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Direito ·

Direito Penal

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CE5ARE BECCARIA Tradução J CRETELLA JR e AGNES CRETELLA DOS DELITOS e DAS PENAS 2a edição revista U U UJ CC1 rI1ascido em 1738 e falecido em 1793 aos 55 anos CESARE BECCARIA conhecido como o Marquês de Beccaria é o famoso autor do livro Dos Delitos e das Penas escrito aos 26 anos de idade livro que revolucionou o Direito Penal e o Direito Processual Penal Natural de Milão cursou Direito na Universidade de Pavia Tendo tido um conflito com o pai que se opusera a seu casamento com Teresa de Blasco foi preso e atirado de repente ao cárcere por influência do genitor contrário à união dos jovens Pôde então observar e sentir na própria carne as agruras de uma prisão de masmorra do século XVIII assistindo de perto ao horror das torturas infligidas A educação recebida dos jesuítas na infância foi contrabalançada na juventude pela leitura de Maquiavel de Galileu dos enciclopedistas e dos iluministas franceses Voltaire que Beccaria visitou em Genebra Diderot DAlembert Montesquieu que conheceu em Paris modificaramlhe o modo de pensar e quando regressou à Itália só não foi retaliado pelos inimigos e pela Inquisição por causa da proteção que lhe deu o Conde Firmiani a quem prestara serviços quando este governou a Lombardia Resistindo a todos os ataques sobrevivendo a todas as perseguições o pequeno grande livro de Beccaria foi consagrado pelas gerações posteriores registrando na ciência do direito penal o teorema da proporcionalidade entre o delitoU cometido e a pena aplicada como uma das grandes conquistas do moderno direito criminal EDITaRAm REVISTA DOS TRIBUNAIS ATENDIMENTO AO CONSUMIDOR Tel 0800112433 httpwwwrtcombr RT TEXTOS FUNDAMENTAIS DOS DELITOS E DAS PENAS RT TEXTOS FUNDAMENTAIS Publicados nesta Coleção A luta pelo Direito Rudolf von Ihering Tradução de J Cretella Jr e Agnes Cretella 1 ed 2 tir São Paulo RT 1999 O Príncipe Maquiavel Tradução de J Cretella Jr e Agnes Cretella 2 ed 2 tir São Paulo RT 1999 Dados Internadonals de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Beccaria Cesare Bonesana Marchesi di 17381793 Dos delitos e das penas I Cesare Beccaria I tradução J Cretella Jr e Agnes Cretella I 2 ed rev 2 tiro São Paulo Editora Revista dos Tribunais 1999 RT textos fundamentais ISBN 8520314422 I Direito penal 2 Crime e criminosos 3 Penas Direito penal 4 Pena de morte 5 Tortura I Título 963563 CDU343 Índices para catálogo sistemático 1 Direito penal 343 CESARE BECCARIA DOS DELITOS E DAS PENAS Tradução J CRETELLA JR e AGNES CRETELLA 2a edição revista 2a tiragem EDITORAm REVISTA DOS TRIBUNAIS RT TEXTOS FUNDAMENTAIS DOS DELITOS E DAS PENAS CESARE BECCARIA Tradução JosÉ CRETELLA JR e AGNES CRETELLA Da edição Dei Delitti e delle Pene de Cesare Beccaria UTET Unione Tipografico Editrice Torinese Milão Roma Nápoles nuova ristampa 1911 em XLVII capítulos p 1797 2 edição revista 2 tiragem desta edição 1999 EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA Diretor Responsável CARLOS HENRIQUE DE CARVALHO FILHO CENTRO DE ATENDIMENTO AO CONSUMIDOR Tel 0800112433 Rua Tabatinguera 140 Térreo Loja 1 Caixa Postal 678 Te 011 31152433 Fax 011 31063772 CEP 01020901 São Paulo SP Brasil TODOS OS DIREITOS RESERVADOS Proibida a reprodução total ou parcial por qualquer meio ou processo especialmente por sistemas gráficos microfílmicos fotográ ficos reprográficos fonográficos videográficos Vedada a memorização eou a recupe ração total ou parcial bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados Essas proibições aplicamse também às características gráficas da obra e à sua editoração A violação dos direitos autorais é punível como crime art 184 e parágrafos do Código Penal com pena de prisão e multa busca e apreensão e indenizações diversas arts 101 a 110 da Lei 9610 de 19021998 Lei dos Direitos Autorais Impresso no Brasil 08 1999 ISBN 8520314422 ln rebus quibuscurnque difficilioribus non expectandum ut quis simul et serat et metat sed preparatione opus est ut per gradus maturescant BACON SO TREU WIE MOGLIG SO FREI WIE NOTIG 0 E d m to as as matérias e em especial nas mais difíceis não se deve esperar que alguém semeie e colha ao mesmo tempo pois é preciso um período de preparação para que as coisas amadureçam gradativamente 00 T ão fi leI quanto possível tão livre quanto necessário SUMÁRIO Sobre Beccaria 9 Nota dos Tradutores à L edição 13 DOS DELITOS E DAS PENAS A quem ler 17 Introdução 23 I Origem das penas 27 II Direito de punir 28 m Conseqüências 30 IV Interpretações das leis 32 V Obscuridade das leis 35 VI Proporção entre os delitos e as penas 37 VII Erros na medida das penas 40 vm Divisão dos delitos 42 IX Da honra 45 X Dos duelos 48 XI Da tranqüilidade pública 50 XII Finalidades da pena 52 xm Das testemunhas 53 XIV Indícios e formas de julgamento 56 XV Acusações secretas 59 XVI Da tortura 61 XVII Do fisco 67 XVIII Dos juramentos 69 XIX Rapidez da pena 71 8 DOS DELITOS E DA PENAS XX Violências 73 XXI Penas aplicadas aos nobres 74 XXII Furtos 76 xxrn Infâmia 78 XXIV Os ociosos 80 XXV Banimento e confisco 82 XXVI Do espírito de família 84 XXVII Brandura das penas 87 XXVill Da pena de morte 90 XXIX Da prisão 98 XXX Processos e prescrições 101 XXXI Delitos de prova difíciL 104 XXXII Suicídio 108 xxxm Contrabando 112 XXXIV Dos devedores 114 XXXV Asilos 117 XXXVI Da recompensa 118 XXXVII Tentativas cúmplices e impunidade 120 XXXVill Interrogatórios sugestivos e depoimentos 122 XXXIX De um gênero particular de delitos 124 XL Falsas idéias de utilidade 126 XLI Como prevenir os delitos 128 XLII Das ciências 130 XLill Dos magistrados 133 XLIV Prêmios 134 XLV Educação 135 XLVI Das graças 136 XLVII Conclusão 139 Respostas às Notas e Observações de um frade dominicano sobre o livro Dos Delitos e das Penas 141 I Acusações de impiedade 142 II Acusações de sedição 147 SOBRE BECCARIA Cesare Beccaria nasceu na cidade de Milão no ano de 1738 Tendo freqüentado em Paris o Colégio dos Jesuítas estudou então Literatura Filosofia e Matemática As leituras das Lettres Persanes de Montesquieu e De LEsprit de Helvetius muita influência exerceram em sua for mação Suas preocupações orientadas para o estudo da Filosofia levaramno a fundar a sociedade literária que se formou em Milão e que divulgou os princípios fundamentais da nova Filosofia francesa Para divulgar na Itália as novas idéias hauridas na França Beccaria fez parte daredação do jornal O Café publicado em 1764 Tendo conhecido as agruras do cárcere para onde foi enviado por injusta interferência paterna logo ao sair se insurgiu Beccaria contra as injustiças dos processos penais em voga discutindo com os amigos entre os quais se destacavam os irmãos Pietro e Alessandro Verri os diversos problemas rela cionados com a prisão as torturas e a desproporção entre o delito e a pena Nasceu assim o livro Dei Delitti e delle Pene escrito aos 26 anos de idade Receoso de possíveis perseguições imprimiu a obra secretamente em Livorno e mesmo assim abrandando sua colocação crítica com expressões vagas e genéricas O livro Dos Delitos e das Penas é de certo modo a Filosofia francesa aplicada à legislação penal da época Contra a tradição clássica invoca a razão Tornase o arauto do protesto público contra os julgamentos secretos o juramento imposto ao acusado a tortura o confisco a pena infamante a delação a desigualdade diante da sanção e a atrocidade do suplício Ao sustentar que as mesmas penas devem ser aplicadas aos 10 DOS DELITOS E DA PENAS SOBRE BECCARIA 11 poderosos e aos mais humildes cidadãos desde que hajam cometido os mesmos crimes Beccaria proclamou com desassombro pela primeira vez o princípio da igualdade perante a lei Estabeleceu limites entre a justiça divina e a justiça humana entre o pecado e o crime Condenou o pseudodireito de vingança tomando por base o ius puniendi e a utilidade social Considerou sem sentido a pena de morte e verberou com veemência a desproporcionalidade entre a pena e o delito assim como a separação do Poder Judiciário do Poder Legislativo O sucesso da obra foi imediato principalmente entre os filósofos franceses O abade Morellet traduziu para o francês o livro Dos Delitos e das Penas Diderot anotouo Voltaire colocouo nas nuvens e comen touo DAlembert Buffon e Helvetius manifestaram desde logo admiração e entusiasmo pelo novo e audacioso autor Em 1766 tendo ido a Paris foi alvo das maiores demonstrações de apoio Regressando porém a Milão teve de suportar infamante cam panha por parte dos inimigos que se apegavam aos preconceitos para acusálo de heresia e de desobediência contra a Igreja e contra o Governo A denúncia não teve maiores conseqüências mas Beccaria daí por diante foi mais reservado com medo de que novas perseguições o levassem à prisão Em 1768 o Governo da Áustria sabendo que ele recusara as ofertas de Catarina II da Rússia que o convidara para lecionar em São Petersburgo criou especialmente para Beccaria a Cátedra de Economia Política Cesare Beccaria morreu em Milão em 1793 legando ao mundo o seu pequeno grande livro Dos Delitos e das Penas obra notável cujo remate apresentado no teorema final serve ainda hoje de assunto de meditação e análise por parte dos criminalistas O livro de Beccaria foi traduzido em todas as línguas cultas do mundo No Brasil há uma dezena de traduções como entre outras a de Aristides Lobo com prefácio de Evaristo de Morais publicada pela Atena Editora em São Paulo há cerca de meio século num total de XLII capítulos O texto que tomamos por base para esta tradução foi o da UTET Unione Tipografico Editrice Torinese Milão Roma Nápoles nuova ristampa 1911 em XLVII capítulos p 1797 O estilo de Beccaria é barroco prolixo com inúmeras metáforas e pensamento nem sempre preciso longe por exemplo do límpido e claro estilo de um Descartes no Discurso do Método NOTA DOS TRADUTORES À La EDIÇÃO Inestimável a contribuição de CESARE BECCARIA 1738I 793 para a elaboração da modema ciência do direito penal De família nobre estudou primeiro numa escola da Companhia de Jesus em Parma freqüentando mais tarde a Universidade de Pavia estudando Filosofia e Direito Aos 26 anos de idade publicou Dei Delitti e Delle Pene resultado da triste experiência que passou em prisão italiana onde denunciado pelo pai teve a vivência do arbitrário sistema carcerário então vigente o que lhe forneceu matériaprima e inspiração para a elaboração de sua obraprima Antes a desproporcionalidade entre o delito praticado e a pena aplicada levava a flagrantes injustiças mas o Marquês de Beccaria conforme se lê no último parágrafo de seu livro no famoso teorema conclusivo a pena não deve ser a violência de um ou de muitos contra o cidadão particular devendo ser essencialmente pública rápida necessária a mínima dentre as possíveis nas circunstâncias ocorridas proporcional ao crime e ditada pela lei DOS DELITOS E DAS PENAS A QUEM LER1 A LGUNS remanescentes das Leis de antigo povo conquis tador2 compiladas por ordem do príncipe3 que reinou há doze séculos em Constantinopla combinados depois com ritos dos longobardos inseridos em confusos calhamaços de intérpretes particulares e obscuros formam a tradição de opiniões que no entanto em grande parte da Europa recebe o nome de leis4 Coisa tão prejudicial quanto comum é que I Este Prefácio sob o nome de Ao Leitor ou A quem ler apresentado em forma de Aviso não existia na primeira edição de 1764 tendo sido incluído porém nas edições posteriores quando Cesare Beccaria preocupado com as críticas veementes e injustas de Frei Angelo Fachinei e de outros da época não quis responder sem se defender antes das acusações de revolta contra o príncipe e contra a religião dirigidas ao livro recémpublicado 2 O antigo povo conquistador é o povo romano que estendeu seu domínio a grande parte do mundo antigo 3 O Príncipe ou melhor o Imperador que reinou em Constantinopla de 527 a 565 foi o grande Justiniano 482 a 565 casado com Teodora o responsável pela elaboração do Corpus Juris Civilis 4 Cesare Beccaria faz referências ao direito da época que não se encontrava disciplinado nos códigos mas que se baseava no Corpus Juris Civilis mandado organizar pelo Imperador Justiniano no edito de Rotário e nas leis dos longobardos cuja interpretação era mais difícil do que a doutrina Essa legislação era incompreensível mesmo para o jurista experiente da época 18 OOS DELITOS E DAS PENAS A QUEM LER 19 uma oplmao de CarpZOW5 ou um antigo uso assinalado por Claro ou uma tortura sugerida por Farinaccio 6 com irada complacência sejam leis obedecidas com segurança por aqueles que deveriam tremer qando decidem sobre a vida e o destino dos homens Essas leis resíduos de séculos os mais bárbaros são examinadas neste livro sob ângulo que interessa ao sistema penal e ousamos expor aqui suas desordens aos responsáveis pela felicidade pública em estilo que afastará a plebe não esclarecida e impaciente A ingênua busca da verdade a independência com respeito às opiniões vulgares com que este livro foi escrito são conseqüências do brando e esclarecido governo sob o qual vive o autor Os grandes monarcas benfeitores da humanidade que nos dirigem7 amam as verdades expostas pelo obscuro filósofo com um nãofanático vigor só despertado por quem afastado da razão apela para a força ou para o engenho E as desordens presentes por quem lhe examina bem as circunstâncias são a sátira e a censura dos tempos passados e não as deste século e de seus legisladores 5 Benedikt Carpzow OU em português Benedito Carpsóvio de Wittemberg 15951666 Julio Emilio Claro de Alexandria 1525 1575 e Próspero Farinaccio de Roma 15541618 dedicaram grande atenção às questões da tortura no campo do direito considerandoa entretanto como normal meio de obtenção da prova Foram autores de Tratados célebres na época especialmente no que diz respeito à prática criminal Beccaria não tinha conhecimento profundo do texto desses jurisconsultos nem a idéia de renovação que a doutrina do direito comum operara em todo o sistema jurídico da época e sobre cuja influência histórica o jurista italiano Manzoni foi intérprete muito mais criterioso quando na obra Storia della cnna infame observava surpreso que a pequena monografia Dos Delitos e das Penas que proporcionara não apenas a abolição da tortura mas também a reforma de toda a legislação criminal não tivesse sido ainda descoberta e considerada pela ciência do direito 6 Alguns tradutores por lapso escreveram Francisco ao invés de FarinacciQ 7 Quanto aos príncipes iluminados sobre os quais Beccaria faz referência cfr o final dos Cap xn e XIV e a monografia de Voltaire Éage historique de la raison Quem quiser honrarme com críticas comece pois por bem entender o fim a que esta obra se destina escopo que longe de diminuir a legítima autoridade serviria mais para engrandecê la caso a opinião tenha mais poder do que força sobre os homens e caso a suavidade e a humanidade a justifiquem aos olhos de todos As malintencionadas críticas publicadas contra este Livro8 baseiamse em confusas noções e me obrigam a inter romper por vezes o raciocínio com os leitores esclarecidos para encerrar de uma vez para sempre com qualquer possibilidade de erro de um tímido zelo ou com as calúnias da maldosa inveja Três são as fontes das quais derivam os princípios morais e políticos reguladores dos homens a Revelação9 a Lei Natural e as Convenções artificiais da sociedade Não há comparação entre a primeira e as outras duas quanto à finalidade principal mas nisto as três se assemelham por conduzirem à felicidade nesta vida mortal Considerar as relações da última não é excluir as relações entre as duas primeiras Na verdade assim como aquelas embora divinas e imutáveis foram por culpa dos homens alteradas de mil modos em suas mentes distorcidas pelas falsas religiões e pelas arbitrárias noções de vício e de virtude assim também me parece necessário examinar independente de qualquer outra consideração aquilo que nasce das puras e expressas convenções humanas ou supostas para a necessidade e utilidade comum idéia essa a que toda seita e todo sistema de moral deve necessariamente reportarse E será sempre louvável a iniciativa que obrigue mesmo os mais distantes e incrédulos em conformarse com os princípios que levam os homens a viver em sociedade Há pois três classes diversas de virtude e vício religiosa natural e política Estas três classes nunca devem estar em contradição entre si mas nem todas as conseqüências e os deveres resultantes de uma resultam das outras Nem tudo o que a Revelação exige é cobrado pela Lei 8 O autor alude ao virulento artigo publicado em 1764 por Frei Angelo Facchinei sob o título Notas e Observações sobre o livro Dos Delitos e das Penas por ordem do governo da República de Veneza Ver p 141 deste livro 9 Referese à Revelação divina 20 DOS DELITOS E DAS PENAS A QUEM LER 21 Natural nem tudo o que esta requer é exigido pela pura Lei Social mas é importantíssimo separar o que resulta desta convenção ou seja dos pactos expressos ou tácitos entre os homens porque tal é o limite daquela força que pode legitimamente exercerse entre homens e homens sem ordem especial do Ser supremo Assim a idéia da virtude política pode pois sem desdouro ser deno minada de variável a da virtude natural seria sempre límpida e manifesta se a imbecilidade ou as paixões dos homens não a obscurecessem a da virtude religiosa é sempre una e constante porque revelada imediatamente por Deus e por ele conservada Seria pois erro o atribuir a quem fala de convenções sociais e de suas conseqüências princípios contrários à Lei Natural ou à Revelação porque não é delas que aqui se fala Seria erro também acreditar que aquele que falando de estado de guerra antes do estado de sociedade o tomasse no sentido hobbesiano1O ou seja o de nenhum dever e de nenhuma obrigação anterior ao invés de tomálo como fato nascido da corrupção da natureza e da falta de uma sanção expressa Seria erro imputar um delito ao escritor que considerasse as emanações do pacto social e de não colocálo antes do próprio pacto A Justiça divina e a Justiça natural são por essência imutáveis e constantes porque a relação entre dois objetos iguais 10 Hobbesiano é relativo ao filósofo inglês Thomas Hobbes 15881679 segundo o qual antes do contrato social os homens viviam conforme já observara o romano Plauto em contínua e mortífera luta entre si homo homini lupus fazendo portanto preceder o estado político isto é a vida em sociedade por um estado natural que considerava cada homem em luta contínua com os semelhantes negando assim o direito natural anterior às leis Hobbes prestigiado filósofo inglês concebeu assim o contrato social como a evolução da sociedade do estado da natureza do homo homini lupus o homem é um lobo para o homem para o estado político do homo homini deus o homem é deus para o homem Neste ponto Beccaria procura conciliar a hipótese do estado de guerra présocial com o princípio da Revelação divina e da lei natural Em certo aspecto nesta passagem é também visível a influência de Montesquieu nos dois primeiros capítulos do Espírito das Leis é sempre a mesma mas a Justiça humana ou seja política não sendo senão a relação entre a ação e o estado variável da sociedade pode variar à medida que se tome necessária ou útil à sociedade tal ação e só será bem discernida por quem analisar as relações complicadas e mutabilíssimas das combinações civis Tão logo esses princípios profundamente distintos se tomem confusos deixará de existir a esperança de bem raciocinar sobre as matérias püblicas Cabe aos teólogos estabelecer as fronteiras entre o justo e o injusto quanto à intrínseca malícia ou a bondade do ato Estabelecer as relações do justo e do injusto político ou seja do que é útil ou danoso para a sociedade cabe ao publicista Nenhum objeto poderá prejudicar o outro pois cada um vê quanto a virtude puramente política deva ceder à imutável virtude emanada de Deus Quem repito desejar honrarme com críticas não comece portanto supondo em mim a existência de princípios destruidores da virtude ou da religião pois tenho demonstrado não serem esses os meus princípios e ao invés de acharme incrédulo ou sedicioso procure ver em mim um mau lógico ou um político despreparado não trema a cada proposta que apoie os interesses da humanidade convençame da inutilidade ou do dano político que poderia resultar dos meus princípios mostreme a vantagem das práticas recebidas Dei público testemunho da minha religião e da submissão ao meu Soberano na resposta às Notas e Observaçõesli Responder a ulteriores escritos semelhantes àque les seria supérfluo mas quem quer que escreva com a decência que convém a homens honestos e com tais luzes que me dispense de provar os primeiros princípios seja qual for a natureza deles pois encontrará em mim não só o homem que procura responder como o pacífico amante da verdade 11 A resposta redigida por Pietro Verri com a colaboração do irmão foi publicada seis dias após o recebimento em Milão da crítica acerba parcial e injusta de Frei Fachinei escrita esta por determinação do prepotente e suscetível Conselho dos Dez de Veneza supostamente criticado pela obra de Beccaria conforme pensavam seus membros A réplica dos irmãos Verri recebeu o nome de Apologia INTRODUÇÃO R EORA geral os homens abandonam os mais relevantes regulamentos à prudência diária ou à discrição daque les cujo interesse é o de contestar as leis mais sábias que por natureza tomam universais as vantagens e resistem ao esforço que tendem a concentrarse em poucos separando de um lado o máximo de poder e de felicidade e de outro toda a fraqueza e a miséria Por isso só após haver passado entre si mil erros nos aspectos mais essenciais da vida e da liberdade e depois de um cansaço de sofrer os males até o extremo dispõemse eles a remediar as desordens que os oprimem e a reconhecer as mais palpáveis verdades as quais por sua própria simplici dade escapam às mentes vulgares não habituadas a analisar os objetos mas a receberlhes todas as impressões de uma só vez mais por tradição que por exame Olhemos a história e veremos que as leis que são ou deveriam ser pactos entre homens livres não passaram geralmen te de instrumentos das paixões de uns poucos ou nasceram de fortuita e passageira necessidade não já ditadas por frio analista da natureza humana capaz de concentrar num só ponto as ações de muitos homens e de considerálas de um só ponto de vista a máxima felicidade dividida pelo maior número 12 Felizes as 12 Beccaria foi o primeiro a formular este princípio nestes exatos termos Tanto nesta como em outras passagens deste livro Dos Delitos e das Penas cfr Cap II e XV as origens das leis têm como fundamento a fusão das teorias contratualistas de Locke e de Rousseau com as 24 DOS DELITOS E DAS PENAS INTRODUÇÃO 25 pouquíssimas nações que não esperaram que o lento movimento das combinações e vicissitudes humanas após haverem atingido o mal extremo conduzissem ao bem mas que aceleraram as passagens intermediárias com boas leis E merece a gratidão dos homens o filósofo que de seu humilde e obscuro gabinete teve a coragem de lançar à multidão as primeiras sementes por longo tempo infrutíferas das úteis verdades Conheceramse verdadeiras relações entre o soberano e seus súditos e entre as diversas nações Prosperou o comércio à luz das verdades filosóficas postas pela imprensa ao alcance de todos acendeuse entre as nações tácita guerra de atividades a mais humana e a mais digna entre homens razoáveis Estes são os frutos que devemos às luzes deste século Pouquíssimos porém examinaram e combateram a crueldade das penas e as irregularidades dos processos criminais parte tão importante quão descurada da legislação em quase toda a Europa Pouquíssimos os que remontando aos princípios gerais elimina ram os erros acumulados durante séculos refreando ao menos cOm a força que só possuem as verdades conhecidas o demasiado livre curso do mal dirigido poder que deu até hoje longo e autorizado exemplo de cruel atrocidade Entretanto o gemido dos fracos vítimas da cruel ignorância e da rica indolência os bárbaros tormentos com pródiga e inútil severidade multiplicados por delitos não provados ou quiméricos a esqualidez e horrores da prisão aumentados pelo mais cruel algoz dos desgraçados a incerteza é que deveriam comover aquela espécie de magistrados que guiam as opiniões das mentes humanas O imortal Presidente Montesquieu l3 discorreu rapidamente sobre este tema 14 A indivisível verdade forçoume a seguir os teorias utilitaristas que Beccaria assimilou do pensador Helvétius 17151771 de quem foi grande admirador Beccaria cérebro essen cialmente receptivo toma seu o pensamento de Locke e de Rousseau 13 Montesquieu 16891755 foi eleito Presidente do Parlamento órgão jurisdicional do reino da França de Bordeaux jurista e pensador iluminista autor de inúmeras obras entre as quais a fundamental é o Esprit des lois 14 Beccaria declarou ao tradutor Morellet que sua conversão à filosofia ocorreu quando da leitura da obra Lettres persanes de Montesquieu traços luminosos desse grande homem mas os pensadores para os quais escrevo saberão distinguir os meus passos dos dele Afortunado serei eu se puder como ele obter os secretos agradecimentos dos obscuros e pacíficos adeptos da razão e se puder inspirar aquele doce frêmito com o qual as almas sensíveis respondem a quem luta pelos interesses da humanidade porém neste seu trabalho é bem visível a influência do Esprit des lois em inúmeros pontos I ORIGEM DAS PENAS L EIS Ão condições sob as quaiholllens independentes e isolados se uniram em sociedade cansados de viver em contínloclLQ glTl e degozar de uma liberdade inútil pela incerteza de conservála Parte dessa liberdade foi por eles sacrificada para poderem gozar o restante com segurança e tranqüilídade A soma de todas essas porções de liberdades sacrificaaas ao bem de cada um forma a soberania de uma nação eo Soberano é seu legítimo depositário e administrador Não bastava porém formar esse repositório Era mister defendêlo das usurpações privadas de cada homem em particular o qual sempre tenta não apenas retirar do escrínio a própria porção mas também usurpar à porção dos outros Faziamse necessários motivos sensíveis suficientes para dissuadir o despótico espírito de cada homem de submergir as leis da sociedade no antigo caos Essas são as penas estabelecidas contra os infratores das leis Digo motivos sensíveis porque a experiência mostrou que a multidão não adota princípios estáveis de conduta nem se afasta do princípio universal de dissolução no universo físico e moral senão por motivos que imediatamente afetam os sentidos e que sobem à mente para contrabalançar as fortes impressões das paixões parciais que se opõem ao bem universal Nem a eloqüência nem as declamações nem mesmo as mais sublimes verdades bastaram para refrear por longo tempo as paixões despertadas pelos vivos impactos dos objetos presentes DIREITO DE PUNIR 29 II DIREITO DE PUNIR T CDA PENA que uão derive da absoluta uecessidade diz o grande Montesquieu é tirânica proposição esta que pode ser assim generalizada todo ato de autoridade de homem para homem que não derive da absoluta necessidade é tirânico Eis então sobre o que se funda o direito do soberano de punir os delitos sobre a necessidade de defender o depósito da salvação pública das usurpações particulares Tanto mais justas são as penas quanto mais sagrada e inviolável é a segurança e maior a liberdade que o soberano dá aos súditos Consultemos o coração humano e nele encontraremos os princípios fundamentais do verdadeiro direito do soberano de punir os delitos pois não se pode esperar nenhuma vantagem durável da política moral se ela não se fundamentar nos sentimentos indeléveis do homem Toda lei que se afaste deles encontrará sempre resistência contrária que acabará vencendo da mesma forma que uma força embora mínima aplicada porém continuamente vencerá qual quer movimento aplicado com violência a um corpo Homem algum entregou gratuitamente parte da própria liberdade visando ao bem público quimera esta que só existe nos romances Se isso fosse possível cada um de nós desejaria que os pactos que ligam os outros não nos ligassem Cada homem faz de si o centro de todas as combinações do globo A multiplicação do gênero humano pequena por si só mas muito superior aos meios que a estéril e abandonada natureza oferecia para satisfazer as necessidades que cada vez mais se entrecruzavam é que reuniu os primeiros selvagens As primeiras uniões formaram necessariamente outras para resistir àquelas e assim o estado de guerra transportouse do indivíduo para as nações Foi portanto a necessidade que impeliu os homens a ceder parte da própria liberdade É certo que cada um só quer colocar no repositório público a mínima porção possível apenas a suficiente para induzir os outros a defendêlo O agregado dessas mínimas porções possíveis é que forma o direito de punir O resto é abuso e não justiça é fato mas não direito 15 Observemos que a palavra direito não se opõe à palavra força mas a primeira é antes uma modificação da segunda isto é a modificação mais útil para a maioria Por justiça entendo o vínculo necessário para manter unidos os interesses particulares que do contrário se dissolve riam no antigo estado de insociabilidade Todas as penas que ultrapassarem a necessidade de conservar esse vínculo são injustas pela própria natureza É necessário evitar associar à palavra Justiça a idéia de algo real como força física ou ser vivo Ela é mero modo de conceber dos homens o que influencia infinitamente a felicidade de cada um Também não me refiro àquele tipo de justiça que emana de Deus e que tem relações imediatas com as penas e recom pensas da vida futura 15 Observese que a palavra direito não contradiz a palavraforça Direito é a força submetida à lei para vantagem da maioria Entendo por Justiça os laços que reúnem de maneira estável os interesses particulares Se esses laços se quebrassem não haveria sociedade É mister que se evite ligar a palavra justiça à idéia de força física ou de um ser existente Justiça é pura e simplesmente o ponto de vista a partir do qual os homens encaram as coisas morais para o bemestar de cada um Não pretendo falar aqui da justiça de Deus que é de outra natureza tendo relações imediatas com as penas e as recompensas de uma vida futura Nota de Beccaria CONSEQÜÊNCIAS 31 ln CONSEQÜÊNCIAS A PRIMEIRA conseqüência destes princípios é que só as leis podem determinar as penas fixadas para os crimes e esta autoridade somente pode residir no legislador que representa toda a sociedade unida por um contrato social Nenhum magistrado que é parte da sociedade pode com justiça aplicar pena a outro membro dessa mesma sociedade pena essa superior ao limite fixado pelas leis que é a pena justa acrescida de outra pena Portanto o magistrado não pode sob qualquer pretexto de zelo ou de bem comum aumentar a pena estabelecida para um delinqüente cidadão A segunda conseqüência é que se cada membro em particular está ligado à sociedade essa sociedade está igualmente ligada a todos os seus membros por um contrato que por natureza obriga as duas partes Essa obrigação que desce do trono até a choupana e liga igualmente o mais poderoso ao mais desgraçado dos homens nada mais é do que o interesse de todos em observar pactos úteis à maioria A violação de um só pacto gera a autorização da anarquia O soberano que representa a própria sociedade só pode promulgar leis gerais que obriguem a todos os membros mas não pode julgar se um deles violou 0 Ver a nota 16 p 32 o contrato social pois então a nação se dividiria em duas partes uma representada pelo soberano que apontaia a violação do contrato outra pelo acusado que a negaria E pois necessário que um terceiro julgue a verdade do fato Daí a necessidade do magistrado cujas sentenças sejam inapeláveis e consistam tão só em afirmações ou negações de fatos particulares A terceira conseqüência é que mesmo provada que a atrocidade da pena não sendo imediatamente oposta ao bem comum e ao próprio fim de impedir os delitos fosse apenas inútil ela seria ainda assim contrária não só às virtudes benéficas efeito de uma razão esclarecida que prefere Q comando de homens felizes ao de um rebanho de escravos em meio aos quais circulasse perpetuamente uma tímida crueldade contrária também àjustiça e à natureza do próprio contrato social INTERPRETAÇÕES DAS LEIS 33 IV INTERPRETAÇÕES DAS LEIS Q UARTA conseqüência A utridade de interpre eis penais não pode ser atnbUIda nem mesmo aos JUIzes criminais pela simples razão de que eles não são legisladores Os juízes não receberam as leis de nossos antepassados como tradição de família nem como testamento que só deixasse aos pósteros a missão de obedecer mas recebemnas da sociedade vivente ou do soberano que a representa como legítimo depo sitário do atual resultado da vontade de todos Não nas recebem como obrigações de antigo juramento nulo por ligar vontades não existentes16 iníquo por reduzir os homens do estado de 16 Se cada cidadão tem obrigações a cumprir para com a sociedade a sociedade tem igualmente obrigações a cumprir para com cada cidadão pois a natureza do contrato consiste em obrigar igualmente as duas partes contratantes Esse liame de obrigações mútuas que desce do trono até a cabana e que liga igualmente o maior e o menor dos membros da sociedade tem como fim único o interesse público que consiste na observação das convenções úteis à maioria Violada uma dessas convenções abrese a porta à desordem A palavra obrigação é uma das que se empregam mais freqüentemente em moral do que em qualquer outra ciência Existem obrigações a cumprir no comércio e na sociedade Uma obrigação supõe um raciocínio moral convenções raciocinadas Não se pode porém emprestar à palavra obrigação uma sociedade ao estado de rebanho mas como efeito de um juramento tácito ou expresso que as vontades reunidas dos súditos vivos fizeram ao soberano como vínculos necessários para frear e reger o fermento intestino dos interesses particulares Esta é a física e real autoridade das leis Quem será então o legítimo intérprete da lei O soberano isto é o depositário das atuais vontades de todos ou o juiz cujo ofício é apenas o de examinar se determinado homem cometeu ou não ação contrária às leis Em cada crime o juiz deverá estruturar um silogismo perfeitQ ª maior deve ser a lei geral a menor a ação conforme ou não à lei a conseqüência a liberdade ou a pena Quando o juiz for coagido ou quiser formular somente dois silogismos a porta à incerteza estará aberta Nada é mais perigoso do que o axioma comum de que é necessário consultar o espírito da lei Este é um dique aberto à torrente das opiniões Esta verdade que parece paradoxal às mentes vulgares mais abaladas por pequenas desordens presentes do que pelas funestas mas remotas conseqüências que nascem de um falso princípio radicado numa nação pareceme demons trada Nossos conhecimentos e todas as nossas idéias têm uma recíproca conexão Quanto mais são complicados mais nume rosas são as estradas que a eles levam e deles partem Cada homem tem seu ponto de vista e o mesmo homem em épocas diferentes pensa de modo diferente O espírito da lei seria então o resultado da boa ou da má lógica de um juiz de uma fácil ou difícil digestão dependeria da violência de suas paixões da fraquea de quem sofre das relações do juiz com a vítima e de todas as mínimas forças que alteram as aparências de cada objeto no espírito indeciso do homem Assim vemos a sorte de um cidadão mudar várias vezes ao passar por diversos tribunais e vemos a vida dos miseráveis ser vítima de falsos raciocínios ou do atual fermento dos humores idéia física ou real É palavra abstrata que precisa ser explicada Ninguém pode obrigarvos a cumprir obrigações sem saberdes quais são tais obrigações Nota de Beccaria 34 DOS DELITOS E DAS PENAS de um juiz o qual tomou como legítima interpretação o vago resultado de toda uma série confusa de noções que lhe agitam a mente Vemos pois os mesmos delitos punidos diferentemente em épocas diferentes pelo mesmo tribunal por ter este consul tado não a voz imutável e constante da lei mas a errante instabilidade das interpretações A desordem que nasce da rigorosa observância da letra de uma lei penal não se compara com as desordens que nascem da interpretação Tal momentâneo inconveniente leva à correção fácil e necessária das palavras da lei causa da incerteza mas impede a fatal licença da razão da qual nascem as arbitrárias e venais controvérsias Quando um código fixo de leis que devem ser observadas ad litteram só deixa ao juiz a incumbência de examinar as ações dos cidadãos e de julgálas de acordo ou não com a lei escrita quando a norma do justo e do injusto que deve guiar tanto os atos do cidadão ignorante como os do filósofo não é questão controvertida mas de fato então os súditos não estão sujeitos às pequenas tiranias de muitos tanto mais cruéis quanto menor é a distância entre quem sofre e quem faz sofrer mais fatais do que as de um só porque o despotismo de muitos somente é corrigível pelo despotismo de um só e a crueldade de um déspota é proporcional não à força mas aos obstáculos Dessa forma adquirem os cidadãos a própria segu rança que é justa por ser o escopo pelo qual os homens vivem em sociedade e é útil porque os levam exatamente a calcular os inconvenientes de um crime É verdade ainda que adquirirão um espírito de independência mas que não irá abalar as leis nem será recalcitrante aos supremos magistrados resistindo porém aos que ousarem chamar com o sagrado nome de virtude a fraqueza de ceder às suas interessadas ou caprichosas opiniões Esses princípios desagradarão a todos os que se impuserem o direito de transmitir aos inferiores os golpes da tirania que receberam dos superiores Estarei preparado para tudo temer se o espírito da tirania for consonante com o espírito da leitura V OBSCURIDADE DAS LEIS S E A JNrnlPRETAÇÃO das leis é um mal claro que a obscundade que a mterpretação necessariamente acarre ta é também um mal e este mal será grandíssimo se as leis forem scitas em língua estranha ao pOVO17 que o ponha na dependencIa de uns poucos sem que possa julgar por si mesmo ual seria o êxito de sua liberdade ou de seus membros em hngua que tansformasse um livro solene e público em outro como que pnvado e de casa Que deveremos pensar dos homens quando refletimos ue este é o inveterado costume de boa part da culta e esclarecIda Europa Quanto maior for o número dos que entenderem e tiverem nas mãos o sagrado código das leis tanto menos freqüentes serão os delitos pois não há dúvida de que a ignorância e a incerteza das penas contribuem para a eloqüência das paixões Conseqüência destas últimas reflexões é que sem escrita a sociedade Amas teria forma fixa de governo onde a forç fosse consequencIa do todo e não das partes e onde as leis alteráveis apenas pelo consenso geral não se corrompam passando pela grande quantidade dos interesses privados A experiência e a razão demonstraramnos que a probabilidade e 17 Latim era a língua estranha ao povo usada pela elite pelos doutos sendo o sermo vulgaris a língua popular da plebe 36 DOS DELITOS E DAS PENAS a certeza das tradições humanas diminuem à medida que estas se distanciam da fonte Se não houver monumento estável do pacto social como resistirão as leis à força inevitável do tempo e das paixões Vemos assim quanto é útil a imprensa que faz do público e não apenas de alguns o depositário das leis sagradas e quanto sumiu o espírito tenebroso da cabala e da intriga que desaparece diante das luzes e das ciências aparentemente desprezadas por seus sequazes mas na verdade temidas por eles Esta é a razão pela qual vemos diminuída na Europa a atrocidade dos crimes que faziam gemer nossos antepassados os quais se tomavam alternadamente tiranos e escravos Quem conhece a história dos últimos dois ou três séculos e a nossa poderá ver como no seio do luxo e da apatia nasceram as mais doces virtudes a saber a filantropia a benevolência e a tolerância para com os erros humanos Verá quais foram os efeitos daquilo que sem razão denominamos de antiga simplicidade e boafé a huma nidade gemendo sob a implacável superstição a avareza a ambição de alguns tingindo com o sangue humano os escrínios de ouro e os tronos dos reis as ocultas traições e os massacres públicos todos os nobres tiranos da plebe Os ministros da verdade evangélica sujando de sangue as mãos que todos os dias tocavam o Deus da mansuetude não são obra deste século esclarecido que alguns denominam corrupto VI PROPORÇÃO ENTRE OS DELITOS E AS PENAS N Ão SOMENTE é interess de todos que não se cmetam delitos como tambem que estes sejam maIS raros proporcionalmente ao mal que causam à sociedade Portanto mais fortes devem ser os obstáculos que afastam os homens dos crimes quando são contrários ao bem público e na medida dos impulsos que os levam a delinqüir Deve haver pois proporção entre os delitos e as penas Impossível evitar todas as desordens no universal combate das paixões humanas Crescem elas na proporção geométrica da população e do entrelaçamento dos interesses particulares que não é possível dirigir geometricamente para a utilidade pública A exatidão matemática deve ser substituída na aritmética política pelo cálculo das probabilidades Se lançarmos um olhar para a história veremos crescerem as desordens com os limites dos impérios diminuindo o sentimento nacional na mesma proporção e assim a tendência para o crime cresce na razão do interesse que cada um tem nas próprias desordens Por esse motivo a necessidade de ampliar as penas vai sempre aumen tando Essa força semelhante à da gravidade que nos impele ao bemestar só se refreia na medida dos obstáculos que lhe são 38 DOS DELITOS E DAS PENAS PROPORÇÃO ENTRE OS DELITOS E AS PENAS 39 levantados Os efeitos desta força são a confusa série das ações humanas Se estas se chocam e se ferem umas com as outras as penas a que eu chamaria de obstáculos políticos impedem lhe o efeito nocivo sem destruir a força motriz que é a própria sensibilidade inseparável do homem E o legislador faz como hábil arquiteto cujo ofício é oporse às diretrizes ruinosas da gravidade e pedir a colaboração das que contribuem para a firmeza do edifício Dada a necessidade da reunião dos homens por causa dos pactos que necessariamente resultam da própria oposição dos interesses privados formase uma escala de desordens das quais o primeiro grau consiste naquelas que destroem imediatamente a sociedade e o último na mínima injustiça possível feita a seus membros privados Entre esses dois extremos encontram se todas as ações opostas ao bem comum chamadas delitos que vão decrescendo por graus insensíveis do mais grave ao mais leve Se a geometria fosse adaptável às infinitas e obscuras combinações das ações humanas deveria existir uma escala paralela de penas descendo da mais forte para a mais fraca mas bastará ao sábio legislador assinalar os pontos principais sem alterarlhes a ordem não cominando para os delitos de primeiro grau as penas do último Se existisse escala precisa e universal de penas e delitos teríamos medida provável e comum dos graus de tirania e de liberdade do fundo de humanidade ou de malícia das diversas nações Toda ação não compreendida entre os dois limites supramencionados não pode ser chamada de delito nem punida como tal senão por aqueles que têm interesse em assim chamá la A incerteza desses lirriites produziu nas nações moral que contradiz as leis leis mais atuais que se excluem reciprocamente e uma quantidade de leis que submetem o mais sábio a penas mais rigorosas Assim vagos e flutuantes ficaram os sentidos das palavras vício e virtude Nasceu assim a incerteza da própria existência o que produz a letargia e o sono fatal dos corpos políticos Quem ler sob o ângulo filosófico os códigos das nações e os respectivos anais observará quase sempre as palavras vício e virtude bom cidadão ou réu que se alteram com as revoluções dos séculos não em razão das mutações ocorridas nas circuns tâncias das nações e por isso sempre de acordo com o interesse geral mas em razão das paixões e dos erros que agitaram sucessivamente os diversos legisladoresVerá freqüentemente que as paixões de um dado século são a base da moral dos séculos seguintes As paixões desenfreadas filhas do fanatismo e do entusiasmo enfraquecidas e corroídas diria eu pelo tempo que reduz ao equilíbrio todos os fenômenos físicos e morais tomam se pouco a pouco a prudência do século e útil instrumento nas mãos dos fortes e perspicazes Desse modo nasceram as obscuras noções de honra e de virtude e isso ocorre porque mudam com as revoluções do tempo que antepõem os nomes às coisas mudam como o curso dos rios e como as montanhas que marcam freqüentemente os limites não só da geografia física como também da geografia moral Se o prazer e a dor são a força motriz dos seres sensíveis se entre os motivos que impelem os homens para ações mais sublimes foram colocados pelo invisível legislador o prêmio e o castigo a distribuição inexata destes produzirá a contradição tanto menos observada quanto mais comum de que as penas castigam os delitos a que deram origem Se pena igual for cominada a dois delitos que desigualmente ofendem a sociedade os homens não encontrarão nenhum obstáculo mais forte para cometer o delito maior se disso resultar maior vantagem ERROS NA MEDIDA DAS PENAS 41 VII ERROS NA MEDIDA DAS PENAS A S PRECEDENTES reflexões dãome o direito de afirmar que a única e verdadeira medida do delito é o dano causado à nação errando assim os que pensavam que a verdadeira medida do delito era a intenção de quem o comete Esta depende da impressão atual dos objetos e da precedente disposição do espírito Elas variam de homem para homem e em cada homem com a velocíssima sucessão das idéias das paixões e das circunstâncias Seria então necessário elaborar um Código especial para cada cidadão e uma nova lei para cada delito Às vezes os homens com a melhor das intenções causam o maior mal à sociedade Outras vezes com a maior má vontade causam o maior bem Outros medem o delito mais pela dignidade da pessoa ofendida do que por sua importância em relação ao bemestar geral Se esta fosse a verdadeira medida do delito uma irreverência para com o Ser dos seres deveria ser punida mais atrozmente do que o assassinato de um monarca porque a superioridade da natureza compensaria infinitamente a diferença da ofensa Finalmente alguns chegaram a pensar que a gravidade do pecado seria levada em consideração na medida do delito A falsidade dessa opinião saltará aos olhos do objetivo examinador das verdadeiras relações entre os homens e entre estes e Deus As primeiras são relações de igualdade Só a necessidade fez nascer do choque das paixões e das oposições dos interesses a idéia de utilidade comum base da justiça humana As segundas são relações de dependência de um Ser perfeito e criador que reservou para si apenas o direito de legislar e julgar ao mesmo tempo pois só ele pode fazêlo sem inconveniente Se Deus cominasse penas eternas para quem lhe desobedecesse a onipo tência qual seria o inseto que ousaria suprir a divina justiça querendo vingar o Ser que bastasse a si mesmo e que não pudesse receber dos objetos nenhuma impressão de prazer ou dor e que único entre os seres agisse sem reação A gravidade do pecado depende da insondável malícia do coração a qual não pode ser conhecida por seres finitos sem a Revelação Como poderia pois tal malícia fixarse em norma para a punição dos delitos Nesse caso poderiam os homens castigar quando Deus perdoa e perdoar quando Deus castiga Se os homens pudessem estar em oposição ao Onipotente ao ofendêlo poderiam também ao punir contradizêlo DIVISÃO DOS DELITOS 43 VIII DIVISÃO DOS DELITOS V IMOS que a verdadeira medida do delito é o dano à sociedade Esta é uma daquelas palpáveis verdades que embora não precisem de quadrantes nem de telescópios para serem reveladas pois estão ao alcance de toda inteligência medíocre todavia por maravilhosa combinação de circunstân cias são conhecidas com firme segurança somente por alguns poucos pensadores homens de todas as nações e de todos os séculos Mas as opiniões ostensivas e as paixões revestidas de autoridade e poder a maioria das vezes por meio de insensíveis impulsos outras poucas por impressões violentas sobre a tímida credulidade dos homens dissiparam as noções simples que formavam talvez a primeira filosofia das sociedades nascentes A luz deste século parece que reconduz a essas noções com maior firmeza no entanto que pode ser proporcionada por um exame geométrico por mil experiências funestas e pelos próprios obstáculos Nossa ordem de expor levarnosia a examinar e a distinguir os diversos tipos de delitos ou a maneira de punilos se a variável natureza desses delitos pela diversa circunstância ligada aos séculos e aos lugares não nos levasse a imenso e tedioso pormenor Bastarmeá indicar os princípios mais gerais e os erros mais danosos e comuns para desmentir tanto os que por um mal compreendido amor de liberdade gostariam de introduzir a anarquia quanto os que desejariam reduzir os homens a uma regularidade claustral Alguns delitos destroem imediatamente a sociedade ou quem a representa outros defendem a segurança do cidadão na vida privada nos bens na honra outros são ações contrárias àquilo que por lei cada um é obrigado a fazer ou não fazer em vista do bem geral Os primeiros isto é os delitos máximos porque mais danosos são os chamados de lesamajestade Só a tirania e a ignorância que confundem os vocábulos e as idéias mais claras podem dar esse nome e por conseguinte cominar pena máxima a delitos de naturezas diferentes de modo a fazer os homens como em outras mil ocasiões vítimas de um só vocábulo Cada delito embora privado ofende a sociedade mas nem todo delito procura a destruição imediata dessa mesma sociedade As ações morais assim como as físicas têm esfera limitada de atividade e como todos os movimentos da natureza são diversamente circunscritas ao tempo e ao espaço Só a interpretação cavilosa que é comumente a filosofia da escravi dão pode confundir aquilo que a verdade eterna com imutáveis relações distinguiu Seguemse os crimes contra a segurança de cada particular Sendo este o fim primeiro de toda legítima associação não é possível deixar de cominar à violação do direito de segurança adquirido pelo cidadão penas das mais severas fixadas pelas leis A opinião que cada cidadão deve ter de poder fazer tudo o que não é contrário à lei sem temer outro inconveniente além do que pode resultar da própria ação eis o dogma político em que os povos deveriam acreditar e que os supremos magistrados deveriam apregoar com a incorruptível proteção das leis dogma sagrado sem o qual não pode haver sociedade legítima certa recompensa pelo sacrifício por parte dos homens daquela ação universal sobre todas as coisas que é comum a cada ser sensível e limitada apenas pela própria força Eis o que toma as almas livres e vigorosas e as mentes esclarecidas que faz os homens virtuosos mas virtude que sabe resistir ao temor 44 DOS DELITOS E DAS PENAS e não da prudência submissa digna apenas de quem pode tolerar precária e incerta existência Atentados contra a segurança e a liberdade dos cidadãos constituem pois um dos maiores crimes e nessa classe incluemse não apenas os assassinatos e os furtos dos plebeus mas também os dos grandes e dos magistrados cuja influência age a maior distância e com maior vigor destruindo nos súditos as idéias de justiça e de dever substituindoas pela do direito do mais forte perigoso não só para quem o exerce como também para quem o suporta IX DA HONRA H Á MARCANrn contradição entre as leis civis zelosas guardiãs acima de tudo do corpo e dos bens de cada cidadão e as leis relativas ao que se chama de honra a qual coloca em primeiro plano a opinião A palavra honra é uma das que serviram de base para longos e brilhantes raciocínios sem que estivesse associada a nenhuma idéia fixa ou estável Mísera condição da mente humana a de que as idéias menos importantes e mais remotas sobre as revoluções dos corpos celestes sejam conhecidas melhor do que as próximas e impor tantíssimas noções morais sempre flutuantes e confusas à mercê do vendaval das paixões que as impelem e da ignorância dirigida que as recebe e as transmite O aparente paradoxo desaparecerá porém se se ponderar que assim como os objetos bem próximos da vista se confundem assim também a excessiva proximidade das idéias morais faz com que facilmente se misturem as múltiplas idéias simples que as compõem confundindo as linhas de separação necessárias ao espírito geométrico que quer medir os fenômenos da sensibilidade humana acabando por esvairse de toda a maravilha do indiferente pesquisador das coisas humanas que suspeitará que tanto aparato moral e tantos liames não sejam necessários para tomar os homens felizes e seguros Essa honra é pois uma daquelas idéias complexas que cons tituem um bloco não apenas de idéias simples mas também de 46 DOS DELITOS E DAS PENAS DA HONRA 47 idéias igualmente complexas que assomando reiteradamente à mente ora admitem ora excluem alguns dos diversos elementos que as compõem conservando apenas algumas idéias comuns assim como na álgebra várias quantidades complexas admitem um divisor comum Para achar o máximo divisor comum nas várias idéias que os homens fazem da honra é preciso lançar uma vista rápida de olhos sobre a formação das sociedades As primeiras leis e os primeiros magistrados nasceram da neces sidade de corrigir as desordens geradas pelo despotismo físico de cada homem finalidade esta instituidora da sociedade e esta finalidade primeira sempre foi mantida na realidade ou na aparência no início de todos os códigos mesmo quando danosos mas a aproximação dos homens e o progresso de seus conhe cimentos originaram infinita série de ações e necessidades impelindo uns contra outros sempre superiores à providência das leis e inferiores ao atual poder de cada um Foi nessa época que começou o despotismo da opinião único meio de obter de outrem aqueles bens e de afastar os males contra os quais as leis eram insuficientes É a opinião que atormentou o sábio e o vulgo que valorizou a aparência da virtude acima da própria virtude que converteu em missionário até o criminoso para que ali encon trasse seu interesse Portanto as aprovações dos homens se tomaram não só úteis mas necessárias para não descer abaixo do nível comum Portanto se o ambicioso conquista a virtude porque ela é útil se o vaidoso a mendiga como prova do próprio mérito vêse o homem honrado exigila como necessária Essa honra é a condição que muitíssimos homens consideram indis pensável à sua existência Nascida após a formação da sociedade ela não pôde ser colocada na