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Arquivos Brasileiros de Psicologia v 61 n 2 2009 Retirado do World Wide Web httpwwwpsicologiaufrjbrabp 1 ARTIGO A patologização da angústia no mundo contemporâneo The pathologization of anxiety in the contemporary world Jurema Barros DantasI Roberto Novaes de SáII Teresa Cristina O C CarreteiroIII IUniversidade Estadual do Rio de Janeiro UERJ IIUniversidade Federal Fluminense UFF IIIUniversidade Federal Fluminense UFF Endereço para correspondência RESUMO O artigo apresenta uma discussão sobre o encobrimento e a patologização da angústia como marcas recorrentes dos modos de produção de subjetividade na época contemporânea A analítica existencial de Heidegger tematiza a angústia como uma disposição afetiva fundamental do seraí humano A partir de sua analítica do seraí e de suas reflexões posteriores sobre a técnica moderna são discutidos os sentidos dos modos correntes de evitação da angústia e de encobrimento da condição essencial de desabrigo da existência por meio da compulsão de controle e segurança A medicalização e a psicologização do fenômeno da angústia têm sido estratégias centrais deste projeto de controle Discute se ainda o papel essencial da angústia na dinâmica de singularização da existência e a importâcia para as práticas psicoterapêuticas de uma apropriação temática do seu lugar a partir do qual elas tanto podem reforçar essa patologização encobridora quanto abrir espaço para os processos de singularização que as experiências de angústia podem suscitar Palavraschave Angústia Contemporaneidade Existência Patologização ABSTRACT This work aims at reflecting on the anxiety concealing and pathologization as a frequent mark of subjectivity production in the contemporary world The existencial analytic of Heidegger does a thematic discussion about anxiety as a basic affective mood of human beingthere From his analytic of being there and his later reflections on the modern technique the directions in the current ways of avoidance of anxiety and the concealment of the essential condition of lack of protection of the existence through the control compulsion and security guard are argued The medical and psicological approaches of the phenomenon of anxiety have been central strategies in this project of control The essential paper of anxiety in the dynamics of existential singularization is still argued as well as the consequence for the psychological treatments of a thematic appropriation of its place from which they can strengthen this concealing pathological approach or open space for the singularization processes that anxiety experiences can excite Arquivos Brasileiros de Psicologia v 61 n 2 2009 Retirado do World Wide Web httpwwwpsicologiaufrjbrabp 2 Keywords Anxiety Contemporary Existence Pathologization 1 A ÉPOCA CONTEMPORÂNEA E SEU HORIZONTE DE SENTIDO Indagar não responder era a paixão de Heidegger A isso que indagava e porque procurava ele chamouo ser Durante toda a sua vida filosófica sempre indagou pelo ser O sentido desta indagação é apenas devolver à vida o mistério que ameaça desaparecer na modernidade SAFRANSKI 2000 A partir das reflexões de Heidegger sobre o existir humano e sobre o horizonte histórico de sentido da época contemporânea por ele denominado como Era da Técnica procuramos discutir os limites aos quais se restringe cotidianamente a experiência de sentido da existência Seja pelo consumismo imediatista e irrefletido eou pelo planejamento e pelo controle exacerbados os modos contemporâneos de corresponder às incertezas essenciais do seraí humano não conseguem integrar de forma adequada algumas das experiências mais fundamentais deste existir tais como a dor o amor a liberdade e a morte Para Heidegger a disposição afetiva da angústia que insiste em emergir mesmo onde tudo parece assegurado pelo controle da técnica tem um papel privilegiado na abertura de possibilidades que levem o homem a uma ampliação de seu horizonte de sentido e a uma relação mais livre com o mundo da técnica Em nosso cotidiano a maior parte das atividades sejam elas sociais políticas econômicas ou culturais busca orientarse a partir de um mesmo critério de legitimação a razão tecnológica Por toda parte ela dá as referências do progresso econômico e social do desenvolvimento e do prestígio dos indivíduos e das nações Constatar simplesmente este fato inegável e pensar sobre os problemas do homem a partir desta perspectiva técnica está longe no entanto de nos aproximar de uma compreensão do próprio fenômeno da técnica moderna em seu sentido mais essencial Segundo Heidegger 2001a p 9 enquanto estamos restritos