do não há alternativa O novo é isto na regulação o Es tado é um sócio o que chamamos hoje de governança é a armadilha mais recente de toda a ideologia neolibe ral Tenho alguns textos de crítica radical a isso por que esvazia todos os conflitos sociais em nome de uma forma de regulação que possui várias altergativas Uma delas é que o Estado não deve compartir a regulação 112 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 113 já que há institutos públicos ou organizações privadas que exercem a regulação social É uma visão extrema da por exemplo a regulação das escolas no Texas Há gente da esquerda crítica da América do Norte como Charles Sabel que pensa que essa é a solução A meu ver é uma armadilha porque o que é mais persistente É a idéia de que o cidadão individualmente ou mesmo organizado tem no máximo a capacidade de distinguir um problema mas nunca a capacidade de propor uma solução porque a solução vem dos profissionais da po lítica e do conhecimento científico A profissionalização da política mais o conhecimento técnicocientífico está tirando as pessoas dessa cidadania bloqueada Ai sim há realmente um processo de nova regulação Em relação ao Estado de Exceção o fascismo social está eliminando os direitos sociais e econômicos é o re sultado do desmoronamento dos direitos sociais e nes te momento há também um ataque aos direitos civis e políticos Já não são somente os sociais e econômicos são todos E nesse novo Estado de Exceção tal como há política democrática e fascismo social não há suspensão das liberdades a Constituição está em vigor mas há um novo Estado de emergência que se assenta na idéia de que sua legitimidade se baseia hoje na governabilidade ou seja na possibilidade de governar sociedades que são cada vez mais ingovernáveis Está se criando a idéia de que o governo tem de se defender de atores hostis que estão fora e dentro do sistema e podem ser cidadãos ou organizações o que se chama de inimigo interno Surge um direito penal do inimigo já teorizado na Alemanha totalmente distinto do direito penal dos cidadãos Toda a legislação antiterrorista é parte desse processo de atuar Ver Boaventura de Sousa Santos César RodriguezGaravito orgs Law and Globalization from Below Cambridge Cambridge University Press 2005 contra o inimigo interno A outra dimensão são os no vos serviços secretos nos diferentes países e o controle dos dados pessoais Hoje não podemos enviar um cor reio eletrônico e pensar que ele não vai ser observado por um controle global que busca palavraschave nos nossos emails e se alguma delas se articula com outra nosso email vai demorar um pouco mais de tempo porque vai ser verificado primeiro de maneira eletrônica e depois de maneira manual Essa é outra forma de luta contra a privacidade que ostenta o novo Estado de Exceção O terceiro aspecto é o crescimento das políticas privadas os bairros fechados A divisão das cidades entre zonas civilizadas e zonas selvagens é uma forma de fascismo social O mesmo Estado e a mesma polícia nos mata nas zonas selvagens e ajuda nosso filho a atravessar a rua nas zonas civilizadas facilitam e reprimem com o mes mo treinamento e o mesmo Estado Essa é para mim outra forma de Estado de Exceção porque há articula ções contra os direitos humanos entre polícias privadas e polícia pública Na Espanha há 100 mil policiais priva dos e 40 mil públicos e as articulações entre as polícias privada e pública estão crescendo cada vez mais não es tamos longe de todos os cidadãos nas zonas civilizadas das cidades terem seus guardacostas sua polícia priva da Se continuarmos com essa economia e sociedade de mercado com desigualdades brutais vamos ter de fato essa repressão pois as ações hostis podem vir de dentro do Estado Em muitos países há juízes progressistas ad vogados populares gente que está tentando lutar contra a corrupção e que são expulsos de seus trabalhos Neste continente mudar a Corte Suprema é um costume Na Itália depois da luta contra a corrupção por parte dos juízes houve um ataque total à atividade judicial no qual Berlusconi tentou promulgar uma lei que impede aos juí zes fazer interpretações criativas da lei O que quer dizer isso Que não podem utilizar o direito para lutar 114 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 115 por uma justiça social pela cidadania pela democracia Essas são algumas das dimensões que vejo na emergén cia do Estado de Exceção que também não está teoriza do e que não existe somente em nível nacional existe em nível global As leis antiterroristas são hoje parte das condicionalidades do Banco Mundial e do FMI temos de privatizar a economia conseguir aprovar leis de pa tentes e agora leis antiterroristas e é por isso que Paul Wolfowitz foi designado presidente do Banco Mundial Aqui há uma articulação entre o global