vala comum Assim é um instantâneo retomo ao estado natural e uma subtração momen tânea da própria pessoa às leis que nesse caso não servem para defender suficientemente o cidadão Portanto quer na radical liberdade política quer na radical dependência desaparecem as idéias de honra ou se confundem perfeitamente com outras porque no primeiro caso o despotismo das leis toma inútil a busca da aprovação alheia no segundo caso porque o despotismo dos homens anulando a existência civil os reduz a uma precária e momentânea personalidade A honra é pois um dos princípios fundamentais daquelas monar quias que são um despotismo atenuado e nelas correspondem às revoluções nos estados despóticos momentânea volta ao estado da natureza e uma recordação do padrão da antiga igualdade DOS DUELOS 49 x DOS DUELOS DA NECBSSlDADB da aprovação dos outros nasceram os duelos privados originados da anarquia das leis Pre tendese que fossem desconhecidos na antigüidade talvez porque os antigos se reuniam sem armas e sem desconfiança nos templos nos teatros ou com os amigos Ou talvez porque o duelo fosse espetáculo ordinário e comum que os gladiadores escravos e aviltados ofereciam ao povo e que os homens livres recusando os combates privados afastavam a aparência e o nome de gladiadores Em vão os editos contra quem aceitasse o duelo procuraram extirpar tal costume cujo fundamento se encontra naquilo que alguns homens temem mais do que a própria morte pois sem a aprovação alheia o homem honrado se vê exposto a tornarse um ser meramente solitário estado insuportável para o homem sociável OU tornarse alvo de insultos e da infâmia que com a ação repetida acabam prevalecendo sobre o perigo da pena Por que motivo o populacho se bateria em duelo menos do que os grandes Não só por não possuir armas como também porque a necessidade da aprovação alheia é menos comum entre a plebe do que entre aqueles que estando em nível mais alto se entreolham com maior suspeita e com maior inveja Não é inútil repetir o que outros já escreveram a saber que o melhor método de prevenir o delito é punir o agressor ou seja quem deu motivo para o duelo declarando inocente aquele que sem culpa foi obrigado a defender o que as leis atuais não asseguram isto é a opinião e teve que mostrar aos concidadãos que teme somente as leis e não os homens DA TRANQÜILIDADE PÚBLICA 51 XI DA TRANQÜILIDADE PÚBLICA P OR FIM entre os delitos da terceira espécie est par ticularmente incluídos os que perturbam a tranqUilIdade pública e a o sossego do cidadão como algazarras e espalhafatos nas vias públicas destinadas ao comércio e à passagem dos cidadãos como os fanáticos discursos que inflamam as fáceis paixões da curiosa multidão as quais ganham força pela freqüência dos ouvintes mais pelo obscuro e misterioso entu siasmo do que pela clara e tranqüila razão que nunca mflUI sobre a grande massa humana A noite iluminada às expensas públicas os guardas distri buídos pelos diferentes bairros da cidade os simples e moras discursos da religião reservados ao silêncio e à sacra tranqüI lidade dos templos protegidos pela autoridade pública os aranzéis destinados a apoiar os interesses privados e públicos nas assembléias da nação nos parlamentos ou onde reside a majes tade do soberano são em conjunto meios eficazes para prevenir a perigosa intensidade das paixões populares Estas formam os principais ramos da vigilância do agistrado que o francess denominam polícia mas se esse magIstrado agIsse aplIcando leIS arbitrárias e não estabelecidas por um código que circulasse pelas mãos de todos os cidadãos estaria aberta uma porta à tirania que cerca todas as fronteiras da liberdade política Não encontro exceção alguma ao axioma geral de que todo cidadão deve saber se é réu ou inocente Se os censores e de um modo geral os magistrados arbitrários são necessários em qualquer governo isso decorre da fraqueza de sua constituição e não da natureza de governo bem organizado A incerteza da própria sorte sacrificou mais vítimas à obscura tirania do que a pública e solene crueldade Ela revolta os ânimos mais do que os avilta O verdadeiro tirano começa sempre por dominar a opinião que previne a coragem a qual só pode resplandecer ou sob a clara luz da verdade no fogo das paixões ou ainda na ignorância do perigo Quais serão entretanto as penas adequadas a esses delitos Será a morte uma pena realmente útil e necessária para a segurança e para a boa ordem da sociedade Serão a tortura e os suplícios justos e alcançarão eles o fim a que as leis se propõem Qual será a melhor maneira de prevenir os delitos Serão as mesmas penas igualmente úteis em todos os tempos Que influência terão as penas sobre os costumes Estes proble mas merecem ser resolvidos com a precisão geométrica a que a nebulosidade dos sofismas a sedutora eloqüência e a tímida dúvida não podem resistir Se eu só tivesse tido o mérito de ter sido o primeiro a apresentar na Itália com algum realce maior aquilo que as outras nações ousaram escrever e começam a praticar julgarmeia feliz mas se apoiando os direitos dos homens e da invencível verdade eu tivesse contribuído para arrancar dos espasmos e das vascas da morte algumas vítimas infelizes da tirania e da ignorância não menos fatal as bênçãos e as lágrimas mesmo as de um só inocente nos transportes da alegria me consolariam do desprezo dos homens XII FINALIDADES DA PENA D A SIMPLES consideração das verdades até aqui expostas fica evidente que o fim das penas não é atormentar e afligir um ser sensível nem desfazer o delito já cometido É concebível que um corpo político que bem longe de agir por paixões é o tranqüilo moderador das paixões particulares possa albergar essa inútil crueldade instrumento do furor e do fana tismo ou dos fracos tiranos Poderiam talvez os gritos de um infeliz trazer de volta do tempo que não retorna as ações já consumadas O fim da pena pois é apenas o de impedir que o réu cause novos danos aos seus concidadãos e demover os outros de agir desse modo É pois necessário selecionar quais penas e quais os modos de aplicálas de tal modo que conservadas as proporções causem impressão mais eficaz e mais duradoura no espírito dos homens e a menos tormentosa no corpo do réu XIII DAS TESTEMUNHAS P aNTO considerável em toda boa legislação é o de determinar exatamente a credibilidade das testemunhas e das provas do crime Todo homem razoável isto é que tenha idéias conexas e cujas sensações sejam conformes às dos outros homens pode ser arrollldo como testemunha A verdadeira medida de sua credibilidade é tãosomente o interesse que tenha em dizer ou não a verdade razão por que é frívolo o argumento da fraqueza das mulheres pueril a aplicação dos efeitos da morte real à morte civil nos condenados e incoerente a nota de infâmia nos infames quando as testemunhas não tenham interesse algum em mentir A credibilidade pois deve diminuir na proporção do ódio ou da amizade ou das estreitas relações existentes entre a testemunha e o réu É necessária mais de uma testemunha porque enquanto uma afirma e a outra nega nada haverá de certo e prevalecerá o direito que cada um tem de ser considerado inocente A credibilidade de uma testemunha tornase tão sensivelmente menor quanto mais cresce a atrocidade do delito18 18 Entre os penalistas ao contrário a credibilidade que o testemunho merece aumenta em proporção da atrocidade do crime Apoiamse eles neste axioma de ferro ditado pela mais cruel imbecilidade ln atroeissimis leviores conjecturae sufficiunt et icet judiei jura trans gredi Traduzamos essa máxima hedionda para que a Europa conheça 54 DOS DELITOS E DAS PENAS DAS TESTEMUNHAS 55 ou a inverossimilhança das circunstâncias como por exemplo a magia e as ações gratuitamente cruéis É mais provável que vários homens mintam na primeira acusação porque é mais fácil combinarse em muitos a ilusão da ignorância ou o ódio perseguidor do que se exercer por um só um poder que Deus não deu ou suprimiu de toda criatura O mesmo acontece na segunda acusação pois o homem só é cruel na proporção do seu próprio interesse do ódio ou do temor que concebeu Não há propriamente no homem nenhum sentimento supérfluo pois este é sempre proporcional ao resultado das impressões exercidas sobre os sentidos Igualmente a credibilidade de uma testemunha pode ser às vezes diminuída quando ela seja membro de sociedade privada cujos costumes e normas não são bem conhecidos ou divirjam das normas públicas Tal homem une as próprias paixões às paixões alheias Finalmente quase nula é a credibilidade da testemunha quando se faz das palavras um delito pois o tom o gesto o que precede e o que segue às diversas idéias que os homens associam às mesmas palavras altera e modifica de tal modo seus dizeres que é quase impossível repetilas exatamente como foram ao menos um dos revoltantes princípios e tão numerosos aos quais está submetida quase sem o saber Nos delitos mais atrozes isto é menos prováveis as mais ligeiras circunstâncias bastam e o juiz pode colocarse acima das leis Os absurdos em uso na legislação são muitas vezes o resultado do meio fonte inesgotável das inconseqüências e dos erros humanos Os legisladores ou antes os jurisconsultos cujas opiniões são consideradas após sua morte como espécie de oráculos e que como escritores vendidos ao interesse se tomaram árbitros soberanos da sorte dos homens os legisladores repito receosos de ver condenar inocentes sobrecarregaram a jurisprudência de forma lidades e exações inúteis cuja exata observação colocaria a desordem e a impunidade no trono da Justiça Outras vezes assombrados com certos crimes atrozes e difíceis de provar acharam que deviam desprezar as formalidades que eles próprios estabeleceram Foi assim que dominados ora por um despotismo impertinente ora por temores pueris fizeram dos julgamentos mais graves uma espécie de jogo abandonado ao acaso e aos caprichos do arbítrio Nota de Beccaria pronunciadas As ações violentas e fora o comum como AOS verdadeiros delitos deixam traços na quantldade das CIrcunstan cias e nos efeitos decorrentes mas as palavras só permanecem na memória quase sempre infiel e geralmente sedutora dos ouvintes É pois muito mais fácil a calúnia relativa às palavas do que a referente às ações de um homem porque quanto maIor for o número de circunstâncias apresentadas como prova tanto maiores serão os meios fornecidos ao réu para justificarse INDíCIOS E FORMAS DE JULGAMENTO 57 XIV INDÍCIOS E FORMAS DE JULGAMENTO H Á UM lEOREMA ge muito útil paracalcular a certeza de um fato Isto e a força dos mdIclOs de um crime Quando as pras o fato dependem de outra prova isto é quando os mdIclOs so se provam entre si quanto maiores forem as provas aduzidas menor será a probabilidade da existência do fato porqu os casos que enfraquecessem as provas precedentes enfraquecenam as subseqüentes Quando todas as provas do fato dpndm de uma só prova esse número não aumenta nem dImmUI a probabilidade do fato porque todo seu valor se reduz o valor da única prova de que dependem Quando as provas mdependem umas das outras ou seja quando os indícios se provam por si mesmos quanto maiores forem as provas aduzidas maIS aumentará a probabilidade do fato pois a falsidade de um das provas não influi sobre a outra Falo da probabilidade em atéria de delitos que para merecerem uma pena devem ser tIdos como certs O paradoxo entretanto esvairseá para quem conSIdere que ngorosamente a certeza moral não é senão uma prbabilidade mas probabilidade tal que é denominada certeza pOIS todo homem de bom senso nela consente necessariamente por um hábito nélscido da necessidade de agir e anterior a toda especulação A certeza que se exige para determinar que um homem é réu pois é a que caracteriza cada homem nas operações mais importantes de sua vida Podese dividir as provas de um crime em perfeitas e imperfeitas Denomino perfeitas as provas que excluem a possibilidade de alguém não ser culpado e chamo imperfeitas as que não a excluem Das primeiras basta uma só prova para a condenação Das outras bastam tantas quantas sejam necessárias para constituir a prova perfeita ou seja que se com cada uma destas em particular é possível que alguém não seja réu diante de sua soma no mesmo caso é impossível que não o seja Notese que as provas imperfeitas pelas quais o réu pode justificarse e não o faça suficientemente se tomem perfeitas mas esta certeza moral de provas é mais fácil de ser sentida do que exatamente definida Por isso julgo ótima a lei que indica assessores para o juiz principal por sorteio e não por escolha pois neste caso é mais segura a ignorância que julga pelo sentimento do que a ciência que julga pela opinião Onde as leis são claras e precisas o ofício do juiz não é senão o de averiguar o fato Se na busca das provas do delito se exigir habilidade e destreza se na apresentação do resultado forem necessárias clareza e precisão para julgar essa conclusão nada mais se exigirá do que mero e comum bom senso menos enganoso do que o saber de um juiz habituado a pretender encontrar réus e que reduz tudo a mero sistema teórico extraído de seus estudos Feliz a nação cujas leis não são ciência É muito útil a lei que faz cada homem ser julgado por seus iguais pois quando se trata da liberdade e do destino do cidadão devem silenciar os sentimentos inspirados pela desigualdade A superioridade com que o homem de sorte olha para o infeliz o pouco caso com que o inferior olha para o superior não podem influir nesse juízo Quando porém o delito constituir ofensa a terceiro então os juízes deverão ser a metade pares do réu e a outra metade pares do ofendido Estando assim equilibrado todo interesse particular que modifica também involuntariamente as aparências dos objetos só prevalecem as leis e a verdade É então conforme à justiça que o réu possa excluir até certo ponto os que lhe são suspeitos e se isso lhe for concedido sem problema por algum 58 DOS DELITOS E DAS PENAS tepo pecerá que o réu se condenará a si próprio Públicos sejam os Julamentos e públicas sejam as provas do crime para que a opImao que é talvez o único cimento da sociedade imponha freio à força e às paixões para que o povo diga nã somos escravos e somos defendidos sentimento que inspira coragem e qe euivale a um tributo ao soberano que conhece seus verdaders mteresses Não acenarei a outros pormenores e cautelas eXIgIdos por instituições semelhantes Nada teria dito se tivesse sido necessário dizer tudo xv ACUSAÇÕES SECRETAS E M MUITAS nações pela fraqueza da organização acusações secretas mas consagradas e necessárias provocam de sordens costume esse que toma os homens falsos e dissimulados Quem achar que outrem é delator nele terá um inimigo Os homens costumam então mascarar os sentimentos e tendo o hábito de ocultálos dos outros acabam finalmente por ocultá los de si mesmos Infelizes os homens que chegaram a tal extremo Sem princípios claros e estáveis que os orientem vagam aqui e ali desgarrados e flutuantes no vasto oceano das opiniões sempre preocupados em salvarse dos monstros que os ameaçam passando o momento presente amargurados sempre pela incerteza do futuro Privados dos prazeres duradouros da tranqüilidade e da segurança só alguns deles espalhados aqui e ali ao longo de sua melancólica existência devorados pela pressa e pela desordem consolamnos de haver vivido É desses homens que faremos os corajosos soldados defensores da pátria ou do trono Encontraremos entre eles incorruptos magistrados que com livre e patriótica eloqüência sustentem e desenvolvam os verdadeiros interesses do soberano que levam ao trono com os tributos o amor e as bênçãos de homens de todos os níveis e do trono trazendo de volta aos palácios e às cabanas a paz a segurança e a industriosa esperança de melhorar a sorte útil fermento e vida dos Estados 60 DOS DELITOS E DAS PENAS Que poderá defenderse da calúnia quando esta se protege com o mIs forte escudo da tirania o segredo Que espécie de govo e esse em que o regente pretende ver em cada súdito m mImIgo e para assegurar o sossego público é obrigado a tIrar o sossego de cada um Que motivos justificariam as acusações e as penas secretas A salvação pública a segurança e a manutenção da forma d governo Que eranh organização é essa onde quem detém a fora e a pImao amda mais eficaz que a força teme cada Idada A mcolumidade do acusador As leis assim são msufictente pa eendêIo E haverá súditos mais fortes que o soberano A mfamIa do delator Autorizase pois a calúnia secrea e pnese a calúnia pública A natureza do delito Se as çoes mdIferentes ainda que úteis ao público forem chamadas delItos as acusações e os julgamentos nunca serão suficiente mente secretos Pode haver delitos isto é ofensas públicas mas a esmo tempo pode não ser do interesse de todos tomar publIco o exmplo isto é o julgamento Respeito todos os gvernos e nao falo de nenhum em particular A natureza das cIrcunstâncias é tal às vezes que se pode julgar como a pior das ruínas erradicar um mal que na verdade é inerente ao sItema de uma nação mas se eu tivesse que publicar novas leIs em algum recanto abandonado do universo antes de autorizar ese costume minha mão tremeria e eu veria toda a posteridade dIante dos meus olhos Já o disse o senhor de Montesquieu que as acusações pubhas sao mIs cofoes à república onde o bem público devena contItUIr a pnmeIra paixão dos cidadãos antes mesmo da monarqUIa onde esse sentimento é fraquíssimo pela própria natuez do governo e onde é ótimo o procedimento de nomear cmIssanos que em nome de todos acusem os infratores das leIs Enretanto todo governo não só republicano como monarqUIco deve aplicar ao caluniador a pena que tocaria ao acusado XVI DA TORTURA C RUELDADE consagrada pelo uso na maioria das nações é a tortura do réu durante a instrução do processo ou para forçálo a confessar o delito ou por haver caído em contradição ou para descobrir os cúmplices ou por qual metafísica e incompreensível purgação da infâmia ou finalmen te por outros delitos de que poderia ser réu mas dos quais não é acusado Um homem não pode ser chamado culpado antes da sentença do juiz e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi outorgada Qual é pois o direito senão o da força que dá ao juiz o poder de aplicar pena ao cidadão enquanto existe dúvida sobre sua culpabilidade ou inocência Não é novo este dilema ou o delito é certo ou incerto Se é certo não lhe convém outra pena se não a estabelecida pelas leis e inúteis são os tormentos pois é inútil a confissão do réu Se é incerto não se deveria atormentar o inocente pois é inocente segundo a lei o homem cujos delitos não são provados E acrescento mais é querer subverter a ordem das coisas exigir que um homem seja ao mesmo tempo acusador e acusado que a dor se tome o cadinho da verdade como se o critério dessa verdade residisse nos músculos ou nas fibras de um infeliz Este é o meio seguro de absolver os robustos criminosos e de condenar os 62 DOS DELITOS E DAS PENAS DA TORTURA 63 fracos inocentes Eis os fatais inconvenientes desse pretenso critério da verdade mas critério digno de um canibal que os romanos bárbaros por mais de um título reservaram apenas aos escravos vítimas de tão feroz quanto muito louvada virtude Qual a finalidade política da pena O medo dos outros homens Que juízo deveremos fazer então das carnificinas secretas e privadas que o uso tirânico outorga tanto ao culpado quanto ao Inocente E importante que nenhum crime comprovado permaneça impune mas é inútil investigar a autoria do crime sepulto nas trevas Mal já consumado e para o qual não há remédio só pode ser punido pela sociedade política para influir ns outros com a ilusão da impunidade Se é verdade que o numero dos homens que por medo ou virtude respeitam as leis é superior ao número dos que a infringem o risco de atormentar um inocente deve ser tanto mais bem avaliado quanto maior é a probabilidade de que um homem em condições iguais as tenha mais respeitado que desprezado utro motivo ridículo da tortura é o da purgação da infâmia ISto e que um homem julgado infame pelas leis deva confirmar seu depoimento com a tritura de seus ossos Esse abuso não deveria ser tolerado no século XVIII Acreditase que a dor que é sensação purgue a infâmia que é mera relação moral Será a dor realmente um cadinho Será a infâmia um corpo misto impuro Não é difícil remontar às origens dessas leis ridículas PAois os próprios absurdos adotados por uma nação inteira sempre tem alguma relação com outras idéias comuns e respeitadas pela própria nação Parece esse uso derivar das idéias religiosas e espirituais que tanta influência exeiéêm sobre os pensamentos dos homens sobre as nações e sobre os séculos Dogma infalível asseguranos que as nódoas contraídas pela fraqueza humana e que não merecem a ira eterna do Ser Supremo serão purgadas por um incompreensível fogo Se a infâmia é nódoa civil e se a dor e o fogo apagam as nódoas espirituais e incorpóreas por que os espasmos da tortura não apagariam a mácula civil da infâmia Creio que a confissão do réu que alguns tribunais exigem como algo essencial à condenação tenha origem seme lhante pois no misterioso tribunal da penitência a confissão do pecado é parte essencial do sacramento Eis de que forma os homens abusam das luzes mais seguras da Revelação e como estes são os únicos que subsistem em tempos de ignorância a eles recorre a dócil humanidade em todas as ocasiões servindo se das aplicações as mais absurdas e remotas A infâmia entretanto é sentimento que não está sujeito nem às leis nem à razão mas à opinião comum A própria tortura ocasiona real infâmia em suas vítimas Assim sendo com esse método se substituirá a infâmia pela infâmia O terceiro motivo é a tortura aplicada aos supostos réus quando caem em contradição durante o interrogatório como se o temor da pena a incerteza do julgamento o aparato e a majestade do juiz a ignorância comum a quase todos criminosos e inocentes não fizessem provavelmente cair em contradição tanto o inocente temeroso como o culpado que procura acobertar se como se as contradições comuns aos homens quando estão tranqüilos não se multiplicassem na perturbação do espírito todo absorvido na preocupação de salvarse do perigo iminente Esse infame cadinho da verdade é monumento da legislação antiga e selvagem que ainda hoje subsiste quando as provas do fogo e da água fervente e o incerto destino das armas eram chamados juízos de Deus ou ordálios como se elos da eterna corrente que está no âmago da Causa Primeira devessem a todo instante ser desordenados e desconectados ao sabor da frívola determinação humana A única diferença entre tortura e provas do fogo e da água fervente é que o êxito da primeira depende em parte da vontade do réu e o das últimas de fato meramente físico e extrínseco Todavia essa diferença é só aparente não real Tão pouca é a liberdade de dizer a verdade entre os espasmos e as dilacerações quanto o era então impedir sem fraude os efeitos do fogo e da água fervente Todo ato da nossa vontade é sempre proporcional à força da impressão sensível de onde se origina E a sensibilidade do homem é limitada Assim a impressão da dor pode crescer a tal ponto que ocupando a sensibilidade inteira do torturado não lhe deixa outra liberdade senão a de escolher o caminho mais curto momentaneamente para se subtrair à pena Então a resposta do réu é tão necessária 64 DOS DELITOS E DAS PENAS DA TORTURA 65 quanto o seriam as impressões do fogo e da água O inocente sensível declararseá culpado quando achar que assim fará cessar o tormento A diferença entre eles é anulada pelo próprio meio que se pretende utilizar para encontrálo É supérfluo para melhor esclarecer citar inúmeros exemplos de inocentes que confessaram a culpa diante dos espasmos da tortura Não há nação nem época que não os enumere mas nem os homens mudam nem tiram proveito disso Não há homem qlle tenha levado idéias além das necessidades da vida e que às veus não corra para a natureza que o atrai com vozes secretas e confusas mas o hábito esse tirano da mente o repele e o assusta O resultado pois da tortura é questão de temperamento e de cálculo que varia em cada homem de acordo com sua robustez e sua sensibilidade de tal forma que com esse método um matemático resolveria esse problema mais facilmente do que o faria um juiz já que a força dos músculos e a sensibilidade das fibras de um inocente medirão o grau de dor que o fará confesséU a culpa de um delito O interrogatório do réu é feito para conhecer a verdade mas se esta verdade dificilmente se revela pela atitude pelo gesto pela fisionomia de um homem mmqüilo muito menOS apareceria no homem no qual as convulsões da dor alteram todos os sinais através dos quais a maioria dos homens deixa algumas vezes contra a vontade transparecer a verdade Toda ação violenta confunde e suprime as mínimas diferenças dos objetos por meio dos quais se distingue o verdadeiro do falso Essas verdades já eram conhecidas pelos legisladores ro manos entre os quais não era tolerado nenhum tipo de tortura a não ser para os escravos aos quais era negada toda perso nalidade A tortura foi adotada pela Inglaterra nação onde a glória das letras a superioridade do comércio e das riquezas e portanto do poderio e os exemplos de virtude e de coragem não nos deixam duvidar da bondade das leis A tortura desapareceu da Suécia abolida por um dos monarcas mais sábios da Europa 19 19 Frederico II o Grande 17121786 foi rei da Prússia de 1740 a 1786 o qual tendo levado a ftlosofia ao trono e sendo legislador amigo dos súditos os tomou iguais e livres na dependência das leis única igualdade e única liberdade que possam homens razoáveis exigir das coisas A tortura não é julgada necessária pelas leis dos exércitos formados na maior parte pela ralé das nações que por isso pareceriam dela precisar mais do que qualquer outra classe Estranha coisa para aquele que não considere quão grande é a tirania do uso que as pacíficas leis devem aprender dos corações endurecidos pelas carnificinas e pelo sangue o mais humano método de julgar Essa verdade é certo sentida por fim embora confusamen te por aqueles mesmos que dela se afastam Não tem validade a confissão feita sob tortura se não for confirmada por julga mento após a cessação do suplício mas se o réu não confirma o delito é de novo torturado Alguns doutores e algumas nações não permitem essa infame petição de princípio senão por três vezes Outras nações e outros estudiosos entregamna ao arbítrio do juiz de modo que de dois homens igualmente inocentes ou igualmente réus o forte e o corajoso será absolvido o fraco e o tímido será condenado em virtude deste exato raciocínio Eu juiz deveria julgarvos culpados de tal delito tu que és forte soubeste resistir à dor e por isso te absolvo tu que és fraco cedeste a ela e por isso te condeno Sinto que a confissão arrancada entre suplícios não teria força nenhuma mas nova mente sereis torturado se não confirmardes a vossa confissão Estranha conseqüência que necessariamente decorre do uso da tortura é que o inocente é posto em pior condição que o culpado Realmente se ambos são submetidos ao suplício o primeiro tem tudo contra si uma vez que ou confessa o delito e é condenado ou é declarado inocente mas sofreu pena indevida ao passo que um caso é favorável ao culpado quando resistindo à tortura com firmeza deverá ser absolvido como inocente trocando a pena maior pela menor O inocente portanto só tem a perder e o culpado só a ganhar A lei que ordena a tortura é a lei que diz Homens suportai a dor e se a natureza criou em vós inextinguível amor próprio 66 DOS DELITOS E DAS PENAS se ela vos deu o direito inalienável de vos defenderdes desperto em vós o sentimento contrário o heróico ódio de vós mesmos e ordeno que sejais vossos próprios acusadores e que digais a verdade embora vos estraçalhem os músculos e vos quebrem os ossos A tortura aplicase para descobrir se o réu cometeu outros delitos além daqueles de que é acusado o que equivale ao seguinte raciocínio Tu és culpado deste delito é pois possível que o sejas de cem outros delitos esta dúvida me oprime e quero certificarme com meu próprio critério da verdade as leis torturamte porque és culpado porque podes ser culpado porque quero que sejas culpado Finalmente a tortura é aplicada ao acusado para que se descubram os cúmplices do seu crime mas se foi demonstrado que ela não é meio adequado para descobrir a verdade como poderá servir para revelar os cúmplices sendo esta uma das verdades a serem descobertas Como se o homem que se acusasse a si mesmo não iria acusar os outros mais facilmente Será certo torturar um homem pelo crime alheio Não serão descobertos os cúmplices interrogando as testemunhas e o réu por meio das provas e pelo corpo de delito em suma por aqueles mesmos meios utilizados para comprovar o delito do acusado Os cúmplices geralmente fogem imediatamente após a prisão do companheiro A incerteza de seu destino os condena por si ao exílio e livra a nação do perigo de novos crimes enquanto a pena do réu que está preso alcança seu fim único ou seja afastar pelo terror outros homens de delito semelhante XVII DO FISCO H OUVE época em que quase todas as penas eram pecuniárias Os delitos dos homens eram o patrimônio do príncipe Os atentados contra a segurança pública eram objeto de luxo Quem devia defendêla tinha interesse em vêla lesada O objeto da pena era pois o litígio entre o fisco o cobrador dessas penas e o réu Tratavase de negócio civil contencioso mais privado do que público que dava ao fisco direitos outros dos conferidos pela defesa pública e ao réu outras culpas além daquelas em que havia incorrido pela necessidade do exemplo O juiz era então advogado do fisco mais do que imparcial investigador da verdade agente do erário fiscal mais que protetor e ministro das leis Como porém nesse sistema confessarse culpado era confessarse devedor do fisco finalidade dos procedimentos criminosos de então assim a confissão do delito confissão elaborada de tal modo a favorecer e a não prejudicar os motivos fiscais tomouse e ainda é perdurando os efeitos muitíssimo tempo após as causas o centro em tomo do qual giram todos os mecanismos criminais Sem ela um réu condenado por provas irrefutáveis sofrerá pena menor que a prevista sem ela não sofrerá a tortura por delitos da mesma espécie que possa ter cometido Com ela o juiz apoderarseá do corpo do réu e o torturará com as metódicas formalidades de praxe para extrair lhe como de um terreno adquirido todo o proveito possível 68 DOS DELITOS E DAS PENAS Provada a existência do delito a confissão constitui prova convincente e para tomar menos suspeita essa prova arrancada com os tormentos e o desespero da dor determinase ao mesmo tempo que uma confissão extrajudicial tranqüila indiferente sem os prepotentes temores de um tormentoso julgamento não basta para a condenação Excluemse as investigações e as provas que esclarecem o fato mas enfraquecem as razões do fisco Não é em favor da desgraça nem da fraqueza que se poupam às vezes os tormentos aos réus mas em consideração das vantagens que poderia perder o fisco esse ente hoje imaginário e inconcebível O juiz tomase inimigo do réu desse homem acorrentado minado pela miséria e pela desolação diante do mais negro porvir não busca a verdade do fato mas busca no prisioneiro o delito preparalhe armadilhas considerandose perdedor se não consegue apanhálo e crê estar falhando naquela infalibilidade que o homem se arroga em todas as coisas Os indícios para a prisão estão em poder do juiz para que alguém prove ser inocente deve ser antes declarado culpado chamase a isso processo ofensivo e são esses por quase toda parte da esclarecida Europa do século dezoito os procedimentos criminais O ver dadeiro processo o informativo isto é a investigação objetiva do fato aquele que a razão ordena que as leis militares adotam usado até pelo próprio despotismo luxuriante20 nos processos tranqüilos e indiferentes pouquíssimo utilizado nos tribunais europeus Que complicado labirinto de estranhos absurdos incríveis sem dúvida para uma mais feliz posteridade Somente os filósofos desse tempo futuro lerão na natureza do homem a possível verificação de um tal sistema 20 No texto está asiático XVIII DOS JURAMENTOS C ONTRADIÇÃO entre as leis e os sentimentos naturais do homem nasce dos juramentos que se exigem do réu para que seja um verdadeiro homem quando tem o máximo interesse em ser falso Como se o homem pudesse jurar since ramente quando contribui para a própria destruição Como se a religião não calasse na maioria dos homens quando fala o interesse A experiência de todos os séculos demonstrou que eíes abusaram acima de tudo deste precioso dom do céu E por que razão deveriam os criminosos respeitálo se os homens conside rados como os mais sábios freqüentemente o violaram Muito fracos por serem remotos aos sentidos são em sua maioria os motivos que a religião contrapõe ao tumulto do medo e ao amor à vida As questões do céu são regidas por leis totalmente diversas das que regem os negócios humanos E por que razão comprometer umas com as outras Por que motivo colocar o homem na terrível contradição de falhar em relação a Deus ou de concorrer para a própria ruína A lei que obriga a tal juramento ordena que o homem seja mau cristão ou mártir O juramento tomase pouco a pouco mera formalidade destruindo assim a força dos sentimentos religiosos único penhor da honestidade da maior parte dos homens Quanto são inúteis os juramentos a experiência já o demonstrou e qualquer juiz poderá ser testemunha que juramento algum jamais fez o réu dizer a 70 DOS DELITOS E DAS PENAS verdade A própria razão demonstra isso quando declara inúteis e conseqüentemente danosas todas as leis que se opõem aos naturais sentimentos do homem Acontece a essas leis o mesmo que acontece com as barreiras erguidas diretamente no curso de um rio as quais ou são imediatamente rompidas e arrastadas ou um turbilhão por elas mesmas criadas as corrói e as mina insensivelmente XIX RAPIDEZ DA PENA Q UANTO mais rápida for a pena e mais próxima do crime cometido tanto mais será ela justa e tanto mais útil Digo mais justa porque poupa ao réu os tormentos cruéis e inúteis da incerteza que crescem com o vigor da imaginação e com o sentimento da própria fraqueza mais justa porque a privação da liberdade sendo uma pena só ela poderá preceder a sentença quandQ a necessidade o exigirIO cárcere é assim a simples guarda de um cidadão até que ele seja considerado culpado e sendo essa guarda essencialmente penosa deverá durar o menor tempo possível e ser a menos dura que se possa Esse menor tempo deve ser medido pela necessária duração do processo e pelo direito de anterioridade do réu ao julgamento O tempo de recolhimento ao cárcere só pode ser o estritamente indispensável quer para impedir a fuga quer para que não sejam escondidas as provas do delito O próprio processo deve ser concluído no mais breve espaço de tempo possível Que contraste mais cruel existe do que a inércia de um juiz diante das angústias de um réu O conforto e os prazeres do magistrado insensível de um lado e de outro lado as lágrimas a desolação do preso Em geral o peso da pena e a conseqüência do delito devem ser mais eficazes para os outros e menos pesados para quem os sofre pois não se pode chamar legítima sociedade àquela em 72 DOS DELITOS E DAS PENAS que não vigore o princípio infalível segundo o qual os homens são voluntariamente sujeitos aos menores males possíveis Disse que a prontidão da pena é mais útil porque quanto mais curta é a distância do tempo que se passa entre o delito e a pena tanto mais forte e mais durável é no espírito humano a associação dessas duas idéias delito e pena de tal modo que insensivelmente se considera uma como causa e a outra como conseqüência necessária e fatal Está provado que a união das idéias é o cimento que sustenta toda a fábrica do intelecto humano sem a qual o prazer e a dor seriam sentimentos isolados e sem efeito algum Quanto mais os homens se afastam das idéias gerais e dos princípios universais isto é quanto mais eles são vulgares tanto mais agem em função das associações imediatas e mais próximas descuidandose das mais remotas e complica das Estas servem apenas aos homens muito apaixonados pelo objeto que os atrai pois a luz da atenção ilumina um só objeto deixando os outros na escuridão Servem também para as mentes mais elevadas que adquiriram o hábito de examinar rapidamente muitos objetos de uma só vez e têm a habilidade de contrapor uns aos outros muitos sentimentos parciais de tal modo que o resultado que é a ação é menos perigoso e incerto Da mais alta importância pois é a proximidade entre o delito e a pena se se quiser que nas rudes e incultas mentes o sedutor quadro de um delito vantajoso seja imediatamente seguido da idéia associada à pena A longa demora só produz o efeito de dissociar cada vez mais essas duas idéias e também de causar uma impressão de que o castigo de um delito seja menos a de um castigo que a de um espetáculo e isso só acontecerá após ter se enfraquecido nos espectadores o horror de um certo delito em particular que serviria para reforçar o sentimento da pena Outro princípio serve admiravelmente para restringir sempre mais a importante conexão entre a infração e a pena a saber que esta seja o mais possível adequada à natureza do delito Tal analogia facilita admiravelmente o contraste que deve haver entre o impulso para o delito e a repercussão da pena de tal modo que esta afaste e conduza o ânimo a um fim oposto àquele para o qual procura encaminhálo a sedutora idéia da infração da lei XX VIOLÊNCIAS A LGUNS delitos são tenados contra pesoa outros contra os bens Os pnmeuos devem mfahvelmente ser pu nidos com penas corporais Nem o poderoso nem o rico deverão pôr a prêmio os atentados contra o fraco o obre Ie outra forma as riquezas que sob a tutela das leIS sao o prermo da habilidade tornarseiam o alimento da tirania Não averá liberdade sempre que as leis permitirem que em ceras clrcus tâncias o homem deixe de ser pessoa e se tome COlsa VereIs então poderoso concentrar toda sua habilidade ar etrair da multiplicidade das combinações civis as que a leI dlspoe a seu favor Tal descoberta é o segredo mágico que transforma os cidadãos em bestas de carga que nas mãos do forte é a corrente que inibe as ações dos incautos e dos fraos Por ese motivo em alguns governos que têm toda a aparencla de hberdade a tirania escondese ou infiltrase despercebida em algum ângulo descuidado pelo legislador ali tomando fora e crescnd Os homens erguem na maioria dos casos barreIras as maiS sohdas à tirania declarada mas não enxergam o inseto imperceptível que os devora e abrem ao rio inundador caminho tanto mais seguro quanto mais oculto PENAS APLICADAS AOS NOBRES 75 XXI PENAS APLICADAS AOS NOBRES QUAIS serão então as pelll1S aplicáveis aos delitos dos nobres cujos privilégios formam grande parte das leis das nações Não examinarei aqui se tal distinção hereditária entre nobres e plebeus é útil ao governo ou necessária à monarquia Se é verdade que forme poder intermediário que limite os excessos dos dois extremos ou se antes ela forma uma classe escrava de si mesma e de outrem que como aquelas fecundas e amenas ilhotas que se destacam nos arenosos e vastos desertos da Arábia limitaria toda circulação de crédito e de esperança a um círculo estreitíssimo E mesmo admitindose que a desigualdade fosse inevitável ou útil às sociedades também é certo que ela deve consistir mais nas castas do que nos indivíduos deve fecharse antes numa única parte do que circular por todo o corpo político e antes perpetuarse do que nascer e destruirse incessantemente Restringirmeei às únicas penas aplicáveis a esta classe aftrmando que elas devem ser as mesmas para o primeiro e para o último dos cidadãos Toda distinção nas honrarias ou nas riquezas para ser legítima supõe uma anterior igualdade fundada nas leis que consideram todos os súditos igualmente dependentes delas Devemos admitir que os homens que renunciaram ao despotismo natural tenham dito que o mais engenhoso tenha maiores honras e que sua fama resplandeça em seus sucessores e quem é mais feliz ou mais honrado tenha maiores aspirações mas não tema menos que os outros violar os acordos com os quais se elevou acima dos outros É verdade que tais decretos não emanaram de assembléias do gênero humano mas existem nas relações imutáveis das coisas e sem destruir aquelas vantagens que se supõem produ zidas pela nobreza impedindolhes os inconvenientes tomando as leis poderosas e fechando toda estrada à impunidade A quem disser que a pena aplicada ao nobre e ao plebeu não é realmente a mesma em virtude da diversidade da educação e da infâmia que se esparge sobre uma ilustre farmlia responderei que a sensibilidade do réu não é a medida das penas mais sim o dano público tanto maior quanto é produzido pelo mais faoreido e que a igualdade das penas só pode ser extnnseca dlfenndo realmente de pessoa a pessoa em cada indivíduo e a infâmia de uma família inocente pode ser apagada pelo soberano com demonstrações públicas de benevolência E quem não sabe que sensíveis formalidades servem de razão ao povo crédulo e admirador FURTOS 77 XXII FURTOS F URros destituídos de violência deveriam ser punidos com pena pecuniária Quem procura enriquecer à custa alheia deve ser privado dos próprios bens mas como habitual mente esse é o delito da miséria e do desespero o delito daquela parte infeliz de homens a quem o direito de propriedade direito terrível e talvez desnecessário não deixou senão uma existência de privações mas como as penas pecuniárias aumentam o número dos réus mais do que o número dos delitos pois que ao tirar o pão dos criminosos acabam tirandoo dos inocentes a pena mais oportuna será então a única forma de escravidão que se pode chamar justa ou seja a escravidão temporária dos trabalhos e da pessoa a serviço da sociedade comum para ressarcila com a própria e total dependência do injusto despotismo exercido sobre o pacto social Se porém o delito for seguido de violência a pena deve ser igualmente um misto de pena corporal e servil Outros escritores demonstraram antes de mim a evidente desordem que nasce da não distinção das penas dos furtos violentos das dos furtos dolosos fazendo absurda equação entre uma alta soma em dinheiro e a vida de um homem mas nunca é supérfluo repetir aquilo que quase nunca foi posto em prática As máquinas políticas conservam mais do que quaisquer outras o ritmo que lhes foi impresso e são mais lentas em adquirir outro Esses delitos são de diferente natuea sendo incontestável mesmo em política o axioma da matematlca pelo qual entre quantidades heterogêneas existe o infinito que as separa INFÂMIA 79 XXIll INFÂMIA I NJÚRIAS pessoais e contrárias à hoora isto é à certa porção de aprovação que o cidadão tem o direito de exigir dos outros devem ser punidas com a infâmia Infâmia é o sinal da pública desaprovação que priva o réu do aplauso coletivo da confiança da pátria e daquela quase fraternidade que a sociedade inspira Ela não está ao arbítrio da lei É preciso pois que a infâmia da lei seja a mesma que nasce das relações entre as coisas a mesma da moral universal ou da moral particular dependente dos sistemas particulares legisladores das opiniões vulgares e da nação que a inspira Se elas diferem umas das outras ou a lei perde a veneração pública ou as idéias da moral e da probidade se esvaem em que pesem os protestos que não resistem aos exemplos Quem declara infames as ações por si só indiferentes diminui a infâmia das ações que são verdadei ramente tais As penas de infâmia não devem ser nem muito freqüentes nem incidir sobre grande número de pessoas simul taneamente No primeiro caso os efeitos reais e por demais freqüentes das coisas de opinião enfraquecem a força da própria opinião no segundo caso porque a infâmia de muitos acaba reduzindose à infâmia de nenhum As penas corporais e aflitivas não devem ser aplicadas aos delitos que fundados no orgulho retiram da própria dor glória e alimento A tais delitos convém o ridículo e a infâmia penas que freiam o orgulho dos fanáticos com o orgulho dos espec tadores e de cuja tenacidade a própria verdade só se liberta com lentos e obstinados esforços Assim opondo forças a forças e opiniões a opiniões o sábio legislador anula a admiração e a surpresa despertadas no povo por um falso princípio cuja absurda origem por suas bem deduzidas conseqüências costuma ser escondida do povo Eis o modo de não confundir as relações e a natureza invariável das coisas a qual não sendo limitada no tempo e operando incessantemente confunde e destrói todos os limitados regulamentos que dela se afastam Não apenas as artes do gosto e do prazer têm por princípio universal a imitação fiel da natureza mas a própria política ao menos a verdadeira e a durável está sujeita a essa máxima geral pois ela nada mais é do que a arte de melhor dirigir e de tomar cooperadores os sentimentos imutáveis dos homens OS OCIOSOS 81 XXIV OS OCIOSOS QUEM PERTURBA a tranqüilidade pública quem não obedece às leis isto é às condições pelas quais os homens se toleram e se defendem reciprocamente deve ser excluído da sociedade ou seja deve ser banido Esta é a razão pela qual os sábios governos não admitem no seio do trabalho e das atividades esse tipo de ócio político que austeros denun ciantes confundiram com o ócio das riquezas acumuladas pela atividade ócio necessário e útil à medida que a sociedade se expande e a administração se retrai Denomino de ócio político aquele que não contribui para a sociedade nem com o trabalho nem com a riqueza e ganha sem jamais perder ócio venerado pelo povo com estúpida admiração e é considerado pelo sábio com desdenhosa compaixão de suas vítimas Ocioso é aquele que sem o estímulo da vida ativa que é a necessidade de conservar ou de aumentar os confortos da vida transfere às paixões de opinião que não são as menos fortes toda sua energia Não é politicamente ocioso quem goza dos frutos dos vícios ou das virtudes dos antepassados e que em troca de prazeres atuais garante pão e existência à pobreza trabalhadora a qual trava em época de paz tácita guerra velada da atividade com a opulência em vez de incerta e sanguinolenta guerra com a força Não a austera e limitada virtude de alguns censores mas só as leis devem definir qual será o ócio que deve ser punido Parece que o banimento deveria ser aplicado àqueles que acusados de atroz delito tenham com grande probabilidade mas não certeza de ser julgados culpados Para isso porém seria necessário um estatuto o menos arbitrário e o mais precioso possível o qual condenasse ao banimento quem tivesse colocado a nação diante da fatal alternativa de temêlo ou de ofendêlo deixandolhe entretanto o sagrado direito de provarlhe a inocência Maiores deveriam ser os motivos contra o nacional do que contra o estrangeiro contra o acusado pela primeira vez do que contra quem o foi mais vezes BANIMENTO E CONFISCO 83 xxv BANIMENTO E CONFISCO DEVERÁ porém aquele qoe é banido e excluído para sempre da sociedade da qual era membro ser privado dos bens Esta questão é suscetível de diversos aspectos A perda dos bens é pena maior que a do banimento Deve pois haver casos em que proporcionalmente ao delito haja a perda de todos ou de parte dos bens e outros casos em que não A perda total ocorrerá quando o banimento previsto em lei determinar o rompimento de todos os laços entre a sociedade e o cidadão delinqüente Morre então o cidadão e permanece o homem o que com respeito ao corpo político deverá produzir o mesmo efeito do que a morte natural Dirseia pois que os bens confiscados ao réu deveriam reverter de preferência para os legítimos sucessores mais do que para o príncipe pois a morte e o banimento são o mesmo relativamente ao corpo político Não é esse porém o pormenor que me leva a censurar o confisco dos bens Se alguns já sustentaram que Q confisco era o freio às vinganças e às prepotências privadas não perceberam que embora as penas produzam um bem nem sempre são justas pois para serem justas precisariam ser necessárias e uma injustiça útil não pode ser tolerada pelo legislador que preten desse fechar todas as portas à vigilante tirania a qual seduz com um bem do momento e com a felicidade de alguns notáveis desprezando o extermínio futuro e as lágrimas de muita gente obscura O confisco coloca a prêmio a cabeça dos fracos e faz recair sobre o inocente a pena do culpado deixandoo na desesperada necessidade de cometer delitos Que espetáculo mais triste do que o da família arrastada à infâmia e à miséria pelos crimes do chefe cujos atas por causa da submissão imposta pelas leis ela não poderia impedir mesmo que dispusesse dos meios de fazêlo DO ESPÍRITO DE FAMÍLIA 85 XXVI DO ESPÍRITO DE FAMÍLIA E STAS funestas e autorizadas injustiças foram aprovadas mesmo pelos homens mais esclarecidos e praticadas pelas repúblicas mais livres por terem considerado a sociedade mais como união de famílias do que como união de homens Imaginemos cem mil pessoas isto é vinte mil famílias de cinco pessoas cada uma incluindo o chefe que a representa Se a associação for de famílias haverá vinte mil pessoas livres e oitenta mil escravos Se a associação for de pessoas haverá cem mil cidadãos e nenhum escravo No primeiro caso haverá uma república e vinte mil pequenas monarquias que a compõem e no segundo caso o espírito republicano não soprará apenas nas praças ou nas assembléias das nações mas também entre as paredes domésticas onde reside grande parte da felicidade ou da miséria dos homens No primeiro caso como as leis e costumes são o efeito dos sentimentos habituais dos membros da república ou seja dos chefes de família o espírito monárquico introduzírseá paulatinamente na própria república e seus efeitos só serão evitados pelos interesses opostos de cada um mas não pelo sopro do sentimento de liberdade e igualdade O espírito de família é um espírito de detalhes circunscrito a pequenos fatos O espírito regulador das repúblicas senhor dos princípios gerais vê os erros e os condensa nas classes principais e importantes para o bem da maior parte Na república de famílias OS filhos permanecem sob o pátrio poder do chefe enquanto este vive e são obrigados a esperarlhe a morte para ter existência que dependa somente das leis Acostumados a submeterse e a temer na idade mais verde e vigorosa quando os sentimentos são menos modificados por aquele temor de esperança deno minado moderação como resistirão eles aos obstáculos que o vício sempre opõe à virtude na lânguida e cadente idade na qual também a desesperança de verlhes os frutos se opõe a vigorosas mudanças Quando a república é de homens a família não é subor dinação de comando mas de contrato e os filhos quando a idade os liberta da dependência natural que é a da fraqueza e da necessidade de educação e de proteção se tomam livres membros da cidade sujeitandose ao chefe da farmlia na medida em que participam das mesmas vantagens como os homens livres na grande sociedade No primeiro caso os filhos ou seja a parte maior e a mais útil da nação são entregues à discrição dos pais No segundo caso não subsiste nenhum outro laço obrigatório a não ser o sagrado e inviolável dever de prestar reciprocamente a assistência recíproca e da gratidão pelos benefícios recebidos o que não é tão destruído pela malícia do coração quanto pela mal compreendida sujeição imposta pelas leis Essas contradições entre as leis de família e as leis fundamentais da república são fecunda fonte de outras contra dições entre a moral privada e a moral pública e por isso geram perpétuo conflito no coração dos homens A primeira inspira sujeição e temor a segunda coragem e liberdade A primeira ensina a limitar a benevolência a pequeno número de pessoas que não foram escolhidas a segunda a estendêla a toda classe de homens mas esta ordena o contínuo sacrifício de si a um ídolo vão chamado bem de família que muitas vezes não é bem de nenhum dos que a compõem Esta ensina a servir o próprio interesse sem lesar as leis ou estimula a imolarse pela pátria com o prêmio do fanatismo que precede a ação Tais contrastes levam os homens a desdenhar o caminho da virtude considerandoo emaranhado e confuso porque nasce da obscu 86 DOS DELITOS E DAS PENAS ridade dos objetos tanto físicos quanto morais Quantas vezes o homem voltandose para ações passadas não se terá surpre endido com a própria desonestidade À medida que a sociedade cresce cada um dos seus membros se torna parte menor do todo e o sentimento republicano diminui na mesma proporção se as leis não tratarem de reforçálo As sociedades como o corpo humano têm limites circunscritos e crescendo elas para além desses limites a economia perturbase necessariamente Parece que a massa de um Estado deve estar na razão inversa da sensibilidade de quem o compõe pois do contrário crescendo uma e outra as boas leis ao prevenirem os delitos encontrariam um obstáculo no próprio bem que produziram Urna república muito vasta somente se salva do despotismo subdividindose e unindose em diversas repúblicas federativas Mas como fazê lo Com um ditador despótico que tenha a coragem de um Sila 21 e tanto gênio para edificar quanto Sila teve para destruir Se tal homem for ambicioso a glória de todos os séculos o esperará se for filósofo as bênçãos de seus cidadãos o consolarão da perda de autoridade a menos que ele se torne indiferente a essa ingratidão À medida que os sentimentos que nos unem à nação se enfraquecem adquirem força os sentimentos para com os objetos circunstantes Por isso é sob o despotismo mais forte que as amizades são mais duráveis e as virtudes de famílias sempre medíocres se tornam mais comuns senão as únicas Disto pode cada um ver quão limitadas são as vistas da maior parte dos legisladores I Ditador romano nascido em 136 ac Companheiro e depois êmulo de Mário cônsul em 88 vencedor de Mitridates chefe do partido aristocrático e depois tirano de Roma e de toda Itália Exilou os adversários reformou a Constituição Romana favoreceu o Senado e adquiriu enorme influência Renuncia inesperadamente morrendo no ano seguinte 80 aC XXVII BRANDURA DAS PENAS o CURSO porém das minhas idéias desvioume do tema que devo agora apressar a esclarecer Um dos maiores freios dos delitos não é a crueldade das penas mas sua infalibilidade e como conseqüência a vigilância dos magistrados e a severidade de um juiz inexorável que para ser uma virtude útil deve ser acompanhada de uma legislação branda A certeza de um castigo mesmo moderado sempre causará mais intensa impressão do que o temor de outro mais severo unido à esperança da impunidade pois os males mesmo os menores quando certos sempre surpreendem os espíritos humanos en quanto a esperança dom celestial que freqüentemente tudo supre em nós afasta a idéia de males piores