a uma concepção técnica da realidade permanecemos inteiramente cegos para o sentido da própria técnica como tal isto porque a essência da técnica não é absolutamente nada detécnico Para ele a técnica moderna ao contrário da compreensão usual não é um mero saber instrumental voluntariamente produzido e utilizado pelo homem mas um horizonte histórico de desvelamento de sentido dos entes ao qual o homem moderno corresponde tanto mais fascinado e impotente quanto mais alimenta a ilusão de que o produz voluntariamente e controla O traço fundamental do ser dos entes na era da técnica é a sua disponibilidade ao uso humano o ente é posto fundamentalmente e exclusivamente como disponível para o consumo no cálculo global HEIDEGGER 1976 p 304 Cada vez mais a objetividade Gegenstandlichkeit se transforma em disponibilidade Bestandlichkeit Se para a ciência do século passado os objetos ainda eram visados com certa imparcialidade pela curiosidade de conhecer hoje em dia os entes são dispostos a priori no horizonte de sua possível utilização Tudo que é atingido por esse olhar provocante da técnica inclusive o próprio homem se mostra como reserva de matériaprima fundo de provisão disponível para extração processamento armazenagem e consumo Um exemplo do quanto essa experiência da realidade é hegemônica atualmente mesmo quando acreditamos exercer nossos cuidados mais bem intencionados para com o mundo é a preocupação crescente e justificável com o meio ambiente A proteção à natureza se traduz hoje como preservação de recursos os rios e mananciais são reservas hídricas e energéticas os mares são reservas alimentares as florestas são reservas genéticas etc Esse quadro configura uma tendência de empobrecimento do pensamento visto que o modo dominante de pensar se caracteriza pelo cálculo Apoiandose na sua capacidade de atingir resultados considerados práticos tais como as inquestionáveis conquistas alcançadas pelas pesquisas tecnológicas este modo calculante do pensar considerase a única ou a mais elevada forma de pensamento Outras modalidades como a Filosofia a Arte e a Religião são meramente admitidas como acessórios éticos e estéticos no sentido pejorativo à vida A vigência hegemônica desse horizonte de sentido implica determinados mecanismos de produção de subjetividade orientados por um projeto histórico de exploração e controle cada vez mais radical da realidade Desta maneira impõemse modos de ser estar agir e pensar que marcam as formas de adoecimento no contemporâneo e delineiam as possibilidades de experiência do fenômeno da angústia Em seu livro Modernidade e ambivalência Bauman faz uma oposição entre por um lado a pretensão moderna de um mundo ordeiro1 uma realidade concebida a partir de princípios geométricos um mundo onde o cálculo permite a previsibilidade e com ela o controle e por outro a ambivalência2 que se dá quando a realidade escapa à pretensão de classificação não conseguindo ajustarse a nenhuma referência dada A ambivalência3 pode então ser entendida como o refugo da modernidade o resto o Arquivos Brasileiros de Psicologia v 61 n 2 2009 Retirado do World Wide Web httpwwwpsicologiaufrjbrabp 3 indesejável aquilo que contraria o projeto de controle colocando em questão o modelo de exploração organizada do real Para Bauman 1999 o esforço moderno se concentra no combate à ambivalência no aniquilamento e supressão de tudo o que não pode ser claramente definido A modernidade se constitui como uma era de guerra particularmente dolorosa e implacável contra a ambivalência Bauman 1999 afirma que o problema da condição contemporânea de nossa civilização moderna é que ela parou de indagarse O preço do silêncio é pago na dura moeda corrente do sofrimento humano Segundo o autor fazer as perguntas certas constitui afinal toda a diferença entre andar à deriva e viajar Elaborar tematicamente e colocar em questão as premissas supostamente inquestionáveis do nosso modo de vida é provavelmente o modo mais pertinente de cuidado que cabe às práticas psicológicas Como nos diz Heidegger 2001b p 129 quem se dedica hoje em dia à profissão de ajudar as pessoas psiquicamente enfermas deve saber o que acontece deve saber onde está historicamente precisa esclarecerse diariamente que aqui está operando um destino antigo do homem europeu ele precisa pensar de maneira histórica e abandonar a absolutização incondicional do progresso em cujo rastro o serhomem do homem ocidental ameaça sucumbir Heidegger nos convida a refletir sobre a pretensão das ciências de se constituírem como critério único de verdade Refletir sobre o modo como a ciência se relaciona com o mundo estabelecendo um