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Psicologia ·

Psicanálise

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SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS VOLUME 14 HISTÓRIA DE UMA NEUROSE INFANTIL O HOMEM DOS LOBOS ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER E OUTROS TEXTOS 19171920 TRADUÇÃO PAULO CÉSAR DE SOUZA SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS VOLUME 14 HISTÓRIA DE UMA NEUROSE INFANTIL O HOMEM DOS LOBOS ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER E OUTROS TEXTOS 19171920 TRADUÇÃO PAULO CÉSAR DE SOUZA SUMÁRIO ESTA EDIÇÃO HISTÓRIA DE UMA NEUROSE INFANTIL O HOMEM DOS LOBOS 1918 1914 I OBSERVAÇÕES PRELIMINARES II PANORAMA DO AMBIENTE E DA HISTÓRIA CLÍNICA III A SEDUÇÃO E SUAS CONSEQUÊNCIAS IMEDIATAS IV O SONHO E A CENA PRIMÁRIA V ALGUMAS DISCUSSÕES VI A NEUROSE OBSESSIVA VII EROTISMO ANAL E COMPLEXO DA CASTRAÇÃO VIII COMPLEMENTOS AO PERÍODO PRIMORDIAL SOLUÇÃO IX RESUMOS E PROBLEMAS ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER 1920 UMA DIFICULDADE DA PSICANÁLISE 1917 SOBRE TRANSFORMAÇÕES DOS INSTINTOS EM PARTICULAR NO EROTISMO ANAL 1917 UMA RECORDAÇÃO DE INFÂNCIA EM POESIA E VERDADE 1917 CAMINHOS DA TERAPIA PSICANALÍTICA 1919 BATEM NUMA CRIANÇA CONTRIBUIÇÃO AO CONHECIMENTO DA GÊNESE DAS PERVERSÕES SEXUAIS 1919 O INQUIETANTE 1919 DEVESE ENSINAR A PSICANÁLISE NAS UNIVERSIDADES 1919 INTRODUÇÃO A PSICANÁLISE DAS NEUROSES DE GUERRA 1919 PREFÁCIOS E TEXTOS BREVES 1919 PREFÁCIO A PROBLEMAS DE PSICOLOGIA DA RELIGIÃO DE THEODOR REIK E T A HOFFMANN E A FUNÇÃO DA CONSCIÊNCIA A EDITORA PSICANALÍTICA INTERNACIONAL E OS PRÊMIOS PARA TRABALHOS PSICANALÍTICOS JAMES J PUTNAM VICTOR TAUSK 4311 ESTA EDIÇÃO Esta edição das obras completas de Sigmund Freud pretende ser a primeira em língua portuguesa traduzida do original alemão e organizada na sequência cronológica em que apareceram originalmente os textos A afirmação de que são obras completas pede um esclarecimento Não se incluem os textos de neurologia isto é não psicanalíticos anteriores à criação da psicanálise Isso porque o próprio autor decidiu deixálos de fora quando se fez a primeira edição completa de suas obras nas décadas de 1920 e 30 No ent anto vários textos prépsicanalíticos já psicológicos serão incluídos nos dois primeiros volumes A coleção inteira será composta de vinte volumes sendo dezenove de textos e um de índices e bibliografia A edição alemã que serviu de base para esta foi Gesammelte Werke Obras completas publicada em Londres entre 1940 e 1952 Agora pertence ao catá logo da editora Fischer de Frankfurt que também recolheu num grosso volume intitulado Nachtragsband Volume suplementar inúmeros textos menores ou inéditos que haviam sido omitidos na edição londrina Apenas al guns deles foram traduzidos para a presente edição pois muitos são de caráter apenas circunstancial A ordem cronológica adotada pode sofrer pequenas alterações no interior de um volume Os textos considerados mais importantes do período coberto pelo volume cujos títulos aparecem na página de rosto vêm em primeiro lugar Em uma ou outra ocasião são reunidos aqueles que tratam de um só tema mas não foram publicados sucessivamente é o caso dos artigos sobre a técnica psicanalítica por exemplo Por fim os textos mais curtos são agrupa dos no final do volume Embora constituam a mais ampla reunião de textos de Freud os dezessete volumes dos Gesammelte Werke foram sofrivelmente editados talvez devido à penúria dos anos de guerra e de pósguerra na Europa Embora ordenados cronologicamente não indicam sequer o ano da publicação de cada trabalho O texto em si é geralmente confiável mas sempre que possível foi cotejado com a Studienausgabe Edição de estudos publicada pela Fischer em 196975 da qual consultamos uma edição revista lançada posteriormente Tratase de onze volumes organizados por temas como a primeira coleção de obras de Freud que não incluem vários textos secundários ou de conteúdo repetido mas incorporam traduzidas para o alemão as apresentações e notas que o inglês James Strachey redigiu para a Standard edition Londres Hogarth Press 195566 O objetivo da presente edição é oferecer os textos com o máximo de fidel idade ao original sem interpretações ou interferências de comentaristas e teóricos posteriores da psicanálise que devem ser buscadas na imensa biblio grafia sobre o tema Também informações sobre a gênese e a importância de cada obra podem ser encontradas na literatura secundária principalmente na biografia em três volumes de Ernest Jones lançada no Brasil pela Imago do Rio de Janeiro e no mencionado aparato editorial da Standard inglesa A ordem de publicação destas Obras completas não é a mesma daquela das primeiras edições alemãs pois isso implicaria deixar várias coisas relevantes para muito depois Decidiuse começar por um período intermediário e de pleno desenvolvimento das concepções de Freud em torno de 1915 e daí pro ceder para trás e para adiante Após o título de cada texto há apenas a referência bibliográfica da primeira publicação não a das edições subsequentes ou em outras línguas que interes sam tão somente a alguns especialistas Entre parênteses se acha o ano da pub licação original havendo transcorrido mais de um ano entre a redação e a pub licação a data da redação aparece entre colchetes As indicações bibliográficas do autor foram normalmente conservadas tais como ele as redigiu isto é não foram substituídas por edições mais recentes das obras citadas Mas sempre é 6311 fornecido o ano da publicação que no caso de remissões do autor a seus próprios textos permite que o leitor os localize sem maior dificuldade tanto nesta como em outras edições das obras de Freud As notas do tradutor geralmente informam sobre os termos e passagens de versão problemática para que o leitor tenha uma ideia mais precisa de seu sig nificado e para justificar em alguma medida as soluções aqui adotadas Nessas notas são reproduzidos os equivalentes achados em algumas versões es trangeiras dos textos em línguas aparentadas ao português e ao alemão Não utilizamos as duas versões das obras completas já aparecidas em português das editoras Delta e Imago pois não foram traduzidas do alemão e sim do francês e do espanhol a primeira e do inglês a segunda No tocante aos termos considerados técnicos não existe a pretensão de im por as escolhas aqui feitas como se fossem absolutas Elas apenas pareceram as menos insatisfatórias para o tradutor e os leitores e psicanalistas que empregam termos diferentes conforme suas diferentes abordagens e per cepções da psicanálise devem sentirse à vontade para conservar suas opções Ao ler essas traduções apenas precisarão fazer o pequeno esforço de substituir mentalmente instinto por pulsão instintual por pulsional repressão por recalque ou Eu por ego exemplificando No entanto essas palavras são poucas em número bem menor do que geralmente se acredita Esta edição não pretende ser definitiva pelo simples motivo de que um clássico dessa natureza nunca recebe uma tradução definitiva E tendo sido planejada por alguém que se aproximou de Freud pela via da linguagem e da literatura destinase não apenas aos estudiosos e profissionais da psicanálise mas a todos aqueles que em vários continentes leem e se exprimem nessa que um grande poeta português chamou de nossa clara língua majestosa e um eminente tradutor e poeta brasileiro qualificou de portocálido brasilírico idiomaterno 7311 pcs O tradutor agradece o generoso auxílio de Paula Lavigne que durante um ano lhe permitiu se dedicar exclusivamente à tradução deste volume 8311 HISTÓRIA DE UMA NEUROSE INFANTIL O HOMEM DOS LOBOS 1918 1914 TÍTULO ORIGINAL AUS DER GESCHICHTE EINER INFANTILER NEUROSE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM SAMMLUNG KLEINER SCHRIFTEN ZUR NEUROSENLEHRE REUNIÃO DE PEQUENOS TEXTOS SOBRE A TEORIA DA NEUROSE V 4 PP 578717 PUBLICADO EM 1918 MAS REDIGIDO QUASE INTEIRAMENTE NO FINAL DE 1914 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XII PP 27157 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE VIII PP 125232 I OBSERVAÇÕES PRELIMINARES O caso de doença que relatarei aqui1 mais uma vez de modo apenas fragmentário distinguese por um bom número de particularidades que de vem ser destacadas antes da exposição Tratase de um jovem que adoeceu seriamente aos dezoito anos após uma infecção gonorreica e que anos depois ao iniciar o tratamento psicanalítico estava totalmente incapacitado para a vida e dependente dos outros Os dez anos de sua juventude anteriores ao ad oecimento ele os tinha passado de maneira relativamente normal e havia con cluído seus estudos secundários sem maior transtorno Mas a sua infância havia sido dominada por um grave distúrbio neurótico que teve início logo antes de seu quarto aniversário como uma histeria de angústia zoofobia transformouse em neurose obsessiva de conteúdo religioso e prolongouse com suas ramificações até os dez anos de idade Apenas essa neurose infantil será objeto de minha comunicação Apesar da solicitação direta do paciente resolvi não publicar a história completa de sua enfermidade seu tratamento e restabelecimento porque essa tarefa me pareceu tecnicamente irrealizável e socialmente inadmissível Com isso descartase também a possibilidade de mostrar o nexo entre a sua enfermidade infantil e aquela posterior e definitiva Desta posso apenas dizer que levou o doente a passar longo tempo em sanatórios alemães e que na época foi classificada pela mais competente autoridade como um caso de loucura maníacodepressiva Tal diagnóstico era certamente adequado ao pai do paciente cuja vida rica em atividades e interesses fora perturbada por repetidos ataques de severa de pressão Mas no filho mesmo não pude notar em vários anos de observação nenhuma alteração de ânimo que exorbitasse em intensidade e nas condições do seu aparecimento a situação psíquica manifesta Então formei a ideia de que esse caso como tantos outros que na psiquiatria clínica tiveram diagnósti cos variados e sucessivos deve ser tomado como sequela de uma neurose ob sessiva que transcorreu de modo espontâneo e se curou imperfeitamente Portanto minha descrição será de uma neurose infantil que não foi analis ada enquanto existiu mas apenas quinze anos depois de seu fim Tal situação tem suas vantagens e também seus inconvenientes se a comparamos à outra A análise que realizamos na própria criança neurótica parecerá em princípio mais confiável mas não pode ser muito rica de conteúdo é preciso emprestar à cri ança muitas palavras e pensamentos e mesmo assim as camadas mais pro fundas serão talvez impenetráveis para a consciência Na pessoa adulta e in telectualmente madura a análise da doença infantil por meio da recordação es tá livre dessas restrições mas devese considerar a distorção e retificação a que o próprio passado de alguém está sujeito ao ser olhado retrospectivamente Talvez o primeiro caso dê resultados mais convincentes enquanto o segundo é bem mais instrutivo De todo modo é lícito afirmar que as análises de neuroses infantis podem reivindicar um interesse teórico bastante elevado Para o entendimento correto das neuroses dos adultos elas prestam contribuição comparável à dos sonhos infantis em relação aos dos adultos Não que sejam mais fáceis de penetrar ou mais pobres em elementos digamos a dificuldade de empatia com a vida psíquica da criança faz delas um trabalho particularmente difícil para o médico Mas nelas sobressai inconfundivelmente o essencial da neurose pois muitas das sedimentações posteriores estão ausentes Sabese que a resistência contra os resultados da psicanálise assumiu nova forma na presente fase da luta em torno da psicanálise Os críticos antes se contentavam em negar a realidade dos fatos defendidos pela análise e para isso a melhor técnica era evitar comprová los Esse procedimento parece estar se esgotando aos poucos agora seguem outro caminho o de reconhecer os fatos mas afastar por meio de reinter pretações as conclusões a que levam de maneira que novamente se defendem das novidades chocantes O estudo das neuroses infantis demonstra a total 11311 insuficiência dessas tentativas rasas ou violentas de reinterpretação Mostra o papel predominante que têm na configuração da neurose as forças instintuais libidinais tão ansiosamente negadas e permite perceber a ausência de aspir ações a objetivos culturais remotos de que a criança nada sabe ainda e que portanto nada podem significar para ela Outra característica que realça o interesse da análise aqui narrada tem re lação com a gravidade da doença e a duração do seu tratamento As análises que em pouco tempo obtêm resultado favorável são valiosas para a autoestima do terapeuta e reveladoras da importância médica da psicanálise para o avanço do conhecimento científico são geralmente sem valor Não se aprende nada de novo com elas Pois tiveram sucesso tão rápido porque já se sabia o que era necessário para a sua resolução Algo de novo se ganha apenas com as análises que oferecem dificuldades especiais cuja superação requer muito tempo So mente nesses casos conseguimos descer às camadas mais fundas e primitivas do desenvolvimento psíquico lá encontrando as soluções para os problemas das configurações posteriores Dizemos então que a rigor somente a análise que vai tão longe merece este nome Naturalmente um único caso não ensina tudo que se gostaria de saber Mais precisamente ele poderia ensinar tudo se es tivéssemos em condição de tudo apreender e não fôssemos obrigados pela im perícia de nossa percepção a nos satisfazer com pouco No tocante a dificuldades férteis desse tipo o caso que vou descrever nada deixa a desejar Os primeiros anos do tratamento quase não produziram mudança Entretanto uma feliz constelação fez com que as circunstâncias ex ternas tornassem possível a continuação da tentativa terapêutica Posso bem imaginar que em condições menos favoráveis o tratamento teria sido abandon ado após algum tempo Quanto à perspectiva do médico posso apenas dizer que em casos assim ele deve se comportar de maneira tão atemporal quanto o inconsciente mesmo se quiser aprender e alcançar algo E isso ele consegue afinal se puder renunciar a qualquer ambição terapêutica de vista curta Em poucos casos podese esperar a medida de paciência docilidade compreensão 12311 e confiança que se requer do paciente e de seus familiares Mas o analista tem o direito de achar que os resultados que obteve num certo caso em trabalho tão demorado ajudarão a encurtar substancialmente a duração de um tratamento posterior de uma enfermidade igualmente severa e desse modo a superar progressivamente a atemporalidade do inconsciente após ter se sujeitado a ela uma primeira vez O paciente de que me ocupo permaneceu muito tempo entrincheirado inatacável detrás de uma postura de dócil indiferença Ele escutava entendia e não permitia que nada se aproximasse Sua impecável inteligência estava como que desconectada das forças instintivas que dominavam seu comporta mento nas poucas relações que lhe restavam na vida Foi preciso uma longa educação para movêlo a participar autonomamente do trabalho analítico e quando em decorrência desse esforço vieram as primeiras liberações ele ime diatamente cessou o trabalho a fim de evitar outras mudanças e manterse co modamente na situação criada Seu receio de uma existência autônoma era tão grande que sobrepujava todos os tormentos da doença Para vencêlo houve apenas um caminho Tive de esperar até que a ligação à minha pessoa se tor nasse forte o bastante para contrabalançálo e então joguei este fator contra o outro Determinei não sem me orientar por bons indícios de oportunidade que o tratamento tinha que findar num determinado prazo não importando até onde tivesse chegado prazo este que eu estava decidido a cumprir O paciente acreditou afinal em minha seriedade Sob a pressão inexorável desse limite de tempo sua resistência sua fixação na enfermidade cedeu e num período re lativamente curto a análise forneceu todo o material que possibilitou o levan tamento das inibições e a eliminação dos sintomas Desse último período do trabalho em que a resistência desapareceu momentaneamente e o paciente deu a impressão de uma lucidez em geral obtida somente na hipnose é que vêm to dos os esclarecimentos que me permitiram a compreensão da sua neurose infantil 13311 Assim o desenrolar desse tratamento ilustrou a tese há muito consagrada na técnica psicanalítica de que a extensão do caminho que a análise tem de percorrer com o paciente e a abundância do material a ser dominado neste caminho não contam em face da resistência que se encontra no decorrer do trabalho e chegam a contar somente na medida em que são necessariamente proporcionais à resistência É o mesmo que ocorre quando agora um exército inimigo requer semanas e meses para cruzar um trecho de terra que normal mente em períodos de paz é atravessado em algumas horas de trem e que nosso exército havia percorrido pouco antes em alguns dias Uma terceira particularidade da análise aqui descrita dificultou ainda mais a decisão de apresentála No conjunto os seus resultados coincidiram satisfat oriamente com o nosso saber anterior ou ajustaramse bem a ele Mas alguns detalhes são tão incríveis e notáveis até para mim mesmo que hesitei em pedir que outras pessoas acreditassem neles Convidei o paciente a exercer a crítica mais severa de suas lembranças mas ele nada achou de inverossímil no que dizia e o manteve Que os leitores estejam seguros ao menos de que apenas relato o que me apareceu como vivência independente não influenciada por minha expectativa Portanto só me resta lembrar a sábia afirmação de que ex istem mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia Quem fosse capaz de excluir ainda mais radicalmente as suas convicções prévias po deria certamente descobrir mais coisas desse tipo II PANORAMA DO AMBIENTE E DA HISTÓRIA CLÍNICA Não posso escrever a história de meu paciente em termos puramente históricos nem puramente pragmáticos Não posso oferecer uma história do tratamento nem da doença vejome obrigado a combinar os dois modos de apresentação Sabese que ainda não se achou um meio de transmitir no relato da análise de 14311 alguma forma que seja a convicção que dela resulta Protocolos exaustivos do que acontece nas sessões de análise não serviriam para nada certamente e a técnica do tratamento já exclui sua confecção Logo análises como esta não são publicadas para despertar convicção nos que até agora exibiram descaso ou descrença Esperamos apenas transmitir algo de novo aos pesquisadores que já adquiriram convicções por experiência própria com os doentes Começarei por retratar o mundo da criança comunicando o que da história de sua infância pude saber naturalmente que durante vários anos não se tornou mais claro nem mais completo Pais que se haviam casado jovens levando ainda um casamento feliz sobre o qual as doenças não demoram a lançar sombras afecções abdominais da mãe e primeiros ataques de depressão do pai que o fizeram se ausentar de casa Apenas muito mais tarde é natural o paciente veio a compreender a doença do pai o estado doentio da mãe ele o conhece já nos primeiros anos da infân cia Por causa disso ela se ocupava relativamente pouco dos filhos Um dia certamente antes dos quatro anos a mãe o conduzindo pela mão ele a ouve lamentandose ao médico que ela acompanha na saída de casa e grava suas palavras para depois aplicálas a si mesmo Ele não é o único filho antes dele há uma irmã mais velha um ano ou dois vivaz dotada precocemente travessa que desempenharia papel importante em sua vida Uma babá cuida dele pelo que se lembra uma mulher inculta do povo de incansável ternura por ele Para ela é o substituto do próprio filho que morreu cedo A família vive numa propriedade rural mas passa o verão em outra A cidade grande não está longe das duas Há um corte na sua infância quando os pais se desfazem dos bens e mudam para a cidade Com frequência parentes próximos passam temporadas numa ou noutra propriedade irmãos do pai irmãs da mãe com seus filhos avós maternos No verão os pais costumam viajar por algumas semanas Numa lembrança encobridora ele se vê ao lado da babá olhando a carruagem que leva o pai a mãe e a irmã e depois voltando calmamente para casa Nessa época ele devia ser bem pequeno2 No verão 15311 seguinte a irmã permaneceu em casa e foi contratada uma governanta inglesa que passou a cuidar das crianças Em anos posteriores contaramlhe muitas coisas de sua infância3 Boa parte delas ele já sabia mas naturalmente sem nexos temporais ou de conteúdo Um desses relatos transmitidos que por ocasião de sua doença posterior foi re petido para ele inúmeras vezes nos faz conhecer o problema que procur aremos resolver Ele teria sido primeiro uma criança afável dócil e mesmo tranquila a ponto que costumavam dizer que ele deveria ser a menina e a irmã mais velha o menino Mas certa vez ao voltarem os pais das férias de verão encontraramno mudado Tornarase descontente irritadiço e violento ofendiase por qualquer motivo e então se encolerizava e gritava como um selvagem de modo que os pais manifestaram a preocupação quando esse es tado persistiu de que não seria possível enviálo para a escola mais tarde Era o verão em que estava com eles a governanta inglesa que se revelou uma pess oa amalucada intratável e além disso entregue à bebida Logo a mãe se in clinava a estabelecer relação entre a mudança de caráter do menino e a influên cia dessa inglesa e supunha que ela o havia tratado de maneira a irritálo A avó perspicaz que passara o verão com os garotos era de opinião que a irrit abilidade do menino havia sido provocada pelas disputas entre a inglesa e a babá A inglesa havia muitas vezes chamado a babá de bruxa obrigandoa a deixar o quarto o pequeno havia abertamente tomado o partido de sua querida Nânia e mostrado à governanta o seu ódio Seja como for a inglesa foi des pedida logo após o retorno dos pais sem que isso mudasse a natureza in suportável da criança A recordação desse tempo ruim permaneceu com o paciente Ele acredita que fez a primeira das suas cenas num Natal quando não foi presenteado duas vezes como lhe era devido pois o dia de Natal era também o de seu aniver sário Com suas exigências e suscetibilidades ele não poupava sequer a Nânia querida e talvez a atormentasse ainda mais que aos outros Mas essa fase da mudança de caráter está indissoluvelmente ligada em sua lembrança a muitas 16311 outras manifestações peculiares e doentias que ele não consegue ordenar cro nologicamente Tudo o que agora será relatado que não pode ter ocorrido no mesmo tempo e que tem muita contradição de conteúdo ele joga num só per íodo aquele ainda na primeira propriedade como diz Quando estava com cinco anos acredita eles haviam deixado essa propriedade Ele também conta que sofreu de um medo que sua irmã soube aproveitar para atormentálo Havia um certo livro com imagens uma das quais representava um lobo em pé andando a passos largos Ao ver essa imagem ele começava a gritar como um louco temendo que o lobo viesse comêlo Mas a irmã arranjava as coisas de modo que ele inevitavelmente encontrasse essa imagem e deleitavase com o seu pavor Entretanto ele também temia outros bichos grandes e pequenos Certa vez correu atrás de uma borboleta bela e grande com asas amarelas lis tradas que terminavam em ponta a fim de apanhála Era talvez uma cauda de andorinha De repente foi tomado de espantoso medo do bicho e grit ando interrompeu a perseguição Também diante de besouros e lagartas ele sentia angústia e repugnância Mas podia lembrarse de que na mesma época havia atormentado besouros e seccionado lagartas também cavalos eram in quietantes para ele Quando batiam num cavalo ele gritava e por isso teve que abandonar o circo uma vez Em outras ocasiões ele mesmo gostava de bater em cavalos Sua lembrança não deixava claro se esses tipos opostos de com portamento ante os animais tiveram de fato vigência simultânea ou se haviam sucedido um ao outro e neste caso em que sequência e quando Tampouco po dia ele dizer se a época ruim fora substituída por uma fase de doença ou se prosseguira ao longo desta De todo modo suas comunicações apresentadas em seguida justificaram a suposição de que no período da infância ele adoeceu de uma neurose obsessiva bem reconhecível Contou que por um bom tempo havia sido muito devoto Antes de dormir tinha que rezar longamente e per fazer uma série interminável de sinais da cruz À noite costumava subindo numa cadeira dar a volta pelas imagens de santos nas paredes do quarto bei jando cada uma delas devotamente Pouco combinava com este piedoso 17311 cerimonial ou talvez muito na verdade o fato de ele se lembrar de pensamentos sacrílegos que lhe vinham à mente como uma inspiração do Di abo Ele tinha que pensar Deusporco ou Deusfezes Certa vez numa viagem a uma estação de águas alemã viuse atormentado pela compulsão de pensar na Santíssima Trindade ao deparar com três montinhos de cocô de cavalo ou algum outro excremento na estrada Por esse tempo ele cumpria também uma peculiar cerimônia ao ver gente que lhe causava pena como mendigos aleijados e velhos Ele tinha que expirar ruidosamente para não se tornar como eles e em determinadas condições também inspirar com força Inclineime naturalmente a supor que esses nítidos sintomas de uma neurose obsessiva eram de um período e grau de evolução um tanto posterior aos sinais de angústia e ações cruéis com os animais Os anos mais maduros do paciente foram marcados por uma relação bem insatisfatória com o pai que após repetidos ataques de depressão não pôde ocultar os lados doentios de seu caráter Na primeira infância esta relação havia sido bem terna como testemunhava a lembrança do filho O pai lhe queria bem e gostava de brincar com ele Desde pequeno sentia orgulho do pai e falava sempre que gostaria de ser um homem como ele A Nânia lhe havia dito que a irmã pertencia à mãe e ele ao pai o que muito lhe agradara No final da infância passou a haver estranhamento entre ele e o pai Este preferia claramente a irmã e o filho se ofendeu bastante com isso Depois o medo do pai se tornou dominante Por volta dos oito anos desapareceram todas as manifestações que o pa ciente atribui à fase da vida que teve início com o seu mau comportamento Não desapareceram de repente retornaram algumas vezes terminando por ceder acredita o doente à influência dos professores e educadores que to maram o lugar das mulheres que dele cuidavam Estes são num ligeiro esboço os enigmas cuja solução é tarefa da análise De onde procede a repentina mudança de caráter do menino o que significavam suas fobias e suas perver sidades como adquiriu sua obsessiva piedade e como se relacionam todos 18311 esses fenômenos Lembrarei mais uma vez que o nosso labor terapêutico dizia respeito a uma doença neurótica então recente posterior e que elucidações sobre tais problemas mais antigos puderam ocorrer quando o curso da análise afastouse do presente por um tempo obrigandonos a um desvio pela pré história infantil III A SEDUÇÃO E SUAS CONSEQUÊNCIAS IMEDIATAS É natural que a suspeita caísse primeiramente sobre a governanta inglesa pois o garoto havia mudado durante a sua estadia Duas lembranças encobridoras relativas a ela em si incompreensíveis foram conservadas por ele Certa vez em que andava na frente ela havia dito aos que a seguiam Olhem só o meu rabinho Em outra ocasião num passeio de carro seu chapéu fora levado pelo vento para grande alegria dos irmãos Isso apontava para o complexo lig ado à castração e permitia talvez a construção segundo a qual uma ameaça que ela dirigira ao garoto havia contribuído bastante para a gênese de sua con duta anormal Não há nenhum perigo em comunicar tais construções ao anal isando elas nunca prejudicam a análise quando são erradas e é claro que as formulamos apenas quando há perspectiva de por meio delas alcançar uma aproximação à realidade Como efeito dessa colocação surgiram sonhos cuja interpretação não foi muito bemsucedida mas que pareciam lidar sempre com o mesmo conteúdo Até onde se podia compreendêlos diziam respeito a ações agressivas do garoto contra a irmã ou a governanta e a enérgicas repreensões e castigos por isso Como se depois do banho ele tivesse querido des nudar a irmã arrancarlhe a vestimenta ou véu e coisas assim Mas não foi possível obter da interpretação um conteúdo certo e quando se teve a im pressão de que nesses sonhos o mesmo material era trabalhado de maneira sempre diversa o entendimento dessas supostas reminiscências estava 19311 assegurado Só podiam ser fantasias que em algum momento provavelmente na puberdade o sonhador tinha criado acerca de sua infância e que agora emergiam de novo em forma dificilmente reconhecível Sua compreensão ocorreu de uma só vez quando repentinamente o pa ciente se lembrou de que ainda muito pequeno na primeira propriedade sua irmã o havia induzido a práticas sexuais De início veio a lembrança de que no sanitário que usavam com frequência ela fez a proposta Vamos mostrar um ao outro o bumbum e fez seguir o ato às palavras Depois se apresentou a parte essencial da sedução com todos os detalhes de tempo e lugar Foi na primavera num tempo em que o pai estava ausente as crianças brincavam no chão num aposento enquanto a mãe trabalhava no cômodo vizinho A irmã tinha segurado o seu membro e brincado com ele dizendo coisas incom preensíveis sobre a Nânia à maneira de explicação que a Nânia fazia o mesmo com todo o mundo com o jardineiro por exemplo que o colocava de cabeça para baixo e agarrava seus genitais Isso permitiu a compreensão das fantasias que havíamos conjecturado Elas deviam apagar a lembrança de um acontecimento que mais tarde parecia ofender o amorpróprio masculino do paciente e alcançavam esse fim ao sub stituir a verdade histórica pelo oposto desejável Conforme essas fantasias ele não tinha desempenhado o papel passivo diante da irmã mas pelo contrário fora agressivo quisera ver a irmã despida fora rechaçado e castigado e por isso tivera o acesso de fúria de que a tradição doméstica tanto falava Era tam bém adequado envolver nessa ficção a governanta a quem a mãe e a avó at ribuíram a maior parte da culpa por seus ataques de raiva Tais fantasias cor respondiam precisamente então às lendas com que uma nação que se tornou grande e orgulhosa procura ocultar a pequenez e a desdita de seu começo Na realidade a governanta só podia ter uma participação remota na sedução e nas suas consequências As cenas com a irmã tiveram lugar na primavera do mesmo ano em que nos meses de pleno verão a inglesa veio substituir os pais ausentes Foi de outra maneira que se originou a hostilidade do menino frente 20311 à governanta Ao insultar e xingar de bruxa a babá ela seguia os passos da irmã que havia contado primeiro aquelas coisas monstruosas da babá e assim o deixava exteriorizar contra ela a aversão que em consequência da sedução como ainda veremos ele tinha desenvolvido para com a irmã Mas a sedução pela irmã não era certamente uma fantasia Sua credibilidade foi aumentada por uma comunicação jamais esquecida da época madura pos terior Um primo mais de dez anos mais velho tinha lhe dito numa conversa sobre a irmã que se lembrava muito bem da criaturinha petulante e sensual que ela havia sido Quando era uma menina de quatro ou cinco anos de idade ela se sentou uma vez em seu colo e lhe abriu a calça para pegar em seu membro Neste ponto gostaria de interromper a história da infância de meu paciente para falar dessa irmã de seu desenvolvimento seu destino e a influência que teve sobre o irmão Ela era dois anos mais velha e sempre permanecera à frente dele Indomável como um garoto na infância logo principiou um bril hante desenvolvimento intelectual destacouse pela inteligência aguda e realista privilegiando as ciências naturais em seus estudos mas produzindo também poemas que o pai estimava bastante No tocante ao espírito era bem superior a seus numerosos pretendentes iniciais e costumava gracejar deles Mas aos vinte e poucos anos começou a ficar de humor deprimido queixando se de não ser muito bela e se afastando de todo convívio Ao fazer uma viagem em companhia de uma senhora amiga retornou contando coisas totalmente in verossímeis que teria sido maltratada por essa acompanhante mas permane ceu obviamente ligada à suposta atormentadora Numa segunda viagem pou co depois envenenouse e veio a morrer longe de casa É provável que sua afecção correspondesse ao início de uma dementia praecox Ela era prova da considerável herança neuropática da família mas não certamente a única Um tio irmão do pai morreu após uma longa e singular existência com indícios que levam a pensar numa grave neurose obsessiva um bom número de par entes colaterais foi acometido e ainda é de perturbações nervosas mais leves 21311 Para nosso paciente a irmã era na infância sem considerar no momento a sedução uma incômoda rival na estima dos pais cuja superioridade demonstrada impiedosamente ele sentia como algo opressivo Invejava partic ularmente o respeito que o pai testemunhava pelas capacidades de seu espírito e as realizações intelectuais enquanto ele intelectualmente inibido desde a neurose obsessiva tinha de se contentar com um prestígio menor A partir dos catorze anos de idade sua relação com a irmã começou a melhorar uma dis posição similar de espírito e a oposição comum aos pais os aproximaram tanto que eles se tratavam como excelentes amigos Na tempestuosa excitação sexual de sua puberdade ele ousou buscar uma maior intimidade física junto a ela Ao ser rejeitado de maneira hábil e decidida voltouse para uma menina cam ponesa que servia na casa e que tinha o mesmo nome de sua irmã Assim fazendo deu um passo decisivo para a sua escolha heterossexual de objeto pois todas as garotas por que mais tarde se apaixonou frequentemente com os mais claros indícios de obsessão eram também criadas cuja educação e inteligência tinham que estar bem abaixo das suas Se todos esses objetos amorosos eram substitutos para a irmã que lhe foi negada não é de rejeitar que uma tendência ao rebaixamento da irmã à abolição de sua superioridade intelectual que um dia o oprimira tanto tenha sido decisiva na sua escolha de objeto Foi a motivos dessa espécie que se originam da vontade de poder do in stinto de afirmação do indivíduo que Alfred Adler subordinou a conduta sexual do ser humano como tudo o mais Sem negar a vigência de tais motivos de poder e privilégio nunca me convenci de que eles pudessem ter o papel dominante e exclusivo que lhes é atribuído Se não tivesse conduzido a análise de meu paciente até o fim eu me veria obrigado pela observação desse caso a corrigir no sentido de Adler a minha opinião preconcebida Inesperadamente a conclusão dessa análise trouxe um novo material no qual novamente se mostrou que esses motivos de poder em nosso caso a tendência ao rebaixa mento haviam determinado a escolha de objeto apenas no sentido de uma contribuição e racionalização ao passo que a determinação verdadeira mais 22311 profunda me permitia conservar as convicções anteriores4 Quando chegou a notícia da morte da irmã disse o paciente ele mal sentiu dor Obrigouse a dar mostras de luto e pôde se alegrar com toda a frieza por ter se tornado o único herdeiro da fortuna Havia vários anos sofria da sua doença quando sucedeu aquilo Confesso que por um bom período essa informação me fez inseguro no diagnóstico do caso Era de supor não há dúvida que a dor referente à perda do mais querido membro de sua família teria a expressão inibida pelo ciúme ainda existente em relação a ela e pela intervenção de seu amor incestuoso que se tornara inconsciente mas eu não conseguia renunciar a um substituto para a irrupção de dor que não acontecera E ele foi encontrado finalmente numa outra expressão de sentimento que para meu paciente continuava in compreensível Poucos meses após a morte da irmã ele fez uma viagem à re gião em que ela havia morrido e lá procurou o túmulo de um grande escritor que era então seu ideal chorando lágrimas ardentes sobre esse túmulo Foi uma reação estranha também para ele pois sabia que mais de duas gerações haviam passado desde a morte do venerado escritor Só a compreendeu ao se lembrar que seu pai costumava comparar os poemas da irmã falecida aos do grande poeta Ele me havia dado uma outra indicação do modo correto de apreender essa homenagem aparentemente dirigida ao poeta graças a um erro no seu relato que pude destacar então Antes ele tinha informado repetida mente que a irmã se suicidara com um tiro e teve de fazer a correção de que ela de fato havia se envenenado Mas o poeta foi morto num duelo com pistolas Agora volto à história do irmão que devo expor de maneira pragmática por um certo trecho Verificouse que a idade do menino à época em que a irmã principiou as manobras sedutoras era de três anos e três meses Isso ocorreu como já disse na primavera do mesmo ano em que os pais ao regres sar no outono o encontraram profundamente mudado É natural estabelecer um nexo entre essa mudança e o despertar de sua atividade sexual havido nesse meiotempo 23311 Como reagiu o garoto às tentações da irmã mais velha A resposta é com a recusa mas ela era relativa à pessoa não à coisa A irmã não lhe era agradável como objeto sexual provavelmente porque a relação entre os dois já era de terminada de modo hostil pela competição no amor dos pais Ele a evitava e as solicitações dela também cessaram Mas ele buscou conquistar no lugar dela outra pessoa mais querida e informações da própria irmã que invocara a Nânia como modelo orientaram sua escolha para esta Ele começou então a brincar com seu membro diante da Nânia o que como em muitos outros casos em que a criança não esconde o onanismo deve ser apreendido como tentativa de sedução A Nânia o decepcionou fez uma cara séria e explicou que aquilo não era bom As crianças que faziam aquilo ficavam com uma ferida no lugar O efeito dessa comunicação que equivaleu a uma ameaça deve ser acom panhado em várias direções A dependência do menino em face da Nânia foi relaxada Ele pode ter se aborrecido com ela mais tarde quando se estabele ceram seus ataques de fúria verificouse que estava realmente zangado com ela Mas era característico dele defender primeiramente com obstinação diante de algo novo toda posição libidinal que devia abandonar Quando a gov ernanta surgiu em cena e xingou e expulsou do aposento a Nânia tentando destruir sua autoridade ele exagerou seu amor à insultada e assumiu um com portamento brusco e desafiador frente à governanta agressora No entanto ele começou a buscar em segredo um outro objeto sexual A sedução lhe havia dado a meta sexual passiva de ser tocado nos genitais veremos de quem ele pretendia obter isso e que caminhos o levaram a essa escolha Corresponde inteiramente às nossas expectativas saber que com suas primeiras excitações genitais teve início a sua pesquisa sexual e que logo ele deparou com o problema da castração Nessa época ele pôde observar duas ga rotas urinando sua irmã e uma amiga dela Com sua perspicácia tal visão já poderia leválo a compreender os fatos mas ele se comportou como sabemos que fazem outros meninos Rejeitou a ideia de que via confirmada a ferida com 24311 que a Nânia o ameaçara e deu a si mesmo a explicação de que aquilo era o bumbum da frente das meninas O tema da castração não estava eliminado com essa decisão em tudo o que ouvia encontrava novas alusões a ele Certa vez quando as crianças receberam bastões de açúcar coloridos a governanta que era dada a fantasias cruas afirmou que eram pedaços de serpentes corta das A partir disso ele se lembrou que o pai tinha encontrado uma serpente durante um passeio e a tinha feito em pedaços com sua bengala E leramlhe a história em Renart a raposa do lobo que quis pescar peixes no inverno e usou a cauda como isca o que fez a cauda se partir no gelo Ele aprendeu os diver sos nomes com que se designam os cavalos conforme seu sexo esteja ou não intacto Portanto o pensamento da castração o ocupava mas ele ainda não lhe dava crédito nem sentia medo Outros problemas sexuais lhe surgiram dos contos que naquele tempo conheceu No Chapeuzinho Vermelho e nos Sete cabritinhos as crianças eram tiradas da barriga do lobo Então o lobo era um ser feminino ou os homens podiam também ter crianças no corpo Naquele momento isso ainda não estava decidido Fora isso na época dessa in vestigação ele ainda não sentia medo do lobo Uma comunicação do paciente nos abrirá o caminho para compreender a mudança de caráter que se evidenciou durante a ausência dos pais em conexão mais remota com a sedução Ele conta que deixou de se masturbar logo após a recusa e a ameaça da Nânia Sua vida sexual que começava regida pela zona gen ital sucumbiu então a uma inibição exterior e por influência desta foi remetida de volta a uma fase anterior de organização prégenital Em consequência da supressão do onanismo a vida sexual do garoto assumiu caráter sádicoanal Ele se tornou irritadiço atormentador satisfazendose dessa maneira junto às pessoas e aos animais Seu principal objeto era a querida Nânia que ele sabia mortificar até lhe arrancar lágrimas Assim ele se vingava nela pela rejeição so frida e ao mesmo tempo satisfazia seu desejo sexual na forma correspondente à fase regressiva Ele começou a praticar crueldades com pequenos animais a pegar moscas para lhes arrancar as asas a esmagar besouros com os pés em 25311 sua fantasia ele gostava também de bater em animais grandes como cavalos Portanto eram sempre ocupações ativas sádicas de seus impulsos anais trataremos depois num outro contexto É de grande valor que na lembrança do paciente emergissem também fantasias contemporâneas de outro tipo em que meninos eram castigados e es pancados recebiam pancadas especialmente no pênis e é fácil adivinhar para quem esses objetos anônimos serviam de bode expiatório a partir de outras fantasias que pintavam o herdeiro do trono sendo trancado num quarto es treito e espancado O herdeiro do trono era evidentemente ele mesmo o sad ismo havia se voltado na fantasia para a própria pessoa e se convertera em masoquismo O detalhe de que o órgão sexual mesmo recebe o castigo permite a conclusão de que nessa transformação já participava uma consciência de culpa referente ao onanismo Na análise não restou dúvida de que essas tendências passivas tinham aparecido ao mesmo tempo ou logo depois das sádicoativas5 Isso condiz com a insolitamente clara intensa e duradoura ambivalência do doente que aqui se mostrou pela primeira vez no desenvolvimento uniforme dos pares de instintos parciais opostos Esse comportamento permaneceu característico dele também depois assim como um outro traço o de que nenhuma das posições instituídas da libido foi totalmente cancelada por outra posterior Ela continuava a existir ao lado de todas as demais o que permitiu a ele uma oscilação constante in compatível com a aquisição de um caráter fixo As tendências masoquistas do menino nos conduzem a outro ponto que até agora evitei mencionar porque só pode ser confirmado pela análise da fase seguinte de sua evolução Já mencionei que após a rejeição pela Nânia ele de sprendeu dela sua expectativa libidinosa e passou a ver uma outra pessoa como objeto sexual Essa pessoa era o pai que estava ausente A essa escolha ele foi certamente levado por uma conjunção de fatores inclusive fortuitos como a recordação do despedaçamento da cobra mas sobretudo ele renovou assim a sua primeira e mais primordial eleição de objeto que em conformidade com o 26311 narcisismo do bebê tinha se realizado pela via da identificação Já ouvimos que o pai fora o seu modelo admirado que ao lhe perguntarem o que preten dia ser ele costumava responder um homem como meu pai Esse objeto de identificação da sua corrente ativa tornouse então o objeto sexual de uma cor rente passiva na fase sádicoanal A impressão é de que a sedução pela irmã o teria empurrado para o papel passivo e lhe dado uma meta sexual passiva Sob a influência contínua dessa experiência ele descreveu o caminho desde a irmã através da Nânia até o pai da postura passiva diante da mulher à mesma per ante o homem e nisso estabeleceu contato com sua fase primeira e espontânea de desenvolvimento O pai era agora novamente seu objeto a identificação era substituída pela escolha de objeto correspondendo ao desenvolvimento mais elevado e a transformação da postura ativa em passiva era resultado e indício da sedução que entretanto ocorrera Naturalmente não teria sido fácil manter uma postura ativa diante do pai poderoso na fase sádica Quando o pai voltou no final do verão ou no outono seus acessos de fúria e cenas raivosas tiveram nova função Diante da Nânia serviam a finalidades sádicoativas diante do pai seguiam propósitos masoquistas Exibindo sua ruindade ele queria receber castigo e pancadas do pai obtendo assim dele a desejada satisfação masoquista Seus gritos eram verdadeiras tentativas de sedução E de acordo com a mo tivação do masoquismo nesses castigos ele encontrava também a satisfação de seu sentimento de culpa Ele conservou a lembrança de como numa dessas cenas malcriadas aumentou os gritos quando o pai se dirigiu a ele O pai não o surrou porém e buscou acalmálo brincando com as almofadas de sua cam inha como se fossem bolas Não sei com que frequência os pais e educadores ante a inexplicável ru indade da criança teriam ocasião de lembrarse dessa típica relação A criança que se comporta de maneira intratável está fazendo uma confissão e pro vocando um castigo Ela procura com a punição ao mesmo tempo apaziguar sua consciência de culpa e satisfazer sua tendência sexual masoquista 27311 Um maior esclarecimento de nosso caso devemos agora à recordação sur gida com grande nitidez de que os sintomas de angústia só se teriam juntado aos sinais de mudança de caráter a partir de determinado evento Antes não haveria angústia e imediatamente após o evento ela teria se manifestado de forma atormentadora O momento dessa transformação pode ser indicado com certeza foi logo antes de ele completar quatro anos Em virtude desse ponto de referência o período da infância de que propusemos nos ocupar se divide em duas fases a primeira de ruindade e perversidade da sedução aos três anos e três meses até o aniversário de quatro anos e a segunda subsequente e mais demorada em que predominam os sinais da neurose Mas o evento que permite essa divisão não foi um trauma exterior e sim um sonho do qual ele despertou com angústia IV O SONHO E A CENA PRIMÁRIA Já publiquei este sonho em outro lugar6 devido a seu teor de contos de fadas e primeiramente repetirei o que foi ali comunicado Sonhei que é noite e que estou deitado em minha cama ela ficava com os pés para a janela diante da janela havia uma fileira de velhas nogueiras Sei que era inverno quando sonhei e era noite De repente a janela se abre sozinha e vejo com grande pavor que na grande nogueira diante da janela estão sentados alguns lobos brancos Eram seis ou sete Os lobos eram in teiramente brancos e pareciam antes raposas ou cães pastores pois tinham caudas grandes como as raposas e suas orelhas estavam em pé como as dos cães quando prestam atenção a algo Com muito medo evidentemente de ser comido pelos lobos gritei e acordei Minha babá correu até minha cama para ver o que tinha acontecido Demorou algum tempo até eu me convencer que tinha sido apenas um sonho tão nítida e tão natural me 28311 pareceu a imagem da janela se abrindo e os lobos sentados na árvore Final mente me tranquilizei me senti como tendo escapado de um perigo e tornei a dormir A única ação do sonho era a abertura da janela pois os lobos estavam sentados bem quietos nos galhos da árvore sem qualquer movimento à direita e à esquerda do tronco e olhavam para mim Era como se dirigissem para mim toda a sua atenção Acho que este foi meu primeiro sonho angus tiado Na época eu tinha três quatro no máximo cinco anos de idade Desde então e até os onze ou doze anos sempre tive medo de ver algo ter rível nos sonhos Ele dá então um desenho da árvore com os lobos que confirma sua descrição figura abaixo A análise do sonho traz o seguinte material à luz Ele sempre ligou esse sonho à recordação de que nesses anos da infância tinha um medo enorme da figura de um lobo num livro de fadas A irmã mais velha e sempre superior costumava zombar dele mostrandolhe justamente essa imagem por qualquer pretexto ao que ele começava a gritar de pavor Nessa figura o lobo estava erguido com uma pata à frente as garras à mostra e as orelhas alertas Ele acha que essa imagem serviu de ilustração à história do Chapeuzinho Vermelho Por que os lobos são brancos Isto o faz pensar nas ovelhas das quais se mantinham grandes rebanhos nos arredores da casa Ocasionalmente o pai o levava para ver esses rebanhos e toda vez ele ficava orgulhoso e contente 29311 Mais tarde provavelmente pouco antes da época do sonho segundo in formações obtidas uma peste irrompeu nesses rebanhos O pai mandou buscar um discípulo de Pasteur que vacinou as ovelhas mas elas morreram em número ainda maior depois da vacinação Como podem os lobos estar na árvore Acerca disso lhe ocorre uma história que o avô tinha contado Não consegue se lembrar se antes ou depois do sonho mas o conteúdo indica que foi antes A história é a seguinte Um al faiate está sentado trabalhando quando se abre a janela e um lobo pula para dentro da sala O alfaiate bate nele com sua vara de medida não corrigese o paciente agarrao pela cauda e a arranca de modo que o lobo foge apavor ado Algum tempo depois o alfaiate vai à floresta e vê de repente um bando de lobos que se aproxima então busca refúgio numa árvore Primeiro os lobos ficam sem ação mas aquele mutilado que está entre eles e quer se vingar do alfaiate faz a sugestão de que um suba no outro até que o último alcance o al faiate Ele mesmo é velho e robusto quer ser a base da pirâmide Os lobos fazem assim mas o alfaiate reconhece o visitante castigado e de repente grita como antes Pega o grisalho pelo rabo O lobo sem rabo se apavora com a lembrança e corre e os outros caem no chão Nesse conto se acha a árvore em que os lobos estão sentados no sonho Mas ele contém igualmente uma inequívoca referência ao complexo da castração O lobo velho foi privado de sua cauda pelo alfaiate Nos lobos do sonho as caudas de raposa são talvez compensações para essa ausência de cauda Por que são seis ou sete lobos Essa pergunta parecia não ter resposta até que lancei a dúvida de que sua imagem angustiante viesse de fato do Cha peuzinho Vermelho Essa história dá ocasião para duas ilustrações apenas o encontro do Chapeuzinho Vermelho com o lobo na floresta e a cena em que o lobo fica deitado na cama com a touca da vovó Tinha de haver um outro con to por trás da recordação da imagem Então ele achou que só podia ser a história do Lobo e os sete cabritinhos Nela se encontra o número sete mas também o seis pois o lobo come somente seis cabritos o sétimo se esconde na 30311 caixa do relógio Também o branco surge nessa história pois o lobo faz o padeiro embranquecer sua pata depois que os cabritinhos o haviam recon hecido pela pata cinzenta na sua primeira visita Aliás os dois contos têm muito em comum Em ambos há a devoração o corte da barriga a retirada dos que foram devorados e sua substituição por pedras e por fim a morte do lobo mau No conto dos cabritinhos há também a árvore Depois da refeição o lobo se deita sob uma árvore e dorme roncando Ainda me ocuparei deste sonho em outra parte devido a uma circunstância particular e então poderei interpretálo e apreciálo mais demoradamente É o primeiro sonho angustiado que ele recordou da infância e seu conteúdo to mado com outros sonhos que seguiram e com certos acontecimentos da infân cia do sonhador desperta um interesse bem particular Aqui nos limitamos à relação entre o sonho e duas histórias que têm muito em comum o Chapeuz inho Vermelho e O lobo e os sete cabritinhos A impressão que esses con tos produziram no menino se exteriorizou numa autêntica zoofobia que se dis tingue de casos semelhantes apenas pelo fato de que o bicho angustiante não era um objeto de fácil percepção pelos sentidos como um cavalo ou um ca chorro mas conhecido somente de narrativas e livros ilustrados Num outro momento discutirei que explicação têm essas zoofobias e que significação lhes atribuir De antemão observo apenas que essa explicação con diz bastante com o caráter principal exibido pela neurose do sonhador em épo cas posteriores de sua vida O medo do pai fora o mais forte motivo de seu ad oecimento e a postura ambivalente para com todo substituto do pai dominou sua vida e sua conduta durante o tratamento Se o lobo era apenas o primeiro substituto do pai para meu paciente é de se perguntar se as histórias do lobo que devora os cabritinhos e do Chapeuzinho Vermelho têm outro conteúdo secreto que não o medo infantil do pai7 Além disso o pai de meu paciente tinha a peculiaridade do insulto afetuoso que tantas pessoas demonstram no convívio com os filhos e a ameaça brincalhona 31311 que diz vou te comer pode ter sido expressa várias vezes no período inicial em que o pai que depois se tornou severo costumava acariciar e brincar com o filhinho Uma de minhas pacientes contou que os seus dois filhos nunca puderam gostar do avô porque ele costumava apavorálos com a brincadeira afetuosa de que iria cortar suas barrigas Deixemos de lado agora o que neste ensaio antecipa o aproveitamento do sonho e voltemonos para a sua interpretação imediata Quero observar que essa interpretação foi uma tarefa cuja solução se estendeu por vários anos O paciente relatou o sonho bem cedo e logo partilhou minha convicção de que por trás dele se escondiam as causas de sua neurose infantil No decorrer do tratamento retornamos ao sonho com frequência mas apenas nos últimos meses da terapia foi possível compreendêlo inteiramente e isso graças ao tra balho espontâneo do paciente Ele sempre enfatizou que dois fatores do sonho tinham deixado a maior impressão sobre ele primeiramente a completa calma e imobilidade dos lobos e em segundo lugar a atenção tensa com que todos eles o olhavam Também lhe parecia digna de nota a persistente sensação de realidade no final do sonho Vejamos esse último ponto Sabemos da experiência ao interpretar sonhos que esta sensação de realidade tem uma significação determinada Ela nos garante que algo no material latente do sonho reivindica realidade na lem brança isto é que o sonho se refere a um acontecimento que realmente ocor reu não foi apenas fantasiado Naturalmente pode se tratar apenas da realidade de algo desconhecido a convicção por exemplo de que seu avô realmente contara a história do lobo e do alfaiate ou de que realmente lhe haviam lido as histórias do Chapeuzinho Vermelho e dos sete cabritinhos não poderia jamais ser substituída por essa sensação de realidade que perdurou após o sonho O sonho parecia apontar para um acontecimento cuja realidade é acentuada em oposição à irrealidade dos contos 32311 Se por trás do conteúdo do sonho era de supor uma cena desconhecida isto é já esquecida à época do sonho ela devia ter ocorrido muito cedo Pois o sonhador diz Quando tive o sonho eu tinha três quatro no máximo cinco anos de idade Ao que podemos acrescentar e foi lembrado pelo sonho de algo que só podia pertencer a uma época ainda anterior O que tinha de levar ao conteúdo dessa cena eram os fatores que o son hador havia destacado no conteúdo manifesto do sonho o olhar atento e a imobilidade Naturalmente é de esperar que esse material reproduza o material desconhecido da cena com alguma deformação talvez deformado até em seu oposto Da matéria bruta fornecida pela primeira análise do paciente podiamse tir ar várias conclusões que deviam ser encaixadas no contexto procurado Por trás da menção à criação de ovelhas deviam se buscar as provas de sua pesquisa sexual cujos interesses ele podia satisfazer em suas visitas com o pai mas tam bém alusões ao medo da morte haviam de estar presentes pois a maior parte das ovelhas tinha morrido na peste O que era mais premente no sonho os lobos na árvore conduzia diretamente à narrativa do avô na qual não podia haver algo mais atraente e estimulador do sonho do que a ligação com o tema da castração Da primeira análise incompleta do sonho também concluímos que o lobo era um substituto do pai de modo que esse primeiro sonho angustiante teria trazido à luz aquele medo do pai que a partir de então dominaria sua vida No entanto essa conclusão mesma não era obrigatória Mas se reunirmos como resultado da análise provisória o que decorre do material fornecido pelo son hador disporemos talvez dos seguintes fragmentos para reconstrução Um acontecimento real de uma época bem antiga olhar imobilidade problemas sexuais castração o pai algo terrível Um dia o paciente se pôs a continuar a interpretação do sonho Segundo ele a parte do sonho que diz de repente a janela se abre sozinha não é in teiramente esclarecida pela relação com a janela junto à qual está sentado o 33311 alfaiate e através da qual o lobo entra na sala Deve ter a seguinte signi ficação de repente os olhos se abrem Ou seja eu estou dormindo e acordo de repente e nisso vejo algo a árvore com os lobos Nisso não havia o que objetar mas podia ser mais aproveitado Ele tinha acordado e havia algo para ver A observação atenta que no sonho é atribuída aos lobos deve ser deslo cada para ele Num ponto decisivo tivera lugar uma inversão que além disso é indicada por outra inversão no conteúdo manifesto do sonho Pois havia uma inversão no fato de os lobos sentarem na árvore enquanto na história do avô se achavam embaixo e não conseguiam trepar na árvore E se o outro elemento enfatizado pelo sonhador fosse também deformado por uma inversão ou transposição Então em vez de imobilidade os lobos es tão sentados quietos olham para ele mas não se mexem seria o mais forte movimento Ou seja ele acordou de repente e viu uma cena de forte movi mentação à sua frente a qual olhou tenso e com atenção Num caso a deform ação consistiria na troca de sujeito e objeto atividade e passividade ser olhado em vez de olhar no outro caso numa transformação no contrário repouso em vez de movimento Mais um progresso na compreensão do sonho foi trazido em outra ocasião por este pensamento que emergiu de repente a árvore é a árvoredenatal Naquele instante ele soube que tivera o sonho pouco antes do Natal na ex pectativa deste Como o dia de Natal também era o seu dia de nascimento pôdese estabelecer com segurança a época do sonho e da transformação dele decorrente Foi logo antes de seu quarto aniversário Ele tinha adormecido na tensa expectativa do dia em que iria ganhar dois presentes Sabemos que em tais circunstâncias a criança antecipa com facilidade a realização dos desejos no sonho Então já era Natal no sonho o conteúdo do sonho mostrava a dis tribuição dos brindes da árvore pendiam os presentes a ele destinados Mas em vez de presentes havia lobos e o sonho findava com ele sentindo medo de ser devorado pelo lobo provavelmente pelo pai e buscando refúgio com a babá O conhecimento de sua evolução sexual antes do sonho nos torna 34311 possível preencher a lacuna do sonho e esclarecer a mudança da satisfação em medo Entre os desejos formadores do sonho deve ter sido estimulado o mais forte o da satisfação sexual que ele ansiava então obter do pai A força deste desejo conseguiu refrescar a pista mnemônica há muito esquecida de uma cena que lhe podia mostrar como era a satisfação sexual com o pai e o res ultado foi pavor horror ante a realização desse desejo repressão do impulso que se apresentara por esse desejo e por isso fuga do pai em direção à babá não tão perigosa A importância dessa data de Natal fora conservada na pretendida lem brança de que o primeiro acesso de fúria se deu porque ele havia ficado insatis feito com os presentes de Natal A recordação juntava o que era correto e falso ela não podia estar certa sem alguma alteração pois conforme repetidas afirmações dos pais a sua má conduta já chamava a atenção após o retorno deles no outono não somente no Natal mas o essencial da relação entre falta de amor satisfeito fúria e época de Natal fora preservado na recordação Mas que imagem a ação noturna desse anseio sexual podia ter conjurado capaz de provocar horror tão intenso da satisfação desejada Segundo o mater ial da análise essa imagem tinha de preencher uma condição tinha de ser ad equada para fundamentar a convicção da existência da castração O medo da castração tornouse então o motor da transformação do afeto Neste ponto vejome obrigado a abandonar o apoio fornecido pelo curso da análise Receio que também neste ponto a crença do leitor me abandone O que naquela noite foi ativado a partir do caos de pistas mnemônicas in conscientes foi a imagem de um coito entre os pais em circunstâncias não muito comuns e bastante propícias à observação Aos poucos foi possível obter respostas satisfatórias para todas as questões ligadas a essa cena pois no decor rer da terapia o sonho se repetiu em inúmeras variantes e reedições às quais a análise forneceu os esclarecimentos que se desejava Primeiro se revelou a id ade da criança no momento da observação cerca de um ano e meio8 Nesse tempo ele sofria de malária e um ataque da doença se repetia diariamente em 35311 determinada hora9 A partir dos dez anos ele ficou periodicamente sujeito a de pressões que começavam à tarde e atingiam o apogeu às cinco horas Esse sin toma ainda existia no tempo da análise A depressão recorrente substituiu os acessos de febre ou abatimento de antes as cinco horas eram o momento do auge da febre ou da observação do coito se é que os dois não coincidem10 Devido justamente a essa enfermidade ele se achava provavelmente no quarto dos pais Essa doença corroborada também pela tradição familiar torna plausível transferir o evento para o verão e assim supor para ele nascido no dia de Natal a idade de n um ano e meio Ele então dormia em sua caminha no quarto dos pais e acordou à tarde digamos que devido à febre montante às cinco horas talvez a hora depois marcada pela depressão Combina com nossa suposição de um dia quente de verão em que os pais se tenham retirado semi despidos para uma sesta vespertina Quando ele acordou foi testemunha de um coito a tergo por trás repetido três vezes 11 pôde ver os genitais da mãe e o membro do pai e compreendeu tanto o fato como a sua significação12 Por fim ele perturbou a relação dos pais de uma maneira que será discutida depois No fundo não é nada extraordinário nada que dê a impressão de um produto extravagante da fantasia o fato de um casal jovem casado apenas há alguns anos ter uma relação amorosa depois da sesta vespertina num dia quente de verão nisso esquecendo do menino de um ano e meio que dorme em seu pequeno leito Pareceme isto sim algo inteiramente banal cotidiano e mesmo a posição do coito que inferimos não pode mudar esse julgamento Sobretudo por não resultar da evidência que o coito se tenha realizado por trás a cada vez Uma só vez já bastaria para dar ao espectador a oportunidade para observações que numa outra posição dos amantes seriam dificultadas ou impe didas Logo o conteúdo desta cena não pode ser argumento contra a sua cred ibilidade A objeção da improbabilidade será dirigida a três outros pontos a que uma criança na tenra idade de um ano e meio seja capaz de acolher as per cepções de um evento tão complicado e conserválas tão fielmente em seu in consciente a que seja possível que uma elaboração das impressões assim 36311 recebidas chegue posteriormente à compreensão aos quatro anos de idade por fim a que se consiga mediante algum procedimento tornar consciente de forma coesa e convincente os detalhes de uma tal cena vivenciada e com preendida em tais circunstâncias13 Mais adiante examinarei cuidadosamente essas e outras objeções asseguro ao leitor que não me coloco menos criticamente que ele ante a hipótese de uma tal observação por parte da criança e peço a ele que se junte a mim na decisão de crer provisoriamente na realidade desta cena De imediato vamos prosseguir com o estudo das relações desta cena primária com o sonho os sintomas e a biografia do paciente Vamos acompanhar separadamente os efei tos resultantes do conteúdo essencial da cena e de uma de suas impressões visuais Refirome às posições que ele viu os pais adotarem a posição erguida do homem e a curvada como os animais da mulher Já ouvimos antes que no seu período de angústia a irmã tinha o costume de apavorálo com a imagem do livro de fadas em que um lobo era mostrado erguido com um pé à frente as garras à mostra e as orelhas alertas Durante o tratamento ele não se poupou o trabalho de esquadrinhar sebos de livros até encontrar o volume de histórias de sua infância e reconheceu sua imagem apavorante numa ilustração da história do Lobo e os sete cabritinhos Achou que a posição do lobo nessa ilustração podia lhe ter lembrado a do pai na cena primária construída Essa imagem veio a ser de todo modo o ponto de partida de outros efeitos angusti antes Aos sete ou oito anos quando recebeu a comunicação de que no dia seguinte chegaria um novo professor para ele sonhou à noite com esse pro fessor em forma de leão que rugindo se aproximava de sua cama na mesma posição do lobo daquela imagem e acordou novamente angustiado A fobia do lobo já estava superada na época ele teve então a liberdade de escolher um novo animal angustiante e nesse sonho tardio reconheceu o professor como substituto do pai No período posterior de sua infância cada professor 37311 desempenhou o mesmo papel de pai e foi dotado da mesma influência paterna para o bem e para o mal O destino o presenteou com uma singular ocasião de reviver sua fobia de lobos no tempo do ginásio e de tornar a relação que lhe servia de base o ponto de partida de graves inibições O professor que dava aulas de latim à sua turma se chamava Wolf lobo Desde o início ele se sentiu intimidado por esse pro fessor uma vez sofreu grave censura dele por um erro tolo cometido numa tradução do latim e não se livrou mais de um medo paralisante dele que logo se transferiu para outros professores Mas o ensejo que o levou a tropeçar na tradução também não era insignificante Ele tinha que verter a palavra filius e a traduziu pelo francês fils em vez da palavra correspondente na língua materna De fato o lobo continuava sendo o pai14 O primeiro sintoma passageiro15 que o paciente produziu na terapia re montava também à fobia de lobos e ao conto dos sete cabritinhos No aposento em que se realizaram as primeiras sessões havia um grande relógio de caixa na parede oposta a ele que ficava deitado sobre um divã de costas para mim Notei que de quando em quando ele virava o rosto para mim olhavame com expressão amável como que me tranquilizando e em seguida voltava o olhar para o relógio Na época achei que era um sinal de sua ânsia em terminar a ses são Muito tempo depois o paciente me lembrou desse jogo de gestos e me deu a explicação para ele ao me lembrar que o mais jovem dos sete cabritinhos achava esconderijo na caixa do relógio enquanto os seis irmãos eram devora dos pelo lobo Ele queria então dizer Seja bom comigo Devo sentir medo de você Você quer me devorar Devo me esconder de você na caixa do relógio como o cabritinho mais novo O lobo do qual ele sentia medo era sem dúvida o pai mas o medo do lobo estava ligado à condição da postura erguida Sua recordação afirmava com grande certeza que a imagem de um lobo andando com as quatro patas ou deit ado na cama como no Chapeuzinho Vermelho nunca o apavorara A posição que ele vira a mulher assumir conforme a nossa construção da cena 38311 primária não se revestia de significação menor mas esta permanecia limitada à esfera sexual O mais singular fenômeno de sua vida amorosa após a maturid ade eram acessos de paixão sensual compulsiva que surgiam e novamente de sapareciam em misteriosa sequência desencadeavam nele uma enorme ener gia mesmo em épocas de inibição e se subtraíam totalmente ao seu controle Tenho que adiar a plena apreciação desses amores compulsivos devido a al guns nexos especialmente valiosos mas posso dizer que estavam ligados a uma condição determinada que se ocultava à sua consciência e que se deu a con hecer apenas na terapia A mulher tinha que adotar a posição que atribuímos à mãe na cena primária Desde a puberdade ele sentia como a maior atração da mulher os traseiros grandes e salientes um coito que não fosse por trás dificil mente lhe