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Direitos Humanos

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HISTÓRIA SOCIAL DOS DIREITOS HUMANOS\nJosé Damião de Lima Trindade\n2ª edição Sumário\n\nUMA HISTÓRIA DA ESPERANÇA .................................................... 11\nPRELÚDIO EM LANDSBERG-SOBRE-O-LECH .................. 13\nVIAGEM AO PASSADO OCIDENTAL ........................................ 15\nBarões, bispos, servos da gleba .............................................. 18\nA Peste Negra ..................................................................... 21\nNovos atores entram em cena ............................................... 24\nTEMPESTADE NO HORIZONTE VISÍVEL ................................ 27\nOS PENSADORES DA REVOLUÇÃO ..................................... 35\nA BURGUERIA TOMA O PODER ............................................ 43\nA DECLARAÇÃO DE 1789 E A CONSTITUIÇÃO DE 1791 .... 53\nO TERROR \"DE ESQUERDA\" E A CONSTITUIÇÃO DE 1793 . 61\nO TERROR \"DE DIREITA\" E A CONSTITUIÇÃO DE 1795 ...... 69\nA revolta dos iguais .............................................................. 73\nA revolução define seu caráter ............................................. 75\nRESTAUTRAÇÃO POLÍTICA E REVOLUÇÃO INDUSTRIAL: ..... 79\nDIREITOS HUMANOS EM CRISE ............................................ 79\nA locomotiva do capitalismo .................................................. 81\nBurguesses e proletários ...................................................... 85\nProdução social, apropriação individual ................................ 86\nA REVOLUÇÃO AMERICANA ............................................... 91\nPENSADORES DA NOVA ORDEM ......................................... 105\nA BANDEIRA MUDA DE MÃOS ............................................... 115\nAntigos sonhos de, reforma social ........................................ 118\nSocialistas utópicos no capitalismo triunfante .................. 121\nO PERIGO OPERÁRIO ............................................................ 127\nA crítica de Karl Marx ............................................................ 132\nDIREITOS SOCIAIS: A PRÁTICA TRANSFORMA A TEORIA ...... 137\n8 de março de 1857: mulheres em luta ................................ 144 Comuna de Paris, 1871: o povo no poder ............................... 145\nChicago, 1º de maio de sangue ................................................ 146\nO caso Dreyfus ................................................................... 147\nMÉXICO, RÚSSIA, ALEMANHA: GRANDES ESPERANÇAS ... 151\nA ERA DAS DECEPÇÕES ......................................................... 165\nRússia: a revolução perde-se pelo caminho ...................... 165\nOs alemães leem Mein Kampf ............................................... 167\nSemeadura em solo fértil ....................................................... 175\nA colheita ............................................................................. 180\nUM RUMOR SEM RUMO CLARO ........................................... 189\nRetrato pintado em cores ..................................................... 190\nNova escolha? ..................................................................... 195\nBIBLIOGRAFIA ..................................................................... 211 Uma história da esperança\n\nFrei Betto\n\nHistória social dos direitos humanos é uma obra imprescindível para quem busca conhecer os caminhos e os descaminhos do esforço do ser humano pela conquista de sua dignidade e liberdade. José Damião de Lima Trindade revela, aqui, profunda erudição, sem, no entanto, ceder ao academicismo, proporcionando a todos nós uma leitura didática, mas sem formalismos, e repleta de informações obtidas em cuidadosa pesquisa. O autor, evitando dogmatismos e apoligéticas, nos conduz às lutas históricas, da Revolução Francesa ao banho de sangue em Chicago, em 1º de maio de 1886, analisando com propriedade e argúcia as contradições inerentes aos processos libertários.