olhar que busca mensuração e controle mesmo onde esse cálculo não se efetua com números como no caso de algumas áreas das Ciências Humanas Qualquer objetivação científica da existência humana suprime seu caráter mais essencial segundo Heidegger 1989 v 1 cap 1 ser a livre abertura histórica em que seu próprio sentido está sempre em jogo Na época moderna a experiência que o homem faz de si mesmo se reduziu àquela de um sujeito interior encapsulado em oposição ao mundo exterior Nesse contexto a angústia é tomada como mero transtorno neuroquímico ou subjetivo a ser sanado por algum tratamento farmacológico ou psicológico adequado dependendo de suas causas Na medida em que as experiências de angústia parecem sempre refratárias às respostas que o planejamento técnico da vida oferece podem se tornar uma oportunidade para que a existência se aproprie de outras possibilidades para além daquelas dadas pelo mundo da técnica 2 ANGÚSTIA E FINITUDE NA CONTEMPORANEIDADE Para Heidegger 1989 toda angústia é em última instância angústia em relação à finitude da existência Morte e angústia são presenças inalienáveis da experiência humana No entanto também é própria ao seraí humano4 a tendência para desviarse da experiência da finitude por intermédio de interpretações impessoais que tratam a morte como uma mera contingência a que todos estão sujeitos A analítica existencial de Ser e Tempo revela a cotidianidade mediana como queda no modo impessoal de ser De início e na maior parte das vezes somos como se deve ser somos como todo mundo é ou seja não realizamos nossas possibilidades singulares de ser Não se trata aí de nenhuma crítica valorativa da cotidianidade apenas da descrição fenomenológica de uma estrutura constitutiva da existência A tendência para os modos impessoais de desvio com relação à finitude e à angústia faz parte portanto da estrutura ontológica da existência Sua realização histórica factual pode no entanto apresentar nuanças específicas amenizando ou exacerbando esses traços existenciais ontológicos A partir da modernidade as respostas à constatação deste caráter de serparaamorte da existência são cada vez mais reveladoras do projeto histórico de controle absoluto da realidade Seja por meio das discussões científicas sobre as possibilidades de prolongamento indefinido da vida biológica seja pela cultura mercadológica de planejamento da vida pelos mais diversos produtos das indústrias de seguridade e saúde ou ainda pela simples atitude de negação e assepsia que caracteriza os modos contemporâneos de lidar com os doentes terminais e com os mortos tudo isso deixa transparecer a tentativa de nivelamento da radicalidade do fenômeno da morte ao mesmo plano dos demais problemas operacionais de produção de uma existência mais segura e confortável Apesar desse empenho pela segurança morte e angústia permanecem como fenômenos refratários ao projeto de controle e consumo que marca a modernidade e se intensifica no contemporâneo Paradoxalmente quanto maior o esforço de nivelamento e previsão da vida mais frequentes os sentimentos de tédio e falta de sentido que prenunciam a angústia e a experiência da finitude Os acontecimentos imprevistos e as surpresas são dádivas ou presentes gratuitos da existência YALOM 1996 apenas desvelandose como fontes a priori de medo e sofrimento a partir do momento em que lhes é negado seu caráter inevitável Ao depararse mediante um evento imprevisto com a ausência de um sentido simplesmente dado para a existência com sua condição inerente de desamparo Arquivos Brasileiros de Psicologia v 61 n 2 2009 Retirado do World Wide Web httpwwwpsicologiaufrjbrabp 4 e finitude o homem se angustia Correntemente a angústia nos evoca o sentido de estreiteza aperto estrangulamento sufocação um medo sem objeto claramente identificável Podemos explorar um pouco além dos significados usuais de sentido do termo angústia O latim angust significa espaço estreito apertado Na angústia apertura existencial estreitase a distância entre o homem e o seu seraí Quando as referências que sustentam a experiência de um mundo simplesmente dado falham aproximase a possibilidade de uma experiência mais própria do existir enquanto sernomundo A pré compreensão de si como mero poderser e do agora como instante de decisão é impropriamente experienciada como temor à destruição de uma vida segura e convenientemente adaptada e de seu mundo estruturado A fuga e o encobrimento sistemáticos da experiência de nossa condição de mortais determinam o modo como cotidianamente lidamos com nosso existir e com tudo o que a partir dele nos vem ao encontro Mesmo que todos saibam que é impossível