dava prazer A ponderação crítica tem o direito de objetar que essa preferência sexual pelas partes traseiras do corpo é característica geral das pessoas que tendem à neurose obsessiva e não autoriza que a derivemos de uma impressão especial da infância Pertence ao quadro da disposição erótico anal e é um dos traços arcaicos que distinguem tal constituição A copulação por trás more ferarum à maneira dos animais pode mesmo ser vista como a forma filogeneticamente mais antiga Também voltaremos a esse ponto numa discussão posterior quando tivermos apresentado o material rest ante sobre a sua condição inconsciente para o amor Continuemos a nossa discussão dos vínculos entre o sonho e a cena primária Conforme o que pudemos esperar até agora o sonho deveria mostrar ao menino que se alegrava com a realização de seus desejos no Natal a imagem da satisfação sexual com o pai tal como tinha visto naquela cena primária como modelo da satisfação que ele próprio ansiava do pai Em vez dessa imagem porém surgiu o material da história que o avô tinha narrado pouco antes a árvore os lobos a ausência de cauda na forma da supercom pensação nas caudas espessas dos supostos lobos Aqui nos falta um nexo uma ponte associativa que conduza do teor da história primordial àquele da história dos lobos Essa ligação é dada novamente pela postura e apenas por 39311 ela O lobo sem cauda convida aos demais na narrativa do avô a trepar sobre ele A recordação da imagem da cena primária foi despertada por esse detalhe por esse caminho o material da cena primária pôde ser representado pelo da história dos lobos e ao mesmo tempo os dois pais puderam ser substituídos da maneira desejada por vários lobos Outra mudança teve o conteúdo do sonho na medida em que o material da história dos lobos adequouse ao conteúdo do conto dos sete cabritinhos dele retirando o número sete16 A transformação do material cena primária história dos lobos conto dos sete cabritinhos reflete a progressão do pensamento durante a formação do sonho anseio de satisfação sexual com o pai inteligência da condição a ela relacionada a castração medo do pai Penso que agora o sonho angusti ado do menino de quatro anos foi inteiramente esclarecido17 Depois do que foi tratado até aqui posso abordar brevemente o efeito pato gênico da cena primária e a mudança que o seu despertar produziu no desen volvimento sexual do paciente Vamos acompanhar apenas o efeito a que o sonho deu expressão Mais adiante haveremos de notar que da cena primária não partiu uma única corrente sexual mas toda uma série delas verdadeira mente uma fragmentação da libido Depois levaremos em conta que a ativação desta cena evito propositadamente a palavra recordação tem o mesmo efeito que teria se ela fosse uma vivência recente A cena atua posteriormente e nesse ínterim no intervalo entre um ano e meio e quatro nada perdeu do seu frescor Talvez ainda encontremos motivo para pensar que ela produziu de terminados efeitos já na época de sua percepção isto é a partir de um ano e meio Quando o paciente se aprofundou na situação da cena primária ele trouxe à luz as seguintes percepções de si mesmo antes ele havia suposto que o aconte cimento observado fosse um ato violento mas a expressão prazerosa no rosto de sua mãe não combinava com isso ele teve de reconhecer que havia satis fação18 O dado essencialmente novo que a observação do enlace dos pais lhe trazia era a convicção da realidade da castração cuja possibilidade já havia 40311 ocupado seus pensamentos A visão das duas garotas urinando a ameaça da Nânia a interpretação dada aos bastões de açúcar pela governanta a lem brança de que o pai havia feito em pedaços uma cobra Pois naquele momento ele via com os próprios olhos a ferida de que havia falado a Nânia e com preendia que a sua existência era uma condição para o enlace com o pai Não podia mais confundila com o bumbum como tinha feito ao observar as meni nas pequenas19 O desfecho do sonho foi a angústia da qual ele se tranquilizou apenas ao ter a Nânia a seu lado Portanto ele se refugiou do pai junto a ela A angústia era uma recusa do desejo de satisfação sexual com o pai aspiração que lhe havia inspirado o sonho Sua expressão ser comido pelo lobo era apenas uma transformação regressiva como veremos do desejo de ser possuído sexualmente pelo pai isto é ser satisfeito do mesmo modo que a mãe Sua úl tima meta sexual a atitude passiva para com o pai havia sucumbido a uma repressão e a angústia ante o pai havia tomado seu lugar na forma da fobia de lobos E a força motriz dessa repressão Conforme o conjunto dos fatos só poder ia ser a libido genital narcísica que por preocupação com seu membro viril rebelouse contra uma satisfação que parecia impor a renúncia a este membro Do narcisismo ameaçado ele extraiu a virilidade com que se defendeu da atit ude passiva frente ao pai Agora vemos que neste ponto da exposição teremos que mudar nossa ter minologia Durante o sonho ele atingiu uma nova fase de sua organização sexual Até então os opostos sexuais haviam sido para ele ativo e passivo Desde a sedução a sua meta sexual era passiva ser tocado nos genitais e transformouse então pela regressão ao estágio anterior da organização sádicoanal em masoquista ser castigado golpeado Eralhe indiferente se es ta meta seria alcançada com o homem ou com a mulher Sem considerar a diferença de sexo ele havia passado da Nânia para o pai havia solicitado da Nânia que tocasse no seu membro e tinha desejado provocar o castigo do pai 41311 Os genitais não eram levados em conta era na fantasia de ser golpeado no pênis que ainda se expressava o nexo oculto pela regressão Agora a ativação da cena primária no sonho o levava de volta à organização genital Ele descobriu a vagina e a significação biológica de masculino e feminino Com preendeu que ativo era igual a masculino e passivo a feminino Sua meta sexu al passiva tinha agora que se transformar em feminina e adotar a expressão ser possuído pelo pai em vez de ser golpeado por ele no órgão genital ou nas nádegas Essa meta feminina sucumbia agora à repressão e era obrigada a ser substituída pela angústia diante do lobo Devemos interromper aqui a discussão de seu desenvolvimento sexual até que dos estágios posteriores de sua história seja vertida uma nova luz sobre esses estágios anteriores Quanto à fobia de lobos acrescentemos ainda que ambos o pai e a mãe tornaramse lobos Pois a mãe tinha o papel do lobo cas trado que deixava os demais treparem sobre ele e o pai o do que trepava Mas o seu medo se referia apenas como o ouvimos assegurar ao lobo erguido isto é ao pai Também deve nos chamar a atenção que a angústia em que findava o sonho tinha um modelo na narrativa do avô Nesta o lobo castrado que deixa os demais treparem sobre ele é acometido de angústia ao ser lembrado que não tem cauda Parece então que durante o processo onírico ele se identificou com a mãe castrada e agora se rebelava contra isso Em tradução que acredit amos adequada Se você quer ser satisfeito pelo pai você deve aceitar a cas tração como a mãe mas isso eu não quero Um claro protesto de sua mas culinidade Tenhamos claro de resto que o desenvolvimento sexual do caso que acompanhamos possui a grande desvantagem para a nossa pesquisa de não ter ocorrido sem perturbações Primeiro foi influenciado decisivamente pela sedução e depois desviado pela cena da observação do coito que atuou a posteriori como uma segunda sedução 42311 V ALGUMAS DISCUSSÕES Baleia e urso polar dizem não podem fazer guerra entre si porque cada um limitado a seu elemento não chegam a se encontrar É igualmente impossível para mim discutir com os que trabalhando no campo da psicologia ou da neurologia não reconhecem os pressupostos da psicanálise e consideram artifi ciais os seus resultados Mas nos últimos anos desenvolveuse uma outra oposição de pessoas que se acham ou ao menos acreditam se achar no terreno da psicanálise que não lhe questionam a técnica e os resultados sentindose apenas autorizadas a extrair outras conclusões do mesmo material e submetêlo a outras concepções A controvérsia teórica é geralmente infrutífera porém Tão logo começamos a nos afastar do material de que nos devemos nutrir corremos o perigo de nos inebriar com as nossas afirmações e de afinal sustentar opiniões que qualquer observação teria refutado Daí me parecer incomparavelmente mais adequado combater concepções divergentes por meio de seu exame em casos e problemas específicos Declarei acima p 53 que certamente será tido por improvável que uma criança na tenra idade de um ano e meio seja capaz de acolher as percepções de um processo tão complicado e conserválas tão fielmente em seu inconsciente em segundo lugar que seja possível que uma elaboração desse material chegue posteriormente à compreensão aos quatro anos de idade por fim que se con siga mediante algum procedimento tornar consciente de forma coesa e con vincente os detalhes de uma tal cena vivenciada e compreendida em tais circunstâncias A última questão é puramente factual Quem se der ao trabalho de conduzir a análise a essas profundezas mediante a técnica prescrita se convencerá de que tal coisa é bem possível quem deixa de fazêlo e interrompe a análise em 43311 alguma camada mais alta renunciou ao julgamento Mas a concepção acerca do que se atingiu na análise de profundezas não está decidida com isso As duas outras dúvidas se baseiam numa subestimação das impressões da primeira infância às quais não se creditam efeitos tão duradouros Pretendem achar a causa das neuroses quase exclusivamente nos conflitos sérios da vida posterior e supõem que a importância dos anos infantis é algo encenado à nossa frente pela inclinação que têm os neuróticos de expressar seus atuais in teresses em reminiscências e símbolos do passado mais antigo Com tal avaliação do elemento infantil é ignorada muita coisa que se inclui entre as mais íntimas peculiaridades da psicanálise e também não há dúvida boa parte do que desperta resistências a ela e afasta a confiança dos que estão de fora A concepção que aqui oferecemos à discussão portanto é a de que tais cen as da primeira infância tal como são fornecidas pela análise exaustiva das neuroses do nosso caso por exemplo não seriam reproduções de aconteci mentos reais a que se poderia atribuir influência na configuração da vida pos terior e na formação de sintomas mas sim formações da fantasia que obtêm es tímulo da época madura destinadas a uma certa representação simbólica de desejos e interesses reais e que devem sua origem a uma tendência regressiva a um afastamento das tarefas do presente Se for assim podemos nos poupar naturalmente toda atribuição espantosa referente à vida psíquica e à realização intelectual de crianças da mais tenra idade Fatos diversos vêm ao encontro desta concepção além do desejo de racion alização e simplificação da difícil tarefa por todos nós partilhado E de antemão é possível eliminar uma dúvida que poderia nascer precisamente no analista praticante É preciso admitir que se a mencionada concepção destas cenas infantis for a correta de imediato nada mudaria no exercício da análise Se o neurótico tem a má característica de afastar seu interesse do presente e ligálo a essas formações substitutas regressivas de sua fantasia nada podemos fazer senão acompanhálo em seus caminhos e levar à sua consciência tais produções inconscientes pois elas são abstraindo de sua ausência de valor 44311 real altamente valiosas para nós como portadoras e donas do interesse que queremos liberar para dirigir às tarefas do presente A análise teria que transcorrer exatamente como aquela que ingenuamente confiante toma tais fantasias por verdadeiras A diferença viria apenas no final da análise após o desvelamento dessas fantasias Então diríamos ao doente Muito bem sua neurose transcorreu como se na infância você tivesse recebido e continuado a tecer tais impressões Você se dá conta de que isso não é possível Eram produtos da atividade de sua fantasia que o afastavam das tarefas reais que es tavam à sua frente Agora nos deixe investigar quais eram essas tarefas e que vias de ligação existiam entre elas e as suas fantasias Uma segunda parte do tratamento voltada para a vida real poderia começar após esse ajuste de con tas com as fantasias infantis Um encurtamento desse caminho ou seja uma alteração na terapia analít ica até agora praticada seria tecnicamente inadmissível Se não o tornamos consciente dessas fantasias em toda a sua amplitude o doente não poderá ter sob seu comando o interesse a elas ligado Se o desviamos delas tão logo pres sentimos a sua existência e contornos gerais apenas apoiamos o trabalho da repressão por meio do qual elas se tornaram inacessíveis a todos os esforços do doente Se as desvalorizamos prematuramente a seus olhos ao revelar por exemplo que não passam de fantasias sem qualquer significação real jamais obteremos sua colaboração para leválas à consciência Portanto num procedi mento correto a técnica psicanalítica não poderia sofrer qualquer mudança não importando como se avaliem estas cenas infantis Mencionei que vários elementos factuais podem ser invocados em prol da concepção destas cenas como fantasias regressivas Sobretudo um o de que tais cenas infantis não são no tratamento até onde vai minha experiência reproduzidas como lembranças são resultados da construção Para alguns a disputa já parecerá resolvida por esta confissão Não quero ser mal compreendido Todo psicanalista sabe já lhe aconteceu inúmeras vezes que num tratamento bemsucedido o paciente comunica 45311 muitas recordações espontâneas da sua infância por cujo aparecimento primeiro aparecimento talvez o médico não se sente responsável de modo algum pois não tentou fazer construções que sugerissem ao doente semelhante conteúdo Tais recordações antes inconscientes não precisam sequer ser ver dadeiras podem sêlo mas com frequência são distorcidas em relação à ver dade impregnadas de elementos de fantasia exatamente como as chamadas lembranças encobridoras conservadas de modo espontâneo Quero dizer que cenas como a de meu paciente de um período tão antigo e com tal conteúdo e que possuem tal importância para a história do caso em geral não são re produzidas como lembranças mas têm de ser gradual e laboriosamente adivin hadas construídas a partir de uma soma de indícios E bastaria para meu argumento admitir que tais cenas não se tornam conscientes como lembranças nos casos de neurose obsessiva ou limitar a afirmação a este caso em estudo Não sou de opinião que estas cenas tenham de ser fantasias necessaria mente porque não retornam como lembranças Pareceme ser de absoluta equivalência à lembrança o fato de que elas como em nosso caso sejam substituídas por sonhos cuja análise leva regularmente à mesma cena e que re produzam cada fragmento de seu conteúdo em incansável remodelação Son har é também recordar embora sujeito às condições do período noturno e da formação do sonho Esse retorno em sonhos explica segundo creio que nos pacientes mesmos se forme gradualmente uma firme convicção da realidade dessas cenas primordiais uma convicção que em nada fica atrás daquela baseada na recordação20 Naturalmente os opositores não devem abandonar o combate a esses argu mentos como sendo algo improfícuo Os sonhos são notoriamente influenciá veis21 E a convicção do analisando pode ser consequência da sugestão para a qual ainda se procura um papel no jogo de forças do tratamento analítico Um psicoterapeuta da velha cepa iria sugerir ao paciente que ele está são que su perou suas inibições etc o psicanalista porém que ele teve essa ou aquela 46311 vivência quando criança a qual tem de recordar agora para ficar são Esta ser ia a diferença entre os dois Deixemos claro que essa tentativa de explicação dos opositores implica que as cenas infantis foram tratadas de modo bem mais radical do que no princípio se anunciava Antes elas não seriam realidades mas fantasias Agora se argu menta não fantasias do doente mas do analista mesmo que as impõe ao anal isando a partir de complexos pessoais Ao ouvir esta censura é certo que o an alista evocará para tranquilizar a si mesmo como se deu gradualmente a con strução dessa fantasia que supostamente sugeriu como em muitos pontos a sua configuração procedeu de modo independente do estímulo médico como tudo parecia convergir para ela a partir de uma certa fase do tratamento e como depois na síntese dela irradiavam as consequências mais diversas e notáveis como os grandes e pequenos problemas e peculiaridades da história clínica en contravam solução nessa hipótese e alegará que não se atribui sagacidade bastante para urdir um acontecimento que satisfaça de uma vez a todas essas exigências Mas essa argumentação também não surtirá efeito sobre a outra parte que não experimentou por si mesma a análise Refinado engano de si mesmo dirão de um lado embotamento do juízo dirão do outro e não se al cançará uma decisão Voltemonos agora para um outro fator que favorece a concepção oposta das cenas infantis reconstruídas Ele é o seguinte Todos os processos a que se recorreu para o esclarecimento dessas formações duvidosas como sendo fantasias existem de fato e devem ser reconhecidos como importantes O fato de o interesse se afastar das tarefas da vida real22 a existência de fantasias como formações substitutas para as ações não realizadas a tendência regres siva que se exprime nessas criações regressiva em mais de um sentido na medida em que ocorrem simultaneamente um recuo diante da vida e um re curso ao passado tudo isso é correto e pode ser confirmado regularmente na análise Seria de esperar que também bastasse para esclarecer as supostas re miniscências da primeira infância que se acham em discussão e conforme os 47311 princípios econômicos da ciência essa explicação teria a preferência diante de uma outra que não pode bastar sem hipóteses novas e estranhas Neste ponto permitamme chamar a atenção para o fato de que na atual lit eratura psicanalítica as controvérsias se fazem habitualmente segundo o princí pio de pars pro toto tomar a parte pelo todo De um conjunto altamente com posto se retira uma parte dos fatores atuantes proclamase que é a verdade e em seu favor se contradiz a outra parte e o todo Olhando mais atentamente a que grupo de fatores coube a preferência vêse que é aquele que contém o já conhecido de outra fonte ou o que mais dele se aproxima Em Jung é então a atualidade e a regressão em Adler os motivos egoístas Mas é relegado e rejeit ado como erro precisamente aquilo que é novo e peculiar na psicanálise Desse modo são rechaçados mais facilmente os avanços revolucionários da incômoda psicanálise Vale destacar que nenhum dos fatores aduzidos pela concepção rival para a compreensão das cenas infantis necessitava ser apresentado por Jung como novidade O conflito atual o afastamento da realidade a satisfação substituta na fantasia a regressão ao material do passado tudo isso na mesma conjun ção talvez com pequena mudança de terminologia constituiu desde sempre boa parte de minha teoria Não era o todo apenas a parte das causas que partindo da realidade atua na formação da neurose em direção regressiva Ao lado disso deixei lugar para uma outra influência progressiva que atua desde as impressões infantis que aponta o caminho à libido que se retrai ante a vida e permite compreender a regressão à infância de resto inexplicável Segundo a minha concepção os dois fatores atuam conjuntamente na formação de sinto mas mas uma atuação conjunta anterior me parece igualmente significativa Sustento que a influência da infância já se faz sentida na situação inicial da form ação da neurose na medida em que também determina de modo decisivo se e em que ponto o indivíduo fracassa ao lidar com os problemas reais da vida O que está em disputa portanto é a significação do fator infantil A tarefa consiste em achar um caso que sem qualquer margem para a dúvida 48311 demonstre essa importância Um caso assim é o que tratamos minuciosamente aqui que se caracteriza pelo fato de que a neurose da vida adulta é precedida por uma neurose na primeira infância Justamente por isso escolhi este caso para comunicação Se alguém o quiser rejeitar porque a fobia de animais não lhe parece bastante séria para ser reconhecida como neurose autônoma eu lhe responderei que à fobia sucederam sem qualquer intervalo um cerimonial ob sessivo e pensamentos e atos obsessivos dos quais falaremos nas seções seguintes deste trabalho Uma doença neurótica no quarto ou quinto ano da infância vem demon strar acima de tudo que as vivências infantis são capazes por si só de produzir uma neurose sem necessitar para isto da fuga ante uma tarefa imposta pela vida Será feita a objeção de que também à criança se apresentam continua mente tarefas a que talvez preferisse escapar Isto é certo mas a vida de uma criança que ainda não frequenta a escola não é difícil de ser observada e pode se investigar se existe nela uma tarefa que determine a causação da neurose Mas descobremse apenas impulsos instintuais cuja satisfação é impossível para a criança e cujo domínio está fora de seu alcance e as fontes das quais eles surgem Como era de esperar a enorme diminuição do intervalo entre a irrupção da neurose e a época das vivências infantis em questão faz encolher ao máximo a parte regressiva da causação e traz inteiramente à luz a parcela progressiva da mesma a influência das primeiras impressões Esta situação será ilustrada niti damente espero pela presente história clínica Mas há outras razões ainda por que a neurose infantil dá uma resposta decisiva à questão sobre a natureza das cenas primordiais ou vivências infantis mais antigas averiguadas na análise Se supomos como premissa inquestionável que uma tal cena primária foi obtida de maneira tecnicamente correta que é indispensável para a solução abrangente de todos os enigmas que nos propõem os sintomas da doença in fantil que dela emanam todos os efeitos assim como a ela conduziram todos os fios da análise então é impossível considerando o seu conteúdo que ela 49311 seja outra coisa que não a reprodução de uma realidade vivida pela criança Pois a criança tal como o adulto só pode produzir fantasias com material ad quirido em algum lugar as vias para essa aquisição se acham em parte leitura por exemplo interditadas à criança o espaço de tempo disponível para a aquisição é curto e fácil de explorar na busca dessas fontes Em nosso caso a cena primária contém a imagem da relação sexual entre os pais numa posição particularmente propícia para certas observações Não con stituiria prova da realidade desta cena se a encontrássemos num doente cujos sintomas isto é os efeitos da cena tivessem aparecido em alguma ocasião de sua vida posterior Tal pessoa poderia ter adquirido nos mais diversos mo mentos do longo intervalo as impressões representações e conhecimentos que ela transforma numa imagem de fantasia projeta de volta em sua infância e liga a seus pais Mas se os efeitos de uma tal cena surgem no quarto ou quinto ano de vida a criança deve têla presenciado numa época ainda anterior Então permanecem de pé todas as conclusões desconcertantes que nos vieram da an álise da neurose infantil A menos que se suponha que o paciente não só fantas iou inconscientemente esta cena primária mas também tramou sua mudança de caráter seu medo dos lobos e sua compulsão religiosa um expediente que estaria em contradição com sua natureza normalmente sóbria e a tradição ime diata de sua família Então a coisa deve ficar nisso não vejo outra possibil idade ou a análise que parte de sua neurose infantil é um desvario ou tudo corresponde ao que descrevi acima Numa passagem anterior também estranhamos a seguinte ambiguidade a preferência do paciente pelas nádegas da mulher e pelo coito na posição em que elas sobressaem parecia requerer uma derivação do coito observado entre os pais ao mesmo tempo em que tal predileção é um traço geral das constitu ições arcaicas predispostas à neurose obsessiva Aqui se oferece o expediente simples de resolver a contradição vendoa como sobredeterminação A pessoa que ele observou nessa posição durante o coito era o seu pai carnal do qual ele podia ter herdado também essa preferência constitucional Nem a posterior 50311 doença do pai nem a história da família contrariam tal possibilidade um irmão do pai morreu como foi dito num estado que deve ser apreendido como des fecho de uma séria enfermidade obsessiva A respeito disso lembramos que a irmã ao seduzir o garoto de três anos e três meses havia lançado contra a velha e boa ama a calúnia singular de que ela punha as pessoas de cabeça para baixo e lhes agarrava os genitais23 Foi in evitável que nos ocorresse a ideia de que talvez a irmã em idade igualmente tenra tivesse presenciado a mesma cena que o irmão veio a observar depois e dali tirado o estímulo para o pôr de cabeça para baixo durante o ato sexual Esta suposição nos indicaria também uma fonte de sua precocidade sexual Originalmente eu não tinha a intenção de prosseguir neste lugar a dis cussão sobre o valor de realidade das cenas primordiais mas como nesse meio tempo fui levado a tratar do tema nas minhas Conferências introdutórias à psicanálise em contexto mais amplo e sem propósito polêmico poderia suscit ar equívocos o fato de eu omitir a aplicação dos pontos de vista ali determin antes ao caso que aqui se apresenta Então eu continuo à guisa de comple mento e retificação Para a cena primária que está na base do sonho é possível uma outra concepção que evita em larga medida a conclusão alcançada antes e nos dispensa de algumas dificuldades É certo que a teoria que pretende re baixar as cenas infantis a símbolos regressivos também nada ganhará com essa modificação ela me parece mesmo definitivamente liquidada por essa análise como seria por qualquer outra Quero dizer que a questão pode ser disposta da seguinte maneira Não po demos renunciar à hipótese de que a criança observou um coito à vista do qual teve a convicção de que a castração podia ser mais que uma ameaça vazia tam bém a significação que depois adquirem as posições do homem e da mulher para o desenvolvimento da angústia e como condição para o amor não nos deixa outra escolha senão concluir que deve ter sido um coitus a tergo more ferarum coito por trás à maneira dos animais Mas um outro elemento não é tão indispensável e pode ser abandonado Não foi talvez um coito dos pais 51311 mas sim de animais aquele que o menino observou e então atribuiu aos pais como se tivesse deduzido que os pais também não faziam de outro modo Em favor desta concepção há sobretudo o fato de os lobos do sonho serem realmente cães pastores e como tais aparecerem no desenho Pouco tempo antes do sonho ele fora conduzido várias vezes aos rebanhos de ovelhas onde pôde ver esses cachorros grandes e brancos e provavelmente observálos no coito também A isto eu relacionaria também o número três que o sonhador introduziu sem qualquer outra motivação e suporia que ele conservou na memória que tinha feito três dessas observações nos cães pastores O que então se juntou a isso no estado de excitação plena de expectativa da noite de seu sonho foi a transferência para seus pais com todos os pormenores da imagem mnemônica recémadquirida mediante a qual se tornaram possíveis aqueles poderosos efeitos emocionais Nesse momento houve uma compreensão a pos teriori daquelas impressões recebidas talvez algumas semanas ou meses antes processo que cada um de nós talvez tenha experimentado em si mesmo A transferência dos cães em cópula para os pais não se realizou por meio de um procedimento dedutivo ligado a palavras mas buscando na recordação uma cena real em que os pais apareciam juntos e que pôde se fundir com a situação do coito Todos os detalhes da cena que foram estabelecidos na análise do sonho podem ter se reproduzido exatamente Era de fato uma tarde de verão o menino sofria de malária os pais estavam ambos presentes vestidos de branco quando ele acordou de seu sono mas a cena era inofensiva O restante fora acrescentado com base nas suas experiências com os cães pelo desejo posteri or do menino ávido de saber desejoso de espreitar também os pais em seu comércio amoroso e então a cena assim fantasiada desdobrava todos os efeitos que lhe atribuímos como se tivesse sido inteiramente real e não composta de duas partes coladas uma anterior indiferente e uma posterior muito impressionante Logo se vê o quanto diminuem as exigências feitas à nossa credulidade Já não precisamos supor que os pais realizaram o coito na presença da criança 52311 mesmo que fosse bem nova uma ideia desagradável para muitos de nós O efeito a posteriori tem seu intervalo bastante reduzido agora diz respeito apen as a alguns meses do quarto ano de vida e não remonta absolutamente aos primeiros anos obscuros da infância Pouco existe de estranho na conduta da criança ao fazer transferência dos cães para os pais e sentir medo do lobo em vez do pai Ela se acha na fase de desenvolvimento da sua visão de mundo que em Totem e tabu é caracterizada como o retorno do totemismo A teoria que tenta esclarecer as cenas primordiais das neuroses por um fantasiar retrospect ivo a partir de tempos ulteriores parece encontrar um forte apoio em nossa ob servação apesar da tenra idade de quatro anos do nosso neurótico Sendo tão jovem foi no entanto capaz de substituir uma impressão dos quatro anos por um trauma fantasiado com um ano e meio mas essa regressão não parece enig mática nem tendenciosa A cena a ser produzida tinha que preencher determin adas condições que devido às circunstâncias da vida do sonhador se encon travam apenas nessa época primeira por exemplo a de estar numa cama no quarto dos pais Mas o que parecerá decisivo para a maioria dos leitores no tocante à justeza da concepção aqui proposta é o que posso juntar a partir dos resultados analíticos de outros casos A cena de observar o comércio sexual entre os pais na infância remota seja lembrança real ou fantasia não é verdadeira mente uma raridade nas análises de humanos neuróticos Talvez ela se ache com igual frequência nos que não se tornaram neuróticos Talvez ela pertença ao acervo regular de seu tesouro consciente ou inconsciente de lem branças Sempre que pude obter uma tal cena mediante a análise porém ela mostrou a mesma peculiaridade que nos desconcertou em nosso paciente referiase a um coitus a tergo o único que permite ao espectador a inspeção dos genitais Então já não cabe duvidar que se trata apenas de uma fantasia talvez estimulada regularmente pela observação do ato sexual entre animais Mais ainda indiquei que a minha exposição da cena primária permaneceu incom pleta pois deixei para comunicar depois o modo como a criança perturba o ato 53311 dos pais Agora devo acrescentar que também essa maneira de perturbar é a mesma em todos os casos Posso imaginar que agora me expus a graves suspeitas por parte do leitor Se esses argumentos em favor de uma tal concepção da cena primária es tavam à minha disposição como pude assumir a responsabilidade de defender primeiro uma outra que parecia tão absurda Ou eu teria feito essas novas ob servações que me obrigaram a modificar minha concepção inicial no inter valo entre a primeira redação da história clínica e este acréscimo e por algum motivo não quis confessálo Mas confesso em troca uma outra coisa que desta vez pretendo encerrar a discussão sobre o valor de realidade da cena primária com um non liquet Este caso clínico não chegou ao fim mais adiante emergirá um fator que deve perturbar a certeza que acreditamos desfrutar neste momento Então restará somente remeter o leitor às passagens de minhas Conferências em que tratei o problema das fantasias ou cenas primordiais VI A NEUROSE OBSESSIVA Pela terceira vez experimentava ele uma influência que mudou de maneira de cisiva o seu desenvolvimento Quando tinha quatro anos e meio e seu estado de irritabilidade e angústia continuava sem melhora a mãe decidiu fazer que conhecesse a história bíblica na esperança de distraílo e edificálo E con seguiu essa introdução da religião pôs fim à fase anterior mas acarretou a substituição dos sintomas de angústia por sintomas obsessivos Até então ele não podia adormecer com facilidade porque temia sonhar coisas ruins como naquela noite de Natal agora tinha que beijar todas as imagens de santos do quarto antes de dormir recitar as orações e fazer incontáveis sinais da cruz sobre si mesmo e sobre o leito Sua infância se mostra então claramente dividida nas épocas seguintes primeiro o tempo preliminar até a sedução três anos e meio em que ocorre a 54311 cena primária em segundo lugar o tempo da mudança de caráter até o sonho angustiante quatro anos terceiro o da fobia de animais até a iniciação na re ligião quatro anos e meio e a partir daí o da neurose obsessiva até os dez anos de idade A transição imediata e pura de uma fase a outra não é da natureza dessas coisas nem da de nosso paciente que se caracteriza ao con trário pela conservação de tudo o que passou e a coexistência das mais diver sas correntes O comportamento malcriado não desapareceu quando sobreveio a angústia e prosseguiu diminuindo lentamente até o período da devoção re ligiosa Mas da fobia de lobos não há mais traço nessa última fase A neurose obsessiva transcorreu de modo descontínuo o primeiro acesso foi o mais longo e mais intenso outros vieram quando ele tinha oito e dez anos a cada vez ocasionados por circunstâncias que se ligavam visivelmente ao conteúdo da neurose A mãe lhe contou ela mesma a História Sagrada e além disso fez a Nânia ler em voz alta um livro sobre o tema adornado de ilustrações A ênfase principal da narrativa caiu naturalmente sobre a história da Paixão A Nânia que era bem devota e supersticiosa dava explicações sobre o que lia mas tam bém tinha que escutar todas as objeções e dúvidas do pequeno crítico Se os conflitos que começavam a agitálo terminaram por fim com a vitória da fé a influência da Nânia não deixou de ter participação nisso O que ele me relatou como lembrança de suas reações à iniciação religiosa deparou de início com a minha completa descrença Aqueles não podiam ser era minha opinião os pensamentos de um garoto de quatro anos e meio ou cinco provavelmente ele transpunha para esse passado remoto o que se ori ginava da reflexão do adulto de quase trinta anos24 O paciente não quis saber dessa correção porém e não foi possível convencêlo como fiz em muitas outras diferenças de juízo entre nós por fim a coerência entre os seus pensamentos lembrados e os sintomas relatados e o modo como se encaixam no seu desenvolvimento sexual me obrigaram a lhe dar crédito Então disse a mim mesmo que justamente essa crítica às teorias da religião de que eu não 55311 julgava capaz a criança é levada a efeito apenas por uma minoria ínfima de adultos Agora apresentarei o material de suas recordações para depois buscar um caminho que leve à compreensão delas A impressão que ele teve da História Sagrada não foi inicialmente agradável como ele relatou Primeiro se revoltou com o caráter sofredor da pessoa de Cristo depois com a sua história como um todo Dirigiu contra Deus Pai sua insatisfação crítica Se ele era todopoderoso era sua culpa que os homens fossem maus e atormentassem os outros indo então para o Inferno Ele deveria têlos feito bons ele mesmo era responsável por todo o mal e todo o tormento Ficou aborrecido com o mandamento que diz para oferecer a outra face quando se recebe uma bofetada com o fato de Cristo desejar que afastassem dele o cálice na cruz e também por não ter acontecido nenhum milagre demonstrando que ele era filho de Deus Assim sua perspicácia estava alerta e soube discernir com implacável rigor os pontos fracos da fábula santa Mas a essa crítica racionalista logo se juntaram dúvidas e ruminações que deixam perceber a contribuição de impulsos secretos Uma das primeiras per guntas que ele fez à Nânia foi se Cristo tinha também um traseiro Ela re spondeu que ele havia sido Deus e também homem Enquanto homem ele havia tido e feito tudo como os outros homens Isso não o satisfez mas ele soube consolarse dizendo que o traseiro era apenas a continuação das pernas O medo de ter que rebaixar a pessoa divina que mal acabava de ser mitigado inflamouse novamente quando lhe veio a questão de saber se Cristo também defecava Ele não ousou colocála para a Nânia beata e encontrou ele próprio uma saída melhor do que qualquer outra que ela pudesse ter lhe achado Como Cristo havia feito vinho a partir de nada também podia transformar a comida em nada e assim pouparse a defecação Nós nos aproximaremos de uma compreensão dessas ruminações se reto marmos um elemento já mencionado de seu desenvolvimento sexual Sabemos que desde a rejeição pela Nânia e a consequente supressão da atividade genital 56311 incipiente sua vida sexual havia se desenvolvido na direção do sadismo e do masoquismo Ele atormentava e maltratava pequenos animais fantasiava bater em cavalos e por outro lado que o herdeiro do trono era surrado25 No sad ismo ele conservava a antiga identificação com o pai no masoquismo ele o escolhia como objeto sexual Encontravase inteiramente numa fase da organização prégenital em que vejo a disposição para a neurose obsessiva Pela ação daquele sonho que o colocou sob a influência da cena primária ele poderia ter avançado até a organização genital e transformado o seu masoquismo ante o pai em postura feminina diante dele em homossexualid ade Porém o sonho não trouxe este avanço ele terminou em angústia A re lação com o pai que deveria conduzilo da meta sexual de ser castigado por ele à meta seguinte ser possuído pelo pai como uma mulher foi recuada a um es tágio ainda mais primitivo pela objeção de sua masculinidade narcisista e por deslocamento para um substituto do pai cindida sob forma da angústia de ser devorado pelo lobo mas de modo algum resolvida por esse meio A esse es tado de coisas aparentemente complicado talvez possamos fazer justiça apenas se nos ativermos à coexistência das três tendências dirigidas para o pai A partir do sonho ele era homossexual no inconsciente na neurose estava ao nível do canibalismo e permaneceu predominante a antiga postura masoquista Todas as três correntes tinham metas sexuais passivas era o mesmo objeto o mesmo impulso sexual mas este havia experimentado uma cisão em três níveis diferentes O conhecimento da História Sagrada lhe dava agora a possibilidade de sub limar a postura masoquista predominante frente ao pai Ele se tornou Cristo o que lhe era facilitado pelo dia do nascimento Com isso ele se tornava uma coisa grande e também algo que momentaneamente não se enfatizou bastante um homem Na dúvida de que Cristo tivesse um traseiro trans parece a postura homossexual reprimida pois esta ruminação não podia signi ficar senão a pergunta se ele podia ser usado pelo pai como uma mulher como a mãe na cena primária Quando chegarmos à solução das outras ideias 57311 obsessivas confirmaremos essa interpretação À repressão da homossexualid ade passiva correspondia agora a preocupação de que era ultrajante estabelecer relação entre a pessoa divina e tais conjecturas Notase que ele se empenha em manter sua nova sublimação livre do acréscimo que retirou das fontes do rep rimido Mas não conseguiu fazer isso Ainda não compreendemos por que agora se rebelava também contra o caráter passivo de Cristo e contra os maus tratos do pai começando assim a negar seu ideal masoquista até então mesmo na sua sublimação Podemos supor que este segundo conflito era particularmente propício à emergência dos pensamentos obsessivos humilhantes do primeiro conflito entre a corrente masoquista dominante e a homossexual reprimida pois é natural que num conflito psíquico se somem todas as tendências opostas ainda que das fontes mais diversas O motivo de sua rebelião e portanto da crítica feita à religião nós o conheceremos a partir de novas informações Também sua pesquisa sexual havia tirado proveito das informações sobre a História Sagrada Até então ele não tinha motivo para supor que as crianças vêm apenas da mulher Pelo contrário a Nânia o tinha feito acreditar que ele era filho do pai e a irmã da mãe e esse vínculo mais próximo com o pai lhe tinha sido precioso Agora ele ouvia que Maria era a genitora de Deus Então as crianças vinham da mulher e o que a Nânia havia dito não se sustentava Além disso os relatos o deixaram confuso quanto ao verdadeiro pai de Cristo Estava inclinado a crer que era José pois sabia que sempre viveram juntos mas a Nânia disse que José apenas fazia de pai o verdadeiro era Deus Ele não soube o que achar disso Compreendia apenas o seguinte se era possível mesmo discutir a questão a relação entre pai e filho não era tão íntima como ele havia sempre imaginado O garoto de certo modo intuiu a ambivalência afetiva para com o pai sub jacente a todas as religiões e atacou sua religião devido ao afrouxamento desse vínculo com o pai Naturalmente sua oposição logo deixou de ser uma dúvida quanto à verdade da doutrina e se voltou diretamente contra a pessoa de Deus 58311 Deus havia tratado seu filho de maneira dura e cruel mas tampouco era mel hor para com os homens Havia sacrificado seu filho e exigido que Abraão fizesse o mesmo Ele começou a temer Deus Se ele era Cristo então seu pai era Deus Mas o Deus que a religião lhe im punha não era um verdadeiro substituto para o pai que ele havia amado e que não queria deixar que lhe roubassem O amor a esse pai lhe proporcionou a agudeza crítica Ele se opôs a Deus para poder se apegar ao pai nisso de fendendo na verdade o velho pai contra o novo Teve que dar um difícil passo no desligamento do pai Portanto foi do velho amor a seu pai tornado manifesto na época mais re mota que ele tirou a energia para o combate a Deus e a perspicácia para a crít ica da religião Mas por outro lado essa hostilidade ao novo Deus também não era um ato original tinha por modelo um impulso hostil contra o pai sur gido sob a influência do sonho angustiante e no fundo era apenas uma re vivescência dele Os dois impulsos afetivos opostos que deveriam reger toda sua vida posterior encontravamse aqui na luta ambivalente em torno da reli gião O que dessa luta resultou como sintoma as ideias blasfemas a com pulsão de associar Deus excremento Deus porco era portanto um ver dadeiro compromisso como veremos na análise dessas ideias em sua relação com o erotismo anal Alguns outros sintomas obsessivos de gênero menos típico levam com igual certeza ao pai mas também permitem perceber a relação entre a neurose obsessiva e as ocorrências anteriores O mandamento de respirar de modo solene em determinadas condições fazia parte do cerimonial de devoção com que ele expiava por fim suas blas fêmias A cada vez que fazia o sinal da cruz ele tinha que inspirar profunda mente ou expelir o ar com força Em sua linguagem alento era igual a espírito Então esse era o papel do Espírito Santo Ele tinha que inspirar o Espírito Santo ou expirar os espíritos maus acerca dos quais tinha lido e ouvido falar26 A esses espíritos maus ele atribuía também os pensamentos sacrílegos que lhe 59311 impunham tantas penitências Mas ele era obrigado a expirar quando via mendigos aleijados pessoas feias velhas miseráveis e essa compulsão ele não sabia conciliar com os espíritos A única justificação que dava a si mesmo era que o fazia para não ficar como eles Então a análise proporcionou em ligação com um sonho o esclarecimento de que a expiração ao ver gente lastimável tinha começado apenas após os seis anos e se ligava ao pai Fazia meses que ele não via o pai quando a mãe disse que iria à cidade com as crianças e lhes mostraria algo que muito as alegraria Ela os levou então a um sanatório onde viram novamente o pai ele parecia mal e despertou pena no filho Logo o pai era também o modelo original de todos os pobres aleijados mendigos diante dos quais ele tinha que expirar as sim como em outros casos é o modelo das caretas que são vistas em estados de angústia e das caricaturas desenhadas por escárnio Em outro lugar apren deremos que essa atitude compassiva remonta a um detalhe particular da cena primária que veio a atuar tardiamente na neurose obsessiva A resolução de não se tornar como eles que motivou seu hábito de expirar diante dos aleijados era portanto a velha identificação com o pai transformada no negativo Mas nisso ele copiava o pai também no sentido positivo pois res pirar fortemente era uma imitação do ruído que ele tinha escutado o pai emitir durante o coito27 O Espírito Santo devia a sua origem a este sinal de excitação sensual do homem Através da repressão o respirar tornouse espírito mau para o qual havia também uma outra genealogia isto é a malária da qual ele sofria na época da cena primária A rejeição desses maus espíritos correspondia a um traço inconfundivel mente ascético que se manifestou ainda em outras reações Ao ouvir dizer que Cristo havia esconjurado maus espíritos fazendoos entrar em porcos que se lançaram num abismo ele pensou em como sua irmã sendo muito pequena e antes que ele tivesse recordação havia caído rolando até a praia do caminho entre as escarpas do porto Também ela era um espírito mau e um porco daí até o Deusporco a distância era curta O próprio pai se revelara igualmente 60311 dominado pela sensualidade Quando ouviu a história do primeiro homem chamoulhe a atenção a similaridade entre o seu destino e o de Adão Em con versa com a Nânia admirouse hipocritamente de que Adão se deixasse con duzir à desgraça por uma mulher e prometeu à Nânia que jamais casaria A hostilidade à mulher devido à sedução pela irmã encontrou forte expressão por esse tempo Ela ainda perturbaria bastante a sua futura vida amorosa A irmã se tornou para ele a personificação duradoura da tentação e do pecado Quando confessava achavase puro e livre de pecado Mas então lhe parecia que a irmã espreitava para novamente fazêlo pecar e antes que se desse conta havia provocado uma briga com ela o que o tornava novamente pecador Desse modo era obrigado a reproduzir sempre de novo o evento da sedução Notemos de passagem que ele jamais confessou os pensamentos sacrílegos por mais que o oprimissem Inadvertidamente chegamos ao conjunto de sintomas dos anos posteriores da neurose obsessiva e assim deixando de lado muito do que houve no meio tempo vamos relatar o seu desfecho Já sabemos que não considerando o seu estado permanente ela experimentava intensificações ocasionais certa vez o que ainda não pode ser claro para nós quando morreu um garoto da mesma rua com o qual ele pôde se identificar Aos dez anos de idade foi confiado a um preceptor alemão que logo adquiriu grande influência sobre ele É instru tivo que toda a sua grave devoção desaparecesse para nunca mais voltar ao perceber e depois ouvir em conversas esclarecedoras com o professor que este substituto do pai não dava qualquer valor à devoção e não acreditava ab solutamente na verdade da religião A devoção decaiu com a dependência do pai agora substituído por um pai novo mais acessível Isto não aconteceu en tretanto sem uma última revivescência da neurose obsessiva da qual lembrava especialmente a compulsão de pensar na Santíssima Trindade toda vez que via na rua três montinhos de excremento Pois ele nunca cedia a um estímulo sem fazer mais uma tentativa de manter o que fora desvalorizado Quando o pro fessor o dissuadiu das crueldades com pequenos animais ele realmente pôs fim 61311 a esses maus feitos mas não sem antes entregarse uma vez mais ao despedaça mento de lagartas No tratamento psicanalítico ele se comportava exatamente assim ao desenvolver uma reação negativa passageira depois de cada solução decisiva ele procurava por um momento negar o seu efeito mediante um agravamento do sintoma resolvido Sabese que em geral as crianças se comportam dessa maneira diante das proibições Se ouvem uma reprimenda por causa de um barulho intolerável que fazem por exemplo repetemno ainda uma vez após a proibição antes de parar com ele Assim demonstram haver parado por vontade própria e desafiado a proibição Sob influência do professor alemão originouse uma nova e melhor sublim ação do seu sadismo que correspondendo à puberdade próxima veio a pre dominar sobre o masoquismo Ele começou a se entusiasmar por coisas milit ares por uniformes armas e cavalos e a partir delas alimentou constantes devaneios Assim sob a influência de um homem ele se livrou das atitudes pas sivas e se encontrou de início numa via razoavelmente normal Um efeito pos terior de seu apego ao mestre que logo o abandonou foi que em sua vida adulta ele preferia o elemento alemão médicos sanatórios mulheres àquele nativo representando o pai algo que facilitou bastante a transferência na terapia Do tempo da emancipação através do professor há um outro sonho que menciono porque estava esquecido até a emergência durante a terapia Ele se via montando a cavalo perseguido por uma lagarta gigantesca No sonho re conheceu uma alusão a outro da época anterior ao professor que muito tempo antes havíamos interpretado Nesse sonho anterior ele via o diabo em vestes negras e na postura erguida com que o lobo e o leão o haviam apavorado tanto Com o dedo estendido apontava para um enorme caracol Logo perce beu que esse diabo era o demônio de um conhecido poema que o próprio sonho era a elaboração de uma imagem bem difundida que representava o de mônio numa cena amorosa com uma mulher O caracol no lugar da mulher era um refinado símbolo sexual feminino Guiados pelo gesto demonstrativo 62311 do diabo logo pudemos indicar como sentido do sonho que ele ansiava por alguém que lhe desse os ensinamentos que faltavam sobre os enigmas do ato sexual tal como o pai lhe dera os primeiros na cena primária Acerca do outro sonho em que o símbolo feminino era substituído pelo masculino ele se lembrou de uma determinada experiência vivida pouco antes Andando a cavalo pela fazenda passou por um camponês que dormia junto ao qual estava o filho Este acordou o pai e lhe disse algo ao que ele começou a xingar e a perseguir o cavaleiro que se afastou rapidamente em seu cavalo Teve também a recordação de que na mesma propriedade havia árvores que eram completamente brancas inteiramente cobertas pelo fio das lagartas Compreendemos que ele também fugia da realização da fantasia de que o filho dormisse com o pai e que recorreu às árvores brancas para produzir uma alusão ao angustiante sonho dos lobos brancos na nogueira Era então uma ir rupção direta da angústia ante a postura feminina diante do homem da qual ele primeiramente se havia protegido pela sublimação religiosa e da qual logo deveria se proteger de modo ainda mais eficaz pela sublimação militar Mas seria um grande erro supor que após a remoção dos sintomas obsess ivos não teriam restado efeitos duradouros da neurose obsessiva O processo tinha levado a uma vitória da fé beata sobre a revolta inquiridora e crítica e havia tido como pressuposto a repressão da postura homossexual Desvant agens permanentes resultaram de ambos os fatores A atividade intelectual per maneceu gravemente prejudicada a partir dessa primeira grande derrota Não se desenvolveu nenhum afã de aprender não mais se mostrou a perspicácia que na tenra idade de cinco anos havia dissecado as teorias da religião A repressão da forte homossexualidade sucedida durante aquele sonho angusti ado reservou para o inconsciente esse impulso importante e assim o manteve dirigido para a meta original e o subtraiu a todas as sublimações a que ele nor malmente se oferece Por isso faltavam ao paciente todos os interesses sociais que dão conteúdo à vida Somente quando no tratamento analítico chegouse à liberação dessa homossexualidade agrilhoada esse estado de coisas pôde 63311 mudar para melhor e foi uma experiência notável assistir como sem ad vertência direta do médico cada parcela liberada da libido homossexual buscava alguma aplicação na vida e alguma adesão aos grandes negócios comuns aos seres humanos VII EROTISMO ANAL E COMPLEXO DA CASTRAÇÃO Peço ao leitor para lembrar que essa história de uma neurose infantil me veio como produto secundário por assim dizer durante a análise de uma doença na idade madura Então tive que juntála a partir de fragmentos ainda menores do que os que normalmente se oferecem para a síntese Esse trabalho que de resto não é difícil depara com um limite natural quando se trata de confinar uma formação pluridimensional ao plano da descrição Devo portanto me contentar em trazer pedaços avulsos que o leitor poderá reunir em um todo vivente A neurose obsessiva apresentada nasceu como se enfatizou repetidamente no solo de uma constituição sádicoanal Mas até agora discutimos apenas um fat or principal o sadismo e suas transformações Tudo referente ao erotismo anal foi propositadamente deixado de lado para ser exposto aqui Os analistas há muito estão de acordo em que os diversos impulsos instin tuais reunidos sob o nome de erotismo anal têm uma significação ex traordinária impossível de ser superestimada na construção da vida sexual e da própria atividade psíquica E igualmente que uma das mais relevantes mani festações do erotismo transformado procedente dessa fonte se acha no trata mento dispensado ao dinheiro material precioso que no curso da vida atrai para si o interesse psíquico que originalmente cabia ao excremento o produto da zona anal Estamos acostumados a referir ao prazer com excrementos o in teresse por dinheiro na medida em que seja de natureza libidinal e não 64311 racional e a exigir da pessoa normal que mantenha sua relação com o dinheiro totalmente livre de influências libidinais regulandoa segundo considerações da realidade Em nosso paciente essa relação estava na época de sua doença ulterior perturbada em medida particularmente grave o que não desempenhava papel pequeno em sua falta de autonomia e incapacidade para a vida Como herdeiro do pai e de um tio ele se tornara muito rico ostensivamente dava muito valor a que o vissem como tal e podia se ofender bastante caso o subestimassem nesse aspecto Mas não sabia quanto possuía o que gastava e quanto restava Era difícil dizer se deveria ser chamado de avarento ou de perdulário Ora se comportava de um modo ora de outro nunca de maneira que indicasse uma intenção coerente Por alguns traços evidentes que relatarei abaixo ele poderia ser visto como um ricaço empedernido que enxerga na riqueza a maior vant agem de sua pessoa e não permite que os interesses afetivos tenham lugar junto aos pecuniários Mas ele não julgava os outros conforme a riqueza e em muitas ocasiões mostravase modesto solícito e compassivo O dinheiro se subtraíra ao seu controle consciente significando alguma coisa mais para ele Já mencionei p 33 que me pareceu estranho o modo como ele se consolou da perda da irmã que se havia tornado sua mais próxima companhia nos últi mos anos refletiu que não mais precisava dividir a herança da família com ela Talvez ainda mais notável foi a tranquilidade com que ele pôde relatar isso como se não tivesse compreensão da crueza de sentimentos que revelava É certo que a análise o reabilitou ao mostrar que a dor pela irmã tinha sofrido apenas um deslocamento mas então se tornou mesmo incompreensível que ele quisesse encontrar na riqueza um substituto para a irmã Sua conduta em outro caso pareceu enigmática a ele mesmo Depois da morte do pai a fortuna deixada foi dividida entre ele e a mãe Ela administrou esse legado e como ele próprio admitiu atendeu suas exigências pecuniárias de modo irrepreensível e generoso No entanto cada conversa que tinham 65311 sobre questões de dinheiro costumava terminar com as mais violentas recrim inações de sua parte que ela não o amava que pensava em poupar à custa dele que provavelmente preferia vêlo morto para dispor sozinha do dinheiro Então a mãe protestava chorando o seu desinteresse ele sentia vergonha e po dia assegurar corretamente que não pensava aquilo dela mas estava seguro de que na próxima ocasião repetiria a mesma cena Que para ele as fezes tinham significação de dinheiro muito antes da anál ise é algo que ressalta de muitos incidentes dos quais relatarei dois Numa época em que o intestino ainda não contribuía para seu sofrimento ele visitou certa vez numa grande cidade um primo pobre Ao partir recriminou a si mesmo por não ajudar com dinheiro esse parente e imediatamente sentiu talvez a mais forte necessidade de evacuar de sua vida Dois anos depois es tabeleceu de fato uma pensão para esse primo O outro caso Aos dezoito anos enquanto se preparava para os exames finais do secundário visitou um colega e acertou com ele o que o medo comum de ser reprovado fazia parecer acon selhável28 Tinham resolvido subornar o bedel e a parte dele na quantia a ser juntada era naturalmente a maior No caminho de casa ele pensou que de boa vontade daria mais ainda se fosse aprovado se nada lhe acontecesse no exame e realmente lhe aconteceu outro infortúnio antes que ele chegasse à porta da casa29 Já estamos preparados para saber que em sua doença da época adulta ele so fria de tenazes distúrbios da função intestinal que no entanto oscilavam con forme as circunstâncias Quando começou o tratamento comigo ele havia se acostumado a lavagens que um acompanhante lhe fazia evacuações es pontâneas não sucediam durante meses caso não interviesse uma repentina ex citação de uma direção determinada em consequência da qual podia se restabelecer por alguns dias a atividade normal do intestino Sua principal queixa era que o mundo para ele estava envolto num véu ou que ele estava separado do mundo por um véu Esse véu se rompia somente no instante em 66311 que após uma lavagem o intestino era aliviado de seu conteúdo então ele se sentia novamente sadio e normal30 O colega ao qual enviei o paciente a fim de opinar sobre sua condição in testinal foi lúcido o bastante para definila como funcional ou mesmo psiquicamente determinada e absterse de medicação ativa Tampouco a dieta prescrita teve qualquer utilidade Nos anos do tratamento analítico não houve nenhuma evacuação espontânea sem considerar aquelas influências repenti nas O doente se convenceu de que todo tratamento mais intensivo do órgão teimoso pioraria o seu estado e satisfezse com produzir uma evacuação ou duas por semana por meio de lavagem ou laxativo Discutindo as desordens intestinais do paciente dediquei mais espaço à condição patológica de sua idade adulta do que caberia no plano de um tra balho que se ocupa de sua neurose infantil Duas razões foram determinantes nisso primeiro os sintomas do intestino haviam de fato prosseguido com bem pouca mudança da neurose infantil até aquela posterior segundo tiveram pa pel capital na finalização do tratamento Sabese que importância tem a dúvida para um médico que analisa uma neurose obsessiva É a arma mais poderosa do doente o meio predileto de sua resistência Essa mesma dúvida permitiu também a nosso paciente ent rincheirado numa indiferença respeitosa fazer que durante anos resvalassem por ele os esforços da terapia Nada mudava e não havia meio de convencêlo Por fim reconheci a importância do distúrbio intestinal para os meus propósi tos ele representava a porção de histeria que regularmente se encontra na base de uma neurose obsessiva Prometi ao paciente a plena recuperação de sua atividade intestinal e por meio dessa promessa tornei clara a sua descrença Tive então a satisfação de ver desaparecer sua dúvida quando o intestino começou a participar do trabalho como um órgão histericamente afetado e no curso de poucas semanas reencontrou sua função normal que havia muito se achava afetada 67311 Volto agora à infância do paciente a um tempo em que era impossível que o excremento pudesse ter para ele a significação de dinheiro Desordens intestinais lhe surgiram bastante cedo sobretudo a mais fre quente e mais normal na criança a incontinência Mas sem dúvida teremos razão se recusarmos uma explicação patológica para essas primeiras ocorrên cias e nelas enxergarmos apenas uma prova da sua intenção de não deixar que lhe perturbassem ou impedissem o prazer associado à função de evacuar Nele se mantivera até depois do começo da doença adulta um intenso gosto por pi adas e exibições anais que aliás corresponde à rudeza natural de algumas classes sociais No tempo da governanta inglesa sucedeu repetidamente que ele e a Nânia tivessem que partilhar o quarto daquela pessoa odiada A Nânia teve a per spicácia de constatar que justamente nessas noites ele fazia na cama o que nor malmente já não mais ocorria Ele não se envergonhava nem um pouco disso era uma manifestação de desafio à governanta Um ano depois aos quatro e meio no período de angústia aconteceulhe sujar as calças durante o dia Envergonhouse terrivelmente e se lastimou en quanto o limpavam dizendo que não podia mais viver assim Portanto algo havia mudado no meiotempo algo que encontramos ao seguir a pista de seu lamento Verificouse que as palavras não podia mais viver assim ele as tinha escutado de outra pessoa Certa vez31 sua mãe o levara consigo ao deixar na estação o médico que a tinha visitado No caminho ela se lamentou de suas dores e hemorragias usando as mesmas palavras Assim não posso mais viver sem esperar que o menino que conduzia pela mão as conservasse na memória O lamento que aliás ele repetiria inúmeras vezes em sua enfermid ade adulta significava então uma identificação com a mãe Um elo intermediário entre os dois incidentes que faltava cronologica mente e quanto ao conteúdo logo se apresentou à sua lembrança No início de seu período de angústia ocorreu que a mãe preocupada advertiu para que se protegessem as crianças da disenteria que aparecera nos arredores Ele se 68311 informou sobre o que era aquilo e ao ouvir que na disenteria se achava sangue nas fezes ficou bastante angustiado e disse que também nas suas fezes havia sangue sentiu medo de morrer de disenteria mas convenceuse pelo exame de que se havia enganado e nada tinha a temer Compreendemos que nessa an gústia queria se impor a identificação com a mãe de cujas hemorragias ele ouvira falar na conversa com o médico Em sua tentativa posterior de identi ficação com quatro anos e meio ele deixou de lado o sangue não se com preendia mais julgava ter vergonha de si mesmo e não sabia que fora abalado pela angústia da morte que no entanto se revelou inequivocamente em seu lamento A mãe que sofria do baixo ventre naquele tempo sentia angústia por si mesma e pelas crianças é bem provável que a angústia dele se apoiasse além de seus motivos próprios na identificação com a mãe E o que deveria significar a identificação com a mãe Entre o uso atrevido da incontinência aos três anos e meio e o horror di ante dela aos quatro anos e meio está o sonho com que principiou a época de angústia que lhe deu compreensão retrospectiva da cena vivenciada com um ano e meio32 e esclarecimento sobre o papel da mulher no ato sexual Daí é um passo para ligar também a mudança no comportamento para com a defecação a essa grande alteração Para ele disenteria era sem dúvida o nome da doença de que tinha ouvido a mãe se queixar com a qual não era possível viver a doença da mãe para ele não era do ventre mas do intestino Sob influência da cena primária revelouse para ele o nexo segundo o qual a mãe tinha adoecido em razão daquilo que o pai lhe fizera33 e sua angústia de ter sangue nas fezes de ser tão doente como a mãe era o repúdio da identificação com a mãe naquela cena sexual a mesma recusa com que ele despertara do sonho Mas a angústia era também a prova de que na posterior elaboração da cena primária ele se pusera no lugar da mãe invejandolhe essa relação com o pai O órgão em que se podia manifestar a identificação com a mulher a atitude passiva homossexu al diante do homem era a zona anal As perturbações na função dessa zona 69311 tinham agora o significado de impulsos de ternura femininos e o conservaram também durante a doença posterior Neste lugar temos que ouvir uma objeção cujo exame poderá contribuir muito para elucidar esta situação aparentemente confusa Tivemos de supor que durante o sonho ele entendera que a mulher era castrada que tinha no lugar do membro masculino uma ferida que servia para o ato sexual que a cas tração era a condição para a feminilidade e que devido à ameaça dessa perda ele reprimira a atitude feminina diante do homem e despertara com angústia do entusiasmo homossexual Como harmonizar essa compreensão do ato sexu al esse reconhecimento da vagina com a escolha do intestino para identi ficação com a mulher Os sintomas intestinais não se baseiam na concepção provavelmente mais antiga que contradiz inteiramente a angústia de cas tração de que o ânus é o lugar da relação sexual Certamente existe essa contradição e as duas concepções não se harmon izam em absoluto A questão é apenas se elas necessitam se harmonizar Nossa estranheza vem de que sempre nos inclinamos a tratar os processos anímicos inconscientes tal como os conscientes e a esquecer as diferenças profundas entre os dois sistemas psíquicos Quando a excitada expectativa do sonho de Natal lhe fez surgir a imagem da relação sexual outrora observada ou construída entre os pais certamente se apresentou primeiro a antiga concepção do ato segundo a qual a parte do corpo da mulher que recebia o membro era o ânus E que mais poderia ele supor sendo espectador dessa cena com um ano e meio34 Mas então veio o novo acontecimento aos quatro anos de idade Suas experiências desde então as referências à castração que ouvira despertaram e lançaram dúvida sobre a teoria da cloaca aproximaramno ao conhecimento da diferença entre os sexos e do papel sexual da mulher Ele se comportou nisso como se comportam em geral as crianças ao obter uma explicação indesejada sexual ou de outro tipo Rejeitou o que era novo em nosso caso por motivo da angústia de cas tração e apegouse ao velho Decidiuse pelo intestino e contra a vagina 70311 assim como por motivos semelhantes depois veio a tomar partido contra Deus e a favor do pai A nova explicação foi afastada a velha teoria mantida esta deve ter fornecido o material para a identificação com a mulher que de pois surgiu como medo da morte por doença intestinal e para os primeiros es crúpulos religiosos de saber se Cristo tinha traseiro etc Não que a nova per cepção não tivesse efeito muito pelo contrário desencadeou um efeito ex traordinariamente forte ao se tornar o motivo para manter na repressão e ex cluir de posterior elaboração consciente todo o processo do sonho Mas aí se esgotava o seu efeito não tinha influência na decisão do problema sexual Era por certo uma contradição que a partir desse momento pudessem coexistir angústia de castração e identificação com a mulher mediante o intestino mas era apenas uma contradição lógica o que não quer dizer muito Todo o pro cesso é agora característico do modo como o inconsciente trabalha Uma repressão é algo diferente de uma rejeição Estudando a gênese da fobia de lobos acompanhamos o efeito da nova per cepção do ato sexual mas agora que investigamos as perturbações da atividade intestinal achamonos no terreno da velha teoria da cloaca Os dois pontos de vista permanecem separados por um estágio da repressão A postura feminina diante do homem descartada pelo ato de repressão como que se retira para os sintomas intestinais manifestandose nas frequentes diarreias constipações e dores intestinais da infância As fantasias sexuais posteriores que estão basea das num correto conhecimento sexual podem manifestarse regressivamente como desordens intestinais Mas não as compreendemos enquanto não descobrimos a mudança de significado que teve o excremento desde os primeiros dias da infância35 Numa passagem anterior dei a entender que foi deixado de lado um frag mento da cena primária que agora posso apresentar O menino interrompeu afinal a união dos pais por meio de uma evacuação que lhe deu motivo para gritar Tudo o que eu trouxe antes à discussão a respeito do conteúdo restante da mesma cena vale para a crítica desse complemento O paciente aceitou esse 71311 ato final por mim construído e pareceu confirmálo por uma formação de sintoma passageiro Um outro complemento que eu havia sugerido de que o pai desafogara o seu descontentamento com a interrupção através de insultos teve de ser abandonado O material da análise não reagiu a ele O detalhe que agora acrescentei não pode naturalmente ser colocado na mesma linha que o conteúdo restante da cena Nele não temos uma impressão de fora cujo retorno se