principalmente quando a itnpunidade outorgada muitas vezes pela avareza e pela fraqueza fortalecelhe a força A própria atrocidade da pena faz com que tentemos evitála com audácia tanto maior quanto maior é o mal e leva a cometer mais delitos para escapar à pena de um só Os países e as épocas em que os suplícios mais atrozes foram sempre os das ações mais sanguinárias e desumanas pois o mesmo espírito de crueldade que guiava a mão do legislador regia a do parricida e a do sicário Do trono ditava leis férreas a ânimos torturados de escravos que obedeciam Na íntima escuridão estimulava a imolação para criar outros novos 88 DOS DELITOS E DAS PENAS BRANDURA DAS PENAS 89 À medida que as torturas se tomam mais cruéis o espírito humano que como os fluidos se nivela sempre com os objetos circunstantes endurecem e a força sempre viva das paixões faz com que após cem anos de cruéis suplícios a roda cause tanto temor quanto antes a prisão causava Para que a pena produza efeito basta que o mal que ela inflige exceda o bem que nasce do delito e nesse excesso de mal deve ser calculada a infalibilidade da pena e a perda do bem que o crime deveria produzir O resto é supérfluo e portanto tirânico Os homens regulamse pela repetida ação dos males que conhecem e não pela dos que ignoram Consideremos duas nações numa das quais na escala das penas proporcional à escala dos delitos a pena maior seja a escravidão perpétua e na outra a roda Sustento que a primeira terá tanto temor de sua maior quanto a segunda e se houvesse razão para transferirse para a primeira as penas maiores da segunda a mesma razão serviria para aumentar as penas desta última passando insensivelmente da roda para os tormentos mais lentos e requintados até os últimos refinamentos da ciência mais conhecida dos tiranos Duas outras danosas conseqüências derivam da crueldade das penas contrárias ao próprio fim de prevenir os delitos A primeira é que não é tão fácil preservar a proporção essencial entre delito e pena porque embora uma engenhosa crueldade tenha contribuído para fazer variar grandemente suas espécies a pena não pode ainda assim ultrapassar a última força a que estão limitadas a organização e a sensibilidade humana Alcan çado esse extremo não se encontrariam penas maiores corres pondentes aos delitos mais danosos e atrozes o que seria oportuno para prevenilos Outra conseqüência é que a própria impunidade nasce da atrocidade dos suplícios Os homens estão circunscritos a certos limites tanto no que se refere ao bem quanto no que se refere ao mal e um espetáculo muito atroz para a humanidade só pode constituir um ódio passageiro nunca porém sistema constante como devem ser as leis pois se estas realmente fossem cruéis ou seriam alteradas ou então fatalmen te dariam nascimento à impunidade Quem ao ler a história não se horripila diante dos bárbaros e inúteis tormentos friamente criados e executados por homens que se diziam sábios Quem não estremecerá até em sua célula mais sensível ao ver milhares de infelizes que a miséria provocada ou tolerada por leis que sempre favoreceram a minoria e prejudicaram a maioria forçou a desesperado regresso ao primitivo estado da natureza ou acusados de delitos impossíveis criados pela tímida ignorância ou réus julgados culpados apenas pela fidelidade aos próprios princípios esses infelizes acabam mutilados por lentas torturas e premeditadas formalidades oriun das de homens dotados dos mesmos sentimentos e por conse guinte das mesmas paixões em alegre espetáculo para a fanática multidão DA PENA DE MORTE 91 xxvm DA PENA DE MORTE A INúTIL quantidade de suplícios que nunca tomou os homens melhores levoume a indagar se a morte é verdadeiramente útil e justa em governo bem organizado Qual poderá ser o direito que o homem tem de matar seu semelhante Certamente não é o mesmo direito do qual resultam a soberania e as leis Estas nada mais são do que a soma de pequeninas porções da liberdade particular de cada um representando a vontade geral soma das vontades individuais Que homem porém outorgará a outro homem o arbítrio de matálo Como poderá haver no menor sacrifício da liberdade de cada um o sacrifício do bem maior de todos os bens que é a vida Se assim fosse como se harmonizaria tal princípio com o de que o homem não tem o direito de matarse Não deveria porventura ter ele esse mesmo direito se resolveu outorgálo a outrem ou a toda a sociedade A pena de morte não é portanto um direito já que demonstrei que isso não ocorre mas é a guerra da nação contra o cidadão que ela julga útil ou necessário matar Se no entanto eu demonstrar que a morte não é útil nem necessária terei vencido a causa da humanidade A morte de um cidadão não pode crerse necessária a não ser por dois motivos o primeiro quando também privado da liberdade ele tenha ainda relações e poder tais que possam afetar a segurança da nação o segundo quando sua existência possa produzir perigosa rvolção para a forma de governo estabelecida A morte do cldadao tomase assim necessária quando a nação recupera ou perde a liberdade ou em época de anarquia quando as próprias desordens tomam o lugar das leis mas sob o reinado tranqüilo das leis sob forma de governo que reúna os votos da nação bem amparada externa e internamente pela força e pela opinião talvez mais eficaz que a própria força onde o comando só é exercido pelo próprio soberano e onde as riquezas compram prazeres e não autoridade não vejo nenhuma necessidade de destruir o cidadão a não ser que tal morte fosse o único e verdadeiro meio capaz de iedir que outros cometessem crimes razão suficiente que tornana Justa e necessária a pena de morte Ainda que a experiência de todos os séculos em que o último dos castigos tivesse refreado os homens decididos a ofender a sociedade ainda que o exemplo dos cidadãos romanos e vinte anos de reinado da imperatriz Isabel de MOSCOU22 ao longo dos quais ela deu aos ancestrais dos povos istre exemplo que equivale a pelo menos muitas conqUIstas adqumdas com o sangue dos filhos da pátria não convencessem os homens para quem a linguagem da razão é sempre suspeita porém é eficaz a da autoridade bastaria consultar a natureza do homem para perceber a verdade da minha assertiva Não é o grau intenso da pena que produz maior impressão sobre o espírito humano mas sim sua extensão pois a sensi bilidade humana é mais facilmente e mais constantemente afetada por impressões mínimas porém renovadas do que por abalo intenso mas efêmero A força do hábito é universal em cada A ser sensível e assim como o homem fala anda e prove as próprias necessidades por seu intermédio assim também as idéias morais só se imprimem na mente por impressões duráveis e repetidas Não é o terrível mas passageiro espetáculo da morte de um criminoso mas sim o longo e sofrido exemplo de um 22 Isabel Petrovna 17091762 Isabel de Moscou ou da Rússia filha de Pedro o Grande e de Catarina Primeira 16841727 que subiu ao trono em 1741 92 DOS DELITOS E DAS PENAS DA PENA DE MORTE 93 homem privado da liberdade e que convertido em animal recopnsa cm a fadiga a sociedade que ofendeu é que CnStItUl o freIo mais forte contra os delitos A repetição para SI mesmo eficaz por seu insistente refrão eu mesmo serei reduzido a longa e mísera condição se cometer semelhantes delitos é Amuito mais forte do que a idéia da morte que os homens veem numa obscura distância A pena de morte causa tal impressão que embora forte não suprime o rápido esquecimento que é pertinente ao homem mesmo nas coisas essenciais acelerados pelas paixões Regra gerl as paixões violentas surpreendem os homens mas não por mUlto tempo e embora sejam elas aptas a fazer as revoluções que de homens comuns fazem persas ou lacedemônios e livre e tranqüilo governo as impressões devem ser mais frqüentes do que fortes A pena de rte tornase espetáculo para a maioria e objeto mIsto de compa1xao e desdem para poucos Ambos os sentimen tos ocupam mais o espírito dos espectadores do que o salutar terror que a lei pretende inspirar mas nas penas moderadas e conínas o sentimento predominante é o último porque único O hm1te e o legislador deveria fixar para o rigor das penas parece reSIdIr no sentimento de compaixão quando este começa a prevalecer sobre qualquer outro no ânimo dos espectadores d um castigo reservado mais para eles do que para o próprio reu Para ue a pena seja justa só deve ter os indispensáveis gras de mtenS1dade suficientes para afastar os homens dos dehtos ora não há ninguém que refletindo a respeito possa escolher total e perpétua perda da liberdade por mais vantajoso que o dehto possa ser Assim a intensidade da pena de escravidão prpétu substiindo pena de morte contém o suficiente para d1ssuad1r o espmto maiS determmado Acrescento mais muitís SImos homens encaram a morte com o semblante tranqüilo e firme alguns por fanatismo outros por aquela vaidade que quase epre acompanha o homem depois da morte Outros ainda na ultima e desesperada tentativa de não viver ou de sair da miséria mas nem o fanatismo nem a vaidade subsistem entre cepos cadeias sob o bastão ou sob o jugo Atrás de gaiolas de ferro o deseperado não põe fim a seus males mas apenas os começa Nosso espírito resiste mais à violência e às dores extremas mas passageiras do que ao tempo e ao incessante tédio porque concentrado em si mesmo por um instante o espírito pode repelir as primeiras mas sua vigorosa elasticidade não basta para resistir à longa e repetida ação dos últimos Com a pena de morte cada exemplo dado ao país supõe um delito Na pena de escravidão perpétua um único delito oferece muitíssimos e duráveis exemplos e se é importante que os homens vejam sempre o poder da leis a pena de morte não deve ser muito distante entre si Por isso elas supõem a freqüência dos delitos Portanto para que este suplício seja útil é preciso que não produza nos homens a impressão que deveria causar isto é que seja útil e inútil ao mesmo tempo Se alguém disser que a escravidão perpétua é tão dolorosa quanto a pena de morte e portanto igualmente cruel responderei que somados todos os momentos infelizes da escravidão ela talvez o será mais mas esses momentos são espalhados pela vida toda enquanto a morte concentra toda a força num só momento E é esta a vantagem da pena de escravidão que intimida mais quem a vê do que quem a sofre porque o primeiro analisa a soma de todos os momentos infelizes enquanto o segundo se abstrai da infelici dade futura pela infelicidade presente Todos os males aumentam na mente e quem sofre acha recurso e consolo desconhecidos jamais imaginados pelos espectadores que substituem a própria sensibilidade pelo espírito acostumado do infeliz O ladrão ou o assassino cujo único contrapeso para não violar as leis seja a forca ou a roda raciocina mais ou menos do seguinte modo sei que desenvolver os sentimentos do próprio espírito é arte que se aprende com a educação mas se o ladrão não souber expressar com propriedade seus princípios nem por isso deixarão eles de atuar Que leis são essas que devo respeitar e que põem tão grande distância entre minha pessoa e a do rico Ele me nega o centavo que lhe peço e se desculpa mandandome trabalhar fazendo o que ele mesmo não sabe fazer Quem fez essas leis Homens ricos e poderosos que nunca 94 DOS DELITOS E DAS PENAS DA PENA DE MORTE 95 se propuseram a visitar os míseros casebres do pobre que nunca precisaram repartir o pão amanhecido entre os gritos inocentes dos filhos famintos e as lágrimas da mulher Quebremos estes laços fatais à maioria e úteis a uns poucos tiranos preguiçosos Ataquemos a injustiça na fonte Voltarei ao meu estado de independência natural viverei livre e feliz por algum tempo com os frutos da minha coragem e do meu trabalho Talvez chegue o dia da dor e do arrependimento mas esse tempo será breve e terei um dia de privação ao invés de muitos anos de liberdade e de prazeres Rei de pequeno número corrigirei os erros do destino e verei os tiranos empalidecerem e tremerem diante daqueles que os preteriram com fausto ultrajante e que eles colocaram abaixo de seus cavalos e cães A religião nesse caso sobe à cabeça do criminoso que abusa de tudo e apresentando lhe fácil arrependimento e quase certa felicidade etema minimizará sensivelmente o horror dessa última tragédia Aquele porém que vê diante dos olhos longos anos ou mesmo o curso de toda uma vida que passaria na escravidão e na dor exposto ao olhar dos concidadãos com quem convivia livre e socialmente escravo das mesmas leis que o protegiam fará inútil comparação de tudo com a incerteza do êxito de seus crimes cujos frutos gozará por breve tempo O exemplo contínuo dos que ele contempla atualmente vítimas da própria imprevidência causalhe impressão muito mais forte do que o espetáculo do suplício que o embrutece mais do que o corrige A pena de morte também não é útil pelo exemplo de crueldade que oferece ao homem Se as paixões ou as neces sidades da guerra o ensinaram a derramar o sangue humano as leis moderadoras da conduta do homem não deveriam aumentar jamais o feroz exemplo tanto mais funesto quanto mais a morte jurídica é ministrada com estudo e com formalidade Parece absurdo que as leis expressão da vontade pública que repelem e punem o homicídio o cometam elas mesmas e que para dissuadir os cidadãos do assassinato ordenem o homícidio público Quais são as verdadeiras e mais úteis leis São todos os pactos e todas as condições que os homens desejariam propor e observar enquanto a voz sempre presente do interesse privado se cala ou se funde com a do interesse público Quais são as opiniões de cada um sobre a pena de morte Elas manifesam se nos atos de indignação e de desprezo de cada um ao aVIstar o carrasco que é no entanto mero e inocente executor da vontade pública bom cidadão que contribui para o bem coletlvo instrumento necessário à segurança pública interna coo S valorosos soldados o são para a segurança externa Qual e pOiS a origem dessa contradição E por que sse sentimento a despeito da razão é indelével nos homens E qu no fundo de seus corações onde mais se preserva a forma onmal a vela natureza os homens sempre acreditaram que sua VIda nao podIa estar e poder de ninguém a não ser da necessidade que rege o universo com mão de ferro Que devem pensar os homens ao ver os sáios magistras e os graves sacerdotes da justiça que com mdlferente tranqm lidade e aparato vagaroso conduzem o réu à morte Enquanto o miserável se debate em sua derradeira angústia à espera do golpe de misericórdia continua o juiz com insnível friza e quem sabe com secreta complacência pela propna auondd a degustar o conforto e os prazeres da vida Essas leiS dlrao os homens nada mais são do que pretextos da força e as formalidades cruéis e meditadas da justiça no passam de linguagem convencional para imolarnos con malr serança como vítimas imoladas em sacrifício ao laolo msaczavel do despotismo Vemos praticar sem repugnância e sem furor o homlclalO que nos é apontado como um crimeterrível Aprovetemo este exemplo Nas descrições que nos fazzam da morte nos a vzams violenta como uma cena terrível Vemola agora como questao de um momento E menos ainda ela será para aquele que não lhe estando à espera se vê poupado de tudo o que ela tem de doloroso Tais são os funestos paralogismos que se não com clareza confusamente pelo menos tornam os homens propensos aos deiitos nos quais como vimos o abuso da religião pode mais do que a própria religião Se me refutarem invocando os exemplos de quase todos os séculos e de quase todas as nações que aplicaram a pena 96 DOS DELITOS E DAS PENAS DA PENA DE MORTE 97 de morte a certos crimes responderei que esse exemplo se anula diante da verdade contra a qual não corre a prescrição que a história da humanidade nos dá a idéia de imenso oceano de erros do qual emergem a grandes intervalos algumas poucas verdades confusas Sacrifícios humanos eram cpmuns em quase todas as nações mas quem ousará desculpálos O fato de que algumas sociedades tenham abolido por pouco tempo a pena de morte mais me favorece do que me desabona porque o destino das grandes verdades é o de não durar mais do que um relâmpago em comparação com a longa e tenebrosa noite que envolve os homens Ainda não chegou a época afortunada em que a verdade como o erro até agora pertencerá à maioria Dessa lei universal só se subtraíram até agora as grandes verdades que a Sabedoria infinita quis separar das outras por meio da Revelação A palavra do filósofo é muito débil contra os tumultos e os gritos dos que são guiados pelos cegos costumes mas os poucos sábios que estão espalhados pela face da terra acompa nharão a minha voz no fundo de seus corações e se a verdade pudesse alcançar o trono entre os infinitos entraves que a afastam do monarca malgrado seu saiba ele que ela trouxe consigo os votos secretos de todos os homens Saiba ele que se calará na sua presença a fama sangrenta dos conquistadores e que a justa posteridade lhe reservará o primeiro lugar entre os pacíficos troféus dos Titos23 dos Antoninos 24 e dos Trajanos25 23 Tito filho de Vespasiano imperador romano de 76 a 81 cognominado as delícias do gênero humano por causa dos grandes benefícios feitos ao povo Perdi meu dia Diem perdidi tinha o hábito de dizer quando passava um dia sem que tivesse tido ocasião de praticar alguma boa ação 24 Antonino o Piedoso ou o Pio foi um dos sete imperadores romanos Nerva Trajano Adriano Antonino Marco Aurélio Vero e Cômodo que reinaram de 96 a 192 caracterizandose seu governo de 138 a 161 por notável espírito de modemção e de justiça 25 Tmjano um dos imperadores Antoninos grande organizador que reinou de 98 a 117 pc f Feliz a humanidade se pela primeira vez lhe forem ditadas leis agora que repostos nos tronos da Europa monarcas ben feitores cujo aumento de autoridade das pacíficas virtudes das ciências e das artes pais de seus povos cidadãos coroados cujo aumento de autoridade forma a felicidade dos súditos porque corta o intermediário despotismo mais cruel porque menos seguro do qual vinham sufocados os votos sempre sinceros do povo e sempre gratos quando podem unirse ao trono Digo que se esses monarcas deixam subsistir as leis antigas isto nasce da infinita dificuldade de expurgar dos erros a veneranda ferrugem de muitos séculos e isto é motivo para os cidadãos esclarecidos desejarem com maior entusiasmo o contínuo crescimento de sua autoridade DA PRISÃO 99 XXIX DA PRISÃO E RRO NÃO menos comum pnrque contrário ao fim social que é a opinião da própria segurança é deixar ao magistrado executor das leis o alvedrio de prender o cidadão de tirar a liberdade do inimigo sob frívolos pretextos e de deixar o amigo impune mesmo havendo os mais fortes indícios de culpabilidade Prisão é pena que por necessidade deve diver samente de todas as outras ser precedida da declaração do delito mas este caráter distintivo não lhe tira o outro traço essencial a saber que somente a lei determine os casos em que o homem merece a pena Assim a lei apontará os indícios do delito que exige a guarda do réu sujeitandoo a um interrogatório e a uma pena O clamor público a fuga a confissão extrajudicial o depoimento do companheiro do delito as ameaças e a constante inimizade com o ofendido o corpo de delito e indícios seme lhantes são provas suficientes para prender o cidadão mas tais provas devem ser enumeradas pela lei e não pelo juiz cujos decretos são sempre opostos à liberdade política quando não sejam proposições particulares de uma máxima geral existente no código público À medida que as penas forem moderadas que a desolação e a fome forem eliminadas das prisões que enfim a compaixão e a humanidade adentrarem as portas de ferro e prevalecerem sobre os inexoráveis e endurecidos ministros da justiça as leis poderão contentarse com indícios sempre mais fracos para a prisão O homem acusado de delito encarcerado e depois absolvido não deveria trazer consigo nenhuma nota de infâmia Quantos romanos acusados de delitos gravíssimos e depois considerados inocentesforam reverenciados pelo povo e honrados com magistraturas Por que razão pois é tão diferente em nossos dias a absolvição de um inocente É porque no sistema penal de hoje segundo a opinião dos homens prevalece a idéia da força e da prepotência sobre a da justiça porque se atiram indistintamente no mesmo cárcere não só os acusados como os condenados porque a prisão é mais lugar de suplício do que de custódia do réu e porque a força interna tutora das leis é separada da força externa defensora do trono e da nação quando deveriam estar unidas Assim a primeira por causa do apoio comum das leis seria combinada com a faculdade de julgar sem depender de sua autoridade imediata e a glória que acompanha a pompa e o fausto de um corpo militar tolheria a infâmia a qual como todos os sentimentos populares está mais ligada ao modo do que à coisa o que está provado por serem as prisões militares na opinião comum não tão infamantes como as forenses Perduram ainda no povo nos costumes e nas leis sempre atrasadas em mais de um século de bondade em relação às luzes atuais de uma nação as bárbaras impressões e as ferozes idéias dos nossos pais setentrionais caçadores Sustentaram alguns que onde quer que se cometa o crime isto é a ação contrária às leis possa ele ser punido como se o caráter do súdito fosse indelével sinônimo ou pior ainda do de escravo Como se alguém pudesse ser súdito de um lugar e habitar em outro e suas ações pudessem sem contradição subordinarse a dois soberanos e a dois códigos muitas vezes contraditórios Alguns crêem igualmente que uma ação cruel praticada por exemplo em Constantinopla possa ser punida em Paris pela abstrata razão de que quem ofende a humanidade merece ter toda a humanidade como inimiga bem como a execração pública como se os juízes vingadores o fossem da sensibilidade dos homens mais do que dos pactos que os ligam entre si O lugar da pena é o lugar do delito porque aí somente 100 DOS DELITOS E DAS PENAS e não em outro lugar os homens são obrigados a ofender um particular para prevenir a ofensa pública O criminoso que não tenha infringido os pactos de uma sociedade da qual não era membro pode ser temido e por isso exilado e excluído pela força superior da sociedade mas não punido com as formalidades das leis asseguradoras dos pactos desse país nem por causa da malícia intrínseca de suas ações Costumam os réus de delitos mais leves ser punidos ou com a escuridão de uma prisão ou ser enviados como exemplo a uma longínqua e portanto quase inútil escravidão a nações que não ofenderam Se os homens num momento não se decidem a cometer os mais graves delitos a pena pública para uma grande infração será considerada pela maioria como estranha e impos sível de ocorrer mas a pena pública de delitos mais leves dos quais o espírito está mais próximo causará sobre ele impressão que desviandolhe a atenção destes últimos o afastará ainda mais dos delitos mais graves Não devem as penas ser somente proporcionais entre si e aos delitos em intensidade apenas mas também no modo de aplicação Alguns eximem de pena o pequeno delito quando o ofendido o perdoa ato este conforme à benevolência à humanidade mas contrário ao bem público como se o particular pudesse dando o perdão liminar a necessidade do castigo da mesma forma que pode renunciar ao ressarcimento da ofensa O direito de mandar punir não é de um só mas de todos os cidadãos ou do soberano Ele pode renunciar somente à sua porção de direito mas não anular a dos outros xxx PROCESSOS E PRESCRIÇÕES C ONHECIDAS as provas e calculada a certeza do crime necessário é conceder ao réu tempo e meios conve nientes para justificarse mas tempo bastante breve que não prejudique a rapidez da pena que como vimos é um dos principais freios dos delitos Um mal entendido amor pela humanidade parece contrário a essa brevidade de tempo mas qualquer dúvida desaparecerá se se refletir que os perigos para os inocentes crescem com os defeitos da legislação As leis porém devem fixar um certo prazo de tempo tanto para a defesa do réu como para as provas dos delitos e o juiz se tornaria legislador se acaso decidisse sobre o tempo necessário para a prova do delito Do mesmo modo os crimes cruéis que permanecem longo tempo na lembrança dos homens assim que provados não merecem prescrição alguma em favor do réu que se livra pela fuga Nos delitos menores e obscuros entretanto a prescrição deve pôr fim à incerteza do cidadão quanto à sua sorte pois a obscuridade envolvendo por muito tempo os delitos anula o exemplo da impunidade deixando entretanto ao réu a possibilidade de redimirse Bastame aqui indicar esses princípios pois só se pode fixar limite preciso para cada legislador dadas as circunstâncias de uma dada sociedade Acrescentarei somente que provada a utilidade das penas moderadas duma nação as leis que proporcionalmente à gra 102 DOS DELITOS E DAS PENAS PROCESSOS E PRESCRIÇÕES 103 vidade dos delitos reduzem ou acrescem seu tempo da prescri ção ou o prazo das provas contando o encarceramento ou o exílio voluntário como integrante da pena chegarão facilmente a estabelecer a classificação de poucas penas suaves para grande número de delitos Tais prazos porém não aumentarão na mesma proporção da atrocidade dos delitos uma vez que a probabilidade dos crimes está na razão inversa de sua crueldade Será preciso pois reduzir o tempo de instrução e aumentar o da prescrição o que parece contradizer minha afirmação anterior isto é que penas iguais possam ser aplicadas a delitos desiguais contando como pena o tempo de prisão ou de prescrição anteriores à sentença Para explicar ao leitor minha idéia distingo duas espécies de delitos a primeira é a dos delitos atrozes que começam pelo homicídio e que compreendem todos os ulteriores atos crimi nosos a segunda é a dos delitos menores distinção esta que tem fundamento na natureza humana A segurança da própria vida é um direito natural a segurança dos bens é um direito social O número de motivos que impelem os homens além do natural sentimento de piedade é muito inferior ao número de motivos que pela natural ambição de serem felizes os induzem a violar o direito que não encontram em seus corações mas sim nas convenções sociais A maior diferença de probabilidades entre essas duas espécies de delitos exige que se regulem por princípios diferentes Nos delitos mais graves por serem mais raros deve reduzirse o tempo de instrução por causa da maior probabilidade de inocência do réu devendo aumentar o prazo da prescrição pois da sentença definitiva da inocência ou da culpabilidade de um homem depende o fim de sua ilusão de impunidade cujos danos aumentam conforme a gravidade do delito Nos delitos menores porém sendo menos provável a inocência do réu deverá somarse o tempo da instrução e sendo menores os danos da impunidade será menor o prazo da prescrição Essa distinção dos delitos em duas espécies não seria admissível se o risco da impunidade diminuísse na proporção da probabilidade do delito Observese que o acusado do qual não se provou nem a inocência nem a culpabilidade embora absolvido por falta de provas poderá sujeitarse pelo mesmo delito a nova prisão e a novos interrogatórios se surgirem novos indícios previstos em lei enquanto não tenha decorrido o prazo de prescrição fixado para o crime Esse pelo menos é o critério que creio oportuno para defender não somente a segurança como também a liberdade dos súditos pois muito facilmente se pode favorecer uma com o prejuízo da outra já que estes dois bens que formam o inalienável e igual patrimônio de cada cidadão não sejam protegidos e custodiados o primeiro pelo aberto ou mascarado despotismo o outro pela turbulenta anarquia popular DELITOS DE PROVA DIFíCIL 105 XXXI DELITOS DE PROVA DIFÍCIL E M RAZÃo destes princípios parecerá estranho a quem não percebe que a razão quase nunca é a legisladora das nações que os delitos mais cruéis ou os mais obscuros e quiméricos isto é aqueles cuja improbabilidade for maior sejam provados pelas conjecturas e pelas provas mais frágeis e equívocas Como se o interesse das leis e dos juízes não fosse o de buscar a verdade mas o de provar o delito Como se condenar o inocente não fosse perigo tanto maior quanto maior a probabilidade da inocência relativamente à do crime Falta na maioria dos homens o vigor necessário tantQ para os grandes delitos como para as grandes virtudes razão pela qual me parece que ambas andam sempre juntas nas nações que se apóiam na atividade do governo e das paixões que conspiram contra o bem comum do que no povo ou na constante excelência das leis Nessas nações as paixões enfraquecidas parecem mais inclinadas a manter do que a melhorar a forma de governo Disto se infere conseqüência importante a de que nem sempre numa nação a ocorrência de grandes delitos prova o seu declínio Há alguns delitos que são ao mesmo tempo freqüentes na sociedade e difíceis de serem provados e neles a dificuldade da prova vale como a probabilidade da inocência e sendo o dano da impunidade tanto menos apreciável quanto mais a freqüência desses delitos depende de princípios diversos do perigo da impunidade a duração da instrução e o tempo da prescrição devem ser reduzidos igualmente E todavia o adultério e a libidinagem grega 26 delitos de difícil prova são aqueles que segundo os princípios admitidos acolhem as presunções tirâni cas as quaseprovas as semiprovas como se se pudesse ser semiinocente ou semiculpado isto é semiabsolvível ou semi punível onde a tortura exerce cruel império sobre a pessoa do acusado sobre as testemunhas e até mesmo sobre toda a família de um infeliz como ensinam com iníqua frieza alguns doutores que indicam aos juízes a norma e a lei Adultério é crime que considerado politicamente encontra força e direção em duas razões as leis variáveis dos homens e a fortíssima atração 27 que impele um sexo para o outro esta é semelhante em muitos casos à gravitação motriz do universo porque da mesma maneira diminui com a distância e se uma modifica todos os movimentos dos corpos a outra age sobre quase todos os movimentos do espírito enquanto dura o seu período diferindo no fato de que a força de gravidade se equilibra com os obstáculos que encontra mas a atração entre os sexos geralmente adquire força e vigor com o crescimento dos próprios obstáculos Se eu tivesse que dissertar a nações ainda privadas da luz da religião diria que há ainda considerável diferença entre este delito e os outros porque este deriva do abuso de uma necessidade constante e universal a toda a humanidade neces sidade anterior e aliás fundadora da própria sociedade onde ps outros delitos destruidores dessa sociedade têm origem determi nada mais em paixões momentâneas do que em necessidade natural Para quem conhece a história e o homem tal neces 26 Referese à sodomia 27 Esta atração se parece sob vários aspectos com a gravitação universal A força dessas causas diminui com a distância Se a gravitação modifica os movimentos dos corpos a atração natural de um sexo para outro afeta todos os movimentos da alma enquanto durar a atividade Essas causas diferem pelo fato de que a gravitação se equilibra com os obstáculos que encontra ao passo que a paixão do amor adquire com os obstáculos mais força e vigor Nota de Beccaria 106 DOS DELITOS E DAS PENAS DELITOS DE PROVA DIFíCIL 107 sidade em dado clima parece ser igual a uma quantidade constante Se isso fosse verdade seriam inúteis e aliás perni ciosas as leis e os costumes que procurassem diminuir a soma total pois seu efeito seria o de aumentar parte das necessidades próprias e alheias Sábias seriam ao contrário as leis que por assim dizer seguindo a inclinação natural do plano dividissem e distribuíssem a soma total em iguais e pequenas porções capazes de impedir uniformemente por toda parte as secas e as inundações A fidelidade conjugal é sempre proporcional ao número e à liberdade dos casamentos Onde estes obedecem a preconceitos hereditários onde o poder do lar os combina e separa a galanteria rompe secretamente esses laços em prejuízo da moral vulgar que tem por função protestar contra os efeitos perdoando as causas Mas não há necessidade de tais reflexões para quem vivendo na verdadeira religião tem motivos mais nobres para corrigir a força dos efeitos naturais Cometer tal delito é ação tão instantânea e misteriosa tão coberta por aquele mesmo véu estendido pelas leis véu necessário mas frágil que aumenta o valor da coisa em vez de reduzilo as ocasiões são tão fáceis as conseqüências tão equívocas que está mais nas mãos do legislador prevenilo do que corrigilo Regra geral em cada delito que porventura deva geralmente ficar impune a pena tomase um incentivo É próprio de nossa imaginação que as dificuldades se não são intranspôníveis ou demasiado grandes relativamente à preguiça da alma de cada homem excitam mais vivamente a mente e engrandecem o objeto pois elas são quase outras tantas barreiras impedindo o espírito errante e volúvel de abandonar tal objeto e constrangendoo a considerálo sob todos os aspectos fazemno mais fortemente se apegar ao lado agradável ao qual mais naturalmente o nosso ânimo se atira do que ao lado doloroso e funesto do qual foge e se afasta A antiga Vênus28 tão severamente punida pelas leis e tão facilmente submetida aos tormentos vencedores da inocência 1 fundamentase menos nas necessidades do homem isolado e livre 28 Em outro texto está ática Vênus homossexualismo do que nas paixões do homem sociável e escravo Ela retira a força não tanto da saciedade dos prazeres do que da educação que começa por tomar os homens inúteis a si mesmos para torná los úteis aos outros naqueles casos onde se condensa uma juventude ardente e onde havendo diques intransponíveis para qualquer outro tipo de relacionamento todo o vigor da natureza que se desenvolve é inutilmente consumido pela humanidade e a velhice é antecipada O infanticídi029 é igualmente efeito de inevitável contra dição em que é colocada a mulher que por fraqueza ou por violência tenha cedido Quem se encontra entre a infâmia e a morte do ser a quem essa infâmia não afeta como não preferirá tal morte à miséria infalível a que ela e o rebento infeliz ficariam expostos Melhor maneira de prevenir tal delito seria a de proteger com leis eficazes a fraqueza contra a tirania que exagera os vícios que não podem ser cobertos com o manto da virtude Não pretendo minimizar a justa aversão que estes crimes causam mas indicandolhes as fontes creiome no direito de poder extrair daí uma conseqüência geral a saber que não se possa denominar precisamente de justa o que quer dize necessária a pena de um crime até que a lei em certas circunstâncias de uma nação não tenha aplicado os melhores meios para prevenilo 29 Aborto SUIcíDIO 109 XXXII SUICÍDIO S UIcímo é crime que parece não poder admitir pena propriamente dita pois ela só poderia incidir sobre inocentes ou sobre o corpo frio e insensível Se neste último caso a pena não há de impressionar os vivos mais do que o chicotear uma estátua no primeiro caso ela é injusta e tirânica porque a liberdade política dos homens supõe necessariamente que as penas sejam estritamente pessoais Os homens amam demasiado a vida e tudo o que os cerca confirma tal sentimento A sedutora imagem do prazer e a esperança dulcíssimo engano dos mortais em nome da qual bebem eles a grande sorvos o mal misturado com algumas gotas de contentamento deleitaos muito para temer que a necessária impunidade do suicídio tenha alguma influência sobre os homens Quem teme a dor obedece às leis mas todas as fontes dessa dor se extinguem no corpo pela morte Qual será então o motivo que poderá deter a mão desesperada do suicida Aquele que se mata comete um mal menor à sociedade do que aquele que lhe atravessa para sempre as fronteiras pois o primeiro deixa para trás todos os bens mas o segundo se transfere com boa parte dos haveres Assim se a força da sociedade consiste no número dos cidadãos aquele que renuncia à nação para entregarse a uma nação vizinha causa dano duas vezes maior do que aquele que simplesmente renuncia à sociedade pela morte A questão reduzse pois a saber se é útil ou nocivo à nação deixar a cada um de seus membros liberdade total para abandonála Não deverá ser promulgada nenhuma lei que não seja fortalecida 30 ou que a natureza das circunstâncias tome insubsis tente e assim como a opinião dirige os ânimos obedecendo às impressões lentas e indiretas do legislador e resiste às impressões diretas e violentas assim também as leis inúteis desprezadas pelos homens comunicam seu aviltamento às leis mais salutares que são resguardadas mais como óbice a ser superado do que como depósito do bem comum Ora se como foi dito nossos sentimentos são limitados quanto maior for a veneração dos homens por objetos estranhos às leis menor será a que sobrará para as próprias leis Desse princípio o sábio provedor da felicidade pública pode extrair algumas úteis conseqüências que para serem expostas muito me afastariam do meu assunto que é o de provar a inutilidade de fazer do Estado uma prisão Lei nesse sentido seria inútil pois a não ser que rochedos inacessíveis ou mar encapelado separem os países uns dos outros como fechar todos os pontos de suas fronteiras Como vigiar os vigilantes Quem tudo carrega consigo não pode ser punido após o fato Desde que foi cometido o delito não pode ser punido e punilo por antecipação seria punir a vontade dos homens e não as ações Seria comandar a intenção a parte mais livre do homem em relação ao império das leis humanas Punir o ausente pelos bens que deixou além de facilitar o inevitável conluio que não pode ser impedido sem tiranizar os contratos paralisaria todo comércio de nação a nação Punir o réu após sua volta impedindo que ele reparasse o mal causado à sociedade perpetuaria as ausências A própria proibição de sair de um país aumenta nos nacionais o desejo de fazêlo e é uma advertência aos estrangeiros que ingressem Que deveremos pensar do governo que não possui outro meio a não ser o temor para conservar os homens naturalmente vinculados ao solo pátrio pelas primeiras impressões da infância 30 Legge armada ou fortalecida é a lei que comina pena 110 DOS DELITOS E DAS PENAS SUIcíDIO 111 A mais segura maneira de ligar os cidadãos à pátria é aumentar o bemestar relativo de cada um Assim como todo esforço deve ser feito para equilibrar a balança comercial a nosso favor também é interesse supremo do soberano e da nação que o total de felicidade comparado com o das outras nações seja maior do que o de qualquer outra Os prazeres do luxo 31 não são os principais elementos desta felicidade embora impedindo que a riqueza se acumulasse nas mãos de um só sejam um remédio necessário à desigualdade que cresce com o progresso de uma nação Quando as fronteiras de um país aumentam em proporção maior do que a sua população o luxo favorece o despotismo já que quanto menor for o número de homens tanto menor será a produção e quanto menor for a produção tanto maior será a dependência da pobreza em relação ao fausto e mais difícil e menos temida a reunião dos oprimidos contra os opressores pois as bajulações os cargos as distinções e a submissão que tornam mais flagrante a distância entre o forte e o fraco se obtêm mais facilmente de poucos do que de muitos sendo os homens tanto mais independentes quando menos vigiados e menos vigiados quando maior é seu número Se a população de um país aumenta em proporção maior do que suas fronteiras o luxo contrapõese ao despotismo pois estimula o trabalho e a atividade dos homens e a necessidade oferece prazeres e conforto em demasia ao rico para que os da ostentação que aumentam o sentimento de dependência ocupem o lugar melhor Podese pois observar que nos Estados vastos mas fracos e despovoados a menos que outras razões não se ergam como obstáculo o luxo de ostentação prevalece sobre o de conforto mas nos Estados mais povoados do que vastos porém o luxo do conforto sempre reduz o da ostentação O comércio e a circulação dos prazeres do luxo 32 apresentam o seguinte inconveniente qual 31 e 32 O comércio a troca dos prazeres do luxo não deixa de ter inconvenientes Tais prazeres são preparados por muitos agentes mas partem de um pequeno número de mãos e irradiam a um pequeno número de homens A maioria s6 raramente pode privá los em pequena proporção Eis porque o homem se lamenta da miséria mas esse sentimento é apenas o efeito da comparação nada tendo de real Nota de Beccaria seja o que tudo que se faça por intermédio de muitos começa no entanto com poucos e termina com poucos e pouquíssimos são os que tiram proveito o que não impede o sentimento da miséria ocasionado mais pela comparação do que pela realidade A segurança e a liberdade limitadas unicamente pelas leis são porém o que forma a base principal desta felicidade com a qual os prazeres do luxo favorecem a população e sem elas se tomam instrumento da tirania Assim como os animais mais generosos e os pássaros mais livres se refugiam na solidão ou nos bosques inacessíveis abandonando os férteis e ridentes campos ao homem insidioso também os homens fogem dos próprios prazeres quando a tirania é que os oferece Está pois demonstrado que se a lei que prende os súditos a seu país é inútil e injusta também o será a lei que condena o suicídio Por isso embora seja culpa que Deus pune o único que pode punir após a morte não é delito diante dos homens pois a pena em vez de incidir sobre o réu incide sobre sua família Se alguém me contestasse que tal pena pudesse no entanto impedir um determinado homem a suicidarse eu responderia que quem renuncia tranqüilamente ao bem da vida que odeia a existência aqui no mundo a ponto de trocála por uma infeliz eternidade não se comoverá decerto pela menos eficaz e mais distante consideração dos filhos ou dos pais CO NTRABANDO 113 XXXIII CONTRABANDO C ONTRABANOO é um verdadeiro delito que prejudica o soberano e a nação mas cuja pena não deve ser infamante porque cometido não produz infâmia na opinião pública Quem pune com penas infamantes crimes que não são reputados como tais pelos homens abranda o sentimento de infâmia para os que o são Quem pretenda a aplicação da própria pena de morte por exemplo para quem mata o faisão e para quem comete homicídio ou falsifica escrito relevante não fará diferença alguma entre estes delitos destruindo assim os sentimentos morais obra de muitos séculos e de muito sangue lentíssimos e difíceis de impressionar o espírito humano e para cujo nascimento se julgou necessária a ajuda dos mais sublimes motivos e de todo um aparato de graves formalidades Este crime nasce da própria lei pois aumentando o imposto alfandegário aumenta sempre a vantagem e portanto a tentação de praticar o contrabando e a facilidade de cometêlo aumenta com a extensão da fronteira a ser fiscalizada e com a diminuição do volume da própria mercadoria A pena de perder não somente os bens contrabandeados como as coisas que os acompanham é justíssima mas será tanto mais eficaz quanto menor for o imposto porque os homens só se arriscam na proporção direta da vantagem que lhes propiciaria o feliz êxito do empreendi mento Entretanto como é que este delito jamais gera infâmia para o autor sendo furto feito ao príncipe e por conseguinte à própria nação Respondo que os danos que os homens acreditam não lhes devam ser feitos não lhes interessam o suficiente para produzir a indignação pública contra os ofensores Tal é o contrabando Os homens sobre os quais as conseqüências remotas causam fraquíssimas impressões não enxergam o dano que lhes pode causar o contrabando Assim muitas vezes usufruemlhe as vantagens presentes apresentadas por ele não percebendo o prejuízo causado ao príncipe Assim não se interessam tanto em ficar privados de aprovação de quem pratica o contrabando quanto em punir aquele que comete o furto privado falsifica documento e produz outros males que os possam atingir Princípio evidente de que todo ser sensível só se interessa pelos males que conhece Deverseia porém deixar sem castigo tal delito contra quem nada tem a perder Não Há contrabandos que interessam de tal forma à natureza do imposto parte essencial e difícil da boa legislação que esse delito merece severíssima pena até prisão e escravidão mas prisão e escravidão adequadas à natureza do delito Por exemplo a prisão do contrabandista de cigarro não deve ser a mesma que a do assassino ou a do ladrão e os trabalhos do contrabandista ficam limitados ao trabalho e ao serviço do próprio Fisco que ele quis fraudar sendo os mais adequados à natureza da pena DOS DEVEDORES 115 XXXIV DOS DEVEDORES A BOAFÉ nos contratos e a segurança do comércio levam o legislador a assegurar aos credores as pessoas dos devedores falidos mas julgo importante distinguir o falido doloso do falido inocente O primeiro deveria ser punido com a mesma pena corninada aos falsários de moedas pois falsificar peça de metal cunhado penhor das obrigações do cidadão não é crime aior do que o de falsificar as pr6prias obrigações mas o falido lOocente aquele que ap6srigoroso exame prova diante do juiz que a malícia ou a desgraça alheia ou vicissitudes inevitáveis da humana prudência o despojaram dos bens deverá ser atirado à prisão e privado do único e triste bem que lhe resta a nua e crua liberdade Por que deverá ele experimentar as angústias dos culpados e com o desespero de sua probidade oprimida arrependerse quem sabe da tranqüila inocência em que vivia sob a tutela das leis que não estava em seu poder poupar do dano Leis ditadas pela avidez dos poderosos e suportadas pelos fracos graças à esperança que sempre reluz no ânimo humano fazendonos acreditar que as vicissitudes adversas são para os outros e as vantajosas para n6s Abandonados a seus sentimentos os mais 6bvios os homens amam as leis cruéis embora sujeito a elas Seria do interesse de cada um que elas fossem moderadas porque maior é o temor de ser ofendido do que a vontade de ofender Retomando ao inocente falido digo que se a obrigação dele há de ser inextinguível até o total pagamento se não lhe for concedido subtrairse a ela sem o consentimento das partes interessadas e de transferir para outra jurisdição sua atividade a qual por lei deveria ser empregada para tomar a colocálo em condições de pagar dívidas Qual será então o pretexto legítimo como a segurança do comércio ou a sagrada proprie dade dos bens que justifique a inútil privação da liberdade exceto no caso raríssimo aliás em que supondose um exame rigoroso os males da escravidão ocasionassem a revelação dos segredos de um suposto falido inocente Considero máxima legislativa aquela em que o valor dos inconvenientes políticos varia na razão direta do dano público e na razão inversa da improbabilidade de verificarse Poderseia distinguir o dolo da culpa grave a grave da leve e esta da perfeita inocência cominando à primeira as sanções previstas para o crime de falsificação à segunda penas menores com privação da liber dade reservando à última a livre escolha dos meios para recuperarse negando à terceira a liberdade de fazêlo e outorgando aos credores a mesma liberdade A distinção entre pena grave e pena leve entretanto deve ser estabelecida pela cega e imparcial lei e não pela arbitrária e perigosa prudência dos juízes A fixação dos limites é assim tão necessária na política como na matemática tanto na medida do bem comum como na medida das grandezas Com que facilidade o previdente legislador poderia impedir grande parte das falências fraudulentas e remediar as desgraças do inocente laboriosop3 O público e manifesto registro de todos os contratos a liberdade de todos os cidadãos de consultar documentos bem ordenados um banco público formado por 33 Nas primeiras edições desta obra eu mesmo cometi este erro Ousei dizer que o falido de boafé deveria ser conservado como penhor da dívida contraída reduzido ao estado de escravidão e obrigado a trabalhar por conta dos credores Envergonhome de ter escrito essas coisas cruéis Acusaramme de impiedade e de sedição sem que eu fosse sedicioso nem ímpio Ataquei os direitos da humanidade e ninguém se levantou contra mim Nota de Beccaria 116 DOS DELITOS E DAS PENAS impostos sabiamente incidentes sobre o comércio feliz e desti nado a socorrer com somas convenientes o infeliz e inocente comerciante não teriam nenhum real inconveniente e poderiam trazer inúmeras vantagens mas as fáceis simples e grandes leis somente aguardam o aceno do legislador para disseminar no seio da nação o vigor e a robusteza leis essas que o recompensariam de geração em geração com hinos imortais de reconhecimento são as menos conhecidas ou as menos desejadas O espírito inquieto e mesquinho a tímida prudência do momento presente a circunspecta rigidez diante das notícias apoderamse dos sentimentos de quem concatena a grande quantidade de ações dos pequenos mortais xxxv ASILOS R ESTAMME ainda dnas questões para exame uma a de saber se os asilos são justos a outra se o pacto da permuta recíproca de réus entre nações é útil ou não Dentro dos limites de um país não deve haver lugar nenhum infenso às leis A força da lei deve seguir o cidadão como a sombra segue o corpo A impunidade e o asilo diferem só em grau e como a impressão da pena consiste mais na segurança de encontrála do que em sua força os asilos mais convidam o homem ao delito do que as penas dele o afastam Multiplicar asilos é criar outras tantas pequenas soberanias porque onde as leis não vigoram novas leis opostas às comuns podem formarse e portanto com espírito contrário ao do corpo inteiro da sociedade A história demonstra que dos asilos grandes revoluções saíram nos Estados e nas opiniões dos homens mas a utilidade ou não da permuta recíproca dos réus entre nações é questão que eu não ousaria resolver enquanto leis mais adequadas às necessidades da humanidade penas mais suaves e a extinção da dependência do arbítrio e da opinião não garantirem a segurança da inocência oprimida e da virtude detestada enquanto a tirania não for totalmente limitada às vastas planícies da Ásia pela razão universal que une cada vez mais os interesses do trono aos dos súditos e não obstante a convicção de não achar um só palmo de terra que perdoe os verdadeiros delitos pudessem ser meio eficacíssimo para prevenilos DA RECOMPENSA 119 XXXVI DA RECOMPENSA A OUIRA questão referese à utilidade ou não de pôr a prêmio a cabeça de um homem notoriamente réu armando o braço de cada cidadão e fazendo dele um carrasco Ou o réu está além das fronteiras ou dentro delas No primeiro caso o soberano estimula os cidadãos a cometerem delitos e os expõe ao castigo praticando assim injustiça e usurpação de soberania em território alheio autorizando assim outras nações a agirem do mesmo modo No segundo ele exibe a própria fraqueza Quem tem força para defenderse não procura comprá la Além disso semelhante edito subverte todas as idéias de moral e de virtude que ao menor sopro de vento se desvanecem no espírito humano As leis ora convidam à traição ora a castigam Por um lado com uma mão o legislador estreita os laços de fanulia de parentesco de amizade e por outro com a outra premia quem quebra esses laços sempre contradizendo a si mesmo ora convidando os ânimos desconfiados dos homens à confiança ora espalhando a desconfiança em todos os corações Ao invés de prevenir o delito dá origem a outros cem São estes os expedientes das nações fracas cujas leis não passam de restaurações momentâneas de edifício em ruínas que se está desmoronando À medida que crescem as luzes de uma nação a boa fé e a confiança recíprocas tomamse necessárias e cada vez mais tendem elas a confundirse com a verdadeira política Os artifícios as cabalas as estradas obscuras e indiretas são no mais das vezes previsíveis e a sensibilidade de todos reduz a sensibilidade de cada um em particular Os próprios séculos de ignorância nos quais a moral pública obrigava os homens a obedecerem à moral privada servem de instrução e de experiência aos séculos esclarecidos mas as leis que premiam a traição e que suscitam uma guerra clandestina espalhando a desconfiança recíproca entre os cidadãos se opõem a esta tão necessária união da moral e da política a qual os homens deveriam a felicidade às nações a paz e ao universo um mais longo período de tranqüilidade e de repouso dos males pelos quais antes passaram TENTATIVAS CÚMPLICES E IMPUNIDADE 121 XXXVII TENTATIVAS CÚMPLICES E IMPUNIDADE N Áo É PORQUE as leis não castiguem a intenção qne o crime deixe de merecer pena delito que comece com ação que revele o ânimo de cometêlo ainda que a pena seja menor do que a aplicável à própria prática do delito A importância de prevenir a tentativa autoriza a pena mas assim como pode haver intervalo entre tentativa e execução reservar pena maior ao delito consumado pode ocasionar o arrependimento Digase o mesmo quando houver vários cúmplices do delito e não todos eles executores imediatos mas por diferentes motivos Quando vários homens se unem num risco quanto maior for esse risco tanto mais eles procuram tornálo igual para todos Será pois mais difícil achar quem se contente com o papel de executor do delito correndo maior risco do que os outros cúmplices A única exceção seria a da hipótese em que fosse prometido prêmio ao executor caso em que tendo ele então recompensa pelo risco maior a pena deveria ser igual Tais reflexões parecerão demasiadamente metafísicas a quem não meditar quão útil seria que as leis propiciassem menos razões de acordo possível entre os cúmplices de um delito Alguns tribunais oferecem a impunidade ao cúmplice de grave delito que delatasse os companheiros Tal expediente tem incovenienes e vantagens Os inconvenientes são que a nação estana autorIzando a delação detestável mesmo entre criminosos porque são menos fatais a uma nação os delitos de coragem que os de vilania porque o primeiro não é freqüente já que só espera uma força benéfica e motriz que o faça conspirar contra o bem público enquanto que a segunda é mais comum e contagiosa e sempre se concentra mais em si mesma Além disso o tribunal mostra a própria incerteza a fraqueza da lei que implora ajuda de quem a infringe As vantagens consistem na prevenção dos delitos relevantes que por terem efeitos evidentes e autores ocultos atemorizam o povo Além disso contribui para mostrar que quem não tem fé nas leis isto é no poder público é provável que também não confie no particular Pareceme que lei geral que prometesse impunidade ao cúmplice delator de qualquer delito seria preferível a uma declaração especial em caso particular porque assim preveniria as uniões pelo temor recí proco que cada cúmplice teria de exporse e o tribunal não tornaria audaciosos os criminosos chamados a prestar socorro num caso particular Tal lei portanto deveria unir a impunidade ao banimento do delator Atormentome em vão para destruir o remorso que