superar a morte esse saber mantémse na maior parte das vezes em uma dimensão meramente formal todo homem é mortal sou homem logo sou mortal Essa constatação apenas formal da finitude expressa antes uma experiência impessoal da minha morte como um simples morrese do que como um eu morro em sentido próprio Para Heidegger 1989 apenas ao antecipar a morte como possibilidade certa e insuperável o homem tornase livre para assumir o seu serlançado reconhecendo a sua responsabilidade diante das escolhas que realiza A angústia conclama o seraí a decidirse por si mesmo no sentido de uma apropriação singular do seu existir Esse clamor existencial usualmente interpretado pelo senso comum como voz da consciência não possui entretanto nenhum conteúdo positivo universalizável O que ele clama silenciosamente é apenas que o seraí se decida por si mesmo Ao contrário da compreensão comum em que de partida nos encontramos como homens modernos esse decidirse por si mesmo nada tem a ver com a afirmação voluntarista de um sujeito autofundado é justamente a superação desse modo de subjetividade por uma experiência de si como deixarse apropriar ao acontecimento do ser que está em jogo A angústia longe de ser para a analítica existencial uma condição psíquica patológica assume antes o papel de uma disposição afetiva fundamental do seraí Por meio dela o homem deixa de compreender a si mesmo apenas a partir do mundo das ocupações e das interpretações públicas naturalizadas para permitir então uma experiência própria do existir enquanto abertura de sentido Esta transformação existencial não significa de modo algum um mero abandono e superação da cotidianidade impessoal Impessoalidade e singularidade são possibilidades ontológicas e portanto insuperáveis da existência A cada momento o ser próprio ou impróprio está sempre em jogo na livre abertura do existir A emergência cada vez maior dos quadros de ansiedade depressão angústia e pânico parece ser o contraponto necessário do projeto moderno de disponibilização e controle da realidade levado ao paroxismo na época contemporânea Quanto mais a modernidade se afirma como realização cultural do modo calculante de correspondência ao sentido mais realiza também sem o querer a experiência das limitações desse modo de abertura Quanto maior o esforço técnicocalculante de nivelamento do sentido em que pode haver sentido maior o pressentimento incômodo do que não se deixa nivelar Justamente aí na experiência do fracasso e da insuficiência do planejamento técnico global principalmente quando ele é do ponto de vista técnico plenamente eficaz e bemsucedido é que se geram as possibilidades de transformação do nosso modo moderno de escuta e correspondência ao sentido O homem não pode pela previsão e pelo controle conduzir a essência da técnica a uma transformação nem evitar o perigo apenas impondo uma ética ao uso instrumental da técnica Mas a meditação do homem guiada pela angústia perante a incontornável dimensão trágica e finita da existência pode conduzilo a uma relação mais livre com a era da técnica Essa liberdade se assemelha àquela de um homem que supera sua dor no sentido em que longe de dela se desfazer ou de esquecê la ele a habita HEIDEGGER 1976 p 144 3 ANGÚSTIA E SINGULARIZAÇÃO Para compreender melhor a questão da angústia no horizonte histórico contemporâneo é fundamental meditar sobre o que Heidegger chama de abertura e que constitui de fato a própria existência O que caracteriza o ser do homem é exatamente esta condição de estar e constituirse em aberto Aquilo que somos está continuamente em jogo no tempo Esse estar em jogo sinaliza um horizonte de aclaramento de todas as possibilidades de ser onde os sentidos continuamente se desvelam Nossa essência se constitui à medida que somos não havendo possibilidade de previsibilidades e cálculos Contudo compreendendonos a partir do mundo tendemos a nos ver como possuidores de uma essência a priori que anuncia o que somos e de que maneira devemos nos portar Esta impessoalidade cotidiana já nos traz as referências prontas e com isto tendemos ao fechamento e ao encobrimento de nossas possibilidades mais próprias e singulares Esquecemos cotidianamente aquilo Arquivos Brasileiros de Psicologia v 61 n 2 2009 Retirado do World Wide Web httpwwwpsicologiaufrjbrabp 5 que nos é próprio que não temos nenhuma essência simplesmente subsistente que o próprio ao homem é exatamente a temporalidade o vir a ser histórico esta condição de abertura na qual os sentidos estão em jogo Suportando a condição de estar em aberto compreendendo a liberdade de decidir o que é ser homem cabenos de acordo com Heidegger 