espera em muitos sinais posteriores mas uma reação da própria criança Nada mudaria na história toda se essa manifestação não tivesse ocorrido ou se tivesse sido colocada no decurso da cena a partir de um instante posterior Mas não há dúvida quanto ao modo de apreendêla Signi fica um estado de excitação da zona anal no sentido mais amplo Em outros casos semelhantes uma tal observação do ato sexual terminou com uma descarga de urina em circunstâncias iguais um homem adulto experimentaria uma ereção O fato de nosso rapazinho evacuar o intestino como sinal de sua excitação sexual deve ser julgado como característica de sua constituição sexu al congênita Ele assume de imediato uma atitude passiva revela mais inclin ação a identificarse posteriormente com a mulher do que com o homem Ele utiliza o conteúdo do intestino como faz toda criança em um de seus primeiros e mais primitivos significados O excremento é o primeiro presente a primeira oferenda de ternura da criança uma parte do próprio corpo de que ela se despoja mas apenas para alguém que ama36 A utilização para o desafio como fez nosso paciente aos três anos e meio contra a governanta é apenas a versão negativa desse velho sentido de presente O grumus merdae monte de merda que os assaltantes deixam no lugar do crime parece significar ambas as coisas o escárnio e a reparação expressa de modo regressivo Sempre que um estágio mais alto é atingido o anterior ainda pode encontrar utilização em sen tido negativo e rebaixado A repressão ach a expressão na antítese37 Num estágio posterior do desenvolvimento sexual as fezes adquirem o sig nificado de bebê Pois o bebê nasce pelo ânus como as fezes A significação do excremento como presente admite com facilidade essa transformação A 72311 criança é designada como um presente na linguagem comum dizse com frequência que a mulher deu um filho ao homem mas no uso do incon sciente é considerado igualmente com justiça o outro lado da relação que a mulher recebeu o filho como presente do homem A significação do excremento como dinheiro deriva do significado de presente indo em outra direção A antiga lembrança encobridora de nosso doente segundo a qual ele produziu o primeiro ataque de fúria porque não tinha recebido presentes bastantes no Natal revela agora o seu sentido mais profundo Aquilo de que ele sentia falta era a satisfação sexual que apreendera como anal Antes do sonho a sua pesquisa sexual estava preparada para saber e no curso do sonho havia chegado a compreender que o ato sexual resolvia o enigma da pro cedência dos bebês Já antes do sonho ele não gostava de bebês Certa vez en controu um filhote de pássaro ainda sem penas que caíra do ninho tomouo por um pequenino ser humano e se horrorizou com ele A análise demonstrou que todos os pequenos bichos insetos lagartas em que descarregava sua fúria haviam tido o significado de bebês para ele38 Sua ligação com a irmã mais velha lhe dera oportunidade de refletir muito sobre a relação das crianças mais velhas com as mais novas quando a Nânia lhe disse uma vez que a mãe o amava tanto porque era o menor teve um motivo palpável para desejar que nenhum filho mais novo o sucedesse O medo desse novo bebê foi então rean imado sob a influência do sonho que a união sexual dos pais lhe apresentou Devemos então agregar uma nova corrente sexual às que já conhecemos uma que como as outras nasce da cena primária reproduzida no sonho Na identificação com a mulher a mãe ele está disposto a presentear o pai com um filho e tem ciúmes da mãe que já fez isso e talvez o faça de novo Pelo rodeio através do ponto de confluência que é a significação de presente o dinheiro pode revestir a significação de criança e dessa forma to mar para si a expressão da satisfação feminina homossexual Esse processo efetuouse em nosso paciente quando viu certa vez num tempo em que os 73311 dois irmãos estavam numa casa de saúde alemã o pai dar duas grandes notas de dinheiro à irmã Em sua fantasia ele sempre suspeitara do pai com a irmã naquele instante seu ciúme despertou ele precipitouse sobre a irmã quando estavam sós e exigiu sua parte do dinheiro com tal arrebatamento e tais re criminações que ela lhe jogou tudo chorando Não tinha sido apenas o din heiro real que o irritara mas antes de tudo a criança a satisfação sexual anal pelo pai Com esta ele pôde então se consolar quando o pai ainda vivo morreu a irmã Seu pensamento revoltante à notícia da morte da irmã não significava outra coisa senão Agora sou o único filho agora o pai deve gostar apenas de mim Esta reflexão perfeitamente suscetível de chegar à consciência tinha porém um fundo homossexual tão intolerável que o seu travestimento em sórdida avareza foi tornado possível como um grande alívio Algo parecido ocorreu depois da morte do pai quando ele fez aquelas in justas recriminações à mãe de que ela queria fraudarlhe o dinheiro de que amava mais ao dinheiro que a ele O velho ciúme de ela ter amado outro filho além dele a possibilidade de haver desejado outro filho depois dele arrastavamno a incriminações cuja impropriedade ele mesmo reconhecia Esta análise da significação das fezes nos torna claro agora que os pensamentos obsessivos que o levavam a estabelecer relação entre Deus e ex cremento significavam ainda outra coisa além da injúria que ele percebia neles Eram autênticos produtos de compromisso nos quais participavam tanto uma corrente terna dedicada como uma outra hostil insultuosa Deusfezes GottKot era provavelmente a abreviação de um oferecimento que também se ouve na vida diária em forma não abreviada Cagar em Deus cagar uma coisa para Deus auf Gott scheißen Gott etwas scheißen significa também dar a Ele de presente um filho fazer Ele dar de presente um filho A velha signi ficação de presente negativamente rebaixada e a significação de criança de pois desenvolvida a partir dela se acham combinadas nos termos obsessivos Na última se exprime uma ternura feminina a disposição de renunciar à pró pria masculinidade se em troca puder ser amado como mulher Ou seja o 74311 mesmo sentimento em relação a Deus que é expresso em termos inequívocos no sistema delirante do paranoico desembargador Schreber Quando eu relatar a última resolução de sintoma de meu paciente mais uma vez se mostrará como o distúrbio no intestino se havia colocado a serviço da corrente homossexual e expressado a atitude feminina para com o pai Um novo significado do excremento deve agora nos abrir o caminho para uma dis cussão do complexo ligado à castração Na medida em que estimula a mucosa intestinal erógena a coluna de excre mento tem o papel de um órgão ativo dentro dela comportase como o pênis em relação à mucosa vaginal e tornase como que a precursora dele no período da cloaca A entrega do excremento em favor por amor de alguém se torna por sua vez o modelo da castração é o primeiro caso da renúncia a um pedaço do próprio corpo39 para ganhar o favor de alguém que se ama De modo que o amor ao próprio pênis narcísico em outros aspectos não dispensa uma con tribuição do erotismo anal O excremento a criança e o pênis formam portanto uma unidade um conceito inconsciente sit venia verbo com permissão da palavra o do pequeno separável do corpo Por essas vias de ligação po dem se efetuar deslocamentos e intensificações do investimento libidinal que têm importância para a patologia e que são desvendados pela análise Já nos é conhecida a atitude inicial do paciente para com o problema da cas tração Ele a rejeitou e se ateve ao ponto de vista da união pelo ânus Ao dizer que a rejeitou o significado imediato da expressão é que não quis saber dela no sentido de que a reprimiu Com isso não se pronunciava um juízo sobre a sua existência mas era como se não existisse Mas essa postura não podia ser a definitiva nem mesmo no período de sua neurose infantil Depois se encon tram boas provas de que ele havia reconhecido a castração como um fato Também nesse ponto ele se comportou como era peculiar à sua natureza o que nos dificulta extraordinariamente a exposição e a empatia Primeiro ele se re belou e depois cedeu mas uma reação não suprimiu a outra Afinal coexistiam nele duas correntes opostas das quais uma abominava a castração e a outra se 75311 dispunha a aceitála e consolarse com a feminilidade como substituto A ter ceira a mais antiga e profunda que simplesmente rejeitara a castração em que o juízo sobre a sua realidade não chegou à consideração ainda podia certa mente ser ativada Desse mesmo paciente eu já comuniquei em outro lugar40 uma alucinação que teve aos cinco anos de idade à qual apenas aditarei aqui um breve comentário Quando eu tinha cinco anos de idade brincava no jardim ao lado de minha babá e com meu canivete fazia um corte na casca de uma das nogueiras41 que também aparecem no meu sonho42 De repente notei com terror indizível que havia cortado o dedo mínimo da mão direita ou es querda de forma que ele estava preso somente pela pele Não sentia nen huma dor mas uma grande angústia Não me atrevi a dizer nada à babá que estava a poucos passos de distância caí sobre o banco mais próximo e lá fiquei sentado incapaz de olhar uma vez mais para o dedo Finalmente me tranquilizei dei uma olhada no dedo e vi que estava ileso Sabemos que aos quatro anos e meio após a instrução na História Sagrada nele teve início aquele intenso trabalho de pensamento que resultou na de voção religiosa obsessiva Podemos então supor que essa alucinação é do per íodo em que ele se decidiu pelo reconhecimento da realidade da castração e que ela talvez marcasse justamente esse passo Também a pequena correção do paciente é de interesse Se ele alucinou a mesma experiência apavorante que Tasso nos conta de seu herói Tancredo em Jerusalém libertada é justificável a interpretação de que também para meu pequeno paciente a árvore significava uma mulher Nisso ele desempenhou então o papel do pai e estabeleceu re lação entre as hemorragias da mãe que conhecia e a castração das mulheres por ele reconhecida a ferida O estímulo para a alucinação do dedo cortado lhe foi dado como ele re latou depois pela história de um parente nascido com seis dedos no pé que teve o membro excedente retirado com um machado Então as mulheres não tinham pênis porque lhes era tirado ao nascer Por esse caminho ele aceitou na 76311 época da neurose obsessiva o que já tinha aprendido no decorrer do sonho e ao mesmo tempo afastado pela repressão Também a circuncisão ritual de Cristo como dos judeus em geral deve ter chegado ao seu conhecimento durante a leitura da história sagrada e as conversas sobre ela É indubitável que por essa época o pai se tornou a figura aterradora que ameaça castrar O Deus cruel com o qual lutava então que deixa os homens se tornarem culpados para depois castigálos que sacrifica seu próprio filho e os filhos dos homens projetava seu caráter de volta sobre o pai que ele por outro lado buscava defender contra esse Deus Nesse ponto o menino tem um esquema filogenético a cumprir e chega a realizálo ainda que suas vivências pessoais não harmonizem com ele As ameaças ou alusões à castração que ele experimentou haviam partido de mulheres43 mas isso talvez não adiasse por muito tempo o resultado final Foi mesmo do pai que ele temeu por fim a cas tração Aqui a hereditariedade prevaleceu sobre as vivências acidentais na préhistória da humanidade foi certamente o pai que praticou a castração como punição e depois a mitigou reduzindoa à circuncisão Quanto mais longe ele foi na repressão da sensualidade44 no curso do processo da neurose obsessiva tanto mais natural deve ter se tornado para ele revestir o pai o autêntico rep resentante da atividade sensual de tais intenções más A identificação do pai com o castrador45 foi significativa como fonte de in tensa hostilidade inconsciente a ele elevada até o desejo de morte e também dos sentimentos de culpa que a ela reagiam Até aqui ele se comportava nor malmente isto é como todo neurótico possuído de um complexo de Édipo positivo O curioso é que também havia nele uma contracorrente em que o pai era antes o castrado e como tal provocava sua compaixão Na análise do cerimonial da respiração ao avistar mendigos aleijados etc pude mostrar que também esse sintoma remontava ao pai do qual ele sentira pena ao visitálo doente no sanatório A análise permitiu acompanhar esse fio ainda mais longe Num período bem cedo provavelmente antes da sedução aos três anos e meio havia na propriedade um pobre diarista que tinha a 77311 tarefa de transportar a água para a casa Ele não podia falar supostamente porque lhe haviam cortado a língua Era provavelmente um surdomudo O pequeno gostava muito dele e o lamentava de coração Quando ele morreu procuravao no céu46 Esse foi portanto o primeiro aleijado do qual ele se compadeceu segundo o contexto e o momento em que surgiu na análise era sem dúvida um substituto do pai A análise associou a ele a recordação de outros serventes que eram simpáti cos ao paciente a respeito dos quais ele destacou que eram adoentados ou judeus circuncisão Também o criado que o ajudou a se limpar depois do infortúnio aos quatro anos e meio era um judeu e tuberculoso e gozava de sua compaixão Todas essas pessoas pertencem à época anterior à visita ao pai no sanatório ou seja antes da formação do sintoma que devia sobretudo at ravés da expiração manter afastada a identificação com os que lamentava A análise então recuou subitamente para a préhistória em conexão com um sonho e o fez produzir a afirmação de que no coito da cena primária havia ob servado o desaparecimento do pênis se compadecido do pai por aquilo e se alegrado com a reaparição do que acreditara perdido Portanto um novo im pulso emocional que mais uma vez partia dessa cena A origem narcisista da compaixão que a própria palavra testemunha é aliás inconfundível nesse ponto VIII COMPLEMENTOS AO PERÍODO PRIMORDIAL SOLUÇÃO Em muitas análises acontece quando nos aproximamos do final que repentin amente emerge um novo material de recordação que até então foi mantido cuidadosamente oculto Ou é feita uma observação singela em tom indifer ente como se fosse algo supérfluo à qual se junta em outra ocasião algo que 78311 faz o médico aguçar os ouvidos e afinal se reconhece naquela menosprezada migalha de recordação a chave para os mais importantes segredos que a neur ose do doente envolvia Já no início meu paciente havia contado uma lembrança do tempo em que sua conduta malcriada costumava reverter em angústia Ele seguia uma bor boleta bela e grande com listas amarelas cujas grandes asas terminavam em apêndices pontudos uma papilio machaon portanto De repente o acomet eu quando a borboleta havia pousado numa flor um medo aterrador do anim al e ele fugiu gritando Essa recordação voltava de tempos em tempos à análise e exigia uma ex plicação o que por muito tempo não teve No entanto desde logo era de supor que tal pormenor não mantivera apenas por si um lugar na memória mas como lembrança encobridora representava algo mais importante com o qual se ligava de algum modo Um dia ele falou que borboleta em sua língua é bábuchka velha mãezinha as borboletas lhe pareciam mulheres e meni nas e os besouros e lagartas meninos Logo naquela cena angustiante devia ser despertada a recordação de um ser feminino Não esconderei que sugeri então a possibilidade de que as listas amarelas da borboleta tivessem lembrado listas semelhantes de uma roupa vestida por uma mulher Digo isso apenas para mostrar mediante um exemplo como em geral é insuficiente a iniciativa do médico para a solução das questões levantadas como é injusto responsabil izar a fantasia e a sugestão do médico pelos resultados da análise Num contexto bem diferente alguns meses depois o paciente fez a obser vação de que o abrir e fechar das asas da borboleta quando ela estava pousada havia produzido nele a impressão inquietante Tinha sido como uma mulher ao abrir as pernas disse ele as pernas fazendo a figura de um v romano a hora em que como sabemos já no seu tempo de menino mas ainda então cos tumava sobrevir um entristecimento de seu ânimo 79311 Era uma ideia que eu jamais teria mas que adquiria valor pela consideração de que o processo associativo que desnudava tinha um caráter bastante infantil A atenção das crianças já notei com frequência é atraída muito mais por mo vimentos que por formas em repouso e frequentemente elas produzem asso ciações com base na semelhança de movimento que nós adultos negligen ciamos ou ignoramos Depois disso o pequeno problema descansou por algum tempo Quero mencionar também a fácil conjectura de que os apêndices das asas da bor boleta pontudos ou em forma de bastão poderiam ter o significado de símbo los genitais Um dia emergiu de modo vago e tímido uma espécie de lembrança de que bem cedo ainda antes da babá teria havido uma menina babá que o amava muito Ela tinha o mesmo nome que sua mãe Certamente ele retribuía sua ternura Um primeiro amor esquecido portanto Mas concordamos em que devia ter acontecido algo que depois teria importância Em outra ocasião ele corrigiu sua lembrança Ela não podia ter o mesmo nome que a mãe isso tinha sido um erro dele que naturalmente mostrava que na sua recordação ela se fundira com a mãe O nome certo lhe ocorreu por um rodeio Subitamente teve de pensar num depósito que havia na primeira pro priedade em que eram conservadas as frutas colhidas e numa determinada es pécie de pera de extraordinário sabor grandes peras com listas amarelas na casca Em sua língua materna pera se diz grucha e esse era também o nome da garota Então se tornou claro que por trás da lembrança encobridora da borboleta encontrada se escondia a memória da menina babá As listas amarelas não es tavam em seu vestido porém mas na pera que era seu nome E de onde vinha a angústia na ativação da lembrança A relação mais próxima tosca seria que nessa garota ele viu pela primeira vez ainda quando bebê os movimentos das pernas que guardou com o sinal do v romano movimentos que permitem 80311 acesso aos genitais Nós nos poupamos de fazer essa relação e esperamos por mais material Logo depois veio a lembrança de uma cena incompleta mas definida no que dela se conservava Grucha estava no chão junto a ela um balde e uma vassoura curta de varetas atadas ele estava presente ela o provocava ou repreendia O que nela faltava podia ser facilmente introduzido de outros lugares Nos primeiros meses da terapia ele havia relatado uma súbita paixão compulsiva por uma menina camponesa da qual havia pegado aos dezoito anos o que viria a ocasionar sua doença Naquele momento ele se recusou de modo os tensivo a comunicar o nome da garota Foi uma resistência inteiramente isol ada fora isso ele obedecia sem reservas à regra fundamental da análise Mas afirmava ter vergonha de revelar esse nome por ele ser bem camponês uma garota mais distinta não o teria O nome que finalmente descobri era Mat rona Tinha ressonância materna A vergonha estava claramente fora de lugar Ele se envergonhava apenas do nome não do fato de se apaixonar exclusiva mente por garotas da mais baixa condição Se a aventura com Matrona tivesse algo em comum com a cena de Grucha então a vergonha devia ser transferida para esse episódio anterior Uma outra vez ele relatou que ao saber da história de João Huss ficara bastante comovido e sua atenção se deteve nos feixes de lenha que as pessoas arrastavam para a fogueira A simpatia por Huss nos desperta uma suspeita bem definida encontreia com frequência em pacientes jovens e sempre pude esclarecêla da mesma forma Um deles produziu até mesmo uma versão dramática do destino de Huss começou a escrevêla no dia em que perdeu o objeto da paixão que mantinha em segredo Huss morreu no fogo como out ros nas mesmas condições tornouse o herói dos que já sofreram de enurese O próprio paciente relacionou os feixes de lenha da fogueira de Huss com a vassoura feixe de varetas da babá 81311 Esse material se combinou de modo espontâneo para preencher as lacunas na lembrança da cena com Grucha Ele havia urinado no chão ao ver a garota fazendo a limpeza e a isso ela respondera certamente brincando com uma ameaça de castração47 Não sei se os leitores já adivinham por que relatei de modo tão detalhado esse episódio da primeira infância48 Ele estabelece uma importante ligação entre a cena primária e a posterior compulsão amorosa que se tornou tão deci siva para o destino do paciente e além disso introduz uma condição de amor que esclarece tal compulsão Ao ver a garota no chão ocupada em laválo ajoelhada as nádegas pro jetadas o dorso em linha horizontal ele encontrou nela a mesma posição que a mãe adotara na cena do coito Ela se tornou para ele a mãe foi tomado de ex citação sexual pela ativação daquela imagem49 e comportouse masculina mente para com ela tal como o pai cuja ação naquele tempo ele só podia en tender como uma micção Seu ato de urinar sobre o chão era na verdade uma tentativa de sedução e a garota reagiu com uma ameaça de castração como se o tivesse entendido A compulsão que partia da cena primária se transferiu para esta cena com Grucha e continuou agindo por meio dela Mas a condição para o amor sofreu uma mudança que testemunha a influência da segunda cena ela se transferiu da posição da mulher para a sua atividade nessa posição Isso ficou claro por exemplo na experiência com Matrona Ele fazia um passeio na aldeia que per tencia à propriedade a última quando viu uma garota camponesa à beira do pequeno lago ajoelhada lavando roupas Apaixonouse por ela instantanea mente e com irresistível impetuosidade embora não pudesse ver ainda o seu rosto Pela postura e ocupação ela tomara o lugar de Grucha para ele Agora entendemos como a vergonha que se referia ao conteúdo da cena com Grucha podia se ligar ao nome de Matrona Outro acesso de paixão alguns anos antes mostra ainda mais nitidamente a influência coerciva da cena de Grucha Há muito lhe agradava uma jovem 82311 camponesa que prestava serviços à casa mas ele conseguia não se aproximar dela Um dia foi arrebatado pela paixão ao encontrála sozinha num cômodo Deu com ela ajoelhada no chão ocupada na limpeza o balde e a vassoura ao lado exatamente como a garota de sua infância Mesmo sua escolha de objeto definitiva que se tornou tão importante para a sua vida revelase pelas circunstâncias imediatas que não cabem aqui de pendente da mesma condição de amor como um rebento da compulsão que desde a cena primária e através da cena com Grucha dominou sua escolha amorosa Já observei numa passagem anterior que noto no paciente um em penho em rebaixar o objeto amoroso Isso deve ser referido à reação contra a pressão da irmã que lhe era superior Mas eu então prometi mostrar p32 que esse motivo de natureza soberana não foi o único decisivo e que na verdade esconde uma determinação mais profunda de motivos puramente eróticos A lembrança da babá menina que limpava o chão em posição rebaixada sem dúvida trouxe à luz essa motivação Todos os objetos amorosos posteriores eram pessoas substitutas dela que havia se tornado o primeiro substituto da mãe pelo acaso da situação O primeiro pensamento que ocorreu ao paciente sobre o problema da angústia ante a borboleta pode ser facilmente recon hecido a posteriori como alusão remota à cena primária a quinta hora A re lação entre a cena de Grucha e a ameaça de castração foi confirmada por um sonho particularmente rico de sentido que ele mesmo soube traduzir Ele disse Sonhei que um homem arrancava as asas de uma Espe Espe per guntei o que você quer dizer com isso Ora o inseto com listas amare las no corpo que pode picar Deve ser uma alusão à Grucha a pera de listas amarelas Wespe vespa você quer dizer corrigi O nome é Wespe Pensei que era Espe Como muitos outros ele se aproveita do fato de falar uma língua estrangeira para cobrir atos sintomáticos Mas Espe sou eu S P as iniciais de seu nome A Espe é naturalmente uma Wespe 83311 mutilada O sonho diz claramente que ele se vingava de Grucha pela ameaça de castração A ação do menino de dois anos e meio na cena com Grucha é o primeiro efeito da cena primária que chegamos a conhecer ela o apresenta como cópia do pai e nos permite reconhecer uma tendência a desenvolverse na direção que depois merecerá o nome de masculina Pela sedução ele é empurrado a uma passividade que sem dúvida já é preparada por seu comportamento de es pectador do enlace entre os pais Ainda devo destacar na história do tratamento que após a assimilação da cena de Grucha da primeira vivência de que ele podia realmente se lembrar e da qual se lembrou sem minhas conjecturas e intervenções tinhase a im pressão de que a tarefa da terapia estava cumprida A partir de então não havia mais resistência bastava apenas reunir e compor A velha teoria do trauma que afinal se baseava em impressões da prática psicanalítica retornou subita mente à vigência Por interesse crítico ainda uma vez fiz a tentativa de impor ao paciente uma outra concepção de sua história uma que fosse mais bem vinda ao senso comum Da cena com Grucha não haveria o que duvidar mas em si ela nada significaria e teria sido reforçada depois por regressão pelos eventos da sua escolha de objeto que devido à tendência ao rebaixamento pas sara da irmã para as criadas A observação do coito porém seria uma fantasia de seus anos adultos cujo cerne histórico poderia ter sido a observação ou a vivência de uma inocente lavagem Talvez alguns leitores achem que somente com essas hipóteses eu teria me aproximado de uma compreensão do caso o paciente me olhou perplexo e um tanto desdenhoso quando lhe expus essa con cepção e nunca mais reagiu a ela Meus próprios argumentos contra uma tal racionalização já os desenvolvi acima no cap v A cena de Grucha não contém apenas as condições de escolha do objeto decisivas para a vida do paciente guardandonos assim do erro de superestim ar a significação da tendência ao rebaixamento da mulher Ela também pode 84311 me justificar quando me recusei a referir sem qualquer hesitação a cena primária a uma observação de animais feita pouco antes do sonho como se fosse a única solução possível p 81 Ela emergiu na recordação do paciente de modo espontâneo e sem minha intervenção A angústia ante a borboleta de listas amarelas que a ela remontava demonstrou que ela tivera um conteúdo significativo ou que se tornara possível dotar retrospectivamente esse con teúdo de tal significação Esse algo significativo que faltava na recordação podia seguramente ser obtido mediante os pensamentos espontâneos que com ela vinham e as conclusões que a ela se ligavam Verificouse então que o medo da borboleta era inteiramente análogo ao medo do lobo em ambos os casos medo da castração inicialmente relacionado à pessoa que primeiro havia proferido a ameaça depois transferido para a outra na qual tinha de se fixar de acordo com o modelo filogenético A cena com Grucha ocorrera aos dois anos e meio mas a vivência angustiante com a borboleta amarela certamente de pois do sonho angustiante Era fácil entender que a compreensão posterior da possibilidade de castração desenvolvera a angústia a posteriori na cena com Grucha mas a cena mesma não continha nada de chocante ou inverossímil e sim pormenores absolutamente banais de que não havia razões para duvidar Nada convidava a referilos a uma fantasia da criança e tampouco isso parece possível Surge agora a questão de se estamos autorizados a ver uma prova da excit ação sexual do menino no fato de ele urinar estando de pé enquanto a garota ajoelhada limpa o chão Esta excitação testemunharia então a influência de uma impressão anterior que tanto poderia ser efetivamente a cena primária como uma observação de animais anterior aos dois anos e meio Ou aquela situação foi inteiramente inofensiva a micção do menino puramente casual e toda a cena foi sexualizada somente mais tarde na recordação depois que situ ações semelhantes foram reconhecidas como plenas de sentido 85311 Não ouso tomar uma decisão neste ponto Devo dizer que já tenho em alta conta a psicanálise por haver chegado a colocar essas questões Mas não posso negar que a cena com Grucha o papel que lhe coube na análise e os efeitos que dela procederam na vida explicamse do modo mais natural e mais completo se admitirmos a cena primária que em outros casos pode ser uma fantasia como realidade neste caso Ela nada afirma de impossível no fundo a suposição de sua realidade condiz inteiramente com a influência estimulante da observação de animais indicada pelos cães pastores da imagem onírica Dessa conclusão insatisfatória passo para a questão que procurei tratar nas Conferências introdutórias à psicanálise Eu mesmo gostaria de saber se a cena primária de meu paciente era fantasia ou vivência real mas considerando out ros casos análogos é preciso dizer que na verdade não tem mais importância responder a isso As cenas de observação do ato sexual entre os pais de se dução na infância e de ameaça de castração são indubitavelmente patrimônio herdado herança filogenética mas podem também ser aquisição da vivência individual Em meu paciente a sedução pela irmã mais velha era uma realidade indiscutível por que não igualmente a observação do coito dos pais O que vemos na história primitiva da neurose é que a criança recorre a essa vivência filogenética quando sua própria vivência não basta Ela preenche as lacunas da verdade individual com verdade préhistórica põe a experiência dos ancestrais no lugar da própria experiência No reconhecimento dessa her ança filogenética estou inteiramente de acordo com Jung A psicologia dos pro cessos inconscientes de 1917 uma obra que já não podia influenciar as minhas Conferências mas considero um erro de método recorrer a uma explicação da filogênese antes de esgotar as possibilidades da ontogênese não vejo razão para obstinadamente negar à préhistória infantil a importância que de boa vontade se concede à préhistória ancestral não posso ignorar que os motivos e produções filogenéticos carecem eles mesmos de elucidação que em toda uma série de casos pode vir da infância individual e por fim não me 86311 surpreendo se a manutenção das mesmas condições fizer ressurgir organica mente no indivíduo o que elas criaram em tempos préhistóricos e deixaram como predisposição para a reaquisição No intervalo entre a cena primária e a sedução um ano e meio três anos e três meses deve ser incluído o mudo carregador de água que para ele foi um substituto do pai tal como Grucha foi uma substituta da mãe Não creio ser justificado falar de uma tendência ao rebaixamento ainda que ambos os pais se achem representados por serventes A criança não faz caso das diferenças soci ais que ainda significam pouco para ela e alinha pessoas de menor condição ao lado dos pais quando lhe trazem amor de modo semelhante aos pais Essa tendência tem igualmente pouca importância na substituição dos pais por ani mais que estão longe de serem menosprezados por crianças Sem consideração por esse rebaixamento tios e tias são tomados como substitutos dos pais como várias recordações testemunharam também a respeito de nosso paciente À mesma época pertence também a obscura notícia de uma fase em que ele queria comer apenas guloseimas a tal ponto que se chegou a temer por sua sobrevivência Contaramlhe de um tio que também havia recusado a comida e por isso morrera jovem de consumição Ele também soube que na idade de três meses havia estado tão doente de uma infecção pulmonar que já tin ham pronta a sua mortalha Conseguiram amedrontálo de tal forma que ele voltou a comer nos últimos anos da infância até exagerou essa obrigação como que para protegerse da morte ameaçada O medo da morte que lhe haviam despertado para sua proteção mostrouse novamente depois quando a mãe advertiu quanto ao perigo de disenteria ainda mais tarde ele provocou um ataque de neurose obsessiva p 92 Tentaremos rastrear suas origens e seus significados mais adiante Quanto ao distúrbio alimentar gostaria de reivindicar para ele o signific ado de uma primeiríssima neurose de modo que desordem alimentar fobia de lobos e devoção obsessiva formam a série completa das doenças infantis que 87311 trazem consigo a predisposição para a derrocada neurótica nos anos após a pu berdade Ouvirei a objeção de que poucas crianças escapam a perturbações como uma falta de apetite passageira ou uma fobia de animal Mas esse argu mento me é bemvindo Estou pronto para afirmar que toda neurose de um adulto se constrói sobre sua neurose infantil mas esta nem sempre é intensa o bastante para se fazer notar e ser reconhecida como tal A objeção vem apenas realçar a importância teórica das neuroses infantis para a apreensão das doenças que tratamos como neuroses e procuramos derivar somente das in fluências da vida adulta Se o nosso paciente não juntasse à desordem aliment ar e à fobia de animal também a devoção obsessiva sua história não se distin guiria notavelmente da de outros mortais e nós estaríamos privados de materi ais valiosos que nos podem guardar de alguns erros naturais A análise seria insatisfatória se não levasse à compreensão do lamento com que o paciente resumia o seu sofrer Dizia que para ele o mundo era oculto por um véu e o treino psicanalítico afasta a expectativa de que essas palavras sejam destituídas de significado e escolhidas ao acaso O véu se rompia curi osamente apenas numa situação quando após uma lavagem as fezes pas savam pelo ânus Então ele se sentia bem de novo e por um breve instante via claramente o mundo A interpretação desse véu foi tão difícil como a da an gústia frente à borboleta Além disso ele não se apegou ao véu este se volatizou depois em sentimento crepuscular tenèbres e outras coisas impalpáveis Apenas pouco antes de deixar o tratamento ele se recordou de haver escut ado que nascera com uma pelica Glückshaube Por isso ele se considerou sempre um menino de sorte Glückskind ao qual nada de ruim poderia su ceder Tal confiança o abandonou apenas quando teve de reconhecer na in fecção gonorreica um sério dano ao seu corpo Ante essa injúria ao seu nar cisismo ele desmoronou Diremos que ele repetiu desse modo um mecanismo que nele já havia funcionado uma vez Também a sua fobia de lobos irrompeu 88311 quando ele se achou ante o fato de que a castração era possível e claramente situou a gonorreia na mesma linha da castração A pelica era então o véu que ocultava dele o mundo e o mundo a ele Seu lamento é na verdade uma fantasiadesejo realizada ela o mostra de retorno ao ventre materno é certamente uma fantasia de fuga do mundo Devese traduzila desta forma Sou tão infeliz na vida tenho que voltar ao seio materno Mas o que pode significar o fato de esse véu simbólico que uma vez foi real romperse no momento da evacuação após um clister e de nessas con dições a doença abandonálo O contexto nos permite responder se o véu de nascimento se rompe ele enxerga o mundo e renasce O excremento é a cri ança e como tal ele nasce pela segunda vez para uma vida mais feliz Esta ser ia então a fantasia de renascimento para a qual Jung chamou a atenção re centemente e à qual atribuiu posição dominante na vida de desejos dos neuróticos Seria belo se fosse tudo Mas certos pormenores da situação e a consider ação dos necessários nexos com esta particular história de vida nos obrigam a levar a interpretação mais à frente A condição para o renascimento é que um homem lhe aplique o clister somente depois ele precisou tomar o lugar desse homem Isso só pode significar que ele se identificou com a mãe que o homem faz o papel do pai o clister repete o ato de acasalamento como fruto do qual a criançaexcremento novamente ele vem ao mundo A fantasia de renascimento se acha então estreitamente ligada à condição da satisfação sexual pelo homem Então a tradução agora seria apenas se ele puder sub stituir a mulher tomar o lugar da mãe para se deixar satisfazer pelo pai e lhe gerar um filho a sua doença o abandona Portanto a fantasia de renascimento era apenas a reprodução mutilada censurada da fantasiadesejo homossexual Se olharmos mais detidamente haveremos de notar que o doente nessa condição para sua cura apenas repete a situação da chamada cena primária naquele momento ele queria se pôr no lugar da mãe a criançaexcremento 89311 como há muito supomos ele mesmo a produziu naquela cena Ele continua ainda fixado como que enfeitiçado na cena que se tornou decisiva para sua vida sexual e cujo retorno naquela noite do sonho inaugurou sua doença O romper do véu é análogo ao abrir dos olhos ao escancarar das janelas A cena primária foi remodelada em condição para a cura O que foi expresso no lamento por um lado e na única condição que o suprimia por outro podese facilmente juntar numa unidade que revela então todo o seu sentido Ele deseja estar de volta ao ventre materno não para então renascer simplesmente mas para ali dentro ser atingido pelo pai no coito dele obter a satisfação gerar um filho dele Ter nascido do pai como inicialmente havia acreditado ser sexualmente satisfeito por ele darlhe um filho de presente isso à custa de sua masculinid ade e expresso na linguagem do erotismo anal com esses desejos completou se o círculo da fixação no pai com isso a homossexualidade encontrou sua mais alta e mais íntima expressão50 Creio que esse exemplo lança também alguma luz sobre o sentido e a ori gem das fantasias do ventre materno e do renascimento A primeira resulta fre quentemente como em nosso caso da ligação com o pai Desejase estar no corpo da mãe para substituíla no coito assumir o lugar dela junto ao pai Quanto à fantasia de renascimento é provável que seja via de regra uma aten uação um eufemismo por assim dizer para a fantasia da união incestuosa com a mãe uma abreviação anagógica da mesma para usar a expressão de H Silberer Desejase voltar à situação em que se estava nos genitais da mãe nisso o homem se identifica com o pênis fazse representar por ele Então as duas fantasias se revelam como contrapartida uma da outra exprimindo o desejo de união sexual com o pai ou a mãe conforme a atitude feminina ou masculina da pessoa Não se deve excluir a possibilidade de que no lamento e na condição de cura do nosso paciente se unam ambas as fantasias e igual mente os dois desejos de incesto portanto 90311 Farei ainda uma vez a tentativa de reinterpretar os últimos resultados da análise de acordo com o modelo adversário O paciente lamenta a sua fuga do mundo em uma típica fantasia do ventre materno só consegue divisar sua cura num renascimento tipicamente concebido Este último ele exprime em sinto mas anais correspondendo à predisposição nele dominante Segundo o mode lo da fantasia anal de renascimento ele compôs uma cena infantil que repete os seus desejos com meios de expressão arcaicosimbólicos Seus sintomas então se encadeiam como se partissem de uma tal cena primária Ele teve que se de cidir a refazer esse caminho de volta porque deparou com uma tarefa vital que era demasiado preguiçoso para resolver ou porque tinha todas as razões para desconfiar de suas inferioridades e com tais medidas acreditava se proteger melhor do menosprezo Isso tudo seria muito bom se aos quatro anos o infeliz já não tivesse tido um sonho que marcou o início de sua neurose que foi incitado pela história do alfaiate e do lobo contada pelo avô e cuja interpretação faz necessária a suposição de uma tal cena primária Ante esses fatos pequeninos mas inatacá veis fracassam infelizmente as mitigações que as teorias de Jung e Adler nos querem proporcionar Tal como se dispõem as coisas a fantasia de renasci mento me parece antes um derivado da cena primária do que esta pelo con trário um reflexo da fantasia de renascimento E talvez nos seja permitido supor que naquele tempo quatro anos depois de nascido o paciente era ainda jovem demais para desejar um renascimento Mas este último argumento eu devo retirar pois minhas próprias observações vêm demonstrar que as cri anças foram subestimadas e que já não sabemos mais o que é possível esperar delas51 IX RESUMOS E PROBLEMAS 91311 Não sei se o leitor deste relato de uma análise conseguiu formar uma imagem nítida da gênese e evolução da doença de meu paciente Receio que isso não tenha ocorrido Mas ainda que não costume defender minha arte expositiva desta vez quero alegar circunstâncias atenuantes É uma tarefa que nunca se empreendeu até agora introduzir na descrição fases tão antigas e camadas tão profundas da vida anímica e é melhor resolvêla mal do que encetar a fuga di ante dela o que além disso pode envolver certos perigos para o timorato Então é preferível mostrar de maneira ousada que não nos deixamos deter pela consciência de nossas inferioridades O caso não era particularmente propício O que possibilitou a riqueza de informações sobre a infância o fato de que pudemos estudar a criança pela me diação do adulto teve que ser obtido à custa de uma péssima fragmentação da análise e correspondentes defeitos de exposição Particularidades pessoais e um caráter nacional estranho ao nosso tornaram mais trabalhosa a empatia A distância entre a personalidade amável e afável do doente sua aguda inteligên cia nobre maneira de pensar e sua vida instintual completamente indômita tornavam necessário um bem longo trabalho de educação e preparação o que dificultou a visão do conjunto Mas o paciente mesmo não teve nenhuma culpa da característica do caso que colocou os mais árduos problemas à descrição Na psicologia do adulto chegamos felizmente ao ponto de dividir os processos psíquicos em conscientes e inconscientes descrevendoos em palavras claras Na criança essa distinção não nos leva muito longe Com frequência é em baraçoso dizer o que deveríamos qualificar de consciente e de inconsciente Processos que se tornaram dominantes e que segundo seu comportamento posterior teriam de ser equiparados aos conscientes não chegaram a se tornar conscientes na criança porém Podese facilmente compreender por que na criança o consciente ainda não ganhou todas as suas características ainda está em desenvolvimento e não possui totalmente a capacidade de converterse em representações verbais A confusão da qual normalmente somos culpados entre o fenômeno do surgimento na consciência como percepção e a 92311 pertinência a um sistema psíquico suposto a que deveríamos dar um nome convencionado mas que igualmente chamamos de consciência sistema Cs esta confusão é inofensiva na descrição psicológica do adulto mas enganadora na da criança pequena Também não ajudaria muito a introdução do précon sciente pois tampouco o préconsciente da criança corresponde necessaria mente ao do adulto Contentemonos então em reconhecer claramente a obscuridade É natural que um caso como este possa dar motivo para pôr em discussão todos os problemas e resultados da psicanálise Seria um trabalho interminável e não justificado É preciso admitir que não se pode saber tudo a partir de um único caso tudo decidir através dele e contentarse portanto em aproveitálo naquilo que mostra mais nitidamente Na psicanálise a tarefa da explicação tem limites estreitos Cabe explicar as formações sintomáticas notáveis des vendando a sua gênese os mecanismos psíquicos e processos instintuais a que assim chegamos esses não cabe explicar mas sim descrever Para obter novas generalizações a partir das constatações sobre os dois últimos pontos são ne cessários muitos casos como este analisados bem profundamente Não é fácil têlos cada qual exige anos de trabalho De modo que o progresso nesses domínios se efetua lentamente Haverá sem dúvida a tentação de contentarse em arranhar a superfície psíquica de um determinado número de pessoas e substituir o trabalho omitido por especulação que então é colocada sob o patrocínio de alguma corrente filosófica Podese também alegar necessidades práticas em favor desse comportamento mas as necessidades da ciência não se satisfazem com sucedâneos Tentarei esboçar um panorama sintético do desenvolvimento sexual de meu paciente começando com os primeiros indícios A primeira coisa que ouvimos dele é o distúrbio do apetite que de acordo com outras experiências mas com toda a reserva eu apreenderia como resultado de um processo no âmbito sexual Como primeira organização sexual reconhecível tive de consid erar aquela denominada canibal ou oral em que ainda domina a cena o fato de 93311 a excitação sexual apoiarse originalmente no instinto de alimentação Eßtrieb Não cabe esperar manifestações diretas dessa fase mas apenas indícios quando sobrevêm perturbações O dano ao instinto de alimentação que naturalmente pode ter outras causas nos leva a atentar para o fato de que o organismo não conseguiu dominar a excitação sexual A meta sexual dessa fase só poderia ser o canibalismo a devoração ela aparece em nosso paciente me diante a regressão de um estágio mais alto no medo de ser devorado pelo lobo Esse medo tivemos que traduzir assim ser possuído sexualmente pelo pai Sabese que em época bem mais adiantada em meninas que estão na pu berdade há uma neurose que exprime a recusa sexual mediante a anorexia é lícito estabelecer sua relação com essa fase oral da vida sexual No auge do paroxismo amoroso se eu pudesse te comeria de tanto amor e no trato carinhoso com crianças pequenas em que o próprio adulto tem gestos infantis surge novamente a meta amorosa da organização oral Em outra passagem for mulei a conjectura de que o pai de nosso paciente teria usado o insulto afetu oso teria brincado de lobo ou de cão com o pequeno e ameaçado comêlo de brincadeira p 46 Tal suposição foi confirmada pela singular conduta do pa ciente na transferência Toda vez que ante as dificuldades do tratamento ele se refugiava na transferência ameaçava com a devoração e depois com todos os maus tratos possíveis o que era apenas expressão de carinho A linguagem corrente guardou algumas marcas dessa fase sexual oral ela fala de um objeto de amor gostoso chama de doce à amada Recordamos que o nosso pequeno paciente só queria comer coisas doces Nos sonhos gulo seimas e bombons representam habitualmente carícias satisfações sexuais Parece que também a essa fase corresponde uma angústia em caso de dis túrbio naturalmente que aparece como angústia ante a morte e pode se ligar a tudo que é mostrado à criança como sendo apropriado Em nosso paciente ela foi usada para conduzilo à superação de sua falta de apetite e mesmo para a supercompensação desta Chegaremos à possível fonte de seu distúrbio 94311 alimentar se nos lembrarmos com base naquela discutida suposição que a observação do coito de que partiram tantos efeitos posteriores aconteceu na idade de um ano e meio seguramente antes da época das dificuldades aliment ares Talvez nos seja permitido supor que ela acelerou os processos de matur ação sexual e assim teve também efeitos diretos embora pouco evidentes Naturalmente também sei que se podem explicar os sintomas desse período o medo do lobo o distúrbio alimentar de maneira diferente mais simples sem referência à sexualidade e a um estágio de organização prégenital Quem neg ligencia de bom grado os sinais da neurose e o nexo dos fenômenos preferirá essa outra explicação e eu não poderei impedilo de fazer isso É difícil descobrir algo convincente a respeito dos primórdios da vida sexual se não for pelos rodeios mencionados A cena com Grucha por volta dos dois anos e meio mostra o nosso pequeno no início de seu desenvolvimento que merece a qualificação de nor mal exceto talvez na precocidade identificação com o pai erotismo uretral representando a masculinidade Encontrase inteiramente sob o influxo da cena primária A identificação com o pai apreendemos até agora como nar císica considerando o conteúdo da cena primária não podemos descartar que ela já corresponde ao estágio da organização genital O genital masculino começou a desempenhar seu papel e dá prosseguimento a ele sob a influência da sedução pela irmã Mas temos a impressão de que a sedução não apenas promove o desenvol vimento mas o perturba e desvia em grau ainda mais elevado Proporciona uma meta sexual passiva que é no fundo inconciliável com a ação do genital masculino No primeiro obstáculo externo a ameaça de castração da Nânia desmorona com três anos e meio a organização genital ainda receosa e reg ride ao estágio precedente o da organização sádicoanal que de outra forma talvez passasse com leves sinais como em outras crianças Na organização sádicoanal se reconhece facilmente uma continuação e desenvolvimento da oral A violenta atividade muscular sobre o objeto que a 95311 distingue tem seu lugar como ação preparatória para o comer que deixa de existir como meta sexual O ato preparatório se torna uma meta autônoma A novidade em relação ao estágio anterior consiste essencialmente em que o ór gão acolhedor passivo separado da zona bucal desenvolvese na zona anal Aqui se insinuam paralelos biológicos ou a concepção das organizações pré genitais humanas como resíduos de estruturas que são mantidas em algumas classes de animais É igualmente característica desse estágio a constituição do instinto de investigação Forschertrieb a partir de seus componentes O erotismo anal não se faz notar particularmente Sob influência do sad ismo o excremento trocou sua significação carinhosa pela ofensiva Na trans formação do sadismo em masoquismo intervém um sentimento de culpa que aponta para processos de desenvolvimento em outras esferas que não a sexual A sedução prolonga a sua influência na medida em que mantém a passivid ade da meta sexual Ela agora transforma uma boa porção do sadismo em sua contrapartida passiva o masoquismo É discutível que se possa imputar in teiramente à sedução a característica da passividade pois a reação do bebê de um ano e meio à observação do coito já era predominantemente passiva A co excitação sexual manifestouse numa evacuação na qual de todo modo há que distinguir também uma participação ativa Ao lado do masoquismo que domina a sua tendência sexual e se manifesta em fantasias também o sadismo continua a existir e se ocupa de pequenos animais Sua pesquisa sexual começou a partir da sedução atacando essencialmente dois problemas a ori gem dos bebês e a possibilidade de perder o órgão genital e entrelaçandose às manifestações de seus impulsos instintuais Ela dirige suas inclinações sádicas aos pequenos animais como representantes das crianças pequenas Conduzimos a descrição até a proximidade do quarto aniversário mo mento em que o sonho faz agir a posteriori a observação feita com um ano e meio do coito Os processos que então ocorrem não podemos apreender total mente nem descrever suficientemente A ativação da imagem que devido ao maior desenvolvimento intelectual pode ser entendida atua como um 96311 acontecimento fresco mas também como um novo trauma uma interferência alheia análoga à sedução A organização genital desmantelada é restabelecida de uma só vez mas o progresso efetuado no sonho não pode ser mantido Ocorre antes por um processo que podemos equiparar somente a uma repressão a rejeição da coisa nova e sua substituição por uma fobia Portanto a organização sádicoanal subsiste também na fase de fobia de an imal que então começa mas fenômenos de angústia se acham a ela mesclados A criança persiste nas ocupações sádicas e masoquistas porém reage com an gústia a uma parte delas a conversão do sadismo em seu oposto provavel mente continua Da análise do sonho angustiante concluímos que a repressão está ligada ao conhecimento da castração O novo é recusado porque sua aceitação custaria o pênis Uma reflexão mais cuidadosa permite reconhecer talvez o seguinte o que é reprimido é a atitude homossexual no sentido genital que se formara sob a influência do conhecimento Mas ela permanece então conservada con stituída como uma camada mais profunda e interditada O motor dessa repressão parece ser a masculinidade narcísica do genital que entra num con flito há muito preparado com a passividade da meta sexual homossexual A repressão é então consequência da masculinidade Nisso haveria a tentação de mudar uma parcela da teoria psicanalítica Pois se tem como óbvio que é do conflito entre tendências masculinas e femininas ou seja da bissexualidade que provêm a repressão e a formação de neuroses Mas essa concepção tem lacunas Das duas tendências sexuais conflitantes uma é conforme ao Eu a outra fere o interesse narcísico por isso sucumbe à repressão Nesse caso é também o Eu que desencadeia a repressão em favor de uma das tendências sexuais Em outros casos não existe um tal conflito entre masculinidade e feminilidade há apenas uma tendência sexual que requer aceitação mas vai de encontro a certos poderes do Eu e por isso é ela mesma afastada Bem mais frequentes que conflitos no interior da sexualidade são os 97311 outros os que ocorrem entre a sexualidade e as tendências morais do Eu Um tal conflito moral não existe em nosso caso Pôr a ênfase na bissexualidade como motivo da repressão seria muito estreito portanto pôla no conflito entre Eu e tendências sexuais libido cobre todas as ocorrências À teoria do protesto masculino tal como Adler a desenvolveu podese objetar que de modo algum a repressão toma sempre o partido da masculinid ade e atinge a feminilidade em categorias inteiras de casos é a masculinidade que tem de consentir na repressão por parte do Eu Além disso uma apreciação mais justa do processo de repressão em nosso caso contestaria na masculinidade narcísica a significação do motivo único A atitude homossexual que surge durante o sonho é tão intensa que o Eu da pequena criatura fracassa em dominála e dela se defende pelo processo de repressão Para ajudálo nesse propósito é chamada a masculinidade narcísica do genital que é oposta àquela atitude Apenas para evitar malentendidos devese dizer que todos os impulsos narcísicos atuam a partir do Eu e per manecem no Eu e as repressões são dirigidas contra investimentos de objeto libidinais Passemos agora do processo de repressão que talvez não tenhamos con seguido dominar por inteiro para o estado que se produz no despertar do sonho Se realmente a masculinidade tivesse triunfado sobre a homossexualid ade feminilidade no processo do sonho teríamos de encontrar dominante uma tendência sexual ativa de caráter marcadamente masculino O que está fora de questão o essencial da organização sexual não mudou a fase sádico anal prossegue continuou dominante A vitória da masculinidade se mostra apenas no fato de então ele reagir com angústia às metas sexuais passivas da organização dominante que são masoquistas mas não femininas Não há um impulso sexual masculino vitorioso mas apenas um impulso passivo e uma re belião contra ele 98311 Posso imaginar que dificuldades reserva para o leitor a aguda separação inusitada mas indispensável entre ativomasculino e passivofeminino e portanto não evitarei repetições O estado após o sonho pode então ser descrito da maneira seguinte As tendências sexuais foram cindidas no inconsciente alcançouse o estágio da organização genital e constituiuse uma intensa homossexualidade por cima subsiste virtualmente no consciente a anterior corrente sexual sádica e predominantemente masoquista o Eu modi ficou no conjunto a sua posição ante a sexualidade encontrase em plena re jeição sexual e rechaça com angústia as metas masoquistas dominantes assim como reagiu às metas homossexuais mais profundas com a formação de uma fobia O resultado do sonho não foi tanto a vitória de uma corrente masculina mas a reação contra uma feminina e passiva Seria demais atribuir caráter de masculinidade a essa reação O Eu não tem tendências sexuais mas apenas in teresse em sua autopreservação e na conservação de seu narcisismo Agora vejamos a fobia Ela nasceu no nível da organização genital e nos mostra o mecanismo relativamente simples de uma histeria de angústia Medi ante o desenvolvimento da angústia o Eu se protege do que avalia como um perigo muito poderoso a satisfação homossexual Mas o processo de repressão deixa um rastro que é impossível ignorar O objeto a que se ligou a meta sexu al temida tem de ser representado por um outro na consciência Não o medo diante do pai mas o medo diante do lobo se torna consciente E na formação da fobia não se ficou apenas nesse conteúdo Algum tempo depois o lobo é sub stituído pelo leão Com os impulsos sádicos dirigidos aos pequenos animais compete uma fobia diante deles como representantes dos rivais os eventuais bebês Particularmente interessante é a gênese da fobia de borboletas É como uma repetição do mecanismo que produziu no sonho a fobia de lobos Por um estímulo casual é ativada uma antiga vivência a cena com Grucha cuja ameaça de castração tem efeito a posteriori não tendo causado impressão no momento em que sucedeu52 99311 Podese dizer que a angústia que entra na formação dessas fobias é angústia de castração Essa afirmação não contradiz a concepção de que a angústia tem origem na repressão da libido homossexual Os dois modos de expressão se referem ao mesmo processo de que o Eu retira libido do impulso de desejo homossexual que é então convertida em angústia livremente suspensa e pode se ligar a fobias No primeiro modo de expressão designouse também o motivo que impele o Eu Olhandose mais de perto vêse que essa primeira doença de nosso pa ciente não considerando o distúrbio alimentar não é esgotada quando dela se extrai a fobia mas tem de ser compreendida como autêntica histeria a que cor respondem além de sintomas de angústia fenômenos de conversão Uma parte do impulso homossexual é mantida no órgão que dela participa desde então e também na época posterior o intestino se comporta como um órgão histericamente afetado A homossexualidade inconsciente reprimida retirou se para o intestino Justamente esse traço de histeria prestou o melhor serviço na solução da doença posterior Agora não nos deve também faltar ânimo para abordar as relações ainda mais complicadas da neurose obsessiva Tenhamos presente a situação uma corrente sexual dominante masoquista e uma reprimida homossexual diante disso um Eu prisioneiro da recusa histérica que processos transformam esse estado na neurose obsessiva A transformação não ocorre espontaneamente por evolução interna mas por influência alheia do exterior Seu resultado visível é que a relação com o pai que ocupa o primeiro plano que até então encontrava expressão na fobia de lobos manifestase agora em devoção obsessiva Não posso deixar de assin alar que o processo que tem lugar no paciente oferece uma confirmação in equívoca do que afirmei em Totem e tabu sobre a relação do animal totêmico para com a divindade53 Ali optei por sustentar que a representação do deus não é uma evolução do totem mas que se eleva a partir da raiz comum a am bos para substituílo de modo independente dele O totem seria o primeiro 100311 substituto do pai mas o deus um substituto posterior em que o pai readquire sua forma humana O mesmo encontramos em nosso paciente Na fobia dos lobos ele passa pelo estágio do sucedâneo totêmico do pai que então se inter rompe e é substituído por uma fase de devoção religiosa em consequência de novas relações entre ele e o pai A influência que provoca essa mudança é o contato que através da mãe ele vem a ter com as teorias da religião e a história sagrada O resultado é aquele desejado na educação A organização sexual sadomasoquista chega lentamente ao fim a fobia do lobo desaparece rapidamente em lugar da recusa angustiada da sexualidade surge uma mais elevada forma de sua repressão A devoção tornase o poder dominante na vida da criança Mas tais superações não ocorr em sem luta de que são indícios os pensamentos blasfemos e de que é con sequência um exagero obsessivo do cerimonial religioso À parte esses fenômenos patológicos podemos dizer que nesse caso a reli gião realizou tudo aquilo para o qual é introduzida na educação do indivíduo Ela domou suas tendências sexuais ao lhes proporcionar uma sublimação e firme ancoragem desvalorizou suas relações familiares e com isso evitou o isolamento que o ameaçava na medida em que lhe abriu o acesso à grande comunidade humana O menino indócil e angustiado se tornou sociável com portado e educável O móvel principal da influência religiosa foi a identificação com a figura de Cristo facilitada particularmente pelo acaso do dia de nascimento Nisso o amor extraordinário ao pai que fizera necessária a repressão encontrou afinal saída numa sublimação ideal Como Cristo eralhe permitido amar o pai que então se chamava Deus com um fervor que em vão buscara se descarregar no caso do pai terreno Os meios para dar testemunho desse amor já eram indica dos pela religião e a eles não se prendia o sentimento de culpa inseparável das tendências amorosas individuais Desse modo se ainda podia ser drenada a corrente sexual mais profunda já precipitada como homossexualidade incon sciente a tendência masoquista mais superficial encontrou sem grande 101311 renúncia uma incomparável sublimação na história da paixão de Cristo que se deixou maltratar e sacrificar por ordem e para honra do pai divino Assim a re ligião fez sua obra no pequeno transviado pela mistura de satisfação sublim ação desvio do sensual para processos puramente espirituais e pela abertura de vínculos sociais que proporciona ao crente A rebelião inicial de meu paciente contra a religião tinha três pontos de partida diferentes O primeiro era sua característica da qual já vimos exem plos de afastar todas as novidades Ele defendia cada posição da libido uma vez ocupada com medo de perdêla se a abandonasse e desconfiando da pos sibilidade de uma completa substituição por uma nova Eis uma particularid ade psicológica importante e fundamental que nos três ensaios de uma teoria da sexualidade eu classifiquei como capacidade de fixação Jung pretendeu fazer dela com o nome de inércia psíquica a causa principal de todos os fra cassos dos neuróticos Injustamente acredito eu pois seu alcance é bem maior e ela tem papel significativo também na vida dos não nervosos A fácil mobil idade ou difícil fluidez dos investimentos de energia libidinais e igualmente dos de outro tipo é uma característica especial própria de muitos normais e nem sequer de todos os nervosos e que até agora não foi posta em relação com outras algo assim como um número primo não mais passível de divisão Sabemos apenas uma coisa que o atributo da mobilidade de investimentos psíquicos diminui notavelmente com a idade Isso nos forneceu uma das in dicações dos limites da influência psicanalítica Mas existem pessoas em que essa plasticidade psíquica vai muito além do limite habitual de idade e outras em que ela é perdida bem prematuramente Sendo neuróticas com pesar descobrimos que em condições aparentemente iguais é impossível desfazer nelas mudanças que noutras foram dominadas facilmente Portanto também nas conversões de processos psíquicos cabe considerar o conceito de entropia cuja medida se opõe à involução do acontecido Um segundo ponto de ataque lhe foi dado pelo fato de que a própria doutrina da religião não tem por fundamento uma relação inequívoca com 102311 Deuspai mas é permeada de indícios da atitude ambivalente que presidiu à sua gênese Essa ambivalência foi por ele sentida com a sua própria que era altamente desenvolvida e ligouse à crítica tão aguda que não podia deixar de nos surpreender numa criança de quatro anos e meio O mais significativo porém foi um terceiro fator a cuja ação podemos remontar os resultados patológicos de sua luta com a religião A corrente que o impelia para o homem que devia ser sublimada pela religião já não estava livre mas parcial mente isolada pela repressão e deste modo subtraída à sublimação ligada à sua meta sexual original Em virtude desse nexo a parte reprimida se empenhou em abrir caminho para a parte sublimada ou em trazêla abaixo para si As primeiras ruminações em torno da pessoa de Cristo já continham a questão de saber se aquele filho sublime também podia levar a cabo o relacionamento sexual com o pai que era mantido no inconsciente A rejeição desse empenho não teve como resultado senão fazer surgir pensamentos obsessivos aparente mente blasfemos em que a ternura física por Deus se impunha na forma de sua degradação Uma forte luta defensiva contra essas formações de compromisso tinha então de levar ao exagero obsessivo de todas as atividades em que a de voção o puro amor a Deus encontrava a sua saída prefigurada A religião tri unfou afinal mas seu fundamento instintual se revelou incomparavelmente mais sólido que a garantia dos produtos de sua sublimação Tão logo a vida trouxe um novo substituto do pai cuja influência dirigiuse contra a religião ela foi abandonada e substituída por outra coisa Pensemos ainda na interess ante complicação de que a religiosidade se originou sob influência de mulheres mãe e babá enquanto a influência masculina tornou possível a libertação dela O surgimento da neurose obsessiva no terreno da organização sexual sádicoanal confirma no conjunto o que apresentei num outro lugar acerca da predisposição à neurose obsessiva54 Mas a existência anterior de uma forte histeria faz o nosso caso mais obscuro nesse aspecto Quero encerrar o panor ama do desenvolvimento sexual de nosso doente lançando uma breve luz sobre 103311 as suas mudanças posteriores Com a puberdade apareceu nele a corrente a ser chamada de normal fortemente sensual masculina com a meta sexual da or ganização genital e cujas vicissitudes preenchem o período até a enfermidade posterior Ela se ligou diretamente à cena com Grucha dela tomou a caracter ística da paixão compulsiva que surge e desaparece como um acesso e teve de lutar com as inibições que derivavam dos resíduos da neurose infantil Com uma violenta irrupção em direção à mulher ele atingiu afinal a plena masculin idade esse objeto sexual foi desde então mantido mas ele não se alegrou com sua posse pois uma forte inclinação para o homem agora totalmente incon sciente que juntava em si todas as forças das fases anteriores desviavao con stantemente do objeto feminino e o obrigava a exagerar a dependência da mul her nos intervalos No tratamento ele se queixava de que não podia conviver com uma mulher e todo o trabalho se orientou para lhe desvendar a relação inconsciente com o homem Sua infância se caracterizara para resumir numa fórmula pela oscilação entre atividade e passividade sua puberdade pela luta pela masculinidade e o período a partir do adoecimento pelo combate em torno do objeto da tendência masculina Aquilo que precipitou sua doença não se inclui entre os tipos neuróticos de adoecimento que pude agrupar como casos especiais de frustração55 e aponta assim para uma lacuna nesta classi ficação Ele sucumbiu quando uma afecção orgânica do genital reavivou sua angústia de castração causou dano a seu narcisismo e o obrigou a renunciar à expectativa de ser privilegiado pelo destino Portanto ele adoeceu de uma frustração narcísica Essa grande intensidade do seu narcisismo concordava inteiramente com os outros indícios de um desenvolvimento sexual inibido que a sua escolha heterossexual de objeto concentrou em si não obstante toda a energia bem poucas tendências psíquicas e que a atitude homossexual tão mais próxima do narcisismo nele se afirmou com tal tenacidade como poder inconsciente Naturalmente a terapia psicanalítica não pode em perturbações como essa produzir uma reviravolta momentânea e algo equivalente a um desenvolvimento normal mas apenas eliminar os obstáculos e aplanar os 104311 caminhos para que os influxos da vida possam obter um desenvolvimento em melhor direção Como particularidades de sua natureza psíquica que foram descobertas mas não muito esclarecidas no tratamento psicanalítico e por isso não puderam ser diretamente influenciadas eu reuniria as seguintes a tenacidade da fixação já discutida o extraordinário crescimento do pendor à ambivalên cia e como terceiro traço de uma constituição que chamaria de arcaica a capa cidade de manter um ao lado do outro e em condições de funcionamento os mais diversos e contraditórios investimentos libidinais O constante oscilar entre eles em virtude do qual a resolução e o progresso pareceram por tanto tempo excluídos dominou o quadro clínico da época adulta que pude apenas tangenciar aqui Sem qualquer dúvida era esse um traço característico do in consciente que nele continuou nos processos tornados conscientes mas se mostrava apenas nos resultados dos impulsos afetivos nos âmbitos puramente lógicos ele revelava uma especial destreza em detectar contradições e incon sistências De modo que se tinha de sua vida anímica uma impressão igual à da velha religião egípcia que