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Psicologia Social

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QUEM TEM MEDO DO FEMINISMO NEGRO DJAMILA RIBEIRO Introdução A máscara do silêncio O feminismo negro não é uma luta meramente identitária até porque tranquilidade e masculinidade também são identidades Pensar feminismos negros é pensar projetos democráticos Hoje afirmo isso com muita tranquilidade mas minha experiência de vida foi marcada pelo incômodo de uma incompreensão fundamental Não que eu buscasse respostas para tudo Na maior parte da minha infância e adolescência não tinha consciência de mim Não sabia por que sentia vergonha de levantar a mão quando a professora fazia uma pergunta já supondo que eu não saberia a resposta Por que eu ficava isolada na hora do recreio Por que os meninos diziam na minha cara que não queriam formar par com a neguinha na festa junina Eu me sentia estranha e inadequada e na maioria das vezes fazia coisas no automático me esforçando para não ser notada Aprendi a jogar xadrez aos seis anos na União Cultural BrasilUnião Soviética lugar onde os comunistas da cidade de Santos levavam seus filhos para fazer cursos ou para se divertir nos fins de semana Aos oito fiquei em terceiro lugar no torneio da cidade Lembro que senti vergonha durante a premiação com todas aquelas pessoas me olhando Meu nome saiu no maior jornal da cidade e meu pai o mostrava orgulhoso a todos que iam a nossa casa Mas todo dia eu tinha que ouvir piadas envolvendo meu cabelo e a cor da minha pele Lembro que nas aulas de história ensinase que a orelha queimada não era resistência ao escravismo como se não houvesse Existência resistência Quando aparecia a figura de uma mulher escravizada na cartilha eu não tinha visão Em 1988 precisei insistir para fazer a leitura principal no Dia do Livro A professora tinha escolhido uma colega de classe branca de cabelo liso que não havia lido bem Eu já lia com fluência mas a professora relevou Já estávamos bem perto do dia da apresentação e a outra menina ainda não evoluía nos ensaios então a professora não teve opção a não ser me escolher garoto que sempre me xingava subindo as escadas atrás de mim proferindo insultos racistas Eu odiava ir às aulas Um dia meu pai foi comigo fazer a rematrícula Ele subiu antes de mim porque passei no banheiro Quando o garoto me viu começou a recomeçar seu ritual macabro Ri por dentro Fui subindo vagarosamente as escadas um vez que seu correr como se quisesse me livrar dele Quando chegamos lá em cima meu pai me aguardava na recepção Assim que o avisto o menino gelou Meu pai autoridade e militante comunista do movimento negro exigia que tirássemos boas notas e nos obrigava a ir à escola sem falta Havia muitas vezes que ele não sabia o que acontecia lá Se entendia quando era difícil aturar os xingamentos diários Sentia raiva de muitas vezes como quando dizia que eu devia ter orgulho das minhas raizes e me proibia de alisar o cabelo Isso porque não é no seu cabelo que eles escondem borrachas eu pensava E orgulho do quê De ser a negrinha feia do cabelo duro Eu não compreendia porque meu pai insistia em dizer que meu cabelo era lindo em vez de simplesmente atenuar meu sofrimento permitindo que o alisasse Ele chegava a colocar toalhas na cabeça quando estava em casa para simular fios mais longos Com o tempo ele cedeu e minha mãe alisava meus cabelos e os da minha irmã em casa Era um ritual de tortura no qual ela acendia uma brasa do fogão deixava a pente de ferros ali até ficar planda e passava nos fios Eu sou o sonho e as esperanças dos escravizados Eu me levanto Eu me levanto Eu me levanto O chefe gosta muito do seu café em time que se está ganhando não se mexe Foi assim que a gerente me negou a oportunidade de mudar de cargo e então resolveu que era hora de mudar o placar Minha mãe havia falecido fazia pouco tempo e em homenagem a ela pedi demissão Enquanto cuidava do meu pai no hospital que adoeceu logo depois da minha mãe conheci a Casa de Cultura da Mulher Negra Foi lá que tive a primeira oportunidade de um trabalho que valorizava minha formação oferecido por mulheres negras feministas de fato Redescobri minha força Trabalhei quase quatro anos na biblioteca da Casa de Cultura onde entrei em contato com bell hooks Carolina Maria de Jesus Lima Barreto Sueli Carneiro Alice Walker Toni Morrison Fui aprendendo a falar por outras vozes a me enxergar através de outras perspectivas tinham denunciado a invisibilidade das mulheres negras como sujeito do feminismo E outras se juntaram a elas Grada Kilomba pesquisadora e professora da Universidade de Humboldt faz uma analogia interessante entre a máscara que as pessoas escravizadas eram obrigadas a usar cobrindo a boca e a afirmação do projeto colonial de impor silêncio um silêncio visto como a negação de humanidade e de possibilidade de existir como sujeito Com ela aprendi que a máscara não pode ser esquecida Ela foi uma peça muito concreta um instrumento real que se tornou parte