1989 a apropriação das nossas escolhas existenciais Esta apropriação é aquilo que podemos chamar de singularização O encobrimento e o desvio desta condição de abertura implicam o sofrimento psíquico enquanto restrição de sentido Sob o signo deste apego a determinadas possibilidades em detrimento de outras há o medo de vermos contrariadas as nossas pretensões de segurança No fundo desse medo se encontra sempre a angústia perante nossa condição radical de desabrigo A angústia precisa usualmente ser evitada a qualquer custo sendo sistematicamente negada e afastada a partir de compreensões defensivas Em nossas ilusões de controle sobre o devir não aceitamos a angústia como sinalização de nossa condição mais própria como espaço de reflexão privilegiado sobre a existência O preço cobrado por essas ilusões de controle e previsão é justamente a administração impessoal da angústia em seus modos patologizados de expressão tais como as fobias compulsões estados de pânico e depressão Haveria outros modos de experiência da angústia Outras formas de desvelamento do real Heidegger 2000 em seu texto intitulado SerenidadeGelassenheit se propõe a refletir sobre modo de experiência de sentido característico da contemporaneidade que segundo ele tende à carência de pensamento Suas reflexões neste texto estão intimamente ligadas àquelas já mencionadas em A questão da técnica 2001a isto porque o pensamento dominante chamado por Heidegger de pensamento calculante é o mesmo pensamento representacional que provoca a natureza a se desvelar enquanto objeto passível de ser mensurado e que norteia aquilo que entendemos como técnica moderna Este modo calculante de pensar avança progressivamente com pretensões de se tornar o único modo legítimo de pensar Em contrapartida Heidegger 2000 nos fala de um pensamento meditante que em vez de pretender a aproximação com o real por intermédio do horizonte do cálculo se propõe a outra forma de reflexão orientada para o sentido das coisas Como afirma Heidegger 2000 p 13 O pensamento que calcula nunca pára nunca chega a meditar O pensamento que calcula não é um pensamento que medita ein bessinnliches Denken não é um pensamento que reflete nachdenkt sobre o sentido que reina em tudo o que existe Pensar de forma meditante é suportar a estranheza e a disruptura renunciando à pretensão de tudo controlar Este modo de pensar não implica uma rejeição absoluta de qualquer possibilidade de utilização da técnica mas sim uma relação de maior liberdade para com ela na qual podemos dizer sim e não utilizandonos dos recursos técnicos sem permitir que eles determinem a nossa essência Heidegger 2000 utiliza então o termo serenidade para caracterizar esta atitude ante a técnica O pensamento meditante e a serenidade implicam para ele uma renúncia à atitude de controle voluntarista do mundo Este não querer no entanto não quer dizer desistência mas sim uma permissão para que as coisas venham à luz por si mesmas não tendo necessariamente que estar enquadradas em um horizonte predeterminado de cálculo Segundo Rodrigues 2002 a serenidade consiste em um suportar a condição humana de abertura em um disponibilizarse para que os sentidos possam vir à luz por si mesmos a partir do insondável acontecimento do ser Em oposição ao controle característico do nosso tempo e contrapondo a noção de um sujeito que calcula e mede domina e determina encontramos na serenidade um deixar vir à luz Estando afinado pela serenidade em sua abertura ao mundo o homem já não se deixa tomar pela angústia ôntica fruto do desejo de tudo determinar mas aceita os fatos que lhe escapam à possibilidade de controle Mas vale ressaltar que é ainda a angústia como disposição ontológica fundamental que convoca e possibilita aquela abertura de serena correspondência à realização do real Não devemos nos deixar confundir pelos termos usados por Heidegger nos diferentes momentos de sua obra ou acreditar que o filósofo muda simplesmente seu ponto de vista Muitos dos conceitos desenvolvidos em Ser e tempo como autenticidade e inautenticidade propriedade e impropriedade impessoalidade decisão liberdade e singularidade podem ser perigosamente confundidos com a acepção que é dada a termos semelhantes por alguns teóricos humanistas e existencialistas se não tivermos o devido cuidado de ressignificálos no conjunto da obra de Heidegger Em um texto intitulado Diálogo num caminho do campo escrito em 19441945 por Heidegger como discussão complementar ao livro Serenidade ele desenvolve de forma mais elaborada o sentido em que emprega o termo O diálogo parte de um questionamento sobre a essência do homem e logo de início