nos é tão inconcebível por conservar os estágios do desenvolvimento junto aos produtos finais prosseguir com os deuses e at ributos divinos mais antigos ao lado dos mais novos estender numa superfície o que em outros desenvolvimentos se torna uma figura em profundidade Agora cheguei ao fim do que desejava comunicar sobre esse caso clínico Dos numerosos problemas que ele sugere dois ainda me parecem dignos de um relevo especial O primeiro diz respeito aos esquemas filogeneticamente herdados que à maneira de categorias filosóficas tratam da colocação das impressões recebidas na vida Inclinome a sustentar a concepção de que con stituem precipitados da história da cultura humana O complexo de Édipo que compreende a relação da criança com os pais está incluído entre eles é mesmo o exemplo mais conhecido dessa espécie Quando as vivências não se encaixam no esquema hereditário sucede uma remodelação delas na fantasia cuja obra seria certamente útil acompanhar em detalhe Precisamente esses casos são 105311 adequados para nos demonstrar a existência autônoma do esquema Com frequência podese notar que o esquema triunfa sobre a vivência individual como em nosso caso em que o pai se torna o castrador que ameaça a sexualid ade infantil não obstante um complexo de Édipo aliás invertido Um outro efeito se dá quando a ama de leite toma o lugar da mãe ou se funde com ela As discrepâncias entre a vivência e o esquema parecem abastecer de material abundante os conflitos infantis O segundo problema não se acha distante desse mas é bem mais import ante Se considerarmos a conduta do menino de quatro anos diante da cena primária reativada56 e mesmo se pensarmos apenas nas reações bem mais simples do bebê de um ano e meio a vivenciar a cena é difícil afastar a con cepção de que uma espécie de saber dificilmente definível algo como uma pre paração à compreensão também age na criança57 Em quê pode consistir isso é algo que escapa à imaginação dispomos apenas de uma única e excelente ana logia aquela com o vasto saber instintivo instinktiv dos animais Havendo um tal patrimônio instintivo também no homem não seria de es pantar se ele atingisse particularmente os processos da vida sexual embora não possa de maneira alguma limitarse a eles Esse elemento instintivo seria o âmago do inconsciente uma primitiva atividade do espírito que posterior mente é destronada e recoberta pela razão humana que se vem a adquirir mas com muita frequência talvez sempre mantém a força para fazer baixar até si os processos anímicos mais elevados A repressão seria o retorno a esse estágio instintivo e desse modo o homem pagaria com sua capacidade para a neurose a sua grande aquisição e com a possibilidade da neurose testemunharia a ex istência do estágio preliminar anterior de tipo instintivo A significação dos traumas da primeira infância estaria em que abastecem esse inconsciente de um material que o protege da consumição pelo desenvolvimento ulterior Sei que pensamentos similares que acentuam na vida psíquica o fator hereditário adquirido filogeneticamente já foram manifestados em diversas ocasiões e creio que houve uma disposição muito fácil em lhes conceder lugar 106311 na avaliação e na estima da psicanálise Eles me parecem admissíveis apenas quando a psicanálise obedecendo a ordem correta das instâncias depara com as pistas do que foi herdado após penetrar pelos estratos do que foi adquirido individualmente58 1 Esta história clínica foi redigida pouco depois da conclusão do tratamento no inverno de 19145 ainda sob a impressão das reinterpretações distorcidas que C G Jung e A Adler pre tendiam fazer dos resultados da psicanálise Ela está relacionada então à Contribuição à história do movimento psicanalítico publicada no Jahrbuch der Psychoanalyse Anuário de Psicanálise v 6 1914 e completa a polêmica essencialmente pessoal ali contida por meio de uma apreciação objetiva do material analítico Originalmente ela se destinava ao volume seguinte do anuário mas como a publicação deste foi adiada indefinidamente por causa dos empecilhos da Grande Guerra resolvi juntála a esta coleção preparada por um novo editor Muita coisa que teria sido expressa pela primeira vez neste ensaio eu tive que abordar nas Vor lesungen zur Einführung in die Psychoanalyse Conferências introdutórias à psicanálise proferi das em 19167 O texto da primeira redação não teve nenhuma mudança significativa os ac réscimos são indicados por colchetes 2 Tinha dois anos e meio Quase todas as épocas puderam ser determinadas com certeza depois 3 Comunicações desse tipo podem ser utilizadas via de regra como material absolutamente genuíno Pareceria tentador preencher sem dificuldade as lacunas na recordação do paciente por meio de indagações aos familiares mais velhos mas desaconselho decididamente essa téc nica O que os parentes relatam em resposta às perguntas e solicitações está sujeito a toda re serva crítica que se possa levar em conta Repetidamente lamentamos nos termos tornado de pendentes de tais informações tendo com isso perturbado a confiança na análise e colocado uma outra instância acima dela O que pode ser recordado vem à luz no decorrer da análise Nânia mais precisamente niânia significa babá em russo As notas chamadas por as terisco e as interpolações às notas do autor entre colchetes são de autoria do tradutor As not as do autor são sempre numeradas Medo Angst no original A palavra alemã pode significar tanto medo como angústia por isso as versões estrangeiras consultadas variam intensos miedos angustia paura angoisse 107311 fear além daquelas que normalmente utilizamos para cotejo a espanhola da Biblioteca Nueva a argentina da Amorrortu a italiana da Boringhieri e a Standard inglesa também recorremos neste caso à tradução francesa orientada por Jean Laplanche em Œuvres com plètes v xiii Paris puf 1988 Complexo ligado à castração Kastrationskomplex Cabe observar que o termo complexo em Freud designa o conjunto de ideias e sentimentos ligados a um evento ou processo não tendo propriamente relação com o uso coloquial brasileiro que diz fulano é cheio de com plexos ou é um complexado Nas palavras compostas alemãs o último termo é qualificado pelo anterior de modo que geralmente se recorre à preposição de nas versões para línguas latinas Mas entendase que o de pode significar relativo a ligado a o que nos parece ser o caso por isso o leitor encontrará complexo ligado à castração ou complexo da castração e não de como versão para Kastrationskomplex 4 Ver adiante Supressão Unterdrückung nas versões estrangeiras consultadas represión sofocación re pressione répression suppression Há estudiosos de Freud que preferem repressão para Unter drückung e recalque para Verdrängung enquanto outros adotam supressão e repressão respectivamente Em As palavras de Freud o vocabulário freudiano e suas versões de nossa autor ia São Paulo Companhia das Letras nova ed revista 2010 procuramos mostrar que há ar gumentos para as duas opções e até mesmo para a eventual não distinção entre Unterdrückung e Verdrängung às vezes usados alternadamente por Freud 5 Por tendências passivas entendo as de meta sexual passiva dizendo isso tenho em vista não uma mudança do instinto mas apenas da meta 6 Sonhos com material de contos de fadas 1913 7 Cf a semelhança entre esses dois contos de fadas e o mito de Cronos destacada por O Rank Völkerpsychologische Parallelen zu den infantilen Sexualtheorien Paralelos etnopsicológi cos às teorias sexuais infantis Zentralblatt für Psychoanalyse v 2 p 8 8 Também a idade de seis meses poderia ser considerada com menor probabilidade porém e dificilmente defensável 108311 9 Cf as posteriores transformações deste fator na neurose obsessiva Nos sonhos tidos durante a terapia substituição por um vento forte aria ar 10 Relacionemos isso com o fato de que o paciente desenhou somente cinco lobos embora o texto do sonho fale de seis ou sete 11 Por que três vezes Certo dia ele afirmou subitamente que eu chegara a esse detalhe por in terpretação Isto não procedia Foi um pensamento surgido espontaneamente que se subtrai à crítica posterior e que ele imputou a mim como era seu costume e mediante essa projeção tornou digno de crédito 12 Quero dizer que ele o compreendeu à época do sonho aos quatro anos não à época da ob servação Com um ano e meio ele recolheu impressões cuja compreensão posterior lhe foi pos sibilitada na época do sonho por seu desenvolvimento sua excitação sexual e sua pesquisa sexual 13 A primeira dessas dificuldades não pode ser diminuída pela suposição de que na época da observação a criança seria provavelmente um ano mais velha ou seja teria dois anos e meio idade em que poderia perfeitamente ser capaz de falar No caso de meu paciente esse desloca mento de datas estava praticamente excluído pelas circunstâncias menores Considerese além disso que não é nada raro que tais cenas de observação do coito dos pais sejam descobertas na análise Cena primária no original Urszene O prefixo ur denota o mais antigo o primeiro sendo geralmente traduzido pelos adjetivos primordial primário primitivo primevo em outros substantivos que aparecem neste trabalho como Urzeit e Urgeschichte foi vertido por primor dial qualificando Zeit tempo período e Geschichte história 14 Depois desse xingamento do Loboprofessor ele soube que de acordo com a opinião geral dos colegas para ser apaziguado o professor esperava dele dinheiro Retornaremos a isso depois Posso imaginar como facilitaria uma visão racionalista de uma tal história do desen volvimento de uma criança se fosse lícito supor que todo o medo diante do lobo partia na realidade do professor de latim do mesmo nome que tinha sido projetado de volta para a in fância e apoiandose na ilustração do conto tinha produzido a fantasia da cena primária 109311 15 S Ferenczi Über passagere Symptombildungen während der Analyse Sobre formações de sintomas passageiros durante a análise Zentralblatt für Psychoanalyse Folha Central de Psicanálise v 2 1912 pp 588 ss 16 O sonho diz seis ou sete Seis é o número dos filhotes devorados o sétimo refugiouse na caixa do relógio É sempre uma lei rigorosa da interpretação dos sonhos que cada detalhe tenha uma explicação 17 Agora que pudemos fazer uma síntese deste sonho procurarei dar uma visão geral das re lações do conteúdo onírico manifesto com os pensamentos oníricos latentes É noite estou deitado em minha cama Esta segunda parte é o começo da reprodução da cena primária É noite é distorção de eu tinha dormido A observação que diz Sei que era inverno quando sonhei e era noite referese à lembrança do sonho não pertence a seu con teúdo Ela está correta era uma das noites antes do aniversário ou seja do Natal De repente a janela se abre sozinha A ser traduzido por De repente acordei por mim mesmo lembrança da cena primária A influência da história em que o lobo pula para dentro através da janela fazse valer de maneira modificadora transformando a expressão direta em plástica Ao mesmo tempo a introdução da janela serve para colocar no presente o seguinte conteúdo onírico Na noite de Natal a porta se abre subitamente e as pessoas veem a árvore com os presentes diante de si Portanto aqui se faz valer a influência da expectativa de fato em relação ao Natal que inclui a satisfação sexual A grande nogueira Representa a árvoredenatal é portanto factual além disso é a árvore da história dos lobos na qual o alfaiate perseguido busca refúgio sob a qual os lobos espreit am A árvore alta é também como frequentemente pude constatar um símbolo da observação do voyeurismo Quando alguém está em cima de uma árvore pode ver tudo o que acontece embaixo sem ser visto Cf a conhecida história de Boccaccio e outras anedotas semelhantes Os lobos O número deles seis ou sete Na história dos lobos é um bando sem número de terminado A indicação do número mostra a influência do conto dos sete cabritinhos no qual seis são devorados A substituição do número dois da cena primária por um número maior que seria absurdo na cena primária é algo bemvindo à resistência enquanto meio de deformação No desenho relativo ao sonho o sonhador trouxe à luz o número cinco prova velmente corri gindo a indicação de que era noite Eles estão sentados na árvore Primeiramente eles substituem os presentes pendurados na árvoredenatal Mas também são transpostos para a árvore porque isso pode significar que ob servam Na história do avô eles se postam embaixo em volta da árvore Sua relação com a 110311 árvore foi portanto invertida no sonho do que se pode concluir que no conteúdo do sonho aparecem ainda outras inversões do material latente Eles olham para ele com tensa atenção Este traço vem inteiramente da cena primordial e chegou ao sonho às custas de uma total inversão Eles são inteiramente brancos Este traço pouco essencial em si e bastante enfatizado no re lato do sonhador deve sua intensidade a uma pródiga fusão de elementos de todas as camadas do material e combina detalhes secundários das outras fontes do sonho com um fragmento mais significativo da cena primária Este último elemento de sua determinação procederia do branco da roupa de cama e das vestes dos pais e também do branco dos rebanhos de ovelhas dos cães pastores como alusão a suas pesquisas sexuais com os animais do branco nas histórias plural no original dos sete cabritinhos em que a mãe é reconhecida pelo branco de sua pata Logo mais entenderemos a roupa branca como alusão à morte também Eles estão sentados imóveis Isso contradiz o conteúdo mais evidente da cena observada a movimentação que devido à postura a que levou constitui a ligação entre a cena primária e a história dos lobos Eles têm caudas como raposas Isso deve contradizer uma conclusão obtida a partir da in fluência da cena primordial sobre a história dos lobos e que se deve reconhecer como o mais importante resultado de sua pesquisa sexual a de que existe realmente uma castração O pavor com que é recebida essa conclusão do pensamento abre caminho no sonho por fim e produz o seu término O medo de ser comido pelos lobos Para o sonhador não parecia motivado pelo conteúdo do sonho Ele disse Eu não deveria ter medo pois os lobos pareciam mais raposas ou cães eles não correram em minha direção como se fossem me morder eram muito tranquilos e nada apavorantes Reconhecemos que o trabalho do sonho se empenhou por um momento em tornar os conteúdos dolorosos inofensivos mediante a transformação no contrário Eles não se movem eles têm mesmo as caudas mais belas Até que afinal esse expediente falha e o medo irrompe Ele acha sua expressão com ajuda da história em que os filhotes cabritos são devora dos pelo pai lobo Possivelmente essa parte mesma do conto lembrou as ameaças brincalhonas do pai ao brincar com o menino de modo que o medo de ser devorado pelo lobo poderia ser tanto reminiscência como substituição por deslocamento Os elementos de desejo deste sonho são palpáveis ao desejo diurno superficial de que o Natal chegue logo com os presentes sonho de impaciência juntase o desejo mais profundo então permanente de satisfação sexual com o pai que primeiramente é substituído pelo desejo de ver de novo o que na época fora tão atraente O processo psíquico vai portanto da 111311 realização desse desejo na cena primária conjurada até a recusa agora inevitável do desejo e a repressão A amplitude e a minúcia desta exposição a que fui obrigado pelo empenho de oferecer ao leitor um equivalente para a força demonstrativa de uma análise conduzida pessoalmente talvez o desencorajem também de exigir a publicação de análises que se estenderam por vários anos 18 Talvez a melhor maneira de levar em conta a declaração do paciente seja supor que o objeto de sua observação foi primeiramente um coito em posição normal que desperta a impressão de um ato sádico Somente depois a posição teria sido trocada de modo que ele teve oportunidade para outras observações e julgamentos Porém essa suposição não foi confirmada e tampouco me parece imprescindível Não devemos perder de vista mercê da abreviada exposição do texto a situação real de que 25 anos depois o analisando empresta às impressões e impulsos dos seus quatro anos palavras que naquele tempo não teria encontrado Negligenciandose tal advertência pode facilmente parecer cômico e inverossímil que um garoto de quatro anos fosse capaz de tais juízos objetivos e pensamentos cultivados Este é simplesmente um segundo caso de efeito a posteriori Com um ano e meio a criança recebe uma impressão a que não pode reagir o bastante só a compreende só é comovido por ela na sua revivescência aos quatro anos e somente na análise duas décadas depois pode apreender com sua atividade mental consciente o que ocorreu então dentro de si O analisando ignora justificadamente as três fases temporais e coloca seu Eu atual na situação há muito acontecida Nós o acompanhamos nisso pois na autoobservação e interpretação correta o efeito há de ser como seria caso fosse pos sível negligenciar a distância entre a segunda e a terceira fase E tampouco dispomos de outro meio para descrever os eventos da segunda fase 19 Mais adiante ao lidar com seu erotismo anal saberemos como ele continuou a se ocupar dessa parte do problema Recusa Ablehnung nas versões consultadas repulsa desautorización ripudio récusation repudiation Cotejando este trecho com o da p 53 notase que embora use aspas Freud faz algumas pequenas alterações 20 Uma passagem da primeira edição da minha Interpretação dos sonhos 1900 pode mostrar como me ocupei bem cedo deste problema Ali se encontra à p 126 sobre a análise da fala que 112311 aparece num sonho Isso não se pode ter de novo esta fala vem de mim mesmo alguns dias antes eu havia explicado à paciente que as mais antigas vivências infantis não podem ser tidas de novo como tais mas que são substituídas por transferências e sonhos na análise Gesammelte Werke iiiii p 190 capítulo v seção A o primeiro dos sonhos inofensivos 21 O mecanismo do sonho não pode ser influenciado mas o material do sonho pode ser par cialmente dirigido No original essa oração diz für die immer noch eine Rolle im Kräftespiel der analytischen Behandlung gesucht wird Na edição Standard inglesa Strachey a entende de modo um pouco diferente which is always having new parts assigned to it in the play of forces involved in analytic treatment os demais tradutores concordam com a nossa leitura 22 Por bons motivos prefiro dizer O fato de a libido afastar dos conflitos atuais 23 Cf p 29 Estes colchetes são do próprio autor para indicar as passagens que acrescentou em 1918 quatro anos após a redação do texto cf o final de sua nota à p 14 São apenas duas passagens esta que vai até o final deste capítulo e outra no capítulo viii entre as pp 127 e 130 Non liquet Não está claro sentença que se emite num julgamento quando as provas não são concludentes 24 Várias vezes tentei atrasar em ao menos um ano a história do paciente isto é situar a se dução aos quatro anos e meio o sonho no quinto aniversário etc No tocante aos intervalos não foi possível obter nada o paciente ficou inflexível também nisso sem poder eliminar minha dúvida Quanto à impressão que produz a sua história e todas as discussões e con clusões dela derivadas um tal adiamento de um ano seria por certo indiferente Como se sabe este foi um episódio ocorrido no monte das Oliveiras segundo a mitologia cristã Freud informou aos tradutores da edição Standard inglesa que o engano era do próprio paciente 25 Especialmente que lhe batiam no pênis Ver p 37 26 Este sintoma como ainda veremos tinha se desenvolvido aos seis anos quando ele já era capaz de ler 113311 27 Pressupondo a natureza real da cena primária O demônio do russo Mikhail Liérmontov 18141841 O verbo original é zurückführen composto de führen conduzir e do prefixo zurück de volta as versões consultadas apresentam referir reconducir ricondurre ramener to trace back 28 O paciente informou que em sua língua materna não se usa como em alemão a palavra Durchfall para designar as perturbações do intestino Freud se refere ao duplo sentido do termo alemão diarreia ou reprovação em exame o verbo durchfallen significa literalmente cair através de 29 Na língua materna do paciente essa expressão tem o mesmo sentido que em alemão Se gundo Strachey é um eufemismo para a defecação 30 Não havendo diferença se um outro fazia a lavagem ou se ele próprio cuidava disso 31 Não foi determinado mais precisamente quando mas de todo modo antes do sonho angusti ado aos quatro anos provavelmente antes da viagem dos pais 32 Ver acima p 62 33 No que provavelmente ele não se enganava 34 Ou enquanto não compreendia o coito entre os cães Rejeição Verwerfung nas versões consultadas repulsa desestimación ripudio cosciente re jet condemning judgement cf capítulo sobre o termo e suas versões em As palavras de Freud op cit 35 Cf Sobre transformações do instinto etc 1917 36 Acredito ser fácil confirmar que os bebês lactantes sujam de fezes apenas as pessoas que conhecem e amam para eles os estranhos não são dignos dessa distinção Nos Três ensaios de uma teoria da sexualidade mencionei a primeiríssima utilização das fezes para a excitação auto erótica da mucosa intestinal a isto acrescento como um passo adiante que para a defecação é decisivo tomar em consideração um objeto diante do qual a criança é obediente ou agradável Esta relação tem continuidade pois também a criança mais velha só admite ser posta no vaso 114311 sanitário ou socorrida ao urinar por algumas pessoas privilegiadas mas nisso há outros propósitos de satisfação a se levar em conta Antítese tradução que aqui demos a Gegensätzlichkeit as versões consultadas recorreram a antitese relación de oposición trasformazione nel contrario relation dopposition The contrariety is a manifestation of repression a frase inteira 37 Sabese que no inconsciente não existe não os opostos coexistem A negação é introduz ida apenas pelo processo da repressão O verbo original é empfangen significa também conceber no sentido biológico cf die un befleckte Empfängnis a imaculada concepção de Maria 38 Igualmente os insetos nocivos que em sonhos e fobias correspondem frequentemente aos bebês Cf O caso Schreber 1911 final da seção i 39 Assim o excremento é tratado pela criança Que não quis saber dela no sentido de que a reprimiu no original daß er von ihr nichts wissen wollte im Sinne der Verdrängung uma discussão da possível ambiguidade do original se encontra em As palavras de Freud op cit capítulo sobre Verwerfung rejeição 40 Sobre fausse reconnaissance déjà raconté durante o trabalho psicanalítico 1914 41 Correção num relato posterior Creio que não fiz corte na árvore É uma confusão com outra lembrança que também deve ter sido falsificada por alucinação de ter feito um corte com a faca numa árvore e sangue ter saído então da árvore 42 Cf Sonhos com material de contos de fadas 1913 43 Sabemos isso a respeito da Nânia e ainda o ouviremos a respeito de outra mulher 44 A evidência para isso está à p 92 45 Um dos sintomas mais aflitivos e também mais grotescos de sua vida adulta era a relação com qualquer alfaiate a quem encomendasse uma roupa seu respeito e sua timidez ante essa pessoa elevada suas tentativas de cativálo com desmesuradas gorjetas e seu desespero com o 115311 resultado do trabalho não importando como saísse O termo alemão para alfaiate é Sch neider do verbo schneiden cortar a partir do qual formouse também beschneiden circuncidar 46 Neste ponto me refiro a sonhos que ocorreram depois do sonho angustiado mas ainda na primeira propriedade e que representavam a cena do coito como um evento sucedido entre corpos celestes A palavra Mitleid compaixão é o substantivo do verbo mitleiden que significa literal mente sofrer com compadecer A palavra russa para borboleta é apenas semelhante à que designa avó bábotchka e bábuchka respectivamente velha mãezinha é tradução literal da expressão usada por Freud altes Mütterchen A grafia do termo bábuchka tem um s antes do ch no texto original pois assim se faz em alemão a transliteração da letra russa correspondente Mas em português se usa o ch que tem o som do sch alemão e do russo Também por esse motivo o nome da menina babá que aparecerá em seguida é Gruscha no original alemão mas Grucha nesta tradução 47 É muito curioso que a reação da vergonha esteja tão intimamente ligada à micção involun tária tanto diurna como noturna e não como seria de esperar à incontinência fecal igual mente A experiência não deixa dúvida quanto a isso Também o nexo regular entre o fogo e a incontinência urinária dá o que pensar É possível que haja nestas reações e relações precipita dos da história cultural da humanidade que atingem maior profundeza do que tudo o que para nós se conservou deixando pistas no folclore e no mito 48 Ele se situa em torno dos dois anos e meio entre a suposta observação do coito e a sedução 49 Antes do sonho Estes colchetes são do próprio autor cf o final de sua nota à p 14 e a nota do tradutor à p 78 Na conferência xxiii 1917 50 Um possível significado secundário de que o véu representaria o hímen que se parte no en lace com o homem não se ajusta exatamente à condição para a cura e não tem relação com a vida do paciente para quem a virgindade não tinha qualquer significação Cf A interpretação dos sonhos cap vii seção A Gesammelte Werke iiiii p 528 116311 51 Admito que essa questão é a mais espinhosa de toda a teoria psicanalítica Não necessitei das comunicações de Adler ou Jung para me ocupar criticamente da possibilidade de que as vivên cias infantis esquecidas vividas numa infância improvavelmente precoce cuja existência a psicanálise afirma repousem na verdade em fantasias criadas em ocasiões posteriores e de que se deva supor a manifestação de um fator constitucional ou de uma disposição conservada filogeneticamente sempre que se acredite achar na análise o efeito de uma tal impressão infant il Pelo contrário nenhuma dúvida me solicitou mais nenhuma outra incerteza me impediu mais resolutamente de publicar a respeito disso Fui o primeiro algo que nenhum de meus oponentes assinalou a dar a conhecer tanto o papel das fantasias na formação de sintomas como o fantasiar de volta para a infância a partir de incitações tardias e a sexualização retro spectiva da mesma Ver A interpretação dos sonhos cap i seção G e Observações sobre um caso de neurose obsessiva 1909 No entanto se me ative à concepção mais difícil e mais im provável isso ocorreu devido a argumentos como os que o caso aqui descrito ou qualquer outra neurose infantil impõem ao pesquisador e que agora submeto aos leitores para a sua decisão Freud faz um jogo com os dois sentidos do verbo vorstoßen afastar de si rechaçar e ir de encontro a chocarse com 52 A cena de Grucha foi como disse um produto espontâneo da recordação do paciente do qual não participou nenhuma construção ou estímulo do médico a lacuna que havia nela foi preenchida pela análise de uma forma que se deve chamar de impecável no caso de realmente se dar valor ao modo de trabalho da psicanálise Uma explicação racionalista dessa fobia diria apenas que não é nada extraordinário que uma criança com predisposição a estados de angústia tenha um acesso de angústia diante de uma borboleta de listas amarelas provavelmente devido a uma inclinação hereditária à angústia cf Stanley Hall A synthetic genetic study of fear American Journal of Psychology xxv 1914 Na ignorância desta causa ele buscaria um nexo infantil para essa angústia utilizando o acaso da igualdade dos nomes e da recorrência das lis tas para construir a fantasia de uma aventura com a babá de que ainda se lembra Mas quando as coisas secundárias do acontecimento em si anódino a limpeza o balde a vassoura mostram possuir na vida posterior do indivíduo o poder de determinar de maneira duradoura e obses siva a sua escolha de objeto então a fobia da borboleta adquire uma significação incom preensível A situação resulta ao menos tão singular como a que defendo e desaparece o ganho que se teria da concepção racionalista desta cena A cena de Grucha tornase então 117311 particularmente valiosa para nós pois com ela podemos preparar nosso juízo sobre a cena primária em relação à qual há menos certeza 53 Totem e tabu 1913 54 Internationale Zeitschrift für ärztliche Psychoanalyse v 1 1913 pp 525 ss 55 Zentralblatt für Psychoanalyse v 2 n 6 1912 Tipos de adoecimento neurótico 56 Não é preciso levar em conta o fato de que só duas décadas depois esse comportamento pôde ser colocado em palavras pois todos os efeitos que derivamos da cena já se manifestaram na infância e muito antes da análise em forma de sintomas compulsões etc É indiferente se preferimos vêla como cena primária ou como fantasia primária 57 Devo novamente enfatizar que estas reflexões seriam supérfluas caso o sonho e a neurose não pertencessem ao período da infância 58 Acréscimo de 1923 Ofereço mais uma vez a cronologia dos eventos mencionados nesta história Nascimento no dia de Natal Um ano e meio Malária Observação do coito dos pais ou de um momento em que es tavam juntos em que depois ele introduziu a fantasia do coito Pouco antes de dois anos e meio Cena com Grucha Dois e meio Lembrança encobridora da partida dos pais com a irmã Ela o mostra sozinho com a Nânia e nega assim a Grucha e à irmã Antes de três anos e três meses Lamento da mãe ao médico Três anos e três meses Início da sedução pela irmã logo depois ameaça de castração da Nânia Três anos e meio Governanta inglesa início da mudança de caráter Quatro anos Sonho dos lobos origem da fobia Quatro anos e meio Influência da história bíblica Surgimento dos sintomas obsessivos Pouco antes dos cinco anos Alucinação da perda do dedo Cinco anos Mudança da primeira propriedade Depois dos seis anos Visita ao pai doente Oito anos dez anos últimas irrupções da neurose obsessiva 118311 Minha exposição permitiu adivinhar que o paciente era russo Eu lhe dei alta curado a meu ver poucas semanas antes da inesperada irrupção da Guerra Mundial e só o vi novamente quando com as vicissitudes da guerra as Potências Centrais tiveram acesso à Rússia meridion al Ele veio então a Viena e contou que imediatamente após o fim do tratamento foi tomado do empenho de se livrar da influência do médico Em alguns meses de trabalho ele dominou uma parcela da transferência ainda não superada desde então o paciente ao qual a guerra havia roubado a pátria a riqueza e todas as relações familiares sentiuse normal e comportouse im pecavelmente Talvez precisamente a sua miséria ao satisfazer o seu sentimento de culpa tenha contribuído para firmar seu restabelecimento 119311 ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER 1920 TÍTULO ORIGINAL JENSEITS DES LUSTPRINZIPS PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM VOLUME AUTÔNOMO LEIPZIG VIENA E ZURIQUE INTERNATIONALER PSYCHOANALYTISCHER VERLAG EDITORA PSICANALÍTICA INTERNACIONAL 1920 60 PP TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XIII PP 369 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE III PP 21372 I Na teoria psicanalítica não hesitamos em supor que o curso dos processos psíquicos é regulado automaticamente pelo princípio do prazer isto é acredit amos que ele é sempre incitado por uma tensão desprazerosa e toma uma direção tal que o seu resultado final coincide com um abaixamento dessa tensão ou seja com uma evitação do desprazer ou geração do prazer Se at entamos para esse curso ao considerar os processos psíquicos que estudamos introduzimos o ponto de vista econômico em nosso trabalho Uma descrição que junto ao fator topológico e ao dinâmico procure levar em conta esse fator econômico parecenos ser a mais completa que hoje podemos imaginar mere cendo a designação de metapsicológica Não é de nosso interesse investigar em que medida estabelecendo o princí pio do prazer nos aproximamos ou afiliamos a um sistema filosófico particu lar historicamente assentado Chegamos a tais especulações na tentativa de descrever e dar conta dos fatos que diariamente observamos em nossa área Prioridade e originalidade não se incluem entre as metas do trabalho psic analítico e as impressões em que se baseia o estabelecimento de tal princípio são tão claras que é praticamente impossível ignorálas Por outro lado com prazer manifestaríamos gratidão a uma teoria filosófica ou psicológica que nos pudesse informar sobre o significado das sensações de prazer e desprazer que tão imperativamente agem sobre nós Mas infelizmente nada de útil nos é oferecido nesse ponto É o mais obscuro e inacessível âmbito da vida psíquica e se não podemos evitálo creio que a melhor hipótese no que a ele diz re speito será aquela mais frouxa Decidimos relacionar prazer e desprazer com a quantidade de excitação não ligada de nenhuma maneira existente na vida psíquica de tal modo que o desprazer corresponde a um aumento e o prazer a uma diminuição dessa quantidade Nisso não pensamos numa relação simples entre a força das sensações e as modificações a elas correspondentes tampouco após tudo o que nos ensinou a psicofisiologia numa pro porção direta provavelmente o fator decisivo para a sensação é a medida de diminuição ou aumento num dado período de tempo A experimentação talvez contribuísse em algo neste ponto mas para nós psicanalistas não é aconsel hável adentrarmos esses problemas enquanto observações bem definidas não nos possam guiar Não pode nos deixar indiferentes entretanto o fato de um pesquisador ar guto como G T Fechner sustentar uma concepção de prazer e desprazer que coincide essencialmente com a que nos impôs o trabalho psicanalítico A afirmação de Fechner está no seu breve escrito Einige Ideen zur Schöpfungs und Entwicklungsgeschichte der Organismen Algumas ideias sobre a história da criação e do desenvolvimento dos organismos de 1873 parte xi suplemento p 94 e diz o seguinte Na medida em que os impulsos conscientes sempre se acham em relação com o prazer ou desprazer podese também pensar o prazer ou desprazer em relação psicofísica com situações de estabilidade e instabilidade podendo fundamentarse nisso a hipótese que desenvolverei mais minu ciosamente em outro lugar de que todo movimento psicofísico que supera o limiar da consciência é acompanhado de prazer enquanto além de certo limite aproximase da plena estabilidade e de desprazer enquanto além de certo limite afastase dela havendo entre os dois limites que podem ser designados como limiares qualitativos do prazer e do desprazer uma certa margem de indiferença estética Os fatos que nos levaram a crer que o princípio do prazer predomina na psique também acham expressão na hipótese de que o aparelho psíquico se em penha em conservar a quantidade de excitação nele existente o mais baixa pos sível ou ao menos constante É a mesma coisa apenas em outra formulação pois se o trabalho do aparelho psíquico se dirige para manter baixa a 122311 quantidade de excitação tudo o que tem a propriedade de aumentála será per cebido como disfuncional ou seja como desprazeroso O princípio do prazer deriva do princípio da constância na realidade o princípio da constância foi deduzido dos fatos que nos impuseram a hipótese do princípio do prazer E ao aprofundar a discussão veremos que esse empenho do aparelho psíquico que nós supomos subordinase como caso especial ao princípio fechneriano da tendência à estabilidade ao qual ele Fechner relacionou as sensações de prazerdesprazer Mas devemos assinalar que a rigor não é correto dizer que o princípio do prazer domina o curso dos processos psíquicos Se assim fosse a grande maioria de nossos processos mentais teria de ser acompanhada de prazer ou conduzir ao prazer quando a experiência geral contradiz energicamente essa ilação O que pode então suceder é que haja na psique uma forte tendência ao princípio do prazer à qual se opõem determinadas forças ou constelações de modo que o resultado final nem sempre corresponde à tendência ao prazer Vejase esta observação de Fechner motivada por algo semelhante idem p 90 Mas como a tendência ao objetivo não significa o alcance do objetivo e este é alcançável apenas em aproximações Se agora nos voltamos para a questão de quais circunstâncias podem impedir o prevalecimento do princípio do prazer pisamos novamente um chão seguro e conhecido e para respondê la dispomos em larga medida de nossas experiências analíticas O primeiro caso de uma tal inibição do princípio do prazer nos é familiar apresentandose com regularidade Sabemos que o princípio do prazer é próprio de um modo de funcionamento primário do aparelho psíquico e que para a autoafirmação do organismo em meio às dificuldades do mundo exter no já de início é inutilizável e mesmo perigoso em alto grau Por influência dos instintos de autoconservação do Eu é substituído pelo princípio da realid ade que sem abandonar a intenção de obter afinal o prazer exige e consegue o adiamento da satisfação a renúncia a várias possibilidades desta e a 123311 temporária aceitação do desprazer num longo rodeio para chegar ao prazer Por muito tempo o princípio do prazer continua como o modo de funciona mento dos instintos sexuais que são difíceis de educar e volta e meia sucede que a partir desses instintos ou no próprio Eu ele sobrepuja o princípio da realidade em detrimento de todo o organismo É indubitável porém que a substituição do princípio do prazer pelo princí pio da realidade pode ser responsável tão somente por uma pequena parte de modo algum a mais intensa das experiências de desprazer Uma outra fonte de origem do desprazer não menos regular achase nos conflitos e cisões dentro do aparelho psíquico enquanto o Eu perfaz seu desenvolvimento rumo a or ganizações mais complexas Quase toda a energia que preenche o aparelho vem dos impulsos instintuais inatos mas estes não são todos admitidos nas mesmas fases de desenvolvimento No meio do caminho sempre volta a su ceder que determinados instintos ou partes de instintos resultem incompatí veis nas suas metas ou exigências com os restantes capazes de unirse na abrangente unidade do Eu Então eles são segregados dessa unidade por meio do processo da repressão mantidos em graus inferiores do desenvolvimento psíquico e têm cortadas de início as possibilidades de satisfação Se depois conseguem mediante desvios obter uma satisfação direta ou substitutiva algo que ocorre facilmente com os instintos sexuais reprimidos tal sucesso que de outro modo teria sido uma ocasião de prazer é sentido como desprazer pelo Eu Em consequência do velho conflito que resultou em repressão o princípio do prazer experimentou nova ruptura justamente quando certos instintos laboravam conforme o princípio para obter novo prazer Os detalhes do pro cesso pelo qual a repressão transforma uma possibilidade de prazer numa fonte de desprazer ainda não são bem compreendidos ou não podem ser claramente expressos mas certamente todo desprazer neurótico é desse tipo é prazer que não pode ser sentido como tal1 As duas fontes do desprazer aqui mencionadas estão longe de cobrir a maioria de nossas vivências desprazerosas mas quanto ao resto parece haver 124311 bons motivos para afirmar que a sua existência não contradiz o domínio do princípio do prazer A maior parte do desprazer que sentimos é desprazer de percepção seja percepção da premência de instintos insatisfeitos ou percepção externa que é penosa em si ou que provoca expectativas desprazerosas no aparelho psíquico sendo por ele reconhecida como perigo A reação a tais reivindicações dos instintos e ameaças de perigo na qual se manifesta propria mente a atividade do aparelho psíquico pode então ser dirigida de maneira correta pelo princípio do prazer ou pelo princípio da realidade que o modi fica Com isso não parece necessário admitir uma maior limitação do princípio do prazer mas justamente a investigação da reação psíquica ao perigo externo pode fornecer novo material e novas colocações ao problema de que aqui tratamos II Há muito se conhece um estado que sobrevém após sérias comoções mecân icas desastres ferroviários e outros acidentes com risco de vida ao qual se deu o nome de neurose traumática A terrível guerra que há pouco terminou fez surgir um grande número dessas doenças e ao menos pôs fim à tentação de atribuílas a uma lesão orgânica do sistema nervoso ocasionada por força mecânica2 O quadro da neurose traumática avizinhase ao da histeria por sua riqueza de sintomas motores semelhantes mas superao normalmente nos sinais bastante desenvolvidos de sofrimento subjetivo como numa hipocon dria ou melancolia e nas evidências de um mais amplo enfraquecimento e transtorno das funções psíquicas Até agora não se obteve plena compreensão nem das neuroses de guerra nem das neuroses traumáticas do período de paz No caso das neuroses de guerra o fato de o mesmo quadro clínico surgir oca sionalmente sem o concurso de uma dura força mecânica teve efeito esclare cedor e ao mesmo tempo desconcertante nas neuroses traumáticas comuns 125311 ressaltam duas características que podem ser pontos de partida para a reflexão em primeiro lugar pareciam causadas principalmente pelo fator da surpresa do terror em segundo uma ferida ou contusão sofrida simultaneamente atuava em geral contra o surgimento da neurose Terror medo e an gústia são empregados erradamente como sinônimos mas podem se diferen ciar de modo claro na sua relação com o perigo Angústia designa um estado como de expectativa do perigo e preparação para ele ainda que seja descon hecido medo requer um determinado objeto ante o qual nos amed rontamos mas terror se denomina o estado em que ficamos ao correr um perigo sem estarmos para ele preparados enfatiza o fator da surpresa Não creio que a angústia possa produzir uma neurose traumática na angústia há algo que protege do terror e também da neurose de terror Retornaremos de pois a essa questão Podemos considerar o estudo dos sonhos o caminho mais seguro para a in vestigação dos processos psíquicos profundos Ora os sonhos que ocorrem numa neurose traumática têm a característica de que o doente sempre retorna à situação do acidente da qual desperta com renovado terror As pessoas não se surpreendem o bastante com isso Acham que é justamente uma prova de como foi forte a impressão deixada pela vivência traumática que até no sonho volta a se impor ao doente Este se acha então psiquicamente fixado ao trauma por assim dizer Tais fixações à vivência que desencadeou a enfermid ade nos são conhecidas há muito tempo no caso da histeria Breuer e Freud afirmaram em 1893 que os histéricos sofrem principalmente de reminiscên cias Também nas neuroses de guerra observadores como Ferenczi e Simmel puderam explicar vários sintomas motores pela fixação ao momento do trauma Mas não é do meu conhecimento que os que sofrem de neurose traumática se ocupem muito da lembrança do acidente quando se acham acordados Talvez procurem antes não pensar nele Aceitar como óbvio que o sonho 126311 noturno os devolve à situação causadora da doença é compreender mal a natureza dos sonhos Seria mais próprio dela que o doente visse imagens do tempo em que era são ou da cura pela qual anseia Para que os sonhos dos neuróticos traumáticos não nos façam duvidar da tendência realizadora de desejos do sonho restanos a saída de que nesse estado a função do sonho como tantas outras coisas também é abalada ou desviada de seus propósitos ou teríamos que lembrar as enigmáticas tendências masoquistas do Eu Agora proponho deixar o obscuro e sombrio tema da neurose traumática e estudar o modo como trabalha o aparelho psíquico numa de suas primeiras ocupações normais Refirome às brincadeiras das crianças Recentemente as diversas teorias sobre o jogo infantil foram resumidas e apreciadas psicanaliticamente por S Pfeifer na Imago um trabalho que aqui posso indicar Essas teorias se empenham em descobrir os motivos do jogo das crianças mas sem destacar o ponto de vista econômico a consideração pelo ganho de prazer Não pretendendo abarcar todas essas manifestações apenas aproveitei uma oportunidade que se me ofereceu a fim de elucidar o primeiro jogo de invenção própria de um menino de um ano e meio Foi mais que uma observação ligeira pois durante algumas semanas estive com a criança e os seus pais sob o mesmo teto e levou um certo tempo até que se revelasse para mim o significado daquela ação misteriosa e sempre repetida O garoto não era precoce no desenvolvimento intelectual com dezoito meses de idade falava apenas algumas palavras compreensíveis e dispunha também de vários sons significativos entendidos pelas pessoas ao seu redor Mas tinha um bom relacionamento com os pais e a única empregada e recebia elogios por ser comportado Não incomodava os pais durante a noite obed ecia conscienciosamente às proibições de tocar em certos objetos e entrar em certos lugares e principalmente nunca chorava quando a mãe o deixava dur ante horas embora fosse muito apegado a ela que não só o amamentara como dele cuidara sem ajuda de outras pessoas Esse bom menino tinha o hábito 127311 ocasionalmente importuno de jogar todos os pequenos objetos que alcançava para longe de si a um canto do aposento debaixo da cama etc de modo que reunir os seus brinquedos não era coisa fácil Ao fazer isso ele proferia com expressão de interesse e satisfação um forte e prolongado oooo que no julgamento da mãe e no deste observador não era uma interjeição e signi ficava fort foi embora Afinal percebi que era um jogo e que o menino apenas usava todos os seus brinquedos para jogar ir embora Um dia pude fazer a observação que confirmou minha opinião Ele tinha um carretel de madeira em que estava enrolado um cordão Nunca lhe ocorria por exemplo puxálo atrás de si pelo chão brincar de carro com ele em vez disso com ha bilidade lançava o carretel seguro pelo cordão para dentro do berço através de seu cortinado de modo que ele desaparecia nisso falando o significativo oooo e depois o puxava novamente para fora do berço saudando o aparecimento dele com um alegre da está aqui Então era essa a brin cadeira completa desaparecimento e reaparição de que geralmente viase apenas o primeiro ato que era repetido incansavelmente como um jogo em si embora sem dúvida o prazer maior estivesse no segundo ato3 A interpretação do jogo foi simples então Ele estava relacionado à grande conquista cultural do menino à renúncia instintual renúncia à satisfação in stintual por ele realizada ao permitir a ausência da mãe sem protestar Com pensava a si mesmo digamos ao encenar o desaparecimento e a reaparição com os objetos que estavam ao seu alcance Claro que não faz diferença para a avaliação afetiva desse jogo se o menino inventouo ele mesmo ou apropriou se dele em consequência de um estímulo Voltaremos nosso interesse para um outro ponto É impossível que a ausência da mãe fosse agradável ou mesmo in diferente para essa criança Como pode então harmonizarse com o princípio do prazer o fato de ela repetir tal vivência dolorosa como brincadeira Talvez se responda que a ausência tinha de ser encenada como precondição para o agradável reaparecimento que seria o verdadeiro propósito do jogo Isso seria contrariado pela observação de que o primeiro ato a ausência era encenado 128311 como brincadeira em si mesmo e muito mais frequentemente que a ap resentação completa com seu final prazeroso A análise de um caso assim isolado não leva a um juízo seguro numa re flexão não preconcebida temse a impressão de que o menino transformou a vivência em jogo por um outro motivo Ele se achava numa situação passiva foi atingido pela vivência e ao repetila como jogo embora fosse de sprazerosa assumiu um papel ativo Tal empenho poderíamos atribuir a um impulso de apoderamento que passou a não depender de que a recordação em si fosse ou não prazerosa Mas podemos tentar uma outra interpretação O lançamento do objeto de modo que desapareça poderia constituir a satisfação de um impulso suprimido na vida de vingarse da mãe por ter desaparecido para ele tendo então o sentido desafiador Sim vá embora não preciso de você eu mesmo a mando embora Essa mesma criança que observei com um ano e meio de idade em sua primeira brincadeira um ano depois costumava lançar ao chão um brinquedo que o aborrecia com as palavras Vá para a guerra Haviamlhe dito que seu pai estava na guerra e ele não sentia falta do pai dando claros indícios de que não queria ser perturbado na posse exclu siva da mãe4 Sabemos de outras crianças que exprimem semelhantes impulsos hostis arremessando objetos em lugar das pessoas5 Vemnos então a dúvida de saber se a tendência a elaborar psiquicamente algo impressionante e dele apropriarse inteiramente pode se manifestar de modo primário e independ ente do princípio do prazer No caso discutido o garoto só podia repetir brin cando uma impressão desagradável porque a essa repetição está ligada uma obtenção de prazer de outro tipo porém direta Nem um maior estudo das brincadeiras infantis nos ajudará nessa hesitação entre duas concepções Vêse que as crianças repetem brincando o que lhes produziu uma forte impressão na vida que nisso reagem e diminuem a inten sidade da impressão e tornamse por assim dizer donos da situação Mas é claro por outro lado que toda a sua brincadeira é influenciada pelo desejo que domina esse seu tempo o desejo de ser grande e poder agir como as pessoas 129311 grandes Observase também que o caráter desprazeroso da vivência não a tor na sempre inadequada para o brinquedo Se o doutor examina a garganta da criança ou realiza nesta uma pequena cirurgia não há dúvida de que essa ater radora experiência será o tema da brincadeira seguinte mas não se pode ignor ar com isso o prazer obtido de outra fonte Quando passa da passividade da experiência à atividade do jogo a criança inflige a um companheiro de jogos o que lhe sucedera de desagradável vingandose assim na pessoa desse substituto Em todo caso dessa discussão resulta que é desnecessário supor como motivo para o jogo um particular instinto de imitação Lembremos ainda que o jogo e a imitação artísticos dos adultos que diferentemente do que fazem as crianças dirigemse à pessoa do espectador não poupam a este as mais dol orosas impressões na tragédia por exemplo e no entanto são por ele percebidos como elevada fruição Assim nos convencemos de que também sob o domínio do princípio do prazer há meios e caminhos para tornar objeto de recordação e elaboração psíquica o que é em si desprazeroso Uma estética que considere a economia psíquica pode lidar com esses casos e situações que ter minam na obtenção final do prazer para os nossos propósitos eles não servem pois pressupõem a existência e o domínio do princípio do prazer não atestam a operação de tendências além do princípio do prazer isto é que seriam mais primitivas que ele e independentes dele III Vinte e cinco anos de trabalho intenso fizeram com que os objetivos imediatos da técnica psicanalítica sejam agora muito diferentes do que eram no início Antes o médico praticante da psicanálise não podia senão procurar descobrir reunir e comunicar no momento certo o inconsciente oculto para o doente A psicanálise era sobretudo uma arte da interpretação Como a tarefa terapêutica 130311 não se concluía dessa forma logo surgiu mais uma intenção a de instar o pa ciente a confirmar a construção por meio de sua própria lembrança Naquele esforço a ênfase principal era nas resistências do paciente depois a arte consis tiu em desvendálas o mais rapidamente possível mostrálas ao paciente e at ravés da influência pessoal eis o lugar da sugestão atuando como transferência induzilo a abandonar as resistências Tornouse cada vez mais claro porém que a meta proposta de tornar con sciente o que era inconsciente também não era inteiramente exequível por esse caminho O doente não pode lembrarse de tudo o que nele está reprimido talvez precisamente do essencial não se convencendo da justeza da construção que lhe é informada Ele é antes levado a repetir o reprimido como vivência atual em vez de como preferiria o médico recordálo como parte do passado6 Essa reprodução que surge com uma fidelidade que não fora desejada sempre tem por conteúdo algo da vida sexual infantil ou seja do complexo de Édipo e seus derivados e invariavelmente se dá no âmbito da transferência isto é da relação com o médico Se o tratamento chega a esse ponto podese dizer que a antiga neurose foi substituída por uma nova neurose de transferência O médico se empenhou em restringir o campo dessa neurose de transferência em empurrar o máximo possível para a recordação e deixar o mínimo para a re petição A proporção que se estabelece entre a recordação e a reprodução varia em cada caso Via de regra o médico não pode poupar ao analisando essa fase do tratamento ele tem de fazêlo reviver certa parte da vida esquecida e cuidar também para que seja mantido algum grau de superioridade em virtude do qual a aparente realidade seja sempre reconhecida afinal como reflexo de um passado esquecido Isso alcançado chegase ao convencimento do paciente e ao sucesso terapêutico que dele depende A fim de compreender melhor essa compulsão à repetição que se mani festa no tratamento psicanalítico dos neuróticos devemos sobretudo nos livrar do equívoco de que ao combater as resistências lidamos com a resistência do inconsciente O inconsciente ou seja o reprimido não promove qualquer 131311 resistência aos esforços da terapia ele mesmo não procura senão apesar da pressão que sobre ele pesa abrir caminho rumo à consciência ou à descarga at ravés da ação real A resistência no tratamento procede dos mesmos elevados sistemas e camadas da psique que anteriormente efetuaram a repressão Mas como os motivos das resistências e estas mesmas segundo a experiência são no início inconscientes na terapia somos instados a corrigir uma inadequação de nossa maneira de expressão Evitaremos a falta de clareza se colocarmos em oposição não o consciente e o inconsciente mas sim o Eu coerente e aquilo que é reprimido Não há dúvida de que muito do Eu é em si mesmo incon sciente justamente o que se pode chamar de âmago do Eu apenas uma pequena parte dele é coberta pelo termo préconsciente Após substituir uma forma de expressão puramente descritiva por uma sistemática ou dinâmica po demos dizer que a resistência do analisando vem de seu Eu e logo percebemos que a compulsão à repetição deve ser atribuída ao reprimido inconsciente Ela provavelmente não podia manifestarse até que o trabalho terapêutico vindo lhe ao encontro afrouxou a repressão7 Sem dúvida a resistência do Eu consciente e préconsciente está a serviço do princípio do prazer pois ele quer evitar o desprazer que seria gerado pela liberação do reprimido e nós nos esforçamos apelando ao princípio da realid ade para conseguir a admissão desse desprazer Mas em que relação com o princípio do prazer se acha a compulsão de repetição a manifestação de força do reprimido É claro que a maior parte do que a compulsão de repetição faz reviver causa necessariamente desprazer ao Eu pois traz à luz atividades de impulsos instintuais reprimidos mas é um desprazer que já consideramos que não contraria o princípio do prazer é desprazer para um sistema e ao mesmo tempo satisfação para o outro Mas o fato novo e digno de nota que agora temos que descrever é que a compulsão à repetição também traz de volta ex periências do passado que não possibilitam prazer que também naquele tempo não podem ter sido satisfações 132311 O primeiro florescimento da vida sexual infantil estava fadado ao declínio graças à incompatibilidade entre os seus desejos e a realidade e à insuficiência do estágio infantil de desenvolvimento Ele terminou em circunstâncias peno sas e com sensações profundamente dolorosas A perda do amor e o fracasso deixaram atrás de si um dano permanente na autoestima em forma de ferida narcísica que é segundo minha experiência e também os estudos de Mar cinowski8 a mais forte contribuição ao sentimento de inferioridade fre quente nos neuróticos A pesquisa sexual à qual o desenvolvimento físico da criança impõe limites não levou a uma conclusão satisfatória daí o lamento posterior Não consigo realizar nada nada dá certo para mim O laço amor oso geralmente com o genitor do sexo oposto sucumbiu à desilusão à inútil espera por satisfação ao ciúme quando nasceu mais uma criança algo que demonstrou inequivocamente a infidelidade doa amadoa sua própria tent ativa de fazer um filho empreendida com trágica seriedade fracassou vergon hosamente a diminuição do afeto que lhe mostravam a maior exigência da educação palavras sérias e um eventual castigo lhe revelaram enfim todo o desdém de que era alvo Eis umas poucas formas sempre recorrentes de como chega ao fim o típico amor desse período da infância Todas essas situações não desejadas e emoções dolorosas são repetidas pelo neurótico na transferência e revividas com grande habilidade Eles procuram interromper o tratamento incompleto sabem criar de novo a impressão de des dém forçar o médico a dizerlhes palavras duras e conduzirse friamente com eles encontram objetos adequados para o seu ciúme substituem o filho ar dentemente desejado dos primeiros tempos pela intenção ou a promessa de um enorme presente que geralmente é tão pouco real como aquele Nenhuma des sas coisas podia proporcionar prazer naquele tempo seria de crer que hoje produziriam menor desprazer se emergissem como lembranças ou em sonhos em vez de se configurarem como novas experiências Tratase naturalmente da ação de instintos que deveriam levar à satisfação mas não trouxe frutos a 133311 lição de que também naquela época eles produziram somente desprazer A ação é repetida apesar de tudo uma compulsão impele a isso O que a psicanálise aponta nos fenômenos de transferência dos neuróticos é encontrado igualmente na vida de pessoas não neuróticas Nelas dáse a im pressão de um destino que as persegue de um traço demoníaco em seu viver e a psicanálise sempre viu tal destino como em boa parte preparado por elas mesmas e determinado por influências da primeira infância A compulsão que aí se manifesta não é diferente da compulsão à repetição dos neuróticos em bora essas pessoas nunca tenham apresentado sinais de que lidaram com um conflito neurótico produzindo sintomas De modo que conhecemos pessoas para as quais toda relação humana tem igual desfecho benfeitores que após algum tempo são rancorosamente abandonados por cada um de seus pro tegidos por mais diferentes que estes sejam entre si e que portanto parecem fadados a fruir toda a amargura da ingratidão homens para os quais o des fecho de toda amizade é serem traídos pelo amigo outros que repetidamente no curso da vida elevam outra pessoa à condição de grande autoridade para si mesmos ou para a opinião pública e após um certo tempo derrubam eles próprios essa autoridade para substituíla por uma nova amantes cuja relação amorosa com uma mulher percorre sempre as mesmas fases e conduz ao mesmo fim etc Esse eterno retorno do mesmo não nos surpreende muito quando se trata de um comportamento ativo da pessoa em questão e nós descobrimos o traço de caráter permanente de seu ser que tem de manifestar se na repetição das mesmas vivências Impressão bem mais forte nos produzem os casos em que o indivíduo parece vivenciar passivamente algo que está fora de sua influência quando ele apenas vivencia de fato a repetição do mesmo destino Recordese por exemplo a história da mulher que se casou três vezes seguidas com homens que em pouco tempo adoeciam e requeriam os seus cuidados no leito de morte9 A mais comovente expressão poética desse traço de caráter foi feita por Tasso na epopeia romântica Jerusalém libertada Tan credo o herói matou sua amada Clorinda sem o saber pois ela o combateu 134311 vestindo a armadura de um cavaleiro inimigo Após o enterro ele entra numa sinistra floresta mágica que apavora o exército dos Cruzados Ali ele golpeia uma grande árvore com sua espada mas da ferida da árvore corre sangue e ouvese a voz de Clorinda cuja alma fora aprisionada naquela árvore acusandoo de novamente haver golpeado a sua amada Em vista dessas observações extraídas da conduta na transferência e do destino das pessoas sentimonos encorajados a supor que na vida psíquica há realmente uma compulsão à repetição que sobrepuja o princípio do prazer Também nos inclinaremos a ligar a essa compulsão os sonhos das vítimas de neurose traumática e o impulso que leva as crianças a brincar É preciso dizer no entanto que em raras ocasiões podemos notar somente os efeitos da com pulsão à repetição sem o concurso de outros motivos Quanto às brincadeiras infantis já destacamos outras interpretações que a sua gênese admite Com pulsão à repetição e direta satisfação prazerosa do instinto parecem aí entre laçadas em íntima comunhão Os fenômenos da transferência achamse clara mente a serviço da resistência por parte do Eu que persevera na repressão a compulsão à repetição de que o tratamento pretendia se valer é como que puxada para o lado do Eu que se apega ao princípio do prazer Naquilo que poderíamos chamar de compulsão do destino muita coisa nos parece com preensível mediante a ponderação racional de modo que não se vê como ne cessário estabelecer um novo e misterioso motivo O mais insuspeito talvez é o caso dos sonhos traumáticos mas uma reflexão mais atenta nos faz admitir que também nos outros exemplos a ação dos motivos que conhecemos não re sponde pelo fato O que ainda resta é bastante para justificar a hipótese da compulsão de repetição e esta quer nos parecer mais primordial mais ele mentar mais instintual do que o princípio do prazer por ela posto de lado Se houver na psique uma tal compulsão à repetição porém então gostaríamos de saber algo sobre ela a qual função corresponde em que condições pode evidenciarse e que relação tem com o princípio do prazer ao qual até agora 135311 afinal confiamos o domínio sobre o curso dos processos de excitação na vida mental IV O que se segue é especulação às vezes especulação extremada que cada um pode apreciar ou dispensar conforme a atitude que lhe for própria É além do mais uma tentativa de explorar consequentemente uma ideia por curiosidade de ver aonde levará A especulação psicanalítica parte da impressão recebida na investigação dos processos inconscientes de que a consciência pode não ser a característica geral dos processos psíquicos mas apenas uma função particular deles Em ter mos metapsicológicos ela afirma que a consciência é realização de um sistema especial que denomina Cs Dado que a consciência fornece essencialmente percepções de excitações vindas do mundo externo e sensações de prazer e de sprazer que podem se originar apenas do interior do aparelho psíquico pode se atribuir ao sistema PCs uma localização espacial Ele deve estar na fronteira entre exterior e interior voltado para o mundo externo e envolvendo os outros sistemas psíquicos Notamos que com essas hipóteses não arriscamos algo novo mas acompanhamos a anatomia cerebral que situa a sede da consciên cia no córtex a camada mais exterior do cérebro que envolve as demais A anatomia cerebral não precisa ocuparse da razão pela qual anatomicamente falando a consciência está alojada justamente na superfície do cérebro em vez de bem abrigada em algum íntimo recôndito seu Talvez consigamos ir mais longe na busca de explicação para esse local em nosso sistema PCs A consciência não é a única peculiaridade que nós conferimos aos processos que têm lugar nesse sistema Apoiados nas impressões de nossa experiência psicanalítica supomos que todas as ocorrências excitatórias dos outros sistem as deixam neles como fundamento da memória traços duradouros vestígios 136311 de lembranças portanto que nada têm a ver com o processo de tornarse con sciente Eles são com frequência mais fortes e mais permanentes quando o evento que os deixa nunca atinge a consciência Mas achamos difícil crer que tais marcas duradouras de excitação também se produzam no sistema PCs Logo elas restringiriam a aptidão do sistema para acolher novas excitações10 caso sempre permanecessem conscientes de outro modo tornandose incon scientes nos poriam diante da tarefa de explicar a existência de processos in conscientes num sistema cujo funcionamento é em todo o resto acompanhado do fenômeno da consciência Não teríamos modificado nem ganhado nada por assim dizer com a hipótese de relegar o tornarse consciente para um sis tema especial Embora esta não seja absolutamente uma consideração decisiva pode nos levar à conjectura de que tornarse consciente e deixar traço de lem brança são incompatíveis dentro do mesmo sistema Assim poderíamos dizer que no sistema Cs o evento excitatório tornase consciente mas não deixa marca duradoura todas as suas marcas nas quais se apoia a recordação seriam produzidas nos sistemas adjacentes internos ao transmitirse para eles a excit ação Nesse sentido foi esboçado o esquema que inseri na parte especulativa de minha Interpretação dos sonhos em 1900 Ao considerar quão pouco sabemos por outras fontes sobre a origem da consciência terá de ser concedida à tese de que a consciência surge no lugar do traço de lembrança pelo menos a im portância de uma afirmação que de algum modo é precisa O que distinguiria o sistema Cs portanto seria a peculiaridade de que nele diferentemente de todos os demais sistemas psíquicos o processo de excitação não deixa uma permanente mudança dos elementos mas como que se exaure no fenômeno do tornarse consciente Um tal desvio da norma geral pede ex plicação mediante um fator que entra em consideração apenas para esse sis tema e esse fator que faltaria nos demais sistemas bem poderia ser a localiza ção exposta do sistema Cs sua imediata vizinhança com o mundo exterior 137311 Imaginemos o organismo vivo na sua maior simplificação como uma in diferenciada vesícula de substância excitável a sua superfície voltada para o mundo externo é então diferenciada pela própria localização servindo como órgão receptor de estímulos A embriologia enquanto repetição da história evolutiva mostra realmente que o sistema nervoso central provém do ecto derma e que o cinzento córtex cerebral é ainda um derivado da superfície primitiva e poderia ter herdado características essenciais desta Seria conce bível então que o incessante choque dos estímulos externos na superfície da vesícula alterasse a sua substância até uma certa profundidade de modo que o processo de excitação desta transcorresse diferentemente do que sucederia nas camadas mais profundas Assim se formaria uma casca afinal tão curtida pela ação dos estímulos que apresentaria as mais favoráveis condições para a re cepção de estímulos e não seria capaz de outras modificações Transposto para o sistema Cs isso significa que os seus elementos não poderiam mais admitir mudança permanente na passagem da excitação porque nesse sentido já estari am modificados ao extremo Mas então se achariam capacitados a fazer surgir a consciência Sobre a natureza dessa modificação da substância e do processo de excitação no interior dela podemos formar concepções diversas que no mo mento se furtam à verificação Podese supor que ao passar de um elemento para o outro a excitação tenha de superar uma resistência e essa diminuição da resistência produza o traço permanente da excitação a facilitação no sistema Cs não existiria mais portanto uma tal resistência à transição de um elemento para o outro Tal concepção pode ser relacionada à distinção feita por Breuer entre energia de investimento parada ligada e livremente móvel nos elemen tos dos sistemas psíquicos11 então os elementos do sistema Cs não conduziriam energia ligada apenas energia capaz de livre descarga Mas por enquanto creio ser melhor expressarme de forma um tanto imprecisa sobre essa questão De todo modo com essa especulação enredaríamos em alguma medida a gênese da consciência com a localização do sistema Cs e as peculiaridades do processo excitatório que lhe devem ser atribuídas 138311 Ainda temos algo a observar sobre a vesícula vivente e sua camada cortical receptiva a estímulos Esse pequeno pedaço de substância viva flutua num mundo externo carregado de fortes energias e seria liquidado pela ação dos estímulos que vêm dele se não fosse dotado de uma proteção contra estímulos Ele a adquire da forma seguinte sua superfície mais exterior perde a estrutura própria do que vive tornase inorgânica em certa medida e funciona como um invólucro ou membrana especial que detém estímulos isto é faz com que as energias do mundo exterior possam penetrar com uma fração de sua inten sidade nas camadas adjacentes que