sinto autorizando as leis sacrossantas monumento da confiança pública base da moral humana à traição e à dissimulação Além disso que exemplo haveria para a nação se negasse a impunidade prometida e por meio de doutas cavilações arrastasse ao suplício a despeito da fé pública quem aceitou o covite das leis Não são raros tais exemplos nas nações e por ISSO não são poucos os que só concebem a nação como máquina complicada cujo mecanismo é movido pelo mais hábil e poderoso à vontade Frios e insensíveis a tudo que forma a delícia das almas ternas e sublimes eles excitam com imper turbável sagacidade os sentimentos mais caros e as paixões mais violentas tão logo percebam que elas lhes são úteis aos desígnios tocando os ânimos assim como os músicos tocam os instrumen tos XXXVIII INTERROGATÓRIOS SUGESTIVOS E DEPOIMENTOS N OSSAS leis proscrevem no processo os interrogatórios denominados sugestivos isto é aqueles que segundo os doutos indagam sobre a espécie e não como deveriam sobre o gênero nas circunstâncias de um delito a saber os interro gatórios que tendo imediata conexão com o delito sugerem aO réu imediata resposta Os interrogatórios segundo os penalistas devem por assim dizer envolver o fato como uma espiral sem jamais alcançálo por via direta Os motivos deste método so ou não sugerir ao réu réplica que o ponha a salvo da acusaçao ou talvez porque parece contrário à própria natureza que o réu se acuse imediatamente por si só Seja qualquer destes dOIS motivos frisante é a contradição das leis que junto com essa prática autorizam a tortura E com efeit ue interrogat6rio pode ser mais sugestivo do que a dor O pnelfo mtlvoocorre na tortura pois a dor sugerirá ao forte obstmado sl1êncIo para a troca da pena maior pela menor e ao fraco sugerirá a confissão para livrarse do tormento presente mais eficaz nesse momento do que a futura dor O segundo motivo é evidentemente o mesmo pois se o interrogatório especial leva contr Ô direito naral o réu à confissão as dores o conseguirão maiS facl1mente ainda mas os homens se conduzem mais pela diferença dos nomes do INTERROGATORIOS SUGESTIVOS E DEPOIMENTOS 123 que pela das coisas Entre outros abusos da gramática cuja influência nas questões humanas sempre foi grande merece realce o que torna nulo e ineficaz o depoimento do réu já condenado Ele está morto civilmente afirmam com gravidade os jurisconsultos peripatéticos e morto é incapaz de ação Sacrificouse grande número de vítimas para dar fundamento a essa vã metáfora e freqüentemente com a maior seriedade se discutiu se a verdade deveria ceder lugar ou não ao formalismo legal Desde que o depoimento do réu condenado não chegue ao ponto de perturbar o curso da justiça por que não reservar aos interesses da verdade e à extrema miséria do réu mesmo após a condenação espaço suficiente de modo que acrescendo ele elementos novos que alterem a natureza do fato permita reivindicar a si mesmo ou a outrem um novo julgamento As formalidades e o cerimonial são necessários para a administração da justiça ou porque nada deixam ao arbítrio de quem a administra ou porque sugerem ao povo julgamento não tumul tuado e parcial mas estável e regular quer enfim porque as sensações mais do que os raciocínios produzem impressões eficazes sobre os homens imitadores e escravos do hábito Tais formalidades porém nunca podem sem perigo fatal ser fixadas pela lei de modo a prejudicar a verdade a qual por ser ou demasiado simples ou demasiado complexa necessita de alguma pompa externa que a concilie com o povo ignorante Finalmente aquele que durante o interrogatório insistir em não responder às perguntas feitas merece pena fixada pelas leis pena das mais graves entre as cominadas para que os homens não faltem à necessidade do exemplo que devem ao público A pena é desnecessária quando é fora de dúvida que tal acusado tenha cometido tal delito o que torna o interrogatório inútil da mesma forma que é inútil a confissão do delito quando outras provas justificam a condenação Este último caso é o mais freqüente porque a experiência demonstra que na maior parte dos pro cessos os réus negam a culpa XXXIX DE UM GÊNERO PARTICULAR DE DELITOS Q UEM LER este escrito perceberá que deixei de mencionar um tipo de delito que cobriu a Europa de sangue humano e levantou funestas fogueiras onde corpos humanos vivos serviam de pasto às chamas Era um alegre espetáculo e uma grata harmonia para a cega multidão ouvir os confusos gemidos dos miseráveis que saíam dos vórtices negros da fumaça fumaça de membros humanos entre o ranger dos ossos carbonizados e o frigir das vísceras ainda palpitantes mas homens racionais verão que o lugar o século e a matéria não me permitem analisar a natureza de tal delito Seria tarefa muito longa e estranha a meu propósito provar a necessidade da perfeita uniformidade de pensamento no Estado contra o exemplo de muitas nações Provar como opiniões que distam entre si apenas por algumas diferenças muito sutis e obscuras muito acima da capacidade humana possam talvez ainda tumultuar o bem público a menos que uma só seja autorizada e as outras excluídas e provar ainda que a natureza das opiniões é formada de tal modo que enquanto algumas se fortalecem no contraste e se opondo se esclarecem subindo à tona as verdadeiras as falsas submergem no esquecimento enquanto outras inseguras DE UM GÊNERO PARTICULAR DE DELITOS 125 por sua nua constância devem revestirse de autoridade e de força Seria demasiado longo provar que por mais odioso que pareça o império da força sobre as mentes humanas cujas únicas conquistas são a dissimulação logo o aviltamento e por contrário que ele possa aparentemente ser ao espírito de mansidão e fraternidade ordenado pela razão e pela autoridade que mais veneramos ele é entretanto necessário e indispensável Tudo isto deve acreditarse ter sido bem provado e de acordo com os verdadeiros interesses dos homens se existe quem o exerça com reconhecida autoridade Eu só falo dos crimes que brotam da natureza humana e do pacto social e não dos pecados cujas penas ainda que temporais devem regularse por princípios diversos daqueles de uma limitada filosofia FALSAS IDÉIAS DE UTILIDADE f27 XL FALSAS IDÉIAS DE UTILIDADE F ONTE de erros e de injustiças são as falsas idéias de utilidade elaboradas pelos legisladores Falsa idéia de utilidade é a que antepõe os inconvenientes particulares ao inconveniente geral ou seja a que reprime os sentimentos ao invés de estimulálos e diz à lógica sirva Falsa idéia de utilidade é a que sacrifica mil vantagens reais a um inconveniente imaginário ou de poucas conseqüências É a que tiraria o fogo dos homens porque queima e a água porque afoga que só repara os males com a destruição As leis que proíbem portar armas são leis dessa natureza Tais leis só desarmam os que não têm vocação nem determinação para os crimes enquanto aqueles que têm a coragem de violar as leis mais sagradas da humanidade e os dispositivos mais importantes do Código respeitarão as leis menores e puramente arbitrárias tão fácil e impunemente passíveis de transgressão e cuja exata execução suprime a liberdade pessoal tão cara ao homem quanto ao legislador esclarecido e submete os inocentes a todos os vexames destinados aos réus Tais vexames colocam os agredidos em posição de inferioridade privilegiando os agressores ao invés de diminuir o número de homicídios aumentamno por ser mais confiável assaltar os desarmados do que os armados Assim se chamam as leis não preventivas dos delitos mas temerosas deles nascidas da tumultuada impressão de alguns fatos particulares e não da meditação racional dos inconvenientes e das vantagens de um decreto universal Falsa idéia de utilidade é a que pretendesse dar a uma multidão de seres sensíveis a simetria e a ordem que a matéria bruta e inanimada tolera descuidando dos motivos presentes os únicos a agir sobre a multidão com força e perseverança para fortalecer os motivos distantes que causam impressão ao mesmo tempo fraca e fugaz se uma força de imaginação incomum na humanidade não suprir a distância do objeto com o seu engrandecimento Finalmente falsa idéia de utilidade é a que sacrificando a coisa ao nome separa o bem público de todo bem particular Há diferença entre estado de sociedade e estado de natureza a saber homem selvagem só prejudica a outrem o suficiente para beneficiarse a si próprio enquanto o homem sociável é às vezes levado pelas más leis a prejudicar terceiros sem benefício para si próprio O déspota lança temor e desalento no coração dos escravos mas esses sentimentos rebatidos se voltam mais fortemente contra seu coração para atormentálo Quanto mais o temor é solitário e interno menos perigoso é para quem dele faz o instrumento de felicidade mas quanto mais se tomar público e atacar uma multidão maior de homens mais fácil será ver o imprudente o desesperado ou o destemido avisado forçar os homens a servir lhes os fins despertando neles sentimentos tanto mais gratos e sedutores quanto maior for o número de pessoas sobre as quais incide o risco da iniciativa Então o valor que os infelizes atribuem à própria existência diminui na proporção da miséria que sofrem Esta é a razão pela qual as ofensas vão fazer nascer novas ofensas pois o ódio é sentimento mais durável do que o amor na medida em que o primeiro extrai a força da continuidade dos atos que enfraquecem o segundo COMO PREVENIR OS DELITOS 129 XLI COMO PREVENIR OS DELITOS M ELnOR prevenir os crimes que punHns Esta é a finalIdade precípua de toda boa legislação arte de conduzir os homens ao máximo de felicidade ou ao mínimo de infelicidade possível para aludir a todos os cálculos dos bens e dos males da vida entretanto os meios empregados até agora têm sido em sua maioria falsos e contrários ao fim proposto Não é possível reduzir a desordenada atividade dos homens a uma ordem geométrica sem irregularidade e sem confusão Assim como as constantes e simplicíssimas leis da natureza não impedem que os planetas se perturbem em seus movimentos assim também nas atrações infinitas e muito contrárias do praze e da dor as leis humanas não podem impedir as perturbações e a desordem Todavia essa é a quimera dos homens limitados quando têm na mão o comando Proibir grande quantidade de ações diferentes não é prevenir delitos que delas possam nascer mas criar novos é definir ao belprazer a virtude e o vício conceituados como eternos e imutáveis A que nos reduziríamos se nos fosse proibido tudo o que nos pode induzir ao delito Seria preciso privar o homem do uso dos sentidos Para cada motivo que induz os homens a cometer o verdadeiro delito há mil outros que os impelem a cometer ações indiferentes que as más leis chamam delitos E se a probabilidade dos delitos é proporcional ao número das razões ampliar a esfera dos delitos é aumentar a probabilidade de que sejam cometidos A maioria das leis não passa de privilégios isto é tributo de todos para as mãos de alguns poucos Quereis prevenir os delitos Fazei com que as leis sejam claras simples e que toda a força da nação se condense em defendêlas e nenhuma parte da nação seja empregada em destruílas Fazei com que as leis favoreçam menos as classes dos homens do que os próprios homens Fazei com que os homens as temam e temam apenas a elas O temor das leis é sadio mas fatal e fecundo em delitos é o temor de homem para homem Os homens escravos são mais voluptuosos mais libertinos e mais cruéis do que os homens livres Estes meditam sobre as ciências e sobre os interesses da nação vêem os grandes objetos e os imitam mas aqueles satisfeitos com o dia presente procuram no tumulto da libertinagem uma distração para o aniquilamento em que se encontram Afeitos à incerteza em tudo o êxito dos seus crimes tornaseIhes problemático favorecendo a paixão que os determina Se a incerteza das leis incide sobre uma nação indolente pelo clima mantém e aumenta a indolência e a estupidez Se incide sobre uma nação voluptuosa mas ativa ela desperdiça a atividade dessas leis em número infinito de pequenas cabalas e intrigas que semeiam a desconfiança nos corações e fazem da traição e da dissimulação o alicerce da prudência Se a incerteza das leis incide sobre uma nação corajosa e forte a incerteza é suprimida gerando antes muitas oscilações da liberdade para a escravidão e da escravidão para a liberdade DAS CIÊNCIAS 131 XLII DAS CIÊNCIAS QUEREIS prevenir os delitos Fazei com qne as luzes acompanhem a liberdade Os males que nascem do conhecimento estão na razão inversa de sua difusão e os bens na razão direta O audacioso impostor que é sempre um home invulgar é adorado pela plebe ignara e vaiado pelo homem esclarecido Os conhecimentos facilitando as comparações entre os objetos e multiplicando os pontos de vista contrapõem muitos sentimentos que se modificam entre si tanto mais facilmente quanto mais previsíveis são nos outros as mesmas vistas e as mesmas resistências Em face das luzes esparsas com profusão sobre a nação calase a caluniosa ignorância e treme a auto ridade desarmada de razões permanecendo imutável a vigorosa força das leis pois não há homem esclarecido que não goste dos pactos públicos claros e úteis da segurança comum ao comparar a parcela da inútil liberdade que sacrificou com a soma de todas as liberdades sacrificadas pelos outros homens os quais sem leis poderiam tornarse conspiradores contra ele Todo aquele que dotado de alma sensível lançando um olhar sobre um Código de leis bem feito e achando que nada perdeu a não ser a nefasta liberdade de prejudicar a outrem será levado a bem dizer o trono e quem o ocupa Não é verdade que as ciências tenham sido sempre preju diciais à humanidade e quando o foram tratavase de mal inevitável para os homens A multiplicação do gênero humano na face da terra inventou a guerra as artes mais rústicas as primeiras leis que eram pactos passageiros gerados pela neces sidade e que com ela pereciam Foi essa a primeira filosofia dos homens com poucos elementos corretos pois somente a indo lência e a escassa sagacidade os preservavam do erro mas as necessidades cada vez mais se multiplicavam com a multipli cação dos homens Faziamse pois necessárias impressões mais fortes e mais duradouras para dissuadilos de reiterado retorno ao primeiro estágio de insociabilidade que se tornava cada vez mais prejudicial Foram assim um grande bem para a huma nidade aqueles primeiros erros que povoaram a terra de falsas divindades refirome ao grande bem político e que imaginaram um universo invisível governador do nosso Foram benfeitores dos homens aqueles que ousaram surpreendêla arrastando até os altares a dócil ignorância Apresentandolhes objetos que lhes ultrapassavam os sentidos que lhes escapavam das mãos à medida que pensavam alcançálos que não podiam desprezar por não conhecêlos reuniram e concentraram as divididas paixões em um único objeto que os impressionava fortemente Foram essas as primeiras vicissitudes de todas as nações formadas de povos selvagens Foi essa a época de formação das grandes sociedades e foi esse o vínculo necessário e talvez o único Não falo do povo eleito de Deus para o qual os milagres extraor dinários e as graças mais conhecidas marcaram época na política humana Mas assim como é próprio do erro subdividirse ao infinito assim também as ciências nascidas de tal erro fizeram dos homens fanática multidão de cegos entrechocandose desordenadamente em labirinto fechado a ponto de alguns espíritos sensíveis e filosóficos ordenarem até mesmo o antigo estado de selvageria Eis a primeira época em que os conhe cimentos ou melhor as opiniões são prejudiciais A segunda consiste na difícil e terrível passagem do erro à verdade da obscuridade desconhecida à luz O choque imenso dos erros úteis aos poucos poderosos contra as verdades úteis 132 DOS DELITOS E DAS PENAS aos muito fracos a aproximação e o fermento das paixões que suscitam naquela ocasião causam males infinitos à mísera humanidade Quem refletir sobre a história em que certos intervalos de tempo se assemelham a períodos principais en contrará mais vezes uma geração inteira sacrificada à felicidade das que a sucederam na enlutada mas necessária passagem das trevas da ignorância à luz da filosofia da tirania à liberdade conseqüências disso Acalmados porém os ânimos e extinto o incêndio que purgou a nação dos males que a oprimiam a verdade cujos progressos são primeiro lentos depois acelera dos compartilha o trono dos monarcas e tem culto e altar nos parlamentos das repúblicas quem poderá garantir que a luz que ilumina a multidão seja mais danosa do que as trevas e que as relações simples e verdadeiras entre as coisas bem conhecidas pelos homens lhe sejam prejudiciais Se a cega ignorância é menos fatal que o medíocre e confuso saber já que este acrescenta aos males da primeira os erros inevitáveis de quem tem visão restrita ao que está junto das fronteiras da verdade o homem esclarecido é o dom mais precioso que o soberano pode ofertar à nação e a si mesmo tomandoo depositário e guardião das santas leis Acostumado à visão da verdade e não a temêla privado da maioria das necessidades da opinião que nunca suficientemente satisfeitas põem à prova o valor da maioria dos homens afeitos a contemplar a humanidade das maiores alturas diante dele a nação tomase uma família de irmãos e a distância entre os poderosos e o povo parecelhe tanto menor quanto maior é a massa humana que está diante de seus olhos Os filósofos cultivam necessidades e interesses desconhecidos da plebe ignara principalmente o de não desmentir à luz pública os princípios apregoados na obscuridade e adquirem o hábito de amar a verdade por si mesma A seleção de tais homens constitui a felicidade de uma nação Será no entanto felicidade efêmera se as boas leis não lhes aumentarem de tal modo o número que diminuam a probabilidade sempre grande de uma má seleção XLIII DOS MAGISTRADOS O UTRO meio de prevenir os delitos é o de interesar 0 Colegiado executor das leis mais pela obervancla delas do que pela corrupção Quanto maior or o numro de membros que o compõem menos perigosa sera a usurpaçao das leis porque a venalidade é mais difíil entre membros que se observam entre si e que estão menos Interessados em aumetar a própria autoridade quanto menor for a porçã que cabena a cada um principalmente se comparada com o pengo do empeen dimento Se o soberano com aparato e pompa C a austendade dos editos com a proibição das querelas justas e Injustas de uem se crê oprimido acostumar os súditos a temere aIS s magistrados do que as leis estes últimos se aprveltarao aIS desse temor do que a segurança própria e púbhca lucrara XLIV PRÊMIOS o UTRO modo d prevnir dlitos é o do recomponsar a lrtude A esse respeIto veJo que há silêncio universal na leglslaçao de todas as nações contemporaneas Se os prêmios propostos pelas academias aos descobridores das mais úteis erdades multiplicaram não só os conhecimentos como os bons hvros por qual razão os prêmios propostos pela mão benévola do soberano não multiplicariam também as ações virtuosas A moeda da honra é sempre inesgotável e frutífera nas mãos do sábio distribuidor XLV EDUCAÇÃO F iIIAiMENTE o mais sgoro mas o mais diffcil moio d prevenir o delito é o de aperfeiçoar a educação objeto muito amplo e que ultrapassa os limites a que me impus objeto que ouso também dizer estar muito intrinsecamente ligado à natureza do governo para que não seja sempre campo estéril só cultivado aqui e ali por alguns poucos estudiosos até nos mais remotos séculos da felicidade pública Um grâhde homem que iluminou a humanidade que ô perlíeguia mostrou em pormenores quais as principais miÍXimas da educação realmente úteis aos homens34 a saber preterir Utha estéril multidão de objetos em favor de uma escolha e precisâo deles substituir àS c6pias pelos originais nos fenômenos tânto motâis como físicos que o acaso e o talento apresentam aos hOvos espíritos dos jovens e impelir esses jovens à virtude pela fácil estrada do sentimento afastandoos do mal pela via infalível da necessidade e do inconveniente e não pela via incerta do comando que s6 consegue simulada e momentânea obediência 34 Referência à famosa obra Emlio ou Da educaçéIo 1762 romance filos6fico em que JeanJacques Rousseau expõe seu sistema educa cional baseado no prinCíIio de que o homem é por natureza bom sendo má a educação dadà pela sociedade pois seria melhor propidl1r edUcação negativa como a melhor ou antes como a t1nica a sef transmitida A despeito de certos pl1ràdoxos O livro de Rousseau teve influência decisiva sobre o siStema educacional da época DAS GRAÇAS 137 XLVI DAS GRAÇAS A MIIDIDA que as peuas se tomam mais brandas a clemência e o perdão tomamse menos necessários Feliz a nação onde eles pudessem ser erradicados por nefastos A clemência virtude que às vezes foi para o soberano o suplemento de todos os deveres do trono deveria ser suprimida de uma legislação perfeita em que as penas fossem brandas e o método de julgamento regular e rápido Esta verdade poderá parecer crua para quem vive na desordem do sistema penal onde o perdão e a graça são necessários na proporção do absurdo das leis e da crueldade das condenações A graça é a mais bela prerrogativa do trono e o mais desejável atributo da soberania sendo esta tácita reprovação que os benefícios geradores da felicidade pública dão a um Código que com todas as imperfeições tem a seu favor o prejulgamento dos séculos volumoso e imponente aparato de infinitos comentadores solene pompa das eternas formalidades e adesão dos mais insinuantes e menos temidos semidoutos Se se considerar porém que clemência é virtude do legislador e não do executor das leis que resplandecem no Código e não nos julgamentos particulares e que mostram aos homens que os delitos podem ser perdoados e que a pena não é sua inevitável conseqüência mas a de criar a ilusão da impunidade e a de fazer crer que as condenações não são perdoadas embora pudessem sêlo sejam antes abusos da força do que emanações da justiça Que dizer então do príncipe que outorga a graça ou seja a segurança pública a um particular e que com um ato privado de benevolência não esclarecida edita decreto público de impunidade Que as leis sejam pois inexoráveis e inexoráveis sejam também seus executores nos casos particulares mas que o legislador seja brando indulgente humano Sábio arquiteto faça surgir seu edifício na base do amor próprio e que o interesse geral seja o resultado dos interesses de cada um não sendo ele constrangido com leis parciais e remédios estapafúrdios a separar sempre o bem público do bem particular e para alçar o simulacro da salvação pública sobre o temor e sobre a desconfiança Profundo e sensível filósofo permita que os homens seus irmãos gozem em paz a pequena porção de felicidade que o imenso sistema concebido pela Causa Primeira daquele que é lhes permita desfrutar neste ângulo do universo XLVII CONCLUSÃO C ONCLUO com uma reflexllo que o grau das ponas deva ser relativo ao estado da pr6pria nação Mais fortes e sensíveis devem ser as impressões sobre os ânimos endurecidos de um povo recémsaído do estado selvagem É necessário o nua para abater o feroz leão que com o tiro do fuzil apenas se agita À medida porém que os espíritos se abrandam no estado de sociedade cresce a sensibilidade e crescendo esta deverá diminuir a intensidade da pena se se desejar manter constante a relação entre o objeto e a sensação De tudo quanto se viu até aora poderá extrairse um teorema geral muito útil mas pouco de acordo com o uso legislador por excelência das nações ou seja para que a pona não seja a violência de um ou de muitos contra o cidadão particular deverá ser essencialmente pública rápida necessária a mínima dentre as passIveis nas dadas circunstâncias ocorridas proporcional ao delito e ditada pela lei RESPOSTAS ÀS NOTAS E OBSERVAÇÕES DE UM FRADE DOMINICANO SOBRE O LIVRO DOS DELITOS E DAS PENAS E STAS Notas e Observações são mera coleção de injúrias contra o autor do livro Dos Delitos e das Penas classificado como fanático impostor escritor falso e perigoso satírico descontrolado sedutor do público É acusado de destilar o mais acre fel de reunir contradições odiosas com os traços pérfidos e escondidos da dissimulação de ser obscuro por maldade O crítico pode ficar seguro de que não responderei às injúrias pessoais Ele apresenta meu livro como obra horrível virulenta e de licenciosidade deletéria infame ímpia Nele encontra blasfêrnias impudentes ironias insolentes anedotas indecentes sutilezas perigosas pilhérias escandalosas e calúnias grosseiras A religião e o respeito que se deve aos soberanos são o pretexto para as duas mais pesadas acusações que se encontram nessas Notas e Observações Estas serão as únicas às quais me coniiderarei obrigado a responder Comecemos pela primeira 142 DOS DELITOS E DAS PENAS RESPOSTAS ÀS NOTAS E OBSERVAÇÕES 143 I ACUSAÇÕES DE IMPIEDADE 1 O autor do livro Dos Delitos e das Penas desconhece a justiça que se origina no legislador eterno que tudo vê e prevê Aqui está mais ou menos o silogismo do autor nas Notas O autor do livro Dos Delitos e das Penas não concorda que a interpretação da lei esteja na dependência da vontade e do capricho do magistrado Quem não deseja confiar a interpretação da lei à vontade e aos caprichos do magistrado não acredita na justiça que vem de Deus O autor não admite portanto justiça puramente divina 2 Segundo o autor do livro Dos Delitos e das Penas As Santas Escrituras somente contêm imposturas Em toda a obra Dos Delitos e da Penas tratase da Escritura Sagrada uma só vez é quando a propósito de erros religiosos no capítulo XLI afirmei que não falava desse povo eleito de Deus em que os milagres mais evidentes e as graças mais notáveis substituíram a política humana 3 Toda gente sensata achou no livro Dos Delitos e das Penas um inimigo do cristianismo um mau homem e um mau filósofo Não me importa parecer ao meu crítico bom ou mau filósofo Aqueles que me conhecem atestam que não sou um homem mau Serei pois inimigo do cristianismo quando insisto na manutenção da tranqüilidade dos templos sob proteção gover namental e quando afirmo ao falar da sorte das grandes verdades que a Revelação é a única que manteve sua pureza em meio às nuvens tenebrosas com que o erro envolveu o universo durante tantos séculos 4 O autor do livro Dos Delitos e das Penas fala da religião como se ela fosse simples princípio político O autor do livro Dos Delitos e das Penas chama a religião de um dom sagrado do céu Poderseia provar que ele trata como simples princípio político o que lhe parece dom sacrossanto do céu 5 O autor é inimigo declarado do Ser supremo Peço no fundo de meu coração que esse Ser supremo perdoe a todos os que me ofendem 6 Se o cristianismo provocou algumas desventuras e alguns morticínios exageraos e silencia a respeito dos benefícios e das vantagens que a luz do Evangelho disseminou por toda a humanidade Em meu livro não se achará nenhum lugar onde se apontem males provocados pelo Evangelho Não citei um só fato sequer que se relacione com isso 7 O autor lança blasfêmia contra os mImstros da religião quando afirma que suas mãos se sujaram no sangue humano Todos aqueles que escreveram a História desde Carlos Magno até Otão o Grande e ainda depois desse príncipe proferiram idêntica blasfêmia Desconhecerseá que por três séculos os abades e os bispos nenhum escrúpulo manifestaram em caminhar para a guerra E não será o caso de afirmar sem blasfêmia que os padres que se achavam no meio das batalhas e que tOJIlaram parte na carnificina sujavam as mãos de sangue humano SO Os prelados da Igreja Católica tão recomendáveis por sua suavidade e humanidade figuram no livro Dos Delitos 144 DOS DELITOS E DAS PENAS RESPOSTAS ÀS NOTAS E OBSERVAÇÕES 145 e das Penas como autores de suplícios tão bárbaros quanto inúteis Não sou culpado por ter de repetir mais de uma vez a mesma coisa Não poderá ser citada em toda minha obra uma só frase que afirme que os padres inventaram os suplícios 9 0 A heresia não pode ser chamada de crise de lesa majestade divina conforme o autor do livro Dos Delitos e das Penas Não existe em todo meu livro um só termo que dê margem a tal imputação Propusme tãosomente tratar Dos Delitos e das Penas e não dos pecados Afirmei a propósito do crime de lesamajestade que apenas a ignorância e a tirania que confundem as palavras e as idéias mais claras podem nomear assim e castigar como tais com a morte crimes de naturezas diferentes O crítico talvez não saiba como se abusa da expressão lesamajestade nas épocas de despotismo e ignorância empregandoa para designar crimes de gênero totalmente diverso pois não levavam imediatamente à destruição da sociedade Consulte a lei dos imperadores Graciano Valentiniano e Teodósio Observe como eram tidos como criminosos de lesamajestade os que ousavam duvidar da bon dade de escolha do Imperador na ocasião em que ele oferecia algum emprego Uma outra lei de Valentiniano de Teodósio e de Arcádio lhe ensinará que os moedeiros falsos também eram criminosos de lesamajestade Era necessário um decreto do Senado para libertar da acusação de lesamajestade aquele que tivesse fundido estátuas dos imperadores ainda que velhas e mutiladas Apenas depois do edito dos imperadores Severo e Antonino é que se deixou de ajuizar ação de lesamajestade contra aqueles que vendiam as estátuas dos imperadores Esses príncipes fizeram publicar um decreto que proibia a perseguição por esse delito àqueles que porventura tivessem atirado uma pedra contra a estátua de um imperador Domiciano condenou à morte uma senhora de Roma porque se despira diante de uma escultura Tibério mandou matar como criminoso de lesa majestade o cidadão que vendera a casa onde estava a estátua do imperador Em séculos menos afastados do nosso verá Henrique VIII abusar de tal maneira das leis que fez morrer mediante infame suplício o Duque de Norfolk a pretexto de lesamajestade e porque ele misturara as armas da Inglaterra com as de suà família Esse soberano até mesmo declarou réu do mesmo crime quem se atrevesse a prever a morte do príncipe Por isso quando ficou gravemente enfermo pela última vez os médicos recusa ramse a prevenilo do perigo real em que se encontrava 10 0 De acordo com o autor Dos Delitos e das Penas os hereges excomungados pela Igreja e exilados pelos príncipes são vítimas de uma palavra Todas essas interpretações são forçadas Limiteime a discorrer sobre o crime de lesamajestade humana Ora a palavra lesamajestadeserviu freqüentemente de pretexto à tirania especialmente ao tempo dos imperadores romanos Qualquer ação que tivesse a desventura de desagradálos configuraria delito de lesamajestade Suetônio afirma que o delito de lesamajestade era o crime dos que não tinham cometido nenhum delito Se eu afirmei que a ignorância e o despotismo deram esse nome a crimes de natureza diversa e fizeram os homens vítimas de uma palavra não fiz mais do que falar de acordo com a História 11 0 Não será terrível blasfêmia assegurar como faz o autor do livro Dos Delitos e das Penas que a eloqüência a declamação e as mais excelsas verdades são freio muito fraco para deter por muito tempo as paixões humanas Não julgo que a acusação de blasfêmia possa recair sobre o que afirmei da eloquência e da declamação O acusador 146 DOS DELITOS E DAS PENAS RESPOSTAS ÀS NOTAS E OBSERVAÇÕES 147 desejou certamente referirse à insuficiência que atribuo às mais sublimes virtudes Indago se considera que na Itália se conhecem essas sublimes verdades isto é as da fé Indubita velmente respondermeá que sim Contudo tais verdades ser viram de freio às paixões dos homens na Itália Todos os oradores sacros os magistrados os homens em uma só palavra garantirmeão o contrário É um fato portanto que as excelsas verdades são para as paixões ds homens um freio que não as refreia ou que logo se parte E enquanto houver em país católico juízes criminosos prisões e penas estará demonstrada a insuficiência das verdades excelsas 12 0 O autor do livro Dos Delitos e das Penas escreve imposturas sacnlegas contra a Inquisição No meu livro não menciono nem direta nem indiretamente a Inquisição Indago contudo ao meu acusador se lhe parece bem de acordo com o espírito da Igreja a condenação de homens ao suplício nas fogueiras Não é do próprio seio de Romasob os olhos do vigário de Cristo na capital da religião católica que se cumprem nos dias atuais para com os protestantes de qualquer país todos os deveres de humanidade e de hospitali dade Os últimos papas e especialmente o atual receberam e recebem com grande bondade os ingleses os holandeses e os russos Tais povos de seitas e religiões diversas desfrutam em Roma de toda liberdade e ninguém está mais seguro do que eles de gozar ali da proteção das leis e do governo 13 0 O autor do livro Dos Delitos e das Penas representa debaixo de cores odiosas as ordens religiosas e especialmente os frades Muito difícil seria apontar um só lugar de meu livro que mencionasse ordens religiosas ou frades a não ser que se interprete de modo arbitrário o capítulo em que discorro sobre a ociosidade 14 0 O autor do livro Dos Delitos e das Penas é um desses escritores sem fé para os quais os eclesiásticos são charlatães os monarcas tiranos os santos fanáticos a religião impostura e que nem sequer rspeitam a majestade do Criador contra a qual vomitam blasfêmias hediondas Passemos às acusações de sedição II ACUSAÇÕES DE SEDIÇÃO 10 O autor do livro Dos Delitos e das Penas julga déspotas cruéis todos os príncipes e todos os soberanos do século Apenas uma vez falei em meu livro dos soberanos e dos príncipes que reinam atualmente na Europa E aqui está pela primeira vez o que afirmo Venturoso o gênero humano se recebesse leis Hoje que vemos erguidos os tronos da Europa etc Ver o fim do cap XVI 2 0 Não podem deixar de surpreender a confiança e a liberdade com que o autor do livro Dos Delitos e das Penas se volta com fúria contra os monarcas e eclesiásticos A confiança e a liberdade não representam um mal Qui ambulat simpliciter ambulat confidenter qui autem depravat vias suas manifestus erit Se aplaudi certo espírito de independência dos súditos foi na proporção em que se submetessem às leis e fossem respeitosos para com os primeiros juízes Quero até que os homens não precisando recear a escravidão porém desfrutando a liberdade sob a proteção das leis se tomem soldados intrépidos defensores da pátria e do trono cidadãos cheios de virtude e juízes incorruptíveis que levem para junto do trono os tributos e o amor de todas as ordens do país e que disseminemnas 148 DOS DELITOS E DAS PENAS RESPOSTAS ÀS NOTAS E OBSERVAÇÕES 149 choupanas a segurança de um destino sempre mais doce Não estamos mais nos tempos de Calígula de Nero ou de Heliogábalo E o crítico pouquíssima justiça faz aos princípios reinantes crendo que meus preceitos possam ofendêlo 3 O autor do livro Dos Delitos e das Penas assegura que o interesse do particular supera o de toda a sociedade e em geral o dos que a representam Se tal absurdo estivesse no livro Dos Delitos e das Penas não acredito que meu adversário escrevesse um livro de 19i páginas para refutálo 4 O autor do livro Dos Delitos e das Penas não confere aos monarcas o direito de castigar com a morte Como aqui não se trata nem de religião nem de governo porém apenas da exatidão de um raciocínio meu acusador tem intira liberdade de julgar o que desejar Resumo meu silogismo aSSIm Não se deve impor a pena de morte se esta não for realmente útil e necessária ora a pena de morte não é realmente útil nem necessária Logo não se deve impor a pena de morte Este não é o lugar para uma explanação sobre os direitos dos moarcas O crítico certamente não desejará sustentar que se deva Impor a pena de morte ainda que ela não seja realmente úil nem necessária Proposta tão cruel e escandalosa não pode Ir da boca de um cristão Se a segunda parte do silogismo não e correta tratarseá de crime de lesalógica e jamais de lesa majestade sendo escusados os meus pretensos erros Parecem me eles com aqueles em que caíram tantos cristãos zelosos da primeira Igreja 34 parecemse com aqueles em que caíram os frades da época de Teodósio o Grande ao fim do século IV Em seus Anais da Itália afirma Muratori que no ano 389 Teodósio publicou uma lei pela qual determinava aos frades que ficassem nos conventos pois levavam a caridade pelo próximo até ao ponto de subtrair os criminosos das mãos da justiça não desejando que se matasse ninguém A minha caridade não vai tão longe e aceitarei de boa vontade que a daquele tempo se regesse por falsos preceitos Toda ação violenta contra a autoridade pública é criminosa Ainda tenho duas palavras a dizer Existirá no mundo lei que proíba afirmar ou prescrever que o Estado pode existir e manter a paz interna sem utilizar a pena de morte contra o culpado Diodoro conta no Livro I Capítulo LXV que Sabacão rei do Egito se tomou modelo de clemência por comutar penas capitais em escravidão e por dar emprego feliz à sua autoridade condenando os culpados a trabalhos públicos Estrabão no Livro XI informanos que havia junto ao Cáucaso algumas nações que desconheciam a pena de morte ainda quando o crime merecesse os maiores tormentos nernini mortem irrogare quamvis pessima merito Tal verdade está referida na História Romana da época da Lei Pórcia que proibia tirar a vida de cidadão romano se a sentença de morte não estivesse confirmada por todo o povo Tito Lívio fala dessa Lei no Livro X Capítulo IX de sua obra Por fim o exemplo próximo de um reinado de vinte anos no maior império do mundo a Rússia demonstra ainda esta verdade A Imperatriz Isabel ver nota do tradutor a de número 22 morta há alguns anos 1762 jurou quando ascendeu ao trono dos czares que não condenaria à morte nenhum culpado durante o seu reinado Essa augusta princesa cumpriu esse feliz compromisso que assumira sem interromper o curso da justiça penal e sem prejudicar a tranqüilidade pública Se tais fatos são incontestáveis será então correto dizer que o Estado pode subsistir e ser venturoso sem castigar com a morte qualquer criminoso Diagramação elrânica EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS Rllll TllbllfingllÇlra 140 T6rreQ Loja 01 Te 0II 31152433 FliX 0II 31063772 CEP 01020901 São Pllulo SP Brasil Impresso nas pficmas da EDITORA PARMA LIDA Telefone 011 64127822 Av Antonio 8ardella 280 Guarulhos São Paulo Brasil Com filmes fornecidos pelo editor eBookLibris Cesare Beccaria DOS DELITOS E DAS PENAS Ridendo Castigat Mores Dos Delitos e das Penas 1764 Cesare Beccaria 17381794 Edição Ridendo Castigat Mores Versão para eBook eBooksBrasilcom Fonte Digital wwwjahrorg Copyright Autor Cesare Beccaria Edição eletrônica Ed Ridendo Castigat Mores wwwjahrorg Todas as obras são de acesso gratuito Estudei sempre por conta do Estado ou melhor da Sociedade que paga impostos tenho a obrigação de retribuir ao menos uma gota do que ela me proporcionou Nélson Jahr Garcia 19472002 ÍNDICE Apresentação Livros Grátis httpwwwlivrosgratiscombr Milhares de livros grátis para download Biografia do autor Prefácio do autor I Introdução II Origem das penas e direito punir III Conseqüências desses princípios IV Da interpretação das leis V Da obscuridade das leis VI Da prisão VII Dos indícios do delito e da forma dos julgamentos VIII Das testemunhas IX Das acusações secretas X Dos interrogatórios sugestivos XI Dos juramentos XII Da questão ou tortura XIII Da duração do processo e da prescrição XIV Dos crimes começados dos cúmplices da impunidade XV Da moderação das penas XVI Da pena de morte XVII Do banimento e das confiscações XVIII Da infâmia XIX Da publicidade e da presteza das penas XX Que o castigo deve ser inevitável Das graças XXI Dos asilos XXII Do uso de pôr a cabeça a prêmio XXIII Que as penas devem ser proporcionadas aos delitos XXIV Da medida dos delitos XXV Divisão dos delitos XXVI Dos crimes de lesamajestade XXVII Dos atentados contra a segurança dos particulares e principalmente das violências XXVIII Das injúrias XXIX Dos duelos XXX Do roubo XXXI Do contrabando XXXII Das falências XXXIII Dos delitos que perturbam a tranqüilidade pública XXXIV Da ociosidade XXXV Do suicídio XXXVI De certos delitos difíceis de constatar XXXVII De uma espécie particular de delito XXXVIII De algumas fontes gerais de erros e de injustiças na legislação e em primeiro lugar das falsas idéias de utilidade XXXIX Do espírito de família XL Do espírito do fisco XLI Dos meios de prevenir crimes XLII Conclusão APÊNDICE Respostas às Notas e observações de um frade dominicano sobre o livro Dos Delitos e das penas I Acusação de impiedade II Acusações de sedição Extrato da correspondência de Beccaria e de Morellet sobre o livro Dos Delitos e das penas De Morellet a Beccaria De Beccaria a Morellet Notas DOS DELITOS E DAS PENAS Cesare Beccaria APRESENTAÇÃO Nélson Jahr Garcia Dos delitos e das penas é uma obra que se insere no movimento filosófico e humanitário da segunda metade do século XVIII ao qual pertencem os trabalhos dos Enciclopedistas como Voltaire Rousseau Montesquieu e tantos outros Na época havia grassado a tese de que as penas constituíam uma espécie de vingança coletiva essa concepção havia induzido à aplicação de punições de conseqüências muito superiores e mais terríveis que os males produzidos pelos delitos Prodigalizarase a prática de torturas penas de morte prisões desumanas banimentos acusações secretas Foi contra essa situação que se insurgiu Beccaria Sua obra foi elogiada por intelectuais religiosos e nobres inclusive Catarina da Rússia As críticas foram poucas geralmente resultantes de interesses egoísticos de magistrados e clérigos A humanidade encontrava novos caminhos para garantir a igualdade e a justiça Estamos divulgando o texto por acreditarmos que deva ser lido de novo especialmente no Brasil A prática de torturas entre nós tem sido cada vez mais freqüente A pena de morte que vai sendo abolida em países mais avançados aqui tem sido proposta por inúmeros políticos raivosos Crianças ficam encarceradas sob condições cruéis às vezes bárbaras Juizes corruptos vivem no conforto de suas mansões Assassinos frios por serem influentes desfrutam de todas as mordomias Que o espírito de Beccaria nos ilumine BIOGRAFIA DO AUTOR CESARE BONESANA marquês de Beccaria nasceu em Milão no ano de 1738 Educado em Paris pelos jesuítas entregouse com entusiasmo ao estudo da literatura e das matemáticas Muita influência exerceu na formação do seu espírito a leitura das Lettres Persanes de Mostesquieu e de LEsprit de Helvétius Desde então todas as suas preocupações se voltaram para o estudo da filosofia Foi ele um dos fundadores da sociedade literária que se formou em Milão e que inspirandose no exemplo da de Helvétius divulgou os novos princípios da filosofia francesa Além disso a fim de divulgar na Itália as idéias novas Beccaria fez parte da redação do jornal Il Caffè que apareceu de 1764 a 1765 Foi mais ou menos por essa época que insurgindose contra as injustiças dos processos criminais em voga Beccaria principiou a agitar com os seus amigos entre os quais se destacavam os irmãos Pietro e Alessandro Verri os complexos problemas relacionados com a matéria Assim teve origem o seu livro Dei Delitti e delle Pene Receoso de perseguições o autor mandou imprimir sua obra secretamente em Livorno e ainda assim velando muitos pensamentos com expressões vagas e indecisas O tratado Dos Delitos e das Penas é a filosofia francesa aplicada à legislação penal contra a tradição jurídica invoca a razão e o sentimento fazse portavoz dos protestos da consciência pública contra os julgamentos secretos o juramento imposto aos acusados a tortura a confiscação as penas infamantes a desigualdade ante o castigo a atrocidade dos suplícios estabelece limites entre a justiça divina e a justiça humana entre os pecados e os delitos condena o direito de vingança e toma por base do direito de punir a utilidade social declara a pena de morte inútil e reclama a proporcionalidade das penas aos delitos assim como a separação do poder judiciário e do poder legislativo Nenhum livro fora tão oportuno e o seu sucesso foi verdadeiramente extraordinário sobretudo entre os filósofos franceses O abade Morellet traduziuo Diderot anotouo Voltaire comentouo dAlembert Buffon Hume Helvétius o barão dHolbach em suma todos os grandes homens da França manifestaram desde logo a sua admiração e seu entusiasmo Em 1766 indo a Paris Beccaria foi alvo das mais vivas demonstrações de simpatia No entanto tendo regressado a Milão cidade que ele não mais abandonou teve de sofrer uma campanha infamante por parte dos seus adversários que ainda se apegavam aos preconceitos e à rotina para acusálo de heresia A denúncia não teve conseqüências mas Beccaria ressentiuse de tal forma que o receio de novas perseguições levouo a renunciar às dissertações filosóficas Em 1768 o governo austríaco sabedor de que ele recusara as ofertas de Catarina II que procurara atraílo para São Petersburgo criou em seu favor uma cátedra de economia política Beccaria morreu em Milão em 1794 PREFÁCIO DO AUTOR ALGUNS fragmentos da legislação de um antigo povo conquistador compilados por ordem de um príncipe que reinou há doze séculos em Constantinopla combinados em seguida com os costumes dos lombardos e amortalhados num volumoso calhamaço de comentários obscuros constituem o velho acervo de opiniões que uma grande parte da Europa honrou com o nome de leis e mesmo hoje o preconceito da rotina tão funesto quanto generalizado faz que uma opinião de Carpozow1 uma velha prática indicada por Claro2 um suplício imaginado com bárbara complacência por Francisco3 sejam as regras que friamente seguem esses homens que deveriam tremer quando decidem da vida e fortuna dos seus concidadãos É esse código informe que não passa de produção monstruosa dos séculos mais bárbaros que eu quero examinar nesta obra Limitarmeei porém ao sistema criminal cujos abusos ousarei assinalar aos que estão encarregados de proteger a felicidade pública sem preocupação de dar ao meu estilo o encanto que seduz a impaciência dos leitores vulgares Se pude investigar livremente a verdade se me elevei acima das opiniões comuns devo tal independência à indulgência e às luzes do governo sob o qual tenho a felicidade de viver Os grandes reis e príncipes que querem a felicidade dos homens que governam são amigos da verdade quando esta lhes é revelada por um filósofo que do fundo do seu retiro mostra uma coragem isenta de fanatismo e se contenta em combater com as armas da razão as empresas da violência e da intriga De resto examinandose os abusos de que vamos falar verificarseá que os mesmos constituem a sátira e a vergonha dos séculos passados mas não do nosso século e dos seus legisladores Se alguém quiser darme a honra de criticar meu livro trate antes de apreender bem o fim que me propus Longe de pensar em diminuir a autoridade legítima verseá que todos os meus esforços só visam a engrandecêla e esta se engrandecerá de fato quando a opinião pública for mais poderosa do que a força quando a indulgência e a humanidade fizerem que se perdoe aos príncipes o seu poder Críticos houve cujas intenções não podiam ser honestas que atacaram esta obra alterandoa4 Devo interromperme um instante para impor silêncio à mentira azoinada aos furores do fanatismo às calúnias covardes do ódio Os princípios de moral e de política aceitos entre os homens derivam em geral de três fontes a revelação a lei natural e as convenções sociais Não se pode estabelecer comparação entre a primeira e as duas últimas do pontodevista dos seus fins principais completamse porém ao tenderem igualmente para tornar os homens felizes na terra Discutir as relações das convenções sociais não significa atacar as relações que podem encontrarse entre a revelação e a lei natural Uma vez que esses princípios divinos embora imutáveis foram de mil modos desnaturados nos espíritos corruptos ou pela maldade humana ou pelas falsas religiões ou pelas idéias arbitrárias da virtude e do vício deve parecer necessário examinar pondo de lado quaisquer considerações estranhas os resultados das simples convenções humanas quer essas convenções tenham sido feitas realmente quer se suponham vantajosas para todos Todas as opiniões todos os sistemas de moral devem reunirse necessariamente nesse ponto e nunca se louvariam bastante os louváveis esforços tendentes a reconduzir os mais obstinados e os mais incrédulos aos princípios que levam os homens a viver em sociedade Podem pois distinguirse três espécies de virtudes e de vícios cuja fonte está igualmente na religião na lei natural e nas convenções políticas Jamais devem essas três espécies estar em contradição entre si não alcançam contudo os mesmos resultados e não obrigam aos mesmos deveres A lei natural exige menos que a revelação e as convenções sociais menos que a lei natural Assim é muito importante distinguir bem os efeitos dessas convenções isto é dos pactos expressos ou tácitos que os homens se impuseram porque nisso deve residir o exercício legítimo da força nessas relações de homem a homem que não exigem a missão especial do Ser supremo Pode dizerse portanto com razão que as idéias da virtude política são variáveis As da virtude natural seriam sempre claras e precisas se as fraquezas e as paixões humanas não empanassem a sua pureza As idéias da virtude religiosa são imutáveis e constantes porque foram imediatamente reveladas pelo próprio Deus que as conserva inalteráveis Pode pois aquele que fala das convenções sociais e dos seus resultados ser acusado de mostrar princípios contrários à lei natural ou à revelação por nada dizer a respeito Se diz que o estado de guerra precedeu a reunião dos homens em sociedade é o caso de comparálo a Hobbes5 que não supõe para o homem isolado nenhum dever nenhuma obrigação natural Não se pode ao contrário considerar o que ele diz como um fato que foi tão somente a conseqüência da corrupção humana e da ausência das leis Enfim não é um erro censurar um escritor que examina os efeitos das convenções sociais por não admitir antes de tudo a existência mesma dessas convenções A justiça divina e a justiça natural são por sua essência constantes e invariáveis porque as relações existentes entre dois objetos da mesma natureza não podem mudar nunca Mas a justiça humana ou se se quiser a justiça política não sendo mais do que uma relação estabelecida entre uma ação e o estado variável da sociedade também pode variar à medida que essa ação se torne vantajosa ou necessária ao estado social Só se pode determinar bem a natureza dessa justiça examinando com atenção as relações complicadas das inconstantes combinações que governam os homens Se todos esses princípios essencialmente distintos chegam a confundirse já não é possível raciocinar com clareza sobre os assuntos políticos Cabe aos teólogos estabelecer os limites do justo e do injusto segundo a maldade ou a bondade interiores da ação Ao publicista cabe determinar tais limites em política isto é sob as relações do bem e do mal que a ação possa fazer à sociedade Esse último objeto não pode acarretar nenhum prejuízo ao outro porque todos sabem quanto a virtude política está abaixo das virtudes inalteráveis que emanam da Divindade Repito pois que se quiserem dar ao meu livro a honra de uma crítica não comecem por me atribuir princípios contrários à virtude ou à religião pois tais princípios não são os meus em lugar de me assinalar como um ímpio ou um sedicioso contentemse em mostrar que sou mau lógico ou ignorante político não tremam a cada proposição em que defendo os interesses da humanidade verifiquem a inutilidade de minhas máximas e os perigos que podem ter minhas opiniões façamme ver as vantagens das práticas recebidas Dei um testemunho público dos meus princípios religiosos e da minha submissão ao soberano ao responder às Notas e Observações que se publicaram contra minha obra Devo guardar silêncio em relação aos escritores que doravante só me opuserem as mesmas objeções Mas aquele que puser em sua crítica a decência e o respeito que os homens honestos se devem entre si e quem tiver bastantes luzes para não me obrigar a demonstrarlhe os princípios mais simples de qualquer natureza que sejam encontrará em mim um homem menos apressado a defender suas opiniões particulares do que um tranqüilo amigo da verdade pronto a confessar os seus erros I INTRODUÇÃO AS vantagens da sociedade devem ser igualmente repartidas entre todos os seus membros No entanto entre os homens reunidos notase a tendência contínua de acumular no menor número os privilégios o poder e a felicidade para só deixar à maioria miséria e fraqueza Só com boas leis podem impedirse tais abusos Mas de ordinário os homens abandonam a leis provisórias e à prudência do momento o cuidado de regular os negócios mais importantes quando não os confiam à discrição daqueles mesmos cujo interesse é oporemse às melhores instituições e às leis mais sábias Além disso não é senão depois de terem vagado por muito tempo no meio dos erros mais funestos depois de terem exposto mil vezes a própria liberdade e a própria existência que cansados de sofrer reduzidos aos últimos extremos os homens se determinam a remediar os males que os afligem Então finalmente abrem os olhos a essas verdades palpáveis que por sua simplicidade mesma escapam aos espíritos vulgares incapazes de analisar os objetos e acostumados a receber sem exame e sobre palavra todas as impressões que se lhes queiram dar Abramos a história veremos que as leis que deveriam ser convenções feitas livremente entre homens livres não foram o mais das vezes senão o instrumento das paixões da minoria ou o produto do acaso e do momento e nunca a obra de um prudente observador da natureza humana que tenha sabido dirigir todas as ações da sociedade com este único fim todo o bemestar possível para a maioria Felizes as nações se há algumas que não esperaram que revoluções lentas e vicissitudes incertas fizessem do excesso do mal uma orientação para o bem e que mediante leis sábias apressaram a passagem de um para o outro Como é digno de todo o reconhecimento do gênero humano o filósofo6 que do fundo do seu retiro obscuro e desprezado teve a coragem de lançar na sociedade as primeiras sementes por tanto tempo infrutíferas das verdades úteis As verdades filosóficas por toda parte divulgadas através da imprensa revelaram enfim as verdadeiras relações que unem os soberanos aos súditos e os povos entre si O comércio animouse e entre as nações elevouse uma guerra industrial a única digna dos homens sábios e dos povos policiados Mas se as luzes do nosso século já produziram alguns resultados longe estão de ter dissipado todos os preconceitos que tínhamos Ninguém se levantou senão frouxamente contra a barbárie das penas em uso nos nossos tribunais Ninguém se ocupou com reformar a