\n\nSeu olhar crítico ajuda-nos a compreender melhor os processos sociais que pretenderam emancipar o ser humano, seja proclamando a superioridade de uma raça sobre a outra, seja instaurando, ao menos na teoria, a igualdade universal.\n\nNestas páginas, encontrei uma das mais lúcidas e pertinentes análises da queda do Muro de Berlim e do fracasso do socialismo no Leste Europeu, que guarda ainda a vantagem de não cair no triunfalismo mercadológico do neoliberalismo e da globocolonização.\n\nEste livro é tão bem escrito que merece o qualificativo de breve enciclopédia da utopia e da esperança. José Damião de Lima Trindade produz uma verdadeira obra de garimpagem dos direitos humanos, desvelando suas camadas \"arqueológicas\", ou seja, os embates e combates que, ao longo da modernidade, contribuíram para que hoje ao menos se erga a evidência contraditória entre os nossos propósitos teóricos, plenos de humanismo, e a nossa prática ainda distante dos ideais que professamos, como demonstra a hedionda contemporaneidade da fome, da miséria, das guerras e da exclusão social que atinge a maioria dos seis bilhões de habitantes do planeta. Para nós, cristãos, o paradigma dos direitos humanos são os preceitos e valores evangélicos, centrados no direito de vida para todos, dom maior de Deus. A radical opção de Jesus pelos mais pobres, sem discriminar aleijados, cegos, enfermos e dementes, a ponto de identificar-se com eles (Mt. 25), sinaliza a injustiça\n\nHistória Social dos Direitos Humanos\n\n11 imperante em toda sociedade que, de alguma forma, instaura desigualdades, discriminações e exclusões.\n\nNesse sentido, a mesa eucarística, na qual todos têm igual acesso à comida e à bebida, é de fato sinal e convites a uma ordem social em que o \"pão nosso\" seja expressão do mistério maior do Pai Nosso, origem e fim de nossa vocação à fraternura.\n\nJosé Damião de Lima Trindade\n\n12\n\nMaterial com direitos autorais PréLúdio em Landsberg-sobre-o-Lech\n\nI ntensos olhos escuros, magro, em pé no centro do cômodo exíguo, tinha aparência algo mais velha do que se poderia esperar dos seus trinta e cinco anos. Sua atenção estivera momentaneamente desviada pelo gorgolejo de um tentilhão que se detivera ante a janela guarnecida de grades. Continuou falando, agora de modo pausado e firme, sem o ardor de há pouco, como se estivesse a certificar-se de que nenhuma palavra se perderia: \"Os direitos humanos estão acima dos direitos do Estado\".\nO acompanhante, curvado sobre a pequena mesa ao lado do catre, continuou escrevendo o que ouvia em letra fina e nervosa, a pena metálica quase a machucar o papel. Já dava mostras de algum desconforto, não só pelo esforço de anotação por horas acumuladas, como também porque, não obstante agosto mantivesse seu desfile de dias gloriosos e cálidos, com aquele vasto céu de azul-profundo, uma brisa prematuramente fria estendia-se persistente ao anunciar-se da noite. Talvez o outono se antecipasse.\n\"Não pode haver autoridade pública que se justifique pelo simples fato de ser autoridade, pois, nesse caso, toda tirania neste mundo seria inatacável e sagrada\", proseguiu Adolf, quase retomando o entusiasmo. \"Como os homens, primeiro, criam as leis, pensam, depois, que estas estão acima dos direitos humanos.\"\nO acompanhante anota-u rapidamente e, mesmo sentado, girou o corpo de um lado a outro, como a desentorpecer músculos dorsais. Resumindo que sentia a nuca congestionada pela demorada imobilidade, talvez fosse o caso de retomar na manhã seguinte. Adolf quedou-se em silêncio por breve instante, então assentiu com a cabeça. É certo que estava\n\nHistória Social dos Direitos Humanos\n\n13 disposto a ir mais longe, mas ordenou a seu escriba que registrasse apenas uma última frase, \"O mundo não foi feito para os povos covardes\".\nAliviado, o moço deu por terminada sua tarefa do dia, recolheu as folhas de papel, colecionou-as cuidadosamente na pasta de couro opaco e despediu-se com polidez.