do projeto colonial europeu por mais de trezentos anos Mas ainda que sejam caladas e negligenciadas vozes se insurgem no Brasil todos os documentos relacionados à escravidão foram queimados não temos como saber de onde viemos se da Nigéria ou de GuinéBissau E quando não se sabe de onde vem é mais difícil obter uma máscara diante do seu lugar Conhecer minha história a história dos meus antepassados me possibilitou romper com a história única e identificar tudo aquilo de negativo que havia sido dito sobre pessoas como eu Ler O olho mais azul de Toni Morrison escritora estadunidense e prêmio Nobel de literatura foi outra pequena revolução O amor nunca é melhor do que o amante Que é mau que ama maldade o violento ama com violência o fraco ama com fraqueza gente estúpida ama com estupidêz e o nome de um homem livre nunca é seguro ela diz Foi graças a Morrison que percebi que adoeceu pelo racismo eu precisava encontrar formas de me libertar para não amar de forma adoecida também Entendi que o amor por nossa má sorte se tivesse sido de várias formas era um direito Eu viria a partir do momento em que tivesse coragem de olhar para dentro de mim com sinceridade para retirar o mal que fora colocado ali como um tanto silenciosamente A médica e ativista Jurema Werneck uma das organizadoras do O livro da saúde das mulheres negras um dos primeiros que li trabalhando na Casa da Cultura não deve saber o quanto essa obra me fez perceber que precisava pedir ajuda Em um dos artigos reunidos no livro uma mulher relata sua experiência de dor e como a terapia foi importante para ela Eu tinha perdido minha mãe em anos consecutivos havia pouco tempo e eu queria o texto para não amar de forma adoecida também Então julguei ter sido benefício o afastamento dos meninos porque aproveitei minha solidão fazendo caminhadas pela praia ou contemplando o mar uma das minhas atividades favoritas Ficar sozinha me fez olhar para a minha realidade principalmente depois a de Morrison Sempre existira uma busca para além daquilo que eu vivia Quando li Alice Walker tive certeza de que merecia mais A obra de A cor púrpura e De amor e desespero História da mulheres negras com suas narrativas tão contundentes tornouse uma fonte de inspiração ao escrever sobre mulheres que de algum modo transpareçam os ciclos de violência a que foram submetidas Com ela aprendi o significado de sisterhood a irmandade entre mulheres quando a personagem Shug exenra a beleza e desperta o amor por Celie cantando para ela Miss Celies Blues Foi nesse momento que desenvolvi uma relação muito forte com a música Assisti a um documentário chamado Cantando a liberdade no qual se retrata a influência da música sobre os ativistas do movimento pelos direitos civis como uma força encorajadora de luta A Change Is Gonna Come na voz de Otis Redding Respect na de Aretha Franklin The Greatest Love of All na de Whitney Houston e Conselho na de Almir Guineto me salvaram muitas vezes como afirmação metafísica de liberdade O que aprendi com cantoras e cantores de blues e samba foi mais profundo do que o que aprendi com muitos textos boldo é infalível para curar ressaca e que álcool com arnica cicatriza picadas de mosquito Valorizar ou saber das ialorixás e de babalorixás das parteiras dos povos originários é reconhecer outras cosmogonias e geografias da razão Devemos pensar uma reconfiguração do mundo a partir de outros olhares questionandoo de acordo a partir de uma linguagem eurocêntrica Fui iniciada no candomblé aos oito anos e os saberes que constituem também são de orixás Logo depois da minha iniciação precisei usar roupas brancas e turbantes na escola Virei motivo de piada e fui constantemente chamada de macumbeira mas o foi logo quando um menininho arrancou meu turbante na hora do recreio e todos viram minha cabeça raspada Foi um momento constrangedor que me fez negar minhas origens Passei a odiar acompanhar minha mãe nas cerimônias e nos trabalhos na praia Morri de vergonha de ser vista por algum conhecido Fui educada a não gostar daquilo A máscara me afastou desses saberes durante anos da mesma forma que me impediu de assumir meus cabelos Só em 2013 após pouco mais de uma década distante do candomblé já segura e despida dos medos colonizadores resgatei meu espaço do sagrado Há alguns anos houve uma campanha com o nome Quem é axé diz que é reforçando que assumirse do axé também é um testemunho importante para quebrar estereótipos e difamações Exu por exemplo que tantos temem não é o demônio mas o senhor dos caminhos Não existe demônio no candomblé traduzse a uma invenção cristã Iemanjá é na verdade negra como todos os orixás já que é o filho da uma religião criada por negros Aprendemos que Oxum antes de cuidar de seus filhos limpa suas joias O candomblé ainda ensina que não há problema algum na infância quando não se fixa nesse lugar Que a criação das crianças não depende apenas do sacrifício da mãe já que é preciso uma aldeia para fazêlo como diz o provérbio Que os arquétipos trazidos