e o local Como lutar contra isso Temos de conduzir uma luta nacional e uma luta global Nessas diferenças que houve nos mo vimentos sobre como analisar o Banco Mundial houve uma divisão dentro do FSM entre os que pensavam que o Banco Mundial poderia ser democratizado no sistema das Nações Unidas e outros que diziam que nunca o seria e que devíamos lutar pela sua eliminação Hoje só a se gunda opção tem sentido Perguntas do público Queria que aprofundasse um pouco em um tema que mencionou mas não desenvolveu os direitos humanos sobre tudo em sua matriz exclusivamente ocidental e individual e também nessa idéia de que os perpetradores dos direitos hu manos são vistos só em nível de Estados nacionais Por haver poucas certezas há muito a esclarecer mui tas perguntas e a articulação de que você falava entre os mo vimentos sociais e os partidos políticos para mim seria como voltar a uma certeza que pode estar esgotada para muitas experiências dentro da Argentina e da América Latina pelo menos como corrente de pensamento Hoje na Argentina há uma série de articulações entre os movimentos sociais e os partidos políticos pareceu até ser mais hegemônica no cam po popular essa articulação ligada por um lado ao oficialis mo ou ao Estado e por outro a partidos de esquerda mas também continua sendo ainda que hoje pareça mais invi sibilizado o processo que se foi forjando durante a década de 1990 em diferentes grupos que nasceram nos bairros em movimentos camponeses que retomaram lutas anteriores mas de outra maneira É o que é hoje o movimento campo nês de Córdoba a União dos Trabalhadores Sem Terra de Mendoza o Mocase Movimento Campesino de Santiago del Estero ou em direitos humanos a renovação do Hijos que surgiu há dez anos como um grupo de jovens que começou a se organizar de maneira diferente fora das lógicas dos parti dos políticos São as novas formas de organização um pouco mais horizontais ou mais democráticas e todo esse proces so que floresceu depois de 19 e 20 de dezembro Continua havendo articulações que não passam pelos partidos políti cos Por exemplo os camponeses com alguns movimentos de desempregados pequenos emergentes que não são hegemó nicos mas estão acontecendo ou as assembléias de bairros que hoje estão em refluxo total No interior houve diversas articulações que ainda não são conhecidas mas que existem e precisam ser resgatadas Para mim os partidos políticos soam como um filho dileto da modernidade por sua própria lógica que não permite uma articulação com o movimento social porque sempre quer submetêlo Pensando no tema do poder e da prática política que muda quando se chega ao po der vimos a experiência do Equador a Conaie Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador e o Pachakutik que hoje estão divididos e desarticulados Luis Macas o novo presidente da Conaie disse em seu discurso de posse Temos Hijos Hijosporla Identidad la Justicia contra el Olvidoy el Silencio Filhos pela Identidade pela Justiça contra o Esquecimento e o Silên cio organização de direitos humanos criada em 1994 na Argenti na formada basicamente por filhos de pessoas atingidas de alguma maneira pela repressão prisão exilio desaparecimento N T De 2001 No dia 21 houve a edosão do Que se vayan todos N T 116 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 117 de voltar a nossas fontes a construir as comunidades a par tir da base da autonomia Hoje não estão participando do movimento popular do Equador como antes e haviam sido os criadores dele Por outro lado não afirmo que não existe o Estado ou que ele é irrelevante existe e tem políticas a fa vor ou contra os movimentos Os zapatistas propuseram em certo momento fóruns da reforma do Estado discutem com ele mas também vão gerando esses processos de construção da autonomia como Los Caracoles municípios autônomos a justiça própria a educação própria por aí afora Talvez eu possa pensar nas experiências de poder local a partir do pro cesso eleitoral movimentos sociais que ganham municípios e os administram mas me parece muito difícil pensar nessa ar ticulação de modo emancipatório em nível nacional quando se fala que é preciso tomar o poder para a partir daí conseguir mudar E com respeito a esses espaços de dominação que o senhor mencionava se formos esperar que o Estado mude não se vai chegar nunca a mudálos Minha pergunta tem que ver com o impacto político do FSM e queria saber o que pensa sobre como participar na renovação de nossa relação com o político por um lado e ex cluir os partidos políticos por outro Isso não representa uma ameaça para a descredibilização dessa articulação entre a esfera política e a dos movimentos sociais Queria perguntar sobre a utilização de instrumentos hegemônicos com fins contrahegemônicos e o caso dos za patistas no México o caso de Chávez