irregularidade dos processos criminais essa parte da legislação tão importante quanto descurada em toda a Europa Raramente se procurou destruir em seus fundamentos as séries de erros acumulados desde vários séculos e muito poucas pessoas tentaram reprimir pela força das verdades imutáveis os abusos de um poder sem limites e fazer cessar os exemplos bem freqüentes dessa fria atrocidade que os homens poderosos encaram como um dos seus direitos Entretanto os dolorosos gemidos do fraco sacrificado à ignorância cruel e aos opulentos covardes os tormentos atrozes que a barbárie inflige por crimes sem provas ou por delitos quiméricos o aspecto abominável dos xadrezes e das masmorras cujo horror é ainda aumentado pelo suplício mais insuportável para os infelizes a incerteza tantos métodos odiosos espalhados por toda parte deveriam ter despertado a atenção dos filósofos essa espécie de magistrados que dirigem as opiniões humanas O imortal Montesquieu7 só ocasionalmente pode abordar essas importantes matérias Se eu segui as pegadas luminosas desse grande homem é que a verdade é uma e a mesma em toda parte Mas os que sabem pensar e é somente para estes que escrevo saberão distinguir meus passos dos seus Sentirmeei feliz se como ele puder ser objeto do vosso secreto reconhecimento oh vós discípulos obscuros e pacíficos da razão Sentirmeei feliz se puder excitar alguma vez esse frêmito pelo qual as almas sensíveis respondem à voz dos defensores da humanidade Seria este talvez o momento de examinar e distinguir as diferentes espécies de delitos e a maneira de punilos mas o número e a variedade dos crimes segundo as diversas circunstâncias de tempo e de lugar nos lançariam num atalho imenso e fatigante Contentarmeei pois com indicar os princípios mais gerais as faltas mais comuns e os erros mais funestos evitando igualmente os excessos dos que por um amor mal entendido da liberdade procuram introduzir a desordem e dos que desejariam submeter os homens à regularidade dos claustros Mas qual é a origem das penas e qual o fundamento do direito de punir Quais serão as punições aplicáveis aos diferentes crimes Será a pena de morte verdadeiramente útil necessária indispensável para a segurança e a boa ordem da sociedade Serão justos os tormentos e as torturas Conduzirão ao fim que as leis se propõem Quais os melhores meios de prevenir os delitos Serão as mesmas penas igualmente úteis em todos os tempos Que influência exercem sobre os costumes Todos esses problemas merecem que se procure resolvêlos com essa precisão geométrica que triunfa da destreza dos sofismas das dúvidas tímidas e das seduções da eloqüência Sentirmeia feliz se não tivesse outro mérito além do de ter sido o primeiro que apresentou na Itália com maior clareza o que outras nações ousaram escrever e começam a praticar Mas se ao sustentar os direitos do gênero humano e da verdade invencível contribuí para salvar da morte atroz algumas das trêmulas vítimas da tirania ou da ignorância igualmente funesta as bênçãos e as lágrimas de um único inocente reconduzido aos sentimentos da alegria e da felicidade consolarmeiam do desprezo do resto dos homens II ORIGEM DAS PENAS E DIREITO DE PUNIR A MORAL política não pode proporcionar à sociedade nenhuma vantagem durável se não for fundada sobre sentimentos indeléveis do coração do homem Toda lei que não for estabelecida sobre essa base encontrará sempre uma resistência à qual será constrangida a ceder Assim a menor força continuamente aplicada destrói por fim um corpo que pareça sólido porque lhe comunicou um movimento violento Consultemos pois o coração humano acharemos nele os princípios fundamentais do direito de punir Ninguém fez gratuitamente o sacrifício de uma porção de sua liberdade visando unicamente ao bem público Tais quimeras só se encontram nos romances Cada homem só por seus interesses está ligado às diferentes combinações políticas deste globo e cada qual desejaria se fosse possível não estar ligado pelas convenções que obrigam os outros homens Sendo a multiplicação do gênero humano embora lenta e pouco considerável muito superior aos meios que apresentava a natureza estéril e abandonada para satisfazer necessidades que se tornavam cada dia mais numerosas e se cruzavam de mil maneiras os primeiros homens até então selvagens se viram forçados a reunirse Formadas algumas sociedades logo se estabeleceram novas na necessidade em que se ficou de resistir às primeiras e assim viveram essas hordas como tinham feito os indivíduos num contínuo estado de guerra entre si As leis foram as condições que reuniram os homens a princípio independentes e isolados sobre a superfície da terra Cansados de só viver no meio de temores e de encontrar inimigos por toda parte fatigados de uma liberdade que a incerteza de conservála tornava inútil sacrificaram uma parte dela para gozar do resto com mais segurança A soma de todas essas porções de liberdade sacrificadas assim ao bem geral formou a soberania da nação e aquele que foi encarregado pelas leis do depósito das liberdades e dos cuidados da administração foi proclamado o soberano do povo Não bastava porém ter formado esse depósito era preciso protegêlo contra as usurpações de cada particular pois tal é a tendência do homem para o despotismo que ele procura sem cessar não só retirar da massa comum sua porção de liberdade mas ainda usurpar a dos outros Eram necessários meios sensíveis e bastante poderosos para comprimir esse espírito despótico que logo tornou a mergulhar a sociedade no seu antigo caos Esses meios foram as penas estabelecidas contra os infratores das leis Disse eu que esses meios tiveram de ser sensíveis porque a experiência fez ver quanto a maioria está longe de adotar princípios estáveis de conduta Notase em todas as partes do mundo físico e moral um princípio universal de dissolução cuja ação só pode ser obstada nos seus efeitos sobre a sociedade por meios que impressionam imediatamente os sentidos e que se fixam nos espíritos para contrabalançar por impressões vivas a força das paixões particulares quase sempre opostas ao bem geral Qualquer outro meio seria insuficiente Quando as paixões são vivamente abaladas pelos objetos presentes os mais sábios discursos a eloqüência mais arrebatadora as verdades mais sublimes não passam para elas de um freio impotente que logo despedaçam Por conseguinte só a necessidade constrange os homens a ceder uma parte de sua liberdade daí resulta que cada um só consente em pôr no depósito comum a menor porção possível dela isto é precisamente o que era preciso para empenhar os outros em mantêlo na posse do resto O conjunto de todas essas pequenas porções de liberdade é o fundamento do direito de punir Todo exercício do poder que se afastar dessa base é abuso e não justiça é um poder de fato e não de direito8 é uma usurpação e não mais um poder legítimo As penas que ultrapassam a necessidade de conservar o depósito da salvação pública são injustas por sua natureza e tanto mais justas serão quanto mais sagrada e inviolável for a segurança e maior a liberdade que o soberano conservar aos súditos III CONSEQUÊNCIAS DESSES PRINCÍPIOS A PRIMEIRA conseqüência desses princípios é que só as leis podem fixar as penas de cada delito e que o direito de fazer leis penais não pode residir senão na pessoa do legislador que representa toda a sociedade unida por um contrato social Ora o magistrado que também faz parte da sociedade não pode com justiça infligir a outro membro dessa sociedade uma pena que não seja estatuída pela lei e do momento em que o juiz é mais severo do que a lei ele é injusto pois acrescenta um castigo novo ao que já está determinado Seguese que nenhum magistrado pode mesmo sob o pretexto do bem público aumentar a pena pronunciada contra o crime de um cidadão A segunda conseqüência é que o soberano que representa a própria sociedade só pode fazer leis gerais às quais todos devem submeterse não lhe compete porém julgar se alguém violou essas leis Com efeito no caso de um delito há duas partes o soberano que afirma que o contrato social foi violado e o acusado que nega essa violação É preciso pois que haja entre ambos um terceiro que decida a contestação Esse terceiro é o magistrado cujas sentenças devem ser sem apelo e que deve simplesmente pronunciar se há um delito ou se não há Em terceiro lugar mesmo que a atrocidade das mesmas não fosse reprovada pela filosofia mãe das virtudes benéficas e por essa razão esclarecida que prefere governar homens felizes e livres a dominar covardemente um rebanho de tímidos escravos mesmo que os castigos cruéis não se opusessem diretamente ao bem público e ao fim que se lhes atribui o de impedir os crimes bastará provar que essa crueldade é inútil para que se deva considerála como odiosa revoltante contrária a toda justiça e à própria natureza do contrato social IV DA INTERPRETAÇÃO DAS LEIS RESULTA ainda dos princípios estabelecidos precedentemente que os juizes dos crimes não podem ter o direito de interpretar as leis penais pela razão mesma de que não são legisladores Os juizes não receberam as leis como uma tradição doméstica ou como um testamento dos nossos antepassados que aos seus descendentes deixaria apenas a missão de obedecer Recebemnas da sociedade viva ou do soberano que é representante dessa sociedade como depositário legítimo do resultado atual da vontade de todos Não se julgue que a autoridade das leis esteja fundada na obrigação de executar antigas convenções9 essas velhas convenções são nulas pois não puderam ligar vontades que não existiam Não se pode sem injustiça exigir sua execução seria reduzir os homens a não passar de um vil rebanho sem vontade e sem direitos As leis emprestam sua força da necessidade de orientar os interesses particulares para o bem geral e do juramento formal ou tácito que os cidadãos vivos voluntariamente fizeram ao rei Qual será pois o legítimo intérprete das leis O soberano isto é o depositário das vontades atuais de todos e não o juiz cujo dever consiste exclusivamente em examinar se tal homem praticou ou não um ato contrário às leis O juiz deve fazer um silogismo perfeito A maior deve ser a lei geral a menor a ação conforme ou não à lei a conseqüência a liberdade ou a pena Se o juiz for constrangido a fazer um raciocínio a mais ou se o fizer por conta própria tudo se torna incerto e obscuro Nada mais perigoso do que o axioma comum de que é preciso consultar o espírito da lei Adotar tal axioma é romper todos os diques e abandonar as leis à torrente das opiniões Essa verdade me parece demonstrada embora pareça um paradoxo aos espíritos vulgares que se impressionam mais fortemente com uma pequena desordem atual do que com conseqüências distantes mas mil vezes mais funestas de um só princípio falso estabelecido numa nação Todos os nossos conhecimentos todas as nossas idéias se mantêm Quanto mais complicadas tanto maiores são as suas relações e resultados Cada homem tem sua maneira própria de ver e o mesmo homem em diferentes épocas vê diversamente os mesmos objetos O espírito de uma lei seria pois o resultado da boa ou má lógica de um juiz de uma digestão fácil ou penosa da fraqueza do acusado da violência das paixões do magistrado de suas relações com o ofendido enfim de todas as pequenas causas que mudam as aparências e desnaturam os objetos no espírito inconstante do homem Veríamos assim a sorte de um cidadão mudar de face ao passar para outro tribunal e a vida dos infelizes estaria à mercê de um falso raciocínio ou do mau humor do juiz Veríamos o magistrado interpretar apressadamente as leis segundo as idéias vagas e confusas que se apresentassem ao seu espírito Veríamos os mesmos delitos punidos diferentemente em diferentes tempos pelo mesmo tribunal porque em lugar de escutar a voz constante e invariável das leis ele se entregaria à instabilidade enganosa das interpretações arbitrárias Podem essas irregularidades funestas ser postas em paralelo com os inconvenientes momentâneos que às vezes produz a observação literal das leis Talvez esses inconvenientes passageiros obriguem o legislador a fazer no texto equívoco de uma lei correções necessárias e fáceis Mas seguindo a letra da lei não se terá ao menos que temer esses raciocínios perniciosos nem essa licença envenenada de tudo explicar de maneira arbitrária e muitas vezes com intenção venal Quando as leis forem fixas e literais quando só confiarem ao magistrado a missão de examinar os atos dos cidadãos para decidir se tais atos são conformes ou contrários à lei escrita quando enfim a regra do justo e do injusto que deve dirigir em todos os seus atos o ignorante e o homem instruído não for um motivo de controvérsia mas simples questão de fato então não mais se verão os cidadãos submetidos ao jugo de uma multidão de pequenos tiranos tanto mais insuportáveis quanto menor é a distância entre o opressor e o oprimido tanto mais cruéis quanto maior resistência encontram porque a crueldade dos tiranos é proporcional não às suas forças mas aos obstáculos que se lhes opõem tanto mais funestos quanto ninguém pode livrarse do seu jugo senão submetendose ao despotismo de um só Com leis penais executadas à letra cada cidadão pode calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável e isso é útil porque tal conhecimento poderá desviálo do crime Gozará com segurança de sua liberdade e dos seus bens e isso é justo porque é esse o fim da reunião dos homens em sociedade É verdade também que os cidadãos adquirirão assim um certo espírito de independência e serão menos escravos dos que ousaram dar o nome sagrado de virtude à covardia às fraquezas e às complacências cegas estarão porém menos submetidos às leis e à autoridade dos magistrados Tais princípios desagradarão sem dúvida aos déspotas subalternos que se arrogaram o direito de esmagar seus inferiores com o peso da tirania que sustentam Tudo eu poderia recear se esses pequenos tiranos se lembrassem um dia de ler o meu livro e entendêlo mas os tiranos não lêem V DA OBSCURIDADE DAS LEIS SE a interpretação arbitrária das leis é um mal também o é a sua obscuridade pois precisam ser interpretadas Esse inconveniente é bem maior ainda quando as leis não são escritas em língua vulgar10 Enquanto o texto das leis não for um livro familiar uma espécie de catecismo enquanto forem escritas numa língua morta e ignorada do povo e enquanto forem solenemente conservadas como misteriosos oráculos o cidadão que não puder julgar por si mesmo as conseqüências que devem ter os seus próprios atos sobre a sua liberdade e sobre os seus bens ficará na dependência de um pequeno número de homens depositários e intérpretes das leis Colocai o texto sagrado das leis nas mãos do povo e quanto mais homens houver que o lerem tanto menos delitos haverá pois não se pode duvidar que no espirito daquele que medita um crime o conhecimento e a certeza das penas ponham freio à eloqüência das paixões Que pensar dos homens quando se reflete que as leis da maior parte das nações estão escritas em línguas mortas e que esse costume bárbaro ainda subsiste nos países mais esclarecidos da Europa Dessas últimas reflexões resulta que sem um corpo de leis escritas jamais uma sociedade poderá tomar uma forma de governo fixo em que a força resida no corpo político e não nos membros desse corpo em que as leis não possam alterarse e destruir se pelo choque dos interesses particulares nem reformarse senão pela vontade geral A razão e a experiência fizeram ver quantas tradições humanas se tornam mais duvidosas e mais contestadas à medida que a gente se afasta de sua fonte Ora se não existe um momento estável do pacto social como resistirão as leis ao movimento sempre vitorioso do tempo e das paixões Vêse por aí igualmente a utilidade da imprensa que pode só ela tornar todo o público e não alguns particulares depositário do código sagrado das leis Foi a imprensa que dissipou esse tenebroso espírito de cabala e de intriga que não pode suportar a luz e que finge desprezar as ciências somente porque secretamente as teme Se agora na Europa diminuem esses crimes atrozes que assombravam nossos pais se saímos enfim desse estado de barbárie que tornava nossos antepassados ora escravos ora tiranos é à imprensa que o devemos Os que conhecem a história de dois ou três séculos e do nosso podem ver a humanidade a generosidade a tolerância mútua e as mais doces virtudes nasceram no seio do luxo e da indolência Quais foram ao contrário as virtudes dessas épocas que tão sem propósitos se chamam séculos da boa fé e da simplicidade antiga A humanidade gemia sob o jugo da implacável superstição a avareza e a ambição de um pequeno número de homens poderosos inundavam de sangue humano os palácios dos grandes e os tronos dos reis Eram traições secretas e morticínios públicos O povo só encontrava na nobreza opressores e tiranos e os ministros do Evangelho manchados na carnificina e as mãos ainda sangrentas ousavam oferecer aos olhos do povo um Deus de misericórdia e de paz Os que se levantam contra a pretensa corrupção do grande século em que vivemos não acharão ao menos que esse quadro abominável possa convirlhe VI DA PRISÃO OUTORGASE em geral aos magistrados encarregados de fazer as leis um direito contrário ao fim da sociedade que é a segurança pessoal refirome ao direito de prender discricionariamente os cidadãos de tirar a liberdade ao inimigo sob pretextos frívolos e por conseguinte de deixar livres os que eles protegem mau grado todos os indícios do delito Como se tornou tão comum um erro tão funesto Embora a prisão difira das outras penas por dever necessariamente preceder a declaração jurídica do delito nem por isto deixa de ter como todos os outros gêneros de castigos o caráter essencial de que só a lei deve determinar o caso em que é preciso empregála Assim a lei deve estabelecer de maneira fixa por que indícios de delito um acusado pode ser preso e submetido a interrogatório O clamor público a fuga as confissões particulares o depoimento de um cúmplice do crime as ameaças que o acusado pode fazer seu ódio inveterado ao ofendido um corpo de delito existente e outras presunções semelhantes bastam para permitir a prisão de um cidadão Tais indícios devem porém ser especificados de maneira estável pela lei e não pelo juiz cujas sentenças se tornam um atentado à liberdade pública quando não são simplesmente a aplicação particular de uma máxima geral emanada do código das leis À medida que as penas forem mais brandas quando as prisões já não forem a horrível mansão do desespero e da fome quando a piedade e a humanidade penetrarem nas masmorras quando enfim os executores impiedosos dos rigores da justiça abrirem os corações à compaixão as leis poderão contentarse com indícios mais fracos para ordenar a prisão A prisão não deveria deixar nenhuma nota de infâmia sobre o acusado cuja inocência foi juridicamente reconhecida Entre os romanos quantos cidadãos não vemos acusados anteriormente de crimes hediondos mas em seguida reconhecidos inocentes receberem da veneração do povo os primeiros cargos do Estado Porque é tão diferente em nossos dias a sorte de um inocente preso É porque o sistema atual da jurisprudência criminal apresenta aos nossos espíritos a idéia da força e do poder em lugar da justiça é porque se lançam indistintamente na mesma masmorra o inocente suspeito e o criminoso convicto é porque a prisão entre nós é antes um suplício que um meio de deter um acusado é porque finalmente as forças que defendem externamente o trono e os direitos da nação estão separadas das que mantêm as leis no interior quando deveriam estar estreitamente unidas Na opinião pública as prisões militares desonram bem menos do que as prisões civis Se as tropas do Estado reunidas sob a autoridade das leis comuns sem contudo dependerem imediatamente dos magistrados fossem encarregadas da guarda das prisões a mancha de infâmia desapareceria ante o aparato e o fausto que acompanham os corpos militares porque em geral a infâmia como tudo o que depende das opiniões populares se liga mais à forma do que ao fundo Mas como as leis e os costumes de um povo estão sempre atrasados de vários séculos em relação às luzes atuais conservamos ainda a barbárie e as idéias ferozes dos caçadores do norte nossos selvagens antepassados Os nossos costumes e as nossas leis retardatárias estão bem longe das luzes dos povos Ainda estamos dominados pelos preconceitos bárbaros que nos legaram os nossos avós os bárbaros caçadores do norte VII DOS INDÍCIOS DO DELITO E DA FORMA DOS JULGAMENTOS EIS um teorema geral que pode ser muito útil para calcular a certeza de um fato e principalmente o valor dos indícios de um delito Quando as provas de um fato se apoiam todas entre si isto é quando os indícios do delito não se sustentam senão uns pelos outros quando a força de várias provas depende da verdade de uma só o número dessas provas nada acrescenta nem subtrai à probabilidade do fato merecem pouca consideração porque destruindo a única prova que parece certa derrubais todas as outras Mas quando as provas são independentes isto é quando cada indício se prova à parte quanto mais numerosos forem esses indícios tanto mais provável será o delito porque a falsidade de uma prova em nada influi sobre a certeza das restantes Não se admirem de verme empregar a palavra probabilidade ao tratar de crimes que para merecerem um castigo devem ser certos porque a rigor toda certeza moral é apenas uma probabilidade que merece contudo ser considerada como uma certeza quando todo homem de bom senso é forçado a darlhe o seu assentimento por uma espécie de hábito natural que resulta da necessidade de agir que é anterior a toda especulação A certeza que se exige para convencer um culpado é pois a mesma que determina todos os homens nos seus mais importantes negócios As provas de um delito podem distinguirse em provas perfeitas e provas imperfeitas As provas perfeitas são as que demonstram positivamente que é impossível que o acusado seja inocente As provas são imperfeitas quando não excluem a possibilidade da inocência do acusado Uma única prova perfeita é suficiente para autorizar a condenação se se quiser porém condenar sobre provas imperfeitas como cada uma dessas provas não estabelece a impossibilidade da inocência do acusado é preciso que sejam em número muito grande para valerem uma prova perfeita isto é para provarem todas juntas que é impossível que o acusado não seja culpado Acrescentarei ainda que as provas imperfeitas às quais o acusado nada responde de satisfatório embora deva se é inocente ter meios de justificarse se tornam por isso mesmo provas perfeitas É todavia mais fácil sentir essa certeza moral de um delito do que definila exatamente Eis o que me faz encarar como sábia a lei que em algumas nações dá ao juiz principal assessores que o magistrado não escolheu mas que a sorte designou livremente porque então a ignorância que julga por sentimento está menos sujeita ao erro do que homem instruído que decide segundo a incerta opinião Quando as leis são claras e precisas o dever do juiz limitase à constatação do fato Se são necessárias destreza e habilidade na investigação das provas de um delito se se requerem clareza e precisão na maneira de apresentar o seu resultado para julgar segundo esse mesmo resultado basta o simples bomsenso guia menos enganador do que todo o saber de um juiz acostumado a só procurar culpados por toda parte e levar tudo ao sistema que adotou segundo os seus estudos Felizes as nações entre as quais o conhecimento das leis não é uma ciência Lei sábia e cujos efeitos são sempre felizes é a que prescreve que cada um seja julgado por seus iguais porque quando se trata da fortuna e da liberdade de um cidadão todos os sentimentos inspirados pela desigualdade devem silenciar Ora o desprezo com o qual o homem poderoso olha para a vitima do infortúnio e a indignação que experimenta o homem de condição medíocre ao ver o culpado que está acima dele por sua condição são sentimentos perigosos que não existem nos julgamentos de que falo Quando o culpado e o ofendido estão em condições desiguais os juizes devem ser escolhidos metade entre os iguais do acusado e metade entre os do ofendido para contrabalançar assim os interesses pessoais que modificam mau grado nosso as aparências dos objetos e para só deixar falar a verdade e as leis Igualmente justo é que o culpado possa recusar um certo número dos juizes que lhe forem suspeitos e se o acusado gozar constantemente desse direito exercêloá com reserva porque de outro modo pareceria condenarse a si mesmo Sejam públicos os julgamentos sejamno também as provas do crime e a opinião que é talvez o único laço das sociedades porá freio à violência e às paixões O povo dirá Não somos escravos mas protegidos pelas leis Esse sentimento de segurança que inspira a coragem eqüivale a um tributo para o soberano que compreende os seus verdadeiros interesses Não entrarei em outros pormenores sobre as precauções que exige o estabelecimento dessas espécies de instituições Para aqueles aos quais é necessário tudo dizer tudo eu diria inutilmente VIII DAS TESTEMUNHAS É IMPORTANTE em toda boa legislação determinar de maneira exata o grau de confiança que se deve dar às testemunhas e a natureza das provas necessárias para constatar o delito Todo homem razoável isto é todo homem que puser ligação em suas idéias e que experimentar as mesmas sensações que os outros homens poderá ser recebido em testemunho Mas a confiança que se lhe der deve medirse pelo interesse que ele tem de dizer ou não dizer a verdade É pois por motivos frívolos e absurdos que as leis não admitem em testemunho nem as mulheres por causa de sua franqueza nem os condenados porque estes morreram civilmente nem as pessoas com nota de infâmia porque em todos esses casos uma testemunha pode dizer a verdade quando não tem nenhum interesse em mentir Entre os abusos de palavras que tiveram certa influência sobre os negócios deste mundo um dos mais notáveis é o que faz considerar como nulo o depoimento de um culpado já condenado Graves jurisconsultos fazem este raciocínio Este homem foi atingido por morte civil ora um morto já não é capaz de nada Muitas vítimas se sacrificaram a essa vã metáfora e muitas vezes se tem contestado seriamente à verdade santa o direito de preferência sobre as formas judiciárias Sem dúvida é preciso que os depoimentos de um culpado já condenado não possam retardar o curso da justiça mas porque após a sentença não conceder aos interesses da verdade e à terrível situação do culpado alguns instantes ainda para justificar se possível ou aos seus cúmplices ou a si próprio com depoimentos novos que mudam a natureza do fato As formalidades e criteriosas procrastinações são necessárias nos processos criminais ou porque não deixam nada à arbitrariedade do juiz ou porque fazem compreender ao povo que os julgamentos são feitos com solenidade e segundo as regras e não precipitadamente ditados polo interesse ou finalmente porque a maior parte dos homens escravos do hábito e mais inclinados a sentir do que raciocinar fazem assim uma idéia mais augusta das funções do magistrado A verdade muitas vezes demasiado simples ou demasiado complicada tem necessidade de certa pompa exterior para merecer o respeito do povo As formalidades porém devem ser fixadas por leis nos limites em que não possam prejudicar a verdade De outro modo seria uma nova fonte de inconvenientes funestos Disse eu que se podia admitir em testemunho toda pessoa que não tem nenhum interesse em mentir Deve pois concederse à testemunha mais ou menos confiança à proporções do ódio ou da amizade que ela tem ao acusado e de outras relações mais ou menos estreitas que ambos mantenham Uma só testemunha não basta porque negando o acusado o que a testemunha afirma não há nada de certo e a justiça deve então respeitar o direito que cada um tem de ser julgado inocente11 Deve darse às testemunhas um crédito tanto mais circunspecto quanto mais atrozes são os crimes e mais inverosímeis as circunstâncias Tais são por exemplo as acusações de magia e as ações gratuitamente cruéis No primeiro caso é melhor acreditar que as testemunhas mentem porque é mais comum ver vários homens caluniarem de concerto por ódio ou por ignorância do que ver um só homem exercer um poder que Deus recusou a todo ser criado Da mesma forma não se deve admitir com precipitação a acusação de uma crueldade sem motivos porque o homem só é cruel por interesse por ódio ou por temor O coração humano é incapaz de um sentimento inútil todos os seus sentimentos são o resultado das impressões que os objetos causaram sobre os sentidos Deve igualmente darse menos crédito a um homem que é membro de uma ordem ou de uma casta ou de uma sociedade particular cujos costumes e máximas são em geral desconhecidos ou diferem dos usos comuns porque além de suas próprias paixões esse homem tem ainda as paixões da sociedade da qual faz parte Enfim os depoimentos das testemunhas devem ser quase nulos quando se trata de algumas palavras das quais se quer fazer um crime porque o tom os gestos e tudo o que precede ou segue as diferentes idéias que os homens ligam a suas palavras alteram e modificam de tal modo os discursos que é quase impossível repetilos com exatidão As ações violentas que constituem os verdadeiros delitos deixam traços notáveis na maioria das circunstâncias que as acompanham e efeitos que das mesmas derivam mas as palavras não deixam vestígio e só subsistem na memória quase sempre infiel e muitas vezes influenciadas dos que as ouviram É pois infinitamente mais fácil fundar uma calúnia sobre discursos do que sobre ações pois o número das circunstâncias que se alegam para provar as ações fornece ao acusado mais recursos para justificarse ao passo que um delito de palavras não apresenta de ordinário nenhum meio de justificação IX DAS ACUSAÇÕES SECRETAS AS acusações secretas são um abuso manifesto mas consagrado e tornado necessário em vários governos pela fraqueza de sua constituição Tal uso torna os homens falsos e pérfidos Aquele que suspeita um delator no seu concidadão vê nele logo um inimigo Costumam então mascararse os próprios sentimentos e o hábito de ocultálos a outrem faz que cedo sejam dissimulados a si mesmo Como os homens que chegaram a esse ponto funesto são dignos de piedade Desorientados sem guia e sem princípios estáveis vagam ao acaso no vasto mar da incerteza preocupados exclusivamente em escapar aos monstros que os ameaçam Um futuro cheio de mil perigos envenena para eles os momentos presentes Os prazeres duráveis da tranqüilidade e da segurança lhes são desconhecidos Se gozaram apressadamente e na confusão de alguns instantes de felicidade espalhados aqui e ali sobre o triste curso de sua desgraçada vida bastarão para consolálos de ter vivido Será entre tais homens que encontraremos soldados intrépidos defensores da pátria e do trono Acharemos entre eles magistrados incorruptíveis que saibam sustentar e desenvolver os verdadeiros interesses do soberano com uma eloqüência livre e patriótica que deponham ao mesmo tempo aos pés do monarca os tributos e as bênçãos de todos os cidadãos que levem ao palácio dos grandes e ao humilde teto do pobre a segurança a paz a confiança e que dêem ao trabalho e à indústria a esperança de uma sorte cada vez mais doce É sobretudo este último sentimento que reanima os Estados e lhes dá uma vida nova Quem poderá defenderse da calúnia quando esta se arma com o escudo mais sólido da tirania o sigilo Miserável governo aquele em que o soberano suspeita um inimigo em cada súdito e se vê forçado para garantir a tranqüilidade pública a perturbar a de cada cidadão Quais são pois os motivos sobre os quais se apoiam os que justificam as acusações e as penas secretas A tranqüilidade pública A segurança e a manutenção da forma de governo É mister confessar que estranha constituição é aquela em que o governo que tem por si a força e a opinião ainda mais poderosa do que a força parece todavia temer cada cidadão Receiase que o acusador não esteja em segurança As leis são então insuficientes para defendêlo e os súditos são mais poderosos do que o soberano e as leis Desejarseia salvar o delator da infâmia a que se expõe Seria então confessar que se autorizam as calúnias secretas mas que se punem as calúnias públicas Apoiarseão na natureza do delito Se o governo for bastante infeliz para considerar como crimes certos atos indiferentes ou mesmo úteis ao público terá razão as acusações e os julgamentos nesse caso jamais seriam bastante secretos Pode haver porém um delito isto é uma ofensa à sociedade que não seja do interesse de todos punir publicamente Respeito todos os governos não falo de nenhum em particular e sei que há circunstâncias em que os abusos parecem de tal modo inerentes à constituição de um Estado que não parece possível desarraigálos sem destruir o corpo político Mas se eu tivesse de ditar novas leis em algum canto isolado do universo minha mão trêmula se recusaria a autorizar as acusações secretas julgaria ver toda a posteridade responsabilizarme pelos males atrozes que elas acarretam Já o disse Montesquieu as acusações públicas são conformes ao espírito do governo republicano no qual o zelo do bem geral deve ser a primeira paixão dos cidadãos Nas monarquias em que o amor da pátria é muito fraco pela própria natureza do governo é sábia a instituição de magistrados encarregados de acusar em nome do público os infratores das leis Mas todo governo republicano ou monárquico deve infligir ao caluniador a pena que o acusado sofreu se ele for culpado X DOS INTERROGATÓRIOS SUGESTIVOS NOSSAS leis proíbem os interrogatórios sugestivos isto é os que se fazem sobre o fato mesmo do delito porque segundo os nossos jurisconsultos só se deve interrogar sobre a maneira pela qual o crime foi cometido e sobre as circunstâncias que o acompanham Um juiz não pode contudo permitir as questões diretas que sugiram ao acusado uma resposta imediata O juiz que interroga dizem os criminalistas só deve ir ao fato indiretamente e nunca em linha reta Se se estabeleceu esse método para evitar sugerir ao acusado uma resposta que o salve ou por que foi considerada coisa monstruosa e contra a natureza um homem acusarse a si mesmo qualquer que tenha sido o fim visado com a proibição dos interrogatórios sugestivos fezse cair as leis numa contradição bem notória pois que ao mesmo tempo se autorizou a tortura Haverá com efeito interrogatório mais sugestivo do que a dor O celerado robusto que pode evitar uma pena longa e rigorosa sofrendo com força tormentos de um instante guarda um silêncio obstinado e se vê absolvido Mas a questão arranca ao homem fraco uma confissão pela qual ele se livra da dor presente que o afeta mais fortemente do que todos os males futuros E se um interrogatório especial é contrário à natureza obrigando o acusado a acusarse a si mesmo não será ele constrangido a isso mais violentamente pelos tormentos e as convulsões da dor Os homens porém se ocupam muito mais em sua norma de conduta com a diferença das palavras do que com a das coisas Observemos finalmente que aquele que se obstina a não responder ao interrogatório a que é submetido merece sofrer uma pena que deve ser fixada pelas leis É mister que essa pena seja muito pesada porque o silêncio de um criminoso perante o juiz que o interroga é para a sociedade um escândalo e a justiça uma ofensa que cumpre prevenir tanto quanto possível Mas essa pena particular já não é necessária quando o crime já foi constatado e o criminoso convencido pois nesse caso o interrogatório se torna inútil Semelhantemente as confissões do acusado não são necessárias quando provas suficientes demonstraram que ele é evidentemente culpado do crime de que se trata Este último caso é o mais ordinário e a experiência mostra que na maior parte dos processos criminais os culpados negam tudo XI DOS JURAMENTOS OUTRA contradição entre as leis e os sentimentos naturais é exigir de um acusado o juramento de dizer a verdade quando ele tem o maior interesse em calála Como se o homem pudesse jurar de boa fé que vai contribuir para sua própria destruição Como se o mais das vezes a voz do interesse não abafasse no coração humano a da religião A história de todos os séculos prova que esse dom sagrado do céu é a coisa de que mais se abusa E como a respeitarão os celerados se ela é diariamente ultrajada pelos homens considerados mais sábios e mais virtuosos Os motivos que a religião opõe ao temor dos tormentos e ao amor à vida são quase sempre fracos demais porque não impressionam os sentidos As coisas do céu estão submetidas a leis inteiramente diversas das da terra Porque comprometer essas leis umas com as outras Porque colocar o homem na atroz alternativa de ofender a Deus ou perderse É não deixar ao acusado senão a escolha de ser mau cristão ou mártir do juramento Destróise dessa forma toda a força dos sentimentos religiosos único apoio da honestidade no coração da maior parte dos homens e pouco a pouco os juramentos não são mais do que uma simples formalidade sem conseqüências Consultese a experiência e se reconhecerá que os juramentos são inúteis pois não há juiz que não convenha que jamais o juramento faz o acusado dizer a verdade A razão faz ver que assim deve ser porque todas as leis opostas aos sentimentos naturais do homem são vãs e conseguintemente funestas Tais leis podem ser comparadas a um dique que se elevasse diretamente no meio das águas de um rio para interromperlhe o curso ou o dique é imediatamente derrubado pela torrente que o leva ou se forma debaixo dele um abismo que o mina e o destrói insensivelmente XII DA QUESTÃO OU TORTURA É uma barbaria consagrada pelo uso na maioria dos governos aplicar a tortura a um acusado enquanto se faz o processo quer para arrancar dele a confissão do crime quer para esclarecer as contradições em que caiu quer para descobrir os cúmplices ou outros crimes de que não é acusado mas do qual poderia ser culpado quer enfim porque sofistas incompreensíveis pretenderam que a tortura purgava a infâmia Um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública depois que ele se convenceu de ter violado as condições com as quais estivera de acordo O direito da força só pode pois autorizar um juiz a infligir uma pena a um cidadão quando ainda se duvida se ele é inocente ou culpado Eis uma proposição bem simples ou o delito é certo ou é incerto Se é certo só deve ser punido com a pena fixada pela lei e a tortura é inútil pois já não se tem necessidade das confissões do acusado Se o delito é incerto não é hediondo atormentar um inocente Com efeito perante as leis é inocente aquele cujo delito não se provou Qual o fim político dos castigos o terror que imprimem nos corações inclinados ao crime Mas que se deve pensar das torturas esses suplícios secretos que a tirania emprega na obscuridade das prisões e que se reservam tanto ao inocente como ao culpado Importa que nenhum delito conhecido fique impune mas nem sempre é útil descobrir o autor de um delito encoberto nas trevas da incerteza Um crime já cometido para o qual já não há remédio só pode ser punido pela sociedade política para impedir que os outros homens cometam outros semelhantes pela esperança da impunidade Se é verdade que a maioria dos homens respeita as leis pelo temor ou pela virtude se é provável que um cidadão prefira seguilas a violálas o juiz que ordena a tortura expõe se constantemente a atormentar inocentes Direi ainda que é monstruoso e absurdo exigir que um homem seja acusador de si mesmo e procurar fazer nascer a verdade pelos tormentos como se essa verdade residisse nos músculos e nas fibras do infeliz A lei que autoriza a tortura é uma lei que diz Homens resisti à dor A natureza vos deu um amor invencível ao vosso ser e o direito inalienável de vos defenderdes mas eu quero criar em vós um sentimento inteiramente contrário quero inspirarvos um ódio de vós mesmos ordenovos que vos tomeis vossos próprios acusadores e digais enfim a verdade ao meio das torturas que vos quebrarão os ossos e vos dilaceração os músculos Esse meio infame de descobrir a verdade é um monumento da bárbara legislação dos nossos antepassados que honravam com o nome de julgamentos de Deus as provas de fogo as da água fervendo e a sorte incerta dos combates Como se os elos dessa corrente eterna cuja origem está no seio da Divindade pudessem desunirse ou romperse a cada instante ao sabor dos caprichos e das frívolas instituições dos homens A única diferença existente entre a tortura e as provas de fogo é que a tortura só prova o crime quando o acusado quer confessar ao passo que as provas queimantes deixavam uma marca exterior considerada como prova do crime Todavia essa diferença é mais aparente do que real O acusado é tão capaz de não confessar o que se exige dele quanto o era outrora de impedir sem fraude os efeitos do fogo e da água fervendo Todos os atos da nossa vontade são proporcionais à força das impressões sensíveis que os causam e a sensibilidade de todo homem é limitada Ora se a impressão da dor se torna muito forte para ocupar todo o poder da alma ela não deixa a quem a sofre nenhuma outra atividade que exercer senão tomar no momento a via mais curta para evitar os tormentos atuais Dessa forma o acusado já não pode deixar de responder pois não poderia escapar às impressões do fogo e da água O inocente exclamará então que é culpado para fazer cessar torturas que já não pode suportar e o mesmo meio empregado para distinguir o inocente do criminoso fará desaparecer toda diferença entre ambos A tortura é muitas vezes um meio seguro de condenar o inocente fraco e de absolver o celerado robusto É esse de ordinário o resultado terrível dessa barbárie que se julga capaz de produzir a verdade desse uso digno dos canibais e que os romanos mau grado a dureza dos seus costumes reservavam exclusivamente aos escravos vítimas infelizes de um povo cuja feroz virtude tanto se tem gabado De dois homens igualmente inocentes ou igualmente culpados aquele que for mais corajoso e mais robusto será absolvido o mais fraco porém será condenado em virtude deste raciocínio Eu juiz preciso encontrar um culpado Tu que és vigoroso soubeste resistir à dor e por isso eu te absolvo Tu que és fraco cedeste à força dos tormentos portanto eu te condeno Bem sei que uma confissão arrancada pela violência da tortura não tem valor algum mais se não confirmares agora o que confessaste farteei atormentar de novo O resultado da questão depende pois de temperamento e de cálculo que varia em cada homem na proporção de sua força e sensibilidade de maneira que para prever o resultado da tortura bastaria resolver o problema seguinte mais digno de um matemático do que de um juiz Conhecidas a força dos músculos e a sensibilidade das fibras de um acusado achar o grau de dor que o obrigará a confessarse culpado de determinado crime Interrogam um acusado para conhecer a verdade mas se tão dificilmente a distinguem no ar nos gestos e na fisionomia de um homem tranqüilo como a descobrirão nos traços descompostos pelas convulsões da dor quando todos os sinais que traem às vezes a verdade na fronte dos culpados estiverem alterados e confundidos Toda ação violenta faz desaparecer as pequenas diferenças dos movimentos pelos quais se distingue às vezes a verdade da mentira Resulta ainda do uso das torturas uma conseqüência bastante notável é que o inocente se acha numa posição pior que a do culpado Com efeito o inocente submetido à questão tem tudo contra si ou será condenado se confessar o crime que não cometeu ou será absolvido mas depois de sofrer tormentos que não mereceu O culpado ao contrário tem por si um conjunto favorável será absolvido se suportar a tortura com firmeza e evitará os suplícios de que foi ameaçado sofrendo uma pena muito mais leve Assim o inocente tem tudo que perder o culpado só pode ganhar Essas verdades são sentidas afinal embora confusamente pelos próprios legisladores mas nem por isso suprimiram a tortura Limitamse a achar que as confissões do acusado pelos tormentos são nulas se não forem em seguida confirmadas pelo juramento Se porém recusarse a confirmálas será torturado de novo Em alguns países e segundo certos jurisconsultos essas odiosas violências não são permitidas mais do que três vezes em outros porém e segundo outros doutores o direito de torturar fica inteiramente à discrição do juiz É inútil fundamentar essas reflexões com os inumeráveis exemplos de inocentes que se confessaram culpados no meio de torturas Não há povo não há século que não possa citar os seus Os homens são sempre os mesmos vêem as coisas presentes sem preocuparse com as conseqüências Não há homem que elevando suas idéias além das primeiras necessidades da vida não tenha ouvido a voz interior da natureza chamálo a si e não tenha sido tentado a se lançar de novo nos braços dela Mas o uso esse tirano das almas vulgares o comprime e o retém no erro O segundo motivo pelo qual se submete à questão um homem que se supõe culpado é a esperança de esclarecer as contradições em que ele caiu nos interrogatórios que o fizeram sofrer Mas o medo do suplício a incerteza do julgamento que vai ser pronunciado a solenidade dos processos a majestade do juiz a própria ignorância igualmente comum à maior parte dos acusados inocentes ou culpados são outras tantas razões para fazer cair em contradição não só a inocência que treme como o crime que procura ocultarse Poderseia crer que as contradições tão ordinárias no homem ainda mesmo quando este tem o espírito tranqüilo não se multiplicarão nesses momentos de perturbação nos quais a idéia de escapar a um perigo iminente absorve toda a alma Em terceiro lugar submeter um acusado à tortura para descobrir se ele é culpado de outros crimes além daquele de que é acusado é fazer este odioso raciocínio Tu és culpado de um delito é pois possível que tenhas cometido cem outros Essa suspeita me preocupa quero certificarme vou empregar minha prova de verdade As leis te farão sofrer pelos crimes que cometeste pelos que poderias cometer e por aqueles dos quais eu quero considerarte culpado Aplicase igualmente a questão a um acusado para descobrir os seus cúmplices Mas se está provado que a tortura não é nada menos do que um meio certo de descobrir a verdade como fará ela conhecer os cúmplices quando esse conhecimento é uma das verdades que se procuram É certo que aquele que se acusa a si mesmo mais facilmente acusará a outrem Além disso será justo atormentar um homem pelos crimes de outro homem Não podem descobrirse os cúmplices pelos interrogatórios do acusado e das testemunhas pelo exame das provas e do corpo de delito em suma por todos os meios empregados para constatar o delito Os cúmplices fogem quase sempre logo que o companheiro é preso Só a incerteza da sorte que os espera condenaos ao exílio e livra a sociedade dos novos atentados que poderia recear deles ao passo que o suplício do culpado que ela tem nas mãos amedronta os outros homens e os desvia do crime sendo esse o único fim dos castigos A pretensa necessidade de purgar a infâmia é ainda um dos absurdos motivos do uso das torturas Um homem declarado infame pelas leis se torna puro porque confessa o crime enquanto lhe quebram os ossos Poderá a dor que é uma sensação destruir a infâmia que é uma combinação moral Será a tortura um cadinho e a infâmia um corpo misto que deponha nele tudo o que tem de impuro Em verdade abusos tão ridículos não deveriam ser tolerados no século XVIII A infâmia não é um sentimento sujeito às leis ou regulado pela razão É obra exclusiva da opinião Ora como a tortura torna infame aquele que a sofre é absurdo que se queira lavar desse modo a infâmia com a própria infâmia Não é difícil remontar a origem dessa lei estranha porque os absurdos adotados por uma nação inteira se apoiam sempre em outras idéias estabelecidas e respeitadas nessa mesma nação O uso de purgar a infâmia pela tortura parece ter sua fonte nas práticas da religião que tanta influência exerce sobre o espírito dos homens de todos os países e de todos os tempos A fé nos ensina que as nódoas contraídas pela fraqueza humana quando não mereceram a cólera eterna do Ser supremo são purificadas em outro mundo por um fogo incompreensível Ora a infâmia é uma nódoa civil e uma vez que a dor e o fogo do purgatório apagam as manchas espirituais porque os tormentos da questão não tirariam a nódoa civil da infâmia Creio que se pode dar uma origem mais ou menos semelhante ao uso que observam certos tribunais de exigir as confissões do culpado como essenciais para sua condenação Tal uso parece tirado do misterioso tribunal da penitência no qual a confissão dos pecados é parte necessária dos sacramentos É dessa forma que os homens abusam das luzes da revelação e como essas luzes são as únicas que iluminam os séculos da ignorância a elas é que a dócil humanidade recorreu em todas as ocasiões mas para fazer as aplicações mais falsas e mais infelizes A solidez dos princípios que expusemos neste capítulo era conhecida dos legisladores romanos que só submetiam à tortura os escravos espécie de homens sem direito algum e sem nenhuma parte nas vantagens da sociedade civil Esses princípios foram adotados na Inglaterra nação que prova a excelência de suas leis pelos seus progressos nas ciências pela superioridade do seu comércio pela extensão de suas riquezas por seu poder e por freqüentes exemplos de coragem e de virtude política A Suécia igualmente convencida da injustiça da tortura já não permite o seu uso Esse infame costume foi abolido por um dos mais sábios monarcas da Europa12 que elevou a filosofia ao trono e que legislador benévolo amigo dos súditos os tornou iguais e livres sob a dependência das leis única liberdade que homens razoáveis podem esperar da sociedade única igualdade que esta pode admitir Enfim as leis militares não admitiram a tortura e se esta pudesse existir em alguma parte seria sem dúvida nos exércitos compostos em grande parte da escória das nações Coisa espantosa para quem não refletiu sobre a tirania do uso São homens endurecidos nos morticínios e familiarizados com o sangue que dão aos legisladores de um povo em paz o exemplo de julgar os homens com mais humanidade XIII DA DURAÇÃO DO PROCESSO E DA PRESCRIÇÃO QUANDO o delito é constatado e as provas são certas é justo conceder ao acusado o tempo e os meios de justificarse se lhe for possível é preciso porém que esse tempo seja bastante curto para não retardar demais o castigo que deve seguir de perto o crime se se quiser que o mesmo seja um freio útil contra os celerados Um mal entendido amor da humanidade poderá condenar logo essa presteza a qual porém será aprovada pelos que tiverem refletido sobre os perigos múltiplos que as extremas procrastinações da legislação fazem correr à inocência Cabe exclusivamente às leis fixar o espaço de tempo que se deve empregar para a investigação das provas do delito e o que se deve conceder ao acusado para sua defesa Se o juiz tivesse esse direito estaria exercendo as funções do legislador Quando se trata desses crimes atrozes cuja memória subsiste por muito tempo entre os homens se os mesmos forem provados não deve haver nenhuma prescrição em favor do criminoso que se subtrai ao castigo pela fuga Não é esse todavia o caso dos delitos ignorados e pouco consideráveis é mister fixar um tempo após o qual o acusado bastante punido pelo exílio voluntário possa reaparecer sem recear novos castigos Com efeito a obscuridade que envolveu por muito tempo o delito diminui muito a necessidade do exemplo e permite devolver ao cidadão sua condição e seus direitos com o poder de tornálo melhor Só posso indicar aqui princípios gerais Para fazer sua aplicação precisa é mister considerar a legislação existente os usos do país as circunstâncias Limitome a acrescentar que para um povo que reconhecesse as vantagens das penas moderadas se as leis abreviassem ou prolongassem a duração dos processos e o tempo da prescrição segundo a gravidade do delito se a prisão provisória e o exílio voluntário fossem contados como uma parte da pena merecida pelo culpado chegarseia a estabelecer assim uma justa progressão de castigos suaves para um grande número de delitos Mas o tempo que se emprega na investigação das provas e o que fixa a prescrição não devem ser prolongados em razão da gravidade do crime que se persegue porque enquanto um crime não está provado quanto mais atroz menos verossímil é ele Será preciso pois às vezes reduzir o tempo dos processos e aumentar o que se exige para a prescrição Esse princípio parece à primeira vista contraditório em relação ao que estabeleci mais acima e segundo o qual podem aplicarse penas iguais para crimes diferentes considerando como partes do castigo o exílio voluntário ou a prisão que precedeu a sentença Procurarei explicarme com mais clareza Podem distinguirse duas espécies de delitos A primeira é a dos crimes atrozes que começa pelo homicídio e que compreende toda a progressão dos mais horríveis assassínios Incluiremos na segunda espécie os delitos menos hediondos do que o homicídio Essa distinção é tirada da natureza A segurança das pessoas é um direito natural a segurança dos bens é um direito da sociedade Há bem poucos motivos capazes de levar o homem a abafar no coração o sentimento natural da compaixão que o desvia do assassínio Mas como cada um é ávido de buscar o seu bemestar como o direito de propriedade não está gravado nos corações sendo simples obra das convenções sociais há uma porção de motivos que induzem os homens a violar tais convenções Se se quiser estabelecer regras de probabilidade para essas duas espécies de delitos é preciso colocálas sobre bases diferentes Nos grandes crimes pela razão mesma de que são mais raros deve diminuirse a duração da instrução e do processo porque a inocência do acusado é mais provável do que o crime Devese porém prolongar o tempo da prescrição Por esse meio que acelera a sentença definitiva tirase aos maus a esperança de uma impunidade tanto mais perigosa quanto maiores são os crimes Ao contrário nos delitos menos consideráveis e mais comuns é preciso prolongar o tempo dos processos porque a inocência do acusado é menos provável e diminuir o tempo fixado para a prescrição porque a impunidade é menos perigosa É mister igualmente notar que se não se atender a isso essa diferença de processo entre as duas espécies de delitos pode dar ao criminoso a esperança da impunidade esperança tanto mais fundada quanto o crime for mais hediondo e portanto mais verossímil Observemos porém que um acusado solto por falta de provas não é nem absolvido nem condenado que pode ser preso de novo pelo mesmo crime e submetido a novo exame se se descobrirem novos indícios do seu delito antes de terminar o tempo fixado para a prescrição segundo