permaneceram vivas Essas podem então por trás da proteção dedicarse à recepção das quantidades de estímulos que passaram Mas a camada externa com sua morte preservou do mesmo destino aquelas mais profundas pelo menos enquanto não chegam estímulos de força tal que furem a proteção Para o organismo vivo a proteção contra estímulos é tarefa quase mais importante do que a recepção de estímulos ele está equipado com uma reserva própria de energia e tem de empenharse sobre tudo em preservar as formas especiais de transformação de energia que nele ocorrem da influência niveladora e portanto destruidora das imensas energi as que operam do lado de fora A recepção de estímulos serve antes de tudo ao propósito de saber a direção e a espécie dos estímulos externos e para isso basta retirar pequenas amostras do mundo externo proválo em quantidades mínimas Nos organismos altamente desenvolvidos a camada cortical recept ora de estímulos da exvesícula retirouse há muito para as profundezas do in terior do corpo mas porções dela ficaram na superfície imediatamente abaixo da proteção geral contra estímulos São os órgãos dos sentidos que contêm no essencial dispositivos para a recepção de estímulos específicos mas também mecanismos especiais para ainda proteger contra excessivos montantes de es tímulos e deter espécies inadequadas de estímulos É característico deles o fato de elaborarem quantidades muito pequenas do estímulo externo de apenas to marem mostras casuais do mundo exterior talvez possamos comparálos a antenas que tateiam o mundo externo e sempre se retiram novamente dele 139311 Neste ponto me permitirei abordar brevemente uma questão que mereceria tratamento aprofundado A tese de Kant segundo a qual o tempo e o espaço são formas necessárias de nosso pensamento pode hoje ser submetida a uma discussão devido a certos conhecimentos psicanalíticos Vimos que os pro cessos psíquicos inconscientes são atemporais em si Isto significa em primeiro lugar que não são ordenados temporalmente que neles o tempo nada muda que a ideia de tempo não lhes pode ser aplicada São características neg ativas que apenas se fazem compreensíveis quando comparadas aos processos psíquicos conscientes Nossa abstrata ideia de tempo parece derivar inteira mente do modo de trabalho do sistema PCs correspondendo a uma autoper cepção dele Com esse modo de funcionamento do sistema poderia ser tomado um outro caminho para a proteção contra estímulos Sei que tais afirmações soam obscuras mas tenho que me limitar a indicações desse tipo Expusemos como a vesícula viva é dotada de uma barreira contra estímulos do mundo externo Antes verificamos que a camada cortical vizinha desta tem que ser diferenciada como órgão para a recepção de estímulos de fora Mas essa camada sensível que se tornará o sistema Cs também recebe excitações vindas de dentro a posição do sistema que fica entre o exterior e o interior e a diversidade das condições para que haja influência de um ou de outro lado tornamse decisivas para a operação do sistema e de todo o aparelho psíquico Contra o exterior existe uma proteção as quantidades de excitação que chegam terão um efeito reduzido em relação ao interior é impossível a pro teção as excitações das camadas mais profundas se propagam de forma direta e não atenuada no sistema na medida em que determinadas características de seu curso produzem a série das sensações de prazerdesprazer Sem dúvida as excitações vindas de dentro serão por sua intensidade e por características out ras qualitativas e eventualmente por sua amplitude mais adequadas ao modo de funcionamento do sistema do que os estímulos provenientes do mundo exterior Mas duas coisas são decididas por tal situação em primeiro lugar a prevalência das sensações de prazer e desprazer que são um índice 140311 para o que ocorre no interior do aparelho sobre todos os estímulos externos em segundo lugar a adoção de uma conduta ante as excitações internas que provocam um excessivo aumento do desprazer Haverá a tendência de tratálas como se agissem a partir de fora e não de dentro para poder usar contra elas os meios defensivos da proteção contra estímulos Essa é a origem da projeção destinada a ter um papel importante na causação dos processos patológicos Tenho a impressão de que essas últimas reflexões nos fizeram compreender melhor a dominação do princípio do prazer mas não pudemos esclarecer os casos que a ele se opõem Vamos dar um passo adiante então Às excitações externas que são fortes o suficiente para romper a proteção nós denominamos traumáticas Acho que o conceito de trauma exige essa referência a uma defesa contra estímulos que normalmente é eficaz Um evento como o trauma externo vai gerar uma enorme perturbação no gerenciamento de energia do organismo e pôr em movimento todos os meios de defesa Mas o princípio do prazer é ini cialmente posto fora de ação Já não se pode evitar que o aparelho psíquico seja inundado por grandes quantidades de estímulo surge isto sim outra tarefa a de controlar o estímulo de ligar psicologicamente as quantidades de estímulo que irromperam para conduzilas à eliminação O desprazer específico da dor física resulta provavelmente de que a bar reira contra estímulos foi rompida numa área limitada Desse lugar na perifer ia então afluem para o aparelho psíquico excitações contínuas que normal mente podiam vir apenas do interior do aparelho12 E como podemos esperar que a psique reaja a essa irrupção De todos os lados é convocada energia de investimento a fim de criar em torno do local da irrupção investimentos de energia correspondentemente elevados Produzse um enorme contrainvesti mento em favor do qual todos os demais sistemas psíquicos empobrecem de modo que há uma extensa paralisação ou redução do funcionamento psíquico restante Nós buscamos aprender com tais exemplos baseando nossas conjec turas metapsicológicas em tais modelos Desse comportamento então inferi mos que um sistema altamente investido é capaz de acolher a nova energia que 141311 para ele aflui e transformála em investimento parado ou seja ligála psiquicamente Quanto mais alto o investimento parado tanto maior a sua força ligadora de maneira contrária quanto mais baixo for o investimento do sistema tanto menos estará capacitado para receber a energia afluente tanto mais violentas serão as consequências de uma tal ruptura da proteção Não ser ia justo objetar a essa concepção que a elevação do investimento em torno do local da irrupção se explicaria mais facilmente pela direta transmissão das quantidades de energia que chegam Se assim fosse o aparelho psíquico exper imentaria tão só um acréscimo de seus investimentos de energia continuando inexplicados o caráter paralisante da dor e o empobrecimento dos demais sis temas Os impetuosos efeitos de descarga produzidos pela dor também não contrariam nossa explicação pois se dão de maneira reflexa isto é ocorrem sem a intermediação do aparelho psíquico A vagueza de todas essas nossas discussões que chamamos de metapsicológicas vem naturalmente do fato de nada sabermos sobre a natureza do processo excitatório que há nos elementos dos sistemas psíquicos e de não nos sentirmos autorizados a fazer qualquer suposição acerca disso Então operamos sempre com um grande x que transportamos para toda nova fórmula Bem podemos esperar que este pro cesso se realize com energias quantitativamente variadas e também nos parece provável que ele tenha mais de uma qualidade como uma amplitude por ex emplo como algo novo examinamos a colocação de Breuer segundo a qual há duas formas de preenchimento de energia de modo que se deve distinguir entre um investimento que flui livremente pressionando por descarga e um investimento parado dos sistemas psíquicos ou de seus elementos E talvez possamos conjecturar que o ligamento da energia que flui para o aparelho psíquico consiste na passagem do estado de livre fluência para o estado de imobilidade Creio que podemos nos arriscar a ver a neurose traumática ordinária como a consequência de uma vasta ruptura da proteção contra estímulos Assim es taria reabilitada a velha e ingênua teoria do choque em aparente contraste com 142311 uma posterior e psicologicamente mais ambiciosa que não atribui significação etiológica ao efeito da violência mecânica mas ao terror e à ameaça para a vida Esses opostos não são inconciliáveis porém e a concepção psicanalítica da neurose traumática não é idêntica à teoria do choque em sua forma crua Para esta a essência do choque estaria no dano direto da estrutura molecular ou mesmo da estrutura histológica dos elementos do sistema nervoso en quanto nós procuramos explicar seu efeito pela ruptura da proteção contra es tímulos para o órgão psíquico e pelas tarefas que daí resultam O susto mantém sua importância também para nós A condição para ele é a ausência de preparação para a angústia que implica o sobreinvestimento dos sistemas que primeiro recebem o estímulo Devido a esse menor investimento os sistemas não se acham em boas condições de ligar as quantidades de excitação que chegam e as consequências da ruptura da proteção se verificam mais facil mente Vemos assim que a preparação para a angústia com o sobreinvesti mento dos sistemas receptores representa a última linha da barreira contra es tímulos Em toda uma série de traumas a diferença entre os sistemas não pre parados e aqueles preparados pelo sobreinvestimento pode ser o fator decisivo para o resultado final ela provavelmente não terá peso a partir de uma certa intensidade do trauma Se os sonhos dos neuróticos que sofreram acidentes fazem os doentes voltarem regularmente à situação do acidente então eles não se acham a serviço da realização de desejos cuja satisfação alucinatória tornouse sob o domínio do princípio do prazer função dos sonhos Mas po demos supor que desse modo eles contribuem para outra tarefa que deve ser resolvida antes que o princípio do prazer possa começar seu domínio Tais sonhos buscam lidar retrospectivamente com o estímulo mediante o desenvol vimento da angústia cuja omissão tornarase a causa da neurose traumática Assim nos permitem vislumbrar uma função do aparelho psíquico que sem contrariar o princípio do prazer é independente dele e parece mais primitiva que a intenção de obter prazer e evitar desprazer 143311 Aqui seria então o lugar de admitir pela primeira vez uma exceção à tese de que o sonho é uma realização de desejo Os sonhos de angústia não con stituem exceções tais como já demonstrei repetidamente e em detalhe e tam pouco os sonhos de castigo pois apenas substituem a realização proibida do desejo pelo castigo que lhe é apropriado sendo portanto a realização de desejo da consciência de culpa que reage ao instinto repudiado Mas os supra mencionados sonhos dos neuróticos traumáticos já não se incluem na per spectiva da realização de desejo nem os sonhos ocorrentes nas psicanálises que nos trazem à memória os traumas psíquicos da infância Eles obedecem antes à compulsão de repetição que na análise de fato é favorecida pelo desejo encorajado pela sugestão de evocar o que foi esquecido e reprim ido Assim também a função do sonho de eliminar motivos para a interrupção do sono por meio da realização de desejos não seria a sua função original ele a teria assumido apenas depois que toda a vida psíquica aceitou o domínio do princípio do prazer Se existe um além do princípio do prazer é coerente ad mitir que também houve uma época anterior à tendência dos sonhos a realizar desejos Com isso não é contrariada a sua função posterior Mas surge uma vez rompida essa tendência uma outra questão Tais sonhos que obedecem à compulsão de repetição no interesse do ligamento psíquico de impressões traumáticas não serão possíveis também fora da análise A resposta é certa mente afirmativa Acerca das neuroses de guerra na medida em que essa expressão denote mais do que as circunstâncias em que surgiu a doença já expus em outro lugar que elas bem poderiam ser neuroses traumáticas que foram facilitadas por um conflito do Eu13 O fato que mencionei acima parte ii de que uma séria ferida causada simultaneamente pelo trauma diminui as chances para o surgimento de uma neurose deixa de ser incompreensível se lembramos duas das condições enfatizadas pela pesquisa psicanalítica Primeiro que o estreme cimento mecânico deve ser reconhecido como uma das fontes de excitação 144311 sexual cf as observações sobre o efeito de balançarse e de andar de trem em Três ensaios de uma teoria da sexualidade 1905 segundo que uma doença dolorosa e febril tem enquanto dura poderosa influência na distribuição da li bido Assim a violência mecânica do trauma liberaria o quantum de excitação sexual que devido à falta de preparação para a angústia tem efeito traumático mas o simultâneo ferimento físico ao solicitar um sobreinvestimento narcísico do órgão ofendido ligaria o excesso de excitação ver Introdução ao nar cisismo 1914 É também conhecido embora não suficientemente utilizado na teoria da libido que severos distúrbios na distribuição da libido como o da melancolia são temporariamente eliminados por uma doença orgânica inter corrente e mesmo um estado plenamente desenvolvido de dementia praecox é capaz de remissão em igual circunstância V A falta de uma barreira contra excitações que venham do interior na camada cortical receptora de estímulos terá a consequência de que tais transmissões de estímulos adquirem a maior importância econômica e frequentemente dão en sejo a distúrbios econômicos equiparáveis a neuroses traumáticas As mais ricas fontes de tal excitação interior são os chamados instintos do organismo os representantes de todas as forças procedentes do interior do corpo e trans mitidas ao aparelho psíquico que constituem o elemento mais importante e mais obscuro da pesquisa psicológica Talvez não seja muito arriscado supor que os impulsos que partem dos in stintos não obedecem ao tipo de processo nervoso ligado mas àquele livre mente móvel que pressiona por descarga Nosso melhor conhecimento sobre tais processos vem do estudo do trabalho do sonho Ali descobrimos que os processos que ocorrem nos sistemas inconscientes são fundamentalmente di versos daqueles dos préconscientes que no inconsciente os investimentos 145311 podem ser transferidos deslocados condensados inteiramente algo que po deria ter apenas resultados defeituosos se acontecesse com material précon sciente e que por isso também resulta nas conhecidas peculiaridades do sonho manifesto depois que os vestígios diurnos préconscientes sofreram elabor ação conforme as leis do inconsciente Denominei esse tipo de processo no in consciente de processo psíquico primário para distinguilo do processo secundário que vigora em nossa vida normal desperta Como todos os im pulsos instintuais afetam os sistemas inconscientes não é propriamente uma novidade afirmar que eles seguem o processo primário e por outro lado não é preciso muito para identificar o processo psíquico primário com o investi mento livremente móvel e o processo secundário com as mudanças no investi mento ligado ou tônico de Breuer14 Então seria tarefa das camadas elevadas do aparelho psíquico ligar a excitação dos instintos que atinge o processo primário O malogro desse ligamento provocaria um distúrbio análogo à neur ose traumática somente após a sua realização o domínio do princípio do prazer e de sua modificação o princípio da realidade poderia ocorrer sem es torvos Até então porém a outra tarefa do aparelho psíquico controlar ou lig ar a excitação teria precedência não em oposição ao princípio do prazer é certo mas de forma independente dele e sem consideração por ele em parte As manifestações de uma compulsão à repetição que descrevemos nas primeiras atividades da vida psíquica infantil e também nas vivências da ter apia analítica exibem em alto grau um caráter impulsivo e quando se acham em oposição ao princípio do prazer um caráter demoníaco No caso do jogo infantil acreditamos perceber que a criança também repete a vivência de sprazerosa porque sua atividade lhe permite lidar com a forte impressão de maneira mais completa do que se apenas a sofresse passivamente Cada nova repetição parece melhorar o controle que ela busca ter sobre a impressão e também nas vivências prazerosas a criança não é saciada pelas repetições in sistindo implacavelmente para que a impressão seja igual Esse traço do caráter 146311 desaparecerá com o tempo Uma piada ouvida pela segunda vez quase não terá efeito uma representação teatral nunca obterá na segunda vez a impressão que deixou na primeira e dificilmente um adulto será persuadido a reler de imediato um livro que o agradou bastante A novidade sempre será a condição para se fruir algo Mas a criança não se cansará de exigir do adulto a repetição de uma brincadeira que este lhe mostrou ou realizou com ela até que ele se re cuse a fazêlo exausto e ao lhe contarem uma bela história quer sempre ouvir de novo aquela mesma em vez de outra insiste em que a repetição seja idêntica e corrige qualquer alteração perpetrada pelo narrador com a qual ele talvez esperasse algum êxito Nisso não é contrariado o princípio do prazer obviamente a repetição o reencontro do idêntico é em si mesma fonte de prazer Já no analisando se torna claro que a compulsão de repetir na transfer ência episódios de sua infância desconsidera de todo modo o princípio do prazer O doente se comporta infantilmente mostrandonos que os traços de lembrança reprimidos de suas experiências primevas não se acham nele presentes em estado ligado e mesmo não são capazes em certa medida de obedecer ao processo secundário A esse não ligamento devem eles também sua capacidade de formar apegandose aos vestígios diurnos uma fantasia desejo que se apresenta no sonho A mesma compulsão à repetição nos aparece frequentemente como obstáculo terapêutico quando queremos pro mover a completa separação do médico por parte do paciente no final do tratamento e é de supor que o obscuro medo que sentem os não familiarizados com a psicanálise de despertar algo que em sua opinião deveria ficar dor mindo representa no fundo o receio de que surja tal compulsão demoníaca Mas de que modo se relacionam o caráter impulsivo e a compulsão à re petição Aqui se nos impõe a ideia de que viemos a deparar com uma caracter ística geral dos instintos talvez de toda a vida orgânica que até agora não foi claramente reconhecida ou pelo menos explicitamente enfatizada Um instinto seria um impulso presente em todo organismo vivo tendente à restauração de um 147311 estado anterior que esse ser vivo teve de abandonar por influência de perturb adoras forças externas uma espécie de elasticidade orgânica ou se quiserem a expressão da inércia da vida orgânica15 Tal concepção do instinto soa estranha pois já nos habituamos a ver nele o fator que impele à mudança e ao desenvolvimento e devemos agora recon hecer ali a expressão da natureza conservadora do vivente Por outro lado logo nos vêm ao espírito exemplos da vida animal que parecem confirmar que os in stintos são historicamente condicionados Quando certos peixes empreendem árduas migrações na época da desova para depositar os ovos em águas bem distantes de seus lugares habituais eles apenas procuram na interpretação de muitos biólogos os antigos locais de habitação de sua espécie que no decorrer do tempo trocaram por outros O mesmo se aplicaria aos voos das aves mi gratórias logo somos desobrigados da busca por novos exemplos ao lembrar que nos fenômenos da hereditariedade e nos fatos da embriologia estão as provas mais formidáveis de uma orgânica compulsão a repetir Vemos que o germe de um animal vivo é obrigado a repetir em seu desenvolvimento de maneira fugaz e abreviada certamente as estruturas de todas as formas de que ele procede em vez de tomar a via mais curta para a sua configuração definitiva e apenas em grau mínimo podemos explicar mecanicamente essa conduta não podendo deixar de lado a explicação histórica Do mesmo modo vai bem alto na hierarquia do reino animal a capacidade reprodutiva que sub stitui um órgão perdido mediante a formação de um novo exatamente igual a ele A objeção natural de que pode haver além dos instintos conservadores que obrigam à repetição também outros que impelem à criação de novas formas e ao progresso não pode ser desconsiderada mais adiante ela será incluída em nossas ponderações No momento somos tentados a levar às suas últimas con sequências a hipótese de que todos os instintos querem restabelecer algo an terior Se o que daí resultar parecer profundo ou causar impressão mística sabemos que não nos podem fazer a censura de que buscamos esse efeito Nós 148311 procuramos os sóbrios resultados da pesquisa ou da reflexão nela baseada e não desejamos que eles possuam outra característica senão a da certeza16 Portanto se todos os instintos orgânicos são conservadores historicamente adquiridos e orientados para a regressão o restabelecimento de algo anterior temos de pôr os êxitos do desenvolvimento orgânico na conta de influências externas perturbadoras e desviantes O ser vivo elementar não pretenderia mudar desde o seu início permanecendo iguais as condições ele repetiria sempre o mesmo curso de vida Mas em última instância a história do desen volvimento da terra e de sua relação com o sol é que deixaria sua marca no desenvolvimento dos organismos Os instintos orgânicos conservadores acol heram cada uma dessas mudanças impostas ao curso da vida e as preservaram para a repetição e assim produzem a enganadora impressão de forças que as piram à transformação e ao progresso quando apenas tratam de alcançar uma antiga meta por vias antigas e novas Também essa meta final de todo esforço orgânico pode ser indicada Seria contrário à natureza conservadora dos in stintos que o objetivo da vida fosse um estado nunca antes alcançado Terá de ser isto sim um velho estado inicial que o vivente abandonou certa vez e ao qual ele se esforça por voltar através de todos os rodeios de seu desenvolvi mento Se é lícito aceitarmos como experiência que não tem exceção que todo ser vivo morre por razões internas retorna ao estado inorgânico então só po demos dizer que o objetivo de toda vida é a morte e retrospectivamente que o inanimado existia antes que o vivente Em algum momento por uma ação de forças ainda inteiramente inima ginável os atributos do vivente foram suscitados na matéria inanimada Talvez tenha sido um processo exemplarmente semelhante ao que depois em certa camada da matéria viva fez surgir a consciência A tensão que sobreveio na substância anteriormente inanimada procurou anular a si mesma foi o primeiro instinto o de retornar ao inanimado Era fácil morrer para a matéria então vivente provavelmente percorria um curso de vida bastante breve cuja direção era determinada pela estrutura química da jovem vida Assim por 149311 longo tempo a substância viva pode ter sido repetidamente criada sempre morrendo com facilidade até que decisivas influências externas mudaram de forma tal que obrigaram a substância ainda sobrevivente a desviarse cada vez mais do curso de vida original e fazer rodeios cada vez mais complicados até alcançar a meta da morte Tais rodeios rumo à morte fielmente seguidos pelos instintos conservadores nos ofereceriam hoje o quadro dos fenômenos da vida Se nos ativermos à natureza exclusivamente conservadora dos instintos não poderemos chegar a outras conjecturas acerca da origem e do objetivo da vida Tão surpreendente quanto essas conclusões é a que diz respeito aos grandes grupos de instintos que estabelecemos por trás dos fenômenos da vida O pos tulado de instintos autoconservadores por nós atribuídos a todo ser vivente achase em curiosa oposição ao pressuposto de que toda a vida instintual serve à realização da morte Vista sob essa luz diminui consideravelmente a im portância teórica dos instintos de autoconservação de poder e de autoafirm ação são instintos parciais destinados a garantir o curso da morte própria do organismo e manter afastadas as possibilidades de retorno ao inorgânico que não sejam imanentes mas é descartado o enigmático empenho do organismo em afirmarse contra tudo e todos algo que não se ajusta a nenhum contexto O que daí resta é que o organismo pretende morrer apenas a seu modo tais guardiães da vida também foram originalmente guardacostas da morte Surge então o paradoxo de que o organismo vivo se rebela fortemente contra influências perigos que poderiam ajudálo a alcançar sua meta de vida por um caminho curto mediante curtocircuito digamos mas essa conduta cara cteriza justamente os esforços apenas instintuais em oposição aos inteligentes Mas reflitamos um momento isso não pode ser assim Aparecem sob uma nova luz os instintos sexuais que na teoria das neuroses têm uma posição espe cial Nem todos os organismos estão sujeitos à coação externa que os impelia a um desenvolvimento cada vez mais amplo Muitos conseguiram manterse no seu baixo estágio até o presente e ainda hoje vivem se não todos muitos dos 150311 seres que devem semelhar estágios anteriores dos animais e plantas mais avançados De igual modo nem todos os organismos elementares que formam o complicado corpo de um ser vivo superior perfazem todo o curso de desen volvimento até a morte natural Alguns entre eles as células germinativas provavelmente conservam a estrutura original da substância viva e após um certo tempo se destacam do organismo inteiro com todas as suas disposições instintuais herdadas e recentemente adquiridas Talvez sejam precisamente es sas duas características que lhes tornam possível a existência autônoma Em condições favoráveis começam a desenvolverse isto é a repetir o jogo a que devem sua gênese e afinal uma parte de sua substância prossegue o desenvol vimento até o fim enquanto outra parte retorna ao início do desenvolvimento como novo resíduo germinal Assim tais células germinativas trabalham con tra a morte da substância viva e conseguem obter para ela o que deve nos pare cer uma imortalidade potencial embora talvez signifique apenas um alonga mento do caminho para a morte Altamente significativo para nós é o fato de ser a fusão da célula germinativa com outra a ela semelhante porém difer ente que reforça ou mesmo permite essa operação Os instintos que tratam dos destinos desses organismos elementares que sobrevivem ao ser individual cuidam de sua guarida enquanto se acham in defesos contra os estímulos do mundo externo promovem o seu encontro com outras células germinativas etc formam o grupo dos instintos sexuais Eles são conservadores no mesmo sentido que os outros ao trazerem de volta esta dos anteriores da substância viva mas o são em medida maior ao se revelarem peculiarmente resistentes aos influxos externos e também num outro sentido ainda pois conservam a vida mesma por períodos mais longos17 Eles são pro priamente os instintos de vida pelo fato de agirem contra a intenção dos out ros instintos que devido à sua função conduz à morte insinuase uma oposição entre eles e os demais cuja importância logo foi reconhecida pela teoria das neuroses É como um ritmo hesitante na vida dos organismos um grupo de instintos precipitase para a frente a fim de alcançar a meta final da 151311 vida o mais rapidamente possível atingida uma determinada altura desse cam inho o outro corre para trás a fim de retomálo de certo ponto e assim pro longar a jornada Ainda que a sexualidade e a diferença dos sexos certamente não existissem no começo da vida é possível que os instintos depois designa dos como sexuais tenham entrado em atividade desde o princípio não tendo empreendido somente num instante posterior o seu trabalho contra o jogo dos instintos do Eu18 Agora voltemos atrás nós mesmos para perguntar se todas essas especu lações têm fundamento Realmente não existem à parte os instintos sexuais outros instintos senão os que querem restabelecer um estado anterior nem outros que aspirem a um estado jamais atingido Não sei no mundo orgânico de exemplo seguro que contradiga a caracterização aqui proposta Certamente não se constata no mundo das plantas e dos animais um instinto universal rumo ao desenvolvimento mais elevado embora permaneça indiscutível que há uma tal direção no desenvolvimento Mas por um lado frequentemente não passa de avaliação nossa quando afirmamos que um estágio de desenvol vimento é mais elevado que outro e a ciência do ser vivente por outro lado mostranos que o desenvolvimento superior num ponto é muitas vezes ob tido ou compensado pela regressão num outro Também existem bastantes formas animais cujos estados juvenis nos fazem ver que o seu desenvolvimento assumiu de fato caráter regressivo Tanto o desenvolvimento superior como a regressão poderiam ser consequências de forças externas que impelem à ad aptação e o papel dos instintos poderia limitarse em ambos os casos a reter como fonte interna de prazer a mudança imposta19 Para muitos de nós pode ser difícil abandonar a crença de que no próprio homem há um impulso para a perfeição que o levou a seu atual nível de realiz ação intelectual e sublimação ética e do qual se esperaria que cuidasse de seu desenvolvimento rumo ao superhomem Ocorre que eu não acredito em tal impulso interior e não vejo como poupar essa benevolente ilusão A evolução humana até agora não me parece necessitar de explicação diferente daquela 152311 dos animais e o que observamos de incansável ímpeto rumo à perfeição numa minoria de indivíduos pode ser entendido como consequência da repressão in stintual em que se baseia o que há de mais precioso na cultura humana O in stinto reprimido jamais desiste de lutar por sua completa satisfação que consi stiria na repetição de uma vivência primária de satisfação todas as formações substitutivas e reativas todas as sublimações não bastam para suprimir sua contínua tensão e da diferença entre o prazer de satisfação encontrado e o exi gido resulta o fator impulsor que não admite a permanência em nenhuma das situações produzidas mas nas palavras do poeta sempre impele indomável para a frente Mefistófeles no Fausto i Gabinete de estudos cena 4 O caminho para trás para a completa satisfação é em geral obstruído pelas res istências que mantêm as repressões e assim não resta senão continuar pela direção de desenvolvimento ainda livre embora sem perspectiva de encerrar o processo e poder alcançar a meta Os eventos implicados na formação de uma fobia neurótica que não é senão tentativa de fuga ante uma satisfação instintu al nos proporcionam o modelo para a gênese desse aparente instinto de aper feiçoamento que de modo algum podemos atribuir a todos os indivíduos As condições dinâmicas para ele estão universalmente presentes é certo mas as circunstâncias econômicas parecem contribuir para o fenômeno apenas em casos raros Seja apenas indicado em breves palavras que o esforço de Eros para reunir o orgânico em unidades cada vez maiores provavelmente substitui o instinto de aperfeiçoamento que não podemos admitir Associado aos efeitos da repressão ele poderia explicar os fenômenos atribuídos a este VI O resultado até agora obtido estabelecendo uma aguda oposição entre os in stintos do Eu e os instintos sexuais sendo que aqueles impelem à morte e 153311 estes à continuação da vida em muitos aspectos não satisfará sequer a nós mesmos A isto se junta que somente àqueles podemos atribuir o caráter con servador ou melhor regressivo do instinto correspondente a uma compulsão de repetição Pois segundo nossa hipótese os instintos do Eu procedem da an imação da matéria inanimada e querem restaurar a condição inanimada Quanto aos instintos sexuais é óbvio que reproduzem os estados primitivos do vivente mas o objetivo que perseguem com todos os meios é a fusão de duas células germinativas diferenciadas de certa maneira Quando não se real iza essa união morre a célula germinativa assim como os outros elementos do organismo multicelular Apenas nessas condições pode a função sexual pro longar a vida e darlhe aparência de imortalidade Mas que importante evento no curso de desenvolvimento da substância viva é repetido na procriação sexu al ou em sua precursora a copulação de dois indivíduos entre os protozoários Isso não sabemos dizer e portanto nos sentiríamos aliviados se toda essa nossa estrutura de pensamentos demonstrasse estar errada A oposição entre instin tos do Eu de morte e instintos sexuais de vida seria descartada e com isso também a compulsão à repetição perderia a importância que lhe foi dada Então voltemos a uma hipótese que aqui oferecemos esperando que ela ad mita uma refutação exata Baseamos ainda outras conclusões no pressuposto de que todo ser vivo tem de morrer por causas internas Lançamos tal suposição despreocupadamente porque ela não nos parece uma suposição Estamos ha bituados a pensar assim nossos poetas nos encorajam a isso Talvez tenhamos nos decidido a fazêlo porque há um consolo nessa crença Se a pessoa mesma deve morrer após presenciar a morte dos seus entes mais queridos ela preferirá submeterse a uma implacável lei natural à soberba Αναγκη Ananke necessidade do que a um acaso que poderia ser evitado Mas talvez essa crença na íntima natureza de lei que haveria na morte seja apenas mais uma das ilusões que nós criamos para suportar o peso da existência Com certeza não é uma crença primordial pois a ideia de uma morte natural é 154311 alheia aos povos primitivos toda morte entre eles é imputada à influência de um inimigo ou de um mau espírito Por isso não deixemos de recorrer à biolo gia a fim de examinar essa crença Se o fizermos ficaremos espantados em ver a discordância que há entre os biólogos sobre a questão da morte natural e em como lhes escapa entre as mãos o próprio conceito de morte O fato de pelo menos os animais superiores terem uma duração média de vida depõe naturalmente a favor da morte por causas internas mas a circunstância de alguns grandes animais e árvores gi gantescas atingirem idades muito avançadas até agora incalculáveis anula tal impressão Segundo a grandiosa concepção de Wilhelm Fliess todos os fenô menos vitais dos organismos e por certo também sua morte estão lig ados ao cumprimento de determinados prazos nos quais se expressa a de pendência de duas substâncias vivas uma masculina e a outra feminina em re lação ao ano solar Mas as observações sobre a facilidade e a alta medida com que a influência de forças externas pode mudar as manifestações vitais quanto à sua ocorrência no tempo particularmente no mundo das plantas precipitandoas ou atrasandoas embaraçam a rigidez das fórmulas de Fliess e fazem duvidar no mínimo que as leis por ele postuladas tenham vigência exclusiva Para nós o interesse maior relacionase ao tratamento dado ao tema da dur ação da vida e da morte nos trabalhos de A Weismann20 Desse pesquisador vem a diferenciação da substância viva em uma metade mortal e outra imortal aquela mortal é o corpo no sentido estrito o soma apenas ela está sujeita à morte natural mas as células germinativas são potentia potencialmente imor tais na medida em que são capazes de em certas condições favoráveis desenvolverse num novo indivíduo ou expresso de outra forma rodearse de um novo soma21 O que aí nos impressiona é a inesperada analogia com nossa própria con cepção que desenvolvemos por caminho tão diverso Weismann 155311 considerando morfologicamente a substância viva nela vê um componente fadado a morrer o soma o corpo sem o material responsável pelo sexo e a hereditariedade e um imortal o plasma germinativo que é útil à conservação da espécie à procriação Quanto a nós não recorremos à substância viva mas às forças nela atuantes e fomos levados a distinguir duas espécies de instintos aqueles que pretendem conduzir a vida à morte e os sexuais que sempre bus cam e efetuam a renovação da vida Isto soa como um corolário dinâmico da teoria morfológica de Weismann Mas a aparência de uma significativa concordância logo se desfaz quando vemos o que decide acerca do problema da morte Pois para ele a distinção entre soma mortal e plasma germinativo imortal é válida somente nos organis mos pluricelulares nos animais unicelulares o indivíduo e a célula de procri ação ainda são a mesma coisa22 Afirma então que os unicelulares são poten cialmente imortais que a morte surge apenas nos metazoários nos pluricelu lares Essa morte dos seres vivos superiores é certamente uma morte natural por causas internas mas não se baseia numa qualidade primordial da substân cia viva23 não pode ser apreendida como uma necessidade absoluta funda mentada na essência da vida24 A morte é um arranjo de conveniência uma manifestação de adaptação às condições de vida externas pois a partir da di visão das células corporais em soma e plasma germinativo uma ilimitada dur ação da vida individual se tornaria um luxo inconveniente Surgindo essa diferenciação nos pluricelulares a morte se tornou possível e adequada Desde então a soma dos seres vivos superiores morre por razões internas após algum tempo enquanto os protozoários permanecem imortais Já a procriação não foi introduzida apenas com a morte sendo antes uma qualidade primordial da matéria viva tal como o crescimento do qual se originou e a vida permaneceu contínua desde o seu início na Terra25 Facilmente se constata que a admissão de uma morte natural para os organ ismos superiores não nos auxilia muito Se a morte é uma aquisição tardia dos seres vivos instintos de morte existentes desde o início da vida na Terra não 156311 entram mais em consideração Os pluricelulares podem morrer por razões in ternas devido a falhas em sua diferenciação ou a imperfeições de seu metabol ismo para a questão que nos ocupa isso não tem interesse Sem dúvida uma tal concepção da morte também se acha mais próxima da maneira habitual de pensar do que a estranha hipótese de instintos de morte A meu ver a discussão que acompanhou as afirmações de Weismann não teve resultados decisivos em nenhuma direção26 Vários autores retornaram ao ponto de vista de Goette 1883 para quem a morte era a consequência direta da procriação Hartmann não a caracteriza pelo aparecimento de um cadáver de uma parte que morreu da substância viva mas a define como desfecho da evolução individual Nesse sentido os protozoários também são mortais neles a morte sempre coincide com a procriação mas é dissimulada por esta em alguma medida já que toda a substância do genitor pode passar diretamente para os novos indivíduos op cit p 29 O interesse da pesquisa logo se voltou para a verificação experimental em organismos unicelulares da alegada imortalidade da substância viva Um americano Woodruff cultivou um infusório ciliado uma paramécia que se reproduz por cissiparidade e acompanhouo até a 3029a geração quando interrompeu a experiência a cada vez isolando uma das duas partes geradas e pondoa em água fresca Esse remoto descendente da primeira paramécia era tão vivaz como seu ancestral sem qualquer indício de envelhecimento ou de generação desse modo se tais cifras tiverem valor demonstrativo a imortalid ade dos protozoários pareceu demonstrável experimentalmente Outros pesquisadores chegaram a diferentes resultados Maupas Calkins e outros acharam contrariando Woodruff que após certo número de divisões também esses infusórios se tornam mais fracos diminuem de tamanho perdem parte de sua organização e afinal morrem se não experimentam determinadas influências revigoradoras Assim sendo os protozoários morreriam após uma fase de declínio senil tal como os animais superiores o que se acha 157311 diretamente em contraste com as afirmações de Weismann que vê a morte como uma tardia aquisição dos organismos vivos Do conjunto dessas pesquisas destacamos dois fatos que nos parecem ofere cer um firme apoio Primeiro se dois desses pequeninos seres num momento em que ainda não mostram envelhecimento podem juntarse um ao outro copular separandose de novo após algum tempo são poupados da velhice são rejuvenescidos Esta copulação é certamente a precursora da re produção sexual dos animais superiores ainda não está relacionada à multiplicação limitase à mistura das substâncias dos dois indivíduos a anfi mixia de Weismann Mas a influência revigoradora da copulação pode ser substituída por determinados meios estimuladores mudanças na composição do líquido nutriente aumento da temperatura ou agitação Recordemos a famosa experiência de J Loeb que aplicando certos estímulos químicos a ov os de ouriçosdomar induziuos a processos de divisão que normalmente ocorrem apenas depois da fecundação Segundo é provável que os infusórios sejam levados a uma morte natural por seu processo vital mesmo pois a contradição entre os resultados de Wood ruff e dos outros se deve ao fato de que ele pôs cada nova geração em líquido nutriente fresco Ao deixar de fazer isso observou as mesmas transformações senis nas gerações que os outros pesquisadores Concluiu que os pequenos seres são prejudicados pelos produtos do metabolismo que lançam no líquido ao seu redor e pôde convincentemente demonstrar que apenas os produtos do próprio metabolismo têm o efeito de acarretar a morte da geração Pois numa solução saturada com dejetos de uma espécie longinquamente aparentada vicejaram muito bem os mesmos seres que amontoados no seu próprio líquido nutritivo inevitavelmente pereciam Abandonado a si mesmo portanto o in fusório tem uma morte natural devido à imperfeita eliminação de seus produtos metabólicos mas talvez todos os animais superiores também morram devido à mesma incapacidade no fundo 158311 Agora pode nos assaltar a dúvida de que seja pertinente buscar a resposta à questão da morte natural no estudo dos protozoários A organização primitiva dessas criaturas pode nos ocultar importantes condições que também neles se acham presentes mas que só nos animais superiores onde obtiveram ex pressão morfológica podem ser percebidas Se deixarmos o ponto de vista morfológico e adotarmos aquele dinâmico para nós será indiferente que a morte natural dos protozoários possa ser demonstrada ou não Neles a sub stância depois reconhecida como imortal não se separou ainda de maneira al guma daquela mortal As forças instintuais que querem conduzir a vida à morte poderiam atuar desde o início também neles e no entanto o seu efeito poderia ser coberto de tal modo pelo das forças conservadoras da vida que seria muito difícil a comprovação direta de sua existência Vimos de fato que as observações dos biólogos nos autorizam a supor tais processos internos con ducentes à morte também no caso dos protozoários Mas ainda que os proto zoários se revelem imortais no sentido de Weismann sua afirmação de que a morte é uma aquisição posterior vale apenas para as manifestações evidentes da morte e não torna impossível uma suposição relativa aos processos que impelem à morte Nossa expectativa de que a biologia prontamente afastasse o reconhecimento dos instintos de morte não se realizou Podemos continuar nos ocupando de sua possibilidade se temos outras razões para fazêlo A notável semelhança da distinção feita por Weismann entre soma e plasma ger minal com a nossa separação entre instintos de morte e instintos de vida con tinua a existir e mantém seu valor Detenhamonos por um momento nessa concepção notadamente dualista da vida instintual De acordo com a teoria de E Hering na substância viva op eram ininterruptamente dois tipos de processos em direções opostas uns construtivos anabólicos os outros destrutivos catabólicos Podemos ousar re conhecer nessas duas direções dos processos vitais a atividade de nossos dois movimentos instintuais dos instintos de vida e dos instintos de morte E há outra coisa que não podemos ignorar que inadvertidamente adentramos o 159311 porto da filosofia de Schopenhauer para quem a morte é o autêntico res ultado e portanto o objetivo da vida27 enquanto o instinto sexual é a en carnação da vontade de vida Procuremos audaciosamente dar um passo adiante É opinião geral que a união de numerosas células num agregado vital a multicelularidade dos organismos tornouse um meio para o prolongamento de sua vida Uma célula ajuda a conservar a vida das outras e a comunidade das células pode continuar vivendo mesmo quando células individuais têm de morrer Já vimos que também a copulação a temporária fusão de dois seres unicelulares tem efeito preservador da vida e rejuvenescedor em ambos Assim podese fazer a tentativa de transpor a teoria da libido produto da psicanálise à relação das células entre si imaginando que sejam os instintos vitais ou sexuais atuantes em cada célula que tomam as outras células por objeto neutralizam parcial mente os seus instintos de morte isto é os processos por eles estimulados e desse modo as mantêm vivas enquanto outras células fazem o mesmo para elas e ainda outras se sacrificam no exercício dessa função libidinal As células germinais mesmas se comportariam de modo absolutamente narcísico se gundo a designação que costumamos usar na teoria das neuroses quando um indivíduo conserva no Eu sua libido e não despende parte alguma dela em in vestimentos objetais As células germinais requerem para si mesmas a sua li bido a atividade de seus instintos de vida como reserva para a sua posterior grandiosa atividade construtiva Talvez se possa qualificar também as células dos neoplasmas malignos que destroem o organismo de narcísicas no mesmo sentido a patologia está disposta a considerar seus gérmens como inatos e atribuirlhes propriedades embrionárias Dessa maneira a libido de nossos in stintos sexuais coincidiria com o Eros dos filósofos e poetas que mantém unido tudo o que vive Aqui se nos oferece a oportunidade de rever a lenta evolução de nossa teor ia da libido A análise das neuroses de transferência nos impôs num primeiro momento a oposição entre instintos sexuais voltados para o objeto e 160311 outros instintos de que tínhamos conhecimento insatisfatório e que desig namos provisoriamente como instintos do Eu Entre eles tivemos de recon hecer em primeira linha os instintos que servem à autoconservação do indiví duo Não tínhamos como saber que outras distinções havia a fazer Nenhum conhecimento teria sido mais importante para fundamentar uma verdadeira psicologia do que uma visão aproximada da natureza comum e das eventuais peculiaridades dos instintos Mas em nenhum outro âmbito da psicologia tateávamos assim no escuro Cada um postulava tantos instintos ou instintos básicos quantos lhe apetecia e os manejava como os antigos filósofos gregos manejavam seus quatro elementos água terra fogo e ar A psicanálise que não podia prescindir de alguma hipótese sobre os instintos atevese inicial mente à popular diferenciação de instintos expressa nos termos amor e fome Não era pelo menos uma nova arbitrariedade Com isso avançávamos um bom trecho na análise das psiconeuroses O conceito de sexualidade e portanto o de um instinto sexual teve certamente que ser ampliado até abarcar muita coisa que não se incluía na função reprodutiva e isso provocou certo escândalo no mundo austero respeitável ou simplesmente hipócrita O passo seguinte ocorreu quando a psicanálise pôde aproximarse do Eu psicológico que primeiramente conhecera apenas como instância repressora censora habilitada a constituir proteções e formações reativas É certo que es píritos críticos e longividentes haviam desaprovado muito tempo antes a lim itação do conceito de libido à energia dos instintos sexuais voltados para o ob jeto Mas eles não informaram de onde lhes vinha a sua maior compreensão e não souberam dela retirar algo de útil para a análise Em lento e ponderado avanço a psicanálise observou então com que regularidade a libido é tirada do objeto e voltada para o Eu introversão e ao estudar o desenvolvimento da libido da criança em suas fases iniciais chegou à percepção de que o Eu é o genuíno e original reservatório da libido a qual somente a partir dele é esten dida ao objeto O Eu tomou lugar entre os objetos sexuais e logo foi visto como o mais eminente deles A libido que permanecia de tal modo no Eu foi 161311 chamada de narcísica28 Essa libido narcísica também era naturalmente manifestação de força de instintos sexuais no sentido analítico que tivemos de identificar com os instintos de autoconservação admitidos desde o princí pio Assim tornavase insatisfatória a oposição original entre instintos do Eu e instintos sexuais Uma parte dos instintos do Eu foi vista como libidinal no Eu atuavam provavelmente junto a outros também instintos sexuais mas é lícito dizer que a velha fórmula segundo a qual a psiconeurose baseiase num conflito entre os instintos do Eu e os instintos sexuais nada contém que hoje se deva rejeitar Apenas sucede que a diferença entre as duas espécies de instin tos originalmente pensada como de algum modo qualitativa deve agora ser caracterizada de outra forma isto é como sendo topológica E em particular a neurose de transferência o verdadeiro objeto de estudo da psicanálise con tinua a ser resultado de um conflito entre o Eu e o investimento libidinal de objeto Tanto mais deveremos agora enfatizar o caráter libidinal dos instintos de autoconservação quando ousamos dar outro passo reconhecendo o instinto sexual como o Eros que tudo preserva e derivando a libido narcísica do Eu dos montantes de libido com que as células somáticas se apegam umas à outras Mas agora nos defrontamos repentinamente com a seguinte questão se tam bém os instintos de autoconservação são de natureza libidinal talvez não ten hamos outros instintos que não os libidinais Pelo menos não há outros à vista Então é preciso dar razão aos críticos que desde o início suspeitaram que a psicanálise explica tudo a partir da sexualidade ou aos inovadores como Jung que prontamente utilizaram libido para a força instintual em geral Não é assim Certamente não era nossa intenção chegar a este resultado Partimos de uma nítida separação entre instintos do Eu instintos de morte e instintos sexuais instintos de vida Dispusemonos a incluir os chamados instintos de autoconservação entre os instintos de morte algo que depois retificamos 162311 Desde o princípio nossa concepção era dualista e hoje é mais claramente du alista do que antes desde que não mais denominamos os opostos instintos do Eu e instintos sexuais mas instintos de vida e de morte Já a teoria da libido de Jung é monista o fato de ele haver chamado sua única força instintual de li bido tinha de causar confusão mas não deve nos influenciar Supomos que outros instintos atuem no Eu além dos instintos libidinais de autoconservação deveríamos ser capazes de indicálos Infelizmente a análise do Eu progrediu pouco de modo que para nós é difícil fazêlo Os instintos libidinais do Eu po dem estar ligados de maneira especial aos outros instintos do Eu que ainda não conhecemos Mesmo antes que tivéssemos conhecimento do narcisismo já havia na psicanálise a conjectura de que os instintos do Eu atraem para si componentes libidinais Mas essas são vagas possibilidades que nossos opos itores dificilmente considerarão É embaraçoso que até agora a psicanálise nos tenha permitido apontar somente instintos libidinais Mas nem por isso partil haremos a conclusão de que não existem outros Na atual penumbra em que se acha a teoria dos instintos não convém re jeitar qualquer ideia que prometa alguma luz Partimos da grande polaridade de instintos de vida e instintos de morte O próprio amor objetal nos mostra uma segunda oposição assim aquela de amor afeição e ódio agressão Se conseguíssemos relacionar essas duas polaridades fazer uma remontar à outra Há muito reconhecemos um componente sádico no instinto sexual29 ele pode como sabemos tornarse autônomo e como perversão dominar toda a tendência sexual da pessoa Ele também aparece como instinto parcial domin ante numa das organizações prégenitais como as denominei Mas como pode o instinto sádico que visa a ferir o objeto ser derivado do Eros conser vador da vida Não cabe supor que esse sadismo é na verdade um instinto de morte que foi empurrado do Eu pela influência da libido narcísica de modo que surge apenas em relação ao objeto Então ele entra a serviço da função sexual no estágio oral da organização da libido a posse amorosa ainda coin cide com a destruição do objeto depois o instinto sádico se separa e enfim no 163311 estágio da primazia genital para a finalidade da procriação assume a função de subjugar o objeto sexual até o ponto exigido para a realização do ato Po demos dizer de fato que o sadismo expulso do Eu mostrou o caminho aos componentes libidinais do instinto sexual depois estes acorrem para o objeto Quando o sadismo original não experimenta atenuação ou fusão produzse a conhecida ambivalência de amor e ódio na vida amorosa Se for permitido fazer tal suposição estará satisfeita a exigência de oferecer o exemplo de um deslocado é certo instinto de morte Essa concepção porém está muito longe de qualquer evidência e cria uma impressão quase mística Cai sobre nós a suspeita de haver procurado a todo custo uma saída para um grande embaraço Então poderemos lembrar que tal suposição não é nova que já a fizemos antes num momento em que não havia nenhum em baraço Observações clínicas nos levaram naquela época à concepção de que o instinto parcial complementar ao sadismo o masoquismo deve ser enten dido como uma reversão do sadismo para o próprio Eu30 Mas em princípio não há diferença entre uma volta do instinto para o Eu desde o objeto e a volta desde o objeto para o Eu de que aqui tratamos agora O masoquismo a volta do instinto contra o próprio Eu seria então na realidade um retorno a uma fase anterior dele mesmo uma regressão Em um ponto a descrição que ali se fez do masoquismo necessitaria de correção por ser demasiado exclu siva o masoquismo também pode ser primário algo que ali pretendi contest ar31 Mas retornemos aos instintos sexuais conservadores da vida As experiên cias com protozoários nos ensinaram que a fusão de dois indivíduos sem di visão subsequente a copulação após a qual os dois se separam tem efeito fortalecedor e rejuvenescedor sobre ambos ver Lipschütz acima Nas ger ações seguintes eles não mostram sinais de degeneração e parecem capazes de resistir mais longamente aos danos de seu próprio metabolismo Creio que po demos tomar essa observação como típica do efeito produzido também pela união sexual Mas de que modo a fusão de duas células pouco diferentes 164311 provoca uma tal renovação da vida O experimento que substitui a copulação dos protozoários pela ação de estímulos químicos e mesmo mecânicos loc cit permite uma resposta segura acontece pela introdução de novas quan tidades de estímulos Isto se harmoniza com a hipótese de que o processo vital do indivíduo conduz por razões internas ao nivelamento das tensões quím icas ou seja à morte enquanto a união com uma substância viva individual mente diversa magnifica essas tensões introduz como que novas diferenças vitais que depois têm de ser dissipadas vivendo É claro que quanto a esta dis similaridade deve haver um optimum ou mais de um O fato de havermos re conhecido como tendência dominante da vida psíquica talvez da própria vida dos nervos o esforço de diminuir manter constante abolir a tensão interna dos estímulos o princípio do Nirvana na expressão de Barbara Low tal como se exprime no princípio do prazer é um dos nossos mais fortes motivos para crer na existência de instintos de morte Mas ainda sentimos como apreciável estorvo em nossa argumentação o fato de precisamente quanto ao instinto sexual não podermos demonstrar o caráter de compulsão à repetição que inicialmente nos levou a detectar os in stintos de morte Certamente a área dos processos de desenvolvimento embri onários é pródiga em tais fenômenos de repetição as duas células germinais da reprodução sexual e a história de sua existência são elas mesmas apenas re petições dos primórdios da vida orgânica mas o essencial nos processos visad os pelo instinto sexual é a fusão de dois corpos de células Apenas isso garante nos seres vivos superiores a imortalidade da substância viva Em outras palavras necessitamos obter informação sobre a gênese da re produção sexual e a origem dos instintos sexuais uma tarefa de assustar quem não é desse âmbito e que até agora mesmo os especialistas não puderam realiz ar Por isso nos limitaremos a destacar resumidamente aquilo que de todas as afirmativas e opiniões discordantes pode ser relacionado à presente argumentação 165311 Uma concepção despoja o problema da reprodução de seu fascínio mis terioso ao apresentála como manifestação parcial do crescimento multi plicação por divisão germinação gemiparidade A origem da reprodução at ravés de células germinais sexualmente diferenciadas pode ser vista segundo um modo de pensar sobriamente darwiniano da forma seguinte a vantagem da anfimixia obtida em certo momento pela copulação casual de dois proto zoários foi mantida e depois aproveitada na evolução subsequente O sexo portanto não seria muito antigo e os instintos extraordinariamente arrebata dos que visam promover a união sexual estariam repetindo algo que aconteceu casualmente uma vez e que desde então se firmou por ser vantajoso Como no caso da morte a questão aqui é se devemos admitir nos proto zoários apenas o que mostram e se podemos supor que forças e processos que se tornam visíveis apenas em organismos superiores surgiram também neles primeiramente A concepção da sexualidade que acabamos de mencionar é de pouca valia para nosso propósito Poderseá objetar a ela que pressupõe a ex istência de instintos de vida já atuantes nos mais simples organismos pois de outro modo a copulação que atua contra o curso da vida e torna mais difícil a tarefa de deixar de viver não teria sido mantida e elaborada mas sim evitada Logo se não quisermos abandonar a hipótese de instintos de morte será preciso conjugálos a instintos de vida desde o começo Mas é preciso recon hecer que aí trabalharemos com uma equação de duas incógnitas O que na ciência encontramos sobre a gênese da sexualidade é tão pouco que o prob lema pode ser comparado a uma escuridão em que nem o raio de luz de uma hipótese penetrou É em outro lugar que deparamos com uma tal hipótese de natureza tão fantástica porém é antes um mito que uma explicação científica que eu não ousaria apresentála aqui se ela não satisfizesse justa mente uma condição que procuramos satisfazer Pois ela faz derivar um in stinto da necessidade de restauração de um estado anterior 166311 Refirome naturalmente à teoria que Platão faz Aristófanes exprimir no Simpósio que trata não só da origem do instinto sexual mas também de sua mais importante variação relativa ao objeto33 Pois antes o nosso corpo não era formado exatamente como hoje era muito diferente Em primeiro lugar havia três sexos não só o masculino e o feminino como agora mas também um terceiro que unia os dois o homemfêmea Mas nestes seres tudo era duplo tinham quatro mãos e quatro pés dois rostos duplos genitais etc Então Zeus decidiu partilos em dois como se divide os marmelos para fazer conserva Como todos se achavam então divididos o anseio impeliu as duas metades a juntarse elas se enlaçavam com as mãos abraçavamse desejando fundirse 34 Devemos seguir a deixa do filósofopoeta e arriscar a suposição de que a substância viva ao ser animada foi desmembrada em pequenas partículas que desde então buscam reunirse de novo mediante os instintos sexuais De que esses instintos nos quais prossegue a afinidade química da matéria inanimada gradualmente superam atravessando o reino dos protozoários as dificuldades que opõe a tal esforço um meio carregado de estímulos perigosos para a vida que os obriga a formar uma camada cortical protetora Que essas dispersadas partículas da substância viva alcançam desse modo a multicelularidade e enfim transferem às células germinais em elevada concentração o instinto para reunirse Acho que neste ponto devemos parar Mas não sem acrescentarmos algumas palavras de reflexão crítica Talvez me perguntem se e até onde estou convencido das hipóteses aqui apresentadas A resposta seria que eu próprio não estou convencido nem peço que outros nelas acreditem Ou mais precisamente não sei até onde creio nelas Parece me que o fator afetivo da convicção não precisa de forma alguma ser consid erado aqui Podemos nos entregar a um curso de pensamento acompanhálo até onde ele for somente por curiosidade ou se quiserem como advocatus di aboli advogado do diabo que não se vendeu ao diabo por isso Não discuto que o terceiro passo na teoria dos instintos que aqui empreendo não pode 167311 reivindicar a mesma certeza dos dois anteriores a extensão do conceito de sexualidade e a tese do narcisismo Essas inovações foram transposições diretas da observação para a teoria sem maiores fontes de erros do que as inevitáveis nesses casos É certo que também a asserção do caráter regressivo dos instintos baseiase em material observado isto é nos fatos da compulsão à repetição Mas talvez eu tenha superestimado o significado deles De toda maneira só é possível levar adiante essa ideia combinando repetidamente o factual e o apen as excogitado assim afastandonos da observação Sabemos que quanto mais isso é feito enquanto se constrói uma teoria menos confiável é o resultado fi nal mas não há como especificar o grau de incerteza Podemos nos sair bem ou equivocarmonos vergonhosamente Em trabalhos desse tipo não confio muito no que chamam de intuição o que dela pude ver pareceume antes o produto de uma certa imparcialidade do intelecto Mas infelizmente é raro ser imparcial quando se trata das coisas últimas dos grandes problemas da ciência e da vida Creio que cada um é aí dominado por preferências bastante enraiza das interiormente cujo jogo faz sem o saber com sua especulação Havendo tão bons motivos para a desconfiança a atitude para com os resultados de nosso empenho intelectual terá de ser uma fria benevolência Mas acrescento que uma autocrítica como esta não obriga a uma tolerância especial para com opiniões divergentes Podemos rejeitar implacavelmente teorias que são con trariadas já nos primeiros passos da análise do que observamos e ao mesmo tempo saber que a validade das que defendemos é apenas provisória No julga mento de nossa especulação sobre os instintos de vida e de morte não inco modaria muito que nela sucedam tantos processos estranhos e pouco evid entes como um instinto ser expulso por outros dirigirse do Eu para um ob jeto e coisas assim Isto se deve a que somos obrigados a trabalhar com os ter mos científicos ou seja com a linguagem figurada própria da psicologia mais corretamente da psicologia das profundezas De outra forma não poderíamos descrever os processos em questão de fato não os teríamos sequer percebido As falhas de nossa descrição provavelmente desapareceriam se já pudéssemos 168311 empregar os termos fisiológicos ou químicos em vez dos psicológicos Eles também são parte de uma linguagem apenas figurada mas uma que há muito tempo nos é familiar e talvez também mais simples Por outro lado para nós é bastante claro que a incerteza de nossa especu lação foi enormemente acrescida pela necessidade de tomar empréstimos à ciência biológica A biologia é verdadeiramente um campo de possibilidades ilimitadas podemos esperar dela as mais surpreendentes revelações e não somos capazes de imaginar as respostas que em algumas décadas ela dará às questões que lhe dirigimos Talvez sejam respostas tais que façam ruir todo o edifício artificial das nossas hipóteses Se assim for alguém poderia perguntar para que serve realizar trabalhos como o exposto nesta seção e para que publicálos Bem não posso negar que algumas analogias conexões e relações nele encontradas me pareceram dignas de atenção35 VII Se querer restaurar um estado anterior é realmente uma característica universal dos instintos não podemos nos admirar de que na psique tantos processos ocorram independentemente do princípio do prazer Essa característica seria comunicada a todos os instintos parciais e no caso deles visaria o retorno a um certo estágio do curso de desenvolvimento Mas tudo isso sobre o qual o princípio do prazer ainda não tem poder não se acha necessariamente em oposição a ele e continua não resolvido o problema de determinar a relação entre os processos instintuais de repetição e o domínio do princípio do prazer Vimos que uma das primeiras e mais importantes funções do aparelho psíquico é ligar os impulsos instintuais que lhe chegam substituir o processo primário nele dominante pelo processo secundário transformar sua energia de investimento livre e móvel em investimento predominantemente parado tônico Durante essa transformação não se pode atentar para o 169311 desenvolvimento do desprazer mas o princípio do prazer não é anulado por isso Pelo contrário a transformação ocorre a serviço do princípio do prazer a ligação é um ato preparatório que introduz e assegura o domínio do princípio do prazer Vamos distinguir entre função e tendência de maneira mais aguda do que fizemos até agora O princípio do prazer então é uma tendência que se acha a serviço de uma função à qual cabe tornar o aparelho psíquico isento de excit ação ou conservar o montante de excitação dentro dele constante ou o menor possível Ainda não podemos nos decidir por nenhuma dessas concepções mas notamos que a função assim determinada participaria do universal empenho de todos os viventes retornar à quietude do mundo inorgânico Todos nós aprendemos que o maior prazer ao nosso alcance o do ato sexual está rela cionado à extinção momentânea de uma elevada excitação Mas a ligação do impulso instintual seria uma função preparatória que deve dispor a excitação para a sua definitiva eliminação no prazer da descarga Isso também leva a perguntar se as sensações de prazer e desprazer podem ser igualmente geradas pelos processos excitatórios ligados e pelos não lig ados Parece totalmente fora de dúvida que os não ligados os processos primários produzem sensações bem mais intensas nas duas direções do que as dos ligados dos secundários Os processos primários são também anteri ores no começo da vida psíquica não há outros e podemos inferir que se o princípio do prazer já não estivesse em operação neles não poderia chegar a estabelecerse para os posteriores Assim alcançamos um resultado que no fundo não é simples de que no começo da vida psíquica o empenho por prazer se manifesta bem mais intensamente do que depois mas não tão irrestrita mente tem que admitir interrupções frequentes Em períodos mais maduros o domínio do princípio do prazer é bem mais assegurado mas ele próprio assim como os demais instintos não escapa à sujeição De todo modo aquilo que no processo excitatório leva ao surgimento das sensações de prazer e desprazer tem que existir no processo secundário não menos que no primário 170311 Aqui seria o ponto para se iniciar novas pesquisas Nossa consciência nos transmite desde o interior não apenas as sensações de prazer e desprazer mas também de uma peculiar tensão que pode ela mesma ser prazerosa ou de sprazerosa Essas sensações devem nos fazer distinguir entre processos de en ergia ligados e não ligados ou a sensação de tensão há de ser relacionada à quantidade absoluta eventualmente ao nível do investimento enquanto a série prazerdesprazer indica a mudança da quantidade de investimento na unidade de tempo Também nos chama a atenção que os instintos de vida tenham bem mais a ver com nossa percepção interna pois se apresentam perturbando a paz trazendo tensões cuja eliminação é sentida como prazer enquanto os instintos de morte parecem realizar seu trabalho discretamente O princípio do prazer parece mesmo estar a serviço dos instintos de morte é certo que vigia também os estímulos de fora avaliados como perigosos pelas duas espécies de instintos mas sobretudo os aumentos de estímulos a partir de dentro que chegam a difi cultar a tarefa de viver A isto se relacionam inúmeras outras questões que atualmente não é possível responder Temos de ser pacientes e aguardar novos meios e oportunidades de investigação E permanecer dispostos a abandonar um caminho que trilhamos por algum tempo se ele parece não conduzir a algo de bom Somente aqueles crédulos que exigem da ciência um substituto para o catequismo abandonado se aborrecerão com o pesquisador por desenvolver ou modificar seus pontos de vista De resto talvez um poeta Rückert nos Macamas de Hariri nos console pelo vagaroso progresso de nosso conheci mento científico O que não podemos alcançar voando devemos alcançar claudicando Segundo as Escrituras não