na Venezuela e o do PT no Brasil Queria perguntar a respeito dessa articulação entre movimentos sociais e partidos políticos e também outros se tores que têm capacidade de incidência ou poder de decisão no que é a transformação de uma política a respeito de quais são os instrumentos ou as experiências conhecidas além do FSM de espaços de articulação alternativa que possam ter sido construídos e aos quais possamos nos remeter para pen sar experiências próprias Entendo a partir do que o senhor vem dizendo que existe a possibilidade de articular políticas com potencial emancipatório o que a meu ver pode ser hoje uma política de reforma agrária que poderíamos pensar de maneira diferente e não só fazer a interpelação para o campo popular Pareceme também que teríamos de começar a pen sar uma ação forte rumo aos partidos políticos como estru tura ou seja como funcionam e qual é o papel que poderiam chegar a prestar ao projeto a que estamos nos propondo Faço a última pergunta duas questões A primeira é sobre a diferença que tinha o movimento sindical em sua de manda aos setores privados e em sua demanda ao Estado que apareciam como muito claras e diferentes e que hoje não são vistas dessa forma nos movimentos sociais Eu me pergunto se isso não tem que ver com essa preocupação que aparece sobre resgatar o Estado da colonização que sofreu por parte dos interesses privados e se isso tem volta A outra questão é sobre o Estado como único gerador de direitos sociais eu me perguntava se não havia aí novamente essa falácia de tomar uma parte pelo todo porque na América Latina há uma série de experiências de formas societárias nãoestatais regionais que têm gerado direitos e justiça desde o século XIX como as repúblicas independentes negras no Brasil os movimentos indígenas etc Se não há aí uma forma de pensar o que faz o Estado nacional coma universal Respostas do autor As questões agora são cada vez mais complicadas O as sunto é como se pode fazer um uso contrahegemônico dos direitos humanos DH Creio que os DH foram parte da Guerra Fria são monoculturais porque sua concepção da natureza e do indivíduo é uma concepção ocidental Não há de fato direitos humanos universais que são 118 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 119 sentidos por todas as diferentes culturas do mundo como seus A Declaração Universal foi produzida por um grupo muito pequeno de países e sua universalidade é falsa no sentido sociológico político e cultural O que me choca mais no FSM por exemplo é que muitos movimentos que lutam contra a globalização neoliberal não formulam suas lutas em termos de DH Quando falávamos disso na Índia muitos movimentos de lá nos diziam Veja os DH são mais uma armadilha ocidental A linguagem dos DH é uma das linguagens sobre a dignidade humana e não vou descartála mas tenho de fazer uma ecologia de con cepções de dignidade e de concepções no nível cultural Existe a concepção de umma que é a comunidade do Co rão do Islã e a concepção do dharma no hinduísmo que é uma concepção de organização e integração cósmica muito parecida com as concepções indígenas da nature za e do homem no cosmos como a Pachamama Há um trabalho de tradução intercultural que temos de fazer en tre os DH e outras concepções de dignidade humana Os DH são individuais e é preciso que haja uma luta pelos DH coletivos Os povos indígenas lutam há trinta anos por uma declaração das Nações Unidas sobre seus direi tos coletivos e não conseguiram nada até agora porque de acordo com a ONU houve uma autodeterminação dos países coloniais nos processos de independência como já näo há colonialismo político já não é necessária a auto determinação Os indígenas contestam dizendo Nossa autodeterminação não inclui a idéia de independéncia não queremos ser independentes queremos nossa auto determinação e nosso território E não conseguem por que os Estados se opõem esse é outro trabalho contra hegemônico que é preciso fazer O outro trabalho é que as práticas hegemônicas dos DH denunciam muitas vio lações para ocultar outras maiores eu lhes dou o exem plo dos soldados americanos torturadores na prisão de Abu Ghraib vistos em todas as televisões para ocultar a maior violação dos DH que foi a invasão do Iraque De nunciam uma violação para ocultar outra muito maior mais maciça Por último não há deliberação democrática sem negociação das regras da deliberação Os países peri féricos e semiperiféricos não participaram do esboço dos DH Por exemplo o direito ao desenvolvimento proposto pelos africanos foi ignorado durante anos Os DH em sua imensa seletividade nunca discutem os planos do Norte dos países desenvolvidos do Centro sobre o desenvol vimento que é realmente uma grande tecnologia para impedir o desenvolvimento O problema dos DH não é o Sul é o Norte é uma violação