o crime cometido Tal é pelo menos ao meu ver o critério que se poderia seguir para preservar ao mesmo tempo a segurança dos cidadãos e a sua liberdade sem favorecer uma em detrimento da outra Esses dois bens são igualmente patrimônio inalienável de todos os cidadãos e ambos estão cercados de perigos quando a segurança individual é abandonada ao capricho de um déspota e quando a liberdade é protegida pela desordem tumultuosa Cometemse na sociedade certos crimes que são ao mesmo tempo comuns e difíceis de constatar Desde então pois é quase impossível provar tais crimes a inocência é provável perante a lei E como a esperança da impunidade contribui pouco para multiplicar essas espécies de delitos que têm todos causas diferentes a impunidade raramente é perigosa Nesse caso podem pois diminuirse igualmente o tempo dos processos e o da prescrição Mas segundo os princípios aceitos é principalmente para os crimes difíceis de provar como o adultério a pederastia que se admitem arbitrariamente as presunções as conjecturas as semiprovas como se um homem pudesse ser semiinocente ou semi culpado e merecer ser semiabsolvido ou semipunido É sobretudo nesse gênero de delitos que se exercem as crueldades da tortura sobre o acusado sobre as testemunhas sobre a família inteira do infeliz de quem se suspeita segundo as odiosas lições de alguns criminalistas que escreveram com fria barbárie compilações de iniqüidades que ousam apresentar como regras aos magistrados e como leis às nações Quando se reflete sobre todas essas coisas ése forçado a reconhecer com amargura que a razão quase nunca tem sido consultada nas leis que se deram aos povos Os crimes mais hediondos os delitos mais obscuros e mais quiméricos e portanto os mais inverossímeis são precisamente os que se consideram constatados sobre simples conjecturas e indícios menos sólidos e mais equívocos Dizerseia que as leis e o magistrado só têm interesse em descobrir um crime e não em procurar a verdade e que o legislador não vê que se expõe constantemente ao risco de condenar um inocente pronunciandose sobre crimes inverossímeis ou mal provados À maioria dos homens falta essa energia que produz igualmente as grandes ações e os grandes crimes e que traz quase sempre juntas as virtudes magnânimas e os crimes monstruosos nos Estados que só se mantêm pela atividade do governo pelo orgulho nacional e pelo concurso das paixões pelo bem público Quanto às nações cujo poderio é consolidado e constantemente sustentado por boas leis as paixões enfraquecidas parecem mais capazes de manter a forma de governo estabelecida do que de melhorála Daí resulta uma conseqüência importante que os grandes crimes nem sempre são a prova da decadência de um povo XIV DOS CRIMES COMEÇADOS DOS CÚMPLICES DA IMPUNIDADE SE BEM que as leis não possam punir a intenção não é menos verdadeira que uma ação que seja o começo de um delito e que prova a vontade de cometêlo merece um castigo mas menos grande do que o que seria aplicado se o crime tivesse sido cometido Esse castigo é necessário porque é importante prevenir mesmo as primeiras tentativas dos crimes Mas como pode haver um intervalo entre a tentativa de um delito e a sua execução é justo reservar uma pena maior ao crime consumado para deixar àquele que apenas começou o crime alguns motivos que o impeçam de acabálo Deve seguirse a mesma gradação nas penas em relação aos cúmplices se estes não foram todos executantes imediatos Quando vários homens se unem para enfrentar um perigo comum quanto maior é o perigo tanto mais procurarão tornálo igual para todos Se as leis punissem mais severamente os executantes do crime do que os simples cúmplices seria mais difícil aos que meditam um atentado encontrar entre eles um homem que quisesse executálo porque o risco seria maior em virtude da diferença das penas Há contudo um caso em que a gente deve afastarse da regra que formulamos e é quando o executante do crime recebeu dos cúmplices uma recompensa particular como a diferença do risco foi compensada pela diferença das vantagens o castigo deve ser igual Se tais reflexões parecerem um tanto rebuscadas reflitase que é importantíssimo que as leis deixem aos cúmplices da má ação o mínimo de meios possível para que se ponham de acordo Alguns tribunais oferecem a impunidade ao cúmplice de um grande crime que trair os seus companheiros Esse expediente apresenta certas vantagens mas não está isento de perigos de vez que a sociedade autoriza desse modo a traição que repugna aos próprios celerados Ela introduz os crimes de covardia bem mais funestos do que os crimes de energia e de coragem porque a coragem é pouco comum e espera apenas uma força benfazeja que a dirija para o bem público ao passo que a covardia muito mais geral é um contágio que infecta rapidamente todas as almas O tribunal que emprega a impunidade para conhecer um crime mostra que se pode encobrir esse crime pois que ele não o conhece e as leis descobremlhe a fraqueza implorando o socorro do próprio celerado que as violou Por outro lado a esperança da impunidade para o cúmplice que trai pode prevenir grandes crimes e reanimar o povo sempre apavorado quando vê crimes cometidos sem conhecer os culpados Esse uso mostra ainda aos cidadãos que aquele que infringe as leis isto é as convenções públicas já não é fiel às convenções particulares Pareceme que uma lei geral que prometesse a impunidade a todo cúmplice que revela um crime seria preferível a uma declaração especial num caso particular preveniria a união dos maus pelo temor recíproco que inspiraria a cada um de se expor sozinho aos perigos e os tribunais já não veriam os celerados encorajados pela idéia de que há casos em que se pode ter necessidade deles De resto seria preciso acrescentar aos dispositivos dessa lei que a impunidade traria consigo o banimento do delator É porém em vão que procuro abafar os remorsos que me afligem quando autorizo as santas leis fiadoras sagradas da confiança pública base respeitável dos costumes a proteger a perfídia a legitimar a traição E que opróbrio para uma nação se os seus magistrados tornados infiéis faltassem à promessa que fizeram e se apoiassem vergonhosamente em vãs sutilezas para levar ao suplício aquele que respondeu ao convite das leis Esses monstruosos exemplos não são raros eis porque tanta gente só vê na sociedade política uma máquina complicada na qual os mais hábeis ou os mais poderosos governam as molas ao seu capricho Eis também o que multiplica esses homens frios insensíveis a tudo o que encanta as almas ternas que só experimentam sensações calculadas e que todavia sabem excitar nos outros os sentimentos mais caros e as paixões mais fortes quando estas são úteis aos seus projetos semelhantes ao músico hábil que sem nada sentir ele próprio tira do instrumento que domina sons tocantes ou terríveis XV DA MODERAÇÃO DAS PENAS AS VERDADES até aqui expostas demonstram à evidência que o fim das penas não pode ser atormentar um ser sensível nem fazer que um crime não cometido seja cometido Como pode um corpo político que longe de se entregar às paixões deve ocuparse exclusivamente com pôr um freio nos particulares exercer crueldades inúteis e empregar o instrumento do furor do fanatismo e da covardia dos tiranos Poderão os gritos de um infeliz nos tormentos retirar do seio do passado que não volta mais uma ação já cometida Não Os castigos têm por fim único impedir o culpado de ser nocivo futuramente à sociedade e desviar seus concidadãos da senda do crime Entre as penas e na maneira de aplicálas proporcionalmente aos delitos é mister pois escolher os meios que devem causar no espírito público a impressão mais eficaz e mais durável e ao mesmo tempo menos cruel no corpo do culpado Quem não estremece de horror ao ver na história tantos tormentos atrozes e inúteis inventados e empregados friamente por monstros que se davam o nome de sábios Quem poderia deixar de tremer até ao fundo da alma ao ver os milhares de infelizes que o desespero força a retomar a vida selvagem para escapar a males insuportáveis causados ou tolerados por essas leis injustas que sempre acorrentaram e ultrajaram a multidão para favorecer unicamente um pequeno número de homens privilegiados Mas a superstição e a tirania os perseguem acusamnos de crimes impossíveis ou imaginários ou então são culpados mas somente de terem sido fiéis às leis da natureza Não importa Homens dotados dos mesmos sentidos e sujeitos às mesmas paixões se comprazem em julgálos criminosos têm prazer em seus tormentos dilaceramnos com solenidade aplicamlhes torturas e os entregam ao espetáculo de uma multidão fanática que goza lentamente com suas dores Quanto mais atrozes forem os castigos tanto mais audacioso será o culpado para evitá los Acumulará os crimes para subtrairse à pena merecida pelo primeiro Os países e os séculos em que os suplícios mais atrozes foram postos em prática são também aqueles em que se viram os crimes mais horríveis O mesmo espírito de ferocidade que ditava leis de sangue ao legislador punha o punhal nas mãos do assassino e do parricida Do alto do trono o soberano dominava com uma verga de ferro e os escravos só imolavam os tiranos para possuírem novos À medida que os suplícios se tornam mais cruéis a alma semelhante aos fluidos que se põem sempre ao nível dos objetos que os cercam endurecese pelo espetáculo renovado da barbárie A gente se habitua aos suplícios horríveis e depois de cem anos de crueldades multiplicadas as paixões sempre ativas são menos refreadas pela roda e pela força do que antes o eram pela prisão Para que o castigo produza o efeito que dele se deve esperar basta que o mal que causa ultrapasse o bem que o culpado retirou do crime Devem contarse ainda como parte do castigo os terrores que precedem a execução e a perda das vantagens que o crime devia produzir Toda severidade que ultrapasse os limites se torna supérflua e por conseguinte tirânica Os males que os homens conhecem por funesta experiência regularão melhor a sua conduta do que aqueles que eles ignoram Suponde duas nações entre aquelas em que as penas são proporcionais aos delitos Sendo a escravidão perpétua o maior castigo em uma e o suplício o maior em outra é certo que essas duas penas inspirarão em cada uma igual terror E se houvesse uma razão para transportar para o primeiro povo os castigos mais rigorosos estabelecidos no segundo a mesma razão conduziria a aumentar para este a crueldade dos suplícios passando insensivelmente do uso da roda para tormentos mais lentos e mais requintados em suma para o último refinamento da ciência dos tiranos A crueldade das penas produz ainda dois resultados funestos contrários ao fim do seu estabelecimento que é prevenir o crime Em primeiro lugar é muito difícil estabelecer uma justa proporção entre os delitos e as penas porque embora uma crueldade industriosa tenha multiplicado as espécies de tormentos nenhum suplício pode ultrapassar o último grau da força humana limitada pela sensibilidade e a organização do corpo do homem Além desses limites se surgirem crimes mais hediondos onde se encontrarão penas bastante cruéis Em segundo lugar os suplícios mais horríveis podem acarretar às vezes a impunidade A energia da natureza humana é circunscrita no mal como no bem Espetáculos demasiado bárbaros só podem ser o resultado dos furores passageiros de um tirano e não ser sustentados por um sistema constante de legislação Se as leis são cruéis ou logo serão modificadas ou não mais poderão vigorar e deixarão o crime impune Termino por esta reflexão que o rigor das penas deve ser relativo ao estado atual da nação São necessárias impressões fortes e sensíveis para impressionar o espírito grosseiro de um povo que sai do estado selvagem Para abater o leão furioso é necessário o raio cujo ruído só faz irritálo Mas à medida que as almas se abrandam no estado de sociedade o homem se torna mais sensível e se se quiser conservar as mesmas relações entre o objeto e a sensação as penas devem ser menos rigorosas XVI DA PENA DE MORTE ANTE o espetáculo dessa profusão de suplícios que jamais tornaram os homens melhores eu quero examinar se a pena de morte é verdadeiramente útil e se é justa num governo sábio Quem poderia ter dado a homens o direito de degolar seus semelhantes Esse direito não tem certamente a mesma origem que as leis que protegem A soberania e as leis não são mais do que a soma das pequenas porções de liberdade que cada um cedeu à sociedade Representam a vontade geral resultado da união das vontades particulares Mas quem já pensou em dar a outros homens o direito de tirar lhe a vida Será o caso de supor que no sacrifício que faz de uma pequena parte de sua liberdade tenha cada indivíduo querido arriscar a própria existência o mais precioso de todos os bens Se assim fosse como conciliar esse princípio com a máxima que proíbe o suicídio Ou o homem tem o direito de se matar ou não pode ceder esse direito a outrem nem à sociedade inteira A pena de morte não se apoia assim em nenhum direito É uma guerra declarada a um cidadão pela nação que julga a destruição desse cidadão necessária ou útil Se eu provar porém que a morte não é útil nem necessária terei ganho a causa da humanidade A morte de um cidadão só pode ser encarada como necessária por dois motivos nos momentos de confusão em que uma nação fica na alternativa de recuperar ou de perder sua liberdade nas épocas de confusão em que as leis são substituídas pela desordem e quando um cidadão embora privado de sua liberdade pode ainda por suas relações e seu crédito atentar contra a segurança pública podendo sua existência produzir uma revolução perigosa no governo estabelecido Mas sob o reino tranqüilo das leis sob uma forma de governo aprovada pela nação inteira num Estado bem defendido no exterior e sustentado no interior pela força e pela opinião talvez mais poderosa do que a própria força num país em que a autoridade é exercida pelo próprio soberano em que as riquezas só podem proporcionar prazeres e não poder não pode haver nenhuma necessidade de tirar a vida a um cidadão a menos que a morte seja o único freio capaz de impedir novos crimes A experiência de todos os séculos prova que a pena de morte nunca deteve celerados determinados a fazer mal Essa verdade se apoia no exemplo dos romanos e nos vinte anos do reinado da imperatriz da Rússia a benfeitora Izabel13 que deu aos chefes dos povos uma lição mais ilustre do que todas as brilhantes conquistas que a pátria só alcança ao preço do sangue dos seus filhos Se os homens a quem a linguagem da razão é sempre suspeita e que só se rendem à autoridade dos antigos usos se recusam à evidência dessas verdades bastarlhesá interrogar a natureza e consultar o próprio coração para testemunhar os princípios que acabam de ser estabelecidos O rigor do castigo causa menos efeito sobre o espírito humano do que a duração da pena porque a nossa sensibilidade é mais fácil e mais constantemente afetada por uma impressão ligeira mas freqüente do que por um abalo violento mas passageiro Todo ser sensível está submetido ao império do hábito e como é este que ensina o homem a falar a andar a satisfazer suas necessidades é também ele que grava no coração do homem as idéias de moral por impressões repetidas O espetáculo atroz mas momentâneo da morte de um celerado é para o crime um freio menos poderoso do que o longo e contínuo exemplo de um homem privado de sua liberdade tornado até certo ponto uma besta de carga e que repara com trabalhos penosos o dano que causou à sociedade Essa volta freqüente do espectador a si mesmo Se eu cometesse um crime estaria reduzido toda a minha vida a essa miserável condição essa idéia terrível assombraria mais fortemente os espíritos do que o medo da morte que se vê apenas um instante numa obscura distância que lhe enfraquece o horror A impressão produzida pela visão dos suplícios não pode resistir à ação do tempo e das paixões que logo apagam da memória dos homens as coisas mais essenciais Por via de regra as paixões violentas surpreendem vivamente mas o seu efeito não dura Produzirão uma dessas revoluções súbitas que fazem de repente de um homem comum um romano ou um espartano Mas num governo tranqüilo e livre são necessárias menos paixões violentas do que impressões duráveis Para a maioria dos que assistem à execução de um criminoso o suplício deste é apenas um espetáculo para a minoria é um objeto de piedade mesclado de indignação Esses dois sentimentos ocupam a alma do espectador bem mais do que o terror salutar que é o fim da pena de morte Mas as penas moderadas e contínuas só produzem nos espectadores o sentimento do medo No primeiro caso sucede ao espectador do suplício o mesmo que ao espectador do drama e assim como o avaro retorna ao seu cofre o homem violento e injusto retorna às suas injustiças O legislador deve por conseguinte pôr limites ao rigor das penas quando o suplício não se torna mais do que um espetáculo e parece ordenado mais para ocupar a força do que para punir o crime Para que uma pena seja justa deve ter apenas o grau de rigor bastante para desviar os homens do crime Ora não há homem que possa vacilar entre o crime mau grado a vantagem que este prometa e o risco de perder para sempre a liberdade Assim pois a escravidão perpétua substituindo a pena de morte tem todo o rigor necessário para afastar do crime o espírito mais determinado Digo mais encarase muitas vezes a morte de modo tranqüilo e firme uns por fanatismo outros por essa vaidade que nos acompanha mesmo além do túmulo Alguns desesperados fatigados da vida vêem na morte um meio de se livrar da miséria Mas o fanatismo e a vaidade desaparecem nas cadeias sob os golpes em meio às barras de ferro O desespero não lhes põe fim aos males mas os começa Nossa alma resiste mais à violência das dores extremas apenas passageiras do que ao tempo e à continuidade do desgosto Todas as forças da alma reunindose contra males passageiros podem enfraquecerlhes a ação mas todas as suas molas acabam por ceder a penas longas e constantes Numa nação em que a pena de morte é empregada é forçoso para cada exemplo que se dá um novo crime ao passo que a escravidão perpétua de um único culpado põe sob os olhos do povo um exemplo que subsiste sempre e se repete Se é mister que os homens tenham sempre sob os olhos os efeitos do poder das leis é preciso que os suplícios sejam freqüentes e desde então é preciso também que os crimes se multipliquem o que provará que a pena de morte não causa toda a impressão que deveria produzir e que é inútil quando julgada necessária Dirseá que a escravidão perpétua é também uma pena rigorosa e por conseguinte tão cruel quanto a morte Responderei que reunindo num ponto todos os momentos infelizes da vida de um escravo sua vida seria talvez mais horrível do que os suplícios mais atrozes mas esses momentos ficam espalhados por todo o curso da vida ao passo que a pena de morte exerce todas as suas forças num só instante A vantagem da pena da escravidão para a sociedade é que amedronta mais aquele que a testemunha do que quem a sofre porque o primeiro considera a soma de todos os momentos infelizes ao passo que o segundo se alheia de suas penas futuras pelo sentimento da infelicidade presente A imaginação aumenta todos os males Aquele que sofre encontra em sua alma endurecida pelo hábito da desgraça consolações e recursos que as testemunhas dos seus males não conhecem porque julgam segundo sua sensibilidade do momento É somente por uma boa educação que se aprende a desenvolver e a dirigir os sentimentos do próprio coração Mas embora os celerados não possam perceber os seus princípios nem por isso deixam de agir segundo um certo raciocínio Ora eis mais ou menos como raciocina um assassino ou um ladrão que só se afasta do crime pelo medo do poder ou da roda Quais são afinal as leis que devo respeitar e que deixam tão grande intervalo entre mim e o rico O homem opulento recusame com dureza a pequena esmola que lhe peço e me manda para o trabalho que eu jamais conheci Quem fez essas leis Homens ricos e poderosos que jamais se dignaram de visitar a miserável choupana do pobre que não viram repartir um pão grosseiro aos seus pobres filhos famintos e à sua mãe desolada Rompamos as convenções vantajosas somente para alguns tiranos covardes mas funestas para a maioria Ataquemos a injustiça em sua fonte Sim retornarei ao meu estado de independência natural viverei livre provarei por algum tempo os frutos felizes da minha astúcia e da minha coragem À frente de alguns homens determinados como eu corrigirei os enganos da fortuna e verei meus tiranos tremer e empalidecer quando virem aquele que o seu fausto insolente punha abaixo dos cavalos e dos cães Talvez venha uma época de dor e de arrependimento mas essa época será curta e por um dia de sofrimento terei gozado vários anos de liberdade e de prazeres Se a religião se apresentar então ao espírito desse infeliz não o intimidará diminuirá mesmo aos seus olhos o horror do último suplício oferecendolhe a esperança de um arrependimento fácil e da felicidade eterna que é seu fruto Mas aquele que tem diante dos olhos um grande número de anos ou mesmo a vida inteira que passar na escravidão e na dor exposto ao desprezo dos seus concidadãos dos quais fora um igual escravo dessas leis pelas quais era protegido faz uma comparação útil de todos os males do êxito incerto do crime e do pouco tempo que terá para gozar O exemplo sempre presente dos infelizes que ele vê vítimas da imprudência impressionao muito mais do que os suplícios que podem endurecêlo mas não corrigi lo A pena de morte é ainda funesta à sociedade pelos exemplos de crueldade que dá aos homens Se as paixões ou a necessidade da guerra ensinam a espalhar o sangue humano as leis cujo fim é suavizar os costumes deveriam multiplicar essa barbaria tanto mais horrível quanto dá a morte com mais aparato e formalidades Não é absurdo que as leis que são a expressão da vontade geral que detestam e punem o homicídio ordenem um morticínio público para desviar os cidadãos do assassínio Quais são as leis mais justas e mais úteis São as que todos proporiam e desejariam observar nesses momentos em que o interesse particular se cala ou se identifica com o interesse público Qual é o sentimento geral sobre a pena de morte Está traçado em caracteres indeléveis nesses movimentos de indignação e de desprezo que nos inspira a simples visão do carrasco que não é contudo senão o executor inocente da vontade pública um cidadão honesto que contribui para o bem geral e que defende a segurança do Estado no interior como o soldado a defende no exterior Qual é pois a origem dessa contradição E porque esse sentimento de horror resiste a todos os esforços da razão É que numa parte recôndita da nossa alma na qual os princípios naturais ainda não foram alterados descobrimos um sentimento que nos grita que um homem não tem nenhum direito legítimo sobre a vida de outro homem e que só a necessidade que estende por toda parte o seu cetro de ferro pode dispor da nossa existência Que se deve pensar ao ver o sábio magistrado e os ministros sagrados da justiça fazer arrastar um culpado à morte com cerimônia com tranqüilidade com indiferença E enquanto o infeliz espera o golpe fatal por entre convulsões e angústias o juiz que acaba de o condenar deixa friamente o tribunal para ir provar em paz as doçuras e os prazeres da vida e talvez louvarse com secreta complacência pela autoridade que acaba de exercer Não será o caso de dizer que essas leis são apenas a máscara da tirania que essas formalidades cruéis e refletidas da justiça são simplesmente um pretexto para imolarnos com mais confiança como vítimas sacrificadas ao despotismo insaciável O assassínio que nos aparece como um crime horrível nós o vemos cometer friamente e sem remorso Não poderemos autorizarnos com esse exemplo Pintavamnos a morte violenta como uma cena terrível e é apenas questão de um momento Será menos ainda para aquele que tiver coragem de irlhe ao encontro e de pouparse desse modo tudo o que ela tem de doloroso Tais são os tristes e funestos raciocínios que perdem uma cabeça já disposta ao crime um espírito mais capaz de se deixar conduzir pelos abusos da religião do que pela religião mesma A história dos homens é um imenso oceano de erros no qual se vê sobrenadar uma ou outra verdade mal conhecida Não me oponham pois o exemplo da maior parte das nações que em quase todos os tempos aplicaram a pena de morte contra certos crimes esses exemplos nenhuma força têm contra a verdade que é sempre tempo de reconhecer Nesse caso aprovarseiam os sacrifícios humanos porque estiveram geralmente em uso entre todos os povos primitivos Mas se descubro alguns povos que se abstiveram mesmo durante um curto espaço de tempo do emprego da pena de morte posso prevalecerme disso com razão pois o destino das grandes verdades é não brilhar senão com a duração do relâmpago no meio da longa noite de trevas que envolve o gênero humano Ainda não chegaram os dias felizes em que a verdade eliminará o erro e se tornará apanágio de maioria em que o gênero humano não será iluminado somente pelas verdades reveladas Sinto quanto a voz fraca de um filósofo será facilmente abafada pelos gritos tumultuosos dos fanáticos escravos do preconceito Mas o pequeno número de sábios espalhados pela superfície da terra saberá entenderme seu coração aprovará meus esforços e se mau grado todos os obstáculos que a afastam do trono a verdade pudesse penetrar até aos ouvidos dos príncipes saibam eles que essa verdade lhes leva os votos secretos da humanidade inteira saibam que se protegerem a verdade santa sua glória ofuscará a dos mais famosos conquistadores e a eqüitativa posteridade colocará seus nomes acima dos Titos14 dos Antoninos15 e dos Trajanos16 Feliz o gênero humano se pela primeira vez recebesse leis Hoje que vemos elevados nos tronos da Europa príncipes benfeitores amigos das virtudes pacíficas protetores das ciências e das artes pais dos seus povos e cidadãos coroados quando esses príncipes consolidando sua autoridades trabalham para a felicidade dos seus súditos quando destroem esse despotismo intermediário tanto mais cruel quanto menos solidamente estabelecido quando comprimem os tiranos subalternos que interceptam os votos do povo e os impedem de chegar até ao trono onde seriam escutados quando se considera que se tais príncipes deixam subsistir leis defeituosas é porque são premidos pela extrema dificuldade de destruir erros acreditados por uma longa série de séculos e protegidos por um certo número de homens interessados que punem todo cidadão esclarecido deve desejar com ardor que o poder desses soberanos ainda aumente e se torne bastante grande para permitirlhes a reforma de uma legislação funesta XVII DO BANIMENTO E DAS CONFISCAÇÕES AQUELE que perturba a tranqüilidade pública que não obedece às leis que viola as condições sob as quais os homens se sustentam e se defendem mutuamente esse deve ser excluído da sociedade isto é banido Pareceme que se poderiam banir aqueles que acusados de um crime atroz são suspeitos de culpa com maior verossimilhança mas sem estar plenamente convencidos do crime Em casos semelhantes seria mister que uma lei a menos arbitrária e a mais precisa possível condenasse ao banimento aquele que pusesse a nação na fatal alternativa de fazer uma injustiça ou de temer um acusado Seria mister igualmente que essa lei deixasse ao banido o direito sagrado de poder a todo instante provar sua inocência e recuperar os seus direitos Seria mister enfim que houvesse razões mais fortes para banir um cidadão acusado pela primeira vez do que para condenar a essa pena um estrangeiro ou um homem que já tivesse sido chamado à justiça Mas deve aquele que se bane que se exclui para sempre da sociedade de que fazia parte ser ao mesmo tempo privado dos seus bens Essa questão pode ser encarada sob diferentes aspectos A perda dos bens é uma pena maior que a do banimento Deve pois haver casos em que para proporcionar a pena ao crime se confiscarão todos os bens do banido Em outras circunstâncias só será despojado de uma parte de sua fortuna e para certos delitos o banimento não será acompanhado de nenhuma confiscação O culpado poderá perder todos os seus bens se a lei que pronuncia o banimento declara rompidos todos os laços que o ligavam à sociedade porque desde então o cidadão está morto resta somente o homem e perante a sociedade a morte política de um cidadão deve ter as mesmas conseqüências que a morte natural Segundo essa máxima dirseá talvez que é evidente que os bens do culpado deveriam reverter para os herdeiros legítimos e não para o príncipe não é nisso porém que me apoiarei para desaprovar as confiscações Se alguns jurisconsultos sustentaram que as confiscações punham um freio às vinganças dos particulares banidos tirandolhes o poder de ser nocivos é que não refletiram que não basta uma pena produzir algum bem para ser justa Uma pena só é justa quando necessária Um legislador não autorizará nunca uma injustiça útil se quer prevenir as invasões da tirania que vela sem cessar que seduz e abusa pelo pretexto falaz de algumas vantagens momentâneas e que faz deperecer em pranto e na miséria um povo cuja ruína prepara para espalhar a abundância e a felicidade sobre uma minoria de homens privilegiados O uso das confiscações põe continuamente a prêmio a cabeça do infeliz sem defesa e faz o inocente sofrer os castigos reservados aos culpados Pior ainda as confiscações podem fazer do homem de bem um criminoso pois o levam ao crime reduzindoo à indigência e ao desespero E além disso não há espetáculo mais hediondo que o de uma família inteira coberta de infâmia mergulhada nos horrores da miséria pelo crime do seu chefe crime que essa família submetida à autoridade do culpado não poderia prevenir mesmo que tivesse os meios para tanto XVIII DA INFÂMIA A INFÂMIA é um sinal da improbação pública que priva o culpado da consideração da confiança que a sociedade tinha nele e dessa espécie de fraternidade que une os cidadãos de um mesmo país Como os efeitos da infâmia não dependem absolutamente das leis é mister que a vergonha que a lei inflige se baseie na moral ou na opinião pública Se se tentasse manchar de infâmia uma ação que a opinião não julga infame ou a lei deixaria de ser respeitada ou as idéias aceitas de probidade e de morai desapareceriam mau grado todas as declamações dos moralistas sempre impotentes contra a força do exemplo Declarar infames ações indiferentes em si mesmas é diminuir a infâmia das que efetivamente merecem ser designadas desse modo Bem necessário é evitar que se punam com penas corporais e dolorosas certos delitos fundados no orgulho e que fazem dos castigos uma glória Tal é o fanatismo que só pode ser reprimido pelo ridículo e pela vergonha Se se humilhar à orgulhosa vaidade dos fanáticos perante uma grande multidão de espectadores devem esperarse felizes efeitos dessa pena pois que a própria verdade tem necessidade dos maiores esforços para se defender quando é atacada pela arma do ridículo Opondo assim a força à força e a opinião à opinião um legislador esclarecido dissipa no espírito do povo a admiração que lhe causa um falso princípio cujo absurdo lhe foi dissimulado com raciocínios especiosos As penas infamantes devem ser raras porque o emprego demasiado freqüente do poder da opinião enfraquece a força da própria opinião A infâmia não deve cair tão pouco sobre um grande número de pessoas ao mesmo tempo porque a infâmia de um grande número não é mais em breve a infâmia de ninguém Tais são os meios de harmonizar as relações invariáveis das coisas e de atender à natureza que sempre ativa e jamais sujeita aos limites do tempo destrói e revoga todas as leis que se afastam dela Não é só nas belasartes que é preciso seguir fielmente a natureza as instituições políticas ao menos aquelas que têm um caráter de sabedoria e elementos de duração se fundam na natureza e a verdadeira política não é outra coisa senão a arte de dirigir para o mesmo fim de utilidade os sentimentos imutáveis do homem XIX DA PUBLICIDADE E DA PRESTEZA DAS PENAS QUANTO mais pronta for a pena e mais de perto seguir o delito tanto mais justa e útil ela será Mais justa porque poupará ao acusado os cruéis tormentos da incerteza tormentos supérfluos cujo horror aumenta para ele na razão da força de imaginação e do sentimento de fraqueza A presteza do julgamento é justa ainda porque a perda da liberdade sendo já uma pena esta só deve preceder a condenação na estrita medida que a necessidade o exige Se a prisão é apenas um meio de deter um cidadão até que ele seja julgado culpado como esse meio é aflitivo e cruel devese tanto quanto possível suavizarlhe o rigor e a duração Um cidadão detido só deve ficar na prisão o tempo necessário para a instrução do processo e os mais antigos detidos têm direito de ser julgados em primeiro lugar O acusado não deve ser encerrado senão na medida em que for necessário para o impedir de fugir ou de ocultar as provas do crime O processo mesmo deve ser conduzido sem protelações Que contraste hediondo entre a indolência de um juiz e a angústia de um acusado De um lado um magistrado insensível que passa os dias no bemestar e nos prazeres e de outro um infeliz que definha a chorar no fundo de uma masmorra abominável Os efeitos do castigo que se segue ao crime devem ser em geral impressionantes e sensíveis para os que o testemunharam haverá porém necessidade de que esse castigo seja tão cruel para quem o sofre Quando os homens se reuniram em sociedade foi para só se sujeitarem aos mínimos males possíveis e não há país que possa negar esse princípio incontestável Eu disse que a presteza da pena é útil e é certo que quanto menos tempo decorrer entre o delito e a pena tanto mais os espíritos ficarão compenetrados da idéia de que não há crimes sem castigo tanto mais se habituarão a considerar o crime como a causa da qual o castigo é o efeito necessário e inseparável É a ligação das idéias que sustenta todo o edifício do entendimento humano Sem ela o prazer e a dor seriam sentimentos isolados sem efeito tão cedo esquecidos quanto sentidos Os homens sem idéias gerais e princípios universais isto é os homens ignorantes e embrutecidos não agem senão segundo as idéias mais vizinhas e mais imediatamente unidas Negligenciam as relações distantes e essas idéias complicadas que só se apresentam ao homem fortemente apaixonado por um objeto ou aos espíritos esclarecidos A luz da atenção dissipa no homem apaixonado as trevas que cercam o vulgar O homem instruído acostumado a percorrer e a comparar rapidamente um grande número de idéias e de sentimentos opostos tira do contraste um resultado que constitui a base de sua conduta desde então menos incerta e menos perigosa É pois da maior importância punir prontamente um crime cometido se se quiser que no espírito grosseiro do vulgo a pintura sedutora das vantagens de uma ação criminosa desperte imediatamente a idéia de um castigo inevitável Uma pena por demais retardada torna menos estreita a união dessas duas idéias crime e castigo Se o suplício de um acusado causa então alguma impressão e somente como espetáculo pois só se apresenta ao espectador quando o horror do crime que contribui para fortificar o horror da pena já está enfraquecido nos espíritos Poderseia ainda estreitar mais a ligação das idéias de crime e de castigo dando à pena toda a conformidade possível com a natureza do delito a fim de que o receio de um castigo especial afaste o espírito do caminho a que conduzia a perspectiva de um crime vantajoso É preciso que a idéia do suplício esteja sempre presente no coração do homem fraco e domine o sentimento que o leva ao crime Entre vários povos punemse os crimes pouco consideráveis com a prisão ou com a escravidão num país distante isto é mandase o culpado levar um exemplo inútil a uma sociedade que ele não ofendeu Como os homens não se entregam a princípio aos maiores crimes a maior parte dos que assistem ao suplício de um celerado acusado de algum crime monstruoso não experimentam nenhum sentimento de terror ao verem um castigo que jamais imaginam poder merecer Ao contrário a punição pública dos pequenos delitos mais comuns causarlheá na alma uma impressão salutar que os afastará de grandes crimes desviandoos primeiro dos que o são menos XX QUE O CASTIGO DEVE SER INEVITÁVEL DAS GRAÇAS NÃO é o rigor do suplício que previne os crimes com mais segurança mas a certeza do castigo o zelo vigilante do magistrado e essa severidade inflexível que só é uma virtude no juiz quando as leis são brandas A perspectiva de um castigo moderado mas inevitável causará sempre uma forte impressão mais forte do que o vago temor de um suplício terrível em relação ao qual se apresenta alguma esperança de impunidade O homem treme à idéia dos menores males quando vê a impossibilidade de evitálos ao passo que a esperança doce filha do céu que tantas vezes nos proporciona todos os bens afasta sempre a idéia dos tormentos mais cruéis por pouco que ela seja sustentada pelo exemplo da impunidade que a fraqueza ou o amor do ouro tão freqüentemente concede As vezes a gente se abstém de punir um delito pouco importante quando o ofendido perdoa É um ato de benevolência mas um ato contrário ao bem público Um particular pode bem não exigir a reparação do mal que se lhe fez mas o perdão que ele concede não pode destruir a necessidade do exemplo O direito de punir não pertence a nenhum cidadão em particular pertence às leis que são o órgão da vontade de todos Um cidadão ofendido pode renunciar à sua porção desse direito mas não tem nenhum poder sobre a dos outros Quando as penas se tiverem tornado menos cruéis a demência e o perdão serão menos necessários Feliz a nação que não mais lhes desse o nome de virtudes A demência que se tem visto em alguns soberanos substituir outras qualidades que lhes faltavam para cumprir os deveres do trono deveria ser banida de uma legislação sábia na qual as penas fossem brandas e a justiça feita com formas prontas e regulares Essa verdade parecerá dura apenas aos que vivem submetidos aos abusos de uma jurisprudência criminal que concede a graça e o perdão necessários em razão mesmo da atrocidade das penas e do absurdo das leis O direito de conceder graça é sem dúvida a mais bela prerrogativa do trono é o mais precioso atributo do poder soberano mas ao mesmo tempo é uma improbação tácita das leis existentes O soberano que se ocupa com a felicidade pública e que julga contribuir para ela exercendo o direito de conceder graça elevase então contra o código criminal consagrado mau grado seus vícios pelos preconceitos antigos pelo calhamaço impostor dos comentadores pelo grave aparelho das velhas formalidades enfim pelo sufrágio dos semisábios sempre mais insinuantes e mais escutados do que os verdadeiros sábios Sendo a clemência virtude do legislador e não do executor das leis devendo manifestar se no Código e não em julgamentos particulares se se deixar ver aos homens que o crime pode ser perdoado e que o castigo nem sempre é a sua conseqüência necessária nutrese neles a esperança da impunidade fazse com que aceitem os suplícios não como atos de justiça mas como atos de violência Quando o soberano concede graça a um criminoso não será o caso de dizer que sacrifica a segurança pública à de um particular e que por um ato de cega benevolência pronuncia um decreto geral de impunidade Sejam pois as leis inexoráveis sejam os executores das leis inflexíveis seja porém o legislador indulgente e humano Arquiteto prudente dê por base ao seu edifício o amor que todo homem tem ao próprio bemestar e saiba fazer resultar o bem geral do concurso dos interesses particulares não se verá assim constrangido a recorrer a leis imperfeitas a meios pouco refletidos que separam a cada instante os interesses da sociedade dos cidadãos não será forçado a elevar sobre o medo e a desconfiança o simulacro da felicidade pública Filósofo profundo e sensível terá deixado aos seus irmãos o gozo pacífico da pequena porção de felicidade que o Ser supremo lhes concedeu nesta terra que não é mais do que um ponto no meio de todos os mundos XXI DOS ASILOS SERÃO justos os asilos E será útil o uso estabelecido entre as nações de permutarem entre si os criminosos Em toda a extensão de um Estado político não deve haver nenhum lugar fora da dependência das leis A força destas deve seguir o cidadão por toda a parte como a sombra segue o corpo Há pouca diferença entre a impunidade e os asilos e como o melhor meio de impedir o crime é a perspectiva de um castigo certo e inevitável os asilos que representam um abrigo contra a ação das leis convidam mais ao crime do que as penas o evitam do momento em que se tem a esperança de evitálos Multiplicar os asilos é formar pequenas soberanias porque quando as leis não têm poder novas potências se formam de ordem comum estabelecese um espírito oposto ao do corpo inteiro da sociedade Vêse na história de todos os povos que os asilos foram a fonte de grandes revoluções nos Estados e nas opiniões humanas Pretenderam alguns que cometido um crime num lugar isto é um ato contrário às leis teriam estas em toda parte o direito de punir Será a qualidade de súdito nesse caso um caráter indelével Será o nome de súdito pior que o de escravo E admitirseá que um homem habite um país e seja submetido às leis de outro país que suas ações fiquem ao mesmo tempo subordinadas a dois soberanos e a duas legislações muitas vezes contraditórias Ousouse dizer assim que um crime cometido em Constantinopla podia ser punido em Paris porque aquele que ofende uma sociedade humana merece ter todos os homens por inimigos e deve ser objeto da execração universal No entanto os juizes não são vingadores do gênero humano em geral são os defensores das convenções particulares que ligam entre si um certo número de homens Um crime só deve ser punido no país onde foi cometido porque é somente aí e não em outra parte que os homens são forçados a reparar pelo exemplo da pena os funestos efeitos que o exemplo do crime pode produzir Um celerado cujos crimes precedentes não puderam violar as leis de uma sociedade da qual não era membro pode bem ser temido e expulso dessa sociedade mas as leis não podem infligirlhe outra pena pois são feitas somente para punir o mal que lhe é feito e não o crime que não as ofende Será pois útil que as nações permutem reciprocamente entre si os criminosos Certamente a persuasão de não encontrar nenhum lugar na terra em que o crime possa ficar impune seria um meio bem eficaz de prevenilo Não ousarei porém decidir essa questão até que as leis tornandose mais conformes aos sentimentos naturais do homem com penas mais brandas impedindo o arbítrio dos juizes e da opinião assegurem a inocência e preservem a virtude das perseguições da inveja até que a tirania relegada ao Oriente tenha deixado a Europa sob o doce império da razão dessa razão eterna que une com um laço indissolúvel os interesses dos soberanos aos interesses dos povos XXII DO USO DE PÔR A CABEÇA A PRÊMIO SERÁ vantajoso para a sociedade pôr a prêmio a cabeça de um criminoso armar cada cidadão de um punhal e fazer assim outros tantos carrascos Ou o criminoso saiu do país ou ainda está nele No primeiro caso excitamse os cidadãos a cometer um assassínio a atingir talvez um inocente a merecer suplícios Fazse uma injúria à nação estrangeira espezinhaselhe a autoridade autorizase que se façam semelhantes usurpações entre os próprios vizinhos Se o criminoso ainda está no país cujas leis violou o governo que põe sua cabeça a prêmio revela fraqueza Quando a gente tem força para defenderse não compra o socorro de outrem Além disso o uso de pôr a prêmio a cabeça de um cidadão anula todas as idéias de moral e de virtude tão fracas e tão abaladas no espírito humano De um lado as leis punem a traição de outro autorizamna O legislador aperta com uma das mãos os laços de sangue e de amizade e com a outra recompensa aquele que os quebra Sempre em contradição consigo mesmo ora procura espalhar a confiança e animar os que duvidam ora semeia a desconfiança em todos os corações Para prevenir um crime faz nascer cem Semelhantes usos só convêm às nações fracas cujas leis só servem para sustentar por um momento um edifício de ruínas que todo se esboroa Mas à medida que as luzes de uma nação se difundem a boa fé e a confiança recíproca se tornam necessárias e a política é enfim constrangida a admitilas Então desmanchamse e previnemse mais facilmente as cabalas os artifícios as manobras obscuras e indiretas Então também o interesse geral sai sempre vencedor dos interesses particulares Os povos esclarecidos poderiam buscar lições em alguns séculos de ignorância nos quais a moral particular era sustentada pela moral pública As nações só serão felizes quando a sã moral estiver estreitamente ligada à política Mas leis que recompensam a traição que acendem entre os cidadãos uma guerra clandestina que excitam suspeitas recíprocas oporseão sempre a essa união tão necessária da política e da moral união que daria aos homens segurança e paz que lhes aliviaria a miséria e que traria às nações mais longos intervalos de repouso e concórdia do que aqueles de que até ao presente gozaram XXIII QUE AS PENAS DEVEM SER PROPORCIONADAS AOS DELITOS O INTERESSE de todos não é somente que se cometam poucos crimes mais ainda que os delitos mais funestos à sociedade sejam os mais raros Os meios que a legislação emprega para impedir os crimes devem pois ser mais fortes à medida que o delito é mais contrário ao bem público e pode tornarse mais comum Deve pois haver uma proporção entre os delitos e as penas Se o prazer e a dor são os dois grandes motores dos seres sensíveis se entre os motivos que determinam os homens em todas as suas ações o supremo Legislador colocou como os mais poderosos as recompensas e as penas se dois crimes que atingem desigualmente a sociedade recebem o mesmo castigo o homem inclinado ao crime não tendo que temer uma pena maior para o crime mais monstruoso decidirseá mais facilmente pelo delito que lhe seja mais vantajosos e a distribuição desigual das penas produzirá a contradição tão notória quando freqüente de que as leis terão de punir os crimes que tiveram feito nascer Se se estabelece um mesmo castigo a pena de morte por exemplo para quem mata um faisão e para quem mata um homem ou falsifica um escrito importante em breve não se fará mais nenhuma diferença entre esses delitos destruirseão no coração do homem os sentimentos morais obra de muitos séculos cimentada por ondas de sangue estabelecida com lentidão através mil obstáculos edifício que só se pode elevar com o socorro dos mais sublimes motivos e o aparato das mais solenes formalidades Seria em vão que se tentaria prevenir todos os abusos que se originam da fermentação contínua das paixões humanas esses abusos crescem em razão da população e do choque dos interesses particulares que é impossível dirigir em linha reta para o bem público Não se pode provar essa asserção com toda a exatidão matemática podese porém apoiála com exemplos notáveis Lançai os olhos sobre a história e vereis crescerem os abusos à medida que os impérios aumentam Ora como o espírito nacional se enfraquece na mesma proporção o pendor para o crime crescerá em razão da vantagem que cada um descobre no abuso mesmo e a necessidade de agravar as penas seguirá necessariamente igual progressão Semelhante à gravitação dos corpos uma força secreta impelenos sempre para o nosso bem estar Essa impulsão só é enfraquecida pelos obstáculos que as leis lhe opõem Todos os diversos atos do homem são efeitos dessa tendência interior As penas são os obstáculos políticos que impedem os funestos efeitos do choque dos interesses pessoais sem destruirlhes a causa que é o amor de si mesmo inseparável da humanidade O legislador deve ser um arquiteto hábil que saiba ao mesmo tempo empregar todas as forças que podem contribuir para consolidar o edifício e enfraquecer todas as que possam arruinálo Supondose a necessidade da reunião dos homens em sociedade mediante convenções estabelecidas pelos interesses opostos de cada particular acharseá um progressão de crimes dos quais o maior será aquele que tende à destruição da própria sociedade Os menores delitos serão as pequenas ofensas feitas aos particulares Entre esses dois extremos estarão compreendidos todos os atos opostos ao bem público desde o mais criminoso até ao menos passível de culpa Se os cálculos exatos pudessem aplicarse a todas as combinações obscuras que fazem os homens agir seria mister procurar e fixar uma progressão de penas correspondente à progressão dos crimes O quadro dessas duas progressões seria a medida da liberdade ou da escravidão da humanidade ou da maldade de cada nação Bastará contudo que o legislador sábio estabeleça divisões principais na distribuição das penas proporcionadas aos delitos e que sobretudo não aplique os menores castigos aos maiores crimes XXIV DA MEDIDA DOS DELITOS JÁ observamos que a verdadeira medida dos delitos é o dano causado à sociedade Eis aí uma dessas verdades que embora evidentes para o espírito menos perspicaz mas ocultas por um concurso singular de circunstâncias só são conhecidas de um pequeno número de pensadores em todos os países e em todos os séculos cujas leis conhecemos As opiniões espalhadas pelos déspotas e as paixões dos tiranos abafaram as noções simples e as idéias naturais que constituíam sem dúvida a filosofia das sociedades primitivas Mas se a tirania comprimiu a natureza por uma ação insensível ou por impressões violentas sobre os espíritos da multidão hoje enfim as luzes do nosso século dissipam os tenebrosos projetos do despotismo reconduzindonos aos princípios da filosofia e mostrandonolos com mais certeza Esperemos que a funesta experiência dos séculos passados não seja perdida e que os princípios naturais reapareçam entre os homens mau grado todos os obstáculos que se lhes opõem A grandeza do crime não depende da intenção de quem o comete como erroneamente o julgaram alguns porque a intenção do acusado depende das impressões causadas pelos objetos presentes e das disposições precedentes da alma Esses sentimentos variam em todos os homens e no mesmo indivíduo com a rápida sucessão das idéias das paixões e das circunstâncias Se se punisse a intenção seria preciso ter não só um Código particular para cada cidadão mas uma nova lei penal para cada crime Muitas vezes com a melhor das intenções um cidadão faz à sociedade os maiores males ao passo que um outro lhe presta grandes serviços com a vontade de prejudicar Outros jurisconsultos medem a gravidade do crime pela dignidade da pessoa ofendida de preferência ao mal que possa causar à sociedade Se esse método fosse aceito uma pequena irreverência para com o Ser supremo mereceria uma pena bem mais severa do que o assassínio de um monarca pois a superioridade da natureza divina compensaria infinitamente a diferença da ofensa Outros finalmente julgaram o delito tanto mais grave quanto maior a ofensa à Divindade Sentirseá facilmente quanto essa opinião é falsa se se examinarem com sanguefrio as verdadeiras relações que unem os homens entre si e as que existem entre o homem e Deus As primeiras são relações de igualdade Só a necessidade faz nascer do choque das paixões e da posição dos interesses particulares a idéia da unidade comum base da justiça humana Ao contrário as relações que existem entre o homem e Deus são relações de dependência que nos submetem a um ser perfeito e criador de todas as coisas a um senhor soberano que somente a si reservou o direito de ser ao mesmo tempo legislador e juiz somente ele pode ser a um tempo uma e outra coisa Se ele estabeleceu penas eternas para aquele que infringiu suas leis qual será o inseto bastante temerário que ousará vir em socorro de sua justiça divina para empreender vingar o ser que se basta a si mesmo que os crimes não podem entristecer que os castigos não podem alegrar e que é o único na natureza a agir de maneira constante A grandeza do pecado ou da ofensa para com Deus depende da maldade do coração e para que os homens pudessem sondar esse abismo serlhesia preciso o socorro da revelação Como poderiam eles determinar as penas dos diferentes crimes sobre princípios cuja base lhes é desconhecida Seria arriscado punir quando Deus perdoa e perdoar quando Deus pune Se os homens ofendem a Deus com o pecado muitas vezes o ofendem mais ainda encarregandose do cuidado de vingálo XXV DIVISÃO DOS DELITOS HÁ crimes que tendem diretamente à destruição da sociedade ou dos que a representam Outros atingem o cidadão em sua vida nos seus bens ou em sua honra Outros finalmente são atos contrários ao que a lei prescreve ou proíbe tendo em vista o bem público Todo ato não compreendido numa dessas classes não pode ser considerado como crime nem punido como tal senão pelos que descobrem nisso o seu interesse particular Por não se ter sabido guardar esses limites é que se vê em todas as nações uma oposição entre as leis e a moral e muitas vezes uma oposição entre aquelas mesmas O homem de bem está exposto às penas mais severas As palavras vício e virtude não passam de sons vagos A existência do cidadão envolvese de incerteza e os corpos políticos caem numa letargia funesta que os conduz insensivelmente à ruína Cada cidadão pode fazer tudo o que não é contrário às leis sem temer outros inconvenientes além dos que podem resultar de sua ação em si mesma Esse dogma político deveria ser gravado no espírito dos povos proclamado pelos magistrados supremos e protegido pelas leis Sem esse dogma sagrado toda sociedade legítima não pode subsistir por muito tempo porque ele é a justa recompensa do sacrifício que os homens fizeram de sua independência e de sua liberdade É essa opinião que torna as almas fortes e generosas que eleva o espírito que inspira aos homens uma virtude superior ao medo e os faz desprezar essa miserável maleabilidade que tudo aprova e que é a única virtude dos homens bastante fracos para suportar constantemente uma existência precária e incerta Percorramse com visão filosófica as leis e a história das nações e se verão quase sempre os nomes de vício e virtude de bom e mau cidadão mudarem de valor segundo o tempo e as circunstâncias Não são porém as reformas operadas no Estado ou nos negócios públicos que causarão essa revolução das idéias esta será a conseqüência dos erros e dos interesses passageiros dos diferente legisladores Muitas vezes se verão as paixões de um século servir de base à moral dos séculos seguintes e formar toda a política dos que presidem às leis Mas as paixões fortes filhas do fanatismo e do entusiasmo obrigam a pouco e pouco à força de excessos o legislador à prudência e podem tornarse um instrumento útil nas mãos