\n\nAdolf Hitler estava satisfeito com o andamento de seu trabalho. Estava prestes a completar o terceiro capítulo de Mein Kampf, livro que se dispunha a escrever desde que, em 1° de abril daquele ano de 1924, fora recolhido ao presídio militar da simpática cidadiezinha de Landsberg sobre-o-Lech, na Baviera, por força de sentença do tribunal de Munique que o condenara pela tentativa de tomar o poder de assalto em novembro do ano anterior. No prefácio do livro, escrevera que \"neste mundo, as grandes causas devem seu desenvolvimento não aos grandes escritores, mas aos grandes oradores\". Todavia, estando temporariamente impedido de fazer discursos, decidira-se a aproveitar seus dias de cativeiro para sistematizar sua doutrina, no interesse de \"sua defesa regular e contínua\".\n\nNão poderia imaginar naquela época quanto sucesso em breve alcançaria. Como também jamis conceberia que, vinte e dois anos depois, recolheria aos mais altos seguidores de seu livro seriam condenados pelo Tribunal Militar Internacional de Nuremberg a cumprir pena exatamene na mesma prisão da então bióblica Landsberg sobre-o-Lech. Viagem ao passado ocidental\n\nDesde que os revolucionários franceses, a partir de 1789, passaram a proclamar aos quatro ventos sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a ideia de \"direitos humanos\", malgrado contramarchas, só ganhou respeitabilidade, a ponto de hoje desfrutar de quase unanimidade mundial - o que, com certeza, nada nos informa quanto ao modo como, em cada canto deste vasto mundo, essa teoria faz seu salto para a prática, ou mesmo o que significa, na prática, esse salto. Talvez não tenha havido opressor nos últimos duzentos anos, ao menos no Ocidente, que não tivesse, em algum momento, lançado mão da linguagem dos direitos humanos. Hitler foi apenas mais um a adotar esse procedimento.\n\nOs jovens tenentes franceses que, durante a guerra de libertação nacional da Argélia, torturavam guerrilheiros presos para extrair-lhes informações eram os mesmos que pouco antes haviam cantado as estrofes \"contra a tirania\" de A Marselhesa. Os Estados Unidos da América, país que ensina seus estudantes a repetirem de memória passagens liberatórias de sua Declaração da Independência, não hesitaram em apoiar ou instalar ditaduras ao redor do mundo durante a maior parte da segunda metade do século XX - envolveram-se diretamente em golpes de Estado. Sua Escola das Américas, centro de formação de militares estrangeiros (antes localizado no canal do Panamá, atualmente em Fort Benning, Geórgia), utilizou até 1992, nas aulas para os oficiais latino-americanos, manuais que ensinavam técnicas de tortura em interrogatórios. tórios de prisioneiros políticos - e os direitos humanos já tinham sido transformados havia décadas em estandarte da política externa desse país. O Ato Institucional n° 5, pelo qual, em 13 de dezembro de 1968, os militares brasileiros radicalizaram sua ditadura, foi o documento jurídico mais infame da história do Brasil - contudo, em suas primeiras linhas, reportava-se, cínicamente, a uma \"autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana\". O Estado de Israel, que faz questão de apresentar-se como paladino dos direitos humanos - até em honra às vítimas do Holocausto -, ingressou no século XXI com este sombrio sinal distintivo: talvez seja o único país do mundo onde práticas de tortura para extrair informações de prisioneiros políticos contam com o aval do Poder Judiciário, desde que sejam torturas \"médicas\".\n\nPor que tem sido tão fácil falar em direitos humanos, por equa essa expressão tornou-se assim maléavel, tão complacente e moldável, a ponto de a vermos pronunciada, sem rubor, pelos mais inesperados personagens? O que significa ela exatamente? Ou melhor, ela ainda conserva um significado? O seu uso indiferente por canais e anos estaria exatamente a indicar que teria perdido o sentido que teve algum dia?