imprime sobre a questão uma reviravolta Kehre isto é propõe que se desvie o olhar da direção em que essa essência é tradicionalmente tomada como o pensamento enquanto representação e vontade Arquivos Brasileiros de Psicologia v 61 n 2 2009 Retirado do World Wide Web httpwwwpsicologiaufrjbrabp 6 Se o pensamento é o elemento fundamental da essência do homem refletir sobre essa essência em uma direção distinta da tradição implica uma meditação sobre o pensamento enquanto algo diferente da vontade O pensar que se procura aqui não é portanto um querer O modo de disposição por meio do qual somos colocados diante das coisas sem a intervenção do querer é a serenidade Mas não se trata de alguma forma de passividade pois se a serenidade está fora do âmbito da vontade não diz respeito também à distinção entre atividade e passividade Para uma aproximação à essência do pensamento Heidegger sugere que em vez de qualquer tentativa de objetivação aguardemos warten pela sua essência Este aguardar no entanto não se pode confundir com ter expectativas erwarten pois a expectativa já tem a priori um objeto pelo qual espera O aguardar tal como proposto não tem qualquer objeto simplesmente aventurase no próprio aberto HEIDEGGER 1969 p 43 O aguardar sem nada representar conduz à própria abertura de sentido do ser A serenidade vem da própria abertura consiste no aguardar sereno por meio do qual experienciamos o pertencimento de nossa essência à abertura Nesse mesmo texto Heidegger 1969 p 58 diz que é este o sentido do termo decisão Entschlossenheit empregado em Ser e Tempo o corresponder em um modo próprio do seraí à abertura de sentido do ser nada tendo a ver portanto com alguma espécie de voluntarismo de um sujeito A decisão entendida em consonância com a serenidade se caracteriza como uma abertura privilegiada que suporta a desconstrução de velhas referências e permite a constituição de novos modos de se relacionar consigo e com o mundo trazendo à luz a possibilidade de singularização da existência Uma existência singular só é possível enquanto correspondência decidida e prestes a angustiarse às nossas possibilidades mais próprias abertas a partir da antecipação da morte Clareados pelo fato de que somente nos projetamos no horizonte do tempo temos a possibilidade de nos apropriarmos de nossa liberdade Este confronto com a temporalidade enquanto fundamento do nosso seraí levanos à compreensão de que apropriarse de si é deixarse enraizar e apropriar o território de acontecimento do seraí Para Heidegger 1989 p 102 A decisão brota da compreensão sóbria de possibilidades fundamentais e factuais da presença Junto com a angústia sóbria que leva para a singularidade do poderser está a alegria mobilizada dessa possibilidade Nela a presença se vê livre dos acasos dos entretenimentos que a curiosidade solícita cria sobretudo a partir das ocorrências do mundo Podemos dizer então que a angústia como disposição fundamental ontológica constituise em uma abertura privilegiada na medida em que rompe com as nossas referências prévias nos facultando a possibilidade de uma referenciação própria e singular Diante daquilo que ela nos clama podemos responder impessoalmente psicologizando e patologizando seu sentido recusando o seu chamado buscando soluções mágicas explicações e medicações que anestesiem o sofrimento No entanto é possível aceitar o desafio e suportar a condição de estar aberto que a angústia nos sinaliza Nesta condição podemos falar de serenidade como uma reafirmação da vida das possibilidades reais da existência que não se reduzem à repetição e ao controle mas mais originalmente à diferença e à criação Como diz Rodrigues 2002 p 110 Dentro deste horizonte tudo aquilo que nos limita os territórios que nos apegamos a fim de nos fazer sentir seguros os valores que elegemos como prioritários e absolutos que somente teriam sentido na presença da imortalidade e imutabilidade perdem o sentido e são substituídos por novas formas de experimentar a vida e o futuro As práticas psicológicas contemporâneas são em geral consideradas como Psicologia Aplicada ou seja técnicas que retiram sua legitimidade da institucionalização da Psicologia como ciência Para além das diferenças de escolas e correntes tais pressupostos derivam do horizonte histórico de compreensão de sentido em que nos encontramos inseridos previamente às nossas opções teóricas Podemos constatar na maioria das abordagens e condutas psicoterapêuticas a mesma intenção de fundo do projeto epistemológico da modernidade designada por Heidegger como a era da técnica Não se trata de um projeto voluntariamente elaborado e escolhido pelo