da astúcia ou do poder quando o tempo as tiver enfraquecido Foi do enfraquecimento das paixões fortes que nasceram entre os homens as noções obscuras de honra e virtude e essa obscuridade subsistirá sempre porque as idéias mudam com o tempo que deixa sobreviver os nomes às coisas que variam segundo os lugares e os climas é que a moral esta submetida como os impérios a limites geográficos XXVI DOS CRIMES DE LESA MAJESTADE OS crimes de lesamajestade foram postos na classe dos grandes crimes porque são funestos à sociedade Mas a tirania e a ignorância que confundem as palavras e as idéias mais claras deram esse nome a uma multidão de delitos de natureza inteiramente diversa Aplicaramse as penas mais graves a faltas leves e nessa ocasião como em mil outras o homem é muitas vezes vítima de uma palavra Toda espécie de delito é nociva à sociedade mas nem todos os delitos tendem imediatamente a destruir É preciso julgar as ações morais por seus efeitos positivos e ter em conta o tempo e o lugar Só a arte das interpretações odiosas que é ordinariamente a ciência dos escravos pode confundir coisas que a verdade eterna separou por limites imutáveis XXVII DOS ATENTADOS CONTRA A SEGURANÇA DOS PARTICULARES E PRINCIPALMENTE DAS VIOLÊNCIAS DEPOIS dos crimes que atingem a sociedade ou o soberano que a representa vêm os atentados contra a segurança dos particulares Como essa segurança é o fim de todas as sociedades humanas não se pode deixar de punir com as penas mais graves aquele que a atinge Entre esses crimes uns são atentados contra a vida outros contra a honra e outros contra os bens Falaremos antes dos primeiros que devem ser punidos com penas corporais Os atentados contra a vida e a liberdade dos cidadãos estão no número dos grandes crimes Compreendemse nessa classe não somente os assassínios e os assaltos cometidos por homens do povo mas igualmente as violências da mesma natureza exercidas pelos grandes e pelos magistrados crimes tanto mais graves quanto as ações dos homens elevados agem sobre a multidão com muito mais influência e os seus excessos destroem no espírito dos cidadãos as idéias de justiça e de dever para substituir as do direito do mais forte direito igualmente perigoso para quem dele abusa e para quem o sofre Se os grandes e os ricos podem escapar a preço de dinheiro às penas que merecem os atentados contra a segurança do fraco e do pobre as riquezas que sob a proteção das leis são a recompensa da indústria tornarseão alimento da tirania e das iniqüidades Não mais existe liberdade todas as vezes que as leis permitem que em certas circunstâncias um cidadão deixe de ser um homem para tornarse uma coisa que se possa pôr a prêmio Vêse então a astúcia dos homens poderosos ocupada completamente com o aumento de sua força e dos seus privilégios aproveitando todas as combinações que a lei lhes torna favoráveis Eis o mágico segredo que transformou a massa dos cidadãos em bestas de carga foi assim que os grandes acorrentaram escravos É por isso que certos governos que têm todas as aparências de liberdade gemem sob uma tirania oculta É pelos privilégios dos grandes que os usos tirânicos se fortificam insensivelmente depois de se terem introduzido na constituição por vias que o legislador negligenciou fechar Os homens sabem opor diques bastante fortes à tirania declarada mas muitas vezes não vêem o inseto imperceptível que mina sua obra e que abre por fim à torrente devastadora uma estrada tanto mais segura quanto mais oculta Quais serão pois as penas reservadas aos crimes dos nobres cujos privilégios ocupam tão grande lugar na legislação da maior parte dos povos Não examinarei se essa distinção hereditária entre plebeus e nobres é útil ao governo ou necessária às monarquias nem se é verdade que a nobreza é um poder intermediário próprio para conter em justos limites o povo e o soberano nem se essa ordem isolada da sociedade não tem o inconveniente de reunir num círculo estreito todas as vantagens da indústria todas as esperanças e toda a felicidade como essas ilhotas encantadoras e férteis que se encontram no meio dos desertos terríveis da Arábia Quando fosse verdade que a desigualdade é inevitável e mesmo útil na sociedade é certo que só deveria existir entre os indivíduos e em virtude das dignidades e do mérito mas não entre as ordens do Estado que as distinções não devem permanecer num só lugar mas circular em todas as partes do corpo político que as desigualdades sociais devem nascer e desaparecer a cada instante mas não perpetuarse nas famílias Seja qual for a conclusão de todas essas questões limitarmeei a dizer que as penas das pessoas de mais alta linhagem devem ser as mesmas que as do último dos cidadãos A igualdade civil é anterior a todas as distinções de honras e de riquezas Se todos os cidadãos não dependerem igualmente das mesmas leis as distinções deixarão de ser legítimas Deve suporse que os homens renunciando à liberdade despótica que receberam da natureza para se reunirem em sociedade disseram entre si Aquele que for mais industrioso obterá as maiores honras a glória do seu nome passará aos seus descendentes mas não obstante as honras e as riquezas não receará menos do que o último dos cidadãos a violação das leis que o elevaram acima dos outros É verdade que não há assembléia geral do gênero humano em que se tenha aprovado semelhante decreto este se funda porém na natureza imutável dos sentimentos do homem A igualdade perante as leis não destrói as vantagens que os príncipes julgam retirar da nobreza apenas impede os inconvenientes das distinções e torna as leis respeitáveis tirando toda esperança de impunidade Dirseá talvez que a mesma pena aplicada contra o nobre e contra o plebeu tornase completamente diversa e mais grave para o primeiro por causa da educação que recebeu e da infâmia que se espalha sobre uma família ilustre Responderei no entanto que o castigo se mede pelo dano causado à sociedade e não pela sensibilidade do culpado Ora o exemplo do crime é tanto mais funesto quanto é dado por um cidadão de condição mais elevada Acrescentarei que a igualdade da pena só pode ser exterior e não pode ser proporcionada ao grau de sensibilidade que é diferente em cada indivíduo Quanto à infâmia que cobre uma família inocente o soberano pode facilmente apagála com demonstrações públicas de benevolência Sabese que tais demonstrações de favor têm foros de razão no povo crédulo e admirador XXVIII DAS INJÚRIAS AS injúrias pessoais contrárias à honra isto é a essa justa porção de estima que todo homem tem o direito de esperar dos seus concidadãos devem ser punidas pela infâmia Há uma contradição notória entre as leis ocupadas sobretudo com a proteção da fortuna e da vida de cada cidadão e as leis do que se chama a honra que preferem a opinião a tudo A palavra honra é uma daquelas sobre as quais se fizeram os mais brilhantes raciocínios sem ligarse a nenhuma idéia fixa e precisa Tal é a triste condição do espírito humano que conhece melhor as revoluções dos corpos celestes do que as verdades que o tocam de perto e que importam em sua felicidade As noções morais que mais o interessam lhe são incertas só as entrevê cercadas de trevas e flutuando ao sabor do turbilhão das paixões Esse fenômeno deixará de causar espanto quando se considerar que semelhantes aos objetos que se confundem aos nossos olhos porque estão próximos demais as idéias morais perdem a clareza por estarem demasiado ao nosso alcance Apesar de sua simplicidade discernimos com dificuldade os diversos princípios de moral e julgamos muitas vezes sem conhecêlos os sentimentos do coração humano Quem observar com alguma atenção a natureza e os homens não se admirará de todas essas coisas pensará que para ser feliz e tranqüilo o homem talvez não tenha necessidade de tantas leis nem de tão grande aparato moral A idéia da honra é uma idéia complexa formada não somente de várias idéias simples mas também de várias idéias complexas por si mesma Segundo os diferentes aspectos sob os quais a idéia da honra se apresenta ao espírito algumas vezes ela encerra e outras exclui certos elementos que a compõem só conservando nessas diferentes situações um pequeno número de elementos comuns como várias quantidades algébricas admitindo um divisor comum Para achar esse divisor comum das diferentes idéias que os homens fazem da honra lancemos um rápido olhar sobre a formação das sociedades As primeiras leis e os primeiros magistrados originaramse da necessidade de impedir os abusos que teria ocasionado o despotismo natural de todo homem mais robusto do que o vizinho Foi esse o objeto do estabelecimento das sociedades e essa a base real ou aparente de todas as leis mesmo as que encerram princípios de destruição Mas a aproximação dos homens e os progressos dos seus conhecimentos fizeram nascer em seguida uma infinidade de necessidades e ligações recíprocas entre os membros da sociedade Nem todas essas necessidades tinham sido previstas pela lei e os meios atuais de cada cidadão não lhe bastavam para satisfazêlas Começou então a estabelecerse o poder da opinião por meio da qual podem obterse certas vantagens que as leis não podiam proporcionar e evitar males de que elas não podiam preservar É a opinião que constitui muitas vezes o suplício do sábio e do medíocre É ela que concede às aparências da virtude o respeito que recusa à própria virtude É a opinião que de um vil celerado faz um missionário ardente quando esconde seu interesse nessa hipocrisia Sob o reinado da opinião a estima dos outros homens não é somente útil mas indispensável a quem permanecer ao nível dos seus concidadãos O ambicioso procura os sufrágios da opinião que lhe serve os projetos o homem vão mendigaos como um testemunho do próprio mérito o homem de honra exigeos porque não pode dispensá los Essa honra que muita gente prefere à própria existência só foi conhecida depois que os homens se reuniram em sociedade não pode ser posta no depósito comum O sentimento que nos liga à honra não é outra coisa senão uma volta momentânea ao estado de natureza um movimento que nos subtrai por um instante a leis cuja proteção é insuficiente em certas ocasiões Seguese daí que na extrema liberdade política como na extrema dependência as idéias de honra desaparecem ou se confundem com outras idéias Num estado de liberdade ilimitada as leis protegem tão fortemente que não se tem necessidade de buscar os sufrágios da opinião pública No estado de escravidão absoluta o despotismo que anula a existência civil só deixa a cada indivíduo uma personalidade precária e momentânea A honra só é pois um princípio fundamental nas monarquias temperadas onde o despotismo do senhor é limitado pelas leis A honra produz quase numa monarquia o efeito que produz a revolta nos Estados despóticos O súdito entra por um momento no estado de natureza e o soberano tem a recordação da antiga igualdade XXIX DOS DUELOS A HONRA que não é senão a necessidade dos sufrágios públicos deu nascimento aos combates singulares que só puderam estabelecerse na desordem das más leis Se os duelos não estiveram em uso na antigüidade como algumas pessoas o crêem é que os antigos não se reuniam armados com um ar de desconfiança nos templos no teatro e entre os amigos Talvez também sendo o duelo um espetáculo muito comum que vis escravos davam ao povo os homens livres tivessem receio de que os combates singulares não bastassem para que eles fossem considerados homens honrados Seja como for é em vão que se experimentou entre os modernos impedir os duelos com pena de morte Essas leis severas não puderam destruir um costume fundado numa espécie de honra mais cara aos homens do que a própria vida O cidadão que recusa um duelo vêse presa do desprezo dos seus concidadãos é forçado a levar uma vida solitária a renunciar aos encantos da sociedade ou a exporse constantemente aos insultos e à vergonha cujos repetidos golpes o afetam de maneira mais cruel do que a idéia do suplício Por que motivo serão os duelos menos freqüentes entre os homens do povo do que entre os grandes É somente porque o povo não traz espada é porque tem menos necessidade de sufrágios públicos do que os homens de condição mais elevada que se observam entre si com mais desconfiança e inveja Não é inútil repetir aqui o que já se disse certa vez que o melhor meio de impedir o duelo é punir o agressor isto é aquele que deu lugar à querela a declarar inocente aquele que sem procurar tirar a espada se viu constrangido a defender a própria honra isto é a opinião que as leis não protegem suficientemente e mostrar aos seus concidadãos que pode respeitar as leis mas que não teme os homens XXX DO ROUBO UM roubo cometido sem violência só deveria ser punido com uma pena pecuniária É justo que quem rouba o bem de outrem seja despojado do seu Mas se o roubo é ordinariamente o crime da miséria e do desespero se esse delito só é cometido por essa classe de homens infortunados a quem o direito de propriedade direito terrível e talvez desnecessário só deixou a existência como único bem as penas pecuniárias contribuirão simplesmente para multiplicar os roubos aumentando o número dos indigentes arrancando o pão a uma família inocente para dálo a um rico talvez criminoso A pena mais natural do roubo será pois essa espécie de escravidão que é a única que se pode chamar justa isto é a escravidão temporária que torna a sociedade senhora absoluta da pessoa e do trabalho do culpado para fazêlo expiar por essa dependência o dano que causou e a violação do pacto social Se porém o roubo é acompanhado de violência é justo ajuntar à servidão as penas corporais Outros escritores mostraram antes de mim os inconvenientes graves que resultam do uso de aplicar as mesmas penas contra os roubos cometidos com violência e contra aqueles em que o ladrão só empregou a astúcia Fezse ver quanto é absurdo pôr na mesma balança uma certa soma de dinheiro e a vida de um homem O roubo com violência e o roubo de astúcia são delitos absolutamente diferentes e a sã política deve admitir ainda mais do que as matemáticas o axioma certo de que entre dois objetos heterogêneos há uma distância infinita Essas coisas foram ditas mas é sempre útil repetir verdades que jamais se puseram em prática Os corpos políticos conservam por muito tempo o movimento recebido é porém moroso e difícil imprimirlhes um novo movimento XXXI DO CONTRABANDO O CONTRABANDO é um verdadeiro delito que ofende o soberano e a nação mas cuja pena não deveria ser infamante porque a opinião pública não empresta nenhuma infâmia a essa espécie de delito Porque pois o contrabando que é um roubo feito ao príncipe e por conseguinte à nação não acarreta a infâmia sobre aquele que o exerce É que os delitos que os homens não consideram nocivos aos seus interesses não afetam bastante para excitar a indignação pública Tal é o contrabando Os homens sobre os quais as conseqüências remotas de um ato só produzem impressões fracas não vêem o dano que o contrabando pode causarlhes Chegam mesmo às vezes a retirar dele vantagens momentâneas Não vêem senão o mal causado ao príncipe e para recusarem estima ao culpado só têm uma razão premente contra o ladrão o falsário e alguns outros criminosos que podem prejudicálos pessoalmente Essa maneira de sentir é conseqüência do princípio incontestável de que todo ser sensível só se interessa pelos males que conhece O contrabando é um delito gerado pelas próprias leis porque quanto mais se aumentam os direitos tanto maior é a vantagem do contrabando a tentação de exercêlo é também tão forte quanto mais fácil é cometer essa espécie de delito sobretudo se os objetos proibidos são de pequeno volume e se são interditos numa tão grande circunferência de território que a extensão deste torne difícil guardálo O confisco das mercadorias proibidas e mesmo de tudo o que se acha apreendido com objetos de contrabando é uma pena justíssima Para tornálo mais eficaz seria preciso que os direitos fossem pouco consideráveis pois os homens só se arriscam na proporção do lucro que o êxito possa proporcionarlhes Será porém o caso de deixar impune o culpado que não tem nada que perder Não Os impostos são parte tão essencial e tão difícil numa boa legislação e estão de tal modo comprometidos em certas espécies de contrabando que tal delito merece uma pena considerável como a prisão e mesmo a servidão mas uma prisão e uma servidão análogas à natureza do delito Por exemplo a prisão de um contrabandista de fumo não deve ser a do assassino ou a do ladrão e sem dúvida o castigo mais conveniente ao gênero do delito seria aplicar à utilidade do fisco a servidão e o trabalho daquele que pretendeu fraudarlhe os direitos XXXII DAS FALÊNCIAS O LEGISLADOR que percebe o preço da boa fé nos contratos e que quer proteger a segurança do comércio deve dar recurso aos credores sobre a pessoa mesma dos seus devedores quando estes abrem falência Importa porém não confundir o falido fraudulento com o que é de boa fé O primeiro deveria ser punido como o são os moedeiros falsos porque não é maior o crime de falsificar o metal amoedado que constitui a garantia dos homens entre si do que falsificar essas obrigações mesmas Mas o falido de boa fé o infeliz que pode provar evidentemente aos seus juizes que a infidelidade de outrem as perdas dos seus correspondentes ou enfim contratempos que a prudência humana não poderia evitar o despojaram dos seus bens deve ser tratado com menos rigor Por que motivos bárbaros ousarseá mergulhálo nas masmorras priválo do único bem que lhe resta na miséria a liberdade e confundilo com os criminosos e forçálo a arrependerse de ter sido honesto Vivia tranqüilo ao abrigo de sua probidade e contava com a proteção das leis Se as violou é que não estava em seu poder conformarse exatamente a essas leis severas que o poder e a avidez insensível impuseram e que o pobre aceitou seduzido pela esperança que subsiste sempre no coração do homem e que o faz acreditar que todos os acontecimentos felizes serão para ele e todas as desgraças para os outros O medo de ser ofendido predomina geralmente na alma sobre a vontade de prejudicar e os homens entregandose às suas primeiras impressões amam as leis cruéis se bem que seja do seu interesse viver sob leis brandas pois eles próprios estão submetidos a elas Mas voltemos ao falido de boa fé não o desobriguem de sua dívida senão depois que ele a tiver pago inteiramente recusemlhe o direito de subtrairse aos credores sem o consentimento destes e a liberdade de levar adiante sua indústria forcemno a empregar seu trabalho e seus talentos no pagamento do que deve proporcionalmente aos seus lucros Mas sob nenhum pretexto legítimo não se poderá fazêlo sofrer uma prisão injusta e inútil aos credores Dirseá talvez que os horrores da prisão obrigarão o falido a revelar as trapaças que ocasionaram uma falência suspeita de fraude É bem raro porém que essa espécie de tortura seja necessária se se fizer um exame rigoroso da conduta e dos negócios do acusado Se a fraude do falido for muito duvidosa será melhor optar por sua inocência Há uma máxima geralmente certa em legislação segundo a qual a impunidade de um culpado tem graves inconvenientes mas a impunidade é pouco perigosa quando o delito é difícil de constatarse Alegarseá também a necessidade de proteger os interesses do comércio assim como o direito de propriedade que deve ser sagrado Mas o comércio e o direito de propriedade não são o fim do pacto social são apenas meios que podem conduzir a esse fim Se se submeterem todos os membros da sociedade a leis cruéis para preserválos dos inconvenientes que são as conseqüências naturais do estado social isso será faltar ao fim procurando atingilo e esse é o erro funesto que perde o espírito humano em todas as ciências mas sobretudo na política17 Poderseia distinguir a fraude do delito grave mas menos odioso e fazer uma diferença entre o delito grave e a pequena falta que seria preciso separar também da perfeita inocência No primeiro caso aplicarseiam ao culpado as penas aplicáveis ao crime de falsário O segundo delito seria punido com penas menores com a perda da liberdade Deixarseia ao falido inteiramente inocente a escolha dos meios que desejasse empregar para estabelecer os seus negócios e no caso de um delito leve darseia aos credores o direito de prescrever esses meios Mas a distinção entre faltas graves e leves deve ser obra da lei que é a única imparcial seria perigoso abandonála à prudência arbitrária de um juiz É tão necessário fixar limites na política quanto nas ciências matemáticas porque o bem público se mede como os espaços e a extensão Seria fácil ao legislador previdente impedir a maior parte das falências fraudulentas e remediar a desgraça do homem laborioso que falta aos seus compromissos sem ser culpado Possam todos os cidadãos consultar a cada instante os registros públicos nos quais se terá uma nota exata de todos os contratos e que contribuições sabiamente repartidas entre os comerciantes felizes formem um banco do qual se tirem somas convenientes para socorrer a indústria infeliz Tais estabelecimentos só poderão ter vantagens numerosas sem inconvenientes real Mas essas leis fáceis a um tempo tão simples e tão sublimes essas leis que esperam apenas o sinal do legislador para espalhar sobre as nações a abundância e a força essas leis que seriam motivo de reconhecimento eterno de todas as gerações são desconhecidas ou rejeitadas Um espírito de hesitação idéias estreitas a tímida prudência do momento uma rotina obstinada que teme as inovações mais úteis tais são os móveis ordinários dos legisladores que regulam o destino da fraca humanidade XXXIII DOS DELITOS QUE PERTURBAM A TRANQÜILIDADE PÚBLICA A TERCEIRA espécie de delitos que distinguimos compreende os que perturbam particularmente o repouso e a tranqüilidade pública as querelas e o tumulto de pessoas que se batem na via pública destinada ao comércio e à passagem dos cidadãos e os discursos fanáticos que excitam facilmente as paixões de uma populaça curiosa e que emprestam grande força da multidão dos auditores e sobretudo um certo entusiasmo obscuro e misterioso com poder bem maior sobre o espírito do povo do que a tranqüila razão cuja linguagem a multidão não entende Iluminar as cidades durante a noite à custa do público colocar guardas de segurança nos diversos bairros das cidades reservar ao silêncio e à tranqüilidade sagrada dos templos protegidos pelo governo os discursos de moral religiosa e as arengas destinadas a sustentar os interesses particulares e públicos às assembléias da nação aos parlamentos aos lugares enfim onde reside a majestade soberana tais são as medidas próprias para prevenir a perigosa fermentação das paixões populares e são esses os principais objetos que devem ocupar a vigilância do magistrado de polícia Mas se esse magistrado não age segundo leis conhecidas e familiares a todos os cidadãos se pode ao contrário fazer ao seu capricho leis que julga serem necessárias abre assim a porta à tirania que ronda sem cessar em torno das barreiras que a liberdade pública lhe fixou e que só procura transpôlas Creio não haver exceção à regra geral de que os cidadãos devem saber o que precisam fazer para serem culpados e o que precisam evitar para serem inocentes Um governo que tem necessidade de censores ou de qualquer outra espécie de magistrados arbitrários prova que é mal organizado e que sua constituição não tem força Num país em que o destino dos cidadãos está entregue à incerteza a tirania oculta imola mais vítimas do que o tirano mais cruel que age abertamente Este ultimo revolta mas não avilta O verdadeiro tirano começa sempre reinando sobre a opinião quando é senhor dela apressase a comprimir as almas corajosas das quais tem tudo que temer porque só se apresentam com o archote da verdade quer no fogo das paixões quer na ignorância dos perigos XXXIV DA OCIOSIDADE OS governos sábios não sofrem no seio do trabalho e da indústria uma espécie de ociosidade que é contrária ao fim político do estado social quero falar de certas pessoas ociosas e inúteis que não dão à sociedade nem trabalho nem riquezas que acumulam sempre sem jamais perder que o vulgo respeita com uma admiração estúpida e que são aos olhos do sábio um objeto de desprezo Quero falar de certas pessoas que não conhecem necessidade de administrar ou aumentar as comodidades da vida único motivo capaz de excitar a atividade humana e que indiferentes à prosperidade do Estado só se inflamam com paixão por opiniões que lhes agradam mas que podem ser perigosas Austeros declamadores confundiram essa espécie de ociosidade com a que é fruto das riquezas adquiridas pela indústria Cabe exclusivamente às leis e não à virtude rígida mas fechada em idéias estreitas de alguns censores definir a espécie de ociosidade punível Não se pode encarar como ociosidade funesta em política aquela que gozando do fruto dos vícios ou das virtudes de alguns antepassados dá contudo pão e existência à pobreza industriosa da troca dos prazeres atuais que recebe desta e que põe o pobre na contingência de travar a guerra pacífica que a indústria sustenta contra a opulência e que sucedeu aos combates sangrentos e incertos da força contra a força Essa espécie de ociosidade pode mesmo tornarse vantajosa à medida que a sociedade aumenta e que o governo deixa aos cidadãos mais liberdade XXXV DO SUICÍDIO O SUICÍDIO é um delito que parece não poder ser submetido a nenhuma pena propriamente dita pois essa pena só poderia recair sobre um corpo insensível e sem vida ou sobre inocentes Ora o castigo que se aplicasse contra os restos inanimados do culpado não poderia produzir outra impressão sobre os espectadores senão a que estes experimentariam ao verem fustigar uma estátua Se a pena é aplicada à família inocente ela é odiosa e tirânica porque já não há liberdade quando as penas não são puramente pessoais Os homens amam demasiado a vida estão ligados a ela por todos os objetos que os cercam a imagem sedutora do prazer e a doce esperança amável feiticeira que mistura algumas gotas de felicidade ao licor envenenado dos males que ingerimos a grandes tragos encantam muito fortemente os corações dos mortais para que se possa temer que a impunidade contribua para tornar o suicídio mais comum Se se obedece às leis pelo temor de um suplício doloroso aquele que se mata nada tem que temer pois a morte destrói toda sensibilidade Não é pois esse motivo que poderá deter a mão desesperada do suicida Mas aquele que se mata faz menos mal à sociedade do que aquele que renuncia para sempre à sua pátria O primeiro deixa tudo ao seu país ao passo que o outro lhe rouba sua pessoa e uma parte dos seus bens Direi mais Como a força de uma nação consiste no número dos cidadãos aquele que abandona o seu país para entregarse a outro causa à sociedade o dobro do prejuízo que lhe pode causar o suicida A questão reduzse pois a saber se é útil ou perigoso à sociedade deixar a cada um dos membros que a compõem uma liberdade perpétua de afastarse dela Toda lei que não é forte por si mesma toda lei cuja execução pode ser impedida em certas circunstâncias jamais deveria ser promulgada A opinião que governa os espíritos obedece às impressões lentas e indiretas que o legislador sabe darlhe resiste porém aos seus esforços quando são violentos e diretos e as leis inúteis que logo são desprezadas comunicam seu aviltamento às leis mais salutares que costumam ser vistas antes como obstáculos a vencer do que como a salvaguarda da tranqüilidade pública Ora como a energia dos nossos sentimentos é limitada se se quiser obrigar os homens a respeitar objetos estranhos ao bem da sociedade eles terão menos veneração pelas leis verdadeiramente úteis Não me deterei no desenvolvimento das conseqüências vantajosas que um sábio dispensador da felicidade pública poderá tirar desse princípio procurarei apenas provar que não é necessário fazer do Estado uma prisão Uma lei que tentasse tirar aos cidadãos a liberdade de abandonar seu país seria uma lei inútil porque a menos que rochedos inacessíveis ou mares impraticáveis separem esse país de todos os outros como guardar todos os pontos de sua circunferência Como guardar os próprios guardas O imigrante que leva tudo o que possui não deixa nada sobre que as leis possam fazer cair a pena com que o ameaçam Seu delito já não pode ser punido desde que foi cometido e infligirlhe um castigo antes que ele seja consumado é punir a intenção e não o fato é exercer um poder tirano sobre o pensamento sempre livre e sempre independente das leis humanas Tentarseá punir o fugitivo com o confisco dos bens que ele deixa Mas a conclusão que não se pode impedir por pouco que se respeitem os contratos dos cidadãos entre si tornaria esse meio ilusório Além disso semelhante lei destruiria todo comércio entre as nações e se se punisse o emigrado no caso dele regressar aos país isso significaria impedilo de reparar o prejuízo que causou à sociedade e banir para sempre aquele que uma vez se tivesse afastado da pátria Enfim a proibição de sair de um país só faz aumentar em quem o habita o desejo de abandonálo ao passo que desvia os estrangeiros de nele se estabelecerem Que se deve pois pensar de um governo que não tem outro meio senão o temor para reter os homens em sua pátria à qual eles estão naturalmente ligados pelas primeiras impressões da infância A maneira mais certa de fixar os homens em sua pátria é aumentar o bemestar respectivo de cada cidadão Do mesmo modo que todo governo deve empregar os maiores esforços para fazer pender a seu favor a balança do comércio assim também o maior interesse do soberano e da nação é que a soma de felicidade seja aí maior do que entre os povos vizinhos Os prazeres do luxo não são os principais elementos dessa felicidade embora impedindo as riquezas de se reunirem numa só mão eles se tornam um remédio necessário à desigualdade que toma mais força à medida que a sociedade faz mais progressos18 Mas os prazeres do luxo são a base da felicidade pública num país em que a segurança dos bens e a liberdade das pessoas dependem exclusivamente das leis porque então esses prazeres favorecem a população ao passo que se tornam um instrumento de tirania para um povo cujos direitos não são garantidos Assim como os animais mais generosos e os livres habitantes dos ares preferem as solidões inacessíveis e as florestas longínquas onde sua liberdade não corre risco aos campos alegres e férteis que o homem seu inimigo semeou de armadilhas assim também os homens evitam o próprio prazer quando este lhes é oferecido pela mão dos tiranos19 Está pois demonstrado que a lei que prende os cidadãos ao seu país é inútil e injusta e o mesmo juízo deve ser feito sobre a que pune o suicídio Tratase de um crime que Deus pune após a morte do culpado e somente Deus pode punir depois da morte Não é porém um crime perante os homens porque o castigo recai sobre a família inocente e não sobre o culpado Se me objetarem que o medo desse castigo pode contudo deter a mão do infeliz determinado a morrer responderei que quem renuncia tranqüilamente à doçura de viver e odeia bastante a existência terrena para preferirlhe uma eternidade talvez infeliz não se comoverá decerto com a consideração remota e menos forte da vergonha que o crime atrairá sobre sua família XXXVI DE CERTOS DELITOS DIFÍCEIS DE CONSTATAR COMETEMSE na sociedade certos delitos que são bastante freqüentes mas que é difícil provar Tais são o adultério a pederastia o infanticídio O adultério é um crime que considerado sob o ponto de vista político só é tão freqüente porque as leis não são fixas e porque os dois sexos são naturalmente atraídos um pelo outro20 Se eu falasse a povos ainda privados das luzes da religião diria que há uma grande diferença entre esse delito e todos os outros O adultério é produzido pelo abuso de uma necessidade constante comum a todos os mortais anterior à sociedade ao passo que os outros delitos que tendem mais ou menos à destruição do pacto social são antes o efeito das paixões do momento do que das necessidades da natureza Os que leram a história e estudaram os homens podem reconhecer que o número dos delitos produzidos pela tendência de um sexo para outro é no mesmo clima sempre igual a uma quantidade constante Se assim é toda lei todo costume cujo fim fosse diminuir a soma total dos efeitos dessa paixão seria inútil e até funesta porque o efeito dessa lei seria sobrecarregar uma porção da sociedade com suas próprias necessidades e com as dos outros O partido mais sábio seria pois seguir até certo ponto o declive do rio das paixões e dividirlhe o curso num número de regatos suficientes para impedir em toda parte dois excessos contrários a seca e as enchentes A fidelidade conjugal é sempre mais segura à proporção que os casamentos são mais numerosos e mais livres Se os preconceitos hereditários os conciliam se o poder paterno os forma e os impede ao seu capricho a galanteria quebralhes secretamente os laços mau grado as declamações dos moralistas vulgares sempre ocupados em gritar contra os efeitos omitindo as causas Mas essas reflexões são inúteis para aqueles que os motivos sublimes da religião mantêm nos limites do dever que o pendor da natureza os leva a transpor O adultério é um delito de um instante envolvese de mistério cobrese de um véu que as próprias leis se empenham em conservar véu necessário mas de tal modo transparente que só faz aumentar os encantos do objeto que oculta As ocasiões são tão fáceis as conseqüências tão duvidosas que é bem mais fácil ao legislador prevenilo quando não foi cometido do que reprimilo quando já se estabeleceu Regra geral em todo delito que por sua natureza deve quase sempre ficar impune a pena é um aguilhão a mais Nossa imaginação é mais vivamente excitada e se empenha com mais ardor em perseguir o objeto dos seus desejos quando as dificuldades que se apresentam não são insuperáveis e quando não têm um aspecto bastante desencorajador relativamente ao grau de atividade que se tem no espírito Os obstáculos se tornam por assim dizer tantas barreiras que impedem nossa imaginação caprichosa de afastarse delas e que continuamente a forçam a pensar nas conseqüências da ação que medita Então a alma se apega bem mais fortemente aos lados agradáveis que a seduzem do que às conseqüências perigosas cuja idéia se esforça por afastar A pederastia que as leis punem com tanta severidade e contra a qual se empregam tão facilmente essas torturas atrozes que triunfam da própria inocência é menos o efeito das necessidades do homem isolado e livre do que o desvio das paixões do homem escravo que vive em sociedade Se às vezes ela é produzida pela sociedade dos prazeres é bem freqüentemente o efeito dessa educação que para tornar os homens úteis aos outros começa por tornálos inúteis a si mesmos nessas casas em que uma juventude numerosa viva ardente mas separada por obstáculos intransponíveis do sexo do qual a natureza lhe pinta fortemente todos os encantos prepara para si uma velhice antecipada consumindo de antemão inutilmente para a humanidade um vigor apenas desenvolvido O infanticídio é ainda o resultado quase inevitável da cruel alternativa em que se acha uma infeliz que só cedeu por fraqueza ou que sucumbiu sob os esforços da violência De um lado a infâmia de outro a morte de um ser incapaz de sentir a perda da vida como não havia de preferir esse último partido que a rouba à vergonha à miséria juntamente com o desgraçado filhinho O melhor meio de prevenir essa espécie de delito seria proteger com leis eficazes a fraqueza e a infelicidade contra essa espécie de tirania que só se levanta contra os vícios que não se podem cobrir com o manto da virtude Não pretendo enfraquecer o justo horror que devem inspirar os crimes de que acabamos de falar Eu quis indicar suas fontes e penso que me será permitido tirar daí a conseqüência geral de que não se pode chamar precisamente justa ou necessária o que é a mesma coisa a punição de um delito que as leis não procuraram prevenir com os melhores meios possíveis e segundo as circunstâncias em que se encontra uma nação XXXVII DE UMA ESPÉCIE PARTICULAR DE DELITO OS QUE lerem esta obra se aperceberão sem dúvida de que não falei de uma espécie de delito cuja punição inundou a Europa de sangue humano Não descrevi esses espetáculos espantosos em que o fanatismo elevava constantemente fogueiras em que homens vivos serviam de alimento às chamas em a que multidão feroz se comprazia em ouvir os gemidos abafados dos infelizes em que cidadãos corriam como a um espetáculo agradável a contemplar a morte dos seus irmãos no meio dos turbilhões de negra fumaça em que os lugares públicos ficavam cobertos de destroços palpitantes e de cinzas humanas Os homens esclarecidos verão que o país onde habito o século em que vivo e a matéria de que trato não me permitiram examinar a natureza desse delito Seria aliás empresa demasiado longa e que me desviaria muito do meu assunto querer provar contra o exemplo de várias nações a necessidade de uma inteira conformidade de opinião num Estado político procurar demonstrar como certas crenças religiosas entre as quais só podem acharse diferenças sutis obscuras e muito acima da capacidade humana podem contudo perturbar a tranqüilidade pública a menos que somente uma seja autorizada e todas as outras proscritas Seria preciso fazer ver ainda como algumas dessas crenças tornandose mais claras pela fermentações dos espíritos podem fazer nascer do choque das opiniões a verdade que então sobrenada depois de ter aniquilado o erro ao passo que outras seitas pouco firmes em suas bases têm necessidade para manterse de se apoiarem na força Seria demasiado longo igualmente mostrar que para reunir todos os cidadãos de um Estado numa perfeita conformidade de opiniões religiosas é preciso tiranizar os espíritos e constrangêlos a vergar sob o jugo da força embora essa violência se oponha à razão e à autoridade que mais respeitamos21 que nos recomenda a doçura e o amor dos nossos irmãos embora seja evidente que a força só faz hipócritas e portanto almas vis Devese crer que todas essas coisas estarão demonstradas e conformes aos interesses da humanidade se houver em alguma parte uma autoridade legítima e reconhecida que as ponha em prática Quanto a mim só falo aqui dos crimes que pertencem ao homem natural e que violam o contrato social devo silenciar porém sobre os pecados cuja punição mesmo temporal deve ser determinada segundo outras regras que não as da filosofia XXXVIII DE ALGUMAS FONTES GERAIS DE ERROS E DE INJUSTIÇAS NA LEGISLAÇÃO E em primeiro lugar das falsas idéias de utilidade AS FALSAS idéias que os legisladores fizeram da utilidade são uma das fontes mais fecundas de erros e injustiças É ter falsas idéias de utilidade ocuparse mais com inconvenientes particulares do que com inconvenientes gerais querer comprimir os sentimentos naturais em lugar de procurar excitálos impor silêncio à razão e dizer ao pensamento Sê escravo É ter ainda falsas idéias de utilidade sacrificar mil vantagens reais ao temor de uma desvantagem imaginária ou pouco importante Não teria certamente idéias justas quem desejasse tirar aos homens o fogo e a água porque esses dois elementos causam incêndios e inundações e quem só soubesse impedir o mal pela destruição Podem considerarse igualmente como contrárias ao fim de utilidade as leis que proíbem o porte de armas pois só desarmam o cidadão pacífico ao passo que deixam o ferro nas mãos do celerado bastante acostumado a violar as convenções mais sagradas para respeitar as que são apenas arbitrárias Além disso essas convenções são pouco importantes há pouco perigo em infringilas e por outro lado se as leis que desarmam fossem executadas com rigor destruiriam a liberdade pessoal tão preciosa ao homem tão respeitável aos olhos do legislador esclarecido submeteriam a inocência a todas as investigações a todos os vexames arbitrários que só devem ser reservados aos criminosos Tais leis só servem para multiplicar os assassínios entregam o cidadão sem defesa aos golpes do celerado que fere com mais audácia um homem desarmado favorecem o bandido que ataca em detrimento do homem honesto que é atacado Essas leis são simplesmente o ruído das impressões tumultuosas que produzem certos fatos particulares não podem ser o resultado de combinações sábias que pesam numa mesma balança os males e os bens não é para prevenir os delitos mas pelo vil sentimento do medo que se fazem tais leis É por uma falsa idéia de utilidade que se procura submeter uma multidão de seres sensíveis à regularidade simétrica que pode receber uma matéria bruta e inanimada que se negligenciam os motivos presentes únicos capazes de impressionar o espírito humano de maneira forte e durável para empregar motivos remotos cuja impressão é fraca e passageira a menos que uma grande força de imaginação que só se se encontra num pequeno número de homens supra o afastamento do objeto mantendoo sob relações que o aumentam e o aproximam Enfim também podem chamarse falsas idéias de utilidade as que separam o bem geral dos interesses particulares sacrificando as coisas às palavras Há entre o estado de sociedade e o estado de natureza a diferença de que o homem selvagem só faz mal a outrem quando nisso descobre alguma vantagem para si ao passo que o homem social é às vezes levado por leis viciosas a prejudicar sem nenhum proveito O déspota espalha o medo e o abatimento na alma dos seus escravos mas esse medo e esse abatimento voltamse contra ele próprio logo lhe enchem o coração e o tornam presa de males maiores do que os que ele causa Aquele que se compraz em inspirar o terror corre poucos riscos se teme apenas a própria família e as pessoas que o cercam Mas quando o terror é geral quando fere uma grande multidão de homens o tirano deve tremer Receie a temeridade o desespero receie sobretudo o homem audacioso mas prudente que souber com habilidade sublevar contra ele os descontentes tanto mais fáceis de serem seduzidos quando se despertarem em suas almas as mais caras esperanças e quando se tiver o cuidado de mostrarlhes os perigos da empresa repartidos entre um grande número de cúmplices Juntai a isso que os infelizes dão menos valor à sua existência na proporção dos males que os afligem Eis sem dúvida porque as ofensas são quase sempre seguidas de ofensas novas A tirania e o ódio são sentimentos duráveis que se sustentam e tomam novas forças à medida que se exercem ao passo que em nossos corações corruptos o amor e os sentimentos ternos se enfraquecem e se extinguem na ociosidade XXXIX DO ESPÍRITO DE FAMÍLIA O ESPIRÍTO da família é outra fonte geral de injustiças na legislação Se as disposições cruéis e os outros vícios das leis penais foram aprovados pelos legisladores mais esclarecidos nas repúblicas mais livres é que se considerou o Estado antes como uma sociedade de famílias do que como a associação de um certo número de homens Suponhase uma nação composta de cem mil homens distribuídos em vinte mil famílias de cinco pessoas cada uma inclusive o chefe que a representa se a associação é feita por famílias haveria vinte mil cidadãos e oitenta mil escravos se é feita por indivíduos haveria cem mil cidadãos livres No primeiro caso seria uma república composta de vinte mil pequenas monarquias no segundo tudo respirará o espírito de liberdade que animará os cidadãos não somente nas praças públicas e nas assembléias nacionais mas ainda sob o teto doméstico onde residem os principais elementos de felicidade e de miséria Se a associação é feita por famílias as leis e os costumes que são sempre o resultado dos sentimentos habituais dos membros da sociedade política serão obra dos chefes dessas famílias verseá em breve o espírito monárquico introduzirse aos poucos na própria república e os seus efeitos só encontrarão obstáculos na oposição dos interesses particulares porque os sentimentos naturais de liberdade e de igualdade já terão deixado de viver nos corações O espírito de família é um espirito de minúcia limitado pelos mais insignificantes pormenores ao passo que o espírito público ligado aos princípios gerais vê os fatos com visão segura coordenaos nos lugares respectivos e sabe tirar deles conseqüências úteis ao bem da maioria Nas sociedades compostas de famílias as crianças ficam sob a autoridade do chefe e são obrigadas a esperar que a morte lhes dê uma existência que só depende das leis Habituadas a obedecer e a tremer na idade da força quando as paixões não são ainda refreadas pela moderação espécie de temor prudente que é o fruto da experiência e da idade como resistirão elas aos obstáculos que o vício opõe constantemente aos esforços da virtude quando a velhice decrépita e medrosa tirarlhes a coragem de tentar reformas ousadas que aliás as seduzem pouco porque não têm a esperança de recolherlhes os frutos Nas repúblicas em que todo homem é cidadão a subordinação nas famílias não é efeito da força mas de um contrato e os filhos uma vez saídos da idade em que a fraqueza e a necessidade de educação os mantêm sob a dependência natural dos pais tornamse desde então membros livres da sociedade se ainda se submetem ao chefe da família é apenas para participar das vantagens que esta lhes oferece do mesmo modo que os cidadãos se sujeitam sem perder a liberdade ao chefe da grande sociedade política Nas repúblicas compostas de famílias os jovens isto é a parte mais considerável e mais útil da nação ficam à discrição dos pais Nas repúblicas de homens livres os únicos laços que submetem os filhos ao pai são os sentimentos sagrados e invioláveis da natureza que convidam os homens a ajudarse mutuamente em suas necessidades recíprocas e que lhes inspiram o reconhecimento pelos benefícios recebidos Esses santos deveres são muito mais alterados pelo vício das leis que prescrevem uma submissão cega e obrigatória do que pela maldade do coração humano Essa oposição entre as leis fundamentais dos Estados políticos e as leis de família é fonte de muitas outras contradições entre a moral pública e a moral particular que se combatem continuamente no espírito de cada homem A moral particular só inspira a submissão e o medo ao passo que a moral pública anima a coragem e o espírito da liberdade Guiado pela primeira o homem limita seu bemestar ao círculo estreito de um pequeno número de pessoas que ele nem mesmo escolheu Inspirado pela outra procura estender a felicidade sobre todas as classes da humanidade A moral particular exige que cada qual se sacrifique continuamente a um falso ídolo que se chama o bem da família e que muitas vezes não é o bem real de nenhum dos indivíduos que a compõem A moral pública ensina a procurar o bemestar sem ferir as leis e se às vezes excita um cidadão a imolarse pela pátria recompensao pelo entusiasmo que lhe inspira antes do sacrifício e pela glória que lhe promete Tantas contradições fazem que os homens desdenhem de praticar a virtude que não podem reconhecer no meio das trevas de que a cercaram e que lhes parece distante porque está envolta nessa obscuridade que oculta aos nossos olhos os objetos morais como os objetos físicos Quantas vezes o cidadão que reflete sobre suas ações passadas não se terá admirado de acharse um mau homem A medida que a sociedade cresce cada um dos seus membros tornase uma parte menor do todo e o amor do bem público se enfraquece na mesma proporção se as leis deixam de fortificálo As sociedades políticas têm como o corpo humano um crescimento limitado não poderiam estenderse além de certos limites sem que sua economia fosse perturbada Parece que a grandeza de um Estado deve estar na razão inversa do grau de atividade dos indivíduos que a compõem Se essa atividade crescesse ao mesmo tempo que a população as boas leis achariam um obstáculo para prevenir os delitos no próprio bem que tivessem podido fazer Uma república muito vasta só pode escapar ao despotismo subdividindose num certo número de pequenos Estados confederados Mas para formar essa união seria preciso um ditador poderoso que tivesse a coragem de Sila22 com tanto gênio para fundar quanto Sila o teve para destruir Se tal homem for ambicioso poderá esperar uma glória imortal Se for filósofo as bênçãos dos seus concidadãos o consolarão da perda de sua autoridade mesmo sem pedirlhes reconhecimento Quando os sentimentos que nos unem à nação principiam a enfraquecerse os que nos ligam aos objetos que nos cercam adquirem novas forças Assim sob o despotismo feroz os laços da amizade são mais duráveis e as virtudes de família virtudes sempre fracas se tornam então as mais comuns ou antes são as únicas que ainda se praticam Após todas essas observações pode julgarse quanto foram curtas e limitadas as opiniões da maioria dos nossos legisladores XL DO ESPÍRITO DO FISCO HOUVE um tempo em que todas as penas eram pecuniárias Os crimes dos súditos eram para o príncipe uma espécie de patrimônio Os atentados contra a segurança pública eram objeto de lucro sobre o qual se sabia especular O soberano e os magistrados achavam seu interesse nos delitos que deveriam prevenir Os julgamentos não eram então nada menos do que um processo entre o fisco que percebia o preço do crime e o culpado que devia pagálo Faziase disso um negócio civil contencioso como se se tratasse de uma querela particular e não do bem público Parecia que o fisco tinha outros direitos que exercer além da proteção da tranqüilidade pública e o culpado outras penas que sofrer além das que a necessidade do exemplo o exigia O juiz estabelecido para apurar a verdade com ânimo imparcial não era mais do que o advogado do fisco e aquele que se chamava o protetor e o ministro das leis era apenas o exator dos dinheiros do príncipe Nesse sistema quem se confessasse culpado se reconhecia pela própria confissão devedor do fisco e como era esse o fim de todos os processos criminais toda a arte do juiz consistia em obter essa confissão da maneira mais favorável aos interesses do fisco É ainda para esse mesmo fim fiscal que tende hoje toda a jurisprudência criminal pois os efeitos permanecem por muito tempo depois de cessadas as causas O acusado que recusa confessarse culpado embora convencido por provas certas sofrerá uma pena mais leve do que se tivesse confessado não lhe será aplicada a tortura pelos outros crimes que poderia ter cometido precisamente porque não confessou o crime principal de que está convencido Mas se o crime é confessado o juiz apoderase do corpo do culpado dilacerao metodicamente e faz dele por assim dizer um fundo do qual tira todo o proveito possível Uma vez reconhecida a existência do delito a confissão do acusado se torna prova convincente Acreditase tornar essa prova menos suspeita arrancando a confissão do crime pelos tormentos e pelo desespero e se estabeleceu que a confissão não basta para condenar o culpado se esse culpado é calmo se fala desembaraçadamente se não está cercado das formalidades judiciárias e do aparato aterrador dos suplícios Excluemse cuidadosamente da instrução de um processo as investigações e as provas que esclarecendo o fato de maneira a favorecer o acusado poderiam prejudicar as pretensões do fisco e se às vezes se poupam alguns tormentos ao culpado não é nem por piedade para com a desgraça nem por indulgência para com a fraqueza mas porque as confissões obtidas são suficientes para os direitos do fisco esse ídolo que já não passa de uma quimera e que a mudança das circunstâncias nos torna inconcebível O juiz quando exerce suas funções não é mais do que o inimigo do culpado isto é de um infeliz curvado ao peso das cadeias minado pelo sofrimento que os tormentos esperam e que o futuro mais terrível cerca de horror e de assombro Não é a verdade o que ele procura quer descobrir no acusado um culpado preparalhe armadilhas parece que tem tudo que perder e que teme se não puder convencer o acusado diminuir a infalibilidade que o homem se arroga em todas as coisas O juiz tem o poder de determinar por que indícios se pode encarcerar um cidadão E declarar que esse cidadão é culpado antes de poder provar que é inocente Não se parecerá tal informação com um procedimento ofensivo E eis todavia a marcha da jurisprudência criminal em quase toda a Europa no século XVIII em plena luz Mal se conhece nos tribunais o verdadeiro processo das informações isto é a investigação imparcial do fato prescrita pela razão seguida nas leis militares empregada mesmo por esses déspotas da Ásia nos assuntos que só interessam os particulares Nossos descendentes sem dúvida mais felizes do que nós terão dificuldade em conceber essa complicação torturosa dos mais estranhos absurdos e esse sistema de iniqüidades incríveis que só o filósofo poderá julgar possível estudando a natureza do coração humano XLI DOS MEIOS DE PREVENIR CRIMES É MELHOR prevenir os crimes do que ter de punilos e todo legislador sábio deve procurar antes impedir o mal do que reparálo pois uma boa legislação não é senão a arte de proporcionar aos homens o maior bemestar possível e preserválos de todos os sofrimentos que se lhes possam causar segundo o cálculo dos bens e dos males desta vida Mas os meios que até hoje se empregam são em geral insuficientes ou contrários ao fim que se propõem Não é possível submeter a atividade tumultuosa de uma massa de cidadãos a uma ordem geométrica que não apresente nem irregularidade nem confusão Embora as leis da natureza sejam sempre simples e sempre constantes não impedem que os planetas se desviem às vezes dos movimentos habituais Como poderiam pois as leis humanas em meio ao choque das paixões e dos sentimentos opostos da dor e do prazer impedir que não haja alguma perturbação e algum desarranjo na sociedade É essa porém a quimera dos homens limitados quando têm algum poder Se se proíbem aos cidadãos uma porção de atos indiferentes não tendo tais atos nada de nocivo não se previnem os crimes ao contrário fazse que surjam novos porque se mudam arbitrariamente as idéias ordinárias de vício e virtude que todavia se proclamam eternas e imutáveis Além disso a que ficaria o homem reduzido se fosse preciso interdizerlhe tudo o que pode ser para ele uma ocasião de praticar o mal Seria preciso começar por tirarlhe o uso dos sentidos Para um motivo que leva os homens a cometer um crime há mil outros que os levam a ações indiferentes que só são delitos perante as más leis Ora quanto mais se estender a esfera dos crimes tanto mais se fará que sejam cometidos porque se verão os delitos multiplicarse à medida que os motivos de delitos especificados pelas leis forem mais numerosos sobretudo se a maioria dessas leis não passarem de privilégios isto é de um pequeno número de senhores Quereis prevenir os crimes Fazeis leis simples e claras fazeias amar e esteja a nação inteira pronta a armarse para defendêlas sem que a minoria de que falamos se preocupe constantemente