inqualificável dos direi tos Os processos de privatização da água são uma viola ção maciça dos DH mas se falarmos disso na Federação Internacional dos DH vão dizer que somos radicais que isso não é uma violação dos DH Ou seja há muito sofri mento humano que não conta como violação dos DH há muito sofrimento humano injusto que se considera um legítimo custo social Isso é o uso hegemônico dos DH e há muitos movimentos que já não usam mais esses con ceitos Outros estão tentando fazer o que proponho uma reconstrução multicultural contrahegemónica dos DH E além disso os DH são muito ocidentais porque há coisas que não ocorrem em outra cultura Por exemplo essa falsa simetria entre direitos e deveres sempre fa lamos de direitos humanos nunca de deveres humanos 56 se concedem direitos àqueles dos quais se podem exi gir deveres Por isso a natureza não tem direitos porque não tem deveres e as futuras gerações não têm direitos porque também não têm deveres Isso é impossível no hinduísmo esse dualismo não existe Mas o hinduísmo também tem problemas com a dignidade humana como o fato de não ver a questão individual a autonomia indi vidual que é também um aspecto fundamental dos DH nunca vi uma sociedade sofrer os sofrimentos são sem pre nos corpos e indivíduos Todas as concepções sobre Boaventura de Sousa Santos 121 120 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social 6 dignidade humana são incompletas é preciso fazer um trabalho multicultural Sobre a questão das mudanças nas articulações de novo a experiência argentina e esse é o problema hoje na teoria social mostra que não devemos generalizar nunca inclusive essa Epistemologia do Sul que estamos tentando desenvolver pode entrar na armadilha de querer generalizar demais Não se pode fazer isso porque hou ve situações em que partidos interessantes emergiram de movimentos sociais o PT do Brasil por exemplo ou tras em que movimentos sociais produziram novos parti dos o Pachakutik no Equador mas aqui na Argentina a crise social não produziu um novo partido articulado com os movimentos O que vocês têm de analisar é por que não ocorreu aqui É preciso fazer o diagnóstico e ten tar uma luta porque os partidos têm de ter credibilidade devem ampliar a agenda política Senão essa articulação fica muito dificil E claro não tive tempo de analisar uma coisa que você propõe e é fundamental a articulação mo vimentomovimento A obrigação de um cientista social comprometido com os movimentos é credibilizar as arti culações e tentar que elas se sustentem se ampliem se densifiquem e para isso é necessário manter a luta polí tica da pluralidade mas despolarizada no sentido de não dizer Já não quero mais falar com você porque você é meu inimigo O capitalismo vive da possibilidade de que as classes populares confundam os inimigos e pensem que o que está mais próximo é o mais importante como inimi go de fato quase nunca é Não digo que não será possível acontecer uma idéia de revolução e além disso penso que vai acontecer mais cedo ou mais tarde quando vejo países onde cada vez mais o Estado se destrói por dentro falase de uma divisão do Equador em dois falase de uma divisão da Bolívia em duas o Estado está em uma situação muito frágil Perguntei a Evo Morales o que ele vai dizer quando quiserem dividir a Bolívia e perguntei a Nina Pacari uma líder indígena do Pachakutik o que vai decidir se houver uma tentativa de dividir o Equador e lhe digo os indíge nas querem a identidade nacional É contraditório porque esses países não são viáveis como estão mas sabem que com uma divisão vai ser ainda pior ainda mais com as di visões internas que têm O Pachakutik é fraco porque Luis Macas que é um grande político criador da Universida de dos Povos Indígenas tem hoje problemas com a atual direção da Conaies e por sua vez esta não se articula bem com a Cofenaie Confederação de Nacionalidades Indíge nas da Amazônia Equatoriana porque assim como há um conflito entre Guayaquil e Quito na sociedade burguesa há também um conflito entre os indígenas da selva e os indígenas andinos A Coica Confederação de Organiza ções Indígenas da Bacia Amazônica por exemplo tem uma relação muito tensa com a Conaie e então no FSM o espaço indígena foi organizado pela Coica a participação da Conaie foi muito fraca e do movimento indígena bra sileiro também É a realidade os movimentos estão divi didos é preciso lutar pela união ainda que não seja fácil E você tem razão quando diz que há uma distinção para além da que existe entre ação direta e ação institucional é a questão da dupla institucionalidade Se vocês lerem os dois textos maravilhosos de Lenin e Trotski sobre o poder dual na Revolução Russa verão duas análises diferentes no período 190517 uma dupla institucionalidade entre os sovietes e o governo E é também o caso dos