é pecado claudicar 171311 1 O essencial é provavelmente que prazer e desprazer como sensações conscientes achamse ligados ao Eu 2 Cf Zur Psychoanalyse der Kriegsneurosen Psicanálise das neuroses de guerra com con tribuições de Ferenczi Abraham Simmel e E Jones volume i da Biblioteca Psicanalítica In ternacional 1919 No original Schreck Furcht Angst Freud já procurava diferenciar Furcht e Angst na segunda parte da Análise da fobia de um garoto de cinco anos de 1909 Não há espaço de uma linha vazia entre esse parágrafo e o anterior na edição alemã utilizada Gesammelte Werke Mas considerando que faz sentido um espaço nesse ponto e que ele se acha numa edição alemã mais recente Studienausgabe resolvemos incorporálo aqui e em alguns outros lugares S Pfeifer Äußerungen infantilerotischer Triebe im Spiele Manifestações de instintos infantileróticos no jogo Imago v 5 1919 3 Esta interpretação foi confirmada inteiramente depois mediante uma outra observação Num dia em que sua mãe estivera ausente por várias horas foi recebida na sua volta com a saudação Bebi oooo que primeiramente foi incompreensível Logo se revelou porém que durante o longo período em que ficou só ele encontrara um modo de fazer desaparecer a si próprio Havia descoberto sua imagem no espelho que vinha quase até o chão e se acocorado de maneira que a imagem foi embora Impulso de apoderamento no original Bemächtigungstrieb 4 Quando ele tinha cinco anos e nove meses faleceu sua mãe Agora que ela realmente fora embora ooo o menino não demonstrou luto por ela É certo que naquele intervalo nascera uma outra criança que havia despertado nele um forte ciúme 5 Cf Uma recordação de infância em Poesia e verdade Imago v 5 1917 Aqui foram empregados dois verbos para traduzir um só do original abreagieren embora já se admita a forma abreagir 6 Cf Recordar repetir e elaborar novas recomendações sobre a técnica da psicanálise ii 172311 Superioridade versão literal para Überlegenheit como consta no original nas versões es trangeiras consultadas a espanhola da Biblioteca Nueva a argentina da Amorrortu a italiana da Boringhieri a Standard inglesa e a holandesa da Boom superioridad reflexión razionale dis tacco aloofness superioriteit 7 Eu argumento em outro lugar Observações sobre a teoria e a prática da interpretação dos sonhos 1923 que é o efeito de sugestão da terapia que aí vem ajudar a compulsão à re petição isto é a docilidade para com o médico profundamente arraigada no inconsciente com plexo parental 8 Marcinowski Die erotischen Quellen der Minderwertigkeitsgefühle As fontes eróticas dos sentimentos de inferioridade Zeitschrift für Sexualwissenschaft v 4 1918 Demoníaco dämonisch aqui no sentido grego em que demônio daimon designa um poder superior não no sentido cristão de diabólico por isso alguns tradutores o puseram entre aspas 9 Cf as pertinentes observações de C G Jung a respeito disso no ensaio Die Bedeutung des Vaters für das Schicksal des Einzelnes A significação ou importância do pai para o destino do indivíduo Jahrbuch für Psychoanalyse v 1 1909 10 Conforme a discussão de J Breuer na parte teórica dos Estudos sobre a histeria 1895 11 J Breuer e S Freud Estudos sobre a histeria 4a edição 1922 Ele er no original referindose ao organismo vivo é o que entendemos Mas o termo alemão que traduzimos por proteção contra estímulos Reizschutz é também masculino Isso levou James Strachey a entender que o pronome diz respeito a Reizschutz e na Standard inglesa ele usou the protective shield o escudo protetor sua versão para o vocábulo alemão nesta passagem Com exceção da italiana que nisso acompanha Strachey como em muitas outras ocasiões as versões consultadas fazem a mesma leitura nossa 12 Cf Os instintos e seus destinos 1915 Preparação para a angústia Angstbereitschaft no original nas versões consultadas dis posición para la angustia segue o termo alemão entre parênteses apronte angustiado pre parazione al pericolo propria dellangoscia preparedness for anxiety com nota de rodapé re metendo à nota que aqui transcrevemos na parte ii angstvaardigkeid 173311 13 Introdução a Psicanálise das neuroses de guerra Internationale Psychoanalytische Bibliothek n 1 1919 14 Cf A interpretação dos sonhos cap vii Psicologia dos processos oníricos Impulsivo tradução que aqui damos ao adjetivo triebhaft as versões estrangeiras consulta das usam instintivo pulsional pulsionalità instinctual driftmatig sendo que na versão do ar gentino Etcheverry a segunda e na inglesa de Strachey a penúltima há uma nota lembrando que a palavra Trieb tem também uma conotação de ímpeto de impulsividade que falta à palav ra instinto como admite Strachey e também à palavra pulsión acrescentemos por isso ad otamos impulsivo nesse contexto Cf nota da p 181 Fantasiadesejo tradução comodamente literal que aqui se dá a Wunschphantasie nas versões consultadas fantasía optativa fantasía del deseo fantasia di desiderio wishful phantasy wensfantasie 15 Não duvido que conjecturas semelhantes sobre a natureza dos instintos já tenham sido formuladas em repetidas ocasiões 16 Não se ignore o fato de que o que vem em seguida é o desenvolvimento de uma linha ex trema de pensamento que mais tarde quando os instintos sexuais forem levados em conta so frerá limitação e justificação 17 E no entanto é apenas a eles que podemos atribuir uma tendência interior ao progresso e ao maior desenvolvimento ver adiante 18 Do contexto se depreende que instintos do Eu aqui é uma designação provisória ligada aos termos iniciais da psicanálise Aqui a palavra impulso talvez fosse mais pertinente para verter Trieb cf notas das pp 173 e 200 que lembram o maior alcance do termo original O mesmo vale para Entwicklung também nessa oração que significa tanto desenvolvimento como evolução 19 Por um outro caminho Ferenczi chegou à possibilidade da mesma concepção Seguindo coerentemente este curso de pensamento é preciso familiarizarse com a ideia de uma tendên cia à perseverança ou à regressão que domina também a vida orgânica enquanto a tendência 174311 ao maior desenvolvimento à adaptação etc é animada apenas por estímulos externos Entwicklungsstufen des Wirklichkeitssinnes Estágios de desenvolvimento do sentido da realidade Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse v 1 1913 p 137 No original um die Schwere des Daseins zu ertragen citação de Schiller Die Braut von Mess ina A noiva de Messina ato i cena 8 20 A Weismann Über die Dauer des Lebens Sobre a duração da vida 1882 Über Leben und Tod Sobre a vida e a morte 1884 Das Keimplasma O plasma germinativo 1892 etc 21 Idem Über Leben und Tod 22 Idem Dauer des Lebens p 38 23 Idem Leben und Tod 2a ed p 67 24 Idem Dauer des Lebens p 33 Um arranjo de conveniência no original Zweckmäßigkeitseinrichtung nas versões con sultadas un dispositivo de acomodación un mecanismo de conveniencia ha una funzione prat ica a purposive contrivance a matter of expediency een doelmatige inrichting 25 Idem Über Leben und Tod conclusão 26 Cf Max Hartmann Tod und Fortpflanzung Morte e procriação 1906 Alexander Lipschütz Warum wir sterben Por que morremos Kosmosbücher 1914 Franz Doflein Das Problem des Todes und der Unsterblichkeit bei den Pflanzen und Tieren O problema da morte e da imortalid ade nas plantas e nos animais 1909 Freud se refere a A Goette Über den Ursprung des Todes Sobre a origem da morte Ham burgo 1883 27 A Schopenhauer Über die anscheinende Absichtlichkeit im Schicksale des Einzelnen Sobre a aparente intencionalidade no destino do indivíduo Großherzog Wilhelm ErnstAus gabe v iv p 268 em Parerga und Paralipomena n 4 v 1 1851 28 Introdução ao narcisismo Jahrbuch für Psychoanalyse v 6 1914 175311 Triebkraft no original Na linguagem corrente o termo sempre foi usado no sentido de força motriz que é a versão encontrada nos dicionários bilíngues alemãoportuguês 29 Três ensaios de uma teoria da sexualidade 1a ed 1905 30 Cf Três ensaios e Os instintos e seus destinos 1915 31 Num trabalho substancial e pleno de ideias embora não inteiramente claro para mim Sa bina Spielrein antecipou boa parte dessa especulação Ela caracteriza o componente sádico do instinto sexual como destrutivo Die Destruktion als Ursache des Werdens A destruição como causa do viraser Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen v 4 1912 De outra maneira A Stärcke Inleiding bij de vertaling von S Freud De sexuele beschavingsmoral etc Introdução à tradução de A moral sexual civilizada etc de S Freud 1914 procurou identificar o conceito de libido mesmo com o conceito biológico teoricamente suposto de um impulso para a morte cf também Otto Rank Der Künstler O artista 1907 Todos esses esforços assim como o do texto testemunham a necessidade de uma clarificação na teoria dos instintos que ainda não foi alcançada Traduçãoparáfrase para abgelebt particípio de ableben que significa acabar falecer usar gastar nas versões consultadas a melhor equivalência se acha em inglês agotadas viviéndolas devividas com o original entre chaves soppresse dalla morte lived out lived off ten einde geleefd vividas até o fim 32 Embora Weismann Das Keimplasma 1892 também negue essa vantagem A fecundação não significa de maneira alguma um rejuvenescimento ou renovação da vida ela não seria ne cessária para o prosseguimento da vida ela nada é senão um dispositivo para tornar possível a mistura de duas tendências hereditárias diversas Ele acha porém que um efeito de tal mistura é o acréscimo na variabilidade dos seres vivos 33 Tradução de U v WilamowitzMöllendorff Platão i pp 366 ss aqui traduzido da citação de Freud 34 Agradeço ao prof Heinrich Gomperz Viena os seguintes comentários sobre a origem do mito platônico que reproduzo em parte com suas palavras Gostaria de chamar a atenção para o fato de que essencialmente a mesma teoria já se encontra nos Upanixades No Brihad AranyakaUpanixade i 4 3 Deussen 60 Upanishads des Veda p 393 em que se descreve como o mundo procede do Atman o Simesmo ou Eu lemos Mas ele o Atman o Si 176311 mesmo ou Eu também não tinha alegria por isso aquele que é só não tem alegria Então ele ansiou por um outro E ele era grande como um homem e uma mulher quando estes se en laçam Ele dividiu esse Simesmo em duas partes daí se originaram marido e mulher Por isso esse corpo é como uma metade separada do Simesmo assim explicou Yajnavalkya Por isso o espaço aqui vazio é preenchido pela mulher O BrihadAranyakaUpanixade é o mais antigo dos Upanixades e nenhum estudioso com petente o situa depois do ano 800 aC aproximadamente Divergindo da opinião predomin ante eu não negaria a possível dependência mesmo indireta dessas fontes hindus por parte de Platão desde que tal possibilidade também não pode ser diretamente contestada quanto à doutrina da transmigração das almas Uma tal dependência mediada em primeiro lugar pelos pitagóricos dificilmente afetaria em algo a importância da coincidência dos pensamentos pois Platão não teria adotado uma tal história que de algum modo lhe chegou da tradição oriental e menos ainda conferido a ela um lugar tão importante se esta não o tivesse impressionado por seu conteúdo de verdade Num ensaio de K Ziegler Menschenund Weltenwerden Neue Jahrbücher für das klassische Altertum v 31 pp 529 ss 1913 que se ocupa sistematicamente da investigação desse pensamento antes de Platão ele remonta a concepções da Babilônia 35 Eis algumas palavras para esclarecer nossa terminologia que durante essa discussão experi mentou um certo desenvolvimento Sabíamos o que são instintos sexuais por sua relação com os sexos e com a função reprodutiva Depois mantivemos esse nome quando os resulta dos da psicanálise nos fizeram atenuar seu nexo com a reprodução Com a tese da libido nar císica e a extensão do conceito de libido às células individuais o instinto sexual transformouse para nós em Eros que busca impelir uma para a outra e manter juntas as partes da substância viva e os instintos comumente chamados de sexuais apareceram como a porção desse Eros voltada para o objeto Segundo nossa especulação esse Eros atua desde o começo da vida e surge como instinto de vida oposto ao instinto de morte que se originou pela animação do inorgânico Ela tenta solucionar o enigma da vida mediante a suposição desses dois instin tos que lutam entre si desde os primórdios Mais difícil talvez é acompanhar a transformação experimentada pelo conceito de instintos do Eu Originalmente denominamos assim todas as tendências instintuais que nos eram menos conhecidas e que se diferenciam dos instintos sexuais voltados para o objeto e colocamos os instintos do Eu em oposição aos instintos sexuais cuja expressão é a libido Mais tarde nos adentramos na análise do Eu e percebemos que também uma parte dos instintos do Eu é de natureza libidinal tendo tomado o próprio 177311 Eu por objeto Então esses instintos de autoconservação narcísicos tiveram de ser incluídos entre os instintos sexuais libidinais A oposição entre instintos do Eu e sexuais transformouse naquela entre instintos do Eu e do objeto ambos de natureza libidinal Mas em seu lugar apare ceu uma nova oposição entre instintos libidinais do Eu e do objeto e outros que devem ser estabelecidos no Eu e talvez constituam os instintos de destruição Nossa especulação conver teu essa oposição naquela entre instintos de vida Eros e instintos de morte Was man nicht erfliegen kann muß man erhinken Die Schrift sagt es ist keine Sünde zu hinken Citação de um dos macamas sermões de Abu Hariri escritor árabe na versão de Rückert 178311 UMA DIFICULDADE DA PSICANÁLISE 1917 TÍTULO ORIGINAL EINE SCHWIERIGKEIT DER PSYCHOANALYSE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM IMAGO V 5 N 1 PP 17 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XII PP 312 Direi logo de início que não me refiro a uma dificuldade intelectual algo que torne a psicanálise inacessível à compreensão do ouvinte ou leitor mas a uma dificuldade afetiva algo que torna alheios à psicanálise os sentimentos do indi víduo de modo que este não se inclina a acreditar ou demonstrar interesse por ela Logo se percebe que as duas dificuldades resultam numa só Quem não vê com bastante simpatia uma coisa não a compreende facilmente Em consideração ao leitor que suponho ainda não informado sobre o tema devo remontar um bom pedaço Na psicanálise veio a configurarse a partir de um grande número de observações individuais e impressões algo como uma teoria que agora se conhece pelo nome de teoria da libido Como é sabido a psicanálise se ocupa do esclarecimento e da eliminação dos chamados distúr bios nervosos Foi preciso achar um ponto para a abordagem desse problema e resolveuse buscálo na vida instintual da psique Hipóteses sobre a vida in stintual do ser humano tornaramse portanto o fundamento para a nossa con cepção da doença nervosa A psicologia tal como é ensinada entre nós dá respostas muito pouco satis fatórias quando questionada acerca dos problemas da vida psíquica Mas em nenhuma área suas informações são mais pobres do que na dos instintos Fica a nosso critério então decidir como nos orientarmos inicialmente nesse ponto A concepção popular distingue fome e amor como represent antes dos instintos que buscam respectivamente a conservação do ser indi vidual e a sua reprodução Seguindo essa distinção tão palpável na psicanálise também distinguimos entre instintos de autoconservação ou do Eu e instintos sexuais e chamamos de libido desejo sexual a energia com que o instinto sexual aparece na vida psíquica como algo análogo à fome à vontade de poder etc no tocante aos instintos do Eu É com base nessa hipótese que fazemos a primeira descoberta significativa Aprendemos que os instintos sexuais têm importância bem maior para a com preensão das neuroses que estas são por assim dizer enfermidades específicas da função sexual que o fato de uma pessoa contrair ou não uma neurose depende da quantidade de libido e da possibilidade de satisfazêla e descarregála por meio da satisfação que a forma da doença é determinada pelo modo como o indivíduo perfaz o desenvolvimento da função sexual ou como dizemos pelas fixações que sua libido experimentou no curso de seu desenvolvimento e que com uma certa técnica de influência psíquica não muito simples temos como esclarecer e ao mesmo tempo anular alguns tipos de neuroses Nosso esforço terapêutico tem maior sucesso com certa classe de neuroses que surgem do conflito entre os instintos do Eu e os instintos sexuais Pois no ser humano pode ocorrer que as exigências dos instintos sexuais que sem dúvida ultrapassam o indivíduo apareçam como um perigo para o Eu ameaçandolhe a autoconservação ou a autoestima Então o Eu se defende nega aos instintos sexuais a satisfação desejada e forçaos a tomar os desvios de uma satisfação substituta que se manifestam como sintomas nervosos A terapia psicanalítica consegue então submeter o processo repressivo a uma revisão e levar o conflito a um desfecho melhor compatível com a saúde Adversários incompreensivos nos fazem a objeção de parcialidade na avaliação dos instintos sexuais o ser humano teria outros interesses além dos sexuais Nós jamais esquecemos ou negamos isso nem por um momento sequer Nossa parcialidade é como a do químico que explica todas as constituições pela força da atração química Não é por isso que ele nega a força da gravidade apenas deixa para os físicos a sua apreciação Durante o trabalho terapêutico temos de considerar a distribuição da libido no paciente pesquisamos as representações objetais a que sua libido está ligada e a liberamos a fim de pôla à disposição do Eu Nisso viemos a traçar um quadro muito curioso da distribuição original e primeira da libido no ser hu mano Tivemos de supor que no início da evolução individual toda a libido todo o empenho erótico toda a capacidade amorosa se acha ligada à própria pessoa ou como dizemos investe o próprio Eu Somente depois ocorre apoiandose na satisfação das grandes necessidades vitais que a libido trans borde do Eu para os objetos externos e apenas assim podemos reconhecer 181311 como tais os instintos libidinais e separálos dos instintos do Eu A libido pode novamente destacarse desses objetos e retirarse para o Eu Ao estado em que o Eu retém a libido chamamos narcisismo lembrando o mito grego do jovem Narciso que se apaixonou por sua própria imagem refletida Portanto atribuímos à pessoa um progresso do narcisismo para o amor objetal Mas não cremos que toda a libido passe alguma vez do Eu para o ob jeto Um certo montante de libido sempre fica no Eu um certo grau de nar cisismo continua a existir mesmo com o amor objetal bem desenvolvido O Eu é um grande reservatório do qual flui a libido destinada aos objetos e ao qual ela novamente aflui a partir dos objetos A libido objetal foi primeira mente libido do Eu e pode transformarse de novo em libido do Eu É essen cial para a plena saúde da pessoa que sua libido não perca a mobilidade plena Para ilustrar essa condição imaginemos um protozoário em que a substância viscosa lança pseudópodes prolongamentos nos quais a substância somática se estende mas que a qualquer instante podem novamente retrairse de modo que a forma da pequena massa de protoplasma seja restabelecida O que procurei delinear com essas indicações é a teoria libidinal das neur oses sobre a qual se baseiam todas as nossas concepções acerca da natureza desses estados patológicos e o nosso procedimento terapêutico para combatê los É claro que também consideramos válidos os pressupostos da teoria da li bido para o comportamento normal Falamos de narcisismo do bebê e atribuí mos ao intenso narcisismo do homem primitivo o fato de ele crer na onipotên cia de seus pensamentos e de querer influir no curso dos eventos do mundo mediante a técnica da magia Após essa introdução gostaria de assinalar que o narcisismo geral o amor próprio da humanidade sofreu até o momento três duras afrontas por parte da pesquisa científica a O ser humano acreditou no início de sua pesquisa que sua morada a Terra achavase imóvel no centro do universo enquanto o Sol a Lua e os 182311 planetas moviamse ao seu redor em trajetórias circulares Nisso acompanhou de modo ingênuo as impressões de seus sentidos pois não sente o movimento da Terra e sempre que pode olhar livremente à sua volta vêse no centro de um círculo que abrange o mundo exterior A posição central da Terra era garantia de seu papel dominante no universo e parecia condizer muito bem com a tendência humana de sentirse dono deste mundo O aniquilamento dessa ilusão narcísica está relacionado para nós ao nome e à obra de Nicolau Copérnico no século xvi Muito antes dele os pitagóricos haviam questionado a posição privilegiada da Terra e Aristarco de Samos havia declarado no século iii aC que a Terra era bem menor que o Sol e se movimentava em torno deste A grande descoberta de Copérnico foi feita antes dele portanto Quando ela teve reconhecimento geral porém o amor próprio humano experimentou sua primeira afronta aquela cosmológica b No curso de sua evolução cultural o homem se arvorou em senhor das demais criaturas do reino animal Não satisfeito com esse predomínio começou a criar um abismo entre sua natureza e a deles Negou que pos suíssem razão e dotou a si mesmo de uma alma imortal invocando para si uma procedência divina que lhe permitiu romper os laços com o mundo animal É digno de nota que tal presunção ainda seja desconhecida do bebê assim como do homem primitivo e primevo Ela resulta de uma evolução posterior mais ambiciosa No estágio do totemismo não repugnava ao primitivo que a sua tribo remontasse a um antepassado animal Nos mitos que contêm os precipit ados desse antigo modo de pensar os deuses assumem formas animais e a arte dos primórdios apresenta os deuses com cabeças de animais A criança não vê diferença entre sua própria natureza e a do animal não se surpreende de que os animais pensem e falem nos contos de fadas desloca para um cão ou um cavalo o sentimento de medo que tenha em relação ao pai sem pretender com isso de preciar o pai Somente quando se torna um adulto ela se acha a tal ponto afastada dos animais que insulta seres humanos com o nome de um animal 183311 Todos nós sabemos que há pouco mais de meio século as pesquisas de Charles Darwin de seus colaboradores e precursores puseram fim a essa pre sunção do ser humano O homem não é algo diferente nem melhor que os ani mais é ele próprio de origem animal mais aparentado a algumas espécies mais distante de outras Suas conquistas posteriores não puderam apagar testemunhos da equivalência tanto na estrutura do corpo como na disposição psíquica Esta é a segunda afronta aquela biológica ao narcisismo humano c A terceira afronta de natureza psicológica é talvez a mais sentida Embora humilhado exteriormente o homem sentese soberano em sua pró pria psique Ele criou em alguma parte do âmago de seu Eu um órgão inspet or que vigia seus impulsos e ações para que coincidam com suas exigências Não sucedendo isso são implacavelmente inibidos e recolhidos A percepção interna do Eu a consciência informao sobre todos os eventos significativos da atividade psíquica e a vontade orientada por essas notícias executa o que o Eu ordena modifica o que tenderia a realizarse autonomamente Pois a psique não é algo simples é antes uma hierarquia de instâncias superiores e subordinadas uma profusão de impulsos que independentes uns dos outros lutam pela realização de modo correspondente à multiplicidade de instintos e de relações com o mundo externo que frequentemente se antagonizam e são incompatíveis O funcionamento requer que a instância mais alta tenha ciência de tudo o que se prepara e que a sua vontade possa penetrar em todo canto a fim de exercer sua influência Mas o Eu se sente seguro tanto da fidelidade e completude das informações quanto da viabilidade de suas ordens Em determinadas doenças e justamente nas neuroses que estudamos as coisas são diferentes O Eu se sente mal depara com limites a seu poder em sua própria casa a psique De repente surgem pensamentos que não se sabe de onde vêm tampouco se tem como expulsálos Esses hóspedes desconhecidos parecem até mais poderosos do que os submetidos ao Eu resistem a todos os meios coercivos da vontade aprovados em muitas ocasiões e permanecem 184311 imperturbados ante a refutação lógica indiferentes ao desmentido da realid ade Ou ocorrem impulsos que parecem os de outro indivíduo de modo que o Eu os renega mas tem de receálos e tomar precauções contra eles O Eu diz a si mesmo que se trata de uma doença uma invasão estrangeira e aumenta a vi gilância mas não pode entender por que se sente paralisado de maneira tão estranha A psiquiatria contesta naturalmente que esses casos envolvam espíritos maus que se infiltraram na psique mas limitase a dizer dando de ombros Degeneração disposição hereditária inferioridade constitucional A psic análise procura esclarecer essas inquietantes doenças ela empreende pesquisas longas e acuradas produz conceitos auxiliares e construções científicas e pode enfim dizer ao Eu Nada estranho se introduziu em você uma parte de sua própria psique furtouse ao seu conhecimento e ao domínio de sua vontade Por isso é tão fraca a sua defesa uma parte de sua força luta contra a outra parte você não pode reunir toda a sua força como se lutasse contra um in imigo externo E não é sequer a parte pior ou menos importante de suas forças psíquicas que se opôs de tal forma e tornouse independente de você A culpa devo dizer é sua mesmo Você superestimou sua força ao crer que podia fazer o que quisesse com seus instintos sexuais sem considerar minimamente as in tenções deles Então eles se rebelaram e tomaram seus próprios obscuros cam inhos a fim de escapar à repressão e criaram seus próprios direitos de uma maneira que você não pode aprovar Como realizaram isso e que vias percor reram você não pôde saber apenas chegou ao seu conhecimento o resultado desse trabalho o sintoma que você percebe como sofrimento Você não o re conhece como derivado de seus próprios instintos rejeitados e não sabe que ele é a satisfação que os substitui Mas todo o processo é tornado possível apenas pelo fato de você também se equivocar em outro ponto importante Você acredita saber tudo o que de relevante se passa em sua mente já que sua consciência o informa a respeito 185311 disso E quando não recebe notícia de algo na mente supõe com muita confi ança que aquilo não se acha nela Você chega a identificar mental e con sciente isto é conhecido por você não obstante as claras evidências de que em sua vida mental deve ocorrer muito mais do que o que pode tornarse con hecido para a sua consciência Então aprenda uma coisa nesse ponto O que é mental em você não coincide com o que lhe é consciente algo suceder em sua mente e você ter notícia dele são coisas diferentes Admito que habitualmente o serviço de informações de sua consciência basta para suas necessidades Você pode acalentar a ilusão de saber tudo o que é mais importante Mas em alguns casos como no conflito instintual mencionado esse serviço fracassa e sua vontade não vai além de seu saber Em todos os casos porém as informações de sua consciência são incompletas e frequentemente suspeitas também acontece de você ter notícia dos eventos apenas depois de consumados e já não poder modificálos Ainda quando você não está doente quem pode avaliar o que age em sua alma coisas de que você não vem a saber ou de que é informado erradamente Você se comporta como um rei absoluto que se con tenta com os dados fornecidos por seus principais cortesãos e não desce até o povo para escutar a voz dele Voltese para si para suas profundezas e con heça antes a si mesmo então compreenderá por que tem de ficar doente e con seguirá talvez não ficar doente Isso a psicanálise quis ensinar ao Eu Mas esses dois esclarecimentos de que a vida instintual da sexualidade não pode ser inteiramente domada em nós e de que os processos mentais são inconscientes em si e apenas acessíveis e sub metidos ao Eu através de uma percepção incompleta e suspeita equivalem à afirmação de que o Eu não é senhor em sua própria casa Juntos eles representam a terceira afronta ao amorpróprio humano que eu chamaria de psicológica Não surpreende portanto que o Eu não demonstre boa vontade com a psic análise e se recuse obstinadamente a darlhe crédito Poucos homens puderam discernir a importância enorme que a admissão de processos mentais inconscientes teria para a ciência e a vida Acrescentemos 186311 logo no entanto que não foi a psicanálise que deu o primeiro passo neste sen tido Filósofos de renome podem ser citados como precursores sobretudo o grande pensador Schopenhauer cuja vontade inconsciente se equipara aos instintos da mente na psicanálise É o mesmo pensador aliás que lembrou aos homens em palavras de impressão inesquecível a sempre subestimada relevância de seus impulsos sexuais A psicanálise leva apenas uma vantagem a de não afirmar abstratamente as duas teses tão dolorosas para o narcisismo da significação psíquica da sexualidade e da inconsciência da vida mental mas demonstrálas com um material que concerne pessoalmente a todo indivíduo e o força a tomar posição ante esses problemas E justamente por isso atrai a aversão e as resistências que ainda evitam temerosamente o grande nome do filósofo Renega verleugnet no original em quatro versões estrangeiras consultadas duas em espan hol a da Biblioteca Nueva e a da Amorrortu a italiana da Boringhieri e a Standard inglesa niega desmiente rinnega disowns Repressão tradução aqui dada a Unterdrückung nas traduções consultadas sometimiento sofocación repressione suppression uma breve discussão dos problemas da versão desse termo se acha em Paulo César de Souza As palavras de Freud o vocabulário freudiano e suas versões São Paulo Companhia das Letras nova ed revista 2010 capítulo sobre Verdrängung Mente e mental é como aqui traduzimos Seele literalmente alma e o adjetivo seelisch apesar das objeções que Bruno Bettelheim faz a essa tradução no seu panfleto Freud e a alma humana São Paulo Cultrix 1985 para uma visão mais nuançada do problema ver As palav ras de Freud op cit capítulo sobre a gênese da nova edição francesa as versões consultadas utilizam alma anímico idem psiche psichico mind mental 187311 SOBRE TRANSFORMAÇÕES DOS INSTINTOS EM PARTICULAR NO EROTISMO ANAL 1917 TÍTULO ORIGINAL ÜBER TRIEBUMSETZUNGEN INSBESONDERE DER ANALEROTIK PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM INTERNATIONALE ZEITSCHRIFT FÜR ÄRZTLICHE PSYCHOANALYSE REVISTA INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE MÉDICA V 4 N 3 PP 12530 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE X PP 40110 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE VII PP 12331 Anos atrás a observação psicanalítica me levou a suspeitar que a constante co existência de três traços de caráter ordem parcimônia e obstinação indica uma intensificação dos componentes eróticoanais na constituição sexual de certas pessoas nas quais no curso do desenvolvimento esses modos preferidos de reação do Eu vieram a se formar pela consumição do erotismo anal1 Interessavame na época dar a conhecer um vínculo percebido nos fatos não cuidei muito de sua apreciação teórica Desde então parece ter se general izado a concepção de que cada uma das três qualidades avareza minuciosid ade e obstinação procede ou dito de maneira mais cautelosa e completa retira fortes subsídios dessas fontes Os casos a que a junção dos três mencion ados defeitos de caráter imprimia um cunho especial caráter anal eram apen as os casos extremos em que o nexo que nos interessa se mostraria até mesmo a uma observação pouco aguda Alguns anos depois cheguei à conclusão a partir de numerosas impressões guiado por uma experiência analítica sobremaneira convincente de que na evolução da libido humana devemos supor antes da fase do primado genital uma organização prégenital em que o sadismo e o erotismo anal desem penham os papéis principais2 A questão do que ocorre posteriormente aos impulsos eróticoanais tornou se então inevitável Qual o destino deles após perderem a importância para a vida sexual devido ao estabelecimento da organização genital definitiva Per maneceram como tais porém em estado de repressão foram sublimados ou consumidos pela transformação em qualidades de caráter ou tiveram acolhida na nova configuração da sexualidade determinada pela primazia dos genitais Ou melhor já que provavelmente nenhum desses destinos do erotismo anal seria o único em que medida e de que modo essas diferentes possibilidades tomam parte na decisão sobre o destino do erotismo anal cujas fontes orgân icas não puderam ser encobertas pelo surgimento da organização genital Seria de crer que não pode faltar material para responder a essas perguntas pois tais processos de desenvolvimento e transformação tiveram de ocorrer em todas as pessoas que são objeto da pesquisa psicanalítica Mas o material é tão pouco transparente a abundância de impressões recorrentes produz tal con fusão que ainda hoje não posso dar solução completa para o problema mas apenas contribuições para uma solução Ao fazêlo não há por que evitar a oportunidade se o contexto o permitir de mencionar algumas outras trans formações instintuais que não dizem respeito ao erotismo anal Por fim é talvez desnecessário enfatizar que os processos de desenvolvimento descritos aqui e sempre na psicanálise foram inferidos a partir das regressões que lhes foram impostas pelos processos neuróticos O ponto de partida para esta discussão pode ser o dado de que nas produções do inconsciente pensamentos espontâneos fantasias e sintomas as noções de fezes dinheiro presente criança e pênis são dificilmente sep aradas e facilmente confundidas Ao nos expressarmos desse modo sabemos naturalmente que transferimos para o inconsciente de maneira incorreta des ignações costumeiras em outros âmbitos da vida psíquica e que nos deixamos desviar pela vantagem que uma comparação traz consigo Repitamos de forma menos passível de objeção que esses elementos são com frequência tratados no inconsciente como se equivalessem uns aos outros e pudessem livremente substituir uns aos outros Isso se vê com maior facilidade na relação entre criança e pênis Não é algo sem importância que tanto na linguagem simbólica do sonho como na da vida cotidiana os dois possam ser substituídos pelo mesmo símbolo Tal como a criança o pênis é chamado de o pequeno Sabese que frequentemente a linguagem simbólica não leva em conta a diferença entre os sexos O pequeno que originalmente diz respeito ao membro masculino pode então secundariamente designar o genital feminino Investigando com suficiente profundidade a neurose de uma mulher não é raro depararmos com o desejo reprimido de ter um pênis como o homem Um 190311 infortúnio acidental na sua vida de mulher muitas vezes consequência ele mesmo de uma disposição fortemente masculina ativou novamente esse desejo infantil que denominamos inveja do pênis e incluímos no complexo da castração e o tornou mediante o refluxo da libido o principal veículo dos sintomas neuróticos Em outras mulheres nada comprova esse desejo de pos suir pênis seu lugar é tomado pelo desejo de um filho cuja frustração pode en tão desencadear a neurose em sua vida É como se essas mulheres tivessem compreendido que a natureza deu à mulher a criança como substituto para a outra coisa que teve de negarlhe um motivo impossível claro Em mais outras mulheres notase que ambos os desejos estavam presentes na infância e sucederam um ao outro Primeiro queriam ter um pênis como o homem e numa época posterior ainda infantil isso deu lugar ao desejo de ter uma cri ança Não se pode afastar a impressão de que fatores acidentais da vida infant il como a existência ou não de irmãos o nascimento de mais um filho numa época favorável da vida são responsáveis por essa diversidade de modo que o desejo de possuir um pênis seria no fundo idêntico ao desejo de ter um filho É possível dizer o que sucede ao desejo infantil do pênis quando as con dições para a neurose não aparecem na vida posterior Ele se transforma então no desejo de ter um homem aceita o homem como apêndice do pênis Por essa mudança um impulso contrário à função sexual feminina transformase em um favorável a ela Com isso vem a se tornar possível para essas mulheres uma vida amorosa segundo o tipo masculino de escolha de objeto que pode afirmarse junto àquele propriamente feminino derivado do narcisismo Já vi mos que em outros casos é apenas o filho que provoca a transição do amor narcísico a si mesmo para o amor ao objeto Também nesse caso portanto a criança pode ser representada pelo pênis Já tive a oportunidade de ouvir sonhos de mulheres após as primeiras re lações sexuais Revelavam inequivocamente o desejo de conservar para si o pênis que haviam sentido correspondendo então sem levar em conta a mo tivação libidinal a uma regressão passageira do homem para o pênis como 191311 objeto de desejo Sem dúvida haverá a tendência de modo puramente racion alista a fazer remontar o desejo de homem ao desejo de filho já que em algum momento a mulher compreende que sem ajuda do homem não pode ter um filho Mais provavelmente no entanto o desejo de homem surge independente do desejo de ter filho e quando emerge por motivos compreensíveis que pertencem à psicologia do Eu o antigo desejo de ter um pênis se junta a ele como reforço libidinal inconsciente A importância do processo descrito está em que uma parcela da masculinid ade narcísica da jovem mulher passa a feminilidade tornandose inofensiva para a função sexual feminina Por um outro caminho também uma parte do erotismo da fase prégenital tornase apta para a utilização na fase do primado genital Pois a criança é vista como Lumpf ver a análise do menino Hans como algo que se separa do corpo através do intestino assim um montante de investimento libidinal que se aplicava ao conteúdo do intestino pode ser esten dido à criança que nasceu através do intestino Um testemunho que a lin guagem fornece dessa identidade entre criança e excremento achase na ex pressão dar um filho O excremento é o primeiro presente uma parte de seu corpo da qual o bebê se separa apenas por injunção da pessoa amada com a qual ele espontaneamente lhe demonstra sua ternura pois via de regra ele não suja pessoas estranhas Mesmas reações embora menos intensas no caso da urina Na defecação o bebê tem que decidir pela primeira vez entre a atit ude narcísica e a de amor ao objeto Ou ele entrega docilmente o cocô sacrificao ao amor ou o retém para a satisfação autoerótica mais tarde para a afirmação de sua própria vontade Com essa última decisão vai se constituir a teimosia obstinação que portanto se origina de uma perseverança narcísica no erotismo anal É provável que o primeiro significado em que se detém o interesse por fezes não seja ourodinheiro GoldGeld mas presente Geschenk A criança não conhece outro dinheiro senão aquele que lhe é presenteado nenhum dinheiro próprio seja ganhado ou herdado Como as fezes são o seu primeiro presente 192311 ela facilmente transfere o interesse dessa matéria para aquela nova que lhe surge como o mais importante presente na vida Quem duvida dessa derivação do presente pode consultar sua experiência na clínica psicanalítica estudar os presentes que como médico recebe do paciente e atentar para as tempestuosas transferências que podem ser despertadas por um presente seu ao paciente De modo que o interesse nas fezes continua em parte como interesse no dinheiro e em parte é transposto para o desejo de ter filho Nesse desejo de filho convergem um impulso eróticoanal e um genital inveja do pênis Mas o pênis também possui uma importância eróticoanal independente do in teresse na criança A relação entre o pênis e o canal de membrana mucosa por ele preenchido e excitado já é prefigurada na fase prégenital sádicoanal O bolo fecal ou vara de cocô na expressão de um paciente é por assim dizer o primeiro pênis e a mucosa por ele excitada a do reto Há pessoas cujo erotismo anal permanece forte e inalterado até a época da prépuberdade dez a doze anos delas ficamos sabendo que já nessa fase prégenital desenvolvem em fantasias e em jogos perversos uma organização análoga à genital na qual pênis e vagina são representados pela vara fecal e o intestino Em outras pessoas neuróticoobsessivas podemos conhecer o resultado de uma de gradação regressiva da organização genital Manifestase no fato de toda fantasia originalmente concebida no plano genital ser transposta para o anal o pênis ser substituído pela vara de fezes a vagina pelo intestino Quando o interesse pelas fezes retrocede de modo normal a analogia or gânica aqui apresentada tem o efeito de transferilo para o pênis Se depois nas pesquisas sexuais infantis descobrese que a criança nasceu do intestino ela se torna o principal herdeiro do erotismo anal mas o precursor da criança foi o pênis tanto nesse como em outro sentido Estou certo de que agora se tornou impossível abarcar todas as múltiplas relações da série excrementopêniscriança e por isso tentarei remediar a falta com uma representação gráfica em cuja discussão o mesmo material pode ser apreciado novamente numa outra sequência É pena que esse recurso 193311 técnico não seja maleável o bastante para nosso propósito ou talvez não saibamos ainda utilizálo de maneira adequada Peço de toda forma que não se espere muito do esquema seguinte Do erotismo anal procede por emprego narcísico a teimosia como signi ficativa reação do Eu a exigências dos outros o interesse dirigido às fezes se torna interesse por presente e depois por dinheiro Com o aparecimento do pênis nasce na menina a inveja do pênis que mais tarde se transforma no desejo por um homem como portador de um pênis Antes o desejo de um pênis converteuse no desejo de ter um filho ou o desejo de filho tomou o lugar do desejo de pênis Uma analogia orgânica entre pênis e criança linha pontilhada se exprime pela posse de um símbolo comum aos dois o pequeno Um caminho racional linha dupla conduz então do desejo de filho ao desejo de homem O significado dessa transformação do instinto nós já consideramos 194311 No homem podese reconhecer mais nitidamente uma outra peça desse conjunto Ela surge quando a pesquisa sexual da criança constata a ausência de pênis na mulher Assim o pênis é percebido como algo separável do corpo e ganha analogia com as fezes o primeiro pedaço de corpo a que foi preciso re nunciar Desse modo a antiga teimosia anal entra na constituição do complexo da castração A analogia orgânica segundo a qual o conteúdo do intestino rep resentava o precursor do pênis durante a fase prégenital não pode entrar em consideração como motivo mas acha um substituto psíquico através da pesquisa sexual Quando aparece a criança é percebida como Lumpf conforme essa pesquisa e investida de forte interesse eróticoanal O desejo de ter filho re cebe um segundo incremento da mesma fonte quando a experiência social mostra que a criança pode ser vista como prova de amor como presente Todos os três a coluna de cocô o pênis e a criança são corpos sólidos que ex citam um canal de membrana mucosa o reto e a vagina esta como que ar rendada dele na boa expressão de Lou AndreasSalomé3 com sua penet ração ou retirada A investigação sexual infantil pode apenas saber a partir desse fato que a criança segue o mesmo caminho da coluna de fezes a função do pênis não é geralmente descoberta pela pesquisa infantil Mas é interessante notar que após tantos rodeios uma correspondência orgânica aparece de novo no plano psíquico como identidade inconsciente Aufzehrung no original deriva do verbo aufzehren consumir absorver Strachey prefere assimilation as outras traduções consultadas duas em espanhol uma francesa e uma holan desa usam agotada consumo consommation absorptie 1 Caráter e erotismo anal 1908 2 A predisposição para a neurose obsessiva 1913 195311 Cabe notar que o alemão tem os gêneros masculino feminino e neutro e que das Kleine o pequeno é neutro Lumpf era um termo pessoal do pequeno Hans usado para se referir às fezes A expressão alemã lembrada por Freud é ein Kind schenken erhalten que literalmente sig nifica receber um filho de presente 3 Em Anal e Sexual Imago v 4 1916 196311 UMA RECORDAÇÃO DE INFÂNCIA EM POESIA E VERDADE 1917 TÍTULO ORIGINAL EINE KINDHEITSERINNERUNG AUS DICHTUNG UND WAHRHEIT PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM IMAGO V 5 N 2 PP 4957 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XII PP 1326 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE X PP 25566 Quando procuramos recordar o que nos sucedeu nos primeiros anos da infân cia muitas vezes chegamos a confundir o que nos disseram outras pessoas com o que realmente sabemos por testemunho e experiência própria Goethe faz essa observação numa das primeiras páginas da autobiografia que começou a escrever aos sessenta anos de idade Ela é precedida apenas de algumas inform ações a respeito de seu nascimento ocorrido a 28 de agosto de 1749 ao bater do sino do meiodia A constelação dos astros lhe era favorável e pode ter contribuído para a sua sobrevivência pois ele veio ao mundo como morto e apenas após vários esforços conseguiram que abrisse os olhos Depois dessa observação há uma breve descrição da casa e dos lugares em que as crianças ele e sua irmã menor gostavam de ficar Em seguida Goethe relata apenas um acontecimento que pode ser situado nos primeiros anos da infância até a idade de quatro anos e do qual ele parece ter conservado uma lembrança pessoal Eis o que ele conta e os três irmãos Von Ochsenstein filhos do fale cido burgomestre que moravam em frente tomaramse de grande afeição por mim ocupandose da minha pequena pessoa e bulindo comigo de diversos modos Meus pais contavam toda sorte de travessuras a que me haviam insti gado esses homens aliás sérios e metidos consigo Limitarmeei a registrar apenas uma dessas extravagâncias Tinha havido uma feira de louças no bairro e não só a cozinha fora abastecida por algum tempo com tais mer cadorias mas também nós ganháramos como brinquedos uma série de utensílios semelhantes em miniatura Uma bela tarde quando reinava a paz em toda a casa estava eu entretido com os meus pratos e panelas no vestíbulo o lugar já mencionado que limitava com a rua e como não sabia mais o que fazer com eles joguei à rua um desses brinquedos e achei divertido vêlo quebrarse de maneira tão inesperada Os Ochsenstein que me viram bater as mãozinhas no meu transporte de júbilo gritaram Outra vez Não hesitei nem um instante Lá se foi uma panela e como eles não cessassem de gritar Outra vez todos os pratinhos os pequenos vasos e as panelinhas se espatifaram um depois do outro na calçada Meus vizinhos continuavam a manifestarme a sua aprovação e eu estava radiante por lhes proporcionar esse prazer Mas a provisão de louça esgotarase e eles sempre a gritar Outra vez Corri pois direto à cozinha e apanhei os pratos de barro que naturalmente ofereceram ao quebrarse um espetáculo ainda mais divertido E assim comecei a ir e vir trazendo um prato de cada vez conforme podia alcançálos na prateleira em que estavam guardados e como aqueles cavalheiros não se davam por satisfeitos precipitei na mesma ruína toda a louça que pude arrastar até o vestíbulo Foi então que apareceu alguém mas demasiado tarde para dar ponto final àquela e proibirme a brincadeira O mal estava feito e em troca de tanta louça quebrada tivemos pelo menos uma história cômica que foi sobretudo para os maliciosos in stigadores e até o fim de sua existência uma alegre recordação Em tempos prépsicanalíticos podiase ler essa passagem sem achar motivo para nela se deter e sem admirarse mas depois a consciência analítica tornou se intensa Havíamos formado acerca de recordações da mais remota infância determinadas opiniões e expectativas as quais pretendíamos que tivessem val idade geral Não devia ser indiferente ou insignificante qual detalhe da vida in fantil escapara ao esquecimento geral da infância Seria antes de supor que aquilo conservado na memória fosse também o mais significativo de todo aquele período de vida seja porque tivesse tal importância já na época seja por havêla adquirido graças à influência de eventos posteriores É certo que o alto valor de tais recordações infantis era óbvio apenas em um ou outro caso Em geral não faziam diferença pareciam mesmo sem nen hum valor e não se entendia por que justamente elas conseguiam fazer frente à amnésia também a pessoa que as conservara por muitos anos como bens de sua memória não podia apreciálas e tampouco uma outra a quem as havia contado Para discernir a sua importância era preciso um certo trabalho de 199311 interpretação que ou demonstrasse como seu conteúdo devia ser substituído por outro ou evidenciasse o seu nexo com outras vivências indubitavelmente importantes que lhes haviam tomado o lugar como lembranças encobridoras Em toda elaboração psicanalítica da história de uma vida chegase a es clarecer de tal forma o significado das mais remotas lembranças infantis Acontece mesmo via de regra de justamente a lembrança que o analisando coloca à frente que relata em primeiro lugar com a qual introduz sua confis são biográfica revelarse a mais importante aquela que esconde as chaves dos compartimentos secretos de sua vida psíquica No caso do episódio infantil narrado em Poesia e verdade entretanto não há muito que venha ao encontro de nossa expectativa Claro que nos são inacessíveis aqui os caminhos e re cursos que em nossos pacientes levam à interpretação o incidente mesmo não parece admitir um nexo perceptível com impressões relevantes de uma época posterior Uma travessura com danos para a economia doméstica realizada sob influência de pessoas de fora não é certamente uma vinheta adequada para tudo o que Goethe tem a comunicar de sua rica vida Uma impressão de total inocuidade e ausência de vínculos parece dever se impor com essa lembrança infantil e poderíamos aceitar a advertência de não exagerar as pretensões da psicanálise ou invocálas em local impertinente Assim há muito eu deixara de lado esse pequeno problema quando o acaso me trouxe um paciente no qual uma recordação infantil semelhante apresentavase em contexto mais transparente Era um homem de 27 anos de idade muito instruído e talentoso cuja vida se achava tomada por um conflito com sua mãe conflito que afetava praticamente todos os seus interesses e que prejudicara bastante o desenvolvimento de sua capacidade de amar e de con duzir autonomamente sua vida Isso remontava à sua infância aos seus quatro anos de idade podese dizer Antes ele era um menino bastante fraco sempre adoecido e contudo suas lembranças haviam transfigurado esse tempo ruim 200311 num paraíso pois então ele possuía a afeição irrestrita e exclusiva de sua mãe Quando ainda não tinha quatro anos nasceu um irmão hoje ainda vivo e reagindo a essa perturbação ele se converteu num menino teimoso in tratável que suscitava constantemente a severidade da mãe E nunca mais re tornou aos trilhos Quando veio tratarse comigo em boa parte porque sua mãe uma sen hora beata tinha horror à psicanálise há muito esquecera o ciúme do irmão mais novo que na época chegara a manifestarse num ataque ao bebê Tratava o irmão com muita consideração mas alguns estranhos atos fortuitos com os quais feriu gravemente animais que amava como seu cão de caça ou pássaros de que cuidava muito bem podiam ser entendidos como ecos dos impulsos hostis para com o irmão menor Esse paciente contou que certa vez na época do ataque ao irmão odiado jogara pela janela da casa de campo toda a louça que pôde alcançar O mesmo episódio da infância que Goethe relata em Poesia e verdade Devo informar que meu paciente era estrangeiro e não familiarizado com a cultura alemã não havia chegado a ler a autobiografia de Goethe Naturalmente essa informação levoume à tentativa de interpretar a re cordação infantil de Goethe no sentido que a história do paciente sugeria Mas podese demonstrar que existiam na infância do poeta as condições necessárias para tal concepção É certo que o próprio Goethe vê o incentivo dos irmãos Ochsenstein como responsável por sua traquinagem Mas sua narrativa mesma dá a entender que os vizinhos adultos apenas o encorajaram a prosseguir seu ato O começo fora espontâneo e a motivação que ele oferece como não sabia mais o que fazer com eles pode ser vista sem exagero como admis são de que na época em que escreveu e provavelmente já muitos anos antes ele não conhecia um motivo eficiente para a sua conduta Sabese que Johann Wolfgang e sua irmã Cornelia foram os mais velhos de toda uma série de filhos de saúde frágil e os únicos que sobreviveram O dr 201311 Hanns Sachs teve a amabilidade de fornecerme os seguintes dados sobre os irmãos de Goethe que faleceram prematuramente a Hermann Jakob batizado em 27 de novembro de 1752 uma segundafeira alcançou a idade de seis anos e seis semanas e foi enterrado em 13 de janeiro de 1759 b Katharina Elisabetha batizada em 9 de setembro de 1754 uma segunda feira e enterrada em 22 de dezembro de 1755 uma quintafeira com a idade de um ano e quatro meses c Johanna Maria batizada em 29 de março de 1757 uma terçafeira e enter rada em 11 de agosto de 1759 um sábado com dois anos e quatro meses Esta foi certamente a garota cuja beleza e simpatia foi enaltecida pelo irmão d Georg Adolph batizado em 15 de junho de 1760 um domingo enterrado com oito meses de idade em 18 de fevereiro de 1761 uma quartafeira A irmã seguinte de Goethe Cornelia Friederica Christiana nasceu no dia 7 de dezembro de 1750 quando ele tinha um ano e três meses de vida Essa difer ença mínima de idade a exclui como objeto do ciúme Sabese que as crianças quando suas paixões despertam jamais desenvolvem reações veementes ante os irmãos que já existem dirigindo sua aversão aos que chegam Além disso a cena que buscamos interpretar não é compatível com a tenra idade de Goethe no nascimento de Cornelia ou pouco depois Quando do nascimento de Hermann Jakob o primeiro irmãozinho Johann Wolfgang tinha três anos e três meses Cerca de dois anos mais tarde quando ele tinha cinco anos nasceu a segunda irmã Ambas as idades podem ser leva das em conta na datação do episódio da louça A primeira merece talvez a preferência ela também se coadunaria melhor com a história de meu paciente que contava três anos e nove meses no nascimento do irmão 202311 Hermann Jakob o irmão para o qual voltamos nossa tentativa de inter pretação não foi aliás um hóspede tão passageiro nos aposentos de crianças da casa Goethe como aqueles que viriam depois É de estranhar que a autobi ografia do irmão maior não tenha uma palavra de recordação sobre ele1 Quando morreu havia completado seis anos e Johann Wolfgang ia fazer dez O dr Eduard Hitschmann que teve a gentileza de pôr à minha disposição suas notas sobre esse tema afirma o seguinte Também Goethe quando garoto viu morrer um irmãozinho sem muita tristeza Ao menos foi o que relatou sua mãe segundo Bettina Brentano Ela achou estranho que ele não chorasse na morte de seu irmão mais novo Jakob que era seu camarada nos brinquedos ele parecia antes irritado com os lamentos dos pais e irmãos Quando mais tarde a mãe perguntou ao re belde se ele não amara o irmão ele correu a seu quarto e retirou de baixo da cama uma porção de papéis manuscritos com lições e histórias dizendo que havia feito tudo aquilo para instruir o irmão Em todo caso o irmão maior gostava de fazer de pai com o menor e de mostrarlhe sua superioridade Podese então formar a opinião de que o ato de lançar fora a louça é uma ação simbólica ou mais precisamente mágica com que o menino tanto Go ethe como meu paciente dá vigorosa expressão ao desejo de eliminar o intruso que o incomoda Não contestamos o prazer do menino em quebrar os objetos Quando um ato já em si é prazeroso isso não constitui um impedimento mas um incitamento a repetilo também a serviço de outros propósitos Não acred itamos porém que tenha sido o prazer em quebrar e fazer barulho que asse gurou a tais travessuras um lugar permanente na memória do adulto Também não relutamos em complicar a motivação do ato aduzindo um novo elemento O menino que destrói a louça sabe que está fazendo algo ruim pelo qual os adultos o repreenderão e se esse conhecimento não o refreia provavelmente há um rancor contra os pais que deve ser satisfeito ele quer mostrarse mau O prazer em quebrar e com coisas quebradas seria também satisfeito se o menino apenas arremessasse ao chão os objetos frágeis Nisso ficaria sem 203311 explicação o lançamento para fora através da janela Esse para fora no ent anto parece ser parte essencial da ação mágica tendo origem no sentido oculto da mesma A nova criança deve ser levada embora possivelmente pela janela porque veio pela janela Toda a ação equivaleria desse modo à reação verbal já nossa conhecida de uma criança que ao ser informada que a cegonha lhe trouxera um irmãozinho Diga para levar ele de volta foi sua resposta Ao mesmo tempo não ignoramos como é arriscado sem falar das incer tezas internas basear a interpretação de um ato infantil numa única analo gia Por isso retive durante anos minha concepção da ligeira cena de Poesia e verdade Um dia veiome um paciente que iniciou a análise com as seguintes afirmações registradas literalmente Sou o mais velho de oito ou nove irmãos2 Uma de minhas primeiras recordações é de meu pai contando sorridente sentado em sua cama de pi jamas que eu havia ganhado um irmão Na época eu tinha três anos e nove meses é a diferença de idade entre mim e o meu irmão seguinte E sei que numa ocasião pouco tempo depois ou foi um ano antes3 joguei pela janela na rua vários objetos escovas ou foi somente uma escova sapatos e outras coisas Tenho outra lembrança ainda anterior a essa Quando tinha dois anos eu e meus pais pernoitamos num quarto de hotel em Linz a caminho do Salzkammergut Eu estava tão inquieto durante a noite fazendo tamanho barulho que meu pai teve que bater em mim Com essa declaração desapareceramme quaisquer dúvidas Quando numa situação analítica duas coisas são apresentadas uma logo após a outra como num só fôlego devemos interpretar essa proximidade como uma re lação Era como se o paciente tivesse dito Porque soube que ganhei um irmão joguei depois aqueles objetos na rua O lançamento das escovas sapa tos etc deve ser percebido como reação ao nascimento do irmão Também não é algo adverso que os objetos lançados fora nesse caso não tenham sido pratos mas outras coisas provavelmente as que o garoto podia alcançar O arremesso para fora para a rua pela janela demonstra ser o elemento 204311 essencial na ação o prazer em quebrar em fazer ruído e o tipo de objetos em que a execução é consumada revelamse como algo inconstante e inessencial Naturalmente a exigência de haver uma relação vale também para a ter ceira recordação infantil do paciente que embora seja a mais antiga é colo cada no fim da pequena série É fácil preenchêla Entendemos que o menino de dois anos mostravase tão inquieto porque não podia tolerar que os pais fi cassem juntos na cama Durante a viagem era provavelmente impossível não deixálo presenciar isso Dos sentimentos que agitaram então o pequenino ci umento ficou a amargura em relação às mulheres que teve por consequência uma duradoura perturbação de seu desenvolvimento amoroso Quando após essas duas observações manifestei a expectativa em encon tro da Sociedade Psicanalítica de que eventos dessa espécie não seriam raros na vida de crianças pequenas a dra Von HugHellmuth colocou à minha dis posição duas outras observações que aqui reproduzo I Com aproximadamente três meses e meio de idade o pequeno Erich muito de repente adquiriu o hábito de jogar pela janela tudo que não lhe agradava Ele fazia isso também com objetos que não estavam em seu caminho nem lhe diziam respeito Justamente no aniversário do pai quando tinha três anos e quatro meses e meio jogou ele na rua um pesado rolo de massas que num instante havia pegado na cozinha e arrastado até o quarto de uma janela do apartamento situado no terceiro andar Alguns dias depois fez o mesmo com o pilão e depois com um par de pesadas botas de montanha do pai que antes precisou retirar da caixa4 Naquele tempo a mãe no sétimo ou oitavo mês da sua gravidez teve uma fausse couche aborto após a qual o menino ficou como que mudado 205311 tranquilo e afetuoso No quinto ou sexto mês ele dizia à mãe Mamãe vou pular na sua barriga ou Mamãe vou empurrar para dentro sua barriga E pouco antes da fausse couche em outubro Se vou mesmo ter um irmão pelo menos só depois do Natal II Uma moça de dezenove anos relata espontaneamente a sua mais remota lem brança infantil Vejo uma garota horrivelmente maleducada debaixo da mesa da sala de jantar a ponto de sair engatinhando Sobre a mesa está minha xícara de café ainda vejo nitidamente o desenho da porcelana que no mo mento em que vovó entrava na sala eu queria lançar pela janela O fato é que ninguém estava se incomodando comigo e nesse meio tempo havia se formado uma pele no café algo que eu detestava e ainda ho je detesto Nesse dia nascera meu irmão dois anos e meio mais jovem que eu e por isso ninguém tinha tempo para mim Sempre me contam que naquele dia eu estava insuportável ao meiodia derrubei da mesa o copo preferido de papai várias vezes sujei minha roupa e estive de péssimo humor da manhã até à noite Em minha raiva destruí também a boneca com que tomava banho Esses dois casos mal necessitam de comentário Eles confirmam sem maior esforço analítico que a amargura da criança quanto ao surgimento próximo ou já acontecido de um rival manifestase no arremesso de objetos para fora de casa e em outros atos de grosseria e destrutividade No primeiro caso os objetos pesados provavelmente simbolizam a mãe mesma contra a qual se dirige a cólera do menino enquanto a nova criança ainda não aparece O 206311 garoto de três anos e meio sabe da gravidez da mãe e não tem dúvida de que ela abriga no ventre uma criança Lembramonos aqui do pequeno Hans5 e do seu medo especial de carroças bastante carregadas6 No segundo caso é digna de nota a idade tenra da criança dois anos e meio Se agora voltamos à recordação infantil de Goethe e introduzimos no lugar que ocupa em Poesia e verdade o que acreditamos haver descoberto pela ob servação de outras crianças há uma irrepreensível concatenação de ideias a que não teríamos chegado de outra forma Ela diz Fui um felizardo o des tino me conservou a vida embora eu fosse dado por morto quando vim ao mundo Eliminou o meu irmão porém de modo que não precisei dividir com ele o amor da mãe E assim vai a cadeia de pensamentos até uma outra pessoa que morreu naqueles primeiros tempos a avó que habitava como um espírito amável e silencioso outro aposento da casa Afirmei em outra ocasião que quando alguém foi o favorito indiscutível da mãe por toda a vida conserva aquele sentimento do conquistador a confi ança no sucesso que não raro traz realmente o sucesso Goethe poderia com todo o direito antepor à sua autobiografia uma observação como esta Minha força tem sua raiz na relação com minha mãe Foi utilizada com pequenas alterações a tradução de Leonel Vallandro intitulada Memórias poesia e verdade no original Aus meinem Leben Dichtung und Wahrheit Porto Alegre Globo 1971 1 Nota acrescentada em 1924 Aproveito a oportunidade para retirar uma afirmação incorreta que não deveria ter sido feita Numa passagem posterior desse primeiro volume Goethe men ciona e descreve esse irmão menor Isso ocorre na lembrança das incômodas doenças infantis que fizeram o irmão sofrer não pouco Ele era de natureza delicada era silencioso e obsti nado e nunca houve um genuíno relacionamento entre nós Além disso ele mal sobreviveu à infância 207311 2 Um erro momentâneo de natureza singular Não é de excluir que já seja causado pela tendên cia de eliminar o irmão Cf Ferenczi Über passagere Symptombildung während der Ana lyse Sobre sintoma passageiro durante a análise Zentralblatt für Psychoanalyse v 2 1912 3 Essa dúvida que solapa em forma de resistência o ponto essencial da informação foi logo depois retirada espontaneamente pelo paciente 4 Ele sempre escolhia objetos pesados 5 Análise da fobia de um garoto de cinco anos 1909 6 Uma outra confirmação deste simbolismo da gravidez me foi proporcionada por uma mulher de cinquenta anos Com frequência lhe haviam dito que quando era criança e mal sabia falar costumava puxar o pai até a janela com muita agitação se na rua passava um caminhão de mó veis pesado Por suas lembranças do apartamento constatouse que ela tinha na época menos de três anos e nove meses de idade Naquele tempo nasceu o seu irmão seguinte e mudaram de casa devido a esse aumento da família Mais ou menos então era frequente ela ter antes de dormir o sentimento angustiado de algo extraordinariamente grande unheimlich Gross que dela se aproximava e as mãos lhe ficavam bem grossas Numa nota da Interpretação dos sonhos cap vi seção E sonho n 12 Gesammelte Werke iiiii pp 4034 208311 CAMINHOS DA TERAPIA PSICANALÍTICA 1919 TÍTULO ORIGINAL WEGE DER PSYCHOANALYTISCHEN THERAPIE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM INTERNATIONALE ZEITSCHRIFT FÜR ÄRZTLICHE PSYCHOANALYSE REVISTA INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE MÉDICA V 5 N 2 PP 618 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XII PP 18194 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE ERGÄNGUNGSBAND VOLUME COMPLEMENTAR PP 23949 ESTA TRADUÇÃO FOI PUBLICADA ORIGINALMENTE NO JORNAL DE PSICANÁLISE SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE SÃO PAULO V 32 N 5859 1999 Caros colegas Como sabem nunca nos gabamos da completude e inteireza de nosso saber e de nossa capacidade estamos prontos agora não menos que antes a admitir as imperfeições de nosso conhecimento aprender novas coisas e mudar em nossos procedimentos o que puder ser melhorado Agora que novamente nos reunimos após anos de separação e duras provas quero fazer um balanço do estado de nossa terapia à qual devemos nossa posição na sociedade humana e ver em que novas direções ela poder ia se desenvolver Definimos como nossa tarefa levar o doente neurótico ao conhecimento dos impulsos inconscientes reprimidos que nele existem e para esse fim descobrir as resistências que nele se opõem a tal ampliação do conhecimento de si Desvelar essas resistências garantirá sua superação Nem sempre sem dúvida mas esperamos chegar a esse objetivo explorando a transferência ante a pessoa do médico para fazer o doente partilhar nossa convicção da impro priedade das repressões ocorridas na infância e da impossibilidade de viver a vida conforme o princípio do prazer Expus em outro lugar as condições dinâmicas do novo conflito através do qual conduzimos o paciente e que puse mos no lugar do anterior conflito da doença No momento eu não teria o que mudar nisso Chamamos de psicanálise o trabalho mediante o qual levamos à consciência do doente o material psíquico nele reprimido Por que psicanálise que sig nifica dissecação decomposição e faz pensar numa analogia com o trabalho que o químico realiza com as substâncias que acha na natureza e leva para o laboratório Porque tal analogia realmente existe num ponto importante Os sintomas e manifestações patológicas do paciente são como todas as suas atividades anímicas de natureza altamente composta em última instância os elementos de tal composição são motivos instintos Mas o paciente nada sabe desses motivos elementares ou não sabe o bastante Nós lhe ensinamos a en tender a composição dessas complicadas formações psíquicas fazemos remontar os sintomas aos instintos motivadores indicamos nos sintomas esses motivos instintuais até então desconhecidos para o doente tal como o químico isola a substância básica o elemento químico do sal em que se tornara irre conhecível por estar unida a outros elementos Também mostramos ao doente que no caso de suas manifestações psíquicas não consideradas patológicas a motivação delas não lhe era inteiramente consciente que nelas tiveram parti cipação outros motivos instintuais desconhecidos para ele Também explicamos o impulso sexual humano dissecandoo em seus componentes e ao interpretar um sonho procedemos de modo a negligenciar o todo e ligar a associação aos seus elementos distintos Essa justificada comparação da atividade médica psicanalítica com o tra balho de um químico poderia resultar em estímulo para uma nova direção em nossa terapia Nós analisamos o doente isto é decompusemos sua atividade psíquica em suas partes