sujeito mas antes de uma identificação histórica na qual estamos de início inevitavelmente imersos Uma reflexão sobre a patologização da angústia a partir da fenomenologia heideggeriana não tem portanto a pretensão de ultrapassar no sentido de superar esse projeto técnico pela instauração de algum outro A intenção de uma reflexão sobre a angústia e sobre a questão da técnica é apenas propiciar alguma elaboração temática deste horizonte para que à medida que nos apropriemos de nossa situação hermenêutica possamos afrouxar nossas identificações impessoais e ampliar nossa margem de livre correspondência a outras possibilidades históricas de sentido da existência É pela via da serenidade e da reflexão sobre a era da técnica que podemos pensar em outros modos de apropriação dos medos e das angústias presentes no contemporâneo Como nos diz Bauman 1999 p 92 Arquivos Brasileiros de Psicologia v 61 n 2 2009 Retirado do World Wide Web httpwwwpsicologiaufrjbrabp 7 Ensinar os homens a viver na incerteza não a se acalmar mas a perturbar Em toda parte e a cada passo em cada oportunidade com ou sem razão é necessário ridicularizar da maneira mais firme os juízos aceitos e afirmar os paradoxos Para além de um caráter meramente reativo a citação de Bauman nos exorta a um exercício de atenção para que não fiquemos restritos a uma postura de reafirmação das máximas impessoais bastante presentes nos dias atuais Enquanto psicólogos devemos ter uma constante atitude critica para não nos deixarmos capturar pela perigosa posição de ajustadores ou reparadores de sujeitos ou de psiquismos Lembremonos das lúcidas palavras de Sponville 2000 p 12 Fazemme rir nossos pequenos gurus que querem protegernos dela da angústia Ou nossos pequenos psis que querem curarnos dela Por que não nos curam em vez dela da morte Por que não nos protegem em vez dela contra a vida Não se trata de evitar e sim de aceitar Não de curar e sim de atravessar É justamente no caminho de uma meditação lúcida sobre a nossa condição ontológica de estarmos em jogo no tempo que podemos encontrar uma gama de possibilidades históricas em que novas referências e territórios de enraizamento existencial possam ser habitados Nesta perspectiva a angústia deixa de ser vista como uma experiência a ser simplesmente neutralizada ou abolida constituise ao contrário como uma disposição afetiva fundamental para que novas experiências se abram e outras narrativas existenciais possam ser elaboradas CONSIDERAÇÕES FINAIS Em nosso contexto histórico a angústia é em geral considerada uma condição patológica que deve ser aliviada por terapias ou medicamentos O bemestar humano encontrase cada vez mais dependente de saberes técnicos especializados O encobrimento do sentido e da origem da angústia seu esquecimento no modo de ser mediano da cotidianidade não é casual Faz parte da própria estrutura desta cotidianidade mediana fugir ao desconforto da angústia mergulhando no mundo impessoal das ocupações do falatório da curiosidade da ambiguidade Para a compreensão cotidiana a angústia deve ser curada pelos especialistas competentes e combatida pelo envolvimento com as ocupações úteis Mesmo quando este envolvimento tornase desordenado e compulsivo a ponto de deixar aparecer o mesmo esvaziamento que se queria combater na angústia tudo se reduz ainda à mera questão de um correto equilíbrio de neurotransmissores e de ocupações sociais O que precisa continuar encoberto para essa avaliação vulgar é que a disposição afetiva fundamental que perturba a existência do ponto de vista do impessoal não tem nenhuma solução ou explicação causal redutiva é a partir dela enquanto abertura de sentido que se buscam as soluções e explicações que podem afastar eventualmente a angústia mas jamais refutar ou solucionar aquilo para que aponta a condição essencial de desabrigo que se encobre sob qualquer projeto religioso ou científico de asseguramento da existência Não há ocupação ou droga alguma capaz de libertar da angústia pois a busca compulsiva de ocupações e medicações já é sempre sintoma e nunca solução do fenômeno da angústia É a escuta e a habitação na própria angústia que podem despertála enquanto disposição afetiva fundamental para se interrogar sobre o sentido da existência A angústia aponta justamente para a dimensão trágica da existência para nossa fragilidade indigência vulnerabilidade e finitude perante a vida O homem angustiado não é mais o animal racional ou qualquer outro tipo de objetivação ele é sobretudo seraí não tendo nenhum fundamento para além da temporalidade É por nossa condição de existentes que nos angustiamos A angústia é esta disposição