zapatistas com Los Caracoles e as Juntas de Bom Governo é uma Luis Macas foi eleito recentemente presidente da Conaie Bacia em espanhol Cuenca N T As Juntas de Bom Governo sediadas em Los Caracoles resolvem problemas em comunidades implementam as decisões zapatistas e intermedeiam as relações entre zapatistas e nàozapatistas e também com organismos nacionais e internacionais N T Boaventura de Sousa Santos 123 122 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social institucionalidade um município de fato mas totalmente fora do Estado ao contrário em Oaxaca há municípios indígenas que são reconhecidos pelo Estado e proclama dos segundo os usos e costumes indígenas Um tema fun damental na democracia de alta intensidade é a questão da interculturalidade Por exemplo ver se as autoridades tradicionais da África é um debate do qual participo em Moçambique podem ser consideradas elementos de uma democracia alternativa porque se trata de uma moderni dade alternativa que tem como característica a resistência dos países africanos à globalização neoliberal O tradicio nal é hoje o moderno africano que não pode ser globaliza do As assembléias tradicionais africanas as autoridades indígenas não podem ser globalizadas têm seu território e um conceito forte dele Há uma criatividade nessa dupla institucionalidade que vai aparecendo e ela pode ser de mocrática mas constituir também a secessão de um país Muitos países estão à beira de se dividir Na África isso é muito freqüente a Nigéria um país tão rico em petróleo e pobre em tudo o mais está nessa situação A terceira pergunta é sobre o impacto político do FSM O interessante aí é ver que em alguns países e em algumas circunstâncias é possível uma articulação ino vadora entre partidos e movimentos Provavelmente na Argentina não mas por exemplo no Fórum de Mum bai houve partidos que tiveram um papel importantís simo na organização dos movimentos sociais e quando se pensou nesse fórum a idéia era que havia um perigo porque na Índia tudo é diferente Queríamos movimen tos sociais autônomos totalmente independentes e na Índia provavelmente eles foram dominados por partidos que têm frentes de massas Os partidos tiveram lá um papel importantíssimo na articulação você imagina tra zer ao FSM de Mumbai 33 mil pessoas do movimento local de dalits a casta dos intocáveis sem uma organiza ção por trás Claro que houve partidos políticos por trás comunistas socialistas gandhianos que são adeptos de uma luta política legal ou ilegal mas pacífica E os mo vimentos que não querem rechaçar a luta armada fica ram em um fórum social alternativo chamado Mumbai Resistente do outro lado da rodovia Creio que o FSM agora pode ajudar as articulações o grande problema do Fórum de Caracas é que muita gente está preocupada em não haver autonomia se Chávez quiser controlar o FSM Penso que é um problema que deve ser resolvido mas estava mais preocupado em saber se em Marrocos que é uma ditadura o rei ia deixar que houvesse um FSM autônomo e minha suposição certa o rei de Marrocos disse não sobretudo em janeiro para que não houves se uma confrontação com o Fórum Econômico Mundial de Davos Queremos criar uma autonomia mas é muito difícil Na Europa também há partidos em que se con segue por exemplo uma articulação muito interessante com movimentos sociais Curiosamente o partido comu nista italiano que decidiu se manter fiel ao comunismo e se chama Refundação Comunista faz o trabalho mais criativo com os movimentos sociais na Itália hoje quan do se realizou o último congresso do partido no último dia não foram os dirigentes partidários que falaram mas sim os dirigentes de movimentos sociais Outros parti dos que se dizem mais próximos dos movimentos vão mais longe ainda Aqui há um campo que não se esgota e isso de alguma maneira se articula com o que dizia dos zapatistas há coisas que são em sua origem revolucio nárias mas têm uma forte dimensão reformista e são ainda mais complexas porque são reformistas quando querem os acordos de San Andrés e quando querem têm dupla institucionalidade como em Los Caracoles e nas Juntas de Bom Governo Um movimento forte tem hoje essa flexibilidade que para mim 6 o mais in teressante não há dogmatismo Devemos lutar segundo 124 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 125 as oportunidades e ter os olhos bem abertos para saber onde estão porque senão veremos passar as oportunida des O que hoje é possível amanhã já não é Carpe diem aproveite a oportunidade A respeito da articulação de movimentos sociais ela pode sim se realizar e devemos saber quais são as arti culações em que há mais possibilidade de ocorrer uma transformação política em relação a outras A reforma agrária é um debate interessantíssimo na América La tina porque os sociólogos de esquerda estão divididos