constitutivas elementares mostrando esses elementos instintuais isoladamente o próximo passo não seria então ajudálo numa nova melhor composição deles Os senhores sabem que tal exigência foi efetiva mente levantada Disseramnos que após a análise de uma psique enferma de ve ocorrer a síntese E a isso logo se juntou a preocupação de estar fazendo an álise em excesso e síntese de menos e o esforço de deslocar o peso da inter venção terapêutica para esta síntese uma espécie de restauração do que teria sido destruído pela vivissecção Mas não posso acreditar caros colegas que uma nova tarefa se nos ap resente com essa psicossíntese Caso eu me permitisse ser franco e indelicado diria que se trata de uma frase irrefletida Contentome em observar que temos aí apenas a ampliação exagerada de uma comparação ou se quiserem a ex ploração injustificada de uma denominação Mas um nome é apenas uma etiqueta usada para distinguir uma coisa de outras semelhantes não é um pro grama um sumário ou definição E uma comparação precisa apenas tangenciar num ponto a coisa comparada podendo se distanciar dela em todos os outros O psíquico é algo tão singularmente peculiar que nenhuma simples 211311 comparação pode refletir sua natureza O trabalho psicanalítico fornece analo gias com a análise química mas também com a intervenção cirúrgica com a interferência do ortopedista ou com a influência do educador A comparação com a análise química é limitada pelo fato de que na vida psíquica lidamos com tendências sujeitas à compulsão no sentido de unificar e combinar Se con seguimos decompor um sintoma liberar um impulso instintual de um nexo ele não permanece isolado inserindose imediatamente num novo nexo1 De fato o doente neurótico nos oferece uma vida psíquica dilacerada di vidida por resistências e enquanto a analisamos e eliminamos as resistências ela cresce organicamente a grande unidade que chamamos Eu integra em si todos os impulsos instintuais que até então estavam dela dissociados e ligados noutra parte Desse modo a psicossíntese ocorre no analisando sem a nossa in terferência automática e inevitavelmente Produzimos as condições para ela ao decompor os sintomas e levantar as resistências Não é verdadeiro que algo no doente esteja decomposto em seus constituintes e aguarde pacientemente que nós o recomponhamos de algum modo O desenvolvimento de nossa terapia tomará provavelmente outros camin hos sobretudo aqueles que Ferenczi no seu trabalho Dificuldades técnicas de uma análise de histeria Internationale Zeitschrift für ärztliche Psychoanalyse Revista Internacional de Psicanálise Médica v 5 1919 caracterizou como atividade por parte do analista Entendamonos rapidamente sobre o que significa essa atividade Descre vemos nossa tarefa terapêutica com base em dois fatores tornar consciente o reprimido e pôr a descoberto as resistências Nisso já somos ativos o bastante sem dúvida Mas devemos deixar o doente a lidar sozinho com as resistências que lhe foram apontadas Não podemos lhe prestar outro auxílio senão o que ele experimenta com o estímulo da terapia Não é natural ajudálo também de outra forma colocandoo na situação psíquica mais favorável para a desejada solução do conflito Pois o que ele pode alcançar depende igualmente de uma 212311 série de circunstâncias externas Devemos hesitar em interferir nessa con stelação externa modificandoa adequadamente Penso que uma tal atividade do médico que analisa é inatacável e inteiramente justificada Os senhores percebem que aqui se abre para nós um âmbito novo da téc nica psicanalítica cuja exploração demandará esforço aprofundado e que res ultará em preceitos bem definidos Não tentarei agora iniciálos nessa técnica ainda em formação limitandome a destacar um princípio fundamental que provavelmente dominará esse âmbito Ele diz o seguinte O tratamento analítico deve tanto quanto possível ser conduzido na privação na abstinência Deixaremos para uma discussão mais detalhada verificar até onde isto é possível Mas por abstinência não se deve entender a privação de toda e qualquer satisfação o que seria naturalmente inexequível e tampouco o que no sentido popular se entende por isso a renúncia ao ato sexual e sim algo diverso ligado muito mais à dinâmica do adoecimento e da recuperação Os senhores recordam que uma frustração fez adoecer o paciente e que os sintomas lhe servem como satisfações substitutivas Durante a terapia podem observar que toda melhora de seu sofrimento retarda o ritmo da recuperação e diminui a força instintual que impele à cura Mas também não podemos dis pensar essa força instintual uma diminuição dela é perigosa para nossa in tenção de cura Que conclusão se mostra então inevitável Embora pareça cruel temos de cuidar para que o sofrimento do doente em alguma medida eficaz não alcance um fim prematuro Quando é mitigado pela decomposição e depreciação dos sintomas temos que restabelecêlo em outra parte como uma privação sensível de outro modo corremos o perigo de nunca atingir senão melhoras modestas e pouco duradouras O perigo ameaça principalmente de dois lados pelo que vejo De um lado o paciente cuja condição doente foi abalada pela análise empenhase bastante em criar no lugar de seus sintomas novas satisfações substitutivas não acom panhadas de sofrimento Aproveita a imensa mobilidade da libido 213311 parcialmente liberada para investir com libido e elevar a satisfações sub stitutivas as mais diversas atividades preferências hábitos incluindo aquelas que já existiam antes Ele sempre acha novas distrações assim nas quais se perde a energia necessária para a terapia e sabe mantêlas secretas por algum tempo É nossa tarefa detectar um a um esses desvios e exigir que renuncie a eles por mais inofensiva que pareça a atividade conducente à satisfação O in divíduo semicurado pode enveredar por caminhos não tão inofensivos no caso de um homem por exemplo ao buscar uma ligação prematura com uma mulh er Observemos aliás que matrimônio infeliz e enfermidade física são os sucedâneos mais comuns da neurose Satisfazem particularmente a consciência de culpa necessidade de castigo que faz tantos doentes se apegarem tenazmente à neurose Com um desastrado matrimônio eles castigam a si mes mos veem uma longa enfermidade orgânica como castigo do destino e então frequentemente desistem de prosseguir com a neurose Em todas essas situações a atividade do médico tem de se manifestar como enérgica oposição às satisfações substitutivas prematuras Para ele será mais fá cil no entanto prevenir um outro perigo que ameaça a força instintual da an álise e que não deve ser subestimado O doente busca satisfação substitutiva principalmente na terapia mesma na relação de transferência com o médico e pode inclusive procurar aí compensação para as outras renúncias que lhe são impostas Alguma concessão lhe deve ser feita maior ou menor segundo a natureza do caso e a peculiaridade do paciente Mas não é bom que seja de masiada O analista que tendo o coração solícito digamos dá ao doente tudo o que um indivíduo pode esperar de outro incorre no mesmo erro econômico de que os sanatórios não analíticos são culpados Estes objetivam apenas tornar tudo o mais agradável possível para o doente a fim de que ele se sinta bem e goste de lá se refugiar das dificuldades da vida Então renunciam a tornálo mais forte para a vida mais capacitado para suas genuínas tarefas Na terapia analítica devese evitar todo mimo desse tipo No que toca a sua relação com o médico o doente deve conservar bastantes desejos não realizados É 214311 apropriado recusarlhe justamente as satisfações que ele deseja de modo mais intenso e sobre as quais se manifesta do modo mais premente Não creio haver esgotado o alcance da atividade desejável para o médico ao afirmar que na terapia deve ser mantida a privação Uma outra orientação da atividade analítica como bem se lembrarão já foi motivo de polêmica entre nós e a escola suíça Recusamonos decididamente a transformar em pro priedade nossa o paciente que se entrega a nossas mãos em busca de auxílio a conformar seu destino imporlhe nossos ideais e com a soberba de um Criador modelálo à nossa imagem nisso encontrando prazer Ainda me atenho a tal recusa e penso que aí deve ter lugar a discrição médica que precis amos ignorar em outros pontos também aprendi que o propósito terapêutico não requer em absoluto uma atuação assim abrangente para com o paciente Pude ajudar pessoas com as quais não possuía qualquer vínculo de raça edu cação posição social ou visão de mundo sem incomodálas em sua individual idade É verdade que então no período dessa controvérsia pareceume que as objeções de nossos defensores creio que Ernest Jones em primeiro lugar soaram demasiado rudes e intransigentes Não podemos deixar de acolher também pacientes tão desorientados e ineptos para a vida que será preciso ali ar em seu tratamento a influência educativa com a analítica e também para a maioria dos outros haverá ocasião em que o médico é obrigado a atuar como educador e conselheiro Mas isso deve ocorrer com grande cuidado e o doente não deve ser educado para se assemelhar a nós mas para liberar e consumar sua própria natureza Nosso estimado amigo J J Putnam na América que atualmente nos é tão hostil nos perdoará por também não podermos aceitar sua reivindicação de pôr a psicanálise a serviço de uma visão de mundo filosófica e de impor esta ao paciente a fim de enobrecêlo Na minha opinião isso afinal não passa de violência ainda que coberta das mais nobres intenções Ao perceber gradualmente que as várias formas patológicas que tratamos não podem ser resolvidas com a mesma técnica chegamos a uma outra 215311 atividade de espécie bem diferente Seria prematuro discorrer pormenorizada mente sobre ela mas dois exemplos podem esclarecer em que medida tratase de uma nova atividade Nossa técnica se desenvolveu no tratamento da histeria e continua direcionada para essa afecção Mas as fobias já nos fazem ir além do procedimento que adotamos até aqui Dificilmente dominamos uma fobia se esperamos até que o doente seja levado a abandonála mediante a análise É preciso agir de outra maneira Vejamos o exemplo da agorafobia de que ex istem duas classes uma mais leve a outra mais grave Os fóbicos do primeiro tipo sentem angústia cada vez que saem sós pela rua mas não deixam de sair por conta disso os outros se guardam da angústia renunciando a sair sós No caso desses últimos temos sucesso apenas quando conseguimos movêlos at ravés da análise a novamente portarse como fóbicos do primeiro grau isto é saindo à rua e desse modo combatendo a angústia Primeiro então há que moderar a fobia e somente quando se alcança isso por instância do médico é que o doente adquire as associações e lembranças que tornam possível a solução da fobia A espera passiva parece ainda menos indicada nos casos severos de atos ob sessivos que em geral tendem a um processo de cura assintótico a um trata mento interminável e em cuja análise há sempre o perigo de fazer vir à luz muitas coisas e nada mudar Não me parece haver dúvida de que a técnica cor reta nesse ponto consiste apenas em esperar que a terapia mesma se torne uma compulsão para depois utilizando essa contracompulsão suprimir viol entamente a compulsão patológica Mas os senhores veem que com esses dois casos lhes apresentei apenas amostras dos novos desenvolvimentos que se oferecem para a nossa terapia Por fim quero abordar uma situação que pertence ao futuro que para mui tos dos senhores parecerá fantástica mas que a meu ver merece que tenhamos o pensamento preparado para ela Os senhores bem sabem que nossa ação terapêutica não é muito extensa Somos apenas um punhado de pessoas e cada um de nós mesmo trabalhando esforçadamente pode se dedicar apenas a um 216311 número escasso de doentes Na abundância de miséria neurótica que há no mundo e que talvez não precise haver o que logramos abolir é qualitativa mente insignificante Além disso as condições de nossa existência nos limitam às camadas superiores da sociedade que escolhem à vontade seus próprios médicos e nessa escolha são afastadas da psicanálise por todo gênero de pre conceitos Para as amplas camadas populares que tanto sofrem com as neur oses nada podemos fazer atualmente Agora suponhamos que alguma organização nos permitisse aumentar nosso número de forma tal que bastássemos para o tratamento de grandes quan tidades de pessoas Podese prever que em algum momento a consciência da sociedade despertará advertindoa de que o pobre tem tanto direito a auxílio psíquico quanto hoje em dia já tem a cirurgias vitais E que as neuroses não afetam menos a saúde do povo do que a tuberculose e assim como esta não podem ser deixadas ao impotente cuidado do indivíduo Então serão construí dos sanatórios ou consultórios que empregarão médicos de formação psic analítica para que mediante a análise sejam mantidos capazes de resistência e de realização homens que de outro modo se entregariam à bebida mulheres que ameaçam sucumbir sob a carga de privações crianças que só têm diante de si a escolha entre a neurose e o embrutecimento Esses tratamentos serão gra tuitos Talvez demore muito até que o Estado sinta como urgentes esses deveres As circunstâncias presentes podem adiar mais ainda esse momento Talvez a beneficência privada venha a criar institutos assim mas um dia isso terá de ocorrer Então haverá para nós a tarefa de adaptar nossa técnica às novas condições Não tenho dúvida de que o acerto de nossas hipóteses psicológicas impression ará também os incultos mas teremos de buscar a mais simples e palpável ex pressão para nossas teorias Veremos provavelmente que os pobres se acham ainda menos dispostos a renunciar a suas neuroses do que os ricos porque a difícil vida que os espera não os atrai e a doença significa para eles mais um título à assistência social É possível que só consigamos realizar algo se 217311 pudermos juntar auxílio psíquico e apoio material à maneira do imperador José É também muito provável que na aplicação em massa de nossa terapia sejamos obrigados a fundir o puro ouro da análise com o cobre da sugestão direta e mesmo a influência hipnótica poderia ter aí seu lugar como teve no tratamento dos neuróticos de guerra Mas como quer que se configure essa psicoterapia para o povo quaisquer que sejam os elementos que a compon ham suas partes mais eficientes e mais importantes continuarão a ser aquelas tomadas da psicanálise rigorosa e não tendenciosa Motivos instintos Motive Triebregungen As versões estrangeiras do presente artigo con sultadas durante a elaboração desta recorrem a motivos o impulsos instintivos foi colocado ou no lugar da vírgula motivos mociones pulsionales motivazioni moti pulsionali les émois instintuels foi omitido o primeiro substantivo motives instinctual impulses motieven driftim pulsen Essas traduções estrangeiras são a espanhola de LopezBallesteros Biblioteca Nueva a argentina de J L Etcheverry Amorrortu a italiana dirigida por C Musatti Boringhieri a francesa de Anne Berman em La technique psychanalytique puf a inglesa de James Strachey Standard edition xvii e a holandesa de Wilfred Oranje Boom Quanto aos problemas que envolvem a tradução de Triebregung ver capítulo sobre Trieb e Apêndice em Paulo César de Souza As palavras de Freud o vocabulário freudiano e suas versões São Paulo Companhia das Letras nova ed revista 2010 Nesse mesmo parágrafo motivos instintuais foi a tradução dada a Triebmotive na segunda vez em que a expressão ocorre mais para o fim do parágrafo ela foi trocada na Standard inglesa onde se lê instinctual impulses Impulso sexual Sexualstreben o verbo streben aqui substantivado significa esforçarse por aspirar a ambicionar os tradutores recorreram a instinto sexual quereral canzar sexual impulso sessuale aspirations sexuelles sexual impulsions seksuele streven Tendências Strebungen nas outras versões impulsos aspiraciones correnti aspirations trends strevingen ver nota anterior Esse substantivo pode ser criação de Freud pois não é usado no alemão de hoje e não foi encontrado num dicionário de sua época o MuretSanders por ele citado no texto O inquietante neste volume Logo em seguida na mesma frase compulsão traduz Zwang que também pode significar coação e obsessão nas traduções consultadas foi vertida nesse caso por tendencia compulsión coattivamente attrait compulsion nel compulsion dwang 218311 Nexo Zusammenhang que também pode significar contexto conexão concatenação as versões consultadas apresentam totalidad trama contesto association nexus samenhang 1 Na análise química sucede algo semelhante afinal Enquanto o químico isola certos elemen tos ocorrem sínteses não desejadas por ele devido aos laços liberados à afinidade eletiva das substâncias Força instintual Triebkraft nas versões estrangeiras consultadas fuerza instintiva fuerza pulsional forza pulsionale force pulsionnelle instinctual force drijfkracht O termo alemão tem o significado geral registrado nos dicionários de força motriz também em sentido figurado O leitor deve ter em mente essa outra possível tradução Referência ao imperador José ii da Áustria 17411790 219311 BATEM NUMA CRIANÇA CONTRIBUIÇÃO AO CONHECIMENTO DA GÊNESE DAS PERVERSÕES SEXUAIS 1919 TÍTULO ORIGINAL EIN KIND WIRD GESCHLAGEN BEITRAG ZUR KENNTNIS DER ENTSTEHUNG SEXUELLER PERVERSIONEN PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM INTERNATIONALE ZEITSCHRIFT FÜR ÄRZTLICHE PSYCHOANALYSE REVISTA INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE MÉDICA V 5 N 3 PP 15172 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XII PP 195226 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE VII PP 22954 I É surpreendente a frequência com que a fantasia de que batem numa cri ança é confessada por pessoas que buscam tratamento psicanalítico para uma histeria ou uma neurose obsessiva Provavelmente ela surge com frequência maior ainda em pessoas que não foram obrigadas a tomar essa resolução devido a uma doença manifesta A essa fantasia se acham ligados sentimentos de prazer em virtude dos quais ela foi reproduzida inúmeras vezes ou continua a sêlo No auge da situ ação imaginada há quase sempre uma satisfação masturbatória com os geni tais portanto no início voluntariamente mas depois contra a vontade do pa ciente e de forma obsessiva A confissão dessa fantasia sucede hesitantemente a recordação da primeira vez em que surgiu é incerta uma inequívoca resistência se opõe ao tratamento analítico do tema vergonha e consciência de culpa talvez se agitem mais forte mente do que em comunicações similares das primeiras lembranças da vida sexual Enfim se constata que as primeiras fantasias dessa espécie foram cultivadas bem cedo antes da idade escolar já no quinto ou sexto ano de vida Na escola quando a criança viu o professor bater em outras crianças tal vivência desper tou novamente as fantasias se estavam adormecidas fortaleceuas se ainda es tavam presentes e modificou notavelmente o seu conteúdo A partir de então muitas crianças foram surradas A influência da escola foi tão nítida que os pacientes em questão eram inicialmente tentados a ligar as fantasias de surra apenas a tais impressões da época escolar após os seis anos de idade Mas não era possível sustentar isso elas já existiam antes Nas classes mais adiantadas tendo cessado os golpes nas crianças a sua in fluência foi mais do que substituída pelo efeito das leituras que logo adquiririam importância No meio social de meus pacientes eram quase sempre os mesmos livros aqueles acessíveis à infância que proporcionavam às fantasias de surra novos estímulos a chamada Biblioteca Rosa A cabana do pai Tomás e outros assim Competindo com essas obras a atividade fantasiosa da criança punhase a inventar uma grande quantidade de situações e institu ições em que as crianças eram surradas ou punidas e disciplinadas de alguma maneira por sua maldade e seu mau comportamento Como a fantasia de que batem numa criança era geralmente investida de el evado prazer e se concluía num ato de prazerosa satisfação autoerótica podíamos esperar que também a vista de outra criança sendo golpeada na escola desse origem a um semelhante deleite Esse nunca era o caso porém Cenas de castigo físico na escola despertavam na criança que as presenciava um sentimento peculiar de excitação provavelmente misto no qual a repulsa tinha larga participação Em alguns casos a experiência real das cenas de cas tigo era sentida como intolerável Aliás também nas fantasias refinadas de anos posteriores mantinhase a condição de que as crianças punidas não so fressem nenhum ferimento sério Era forçoso perguntar que relação podia haver entre a importância das fantasias de surra e o papel que haviam tido na educação familiar da criança as punições físicas reais A conjectura imediata de que se tratava de uma re lação inversa não podia ser demonstrada em virtude da unilateralidade do material As pessoas das quais vieram os dados para essas análises raramente haviam apanhado na infância de todo modo não haviam sido educadas com a ajuda do bastão Mas naturalmente cada uma dessas crianças tivera de sentir em algum momento a superior força física dos pais ou educadores não é pre ciso sublinhar que não faltaram os golpes normais entre crianças que vivem sob o mesmo teto Quanto às fantasias antigas e simples que não apontavam claramente para a influência de impressões da escola ou cenas de livros a pesquisa demandava mais informações Quem era a criança que apanhava A que tinha a fantasia ou 222311 uma outra Era sempre a mesma criança ou frequentemente qualquer outra Quem batia na criança Um adulto Quem então Ou a criança fantasiava que ela mesma batia numa outra Para todas essas questões não havia uma in formação esclarecedora mas apenas uma tímida resposta Não sei nada mais batem numa criança Indagações sobre o sexo da criança que apanhava tinham maior sucesso mas não traziam maior compreensão Às vezes a resposta era Sempre meni nos ou Só meninas com frequência diziase Não sei ou Não faz diferença Aquilo que interessava ao indagador uma relação constante entre o sexo da criança que fantasiava e o da que apanhava nunca se verificou Oca sionalmente aparecia um outro detalhe característico do conteúdo da fantasia a criança pequena é golpeada no traseiro nu Em tais circunstâncias não se podia resolver inicialmente se o prazer lig ado à fantasia de surra devia ser chamado de sádico ou de masoquista II Uma tal fantasia que talvez surja na primeira infância por ensejos casuais e é mantida para a autossatisfação erótica pode apenas ser vista segundo nossos atuais conhecimentos como um traço primário de perversão Um dos com ponentes da função sexual teria se adiantado aos outros no desenvolvimento teria se tornado prematuramente autônomo e se fixado escapando assim aos processos de desenvolvimento posteriores mas também dando prova de uma constituição especial anormal da pessoa Sabemos que tal perversão infantil não continua necessariamente por toda a vida pode sucumbir depois à repressão ser substituída por uma formação reativa ou ser transformada por uma sublimação Mas é possível que a sublimação derive de um processo es pecial que seria freado pela repressão Quando esses processos não ocorrem porém a perversão se conserva durante a vida madura e ao depararmos com 223311 uma aberração sexual no adulto perversão fetichismo inversão po demos justificadamente esperar que uma anamnese descubra um tal evento fix ador na época da infância De fato bem antes da psicanálise observadores como Binet fizeram remontar as peculiares aberrações sexuais da maturidade a impressões desse tipo justamente no quinto ou sexto ano de vida É certo que aí encontrávamos um limite da nossa compreensão pois as impressões fixador as não tinham nenhuma força traumática eram geralmente banais e desin teressantes para outros indivíduos era impossível dizer por que o impulso sexual fixarase justamente nelas Mas sua importância podia se achar no fato de haverem proporcionado o ensejo ainda que casual para a adesão do com ponente sexual prematuro e pronto para lançarse e devíamos prever que a ca deia de laços causais teria um fim provisório em algum lugar A constituição congênita parecia justamente responder a todas as exigências para tal ponto de apoio Se o componente sexual que prematuramente se desprendeu é o sádico formamos a expectativa baseados em conhecimento adquirido em outras fontes de que graças à posterior repressão dele surja uma disposição para a neurose obsessiva Não se pode dizer que tal expectativa seja contrariada pelo resultado da investigação Entre os seis casos quatro mulheres e dois homens cujo estudo aprofundado serviu de base para esta comunicação havia casos de neurose obsessiva um bastante severo incapacitante outro menos grave acessível à influência analítica e um terceiro que evidenciava ao menos alguns traços nítidos de neurose obsessiva Um quarto caso admitase era uma franca histeria com dores e inibições e um quinto que buscou a análise apenas por indecisões na vida não seria classificado num diagnóstico tosco ou seria despachado como psicastenia Essa estatística não deve ser vista como de cepcionante pois sabemos em primeiro lugar que nem toda disposição vem a se tornar enfermidade e em segundo lugar deve nos bastar esclarecer o que se acha presente podemos nos furtar à tarefa de também levar a entender por que algo não se produziu 224311 Nossos atuais conhecimentos nos permitem penetrar até este ponto e não mais do que até ele na compreensão das fantasias de surra O médico analista suspeita que com isso não está resolvido o problema ao confessar a si mesmo que essas fantasias permanecem geralmente fora do conteúdo restante da neur ose e não ocupam lugar certo em sua trama mas como sei por experiência própria há o costume de ignorar tais impressões III A rigor e por que não tomar isso com o máximo rigor deve ser visto como psicanálise correta apenas o trabalho analítico que logra remover a am nésia que esconde ao adulto o conhecimento de sua vida infantil desde o início dos dois aos cinco anos aproximadamente Não se pode enfatizar isso o bastante nem repetilo suficientemente para os analistas Os motivos para não levar em conta essa advertência são compreensíveis Buscase obter resultados práticos em pouco tempo e com esforço mínimo Mas hoje o conhecimento teórico é bem mais importante para cada um de nós do que o sucesso terapêutico e quem negligencia a análise da infância incorre necessariamente nos erros mais graves Sublinhar a importância das primeiras vivências não im plica subestimar o peso das vivências posteriores mas essas posteriores im pressões da vida falam com clareza pela boca do paciente enquanto o médico tem de erguer a voz em favor da infância A idade entre dois e quatro ou cinco anos é aquela em que os fatores libid inais congênitos são primeiramente despertados pelas vivências e ligados a de terminados complexos As fantasias de surra de que aqui tratamos se mostram apenas no final ou depois desse período Bem pode ser então que elas tenham uma préhistória que perfaçam um desenvolvimento correspondam a um des fecho final não a uma manifestação inicial 225311 Esta suposição é confirmada pela análise A aplicação consequente dela en sina que as fantasias de surra têm um desenvolvimento nada simples no curso do qual a maioria de seus aspectos se modifica mais de uma vez sua relação com a pessoa que fantasia seu objeto conteúdo e significação Para acompanhar mais facilmente tais mudanças nas fantasias de surra lim itarei minhas descrições às pessoas do sexo feminino que de toda forma con stituem a maioria do material quatro contra dois Além disso às fantasias de surra dos homens relacionase outro tema que deixarei de lado nesta comu nicação Nisso me esforçarei em não esquematizar mais do que é inevitável para a exposição de um caso médio Observações ulteriores talvez revelem maior complexidade de relações mas estou certo de haver apreendido uma ocorrência típica e de frequência nada rara A primeira fase das fantasias de surra das meninas então deve pertencer a um período remoto da infância Algumas coisas nelas permanecem curi osamente indefinidas como se não importassem A pouca informação obtida dos pacientes na primeira comunicação Batem numa criança parece justificada para essa fantasia Uma outra coisa pode ser determinada com cer teza no entanto e sempre com o mesmo sentido A criança que apanha nunca é a que fantasia mas invariavelmente uma outra em geral um irmão menor quando existe Como este pode ser menino ou menina não pode haver aqui um nexo constante entre o sexo da criança que fantasia e o da que apanha A fantasia não é certamente masoquista então talvez se queira chamála de sádica mas não se deve perder de vista que a criança que fantasia não é jamais aquela que bate Permanece obscuro de início quem é realmente a pessoa que bate Apenas uma coisa pode se constatar não é outra criança mas um adulto Mais tarde esse adulto indeterminado será reconhecido de maneira clara e in equívoca como o pai da menina Portanto essa primeira fase da fantasia de surra é cabalmente expressa na frase Meu pai bate na criança Já revelo bastante do conteúdo que será ap resentado quando em vez disso afirmo Meu pai bate na criança que odeio 226311 Aliás podemos hesitar em atribuir já o caráter de fantasia a esse estágio pré vio da posterior fantasia de surra Talvez se trate de recordações de eventos presenciados de desejos aparecidos em diferentes ensejos mas essas dúvidas não têm importância Entre essa primeira fase e a seguinte ocorreram grandes mudanças A pess oa que bate continuou a mesma o pai mas a criança castigada tornouse outra é invariavelmente a própria criança que fantasia a fantasia é bastante marcada pelo prazer e adquire um significativo conteúdo cuja procedência nos ocupará mais adiante Ela diz então Sou castigada por meu pai Ela tem caráter in dubitavelmente masoquista Essa segunda fase é a mais importante e mais prenhe de consequências Em certo sentido no entanto podese dizer que ela não tem uma existência real Em nenhum caso ela é lembrada não chegou a tornarse consciente É uma construção da análise mas nem por isso menos necessária A terceira fase se assemelha novamente à primeira Sua formulação é a que sabemos pelo comunicado da paciente A pessoa que bate nunca é o pai ela permanece indefinida como na primeira fase ou vem a ser de modo típico um representante do pai como o professor A própria pessoa da criança que fantasia já não aparece na fantasia de surra Ao serem questionadas as pa cientes dizem apenas Eu estou olhando provavelmente No lugar de uma criança que apanha em geral há muitas crianças Com bem maior frequência são garotos nas fantasias das meninas que apanham mas eles não são con hecidos individualmente A monótona situação original da surra pode experi mentar as mais diversas alterações e adornos e a surra mesma pode ser sub stituída por castigos e humilhações de outra espécie Mas a característica essen cial que distingue também as mais simples fantasias dessa fase daquelas da primeira e que produz a relação com a fase do meio é a seguinte a fantasia é agora portadora de uma forte inequívoca excitação sexual e como tal permite a satisfação masturbatória Justamente isso é enigmático no entanto 227311 por qual caminho essa fantasia agora sádica de que garotos desconhecidos apanham tornouse patrimônio duradouro dos impulsos libidinais da menina Também não ocultamos a nós mesmos que os nexos e a sequência das três fases da fantasia de surra assim como todas as suas demais peculiaridades ficaram incompreensíveis até o momento IV Se conduzimos a análise através do tempo remoto em que é colocada a fantasia de surra e a partir do qual ela é recordada a criança nos aparece enredada nas excitações de seu complexo parental A menina é afetuosamente fixada no pai que provavelmente fez tudo para ganhar seu amor lançando o gérmen de uma atitude de ódio e concorrência diante da mãe atitude que subsiste junto a uma corrente de afetuosa dependên cia e que pode com o passar do tempo tornarse consciente de maneira cada vez mais intensa e nítida ou provocar uma exagerada ligação amorosa reativa com ela Mas não é à relação com a mãe que a fantasia de surra se liga Há out ras crianças no ambiente poucos anos mais velhas ou mais novas das quais a criança não gosta por toda espécie de motivos mas sobretudo porque tem que dividir com elas o amor dos pais e que por isso afasta de si com toda a brava energia própria dos sentimentos dessa idade Se é um irmão ou irmã menor como em três dos meus quatro casos a criança o despreza além de odiálo e tem de presenciar como ele é alvo do afeto que os pais enceguecidos sempre reservam para aquele que nasceu por último Logo compreende que apanhar mesmo quando não dói muito significa uma retração do amor e uma humil hação Assim crianças que acreditavam comandar seguramente o inabalável amor dos pais foram derrubadas por meio de um só golpe das alturas de sua presumida onipotência Então é agradável a ideia de o pai bater nessa criança 228311 odiada independentemente de têlo visto fazendo isso Ela significa Meu Pai não ama esse outro ama somente a mim Eis portanto o teor e o significado da fantasia de surra na primeira fase A fantasia evidentemente satisfaz o ciúme da criança e depende da sua vida amorosa mas é também vigorosamente apoiada por seus interesses egoístas Permanece então duvidoso que se possa designála como puramente sexual mas tampouco nos arriscamos a chamála de sádica Sabemos que aproximandose da origem costumam desaparecer todas as características sobre as quais habitualmente construímos nossas diferenças Então de forma semelhante à profecia que as três bruxas fizeram a Banquo talvez possamos dizer não claramente sexual tampouco sádica mas o material de que surgirão depois as duas coisas De modo algum porém há razão para supor que já essa primeira fase da fantasia esteja a serviço de uma excitação que recorrendo aos genitais alcance desafogo num ato masturbatório Com essa prematura escolha de objeto do amor incestuoso a vida sexual da criança atinge evidentemente o estágio da organização genital Isso é mais fácil de ser demonstrado no menino mas também no caso da menina é indubitável Algo como um pressentimento do que serão as metas sexuais definitivas e nor mais governa as tendências libidinais da criança naturalmente podemos nos perguntar admirados como isto sucede mas é lícito vêlo como prova de que os genitais assumiram já seu papel no processo de excitação O desejo de ter um filho com a mãe nunca está ausente no menino o desejo de ter um filho do pai é constante na menina e isso sendo totalmente incapazes de ter clareza quanto à forma de realizar tais desejos Que os genitais têm algo a ver com isso parece algo certo para a criança embora sua ruminação possa buscar a natureza da presumida intimidade dos pais em relações de outra espécie como no fato de dormirem juntos de urinarem conjuntamente etc e tais conteúdos possam ser mais facilmente apreendidos em representações verbais do que o elemento obscuro ligado aos genitais 229311 No entanto chega o tempo em que essa primeira floração é estragada pelo gelo nenhum desses amores incestuosos pode fugir à fatalidade da repressão Sucumbem a ela devido a ensejos externos verificáveis que provocam de cepção devido a inesperadas doenças ao nascimento indesejado de um irmãozinho que é sentido como uma infidelidade etc ou então a partir de dentro sem ocasiões exteriores talvez apenas porque não se realizou a satis fação há muito ansiada É inegável que tais ensejos não são as causas efetivas mas que essas relações amorosas estão fadadas a declinar em algum momento não sabemos dizer em virtude de quê O mais provável é que desapareçam porque seu tempo acabou porque as crianças entram em nova fase de desen volvimento na qual são obrigadas a repetir a repressão da escolha incestuosa de objeto que houve na história da humanidade como anteriormente haviam sido levadas a empreender tal escolha de objeto Ver o papel do Destino no mito de Édipo O que existe inconscientemente como resultado psíquico dos impulsos de amor incestuosos não é mais assumido pela consciência na nova fase e o que deles já se tornou consciente é de novo repelido Ao mesmo tempo que esse processo de repressão surge uma consciência de culpa também de origem desconhecida mas sem dúvida ligada àqueles desejos incestuosos e justificada pela permanência deles no inconsciente1 A fantasia do período de amor incestuoso dizia Ele o pai ama apenas a mim não a outra criança porque bate nela A consciência de culpa não acha castigo mais severo do que a inversão desse triunfo Não ele não ama você pois bate em você Assim a fantasia da segunda fase de apanhar ela mesma do pai tornase expressão direta da consciência de culpa à qual o amor ao pai fica sujeito A fantasia tornouse masoquista portanto que eu saiba é sempre assim a consciência de culpa é o fator que transforma o sadismo em masoquismo Mas certamente esse não é o conteúdo inteiro do masoquismo A consciência de culpa não pode haver dominado sozinha o campo também o impulso amoroso deve ter seu quinhão Recordemos que se trata de crianças em que o componente sádico pôde por razões constitucionais aparecer de 230311 forma prematura e isoladamente Não precisamos abandonar esse ponto de vista Justamente nessas crianças é bastante facilitado um retorno à organização prégenital sádicoanal da vida sexual Se a organização genital que mal se alcançou é atingida pela repressão há não apenas a consequência de que toda representação psíquica do amor incestuoso se torna ou permanece in consciente mas também de que a organização genital mesma sofre uma de gradação regressiva Meu pai me ama tinha um sentido genital devido à re gressão se converte em Meu pai bate em mim apanho de meu pai Ser golpeado é agora uma convergência de consciência de culpa e erotismo é não só o castigo pela relação genital proibida mas também o substituto regressivo para ela e desta última fonte retira a excitação libidinal que a partir de então estará unida a ele e que achará desafogo em atos masturbatórios Essa é enfim a es sência do masoquismo A fantasia da segunda fase ser golpeado pelo próprio pai permanece in consciente por via de regra provavelmente devido à intensidade da repressão Não sei indicar por que em um dos meus seis casos masculino ela foi lem brada conscientemente Esta pessoa então um adulto havia conservado clara mente na memória que costumava utilizar para fins masturbatórios a ideia de apanhar da mãe mas é verdade que logo substituía a própria mãe pelas mães de colegas de escola ou por outras de algum modo semelhantes a ela Não se deve esquecer que na transformação da fantasia incestuosa do menino na fantasia masoquista correspondente ocorre uma inversão mais que no caso da menina isto é a substituição da atividade pela passividade e esse grau adi cional de deformação pode evitar que a fantasia permaneça inconsciente como resultado da repressão À consciência de culpa bastaria a regressão em vez da repressão nos casos femininos a consciência de culpa talvez mais exigente seria apaziguada apenas pela ação conjunta de ambas Em dois de meus quatro casos femininos se desenvolvera por sobre a fantasia de surra masoquista uma engenhosa superestrutura de devaneios muito importante na vida daquelas pessoas à qual cabia a função de 231311 possibilitar o sentimento de que a excitação fora satisfeita mesmo com a renúncia ao ato masturbatório Num desses casos o conteúdo apanhar do pai podia ousar novamente adentrar a consciência quando o próprio Eu era tornado irreconhecível por um leve disfarce O herói dessas histórias era in variavelmente golpeado pelo pai depois somente castigado humilhado etc Mas repito que via de regra a fantasia permanece inconsciente e tem de ser reconstruída na análise Com isso talvez estejam certos os pacientes que afirmam lembrar que a masturbação apareceu antes neles do que a fantasia de surra da terceira fase a ser discutida logo adiante que esta teria sobrevindo apenas depois talvez sob a impressão das cenas escolares Todas as vezes que demos crédito a tais informações inclinamonos a supor que a masturbação es teve primeiramente sob o domínio de fantasias inconscientes que depois fo ram substituídas por conscientes É como tal substituto que vemos a conhecida fantasia da terceira fase a sua configuração definitiva na qual a criança que fantasia aparece no máximo como espectador e o pai é mantido na pessoa de um professor ou algum outro superior A fantasia que é semelhante à da primeira fase parece haver se tor nado novamente sádica Temse a impressão de que na frase Meu pai está batendo na outra criança ele ama somente a mim a ênfase recuou para a primeira parte após a segunda haver sucumbido à repressão Mas apenas a forma dessa fantasia é sádica a satisfação que se obtém dela é masoquista sua significação está em haver tomado o investimento libidinal da parte reprimida e com este também a consciência de culpa ligada ao seu conteúdo Todas as crianças indefinidas que levam surra do professor são afinal substitutos da criança mesma Aqui também se mostra pela primeira vez algo como uma constância do sexo nas pessoas que tomam parte na fantasia As crianças surradas são quase sempre garotos tanto nas fantasias dos garotos como nas das garotas Esse traço não se explica evidentemente por alguma rivalidade entre os sexos pois de outro modo garotas é que apanhariam nas fantasias dos garotos 232311 tampouco isso tem algo a ver com o sexo da criança odiada da primeira fase apontando isto sim para um evento complicador nas meninas Ao se afastar em do amor incestuoso ao pai de sentido genital rompem facilmente com seu papel feminino ativam seu complexo de masculinidade expressão de Van Ophuijsen e querem ser apenas garotos a partir de então Daí os meninos sur rados que as representam nas fantasias serem meninos Nos dois casos de devaneios um deles alcançou quase o nível de uma obra de arte os her óis eram apenas homens jovens mulheres não apareciam absolutamente nessas criações foram incorporadas apenas muitos anos depois em papéis secundários V Espero haver exposto minhas observações analíticas de modo suficientemente detalhado e peço que levem em conta que os seis casos tantas vezes mencion ados não esgotam o meu material pois como outros analistas disponho de um número bem maior de casos menos detidamente examinados Essas obser vações podem ser usadas em diferentes direções para esclarecer a gênese das perversões em especial do masoquismo e para avaliar o papel que tem a difer ença sexual na dinâmica da neurose O resultado mais evidente dessa discussão concerne à origem das perver sões É certo que nada muda na concepção que nelas destaca o fortalecimento ou precocidade constitucional de um componente sexual mas com isso não se disse tudo A perversão já não se acha isolada na vida sexual da criança mas é admitida no contexto dos típicos para não dizer normais processos de desenvolvimento que conhecemos É posta em relação com o amor objetal in cestuoso da criança com o seu complexo de Édipo surge primeiro no solo desse complexo e depois que ele desmorona resta sozinha frequentemente como herdeira de sua carga libidinal e agravada pela consciência de culpa que 233311 a ele se ligava A constituição sexual anormal demonstra enfim a sua força empurrando o complexo de Édipo numa direção particular e obrigandoo a tornarse um incomum resíduo A perversão infantil pode como é sabido vir a ser a base para o desenvol vimento de uma perversão de igual sentido que permeia toda a vida que con some toda a vida sexual do indivíduo ou pode ser interrompida e permanecer no pano de fundo de um desenvolvimento sexual normal ao qual sempre retira um certo montante de energia O primeiro caso já se conhecia na época pré analítica mas o hiato entre os dois é quase preenchido pela investigação analít ica de tais perversões plenas Pois se vê com frequência em tais pervertidos que também eles geralmente na puberdade tiveram um pendor para a ativid ade sexual normal Mas esse não foi suficientemente forte foi abandonado ante os primeiros obstáculos que sempre surgem e a pessoa recaiu definitivamente na fixação infantil Seria importante naturalmente saber se a gênese das perversões infantis no complexo de Édipo pode ser estabelecida de forma geral Isso não pode ser resolvido sem maiores investigações mas não parece impossível Consider ando as anamneses obtidas nos casos adultos de perversão notamos que a im pressão decisiva a primeira vivência de todos esses pervertidos fetichistas etc quase nunca é situada em época anterior aos seis anos de idade Mas nesse tempo o predomínio do complexo de Édipo já passou a vivência lembrada eficaz de maneira tão enigmática pode muito bem ter representado a sua her ança As relações entre ela e o complexo então reprimido permanecerão obscuras enquanto a análise não trouxer luz ao tempo anterior à primeira im pressão patogênica Ponderese então quão pouco valor tem por exemplo a declaração da existência de uma homossexualidade inata que se baseia na in formação de que a pessoa teria sentido inclinação pelo mesmo sexo já a partir dos oito ou dos seis anos de idade Mas se é possível que as perversões derivem geralmente do complexo de Édipo nossa apreciação dele experimenta mais um reforço Pois achamos que 234311 o complexo de Édipo é propriamente o núcleo da neurose a sexualidade in fantil que nele culmina a verdadeira condição da neurose e o que dele resta no inconsciente representa a disposição para o futuro adoecimento neurótico do adulto A fantasia de surra e outras análogas fixações perversas seriam então apenas precipitados do complexo de Édipo cicatrizes após o decurso do pro cesso digamos exatamente como o famigerado senso de inferioridade cor responde a tal cicatriz narcísica Nessa concepção devo expressar meu total acordo com Marcinowski que recentemente a sustentou de maneira feliz J Marcinowski Erotische Quellen der Minderwertgkeitsgefühle As fontes er óticas dos sentimentos de inferioridade Zeitschrift für Sexualwissenschaft Revista de Sexologia v 4 1918 Essa ilusão de pequenez do neurótico é par cial como se sabe e inteiramente compatível com a superestimação de si mesmo a partir de outras fontes Sobre a origem do próprio complexo de Édipo e o destino reservado apenas ao homem entre os animais provavel mente de ter de começar duas vezes a vida sexual na primeira infância como as demais criaturas e após demorada interrupção novamente no per íodo da puberdade sobre tudo isso ligado à herança arcaica humana já me expressei em outro lugar e não pretendo abordálo aqui Quanto à gênese do masoquismo nossa discussão das fantasias de surra oferece poucas contribuições Parece confirmarse primeiramente que o masoquismo não é uma manifestação de instinto primária mas surge de uma reversão do sadismo contra a própria pessoa isto é pela regressão do objeto para o Eu cf Os instintos e seus destinos 1915 Instintos com meta pas siva devem ser admitidos no princípio sobretudo na mulher mas a passivid ade não é todo o masoquismo também é parte dele a característica do de sprazer surpreendente na satisfação de um instinto A transformação do sad ismo em masoquismo parece ocorrer mediante a influência da consciência de culpa que participa do ato de repressão A repressão se manifesta aí em três efeitos portanto ela torna inconscientes as consequências da organização 235311 genital obriga esta mesma à regressão ao anterior estágio sádicoanal e con verte o sadismo deste no masoquismo passivo em certo sentido novamente narcísico A segunda dessas três consequências é tornada possível pela fraqueza da organização genital que supomos nesses casos a terceira tornase necessária porque à consciência de culpa ofende tanto o sadismo como a escolha de objeto incestuosa entendida genitalmente De onde vem a própria consciência de culpa as análises não nos dizem novamente Parece ser trazida pela nova fase em que entra a criança e quando permanece depois correspon deria a uma cicatrização similar à do senso de inferioridade Conforme nossa orientação quanto à estrutura do Eu até agora ainda incerta nós a at ribuiríamos àquela instância que se opõe ao resto do Eu como consciência crít ica que no sonho produz o fenômeno funcional de Silberer e se destaca do Eu no delírio de ser observado Notemos de passagem que a análise da perversão infantil aqui tratada ajuda igualmente a resolver um antigo enigma que é verdade sempre in comodou mais as pessoas alheias à análise do que os analistas mesmos Ainda recentemente até mesmo Bleuler viu como notável e inexplicável que os neuróticos façam da masturbação o ponto central de sua consciência de culpa Desde sempre supomos que ela diz respeito à masturbação da primeira infân cia não à da puberdade e que não deve ser relacionada em sua maior parte ao ato masturbatório mas à fantasia que embora inconsciente está na base dele vinda do complexo de Édipo portanto Já expus o significado que costuma adquirir a terceira fase aparentemente sádica da fantasia de surra como portadora da excitação que impele à mas turbação e a atividade fantasiadora que ela costuma estimular em parte prosseguindoa no mesmo sentido em parte suspendendoa de maneira com pensatória Mas a segunda fase inconsciente e masoquista a fantasia de apan har ela própria do pai é incomparavelmente mais importante Não só por con tinuar atuando mediante a fase que a substitui podese também demonstrar efeitos sobre o caráter que provêm diretamente de sua forma inconsciente 236311 Pessoas que trazem em si tal fantasia desenvolvem sensibilidade e irritabilidade especial para com indivíduos que possam incluir na série dos pais facilmente se desgostam com eles assim fazendo que se realize para sua própria dor e dano a situação fantasiada de que apanham do pai Eu não me surpreenderei se um dia for possível provar que essa fantasia é a base da mania de querela dos paranoicos VI A descrição das fantasias infantis de surra seria irrealizável se eu não houvesse me limitado excetuando umas poucas referências ao que se verifica em pess oas do sexo feminino Repetirei brevemente os resultados A fantasia de surra das meninas passa por três fases das quais a primeira e a última são lembradas conscientemente enquanto a do meio permanece inconsciente As duas con scientes parecem sádicas a do meio inconsciente é sem dúvida masoquista o seu conteúdo é apanhar do pai a ela estão ligadas a carga libidinal e a con sciência de culpa A criança surrada é nas duas fantasias sempre uma outra na fase do meio é apenas ela própria na terceira fase consciente quase só meni nos são surrados A pessoa que bate é desde o início o pai e depois um substi tuto da série dos pais A fantasia inconsciente da fase do meio tinha original mente significação genital tendo surgido por repressão e regressão do desejo incestuoso de ser amado pelo pai A isto se junta num nexo aparentemente mais frouxo que as meninas mudam de sexo entre a segunda e a terceira fase fantasiando serem meninos Não avancei tanto no conhecimento das fantasias de surra dos meninos talvez porque o material fosse desfavorável Compreendese que eu tenha es perado uma situação inteiramente análoga nos meninos em que a mãe tomaria o lugar do pai nas fantasias A expectativa parecia confirmarse pois o con teúdo da fantasia correspondente dos meninos era apanhar da mãe depois de 237311 uma pessoa que a substituía Mas essa fantasia na qual a própria pessoa do menino era mantida como objeto diferenciavase da segunda fase das meninas pelo fato de poder tornarse consciente Querendose por causa disso torná la equivalente à terceira fase das meninas persistia a diferença de que o men ino não era substituído por outros garotos desconhecidos e indeterminados menos ainda por outras meninas A expectativa de um completo paralelismo mostrouse infundada portanto Meu material masculino abrangia poucos casos com fantasia de surra in fantil sem grande prejuízo para a atividade sexual mas um número maior de pessoas que devemos designar como autênticos masoquistas no sentido de ter em a perversão sexual Eram indivíduos que achavam satisfação sexual apenas na masturbação com fantasias masoquistas ou que conseguiam juntar masoquismo e atividade genital de uma maneira que através de arranjos masoquistas e em condições tais atingiam a ereção e a ejaculação ou se habilit avam para um coito normal Houve também um caso mais raro em que o masoquista era perturbado na ação pervertida por ideias obsessivas intol eravelmente fortes Pervertidos satisfeitos raramente têm motivos para procur ar a análise mas para os três grupos mencionados de masoquistas pode haver fortes motivos que os levem ao analista O masturbador masoquista vê que é impotente quando enfim tenta o coito com uma mulher e aquele que até então realizou o coito com o auxílio de uma ideia ou um arranjo masoquista pode subitamente fazer a descoberta de que essa cômoda aliança fracassou pois seu órgão genital não mais reage ao estímulo masoquista Estamos habituados de modo confiante a prometer recuperação aos psiquicamente impotentes que vêm se tratar conosco mas deveremos ser mais reservados nesse prognóstico enquanto não conhecermos a dinâmica desse distúrbio Temos uma surpresa desagradável quando a análise nos revela como causa da impotência pura mente psíquica uma atitude masoquista peculiar talvez há muito tempo arraigada 238311 Nesses homens masoquistas descobrimos algo que nos solicita não levar adiante no momento a analogia com a mulher mas julgar independentemente a situação Pois se verifica que eles nas fantasias masoquistas e nos arranjos para concretizálas tomam invariavelmente o papel da mulher que o seu masoquismo portanto coincide com uma atitude feminina Isso é facilmente demonstrável em pormenores das fantasias mas muitos pacientes também sabem disso e o expressam como uma certeza subjetiva Não faz diferença quando uma roupagem lúdica da cena masoquista se atém à ficção de um men ino pajem ou aprendiz malcriado que deve ser punido Mas as pessoas que castigam são sempre mulheres nas fantasias e nos arranjos Isso é algo descon certante queremos saber também se o masoquismo da fantasia infantil de surra já se baseia nessa postura feminina2 Deixemos então os fatos dificilmente explicáveis do masoquismo adulto e voltemonos para as fantasias infantis de surra no sexo masculino Aqui a anál ise do mais remoto período da infância nos permite mais uma vez fazer uma descoberta surpreendente A fantasia que tem por conteúdo apanhar da mãe consciente ou capaz de chegar à consciência não é primária Ela tem um está gio preliminar que é sempre inconsciente e tem o conteúdo seguinte Apanho de meu pai Esse estágio prévio corresponde realmente portanto à segunda fase da fantasia da menina A notória fantasia consciente Apanho de minha mãe achase no lugar da terceira fase da menina na qual como se disse meninos desconhecidos são os objetos que apanham Não pude demonstrar no menino um estágio preliminar de natureza sádica comparável à primeira fase da menina mas agora não vou rejeitálo definitivamente pois bem vejo a pos sibilidade de tipos mais complicados Ser golpeado na fantasia masculina como a chamarei de forma breve esperando não ser malentendido é igualmente ser amado no sentido genit al de forma rebaixada pela regressão A inconsciente fantasia masculina ori ginal portanto não era Eu apanho do meu pai como provisoriamente for mulamos mas Sou amado por meu pai Ela foi transformada pelos processos 239311 conhecidos na fantasia consciente que diz Eu apanho de minha mãe A fantasia de surra do menino é então desde o início passiva derivada real mente da atitude feminina em relação ao pai Tanto como a feminina da ga rota ela corresponde ao complexo de Édipo mas o paralelismo que esperáva mos entre uma e outra deve ser abandonado em prol de um traço comum di verso em ambos os casos a fantasia de surra deriva da ligação incestuosa com o pai A exposição de outras similaridades e diferenças entre as fantasias de surra dos dois sexos contribuirá para uma maior clareza da questão Na menina a fantasia masoquista inconsciente vem da atitude edípica normal no menino da atitude inversa que toma o pai como objeto de amor Na menina a fantasia tem um estágio preliminar a primeira fase na qual a surra aparece com signi ficado indiferente e toca a uma pessoa ciumentamente odiada ambas as coisas estão ausentes no menino mas tal diferença poderia ser eliminada numa obser vação mais feliz Na transição para a fantasia consciente que substitui a anteri or a menina retém a pessoa do pai e com isso o sexo da pessoa que bate mas muda a pessoa que apanha e o sexo desta de modo que por fim um homem bate em crianças do sexo masculino O menino pelo contrário muda a pessoa e o sexo daquele que bate ao substituir o pai pela mãe e mantém sua própria pessoa de modo que no final a pessoa que bate e a que apanha são de sexos diferentes Na menina a situação originalmente masoquista passiva é trans formada por meio da repressão numa situação sádica cujo caráter sexual é obscurecido no menino ela continua masoquista e conserva devido à difer ença de sexo entre a pessoa que bate e a que apanha maior semelhança com a fantasia original de sentido genital Por meio da repressão e remodelação da fantasia inconsciente o menino evita a sua homossexualidade a coisa notável em sua posterior fantasia consciente é que tem por conteúdo uma atitude fem inina sem escolha homossexual de objeto Já a menina pelo mesmo processo escapa às exigências da vida amorosa em geral fantasia ser um homem sem 240311 tornarse masculinamente ativa e apenas presencia como espectadora o ato que substitui um ato sexual É lícito supor que com a repressão da fantasia inconsciente original não há grandes mudanças Tudo o que para a consciência foi reprimido e substituído por outra coisa é mantido no inconsciente e permanece capaz de atuação Não sucede o mesmo com o efeito da regressão a um estágio anterior da organiza ção sexual Acerca dela acreditamos que também muda o estado das coisas no inconsciente de modo que após a repressão nos dois sexos continua a existir no inconsciente a fantasia masoquista de apanhar do pai mas não aquela pas siva de ser amado pelo pai Também não faltam indícios de que a repressão atingiu seu propósito apenas de forma bastante incompleta O menino que quis escapar à escolha homossexual de objeto e não mudou seu sexo sentese como mulher em suas fantasias conscientes e dota de atributos e características masculinas as mulheres que nele batem A menina que até abandonou seu sexo e no todo efetuou um trabalho de repressão mais radical não se livra do pai não ousa ela mesma bater e como se tornou ela mesma um garoto faz com que sobretudo garotos apanhem Sei que não ficaram suficientemente esclarecidas as diferenças entre as fantasias de surra dos dois sexos que aqui foram descritas mas não faço a tent ativa de desemaranhar tais complicações rastreando a sua dependência de out ros fatores porque eu mesmo não considero exaustivo o material da obser vação Até onde ele vai porém gostaria de usálo para o exame de duas teori as que opostas uma à outra tratam da relação entre a repressão e o caráter sexual e cada qual à sua maneira apresentam essa relação como muito íntima Adianto que sempre considerei as duas inadequadas e enganosas A primeira dessas teorias é anônima ela me foi dada a conhecer há muitos anos por um colega com o qual tinha laços de amizade Ela é tão atraente em sua franca simplicidade que devemos nos admirar que só em alusões esparsas apareça na literatura sobre o tema Apoiase na constituição bissexual dos seres 241311 humanos e afirma que em cada indivíduo a luta entre os caracteres sexuais é o motivo da repressão O sexo mais fortemente desenvolvido predominante na pessoa teria reprimido e posto no inconsciente a representação psíquica do sexo subjugado De modo que o núcleo do inconsciente o reprimido seria em cada indivíduo o que nele há do sexo oposto Isso só pode ter um significado palpável se admitirmos que o sexo de um indivíduo seja determinado pelo desenvolvimento de seus genitais de outra maneira o sexo mais forte de al guém é algo incerto e corremos o risco de fazer derivar do resultado da in vestigação aquilo mesmo que nos deve servir como o seu ponto de partida Resumindo no homem o que é reprimido e inconsciente remonta a impulsos instintuais femininos na mulher o contrário A segunda teoria é de origem mais recente coincide com a primeira no fato de novamente ver a luta dos dois sexos como decisiva para a repressão No restante se acha em oposição a ela não pede sustentação biológica mas soci ológica Essa teoria do protesto masculino enunciada por Alfred Adler afirma que todo indivíduo se opõe a permanecer na linha feminina de men or valor e se empenha na linha masculina a única satisfatória Com base nesse protesto masculino ela explica de modo bastante geral a formação do caráter e da neurose Infelizmente Adler faz tão pouca separação entre os dois pro cessos a serem indubitavelmente considerados distintos e aprecia tão pouco o fato da repressão que a tentativa de aplicar a teoria do protesto masculino à repressão traz o risco de um malentendido Penso que dessa tentativa resul taria que em todo caso o protesto masculino o desejo de afastarse da linha feminina é o motivo da repressão O que reprime seria então sempre um im pulso instintual masculino e o reprimido um feminino Mas também o sin toma seria resultado de um impulso feminino pois não podemos deixar de lado o seu caráter de que é um substituto do reprimido substituto que se im pôs apesar da repressão Agora examinemos essas duas teorias que têm em comum digamos o fato de sexualizarem o processo de repressão com base no exemplo da fantasia de 242311 surra estudada A fantasia original Apanho do meu pai corresponde a uma postura feminina no garoto é expressão portanto da parte de sua disposição que pertence ao sexo oposto Se ela sucumbe à repressão a primeira teoria parece estar correta pois estabeleceu a regra de que o que pertence ao sexo oposto equivale ao reprimido Não corresponde muito a nossas expectativas é certo quando o que aparece depois de efetuada a repressão a fantasia con sciente exibe novamente a atitude feminina dessa vez para com a mãe Mas não entraremos nesses pontos duvidosos se a questão pode ser decidida breve mente A fantasia original da garota Sou golpeada isto é amada por meu pai corresponde certamente como atitude feminina ao sexo manifesto nela predominante e deveria então conforme a teoria escapar à repressão não precisaria tornarse inconsciente Na realidade ela se torna inconsciente e sofre substituição por uma fantasia consciente que nega o caráter sexual manifesto Essa teoria é então inutilizável para a compreensão das fantasias de surra e por elas refutada Podese objetar que precisamente em garotos efeminados e garotas masculinas elas acontecem e experimentam esses destinos ou que um traço de feminilidade no garoto e de masculinidade na garota seria responsável pelo surgimento da fantasia passiva no menino e por sua repressão na menina Provavelmente aceitaríamos tal concepção mas a suposta relação entre caráter sexual manifesto e a escolha do que se destina à repressão não seria menos in sustentável No fundo vemos apenas que em homens e em mulheres se acham tanto impulsos instintuais masculinos como femininos que igualmente podem se tornar inconscientes mediante a repressão A teoria do protesto masculino parece sustentarse bem melhor quando ex aminada em relação às fantasias de surra Tanto no menino como na menina a fantasia de apanhar corresponde a uma atitude feminina ou seja a uma per manência na linha feminina e ambos os sexos procuram livrarse dessa atitude pela repressão da fantasia No entanto apenas na menina o protesto masculino parece atingir pleno êxito nela se produz um exemplo realmente ideal da ação do protesto masculino No menino o resultado não é tão satisfatório a linha 243311 feminina não é abandonada em sua fantasia masoquista consciente ele certa mente não se acha em cima Logo corresponde à expectativa derivada da teoria se reconhecemos nesta fantasia um sintoma que surgiu mediante o fra casso do protesto masculino É certo que nos perturba que a fantasia da garota originada da repressão tenha igualmente valor e significado de sintoma Pois aí onde o protesto masculino realizou plenamente seu propósito a condição para a formação do sintoma deveria estar ausente Antes que essa dificuldade nos leve a suspeitar que toda a concepção do protesto masculino é inadequada ao problema das neuroses e perversões e que sua aplicação a eles é infrutífera vamos deixar as fantasias de surra passivas e voltar a atenção para outras manifestações instintuais da vida sexual infantil também submetidas à repressão Ninguém pode duvidar que existem igual mente desejos e fantasias que desde o início conservam a linha masculina e constituem expressão de impulsos instintuais masculinos por exemplo im pulsos sádicos ou os desejos do menino em relação à mãe provenientes do complexo de Édipo normal Tampouco se duvida que também estes são at ingidos pela repressão se o protesto masculino explicaria bem a repressão das fantasias passivas depois masoquistas justamente por isso vem a ser inutil izável para o caso contrário das fantasias ativas Ou seja a teoria do protesto masculino é inconciliável com o fato da repressão Somente quem está disposto a rejeitar todas as conquistas psicológicas realizadas a partir do primeiro trata mento catártico de Breuer e graças a ele pode esperar que venha a ter signi ficação o princípio do protesto masculino no esclarecimento das neuroses e perversões A teoria psicanalítica que é baseada na observação sustenta com firmeza que os motivos da repressão não podem ser sexualizados O núcleo do incon sciente psíquico é formado pela herança arcaica do ser humano e sucumbe ao processo de repressão tudo o que dela tem de ser deixado para trás no pro gresso para fases posteriores de desenvolvimento por ser inconciliável com o novo ou prejudicial a ele Esta seleção é mais bemsucedida num grupo de 244311 instintos do que no outro Esses últimos os instintos sexuais conseguem bal dar o intento da repressão em virtude de condições especiais já várias vezes apontadas e fazerse representar por formações substitutivas perturbadoras Daí a sexualidade infantil submetida à repressão ser a principal força motriz na formação de sintomas e a parte essencial de seu conteúdo o complexo de Édipo ser o complexo nuclear da neurose Espero haver suscitado nesta comunicação a expectativa de que as aberrações sexuais da criança assim como as do adulto derivam do mesmo complexo A expressão original se acha na voz passiva de modo que sua tradução literal seria uma cri ança é surrada espancada que não adotamos aqui por razões de estilo por não ficar bem nas frases em que surge no texto O impulso sexual das sexuelle Streben no original tratase do verbo streben ambicionar aspirar esforçarse usado como substantivo As versões estrangeiras consultadas duas em espanhol uma italiana uma francesa e uma inglesa recorrem às seguintes palavras la tenden cia el pujar limpulso la tendance the impulse Freud não chega a falar sobre o sexto caso Strachey usa a palavra phase mas no original consta Phantasie assim como no texto da Studi enausgabe e também nas versões consultadas exceto na espanhola antiga que omite o termo Impulsos libidinais libidinöse Strebung no original cf nota a streben na p 282 Alusão a Macbeth ato i cena 3 1 Ver a continuação disso em O desaparecimento do complexo de Édipo 1924 No original teils gleichsinnig fortsetzenden teils kompensatorisch aufhebenden A princípio não parece inteiramente claro o objeto dos verbos fortsetzen e aufheben aqui vertidos por prosseguir e suspender As traduções consultadas divergem en parte como continuación orientada en igual sentido y en parte como compensación sic omissão una actividad que en parte la continúa en su mismo sentido y en parte la cancela por vía compensatoria che in parte continua la fantasia nello stesso senso e in parte la neutralizza per compensazione qui en partie continue cet on anisme comme tel en partie le suspend dune manière compensatoire which on the one hand continue 245311 the phantasy along the same line and on the other hand neutralize it through