pelos deuses e deusas dessa religião valorizam muitas qualidades que o mundo criado pelo colonizador demoniza Que orixá não é santo em todos os sentidos e que isso pode ser libertador posto que não existe culpa outra invenção cristã Entender a cosmologia africana e outras geografias da razão foi um instrumento de empoderamento para mim assim como a Patricia Hill Collins me fez enxergar a importância de tirar proveito do lugar de marginalidade que nos foi imposto Isso é fundamental para entender que o não lugar de mulher negra na sociedade é um lugar social que faz com que tenhamos ou construamos ferramentas importantes de transcendência Talvez eu tenha percebido a estratégia de ausência que falta como mola propulsora de construção de pontes Alguns anos depois passei na faculdade de filosofia na Universidade Federal de São Paulo o que depois levaria a uma mestrada em filosofia política Não foi fácil minha filha tinha três anos eu morava em Santos e o campus em que o curso era ministrado ficava em Guarulhos A barreira da vez foi o sexismo porque que muitas pessoas da minha família foram contra eu voltar a estudar sendo mãe Lembro como foram difíceis os primeiros meses quando pensei em desistir Saí correndo do trabalho em uma empresa portuária por volta das cinco e meia da tarde e fazia o trajeto de três horas até a universidade Chegava muito atrasada ou já no intervalo o que me fez entrar em desespero após algumas semanas não havia a menor possibilidade de ir e voltar todos os dias de Santos Então resolvi pedir demissão e seguir meu sonho Por muito tempo não recebi o devido apoio do meu então companheiro mas seguia em frente Passava quatro dias por semana em Guarulhos e descia às quintas à noite para Santos No segundo ano da faculdade passei na prova do estado de São Paulo para lecionar filosofia no ensino médio e pude pegar minhas despesas com o curso Ficar longe da minha filha não era fácil mas ainda que sentisse minha falta me admirava Nessa época eu e alguns colegas fundamos o Mapof núcleo interdisciplinar de estudos em raça gênero e sexualidade da Unifesp Também organizávamos debates sobre esses temas já que eram poucos os professores que abordavam nos cursos Graças a esse grupo descobri a antropóloga Lélia Gonzalez importante intelectual negra que foi professora da pucRio Sua coragem em refutar a epistemologia dominante me encorajou a estudar filósof A repórter Monique Évelle tem uma frase que me marcou muito Nunca fui tímida fui silenciada Quando ouvi pela primeira vez entendi perfeitamente o que me aconteceu durante anos Senti esse mesmo silêncio vindo das instituições quando comecei a estudar sobre mulheres Comecei a escrever para sites em 2013 Confesso que resisti no início por receio da exposição Até que conheci o Blogueiras Negras portal que reúne artigos e textos de ativistas negras de diversas regiões do Brasil Nesse espaço me senti fortalecida para escrever a partir da perspectiva feminista negra Em 2014 surgiu o convite para contribuir com o extinto blog Escritório Feminista da CartaCapital e em 2015 me tornei colunista do site Sempre enxerguei esse blog como essencial para a disputa de narrativas meu objetivo além de reagir a algumas questões do cotidiano era dar visibilidade a obras e obras ainda desconhecidas do grande público Foi absolutamente no início Ao mesmo tempo que algumas pessoas gostam outras amam mas percebi que era um caminho sem volta Pensar novas epistemologias discutir lugares sociais e sociabilidade que não sejam pautadas pela opressão de um grupo sobre outro Ao pensar o debate de raça classe e gênero de modo indissociável as feministas negras estão afirmando que não é possível lutar contra uma opressão e alimentar outra porque a mesma estrutura seria reforçada Quando discutimos identidades estamos dizendo que o poder deslegitima umas em detrimento de outras O debate portanto não é meramente identitário mas envolve pensar como algumas identidades são aviltadas e rescindiram o conceito de humanidade posto que pessoas negras em geral e mulheres negras especificamente não são tratadas como humanas Uma vez que o conceito de humanidade contempla somente homens brancos nossa luta é para pensar as bases de um novo projeto civilizatório É uma grande luta que pretende ampliar o projeto democrático É imprescindível que se leia autoras negras respeitando suas produções de conhecimento e se permitindo pensar o mundo por outras lentes e geografias da razão Em um convite para um mundo no qual diferenças não signifiquem desigualdades Um mundo onde existam outras possibilidades de existência que não sejam marcadas pela violência do silenciamento e da negação Queremos coabitar do modo a construir novas bases sociais No fim nossa busca é pelo alargamento do conceito de humanidade Ao perder o medo do feminismo negro as pessoas privilegiadas perceberão que nossa luta é essencial e urgente pois enquanto nós mulheres negras seguimos sendo alvo de constantes ataques a humanidade toda corre perigo