em destruílas Não favoreçam elas nenhuma classe particular protejam igualmente cada membro da sociedade receieas o cidadão e trema somente diante delas O temor que as leis inspiram é salutar o temor que os homens inspiram é uma fonte funesta de crimes Os homens escravos são sempre mais debochados mais covardes mais cruéis do que os homens livres Estes investigam as ciências ocupamse com os interesses da nação vêem os objetos sob um ponto de vista elevado e fazem grandes coisas Mas os escravos satisfeitos com os prazeres do momento procuram no ruído do deboche uma distração para o aniquilamento em que se vêem mergulhados Toda sua vida está cercada de incertezas e como para eles os delitos não estão determinados não sabem quais serão suas conseqüências e isso empresta nova força à paixão que os leva a praticálos Num povo que o clima torna indolente a incerteza das leis entretém e aumenta a inação e a estupidez Numa nação voluptuosa mas ativa as leis incertas fazem que a atividade dos cidadãos se limite a pequenas cabalas e intrigas surdas que semeiam a desconfiança Então o homem mais prudente é aquele que sabe melhor dissimular e trair Num povo forte e corajoso a incerteza das leis é forçada por fim e substituirse por uma legislação precisa isso porém só acontece depois de revoluções freqüentes que conduziram esse povo alternativamente da liberdade à escravidão e da escravidão à liberdade Quereis prevenir os crimes Marche a liberdade acompanhada das luzes Se as ciências produzem alguns males é quando estão pouco difundidas mas à medida que se estendem as vantagens que trazem se tornam maiores Um impostor ousado que não pode ser um homem vulgar fazse adorar por um povo ignorante e só é objeto de desprezo para uma nação esclarecida O homem instruído sabe comparar os objetos considerálos sob diversos pontosde vista e modificar os próprios sentimentos pelos dos outros porque vê nos seus semelhantes os mesmos desejos e as mesmas aversões que agem sobre o seu coração Se prodigalizardes luzes ao povo a ignorância e a calúnia desaparecerão diante delas a autoridade injusta tremerá só as leis permanecerão inabaláveis todopoderosas e o homem esclarecido amará uma constituição cujas vantagens são evidentes uma vez conhecidos seus dispositivos e que dá bases sólidas à segurança pública Poderá ele lamentar essa inútil partícula de liberdade de que se privou se a comparar com a soma de todas as outras liberdades que os seus concidadãos lhe sacrificaram e se pensar que sem as leis estes últimos poderiam armarse e unirse contra ele Dotado de uma alma sensível verificase que sob boas leis o homem só perdeu a funesta liberdade de praticar o mal forçado a bendizer o trono e o soberano que só o ocupa para proteger Não é verdade que as ciências sejam nocivas à humanidade Se às vezes deram maus resultados é que o mal era inevitável Multiplicandose os homens sobre a superfície da terra viramse nascer a guerra algumas artes grosseiras e as primeiras leis que não eram senão convenções momentâneas e que pereciam com a necessidade passageira que as produziria Foi então que a filosofia começou a aparecer seus primeiros princípios foram pouco numerosos e sabiamente escolhidos porque a preguiça e a pouca sagacidade dos primeiros homens os preservam de muitos erros Mas multiplicadas as necessidades juntamente com a espécie humana foram necessárias impressões mais fortes e mais duráveis para impedir as voltas freqüentes e cada dia mais funestas ao estado selvagem Foram pois um grande bem para a humanidade digo um grande bem sob o aspecto político os primeiros erros religiosos que povoaram o universo de falsas divindades e que inventaram um mundo invisível de espíritos encarregados de governar a terra Foram benfeitores do gênero humano esses homens audaciosos que ousaram enganar seus semelhantes para servilos e que arrastaram a ignorância temerosa ao pé dos altares Apresentando aos homens objetos fora do alcance dos sentidos interessaram nos na investigação desses objetos que fugiam diante deles à medida que os julgavam mais próximos forçaramnos a respeitar o que não conheciam bem e souberam concentrar para esse único fim que os impressionava fortemente todas as paixões que os agitavam Tal foi a sorte de todas as nações que se formaram da reunião de diferentes povoações selvagens Foi a época da formação das grandes sociedades e as idéias religiosas foram sem dúvida o único laço que pode obrigar os homens a viverem constantemente sob leis Não falo desse povo que Deus escolheu Os milagres mais extraordinários e os favores mais assinalados que o céu lhe prodigalizou substituíram a política humana Mas como os erros podem subdividirse ao infinito as falsas ciências que tais erros produziram fizeram dos homens uma multidão fanática de cegos perdidos no labirinto em que se encerraram e prestes a chocarse a cada passo Então alguns filósofos sensíveis lamentaram o antigo estado selvagem e foi nessa primeira época que os conhecimentos ou antes as opiniões tornaramse funestos à humanidade Pode considerarse como uma época mais ou menos semelhante o momento terrível em que é preciso passar do erro à verdade das trevas à luz O choque terrível dos preconceitos úteis a um pequeno número de homens poderosos contra as verdades vantajosas para a multidão fraca e a fermentação de todas as paixões sublevadas causam males infinitos aos infelizes humanos Percorrendo a história cujos principais acontecimentos após certos intervalos se reproduzem quase sempre detenhamonos na passagem perigosa mas indispensável da ignorância à filosofia e portanto da escravidão à liberdade e veremos quantas vezes uma geração inteira é sacrificada à felicidade da que deve sucederlhe Quando porém a calma está restabelecida quando já está extinto o incêndio cujas flamas purificaram a nação livrandoa dos males que a oprimiam a verdade que primeiro se arrastava com lentidão precipita os passos sentase nos tronos ao lado dos monarcas e por fim nas assembléias das nações sobretudo nas repúblicas obtém culto e altares Poderseá acreditar então que as luzes que esclarecem a multidão são mais perigosas do que as trevas E que filósofo se persuadirá de que o conhecimento exato das relações que unem os objetos entre si possa ser funesto à humanidade Se o semisaber é mais perigoso do que a ignorância cega porque aos males que produz a ignorância acrescenta ainda os erros inumeráveis que resultam inevitavelmente de uma visão limitada aquém dos limites da verdade sem dúvida o dom mais precioso que um soberano pode conceder à nação e a si mesmo é confiar o depósito sagrado das leis a um homem esclarecido Acostumado a ver a verdade sem temêla acima dessa necessidade geral dos sufrágios públicos necessidade que nunca está satisfeita e que tão freqüentemente faz sucumbir a virtude habituado a tudo considerar sob os pontos de vista mais elevados ele vê a nação como uma família os seus concidadãos como irmãos e a distância que separa os grandes do povo lhe parece tanto menor quanto sabe envolver com o olhar maior massa de homens O sábio tem necessidades e interesses que o vulgo desconhece é para ele uma necessidade não desmentir em sua conduta pública os princípios que estabeleceu nos seus escritos e o hábito que adquiriu de amar a verdade por si mesma Tais homens fariam a felicidade de uma nação mas para tornar essa felicidade durável é preciso que boas leis aumentem de tal forma o número dos sábios que quase já não seja possível fazer uma escolha errônea Outro meio de prevenir os delitos é afastar do santuário das leis a própria sombra da corrupção interessando os magistrados em conservar em toda a sua pureza o depósito que a nação lhes confia Quanto mais numerosos forem os tribunais tanto menos se poderá temer que violem as leis porque entre vários homens que se observam mutuamente a vantagem de aumentar a autoridade comum é tanto menor quanto menor a parcela de autoridade de cada um e muito pouco considerável para contrabalançar os perigos da empresa Se o soberano dá muito aparato pompa e autoridade à magistratura se ao mesmo tempo fecha todo acesso aos lamentos justos ou mal fundados do fraco que se julga oprimido se acostuma os súditos a temer os magistrados mais do que as leis aumentará sem dúvida o poder dos juizes mas somente à custa da segurança pública e particular Podem ainda prevenirse os crimes recompensando a virtude e podese observar que as leis atuais de todas as nações guardam a esse respeito um profundo silêncio Se os prêmios propostos pelas academias aos autores das descobertas úteis alargaram os conhecimentos e aumentaram o número dos bons livros imaginese que recompensas concedidas por um monarca benfeitor não multiplicariam também as ações virtuosas A moeda da honra distribuída com sabedoria jamais se esgota e produz sempre bons frutos Afim o meio mais seguro mas ao mesmo tempo mais difícil de tornar os homens menos inclinados a praticar o mal é aperfeiçoar a educação O assunto é vasto demais para entrar nos limites que me prescrevi Ouso porém dizer que está tão estreitamente ligado com a natureza do governo que será apenas um campo estéril e cultivado somente por um pequeno número de sábios até chegarem os séculos ainda distantes em que as leis não terão outro fim senão a felicidade pública Um grande homem que esclarece os seus semelhantes e que é por estes perseguido desenvolveu as máximas principais de uma educação verdadeiramente útil23 Fez ver que ela consistia bem menos na multidão confusa dos objetos que se apresentam às crianças do que na escolha e na precisão com as quais se lhes expõem Provou que é preciso substituir as cópias pelos originais nos fenômenos morais ou físicos que o acaso ou a habilidade do mestre oferece ao espírito do aluno Ensinou a conduzir as crianças à virtude pela estrada fácil do sentimento a afastálas do mal pela força invencível de necessidade e dos inconvenientes que seguem a má ação Demostrou que o método incerto da autoridade imperiosa deveria ser abandonado pois só produz uma obediência hipócrita e passageira XLII CONCLUSÃO DE tudo o que acaba de ser exposto pode deduzirse um teorema geral utilíssimo mas conforme ao uso que é o legislador ordinário das nações É que para não ser um ato de violência contra o cidadão a pena deve ser essencialmente pública pronta necessária a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas proporcionada ao delito e determinada pela lei APÊNDICE RESPOSTAS ÀS NOTAS E OBSERVAÇÕES DE UM FRADE DOMINICANO SOBRE O LIVRO DOS DELITOS E DAS PENAS ESSAS Notas e Observações não passam de uma coleção de injúrias contra o autor do livro Dos Delitos e Das Penas que é chamado fanático impostor escritor falso e perigoso satírico desenfreado sedutor do público É acusado de distilar o fel mais amargo de juntar a contradições vergonhosas os traços pérfidos e ocultos da dissimulação e de ser obscuro por perversidade O crítico pode estar certo de que não responderei às personalidades Representa ele o meu livro como uma obra horrível virulenta e de uma licença venenosa infame ímpia Encontra nele blasfêmias impudentes insolentes ironias pilhérias indecentes sutilezas perigosas motejos escandalosos calúnias grosseiras A religião e o respeito devido aos soberanos são o pretexto para duas das mais graves acusações que se acham nessas Notas e Observações Serão estas as únicas às quais me julgarei obrigado a responder Comecemos pela primeira I Acusação de impiedade 1 O autor do livro Dos Delitos e das Penas não conhece essa justiça que tem origem no legislador eterno que tudo vê e prevê Eis mais ou menos o silogismo do autor das Notas O autor do livro Dos Delitos não aprova que a interpretação da lei dependa da vontade e do capricho de um juiz Ora aquele que não quer confiar a interpretação da lei à vontade e aos caprichos de um juiz não crê numa justiça emanada de Deus O autor não admite pois uma justiça puramente divina 2 Segundo o autor do livro Dos Delitos e das Penas a Escritura santa só contém imposturas Em toda a obra Dos Delitos e das Penas só se trata da Escritura santa uma única vez é quando a propósito dos erros religiosos no capítulo XLI eu disse que não falava desse povo eleito de Deus para o qual os milagres mais extraordinários e as graças mais assinaladas substituíram a política humana 3 Toda a gente sensata encontrou no autor do livro Dos Delitos e das Penas um inimigo do cristianismo um mau homem e um mau filósofo Pouco me importa parecer ao meu crítico bom ou mau filósofo os que me conhecem asseguram que não sou mau homem Serei então inimigo do cristianismo quando insisto para que a tranqüilidade dos templos seja assegurada sob a proteção do governo e quando digo ao falar da sorte das grandes verdades que a revelação é a única que se conservou em sua pureza em meio às nuvens tenebrosas com que o erro envolveu o universo durante tantos séculos 4 O autor do livro Dos Delitos e das Penas fala da religião como se se tratasse de uma simples máxima política O autor do livro Dos Delitos e das Penas chama à religião um dom sagrado do céu Será provável que ele trate como simples máxima política o que lhe parece um dom sagrado do céu 5 O autor é inimigo declarado do Ser supremo Peço de todo meu coração que esse Ser supremo perdoe a todos os que me ofendem 6 Se o cristianismo causou algumas desgraças e alguns morticínios ele exageraos e silencia sobre os bens e as vantagens que a luz do Evangelho espalhou sobre todo o gênero humano Não se encontrará um único lugar no meu livro que faça menção aos males causados pelo Evangelho não citei mesmo um só fato que com isso se relacione 7 O autor profere uma blasfêmia contra os ministros da religião ao dizer que suas mãos sujaramse de sangue humano Todos os que escreveram a história desde Carlos Magno24 até OtãooGrande25 e mesmo depois desse príncipe proferiram muitas vezes a mesma blasfêmia Ignorarseá que durante três séculos o clero os abades e os bispos não tiveram escrúpulo algum em marchar para a guerra E não será o caso de dizer sem blasfemar que os eclesiásticos que se achavam no meio das batalhas e que participaram da carnificina sujavam as mãos de sangue humano 8 Os prelados da Igreja católica tão recomendáveis por sua doçura e sua humanidade passam no livro Dos Delitos e das Penas por ser os autores de suplícios tão bárbaros quanto inúteis Não tenho culpa de ser obrigado a repetir mais de uma vez a mesma coisa Não se citará na minha obra uma só frase que diga que os prelados inventaram suplícios 9 A heresia não pode chamarse crime de lesamajestade divina segundo o autor do livro Dos Delitos e das Penas Não há em todo o meu livro uma palavra que possa dar lugar a tal imputação Propus me apenas tratar Dos Delitos e das Penas e não dos pecados Eu disse falando do crime de lesamajestade que somente a ignorância e a tirania que confundem as palavras e as idéias mais claras podem chamar por esse nome e punir como tais com o último suplício delitos de natureza diferente O crítico talvez ignore quanto se abusa da palavra lesamajestade nos tempos de tirania e de ignorância aplicandoa a delitos de gênero inteiramente diverso pois não conduziam imediatamente à destruição da sociedade Consulte a lei dos imperadores Graciano26 Valentiniano27 e Teodósio28 observe como são considerados criminosos de lesa majestade aqueles que ousam duvidar da bondade da escolha do imperador quando este conferia algum emprego Uma outra lei de Valentiniano de Teodósio e de Arcácio29 ensinarlheá que os moedeiros falsos também eram criminosos de lesamajestade Era preciso um decreto do Senado para livrar da acusação de lesamajestade aquele que tivesse fundido estátuas dos imperadores embora velhas e mutiladas Somente depois de um edito dos imperadores Severo30 e Antonino é que se deixou de intentar a ação de lesamajestade contra os que vendiam as estátuas dos imperadores e esses príncipes baixaram um decreto que proibia a perseguição por esse crime daqueles que acaso tivessem lançado uma pedra contra a estátua de um imperador Domiciano31 condenou à morte uma dama romana por se ter despido diante de sua estátua Tibério 32 mandou matar como criminoso de lesamajestade um cidadão que vendera uma casa em que se achava a estátua do imperador Em séculos menos distantes do nosso verá Henrique VIII33 abusar de tal modo das leis que fez perecer por um suplício infame o duque de Norfolk sob o pretexto de crime de lesamajestade porque ele juntara as armas da Inglaterra às de sua família Esse monarca chegou a declarar culpado do mesmo crime quem quer que ousasse prever a morte do príncipe daí resultou que na sua última moléstia os seus médicos recusaram advertilo do perigo em que se achava 10 Segundo o autor do livro Dos Delitos e das Penas os hereges anatematizados pela Igreja e proscritos pelos príncipes são vítimas de uma palavra Todas essas interpretações são forçadas Limiteime a falar do crime de lesamajestade humana e a palavra lesamajestade serviu muitas vezes de pretexto à tirania sobretudo ao tempo dos imperadores romanos Toda ação que tivesse a desgraça de desagradar lhes tornavase logo um crime de lesamajestade Suetônio34 diz que o crime de lesa majestade era o delito dos que não tinham cometido delito algum Se eu disse que a ignorância e a tirania deram esse nome a delitos de natureza diferente e tornaram os homens vítimas de uma palavra não fiz senão falar segundo a história 11 Não será uma horrível blasfêmia sustentar com o autor do livro Dos Delitos e das Penas que a eloqüência a declamação e as mais sublimes verdades são um freio demasiado fraco para reter por muito tempo as paixões humanas Não penso que a acusação de blasfêmia recaia sobre o que eu disse da eloqüência e da declamação O acusador quis de certo referirse à insuficiência que eu atribuo às mais sublimes verdades Perguntolhe se julga que na Itália se conhecem essas sublimes verdades isto é as da fé Sem dúvida respondermeá que sim Mas serviram tais verdades de freio às paixões humanas na Itália Todos os oradores sacros todos os juizes todos os homens numa palavra assegurarmeão o contrário É um fato pois que as sublimes verdades são para as paixões humanas um freio que as não refreia ou que logo se parte e enquanto houver num país católico juizes criminosos prisões e castigos estará provada a insuficiência das sublimes verdades 12 O autor do livro Dos Delitos e das Penas escreve imposturas sacrílegas contra a Inquisição Meu livro não faz nenhuma menção nem direta nem indireta da Inquisição Pergunto porém ao meu acusador se lhe parece bem conforme ao espírito da Igreja a condenação de homens à morte nas fogueiras Não é do seio mesmo de Roma sob os olhos do vigário de Jesus Cristo na capital da religião católica que se cumprem hoje para com protestantes de qualquer nação todos os deveres de humanidade e hospitalidade Os últimos papas e sobretudo o atual receberam e recebem com a maior bondade os ingleses os holandeses e os russos esses povos de seitas e religiões diferentes têm em Roma toda a liberdade passível e ninguém está mais certo do que eles de gozar ali da proteção das leis e do governo 13 O autor do livro Dos Delitos e das Penas representa sob cores odiosas as ordens religiosas e sobretudo os frades Seria difícil citar um só lugar do meu livro que faça menção de ordens religiosas ou de frades a menos que se interprete arbitrariamente o capitulo em que falo da ociosidade 14 O autor do livro Dos Delitos e das Penas é um desses escritores ímpios para os quais os eclesiásticos não passam de charlatães os monarcas de tiranos os santos de fanáticos a religião de impostura e que nem mesmo respeitam a majestade do Criador contra o qual vomitam blasfêmias hediondas Passemos às acusações de sedição II Acusações de sedição 1 O autor do livro Dos Delitos e das Penas considera todos os príncipes e todos os soberanos do século como tiranos cruéis Só uma vez falei no meu livro dos soberanos e dos príncipes que reinam atualmente na Europa e eis o que digo Feliz o gênero humano se pela primeira vez recebesse leis Hoje que vemos elevados nos tronos da Europa etc Ver o fim do cap XVI 2 Não podem deixar de espantar a confiança e a liberdade com que o autor do livro Dos Delitos e das Penas se volta furioso contra os soberanos e os eclesiásticos A confiança e a liberdade não são um mal Qui ambulat simpliciter ambulat confidenter qui autem depravat vias suas manifestus erit35 Se aprovei nos súditos certo espírito de independência foi na medida que se submetessem às leis e fossem respeitosos para com os primeiros magistrados Desejo mesmo que os homens não tendo que temer a escravidão mas gozando de sua liberdade sob a proteção das leis se tornem soldados intrépidos defensores da pátria e do trono cidadãos virtuosos e magistrados incorruptíveis que levem ao pé do trono os tributos e o amor de todas as ordens da nação e que espalhem nas cabanas a segurança e a esperança de uma sorte cada vez mais doce Já não estamos nos séculos de Calígula36 de Nero37 de Heliogábalo38 e o crítico faz muito pouca justiça aos príncipes reinantes acreditando que os meus princípios possam ofendêlos 3 O autor do livro Dos Delitos e das Penas sustenta que o interesse do particular supera o de toda a sociedade em geral ou dos que a representam Se houvesse tal absurdo no livro Dos Delitos e das Penas não creio que o meu adversário tivesse feito um livro de 191 páginas para refutálo 4 O autor do livro Dos Delitos e das Penas contesta aos soberanos o direito de punir com a morte Como não se trata aqui nem de religião nem de governo mas somente da justeza de um raciocínio meu acusador tem toda a liberdade de julgar o que quiser Reduzo o meu silogismo desta forma Não se deve infligir a pena de morte se esta não é verdadeiramente útil e necessária Mas a pena de morte não é necessária nem verdadeiramente útil Não deve pois infligirse a pena de morte Não é este o lugar para uma dissertação sobre os direitos dos soberanos O crítico não quererá certamente sustentar que se deva infligir a pena de morte mesmo quando ela não é verdadeiramente útil nem necessária Proposta tão cruel e escandalosa não pode sair da boca de um cristão Se a segunda parte do silogismo não é exata tratarseá de um crime de lesalógica e nunca de lesamajestade Podem aliás escusarse os meus pretensos erros assemelhamse eles àqueles em que incidiram tantos cristãos zelosos da primitiva Igreja39 assemelhamse àqueles em que incorreram os frades da época de TeodósiooGrande no fim do IV século Nos seus Anais da Itália diz Muratori40 que no ano 389 Teodósio fez uma lei pela qual ordenava aos frades que permanecessem nos conventos porque levavam a caridade pelo próximo ao ponto de arrancar os criminosos das mãos da justiça não querendo que se mandasse matar ninguém Minha caridade não vai tão longe e convirei de bom grado que a daquele tempo se conduzia por falsos princípios Uma ação violenta contra a autoridade pública é sempre criminosa Restamme ainda duas palavras que dizer Haverá no mundo uma lei que proíba dizerse ou escreverse que um Estado pode existir e conservar a paz interna sem empregar a pena de morte contra qualquer culpado Conta Deodoro41 liv I cap LXV que Sabacão rei do Egito fezse admirar como modelo de demência porque comutou as penas capitais nas da escravidão e porque deu um emprego feliz à sua autoridade condenando os culpados aos trabalhos públicos Estrabão42 liv XI informanos que havia perto do Cáucaso algumas nações que não conheciam a pena de morte mesmo quando o delito merecia os maiores suplícios nemini mortem irrogare quamvis pessima merito43 Essa verdade é consignada na história romana na época da lei Pórcia que proíbe que se tire a vida de um cidadão romano se a sentença de morte não for revestida do consenso geral de todo o povo Tito Lívio44 fala dessa lei liv X cap IX Finalmente o exemplo recente de um reinado de vinte anos no mais vasto império do mundo a Rússia atesta ainda essa verdade a imperatriz Isabel morta há alguns anos jurou ao subir ao trono dos czares que não faria morrer nenhum culpado sob o seu reinado Essa augusta princesa nunca deixou de cumprir o feliz compromisso que assumira sem interromper o curso da justiça criminal e sem prejudicar a tranqüilidade pública Se esses fatos são incontestáveis será então verdade dizer que um Estado pode subsistir e ser feliz sem punir de morte nenhum criminoso EXTRATO DA CORRESPONDÊNCIA DE BECCARIA E DE MORELLET SOBRE O LIVRO DOS DELITOS E DAS PENAS De Morellet45 a Beccaria Paris fevereiro de 1766 Senhor Sem ter a honra de conhecervos julgome no direito de endereçarvos um exemplar da tradução que fiz de vossa obra Dei Delitti e delle Pene Os homens de letras são cosmopolitas e de todas as nações estão ligados por laços mais estreitos do que os que unem os cidadãos de um mesmo país os habitantes de uma mesma cidade e os membros de uma mesma família Julgo pois poder entrar convosco num comércio de idéias e de sentimentos que me será bastante agradável se não vos recusardes ao entusiasmo de um homem que vos estima sem conhecervos pessoalmente mas que adquiriu esses sentimentos por vós na leitura do vosso excelente trabalho Foi o sr de Malesherbes46 com quem tenho a honra de conviver que me empenhou em fazer passar vosso livro para a nossa língua Eu não tinha necessidade para tanto de esforçarme muito Erame uma ocupação agradável tornarme para minha nação e para o país em que nossa língua está difundida o intérprete e o órgão das idéias fortes e grandes e dos sentimentos de benevolência de que vossa obra está cheia Pareciame que me associaria ao bem que fazíeis aos homens e que poderia igualmente pretender certo reconhecimento da parte dos corações sensíveis aos quais são caros os interesses da humanidade Faz hoje oito dias que minha tradução apareceu Eu não quis escrevervos mais cedo porque julguei dever esperar que pudesse instruirvos sobre a impressão causada por vossa obra Ouso pois assegurarvos Senhor que o êxito é universal e que além da atenção despertada pelo livro se formaram pelo autor sentimentos que podem lisonjear vos ainda mais isto é a estima o reconhecimento o interesse a amizade Estou particularmente encarregado de apresentarvos os agradecimentos e os cumprimentos do sr Diderot47 do Sr Helvétius48 do Sr de Buffon49 Já conversamos muito com o sr Diderot sobre vossa obra que é bem capaz de pôr fogo a uma cabeça tão quente como é a dele Terei algumas observações que vos comunicar que são o resultado das nossas conversas O sr de Buffon serviuse das expressões mais fortes para testemunharme o prazer que vosso livro lhe causou e pedevos aceiteis os seus cumprimentos Levei também vosso livro ao Sr Rousseau50 que está em Paris de viagem para a Inglaterra aonde vai estabelecerse e que parte por estes dias Ainda não posso dizervos sua impressão porque não tornei a vêlo Talvez possa conhecêla hoje por intermédio do Sr Hume51 com quem irei jantar estou porém certo da impressão que ele terá O sr Hume que vive há tempos conosco encarregoume igualmente de dizervos mil coisas de sua parte A essas pessoas que conheceis por sua reputação acrescento um homem infinitamente estimável que as reúne em sua casa o Sr barão dHolbach52 autor de excelentes trabalhos impressos de química e de história natural e de muitos outros que não foram publicados filósofo profundo juiz esclarecidíssimo de todos os gêneros de conhecimentos alma sensível e aberta à amizade Não posso exprimirvos a impressão que vosso livro lhe causou nem quanto ele ama e estima a obra e o autor Como passamos a vida em casa dele seria preciso que o conhecêsseis primeiro porque se pudermos ter a honra de atrairvos a Paris esta casa será a vossa Enviovos pois igualmente os seus agradecimentos e as suas saudações Não vos falo do Sr dAlembert 53 que vos escreveu e me disse que queria juntar ainda uma palavra à minha carta Deveis conhecer sua opinião sobre vossa obra Quanto à tradução competelhe dizer vos se ficou satisfeito Não vos ocultarei a mais forte razão que me determinou a tratar de vos dar alguma boa opinião de mim a esperança de que me perdoareis mais facilmente a liberdade que tomei de fazer algumas modificações na disposição de algumas partes do vosso trabalho Apresentei no prefácio as razões gerais que me justificam convosco porém devo alongarme um pouco a esse respeito Para o espírito filosófico que se torna senhor da matéria nada mais fácil do que apreender o conjunto de vosso tratado cujas partes se ligam estreitamente e dependem todas do mesmo princípio Mas para os leitores vulgares e menos instruídos e sobretudo para os leitores franceses julgo ter seguido um caminho mais regular e em tudo mais conforme ao gênio de minha nação e à feição dos nossos livros A única objeção que posso temer é a censura de ter diminuído a força e o calor do original pelo restabelecimento mesmo dessa ordem Eis minhas respostas Sei que a verdade tem a maior necessidade da eloqüência e do sentimento Seria absurdo pensar o contrário e sobretudo não seria convosco que se poderia avançar tão estranho paradoxo Mas se não é preciso sacrificar o calor à ordem creio não ser preciso tão pouco sacrificar a ordem ao calor e tudo irá bem se se puderem conciliar essas duas coisas a um tempo Resta pois examinar se me saí bem nessa conciliação Se minha tradução tem menos calor do que o original seria preciso atribuir essa falha a muitas outras causas e não à diferença da ordem Seria ou a fraqueza do estilo do tradutor ou a natureza mesma de toda tradução que deve ficar abaixo do original sobretudo nas coisas de sentimento Não devo dissimularvos outra objeção que me fizeram Disseramme que um autor poderia chocarse ao ver em sua obra modificações mesmo úteis Mas Senhor essa maneira de ver não poderia ser a vossa Assim pelo menos o julguei Um homem de gênio que fez uma obra admirável cheia de idéias novas e fortes e excelente pelo fundo deve poder ouvir dizer friamente que o seu livro não tem toda a ordem de que era suscetível Deve ir mesmo até à adoção das modificações feitas se forem úteis e baseadas em boas razões Eis Senhor a coragem que espero de vós Rejeitai dentre as modificações feitas por mim aquelas que vos parecem malentendidas conservai as que estiverem bem e acreditai que só tereis feito aumentar vossa reputação Sois digno de que eu use para convosco dessa confiança e me lisonjeio de que o aproveis Terminarei minha justificativa citandovos grandes autoridades que aplaudiram a liberdade por mim tomada O sr dAlembert permiteme que vos diga ser essa a sua opinião O sr Hume que leu com muito cuidado o original e a tradução é do mesmo parecer Eu poderia citarvos ainda numerosas pessoas instruídas que assim também o julgaram A avidez com a qual o público recebeu aqui vossa obra fazme acreditar que a nossa primeira edição breve estará esgotada e que antes de um mês será preciso fazer outra Se na disposição que apresentei separei idéias que devam estar ligadas ou fiz aproximações que vos pareçam prejudicar o sentido peçovos que a respeito me participeis vossas observações e numa nova edição não deixarei de conformarme com vossas opiniões Termino Senhor esta longa carta rogandovos que me considereis como um dos vossos maiores admiradores e como um dos homens que mais vivamente desejam participar de vossa estima e de vossa amizade Muito me afligiria a idéia de não vôlo poder dizer um dia a vós mesmos Estou ansioso por ter vossas notícias conhecer vosso juízo sobre a minha tradução saber se continuais a marchar na bela estrada que vos abristes e a ocuparvos com o bem da humanidade É com tais sentimentos de respeito de estima e de amizade que tenho a honra de ser etc Morellet De Beccaria a Morellet Milão maio de 1766 Permitime Senhor que empregue convosco as fórmulas usadas na vossa língua como mais cômodas mais simples mais verdadeiras mais dignas por isso de um filósofo como vós Permitime igualmente que me sirva de um copista por ser a carta que vos escrevi muito pouco legível A mais profunda estima o maior reconhecimento a mais terna amizade são os sentimentos que fez nascer em mim a carta encantadora que vos dignastes escreverme Eu não saberia exprimirvos quanto me honra ver minha obra traduzida na língua de uma nação que esclarece e instrui a Europa Tudo devo eu mesmo aos livros franceses Foram eles que desenvolveram em minha alma os sentimentos de humanidade sufocados por oito anos de educação fanática Eu já respeitava vosso nome pelos excelentes artigos que inseristes na obra imortal da Enciclopédia54 e foi para mim a mais agradável surpresa saber que um homem de letras da vossa reputação dignavase de traduzir o meu tratado Dos Delitos Agradeço vos de todo o meu coração o presente que me fizeste de vossa tradução assim como vossa atenção em satisfazer o interesse que eu tinha em lêla Lia com um prazer que não posso exprimirvos e achei que embelezastes o original Protestovos com a maior sinceridade que a ordem que seguistes pareceme a mim mesmo mais natural e preferível à minha e que lamento que a nova edição italiana esteja quase terminada porque do contrário eu me poria inteira ou quase inteiramente de acordo com o vosso plano Minha obra nada perdeu de sua força em vossa tradução exceto nos lugares em que o caráter essencial a uma e a outra língua estabeleceu certa diferença entre vossa expressão e a minha A língua italiana é mais maleável e dócil e talvez por ser menos cultivada no gênero filosófico possa adotar expressões que a vossa recusaria empregar Não vejo solidez na objeção que vos fizeram de que a mudança da ordem poderia fazer perder a força A força consiste na escolha das expressões e na aproximação das idéias e a confusão só pode prejudicar esses dois efeitos O receio de ferir o amorpróprio do autor não devia detervos mais Primeiro porque como vós mesmo o dissestes com razão em vosso excelente prefácio um livro em que se defende a causa da humanidade uma vez tornado público pertence ao mundo e a todas as nações e relativamente a mim em particular eu teria feito muito poucos progressos na filosofia do coração que coloco acima da do espírito se não tivesse adquirido a coragem de ver e amar a verdade Espero que a quinta edição que deve aparecer breve esteja logo esgotada e assegurovos que na sexta observarei inteiramente ou quase inteiramente a ordem de vossa tradução que dá maior relevo às verdades que tratei de coligir Digo quase inteiramente porque segundo uma leitura única e rápida que fiz até este momento não posso decidirme com inteiro conhecimento de causa sobre as particularidades como já o fiz sobre o conjunto A impaciência que meus amigos têm de ler vossa tradução forçoume Senhor a deixála sair de minhas mãos logo depois de a ter tido e sou obrigado a dar em outra carta a explicação de certas passagens que julgastes obscuras Devo dizervos porém que tive ao escrever os exemplos de Machiavelli55 de Galileu56 e de Giannone ante os meus olhos Ouvi o ruído das cadeias firmar a superstição e os gritos de fanatismo abafar os gemidos da verdade A visão desse espetáculo medonho determinoume algumas vezes a envolver a luz de nuvens Quis defender a humanidade sem ser mártir Essa idéia de que eu devia ser obscuro tornoume às vezes tal sem necessidade Acrescentai a isso a inexperiência e a falta de hábito de escrever perdoáveis num autor que tem apenas vinte e sete anos e que há somente cinco anos entrou na carreira das letras Sermeia impossível pintarvos Senhor a satisfação com a qual vejo o interesse que tomais por mim e quanto me comovem as demonstrações de estima que me dais e que não posso aceitar sem ser vão nem rejeitar sem fazervos injúria Recebi com o mesmo reconhecimento e a mesma confusão as coisas lisonjeiras que me dissestes da parte desses homens célebres que honram a humanidade a Europa e a sua nação DAlembert Diderot Helvétius Buffon Hume nomes ilustres que não se pode ouvir pronunciar sem ficar comovido assim como vossas obras imortais são minha leitura contínua o objeto de minhas ocupações durante o dia e de minhas meditações no silêncio da noite Cheio das verdades que ensinais como poderia eu incensar o erro e aviltarme ao ponto de mentir à posteridade Minha única ocupação é cultivar em paz a filosofia e contentar assim três sentimentos muito vivos em mim o amor à reputação literária o amor à liberdade e a compaixão pelas desgraças dos homens escravos de tantos erros Data de cinco anos a época de minha conversão à filosofia e devoa à leitura das Cartas Persas57 A segunda obra que completou a revolução do meu espírito foi a do sr Helvétius Foi ele quem me lançou com força no caminho da verdade e quem primeiro despertou minha atenção para a cegueira e as desgraças da humanidade Devo à leitura do Espírito 58 uma grande parte de minhas idéias O Sr conde Firmiani regressou a Milão há vários dias mas está muito ocupado e ainda não pude vêlo Ele protegeu meu livro e é a ele que devo minha tranqüilidade Remetervosei breve algumas explicações das passagens que achastes obscuras e que não pretendo justificar porque não escrevi para não ser entendido Rogovos encarecidamente me envieis vossas observações e as dos vossos amigos para que eu as aproveite numa sexta edição Comunicaime sobretudo o resultado de vossas palestras sobre meu livro com o sr Diderot Desejo vivamente saber que impressão teve de mim essa alma sublime Tenho a honra de ser etc Beccaria Notas 1 Jurisconsulto alemão do começo do século XVII 2 Jurisconsulto piemontês falecido em 1575 3 Jurisconsulto italiano famoso por sua crueldade falecido em Roma em 1618 Deixou uma obra em treze volumes 4 Alusão ao frade Vincenzo Facchinei di Gorfri do convento de Vallombrosa que escreveu Notas e Observações cuja resposta vem publicada as Notas e Observações cuja resposta vem publicada no Apêndice deste volume 5 Thomas Hobbes 15881679 filósofo inglês autor do Leviatan obra em que defende o materialismo em filosofia o egoísmo em moral e o despotismo em política 6 Alusão a JeanJacques Rousseau de cuja autoria são os livros Discursos sobre as Ciências e as Artes e sobre a Origem da Desigualdade 7 Charles de Secondat barão de Montesquieu 16891755 grande escritor francês autor das Cartas Persas e dos livros Grandeza e Decadência dos Romanos e O Espírito das Leis 8 Observese que a palavra direito não contradiz a palavra força O direito é a força submetida a leis para vantagens da maioria Entendo por justiça os laços que reúnem de maneira estável os interesses particulares Se esses laços se quebrassem não haveria sociedade É mister que se evite ligar à palavra justiça a idéia de uma força física ou de um ser existente A justiça é pura e simplesmente o ponto de vista sob o qual os homens encaram as coisas morais para o bemestar de cada um Não pretendo falar aqui de justiça de Deus que é de outra natureza tendo relações imediatas com as penas e as recompensas de uma vida futura 9 Se cada cidadão tem obrigações a cumprir para com a sociedade a sociedade tem igualmente obrigações a cumprir para com cada cidadão pois a natureza de um contrato consiste em obrigar igualmente as duas partes contratantes Essa cadeia de obrigações mútuas que desce do trono até à cabana e que liga igualmente o maior e o menor dos membros da sociedade tem como único fim o interesse público que consiste na observação das convenções úteis à maioria Violada uma dessas convenções abrese a porta à desordem A palavra obrigação é uma das que se empregam mais freqüentemente em moral do que em qualquer outra ciência Existem obrigações a cumprir no comércio e na sociedade Uma obrigação supõe um raciocínio moral convenções racionadas não se pode porém emprestar à palavra obrigação uma idéia física ou real É uma palavra abstrata que precisa ser explicada Ninguém pode obrigar vos a cumprir obrigações sem saberdes quais são tais obrigações Nota de Beccaria 10 Isto é em vernáculo e não em latim 11 Entre os criminalistas ao contrário a confiança que merece uma testemunha aumenta em proporção da atrocidade do crime Apoiamse eles neste axioma de ferro ditado pela mais cruel imbecilidade In atrocissimis leviores conjecturae sufficiunt et licet judici jura transgredi Traduzamos essa máxima hedionda para que a Europa conheça ao menos um dos revoltantes princípios e tão numerosos aos quais está submetida quase sem o saber Nos delitos mais atrozes isto é menos provável bastam as mais ligeiras circunstâncias e o juiz pode pôrse acima das leis Os absurdos em uso na legislação são muitas vezes o resultado do medo fonte inesgotável das inconseqüências e dos erros humanos Os legisladores ou antes os jurisconsultos cujas opiniões são consideradas após sua morte como espécies de oráculos e que como escritores vendidos ao interesse se tornaram árbitros soberanos da sorte dos homens os legisladores repito receosos de ver condenar inocentes sobrecarregaram a jurisprudência de formalidades e exceções inúteis cuja exata observação colocaria a desordem e a impunidade no trono da justiça Outras vezes assombrados com certos crimes atrozes e difíceis de provar acharam que deviam desprezar essas formalidades que eles próprios estabeleceram Foi assim que dominados ora por um despotismo impertinente ora por temores pueris fizeram dos julgamentos mais graves uma espécie de jogo abandonado ao acaso e aos caprichos do arbítrio 12 Referese Beccaria a Gustavo III 17461792 que subiu ao trono da Suécia em 1771 tendo feito um governo liberal e posto em prática numerosas idéias defendidas pelos enciclopedistas franceses Morreu assassinado aos 46 anos de idade vítima de uma conspiração dos aristocratas 13 Isabel Petrovna 17091762 filha de PedrooGrande tendo subido ao trono da Rússia em 1741 14 Tito filho de Vespasiano imperador romano de 76 a 81 cognominado a delícia do gênero humano em virtude dos grandes benefícios feitos ao povo Perdi o dia Diem perdidi costumava ele dizer quando se passava um dia sem que tivesse tido ocasião de praticar alguma ação generosa 15 Antonino o Piedoso foi um dos sete imperadores romanos Nerva Trajano Adriano Antonio Marco Aurélio Vero e Cômodo que reinaram de 96 a 192 Seu governo de 138 a 161 caracterizouse por um notável espírito de moderação e de justiça 16 Um dos sete imperadores antoninos excelente organizador Reinou de 98 a 117 17 Nas primeiras edições desta obra eu mesmo cometi esse erro Ousei dizer que o falido de boa fé devia ser guardado como penhor de sua dívida reduzido ao estado de escravidão e obrigado a trabalhar por conta dos credores Envergonhome de ter escrito essas coisas cruéis Acusaramme de impiedade e de sedição sem que eu fosse sedicioso nem ímpio Ataquei os direitos da humanidade e ninguém se levantou contra mim 18 O comércio ou a troca dos prazeres do luxo não deixa de ter inconvenientes Esses prazeres são preparados por muitos agentes mas partem de um pequeno número de mãos e se distribuem a um pequeno número de homens A maioria só raramente pode proválos numa pequena proporção Eis porque o homem se lamenta quase sempre de sua miséria Mas esse sentimento é apenas o efeito da comparação e nada tem de real 19 Quando a extensão de um país aumenta em proporção maior do que a população o luxo favorece o despotismo porque a indústria particular diminui à medida que os homens estão mais dispersos e quanto menos indústria houver mais os pobres dependerão dos ricos cujo fausto os faz subsistir Tornase então tão difícil para os oprimidos reuniremse contra os opressores que as insurreições deixam de ser temidas Os homens poderosos obtém com muito mais facilidade a submissão a obediência a veneração e essa espécie de culto que torna mais sensível a distância que o despotismo estabelece entre o homem poderoso e o infeliz Os homens são mais independentes quando são menos observados e são menos observados quando são em maior número Por outro lado quando a população aumenta em maior proporção do que a extensão do país o luxo tornase ao contrário uma barreira contra o despotismo Anima a indústria com a atividade dos cidadãos O rico encontra em torno de si bastantes prazeres para entregarse completamente ao luxo de ostentação o único capaz de firmar no espírito do povo a idéia de sua dependência E pode observarse que nos Estados vastos mas fracos e despovoados o luxo de ostentação deve prevalecer se outras causas não o impedem ao passo que o luxo de comodidade tenderá a diminuir cada vez mais a ostentação nos países mais populosos do que extensos 20 Essa atração se parece em muitas coisas com a gravitação universal A força dessas duas causas diminui com a distância Se a gravitação modifica os movimentos dos corpos a atração natural de um sexo para outro afeta todos os movimentos da alma enquanto durar sua atividade Essas causas diferem pelo fato de que a gravitação se põe em equilíbrio com os obstáculos que encontra ao passo que a paixão do amor adquire com os obstáculos mais força e vigor 21 O Evangelho 22 Ditador romano nascido em 136 a C Companheiro e mais tarde rival de Mário cônsul em 88 vencedor de Mitridates chefe do partido aristocrático e depois senhor de Roma e da Itália Proscreveu os adversários reformou a constituição romana em sentido favorável ao Senado e conseguiu enorme influência Abdicou inesperadamente em pleno fastígio e morreu no ano seguinte 80 a C 23 Referência à obra Emilio ou Da Educação 1762 romance filosófico em que JeanJacques Rousseau propõe um sistema de educação baseado no princípio de que o homem é naturalmente bom e de que sendo má a educação dada pela sociedade conviria estabelecer uma educação negativa como a melhor ou antes como a única boa A despeito de certos paradoxos esse livro teve influência salutar sobre a educação daquela época 24 Carlos Magno ou Carlos I 742814 rei dos Francos e imperador do Ocidente era filho de PepinooBreve do qual sucedeu em 768 Político profundo e hábil organizador estimava e protegia as letras criando escolas rodeandose de homens eminentes e governando com sabedoria o seu imenso império 25 Otão I o Grande 912973 imperador da Alemanha desde 936 tendo governado com grande habilidade 26 Imperador romano de 375 a 383 27 Imperador romano de 364 a 375 cujo governo foi assinalado por grande severidade e intolerância religiosa 28 Teodósio I o Grande 346395 imperador romano que contribuiu para o triunfo do cristianismo sobre o paganismo 29 Arcádio 376408 filho de Teodósio imperador do Oriente desde 395 30 Alexandre Severo 208235 imperador romano sucessor de Heliogábalo 31 Imperador romano de 81 a 96 filho de Vespasiano e de Tito célebre por sua crueldade Morreu assassinado sendo cúmplice do crime sua própria mulher Foi o último dos doze Césares 32 Segundo imperador romano de 14 a 37 famoso por sua desumanidade 33 Henrique VIII 14911547 rei da Inglaterra desde 1509 rompeu com a Igreja católica e fundou o anglicanismo Instruído artista mas cruel e libertino 34 Historiador latino autor da obra Os doze Césares coleção de anedotas de imenso interesse documental 35 Quem caminha livremente caminha com confiança quem porém se desvia do seu caminho será descoberto 36 Calígula 1241 imperador romano desde 37 Famoso por sua crueldade desejava que o povo romano tivesse uma só cabeça para decepála de um golpe Sua insensatez chegou ao ponto de dar o titulo de cônsul ao seu cavalo Incitatus 37 Imperador romano de 54 a 68 que se celebrizou por sua crueldade 38 Imperador romano de 218 a 222 e que se tornou famoso por suas loucuras e crueldades 39 Podem consultarse os santos padres e entre outros Tertuliano na sua Apolog cap XXXVII onde ele diz que os cristãos tinham por máxima sofrer ante a própria morte do que dála a alguém E no seu Tratado de Idolatria caps XVII e XXI condena ele toda espécie de cargos públicos como interditos aos cristãos porque não era possível exercêlos sem que às vezes fosse obrigado a pronunciar a pena de morte contra os criminosos 40 Lodovico Antonio Muratori 16721750 historiador Italiano 41 Deodoro da Sicília autor de uma Biblioteca Histórica 42 Geógrafo grego autor de uma preciosa Geografia Morreu sob Tibério 43 Não condenar ninguém à morte nem mesmo pelo pior delito 44 Tito Lívio 59 a C 19 d C historiador latino nascido em Pádua Deixou sob o título de Décadas uma história romana mais notável pelo estilo do que pela autenticidade dos fatos 45 André Morellet 17271819 abade literato e economista francês colaborador da Enciclopédia 46 ChrétienGuillaume de Lamoignon de Malesherbes 17211794 magistrado de grande reputação ministro sob Luiz XVI que ele defendeu perante a Convenção Morreu no cadafalso 47 Denis Diderot 17131784 filósofo francês ardente propagandista das idéias filosóficas do século XVIII um dos fundadores da Enciclopédia Deixou várias obras importantes 48 ClaudeArien Hélvetius 17151771 literato e filósofo francês autor do livro Do Espírito 49 GeorgesLouis Leclerc de Buffon 1707 1778 naturalista e escritor francês autor da História Natural 50 JeanJacques Rousseau 17121778 filósofo e escritor francês nascido em Genebra autor da Nova Heloísa do Contrato Social do Emilio ou Da Educação Confissões e Discursos sobre as Ciências e as Artes e sobre a Origem da Desigualdade 51 David Hume 17111776 filósofo e historiador inglês criador da filosofia fenomenista autor de um célebre Ensaio sobre o Entendimento Humano 52 PaulHenri Holbach 17231789 barão filósofo materialista francês amigo e protetor dos Enciclopedistas 53 Jean le Rond dAlembert 17171783 célebre escritor filósofo e matemático francês um dos fundadores da Enciclopédia 54 Publicação monumental dirigida por dAlembert e Diderot que foi uma verdadeira máquina de guerra posta ao serviço das doutrinas filosóficas do século XVIII 17511772 55 Nicolau Machiavelli 14691527 político e historiador italiano autor das Décadas sobre Tito Lívio e do Príncipe 56 Galileu Galilei 15641642 ilustre matemático físico e astrônomo italiano nascido em Pisa Proclamou partilhando a teoria de Copérnico que o Sol e não a Terra é o centro do mundo planetário e que a Terra gira em torno de si mesma e tem também como os outros planetas um movimento de translação ao redor do Sol Foi por isso denunciado como herege e obrigado pela Inquisição a abjurar de joelhos as suas afirmações 1633 Depois dessa abjuração que o livrou da fogueira foi condenado ao cativeiro e morreu cego alguns anos mais tarde É famosa sua frase E pur si muove E contudo se move que teria proferido ao ser obrigado a abjurar 57 Cartas satíricas que Montesquieu publicou em 1721 sob o anônimo É uma correspondência imaginária de dois persas chegados à Europa Rica e Uzbek dirigida aos seus amigos da Pérsia e na qual o autor passa em revista com plena liberdade a política a religião e toda a sociedade francesa de sua época 58 Obra publicada em 1758 e na qual Helvétius aconselha o materialismo tendo provocado os mais vivos protestos 2001 Ridendo Castigat Mores Versão para eBook eBooksBrasilcom Agosto 2001 Proibido todo e qualquer uso comercial Se você pagou por esse livro VOCÊ FOI ROUBADO Você tem este e muitos outros títulos GRÁTIS direto na fonte wwwebooksbrasilcom Livros Grátis httpwwwlivrosgratiscombr Milhares de Livros para Download Baixar livros de Administração Baixar livros de Agronomia Baixar livros de Arquitetura Baixar livros de Artes Baixar livros de Astronomia Baixar livros de Biologia Geral Baixar livros de Ciência da Computação Baixar livros de Ciência da Informação Baixar livros de Ciência Política Baixar livros de 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livros de Serviço Social Baixar livros de Sociologia Baixar livros de Teologia Baixar livros de Trabalho Baixar livros de Turismo RESUM DO LIVRO DOS DELITOS E DAS PENAS DE CESARE BECCARIA O livro Dos Delitos e das Penas de Cesare Beccaria publicado em 1764 foi um marco na história do direito penal Nele o autor expõe sua visão sobre a justiça penal e a necessidade de reformas no sistema punitivo da época Beccaria argumenta que a finalidade da punição deve ser a prevenção de crimes e não a vingança Para alcançar esse objetivo ele propõe que as leis sejam claras e precisas para que todos saibam o que é proibido e quais são as consequências de desobedecêlas Além disso ele defende que as penas sejam proporcionais ao delito cometido evitando excessos e garantindo que a punição não seja mais prejudicial do que o crime em si O autor também critica duramente a prática da tortura e a pena de morte argumentando que elas não só são cruéis e desumanas mas também ineficazes para prevenir crimes Ele propõe que a prisão seja a principal forma de punição mas que ela seja reformada para que se torne um ambiente de reeducação e ressocialização do delinquente Beccaria ainda destaca a importância da imparcialidade no julgamento e da presunção de inocência até que se prove o contrário Ele defende que a justiça deve ser aplicada de forma igual para todos independentemente de sua posição social ou riqueza Outro ponto importante abordado por Beccaria é a necessidade de limitar o poder do Estado na aplicação da justiça Ele argumenta que a lei deve ser a expressão da vontade geral da sociedade e não dos interesses de uma elite dominante Além disso Beccaria argumentou pela necessidade de um processo legal justo com a garantia de direitos fundamentais para os acusados Ele criticou a prática de tortura como meio de obtenção de provas e defendeu a presunção de inocência o direito à defesa e a proporcionalidade das penas em relação aos delitos cometidos Dos Delitos e das Penas influenciou o movimento iluminista e teve um impacto duradouro na reforma do sistema penal em diversos países Suas ideias foram adotadas em várias constituições e declarações de direitos e contribuíram para a abolição de práticas desumanas e para o estabelecimento de princípios de justiça criminal mais modernos e humanitários Em resumo a importância do livro Dos Delitos e das Penas de Cesare Beccaria reside em suas críticas ao sistema penal injusto e cruel da época bem como em suas propostas para um sistema penal mais humano proporcional e baseado nos princípios da justiça e dos direitos humanos Sua obra teve um impacto significativo no desenvolvimento do pensamento jurídico e influenciou reformas no sistema penal em todo o mundo Por fim o autor propõe a criação de um sistema de justiça mais eficiente e menos burocrático com tribunais simples e rápidos para garantir que a punição seja rápida e eficaz na prevenção de novos crimes Em resumo Dos Delitos e das Penas é um livro que revolucionou a forma como pensamos sobre a justiça penal Beccaria propôs uma série de reformas que continuam sendo debatidas e influenciando o sistema jurídico moderno em todo o mundo Suas ideias sobre a prevenção de crimes a proporcionalidade das penas a importância da imparcialidade no julgamento e a limitação do poder do Estado são fundamentais para a construção de um sistema de justiça justo e humano