alguns dizem que já não é necessária que houve mu danças com nomes que foram muito influentes como Zander Navarro e outros dizem o contrário O proble ma é articular lutas por exemplo neste momento no Brasil é importante a articulação de coisas elementares proponho aos estudantes que façam teses sobre água e sobre terra os grandes conflitos que vão emergir é uma bombarelógio em muitos países como a Colômbia e o Brasil Três movimentos lutam pela terra mas estão to talmente separados movimentos camponeses como os Sem Terra movimentos indígenas e o movimento dos afrocolombianos ou afrobrasileiros dos quilombos E aqui a colega tem razão há territorialidades autônomas onde se criaram realmente possibilidades novas de pro teção social há direitos civis e políticos autônomos Há outros exemplos interessantes como as Comunidades de Paz na Colômbia quando em meio à violência vários povoados o mais famoso é San José de Apartadó em Antióquia fazem uma coisa inovadora talvez vocês tenham tido algo assim em 2001 nós em Portugal ti vemos algo parecido durante a Revolução dos Cravos em 1974 que são as constituições locais as pessoas se juntam e organizam uma constituição local de paz em que os comerciantes as próprias pessoas se recusam a ter qualquer relação com atores armados o Exército a guerrilha e os paramilitares as mulheres por exemplo são proibidas de fazer sexo com eles há um boicote to tal à força armada Assim se criaram as Comunidades de Paz que são muitas na Colômbia e que mantêm além disso uma aliança global Aqui temos uma alter nativa institucional O que estou dizendo é que essas alternativas necessitam para sua sustentabilidade de um Estado que não seja totalmente repressivo Algumas Comunidades de Paz foram destruídas porque o Exérci to entrou e disse que não podiam continuar É preciso ver também aí se o direito não é repressivo demais Por outro lado isso não se sustenta sem uma globalização contrahegemônica sem a solidariedade internacional os dirigentes de San José de Apartadó foram à Europa visitaram parlamentares viajaram para os Estados Uni dos e os convidaram a visitar a cidade e então vieram senadores e deputados dos Estados Unidos e Europa visitar as Comunidades de Paz o que teve um impacto enorme e durante muito tempo evitou os massacres Penso que é possível criar essa dupla institucionalidade Minha luta contra o desperdício da experiência é exata mente isto lutar quando há condições dentro do Estado trabalhar e lutar sempre fora do Estado poder criar si tuações de poder dual ou dupla institucionalidade sem pre porque neste momento a privatização do Estado é não digo irreversível nós sociólogos somos muito bons para prever o passado nunca o futuro mas im portante Pode ser que haja uma luta democrática que o Estado termine com uma implosão total não sabe mos o que vai acontecer mas hoje não há Estado e sim Estados distintos em diferentes países com realidades totalmente distintas Não posso comparar facilmente o Estado da Argentina com o Estado de Moçambique ou mesmo com o da Colômbia São coisas distintas e é pre ciso ver as possibilidades de alternativas O importante é ver que essa ampliação do presente para não desper 126 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social diçar experiências nos permite ser mais inclusivos nas possibilidades de luta e quanto mais inclusivos somos mais possibilidades temos de aproveitar as alternativas Muito obrigado Sobre o autor Boaventura de Sousa Santos nasceu em Coimbra Portugal em 1940 É doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale professor catedrático da Fa culdade de Economia da Universidade de Coimbra e pro fessor visitante da University of WisconsinMadison Law School Dirige o Centro de Documentação 25 de Abril e o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra Intelectual sobrevivente da ditadura de Salazar e cons trutor de um novo país é um dos idealizadores do Fórum Social Mundial Alguns títulos publicados no Brasil Pela mão de Alice o social e o político na pósmodernidade São Paulo Cortez 1995 A critica da razão indolente contra o desperdício da experiên cia São Paulo Cortez 2000 Democratizar a democracia os caminhos da democracia par ticipativa Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2002 Conhecimento prudente para uma vida decente um discurso sobre as ciências revisitado São Paulo Cortez 2004 O Fórum Social Mundial manual de uso São Paulo Cortez 2005 Trabalhar o mundo os caminhos do novo internacionalismo operário Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2005 Um discurso sobre as ciências 4 ed São Paulo Cortez 2006 A gramática do tempo para uma nova cultura política São Paulo Cortez 2006 A universidade no século XXI para uma reforma democrática e emancipatoria da universidade 2 ed São Paulo Cortez 2006