\n\nNão há outro modo de compreender essa investigação, com certa segurança, senão viajando ao momento onde essa história teve início, e a partir de lá, ir acompanhando suas evoluções, com vigilante senso crítico - para não se apaixonar pelos fatos por seus protagonistas nem romper com eles antes de a narrativa completar-se.\n\nPor onde, então, começar uma história dos direitos humanos? Isso depende do ponto de vista que se adote. Se for uma história filosófica, teremos que recorrer a algumas de suas remotas fontes na Antiguidade clássica, no mínimo até ao estoicismo grego, lá pelos séculos II ou III antes de Cristo, e a Cícero e Diáogenes, na antiga Roma. Se for uma história religiosa, é possível encetar a caminhada, pelo menos no Ocidente, a partir do Sermão da Montanha - há até indicações nesse rumo no Antigo Testamento. Se for uma história política, já podemos iniciar com algumas das noções embutidas na Magna Charta Libertatum, que o rei inglês João Sem Terra foi obrigado a acatar em 1215. Ou podemos optar por uma história social - melhor dizendo, por um método de estudo que procure compreender como, e por quais motivos reais ou dissimulados, as diversas forças sociais interferiram, em cada momento, no sentido de impulsionar, retardar ou, de algum modo, modificar o desenvolvimento e a efetividade prática dos \"direitos humanos\" na sociedade. Este último modo de abordagem pode tornar-se muito rico e interessante, pois, ao conduzir às conexões entre as leis e as condições histórico-sociais concretas que induziram ao seu surgimento, termina também por integrar, ao menos, aquelas referências mais indispensáveis - econômicas, políticas, filosóficas, religiosas etc. - que estiveram na gênese dessas condições. Ademais, proporciona a vantage adicional de já situar o ponto de partida de nossa investigação no século XVIII ou, no máximo, em certos antecedentes da Idade Média - o que convém à concisão e permite transitar de modo menos árduo da noção moderna para a noção contemporânea dos direitos humanos. Essa escolha metodológica nos remete, desde logo, a uma questão à primeira vista intrigante. Trata-se do seguinte: se o espírito geral e as aspirações que compõem o conjunto de noções do que hoje chamamos de direitos humanos são muito antigos, por que durante milênios produziram efeitos sociais tão escassos, só exercendo influência fragmentária ou transitória na vida real e cotidiana da maioria dos humanos? Por que essas noções só começaram a vingar precisamente no final do século XVIII, precisamente em alguns países do hemisfério ocidental, na forma e conteúdo específicos que assumiram? O senso comum tem uma explicação a mão: antes daquela época, a humanidade \"não estava preparada\" para aquelas belas ideias. Como assim? Parece claro que os oprimidos, os explorados e humilhados de todos os tempos sempre estiveram \"preparados\" para obter liberdade, igualdade, respeito - quase nunca deixaram de aspirar a isso ou de lutar por isso. Uma outra parte da humanidade - os que foram, são ou pensam que poderão vir a ser beneficiários da exploração, opressão ou intolerância que exercem - é que parece estar sempre \"despreparada\" para aceitar que aquela maioria tenha acesso a tudo isso. Outra resposta, do mesmo senso comum, poderiam ser: faltavam aqueles \"grandes homens\", com \"grandes ideias\", que só no século XVIII surgiram para \"inspirar\" ou \"conduzir\" as pessoas. Esse argumento também não resiste à verificação. Em quase todas as épocas, em quase todos os países, quando se reuniram as condições históricas adequadas, surgiram os filósofos, os líderes, os antecessores, os profetas e os disidentes necessários a seu tempo, além de umas outras tantas \"grandes mentes\" que sonharam, planejaram ou tentaram colocar em prática utopias impossíveis ou historicizantes prematuras. Não resta dúvida de que as ideias inovadoras, usualmente sintetizadas de modo mais apurado pelos