compreensiva em que o seraí humano encontrase aberto para si mesmo para o seu ser nomundo Assim é o fenômeno da angústia que acaba por revelar o nosso poderser mais próprio rompendo com a familiaridade cotidiana e expondo à luz nossa impessoalidade O território da angústia é exatamente esta ausência de qualquer território previamente estabelecido Entretanto nos apropriarmos de nossa existência assumirmos nossa singularidade e nos darmos conta de que nada nos constitui a priori é de início uma experiência de desenraizamento dolorosa da qual geralmente nos esquivamos De acordo com Heidegger há uma tendência ao encobrimento como se o homem fugisse de si esquecendo o seu serpróprio Se esse encobrimento da angústia é uma das estruturas ontológicas da existência sua vigência histórica hegemônica e naturalizada é um dos traços significativos de nossa cultura na qual impera a convicção de que o sofrimento deve ser abolido a qualquer preço Em nossa contemporaneidade cujo projeto se funda no controle e no cálculo a Arquivos Brasileiros de Psicologia v 61 n 2 2009 Retirado do World Wide Web httpwwwpsicologiaufrjbrabp 8 proliferação de respostas técnicas e estéticas ou de reações religiosas moralizantes não pode deter a devastação do mundo enquanto habitação existencial Pagamos pelo contínuo desvio da angústia com algo que nos é essencial nossa capacidade de ver de corresponder à realidade em suas múltiplas e misteriosas possibilidades de sentido Só é possível livrarmonos da angústia livrandonos igualmente da realidade É quando se cala o alarido impessoal dos desejos e representações correntes do todo mundo que podemos nos pôr livremente à escuta das demandas e dos questionamentos de sentido que nos são mais próprios e singulares REFERÊNCIAS BAUMAN Z Modernidade e ambivalência Rio de Janeiro Jorge Zahar 1999 HEIDEGGER M Questions IVParis Gallimard 1976 Sobre o problema do ser O caminho do campo Tradução Ernildo Stein São Paulo Livraria Duas Cidades 1969 Ser e tempo Petrópolis Vozes 1989 v I e II Serenidade São Paulo Instituto Piaget 2000 A questão da técnica In Ensaios e conferências Petrópolis Vozes 2001a Seminários de Zollikon Petrópolis Vozes 2001b RODRIGUES J T O pensamento de Heidegger e a Psiquiatria terror e pânico 2002 Dissertação Mestrado em Psicologia Departamento de Psicologia da UFF Niterói 2002 SAFRANSKI R Heideggerum mestre da Alemanha entre o bem e o mal São Paulo Geração Editorial 2000 SPONVILLE A C Bom dia angústia São Paulo Martins Fontes 2000 YALOM I D O executor do amor Porto Alegre Artes Médicas 1996 Endereço para correspondência Jurema Barros Dantas Emailjuremadantasigcombr Roberto Novaes de Sá Emailrobertonovaesterracombr Teresa Cristina O C Carreteiro Emailtecar2uolcombr Recebido em 08122008 Aprovado em 07052009 Revisado em 02052009 Arquivos Brasileiros de Psicologia v 61 n 2 2009 Retirado do World Wide Web httpwwwpsicologiaufrjbrabp 9 1 Segundo Bauman 1999 um mundo ordeiro é um mundo no qual se sabe como ir adiante um mundo no qual se pode calcular a probabilidade de um evento e intervir para o aumento ou a diminuição de tal probabilidade um mundo no qual as ligações entre certas situações e a eficiência de determinadas ações permanecem no geral constantes de forma que podemos nos basear em sucessos passados como guias para outros futuros Há um profundo interesse em manter a ordem do mundo A ambivalência confunde o cálculo dos eventos e a relevância dos padrões de ação memorizados 2 Para Bauman 1999 a ambivalência ambivalence é provavelmente a maior inquietação da era moderna uma vez que ao contrário de outros inimigos derrotados e escravizados ela cresce em força a cada sucesso dos poderes modernos No fundo a própria atividade ordenadora se constrói como ambivalência 3 No parágrafo 37 de Ser e Tempo Heidegger utiliza o termo ambigüidade Zweideutigkeit para designar a característica da cotidianidade mediana de não mais distinguir uma compreensão autêntica da compreensão impessoal do todo mundo Já que a semelhança dos termos poderia sugerir ao leitor alguma aproximação pontual de conceitos cabe observar que a evocação a Bauman se dá apenas no plano de uma aproximação no modo de compreender os traços gerais da existência contemporânea Não é objetivo deste texto estabelecer articulações conceituais específicas entre a terminologia de Bauman e a de Heidegger 4 No contexto da Analítica Existencial as expressões existência humana ou seraí humano contêm certa redundância Apesar disso entendemos ser válida a sua utilização eventual O próprio Heidegger faz uso da expressão Menschliches Dasein na abertura dos Seminários de Zollikon HEIDEGGER 2001b p 6