compensation Para al gumas esses verbos se referem à fantasia para uma delas a francesa à masturbação Parece nos fora de dúvida que o objeto é a fantasia de surra 2 Mais observações a respeito disso se acham em O problema econômico do masoquismo 1924 246311 O INQUIETANTE 1919 TÍTULO ORIGINAL DAS UNHEIMLICHE PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM IMAGO V 5 N 56 PP 297324 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XII PP 22768 TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE IV PP 24174 I É raro o psicanalista sentirse inclinado a investigações estéticas mesmo quando a estética não é limitada à teoria do belo mas definida como teoria das qualidades de nosso sentir Ele trabalha em outras camadas da vida psíquica e pouco lida com as emoções atenuadas inibidas quanto à meta dependentes de muitos fatores concomitantes que geralmente constituem o material da estét ica Pode ocorrer no entanto que ele venha a interessarse por um âmbito particular da estética e então este será provavelmente um âmbito marginal negligenciado pela literatura especializada na matéria O inquietante é um desses domínios Sem dúvida relacionase ao que é terrível ao que desperta angústia e horror e também está claro que o termo não é usado sempre num sentido bem determinado de modo que geralmente equivale ao angustiante É lícito esperarmos no entanto que exista um núcleo especial de significado que justifique o uso de um termo conceitual es pecífico Gostaríamos de saber que núcleo comum é esse que talvez permita distinguir um inquietante no interior do que é angustiante A respeito disso nada encontramos nos minuciosos tratados de estética que se ocupam antes das belas sublimes atraentes ou seja positivas sensib ilidades de suas condições e dos objetos que as provocam do que daquelas contrárias repulsivas dolorosas Do lado da literatura médicopsicológica sei apenas de um trabalho de E Jentsch de conteúdo rico porém não exaustivo1 Mas devo admitir que por razões fáceis de imaginar ligadas ao momento atu al não pesquisei a fundo a bibliografia para essa pequena contribuição em particular a de língua estrangeira motivo pelo qual a apresento ao leitor sem nenhuma reivindicação de prioridade Jentsch tem inteira razão ao enfatizar como uma dificuldade no estudo do inquietante que a suscetibilidade para esse sentimento varia enormemente de pessoa para pessoa E o autor deste novo ensaio não pode senão lamentar sua particular obtusidade nessa questão quando uma extrema delicadeza dos sen tidos seria apropriada Há muito ele não conhece ou experimenta algo que po deria lhe produzir a impressão do inquietante primeiro tem de transportarse para esse sentimento evocar dentro de si a possibilidade dele Entretanto di ficuldades desse gênero também pesam em vários outros domínios da estética assim não precisamos abandonar a esperança de achar casos em que a carac terística em questão será reconhecida sem problemas pela maioria das pessoas Podemos encetar dois caminhos agora explorar que significado a evolução da língua depositou na palavra unheimlich ou reunir tudo aquilo que nas pess oas e coisas impressões dos sentidos vivências e situações desperta em nós o sentimento do inquietante inferindo o caráter velado do inquietante a partir do que for comum a todos os casos Já antecipo que os dois caminhos levam ao mesmo resultado o inquietante é aquela espécie de coisa assustadora que re monta ao que é há muito conhecido ao bastante familiar Como isto é pos sível sob que condições o familiar pode tornarse inquietante assustador de verá ser mostrado nas páginas que seguem Faço também notar que esta in vestigação na realidade principiou pela reunião de casos individuais e somente depois achou confirmação no uso da linguagem Mas na presente ex posição tomarei o caminho inverso A palavra alemã unheimlich é evidentemente o oposto de heimlich heimisch vertraut doméstico autóctone familiar sendo natural concluir que algo é as sustador justamente por não ser conhecido e familiar Claro que não é assusta dor tudo o que é novo e não familiar a relação não é reversível Podese apen as dizer que algo novo tornase facilmente assustador e inquietante algumas coisas novas são assustadoras certamente não todas Algo tem de ser acres centado ao novo e não familiar a fim de tornálo inquietante Tudo somado Jentsch limitouse a esse vínculo do inquietante com o novo o não familiar Para ele a condição essencial para que surja o sentimento 249311 do inquietante é a incerteza intelectual O inquietante seria sempre algo em que nos achamos desarvorados por assim dizer Quanto melhor a pessoa se orientar em seu ambiente mais dificilmente terá a impressão de algo in quietante nas coisas e eventos dele Notamos facilmente que essa caracterização é incompleta e procuramos ir além da equação inquietante não familiar Primeiro nos voltamos para out ras línguas Mas os dicionários que consultamos nada nos dizem de novo talvez simplesmente porque nós mesmos somos de língua estrangeira De fato adquirimos a impressão de que muitas línguas não têm uma palavra para essa particular nuance do que é assustador2 latim segundo K E Georges Kleines Deutschlateinisches Wörterbuch 1898 um local unheimlich locus suspectus em hora da noite unheimlich intempesta nocte grego dicionários de Rost e von Schenkl ξενος ou seja estrangeiro estranho inglês dos dicionários de Lucas Bellow Flügel MuretSanders uncom fortable uneasy gloomy dismal uncanny ghastly de uma casa haunted de um indivíduo a repulsive fellow francês SachsVillatte inquiétant sinistre lugubre mal à son aise espanhol Tollhausen 1889 sospechoso de mal agüero lugubre siniestro O italiano e o português parecem contentarse com termos que desig naríamos como paráfrases Em árabe e hebraico unheimlich equivale a de moníaco horripilante Retornemos então à língua alemã No Dicionário da língua alemã de Daniel Sanders 1860 encontramos os seguintes dados sobre a palavra unheimlich que aqui reproduzirei na íntegra e nos quais sublinharei uma ou outra passagem v i p 729 250311 Heimlich adj subst Heimlichkeit fem pl com en também Heimelich heimelig pertencente à casa não estranho familiar caro e íntimo aconchegado etc a ant pertencente à casa à família ou tido como pertencente cf latim fa miliaris familiar Os Heimlichen os membros da casa Der heimliche Rat Gên 41 45 ii Sam 23 23 i Crôn 12 25 Sab 8 4 agora mais comumente Geheimer ver d 1 Rat Conselheiro Privado ver Heimlicher b de animais domesticado que se aproxima confiantemente às pessoas Antôn selvagem p ex animais que não são selvagens nem heimlich etc Eppendorf 88 Animais selvagens de modo que são criados h e habituados aos seres humanos 92 Quando esses ani maizinhos são criados desde a infância junto aos homens tornamse inteiramente h e amigáveis etc Stumpf 608a etc Assim também É bastante h o cordeiro e come na minha mão Hölty A cegonha é de toda forma um belo e h ver c pássaro Linck Schl 146 ver Häuslich 1 doméstico etc c confiável que lembra intimamente o lar o bemestar de uma tranquila satisfação etc de con fortável sossego e segura proteção como o que se tem no interior da própria casa cf Geheuer seguro Ainda lhe é h em seu país onde os estrangeiros derrubam seus bosques Alexis H 1 1 289 Para ela não era muito h na casa dele Brentano Wehm 92 Numa elevada senda umbrosa e h ao longo do rumorejante e borbulhante riacho da floresta Forster B 1 417 Destruir a Heimlichkeit da terra natal Gervinus Lit 5 375 Foi difícil encontrar um lugarzinho tão íntimo e h G 14 14 Nós o imaginávamos bem confortável bem gracioso agradável e h 15 9 Em tranquila Hkeit rodeado de cercas próximas Haller Uma cuidadosa dona de casa que sabe criar uma deliciosa Hkeit Häuslichkeit domesticidade com pou cos meios Hartmann Unst 1 188 Tanto mais h pareceulhe então o homem que há pouco era tão desconhecido Kerner 540 Os proprietários protestantes não se sentem h entre os seus súditos católicos Kohl Irl 1 172 Quando fica h e leve mente o silêncio da noite espreita só a tua tenda Tiedge 2 39 Quieto agradável e h bem como eles Desejariam um lugar para o repouso W 11 144 Ele não se 251311 sentiu nada h quanto a isso 27 170 etc Também O local era tão tranquilo tão ermo tão umbrosoh Scherr Pilg 1 170 O fluxo e refluxo das ondas sonhador as acalentadorash Körner Sch 3 320 etc Cf em particular Unh Em es critores suábios e suíços frequentemente com três sílabas Como voltou a ser heimelig para Ivo quando estava deitado em sua casa Auerbach D 1 249 Naquela casa foi tão heimelig para mim 4 307 O aposento aquecido a tarde heimelig Gotthelf Sch 127 148 Eis o que é verdadeiramente heimelig quando o homem sente no próprio coração como é pequenino e como é grande o Senhor 147 Pouco a pouco ficaram confortáveis e heimelig uns com os outros U 1 297 A cordial Heimeligkeit 380 2 86 Em nenhum outro lugar me será mais heimelig do que aqui 327 Pestalozzi 4 240 Aquele que vem de longe não vive in teiramente heimelig heimatlich freundnachbarlich como em casa em boa vizin hança com as pessoas 325 A cabana em que tão heimelig tão alegre com frequência ele ficava com os seus Reithard 20 A corneta do sentinela soa tão heimelig da torre e convidame a sua voz hospitaleira 49 Dormese ali na suavidade e calidez maravilhosamente heimelig 23 etc Essa forma mereceria tornarse generalizada a fim de evitar que esse bom termo caísse em desuso pela fácil confusão com 2 cf Os Zeck são todos h 2 H Que entende você por h Bem com eles tenho a impressão que teria com uma fonte enterrada ou um lago secado Não se pode passar ali sem achar que a água poderia novamente aparecer Nós chamamos a isso unh vocês h O que o faz pensar que essa família tem algo de oculto e não confiável etc Gutzkow R 2 61 d ver c em especial na Silésia alegre sereno também se diz do tempo ver Adelung e Weinhold 2 oculto mantido às escondidas de modo que outros nada saibam a respeito dissimulado cf Geheim secreto 2 apenas no novoaltoalemão e em que nem sempre se distinguem precisamente sobretudo na linguagem mais antiga p ex na Bíblia Jó 11 6 15 8 Sab 2 22 i Cor 2 7 etc assim como Hkeit em vez de Geheimnis segredo Mt 13 35 etc fazer tramar coisas h por trás de alguém 252311 afastarse h furtivamente encontros compromissos h olhar o infortúnio alheio com h alegria suspirar chorar h agir h como se tivesse algo a esconder amor caso amoroso pecado h locais h que a decência manda esconder i Sam 5 6 o recinto h latrina ii Reis 10 27 W 5 256 etc assim como O assento h Zink gräf 1 249 Lançar em fossos em Hkeiten 3 75 Rollenhagen Fr 83 etc Conduziu h ante Laomedon as éguas B 161 b etc Tanto dissimulado h e maldoso para com senhores cruéis como aberto livre participante e solícito para com o amigo sofredor Burmeister gB 2 157 Você saberá o que tenho de mais h e sagrado Chamisso 4 56 A arte h a magia 3 224 Onde tem de cessar a ventilação pública começa a maquinação h Forster Br 2 135 Liberdade é a sussurrada senha dos h conspiradores o sonoro grito de guerra dos subversivos públicos G 4 222 Uma santa h atuação 15 Tenho raízes que são bem h no solo profundo estou alicerçado 2 109 Minha h perfídia Tücke cf Heimtücke 30 344 Se ele não recebe isso de modo aberto e escrupuloso pode tomálo de maneira h e inescrupulosa 39 22 Fez construir h e sigilosamente telescópios acromáticos 375 A partir de agora desejo que nada mais de h exista entre nós Sch 369 b Revelar tornar públicas trair as Hkeiten de alguém Urdir H keiten atrás de minhas costas Alexis H 2 3 168 No meu tempo cultivavase a Hkeit Hagedorn 3 92 A Hkeit e as intrigas por baixo do pano Immerman M 3 289 Apenas a mão do conhecimento pode romper o impotente encanto da H keit do ouro oculto Novalis 1 169 Diga onde o oculta em que lugar de reservada Hkeit Schr 495 b Vocês abelhas que formam o selo das Hkeiten a cera para o lacre Tieck Cymb 3 2 Versado em raras Hkeiten artes mágicas Schlegel Sh 6 102 etc cf Geheimnis L 10 291 ss Para compostos ver 1 c sobretudo para o antôn Unheimlich incômodo que desperta angustiado receio Pareceulhe simplesmente unh espectral Chamisso 3 238 As angustiadas unh horas da noite 4 148 Há muito eu já sentia algo un h até mesmo apavorante 242 Agora começa a ficar unh para mim Gutzkow R 253311 2 82 Sente um pavor unh Verm 1 51 Unh e hirto como uma imagem de pedra Reis 1 10 A neblina unh chamada de Haarrauch Immermann M 3 299 Esses jovens pálidos são unh e tramam sabe Deus o quê de ruim Laube v 1 119 Unh chamase a tudo o que deveria permanecer em segredo oculto mas apare ceu Schelling 2 2 649 etc Ocultar o divino rodeálo de uma certa Unkeit 658 etc Inusual como antôn de 2 como afirma Campe sem abonação Nessa longa citação o mais interessante para nós é que a palavra heimlich ostenta entre suas várias nuances de significado também uma na qual coin cide com o seu oposto unheimlich O que é heimlich vem a ser unheimlich cf o exemplo de Gutzkow Nós chamamos a isso heimlich vocês unheimlich Somos lembrados de que o termo heimlich não é unívoco mas pertence a dois grupos de ideias que não sendo opostos são alheios um ao outro o do que é familiar aconchegado e do que é escondido mantido oculto Unheimlich seria normalmente usado como antônimo do primeiro significado não do segundo Sanders nada nos diz sobre uma possível relação genética entre os dois signi ficados Nossa atenção é atraída de outro lado por uma observação de Schelling que traz algo inteiramente novo para nós inesperado Unheimlich seria tudo o que deveria permanecer secreto oculto mas apareceu Um parte das dúvidas assim despertadas é removida pelos dados que nos oferece o Dicionário alemão de Jacob e Wilhelm Grimm Leipzig 1877 iv2 pp 874 ss Heimlich adj e adv vernaculus occultus meioaltoalemão heimelîch heimlîch P 874 em sentido algo diferente Sintome heimlich bem sem medo b heimlich é também o local livre de fantasmas P 875 ß familiar amável confiante 254311 4 a partir de heimatlich häuslich da terra natal doméstico desenvolvese o conceito de algo subtraído a olhos estranhos oculto secreto conceito que se forma em variadas relações P 876 À esquerda do lago Achase um prado heimlich no bosque Schiller Guilherme Tell i 4 de modo livre e incomum no uso moderno da língua heimlich é agregado a um verbo expressando ocultamento Ele me oculta heimlich em sua tenda Salmos 27 5 locais heimlich do corpo humano pudenda E os que não morriam eram feridos em locais heimlich 1 Sam 5 12 c funcionários que dão conselhos importantes e sigilosos geheim zu haltende em assuntos de Estado chamamse conselheiros secretos heimliche räthe sendo o adjetivo substituído por geheim no uso atual Faraó nomeiao a José o conselheiro secreto Gên 41 45 P 878 6 heimlich para o conhecimento místico alegórico sentido heimlich mys ticus divinus occultus figuratus P 878 em seguida heimlich é outra coisa é algo subtraído ao conhecimento inconsciente Mas heimlich também é fechado impenetrável à exploração Você não vê Eles não confiam em mim temem o semblante heimlich de Friedländer Schiller Wallensteins Lager cena 2 9 O sentido de oculto perigoso que surge no número anterior desenvolvese ainda mais de modo que heimlich recebe o significado que normalmente tem unheimlich formado a partir de heimlich 3b col 874 Sintome às vezes como um homem que vagueia na noite e acredita em fantasmas cada canto para ele é heimlich e horripilante Klinger Teatro 3 298 255311 Portanto heimlich é uma palavra que desenvolve o seu significado na direção da ambiguidade até afinal coincidir com o seu oposto Unheimlich é de algum modo uma espécie de heimlich Mantenhamos esse resultado ainda não muito bem esclarecido juntamente com a definição do unheimlich feita por Schelling O exame individual dos casos do unheimlich tornará compreensíveis essas alusões II Se agora passamos a examinar as pessoas e coisas impressões eventos e situ ações que chegam a despertar em nós com particular força e nitidez a sensação do inquietante o primeiro requisito é escolher um bom exemplo ini cial Jentsch pôs em relevo como caso privilegiado a dúvida de que um ser aparentemente animado esteja de fato vivo ou inversamente de que um ob jeto inanimado talvez esteja vivo nisso invocando a impressão deixada por figuras de cera autômatos e bonecos engenhosamente fabricados Ele junta a isso o sentimento inquietante produzido pelo ataque epiléptico e pelas mani festações de loucura por provocarem no espectador a suspeita de que pro cessos automáticos mecânicos podem se esconder por trás da imagem habitual que temos do ser vivo Sem estarmos inteiramente convencidos dessa afirmação do autor vamos partir dela em nossa investigação pois logo depois ele nos lembra um escritor que mais que nenhum outro teve êxito em produzir efeitos inquietantes Um dos mais seguros artifícios para criar efeitos inquietantes ao contar uma história escreve Jentsch consiste em deixar o leitor na incerteza de que determinada figura seja uma pessoa ou um autômato e isso de modo que tal incerteza não ocupe o 256311 centro da sua atenção para que ele não seja induzido a investigar a questão e esclarecêla pois assim desapareceria o peculiar efeito emocional como foi dito Em seus contos fantásticos E T A Hoffmann valeuse desta manobra psicológica repetidamente e com sucesso Essa observação sem dúvida correta diz respeito sobretudo à narrativa O Homem da Areia dos Contos noturnos terceiro volume da edição Grisebach das obras completas de Hoffmann da qual saiu o personagem da boneca Olímpia do primeiro ato da ópera Contos de Hoffmann de Offenbach Mas devo dizer e espero que a maioria dos leitores da história concordem que o tema da boneca aparentemente viva Olímpia não é o único nem o prin cipal responsável pelo efeito incomparavelmente inquietante da narrativa Também não contribui para ele o fato de o próprio autor dar um ligeiro viés satírico ao episódio da boneca usandoo para ridicularizar a superestimação do amor por parte do jovem No centro da história achase um outro ele mento que ademais lhe empresta o título e que sempre retorna nas passagens decisivas o tema do Homem da Areia que arranca os olhos das crianças Essa história fantástica tem início com as recordações de infância do estudante Nathaniel que apesar de sua felicidade presente não consegue afastar as lembranças ligadas à morte misteriosa e terrível de seu amado pai Em certas noites a mãe costumava mandar cedo as crianças para o leito com a advertência O Homem da Areia vem aí e realmente a cada vez o garoto ouvia os passos pesados de uma visita que ocupava seu pai naquela noite Quando perguntada sobre o Homem da Areia a mãe negou depois a sua ex istência mas uma babá lhe deu informação mais concreta É um homem mau que aparece quando as crianças não querem ir para a cama e joga punhados de areia nos olhos delas e os olhos eles pulam fora da cabeça sangrando Então ele os joga num saco e leva na meialua para alimentar os filhos que esperam no ninho e têm bicos redondos como as corujas e usam esses bicos para comer os olhos das crianças malcriadas 257311 Embora o pequeno Nathaniel tivesse idade e entendimento bastante para rejeitar esses horríveis atributos dados à figura do Homem da Areia o medo que sentia dele firmouse Decidiu verificar que aparência tinha o Homem da Areia e numa noite em que novamente o aguardavam escondeuse no es critório do pai Reconheceu então no visitante o advogado Coppelius uma pessoa repugnante da qual as crianças costumavam fugir quando ocasional mente era convidado para o almoço e identificou esse Coppelius como o temido Homem da Areia O autor já nos deixa em dúvida no restante da cena se estamos vendo o primeiro delírio do garoto possuído pelo medo ou um re lato a ser tido como real no mundo da narrativa O pai e o visitante se acham ocupados com um forno flamejante O pequeno espião ouve Coppelius dizer Olhos aqui olhos aqui deixa escapar um grito e é agarrado por Coppelius que quer pôr fragmentos de brasas em seus olhos para jogálos então no forno O pai intercede pelos olhos do filho A experiência termina com um profundo desmaio e uma prolongada doença Quem decide por uma inter pretação racionalista do Homem da Areia não deixará de reconhecer nessa fantasia do garoto a duradoura influência daquela história da babá Em vez de grãos de areia são fragmentos de brasas que devem ser aplicados aos olhos da criança a fim de fazêlos saltar Por ocasião de outra visita do Homem da Areia um ano depois o pai morre vitimado por uma explosão no escritório o advogado Coppelius desaparece sem deixar pistas Agora estudante Nathaniel acredita reconhecer essa figura horrorosa de sua infância num ótico italiano ambulante Giuseppe Coppola que na cidade universitária em que vive lhe oferece barômetros e após sua recusa diz Barômetro não barômetro não Tem também olho bonito olho bonito O pavor do estudante é mitigado quando se verifica que os tais olhos oferecidos são apenas inofensivos óculos Ele compra de Coppola binóculos de bolso e com eles observa o apartamento do professor Spalanzani do outro lado da rua onde vê Olímpia a bela mas enigmaticamente silenciosa e imóvel filha do professor Logo se apaixona por ela violentamente e esquece a garota prosaica 258311 e sensata de quem está noivo Mas Olímpia é um autômato do qual Spalanzani fez as engrenagens e no qual Coppola o Homem da Areia inseriu os ol hos O estudante surge quando os dois mestres discutem por causa de sua obra o ótico leva a boneca de madeira sem olhos e o mecânico Spalanzani pega no chão os olhos ensanguentados de Olímpia e os joga ao peito de Nath aniel dizendo que Coppola os roubara deste Nathaniel tem um novo acesso de loucura e em seu delírio se unem a reminiscência da morte do pai e a im pressão nova Opa Opa Círculo de fogo Círculo de fogo Rode círculo de fogo Alegre Alegre Opa bonequinha de madeira bonequinha bonita rode Com isso lançase sobre o professor o pai de Olímpia e tenta estrangulálo Vindo de uma longa e severa doença Nathaniel parece enfim curado Pensa em desposar a noiva que reencontrou Certo dia os dois estão passando pela cidade na praça do mercado sobre a qual a alta torre da prefeitura lança sua enorme sombra A garota propõe ao noivo subirem na torre enquanto o seu irmão que acompanha o casal permanece embaixo Lá em cima a curiosa aparição de algo que se agita na rua chama a atenção de Clara Nathaniel ob serva essa coisa pelos binóculos de Coppola que estavam em seu bolso é novamente tomado pela loucura e dizendo as palavras Rode bonequinha de madeira tenta lançar das alturas a garota Chamado por seus gritos o irmão a salva e corre com ela para baixo Lá em cima o possesso grita correndo de um lado para o outro Rode círculo de fogo palavras cuja origem con hecemos Entre as pessoas que se juntam embaixo sobressai o advogado Cop pelius que subitamente reapareceu Podemos supor que a visão de sua presença é que fez irromper a loucura em Nathaniel Alguns querem subir para dominar o possesso mas Coppelius3 ri Esperem um pouco logo ele desce por si Nathaniel para de repente nota Coppelius e gritando aguda mente Sim Olho bonito Olho bonito jogase por sobre o parapeito En quanto ele jaz sobre o pavimento da rua a cabeça esmagada o Homem da Areia desaparece na multidão 259311 Essa breve síntese não deixará dúvida de que o sentimento do inquietante ligase diretamente à figura do Homem da Areia ou seja à ideia de ter os próprios olhos roubados e de que uma incerteza intelectual como a concebe Jentsch não tem relação alguma com esse efeito A dúvida quanto à natureza animada ou inanimada admissível no caso da boneca Olímpia não importa nesse exemplo mais forte do inquietante É certo que no início o escritor produz em nós uma espécie de incerteza não nos permitindo saber claro que deliberadamente se está nos levando ao mundo real ou a um mundo fantástico qualquer Ele tem notoriamente o direito de fazer ambas as coisas e se escolhe para cenário da narração por exemplo um mundo povoado de espíri tos demônios e fantasmas como faz Shakespeare em Hamlet em Macbeth e num sentido diverso em A tempestade e Sonho de uma noite de verão temos de ceder e tratar como uma realidade o mundo por ele pressuposto enquanto nos colocarmos em suas mãos Mas no curso da história de Hoffmann desaparece tal dúvida notamos que o autor quer fazer com que nós mesmos olhemos at ravés dos óculos ou binóculos do demoníaco ótico e que ele próprio talvez tenha usado pessoalmente um tal instrumento Pois a conclusão da narrativa deixa claro que o ótico Coppola é realmente o advogado Coppelius e port anto também o Homem da Areia Aqui já não entra em consideração uma incerteza intelectual sabemos agora que não nos querem apresentar as fantasias de um louco por trás das quais podemos reconhecer com superioridade racionalista as coisas tais como elas são mas esse esclarecimento não reduziu em nada a impressão do in quietante Assim a noção de incerteza intelectual não nos ajuda a compreender esse efeito inquietante A experiência psicanalítica nos diz por outro lado que o medo de ferir ou perder os olhos é uma terrível angústia infantil Muitos adultos a conservam e mais que qualquer outra lesão física temem a lesão ocular Não há o costume de dizer que uma pessoa cuida de algo como a menina de seus olhos O 260311 estudo dos sonhos das fantasias e dos mitos nos ensinou que o medo em re lação aos olhos o medo de ficar cego é frequentemente um substituto para o medo da castração O ato de cegar a si mesmo do mítico criminoso Édipo é apenas uma forma atenuada do castigo da castração o único que lhe seria apropriado conforme a lei de Talião Podese procurar rejeitar pensando de maneira racionalista a derivação do medo relacionado aos olhos do medo da castração achase compreensível que um órgão precioso como os olhos seja guardado por um medo correspondentemente enorme que por trás do medo da castração não haja segredo profundo nem significado diverso Mas assim não se leva em conta a relação substitutiva entre olho e membro viril mani festada em sonhos fantasias e mitos e não se pode contrariar a impressão de que um sentimento bastante forte e obscuro dirigese precisamente contra a ameaça de perder o membro sexual e de que apenas esse sentimento confere ressonância à ideia da perda de outros órgãos Qualquer outra dúvida desa parece quando nos inteiramos nas análises de pacientes neuróticos dos detal hes do complexo da castração e conhecemos o enorme papel que ele tem em suas vidas psíquicas Não aconselharia a um opositor da concepção psicanalítica evocar justa mente essa história de Hoffmann para sustentar a afirmação de que o medo re lativo aos olhos é algo independente do complexo da castração Pois por que esse medo é aí colocado em relação íntima com a morte do pai Por que o Homem da Areia sempre surge para perturbar o amor Ele separa o infeliz estudante de sua noiva e de seu melhor amigo que é o irmão daquela ele destrói seu segundo objeto de amor a bela boneca Olímpia e leva o próprio estudante ao suicídio quando é iminente a sua feliz união com Clara após tê la reconquistado Esses e outros traços da narrativa parecem arbitrários e sem sentido quando é rejeitado o nexo entre o medo relativo aos olhos e a cas tração e tornamse plenos de significado ao substituirmos o Homem da Areia pelo pai temido de cujas mãos se espera que venha a castração4 261311 Então ousaremos referir o elemento inquietante do Homem da Areia à an gústia do complexo infantil de castração Mas surgindo a ideia de recorrer a semelhante fator infantil para explicar a gênese do sentimento inquietante somos impelidos a considerar a mesma derivação para outros exemplos do in quietante No Homem da Areia também se acha o tema da boneca aparente mente viva enfatizado por Jentsch Segundo esse autor uma condição particu larmente favorável para a geração de sentimentos inquietantes ocorre quando é despertada uma incerteza intelectual de que algo seja vivo ou inanimado e quando vai muito longe a parecença do inanimado com o vivo Naturalmente no caso das bonecas não estamos longe do mundo infantil Lembramonos de que na idade em que começa a brincar a criança não distingue claramente entre objetos vivos e inanimados e gosta de tratar sua boneca como um ser vivo Já ouvi mesmo de uma paciente que ainda aos oito anos de idade ela es tava certa de que suas bonecas adquiririam vida se as olhasse de determinada forma o mais intensamente possível Também aqui portanto é fácil verificar o elemento infantil mas curiosamente no caso do Homem da Areia vimos o despertar de um velho medo infantil e no da boneca animada não se pode falar de angústia a garota não receava a animação de suas bonecas talvez as dese jasse A fonte do sentimento inquietante não seria aqui uma angústia infantil mas um desejo infantil ou tão somente uma crença infantil Isso parece uma contradição possivelmente é apenas uma complexidade que depois talvez seja útil à nossa compreensão E T A Hoffmann é o inigualável mestre do inquietante na literatura Seu romance O elixir do diabo traz toda uma série de temas a que se pode atribuir o efeito inquietante da história O conteúdo do livro é demasiado rico e intrin cado para que tentemos resumilo No final quando o leitor é informado dos pressupostos da ação que até então lhe foram ocultados o que daí resulta não é o esclarecimento mas uma total perplexidade para o leitor O autor acu mulou demasiadas coisas semelhantes isso não afeta a impressão do todo mas 262311 talvez a compreensão dele Temos de contentarmonos em extrair os mais notáveis entre os temas de efeito inquietante para investigar se também eles podem ser derivados de fontes infantis São os do sósia ou duplo em to das as suas gradações e desenvolvimentos isto é o surgimento de pessoas que pela aparência igual devem ser consideradas idênticas a intensificação desse vínculo pela passagem imediata de processos psíquicos de uma para a outra pessoa o que chamaríamos de telepatia de modo que uma possui tam bém o saber os sentimentos e as vivências da outra a identificação com uma outra pessoa de modo a equivocarse quanto ao próprio Eu ou colocar um outro Eu no lugar dele ou seja duplicação divisão e permutação do Eu e enfim o constante retorno do mesmo a repetição dos mesmos traços faciais caracteres vicissitudes atos criminosos e até de nomes por várias gerações sucessivas O tema do duplo foi minuciosamente estudado por Otto Rank num tra balho com esse título5 Ali são investigadas as relações do duplo com a imagem no espelho e a sombra com o espírito protetor a crença na alma e o temor da morte mas também é lançada viva luz sobre a surpreendente evolução do tema Pois o duplo foi originalmente uma garantia contra o desaparecimento do Eu um enérgico desmentido ao poder da morte Rank e a alma imor tal foi provavelmente o primeiro duplo do corpo A criação de um tal desdo bramento para defenderse da aniquilação tem uma contrapartida na lin guagem dos sonhos que gosta de exprimir a castração através da duplicação ou multiplicação do símbolo genital Na cultura do antigo Egito ela impul sionou a arte de construir uma imagem do morto em material duradouro Mas essas concepções surgiram no terreno do ilimitado amor a si próprio do nar cisismo primário que domina tanto a vida psíquica da criança como a do homem primitivo e com a superação dessa fase o duplo tem seu sinal inver tido de garantia de sobrevivência passa a inquietante mensageiro da morte A ideia do duplo não desaparece necessariamente com esse narcisismo ini cial pois pode adquirir novo teor dos estágios de desenvolvimento posteriores 263311 da libido No Eu formase lentamente uma instância especial que pode contraporse ao resto do Eu que serve à autoobservação e à autocrítica que faz o trabalho da censura psíquica e tornase familiar à nossa consciência Bewußtsein como consciência Gewissen No caso patológico do delírio de estar sendo observado ela tornase isolada dissociada do Eu discernível para o médico O fato de que exista uma instância assim que pode tratar o restante do Eu como um objeto isto é de que o ser humano seja capaz de autoobser vação torna possível dotar de um novo teor a velha concepção do duplo e atribuirlhe várias coisas principalmente aquilo que a autocrítica vê como per tencente ao superado narcisismo dos primórdios6 Não apenas esse conteúdo repugnante para a crítica do Eu pode ser incor porado ao duplo mas também todas as possibilidades não realizadas de config uração do destino a que a fantasia ainda se apega e todas as tendências do Eu que não puderam se impor devido a circunstâncias desfavoráveis assim como todas as decisões volitivas coartadas que suscitaram a ilusão do livrearbítrio7 No entanto após assim considerar a motivação manifesta da figura do du plo somos obrigados a admitir que nada disso nos torna mais compreensível o elevado grau de inquietante estranheza que lhe é próprio e nosso conheci mento dos processos psíquicos patológicos nos leva a acrescentar que nada nesse material poderia explicar o esforço defensivo que o projeta para fora do Eu como algo estranho O caráter do inquietante pode proceder apenas do fato de o duplo ser criação de um tempo remoto e superado em que tinha um sig nificado mais amigo O duplo tornouse algo terrível tal como os deuses tornamse demônios após o declínio de sua religião Heine Die Götter im Exil Os deuses no exílio É fácil apreciar seguindo o modelo do tema do duplo os outros distúrbios do Eu explorados por Hoffmann São um recuo a determinadas fases da evolução do sentimento do Eu uma regressão a um tempo em que o Eu ainda não se delimitava nitidamente em relação ao mundo externo e aos outros 264311 Creio que esses temas concorrem para a impressão do inquietante embora seja difícil isolar a parte que têm nessa impressão O fator da repetição do mesmo pode não ser admitido por todos como fonte do sentimento inquietante Segundo observei é indubitável que em de terminadas condições e juntamente com certas circunstâncias ele provoca um tal sentimento que também recorda o desamparo de alguns estados oníricos Em certa ocasião ao andar pelas ruas desconhecidas e ermas de uma pequena cidade italiana cheguei a um lugar que não me deixou em dúvida quanto ao seu caráter Havia apenas mulheres maquiadas nas janelas das pequenas casas e apresseime em virar no cruzamento seguinte para abandonar aquela rua Mas depois de vagar sem orientação por algum tempo encontreime nova mente ali onde começava a chamar a atenção e meu apressado afastamento só teve o resultado de que por um novo rodeio caí pela terceira vez no mesmo local Então fui tomado por um sentimento que posso qualificar apenas de in quietante e fiquei contente quando tendo renunciado a outras explorações vime novamente na piazza de que havia partido antes Outras situações que têm em comum com esta o retorno não intencionado e dela diferem radic almente em outros pontos também resultam na mesma sensação de desamparo e inquietude Por exemplo se nos perdemos numa floresta talvez surpreen didos pela névoa e apesar de todos os esforços em achar um caminho con hecido ou demarcado sempre retornamos a um mesmo local caracterizado por certa formação Ou quando ao andar num aposento escuro e descon hecido à procura da saída ou do interruptor de luz batemonos pela enésima vez contra um móvel algo que Mark Twain porém exagerando grotesca mente transformou numa situação de irresistível comicidade Também com outra série de experiências notamos sem dificuldade que apenas o fator da repetição não deliberada torna inquietante o que ordinaria mente é inofensivo e impõenos a ideia de algo fatal inelutável quando nor malmente falaríamos apenas de acaso De modo que não faz diferença se deixando o casaco no guardaroupa de um teatro por exemplo recebemos um 265311 cartão com determinado número 62 digamos ou se embarcando num navio vemos que a nossa cabine tem esse número Mas a impressão muda se os dois eventos irrelevantes em si sucedem um após o outro e deparamos com o número 62 várias vezes no mesmo dia se observamos que tudo o que é nu merado endereços quarto de hotel vagão de trem etc apresenta de novo esses algarismos ou pelo menos uma numeração que os contém Achamos isso inquietante e quem não for impermeável às tentações da superstição se in clinará a atribuir um significado secreto a esse obstinado retorno de um número a ver nisso por exemplo uma indicação dos anos de vida que lhe cabem Ou se alguém está ocupado com as obras do grande fisiologista H Hering e recebe cartas de duas pessoas com esse nome no espaço de poucos dias quando até então jamais lidou com gente que tivesse tal nome Um en genhoso cientista procurou recentemente subordinar os eventos desse tipo a certas leis o que anularia a impressão de inquietante Não ouso decidir se foi bemsucedido8 Como o efeito inquietante do retorno do mesmo pode remontar à vida psíquica infantil é algo que posso apenas mencionar aqui indicando para isso uma exposição detalhada já pronta realizada em outro contexto Pois no in consciente psíquico notase a primazia de uma compulsão de repetição vinda dos impulsos instintuais provavelmente ligada à íntima natureza dos instintos mesmos e forte o suficiente para sobreporse ao princípio do prazer que con fere a determinados aspectos da psique um caráter demoníaco manifestase claramente ainda nas tendências do bebê e domina parte do transcurso da psic análise do neurótico As considerações anteriores nos levam a crer que será percebido como inquietante aquilo que pode lembrar essa compulsão de re petição interior Mas pareceme que já é tempo de abandonar essa questão difícil de julgar em todo caso e procurar casos indiscutíveis do inquietante cuja análise nos autorize uma decisão final sobre a validade de nossa hipótese 266311 No Anel de Polícrates o anfitrião se afasta com horror de seu hóspede porque observa que todo desejo do amigo é logo satisfeito todo problema é imediatamente solucionado pelo destino O hóspede tornouse inquietante para ele A explicação que ele próprio fornece de que alguém demasiado feliz deve recear a inveja dos deuses parecenos ainda obscura tem o sentido mito logicamente encoberto Tomemos um outro exemplo retirado de condições mais simples Na história clínica de um neurótico obsessivo contei que o doente havia feito um tratamento hidroterápico com o qual melhorou bastante Mas ele foi inteligente ao não atribuir o sucesso à força curativa da água e sim à posição de seu quarto que era vizinho ao alojamento de uma amável enfermeira Quando voltou àquele estabelecimento pediu o mesmo quarto onde ficara na primeira vez mas soube que já estava ocupado por um senhor idoso e exprimiu seu descontentamento com as seguintes palavras Que ele tenha um ataque Duas semanas depois o senhor realmente sofreu um ataque Para meu paciente essa foi uma experiência inquietante A im pressão do inquietante seria ainda mais forte se o tempo decorrido entre aquela manifestação e o incidente fosse menor ou se o paciente pudesse relatar nu merosas experiências iguais Na verdade não lhe foi difícil encontrar confirm ações desse tipo e todos os neuróticos obsessivos que estudei podiam relatar coisas análogas de si mesmos Não se espantavam em sempre deparar com uma pessoa na qual talvez após um longo intervalo tinham acabado de pensar Costumavam receber pela manhã carta de um determinado amigo quando na noite anterior haviam dito que dele não recebiam notícias há bastante tempo e sobretudo era raro que sucedessem casos de morte ou acidente que pouco antes não lhes tivessem passado pela cabeça Costumavam referirse a tal situação de maneira bem modesta dizendo ter pressentimentos que em geral mostravamse corretos Uma das mais inquietantes e difundidas formas de superstição é o medo do mauolhado que foi estudado a fundo por S Seligmann um oftalmologista de Hamburgo9 A fonte desse medo parece ser conhecida Quem possui algo 267311 valioso porém frágil receia a inveja dos outros projetando sobre eles a inveja que sentiria no caso inverso Tais impulsos são revelados pelo olhar mesmo quando têm negada a expressão em palavras e quando alguém se destaca por características evidentes sobretudo de natureza indesejada acreditase que sua inveja alcançará particular intensidade e será convertida em ação Temese portanto uma secreta intenção de prejudicar e supõese por determinados in dícios que esse propósito tenha força para ser levado a efeito Esses últimos exemplos do inquietante relacionamse ao princípio que re correndo à expressão de um paciente chamei de onipotência do pensamento Agora já não podemos ignorar em que terreno nos achamos A análise de casos do inquietante nos levou à antiga concepção do animismo que se caracterizava por preencher o mundo com espíritos humanos pela superes timação narcísica dos próprios processos psíquicos a onipotência dos pensamentos e a técnica da magia que nela se baseia a atribuição de poderes mágicos cuidadosamente graduados a pessoas e coisas estranhas mana e também por todas as criações com que o ilimitado narcisismo daquela etapa de desenvolvimento defendiase da inequívoca objeção da realidade Parece que todos nós em nossa evolução individual passamos por uma fase correspond ente a esse animismo dos primitivos que em nenhum de nós ela transcorreu sem deixar vestígios e traços ainda capazes de manifestação e que tudo o que hoje nos parece inquietante preenche a condição de tocar nesses restos de atividade psíquica animista e estimular sua manifestação10 Este é o lugar para duas observações que conteriam a essência desta pequena investigação Primeiro se a teoria psicanalítica está correta ao dizer que todo afeto de um impulso emocional não importando sua espécie é trans formado em angústia pela repressão tem de haver um grupo entre os casos angustiantes em que se pode mostrar que o elemento angustiante é algo rep rimido que retorna Tal espécie de coisa angustiante seria justamente o in quietante e nisso não deve importar se originalmente era ele próprio angusti ante ou carregado de outro afeto Segundo se tal for realmente a natureza 268311 secreta do inquietante compreendemos que o uso da linguagem faça o heimlich converterse no seu oposto o unheimlich p 340 pois esse unheimlich não é realmente algo novo ou alheio mas algo há muito familiar à psique que apenas mediante o processo da repressão alheouse dela O vínculo com a repressão também nos esclarece agora a definição de Schelling segundo a qual o inquietante é algo que deveria permanecer oculto mas apareceu Faltanos apenas aplicar essa percepção que adquirimos à explicação de al guns outros casos do inquietante Para muitas pessoas é extremamente inquietante tudo o que se relaciona com a morte com cadáveres e com o retorno dos mortos Já vimos que em al gumas línguas modernas a nossa expressão uma casa unheimlich pode ser vertida apenas por uma casa malassombrada Poderíamos ter iniciado nossa indagação com esse exemplo de Unheimlichkeit talvez o mais forte de todos mas não o fizemos porque nele o inquietante está muito mesclado ao horripil ante e em parte é por ele coberto Mas em nenhum outro âmbito nossos pensamentos e sentimentos mudaram tão pouco desde os primórdios o arcaico foi tão bem conservado sob uma fina película como em nossa relação com a morte Dois fatores contribuem para essa imobilidade a força de nossas reações emotivas originais e a incerteza de nosso conhecimento científico Nossa biologia ainda não pôde decidir se a morte é o destino necessário de to do ser vivo ou apenas um incidente regular mas talvez evitável dentro da vida É certo que a frase Todos os homens são mortais vem apresentada nos manuais de lógica como exemplo de proposição universal mas para nenhuma pessoa ela é evidente e hoje como outrora nosso inconsciente não tem lugar para a ideia da própria mortalidade As religiões insistem em negar importân cia ao fato indiscutível da morte individual e fazer prosseguir a existência além da vida os poderes seculares não acreditam poder conservar a ordem moral entre os vivos se for preciso renunciar a outra vida que compense esta em nossas grandes cidades anunciamse palestras que devem ensinar como 269311 estabelecer contato com as almas dos mortos e é inegável que alguns dos mel hores e mais finos pensadores entre os nossos homens de ciência acharam sobretudo no fim de sua própria vida que tal comunicação não é impossível Se quase todos nós ainda pensamos como os primitivos nesse ponto não é de surpreender que o primitivo medo dos mortos ainda seja tão forte dentro de nós e esteja pronto para manifestarse quando há alguma solicitação Provavelmente ele possui ainda o velho sentido de que o morto tornouse in imigo do que sobrevive e pretende leválo consigo para partilhar sua nova ex istência Considerando a imutabilidade dessa postura ante a morte poderíamos antes perguntar para onde foi a repressão condição necessária para que o primitivo retorne como algo inquietante Mas ela também subsiste oficial mente as chamadas pessoas cultas não mais creem que os mortos venham a aparecer como espíritos ligam o seu surgimento a condições remotas e rara mente concretizadas e a postura emocional ante a morte originalmente bastante equívoca e ambivalente abrandouse para as camadas superiores da vida psíquica dando lugar ao inequívoco sentimento da piedade11 Restam apenas algumas coisas a acrescentar pois com o animismo a magia e feitiçaria a onipotência dos pensamentos a relação com a morte a repetição não intencional e o complexo da castração nós praticamente esgotamos os fatores que transformam algo amedrontador em inquietante Também dizemos que uma pessoa viva é inquietante e o fazemos quando lhe atribuímos más intenções Não basta isso porém é preciso igualmente que essas intenções de nos prejudicar se realizem com a ajuda de forças especiais Um bom exemplo disso é o gettatore essa inquietante figura da superstição latina que Albrecht Schaeffer com intuição poética e profunda compreensão psicanalítica converteu em personagem simpático no livro Josef Montfort Mas com essas forças secretas nos encontramos de novo no terreno do animismo É o pressentimento de tais poderes ocultos que faz Mefistófeles tão inquietante para a piedosa Gretchen 270311 Ela sente que sou um gênio sem dúvida E talvez até mesmo o Diabo O efeito inquietante da epilepsia e da loucura tem a mesma origem Os lei gos veem nelas a manifestação de forças que não suspeitavam existir no seu próximo mas que sentem obscuramente moverse em cantos remotos de sua própria personalidade De modo consequente e psicologicamente quase cor reto a Idade Média atribuiu todas essas manifestações patológicas à ação de demônios E não me surpreenderia se a psicanálise ocupandose em desvendar tais forças secretas por isso mesmo se tornasse inquietante para muitas pess oas Num caso em que consegui embora não rapidamente a recuperação de uma moça que há muitos anos estava doente eu próprio escutei isso da mãe da paciente bastante tempo depois Membros seccionados uma cabeça cortada uma mão separada do braço como numa história de Hauff pés que dançam sozinhos como no mencionado livro de Schaeffer têm algo de extremamente inquietante sobretudo quando dotados de ação independente como no último exemplo Já sabemos que essa Unheimlichkeit vem da proximidade ao complexo de castração Para algumas pessoas a ideia de ser enterrada viva por engano é a mais inquietante de todas Mas a psicanálise nos ensina que essa apavorante fantasia é apenas a transform ação de uma outra que originalmente nada tinha de pavorosa e era mesmo sustentada por uma certa lascívia a fantasia de viver no ventre materno Façamos ainda uma consideração de natureza geral que a rigor já se inclui no que dissemos sobre o animismo e os superados modos de operação do aparelho psíquico mas que me parece digna de uma ênfase especial que o efeito inquietante é facil e frequentemente atingido quando a fronteira entre fantasia e realidade é apagada quando nos vem ao encontro algo real que até então víamos como fantástico quando um símbolo toma a função e o signific ado plenos do simbolizado e assim por diante Nisso baseiase boa parte da 271311 Unheimlichkeit inerente às práticas mágicas O que há de infantil nelas que também governa a vida psíquica dos neuróticos é a excessiva ênfase na realid ade psíquica em comparação com a material um traço que se vincula à oni potência do pensamento Durante o isolamento da Grande Guerra caiume nas mãos um número da revista inglesa Strand no qual em meio a artigos um tanto supérfluos li um conto sobre um casal jovem que se muda para um apartamento mobiliado em que se acha uma mesa de forma peculiar com cro codilos esculpidos na madeira Ao anoitecer um odor insuportável e característico espalhase pela casa as pessoas tropeçam em algo no escuro acreditam ver algo indefinível deslizando pela escada em suma dáse a en tender que com a presença da mesa crocodilos fantasmas assombram a casa que os monstros de madeira adquirem vida no escuro ou algo assim Era uma história ingênua mas o efeito inquietante que produzia era notável Concluindo essa reunião de exemplos certamente ainda incompleta devo mencionar uma observação da prática psicanalítica que se não se assenta numa fortuita coincidência traz uma bela confirmação de nossa teoria do in quietante Com frequência homens neuróticos declaram que o genital femin ino é algo inquietante para eles Mas esse unheimlich é apenas a entrada do anti go lar Heimat da criatura humana do local que cada um de nós habitou uma vez em primeiro lugar Amor é nostalgia do lar Liebe ist Heimweh diz uma frase espirituosa e quando num sonho pensamos de um local ou uma paisagem Conheço isto já estive aqui a interpretação pode substituílo pelo genital ou o ventre da mãe O inquietante unheimlich é também nesse caso o que foi outrora familiar heimisch velho conhecido O sufixo un nessa palav ra é a marca da repressão III 272311 Já durante a leitura das páginas precedentes terão surgido dúvidas no leitor às quais devemos agora permitir que se juntem e tenham expressão Pode ser correto que o unheimlich seja o heimlichheimisch ocultofamiliar que experimentou uma repressão e dela retornou e que tudo inquietante satis faça tal condição Mas o enigma do inquietante não parece resolverse com essa seleção do material Evidentemente a nossa proposição não pode ser in vertida Nem tudo que lembra impulsos instintuais reprimidos e modos de pensar superados da préhistória individual e dos povos é inquietante por causa disso Também não ignoramos que para quase cada exemplo que deveria demon strar nossa tese podese achar outro análogo que o contradiz Assim no con to História da mão amputada de Hauff a mão cortada tem efeito certa mente inquietante algo que relacionamos ao complexo da castração Mas na narrativa que Heródoto faz do tesouro de Rampsinito em que a princesa tenta segurar a mão do ladrão mestre e este lhe deixa a mão amputada de seu irmão os leitores provavelmente julgarão tal como eu que isso não provoca nenhum efeito inquietante No Anel de Polícrates a pronta satisfação de desejos cer tamente nos parece tão inquietante como ao rei do Egito Mas os nossos contos tradicionais pululam de satisfações imediatas dos desejos e o inquietante não está presente neles No conto dos três desejos o cheiro saboroso de uma salsicha faz uma mulher dizer que gostaria de uma assim De imediato esta surge no seu prato Aborrecido com a precipitação da mulher o marido deseja que a salsicha lhe fique pendurada no nariz Eis que ela lhe pende então do nariz Isto pode impressionar mas não é minimamente inquietante As fábulas colocamse abertamente na posição animista da onipotência dos pensamentos e desejos e eu não poderia mencionar uma fábula genuína em que algo in quietante sucedesse Foi dito que é extremamente inquietante quando coisas imagens bonecas inanimadas adquirem vida mas nos contos de Andersen os utensílios domésticos os móveis o soldadinho de chumbo são animados e 273311 nada está mais longe de ser inquietante Também não sentimos como algo in quietante que a bela estátua de Pigmalião ganhe vida Vimos que a morte aparente e a reanimação dos mortos são concepções bem inquietantes Mas coisas assim também surgem habitualmente nas fábulas Quem diria ser inquietante por exemplo que Branca de Neve abra novamente os olhos Também o despertar dos mortos em histórias milagrosas como no Novo Testamento provoca sentimentos que nada têm de inquietante O re torno não intencional da mesma coisa que nos produziu efeitos indubitavel mente inquietantes prestase a outros muito diferentes numa série de casos Já mostramos um exemplo em que foi usado para evocar o sentimento do cômico e casos assim podem ser multiplicados Outras vezes age como reforço etc Além disso de onde procede a Unheimlichkeit do silêncio da solidão da es curidão Esses fatores não remetem ao papel do perigo na gênese do in quietante embora sejam as mesmas condições em que vemos as crianças mani festarem mais frequentemente angústia E podemos de fato negligenciar o fat or da incerteza intelectual havendo admitido sua importância no caráter in quietante da morte Então devemos estar prontos a aceitar que intervenham para que surja o sentimento inquietante outras condições além das mencionadas relativas ao conteúdo Poderíamos dizer que com essas primeiras constatações acaba o in teresse psicanalítico no problema do inquietante e o resto solicita provavel mente uma indagação estética Mas com isso abriríamos as portas para a dúvida acerca do valor que pode reivindicar nossa concepção da origem do in quietante no familiar heimisch reprimido Uma observação talvez nos aponte o caminho para a resolução dessas in certezas Quase todos os exemplos que contrariam nossas expectativas foram tirados do âmbito da ficção da literatura Isso nos convida a estabelecer uma distinção entre o inquietante que é vivenciado e aquele que é apenas ima ginado ou sobre o qual se lê 274311 O inquietante que se vivencia depende de condições muito mais simples mas abrange casos muito menos numerosos Creio que ele se enquadra plena mente em nossa tentativa de solução que sempre remonta a algo reprimido há muito tempo conhecido Também aqui no entanto devese fazer uma relev ante e psicologicamente significativa diferenciação no material que percebere mos melhor tomando exemplos apropriados Consideremos o inquietante da onipotência dos pensamentos da imediata satisfação de desejos das forças ocultas nocivas do retorno dos mortos É in equívoca nesses casos a condição para que surja o sentimento do inquietante Nós ou nossos ancestrais primitivos já tomamos essas possibilidades por realidades estávamos convencidos de que esses eventos sucediam Hoje não mais acreditamos neles superamos tais formas de pensamento mas não nos sentimos inteiramente seguros dessas novas convicções as velhas ainda sub sistem dentro de nós à espreita de confirmação Quando acontece algo em nossa vida que parece trazer alguma confirmação às velhas convicções aban donadas temos a sensação do inquietante que pode ser complementada pelo seguinte julgamento Então é verdade que podemos matar uma outra pessoa com o simples desejo que os mortos continuam a viver e aparecem no local de suas atividades anteriores e assim por diante Quem pelo contrário livrou se de forma radical e definitiva dessas convicções animistas ignora o in quietante dessa espécie A mais notável concordância entre desejo e satisfação a mais enigmática repetição de experiências similares no mesmo lugar ou na mesma data as mais enganadoras visões e os mais suspeitos ruídos não o con fundirão não lhe suscitarão um medo que se possa designar como medo do inquietante Tratase puramente de algo relativo à prova da realidade de uma questão da realidade material12 É diferente quando o inquietante procede de complexos infantis reprim idos do complexo da castração da fantasia do ventre materno etc mas as vivências reais que despertam esse tipo de sentimento inquietante não são muito frequentes O inquietante das vivências pertence em geral ao primeiro 275311 grupo para a teoria no entanto a diferenciação dos dois é muito importante No inquietante oriundo de complexos infantis não consideramos absoluta mente a questão da realidade material cujo lugar é tomado pela realidade psíquica Tratase da efetiva repressão de um conteúdo e do retorno do rep rimido não de uma suspensão da crença na realidade desse conteúdo Poder íamos dizer que num caso foi reprimido um certo conteúdo ideativo e no outro a crença na sua realidade material Mas essa última formulação provavelmente amplia o uso do termo repressão além de sua fronteira legí tima Mais correto é levarmos em conta uma diferença psicológica que aí se pode verificar dizendo que a condição em que se acham as crenças animistas do homem civilizado é a de serem em maior ou menor grau superadas Então a nossa conclusão seria esta o inquietante das vivências produzse quando complexos infantis reprimidos são novamente avivados ou quando crenças primitivas superadas parecem novamente confirmadas Por fim não devemos deixar que o gosto por soluções escorreitas e exposições transpar entes nos impeça de admitir que nem sempre podem ser claramente diferencia dos os dois tipos de inquietante das vivências aqui estabelecidos Quando re fletimos que as convicções primitivas relacionamse aos complexos infantis do modo mais íntimo neles de fato se enraizando não nos surpreenderemos de que esses limites tendam a se apagar O inquietante da ficção da fantasia da literatura merece na verdade uma discussão à parte Ele é sobretudo bem mais amplo que o inquietante das vivências ele abrange todo este e ainda outras coisas que não sucedem nas condições do vivenciar O contraste entre reprimido e superado não pode ser transposto para o inquietante da literatura sem uma profunda modificação pois o reino da fantasia tem como premissa de sua validade o fato de seu con teúdo não estar sujeito à prova da realidade O resultado que soa paradoxal é que na literatura não é inquietante muita coisa que o seria se ocorresse na vida real e que nela existem para obter efeitos inquietantes muitas possibilidades que não se acham na vida 276311 Entre as muitas liberdades do criador literário está a de escolher a seu bel prazer o mundo que apresenta de modo que este coincida com a realidade que nos é familiar ou dela se distancie de alguma forma Nós o seguimos em qualquer dos dois casos O mundo das fábulas por exemplo abandona o ter reno da realidade desde o princípio e toma abertamente o partido das crenças animistas Realizações de desejos forças ocultas onipotência dos pensamen tos animação de coisas inanimadas que são tão comuns nos contos de fadas não podem ter influência inquietante nesse caso pois para que surja o senti mento inquietante é necessário como sabemos um conflito de julgamento sobre a possibilidade de aquilo superado e não mais digno de fé ser mesmo real uma questão simplesmente eliminada pelos pressupostos do mundo das fábulas Então os contos de fadas que forneceram a maioria dos exemplos que contradizem nossa teoria do inquietante ilustram a primeira parte do que dis semos que no reino da ficção deixa de ser inquietante muita coisa que o seria se ocorresse na vida Em relação às fábulas há ainda outros fatores que logo mencionaremos Os escritores podem também criar um mundo que embora menos fantástico que o das fábulas diferenciase do mundo real pela inclusão de seres espirituais superiores como demônios ou fantasmas de mortos Toda a natureza inquietante que poderiam ter essas figuras desaparece então na me dida em que se mantêm os pressupostos dessa realidade poética As almas do inferno de Dante ou os espíritos que aparecem em Hamlet Macbeth ou Júlio César de Shakespeare podem ser lúgubres e terríveis mas não são mais in quietantes afinal do que o mundo jovial dos deuses de Homero por exemplo Nós adequamos nosso julgamento às condições dessa realidade fingida pelo poeta e tratamos espíritos almas e fantasmas como se fossem existências legí timas tal como nós próprios na realidade material Também nesse caso a Un heimlichkeit é excluída A situação é outra quando o escritor aparentemente movese no âmbito da realidade comum Então ele também aceita as condições todas que valem para 277311 a gênese da sensação inquietante nas vivências reais e tudo o que produz efei tos inquietantes na vida também os produz na obra literária Mas nesse caso o escritor pode exacerbar e multiplicar o inquietante muito além do que é pos sível nas vivências ao fazer sobrevir acontecimentos que jamais ou muito raramente encontramos na realidade Ele como que denuncia a superstição que ainda abrigamos e acreditávamos superada ele nos engana ao prometer nos a realidade comum e depois ultrapassála Nós reagimos a suas ficções tal como reagiríamos a nossas próprias vivências ao notarmos o engano é tarde demais o autor atingiu seu propósito mas afirmo que não alcançou pleno êxito Ficanos um sentimento de insatisfação uma espécie de desgosto pelo malogro tentado como senti bem claramente após a leitura de A profecia Die Weissagung de Schnitzler e de outras histórias que flertam com o maravilhoso Mas o escritor tem ainda um meio com o qual pode escapar a esse nosso protesto e ao mesmo tempo melhorar as condições para atingir seu propósito Consiste em não nos deixar perceber durante muito tempo que premissas escolheu para o mundo por ele suposto ou em retardar até o fim com astúcia e engenho tal esclarecimento decisivo No geral porém cumpre se aí o que enunciamos a ficção cria novas possibilidades de sensação in quietante que não se acham na vida A rigor todas essas complicações dizem respeito somente ao inquietante que se origina daquilo que foi superado O inquietante que vem de complexos reprimidos é mais resistente e permanece tão inquietante na literatura à parte uma condição como nas vivências O outro inquietante advindo do superado mostra esse caráter na vida e na obra que se situa no terreno da real idade material mas pode perdêlo nas realidades fictícias criadas pelo autor É evidente que essas considerações não esgotam o tema das liberdades do escritor e dos privilégios da ficção em evocar ou inibir a sensação do in quietante Diante do vivenciado nos comportamos em geral de maneira uni formemente passiva sucumbindo à influência do que sucede Mas em relação ao escritor somos particularmente maleáveis por meio do estado de ânimo em 278311 que nos coloca das expectativas que em nós suscita ele pode desviar nossos processos afetivos de uma direção e orientálos para outra e pode frequente mente obter do mesmo material efeitos bem diversos Tudo isso é conhecido há bastante tempo e provavelmente foi examinado a fundo pelos especialistas em estética Atingimos esse âmbito de pesquisa sem verdadeira intenção ao ce dermos à tentação de explicar por que certos exemplos contrariam nossa teoria sobre o inquietante Retornemos agora a alguns desses exemplos Já nos perguntamos por que a mão cortada na história do tesouro de Rampsinito não tem o efeito inquietante daquela do conto de Hauff A questão parece adquirir mais importância agora que notamos a maior tenacidade do inquietante que provém de complexos reprimidos A reposta não é difícil Na narrativa de Heródoto atentamos mais para a astúcia superior do ladrão do que para os sentimentos da princesa Ela bem pode ter experimentado a sensação do inquietante e estamos dispostos a crer que tenha desmaiado mas nada sentimos de inquietante pois colocamonos no lugar do ladrão não no dela Em O dilacerado Der Zerrissene uma farsa de Nestroy outras circun stâncias nos impedem a impressão do inquietante quando o fugitivo que se considera um assassino vê o suposto fantasma da vítima se erguer de cada alçapão que abre e exclama desesperado Eu matei somente um Por que essa terrível multiplicação Nós sabemos o que ocorreu antes da cena não compartilhamos o erro do dilacerado e por isso tem para nós um efeito ir resistivelmente cômico aquilo que deve ser inquietante para ele Mesmo um fantasma real como o da história de Oscar Wilde O fantasma de Canterville tem que abdicar de toda pretensão de inspirar ao menos pavor quando o autor se diverte em ironizálo e deixar que trocem dele De tal maneira no mundo da ficção o efeito emocional pode ser independente do as sunto escolhido No mundo dos contos de fadas não devem ser despertados sentimentos de angústia e tampouco sentimentos inquietantes Isso compreen demos e por isso ignoramos as ocasiões em que seria possível fazêlo 279311 Quanto ao silêncio solidão e escuridão tudo o que podemos dizer é que são realmente os fatores a que se acha ligada a angústia infantil que na maioria das pessoas nunca desaparece inteiramente Esse problema foi abordado pela pesquisa psicanalítica em outro lugar O inquietante das Unheimliche Por razões que ficarão evidentes no próprio texto é desne cessário chamar a atenção do leitor para a insuficiência da tradução desse termo que é também o título do ensaio Limitemonos a registrar as soluções adotadas em algumas versões es trangeiras deste ensaio duas em espanhol a da Biblioteca Nueva e a da Amorrortu a italiana da Boringhieri a francesa da Gallimard e a Standard inglesa Lo siniestro Lo ominoso Il per turbante Linquiétante étrangeté The uncanny A pronúncia do termo alemão é aproximada mente unrráinmlir sendo esse r final pronunciado como o j espanhol 1 Zur Psychologie des Unheimlichen Psychiatrischneurologische Wochenschrift Semanário PsiquiátricoNeurológico n 2223 1906 Freud se refere naturalmente ao período da Primeira Guerra Mundial que acabou no ano anterior àquele em que escreveu este ensaio 2 Devo os extratos seguintes à gentileza do dr Theodor Reik No original Angst que pode significar tanto medo como angústia 3 Sobre a procedência do nome coppella crisol as operações químicas que vitimaram o pai coppo cavidade ocular segundo apontou a sra Rank Complexo da castração Kastrationskomplex ver nota à p 28 4 A elaboração realizada pela fantasia do artista não embaralhou os elementos de forma tal que não possamos reconstruir a sua ordem original Na história da infância o pai e Coppelius rep resentam os dois opostos em que a ambivalência dividiu a imago paterna um ameaça com a ce gueira a castração enquanto o outro o pai bom intercede pelos olhos do filho A parte do complexo mais atingida pela repressão o desejo de morte dirigido ao pai ruim acha repres entação na morte do pai bom atribuída a Coppelius A essa dupla de pais corresponderão no período em que é estudante o professor Spalanzani e o ótico Coppola o professor já sendo uma figura da série paterna e Coppola sendo percebido como idêntico ao advogado Coppeli us Assim como antes trabalhavam juntos diante do forno constroem juntos a boneca Olímpia 280311 o professor é também chamado de pai de Olímpia Essa dupla colaboração revelaos como cisões da imago paterna ou seja tanto o mecânico como o ótico são o pai de Olímpia e tam bém de Nathaniel Na cena de horror infantil Coppelius após resolver não cegar o menino desatarraxoulhe os braços e as pernas isto é mexeu nele como um mecânico numa boneca Esse traço peculiar que extrapola a imagem que se tem do Homem da Areia introduz um novo equivalente da castração mas ele também aponta para a identidade interior entre Cop pelius e sua contrapartida futura o mecânico Spalanzani e preparanos para a interpretação de Olímpia Essa boneca autômata não pode ser outra coisa que a materialização da postura fem inina de Nathaniel ante seu pai na primeira infância Os pais dela Spalanzani e Coppola são apenas novas edições reencarnações da dupla de pais de Nathaniel a frase de Spalanzani incompreensível de outro modo segundo a qual os olhos de Nathaniel haviam sido roubados pelo ótico ver acima para serem colocados na boneca adquire então significado como prova da identidade entre Olímpia e Nathaniel Olímpia é digamos um complexo desprendido de Nathaniel que se lhe defronta como uma pessoa o domínio por esse complexo acha expressão no amor a Olímpia absurdamente obsessivo Podemos chamar de narcísico a esse amor e compreendemos que quem a ele sucumbiu tornese alheio ao objeto real de amor A justeza psicológica da noção de que o menino fixado ao pai pelo complexo da castração vem a ser in capaz do amor à mulher é mostrada por numerosas análises de doentes cujo teor é menos fantástico mas quase tão triste quanto a história do estudante Nathaniel E T A Hoffmann foi filho de um casamento infeliz Quando ele tinha três anos de idade seu pai abandonou a pequena família e nunca mais tornou a viver com ela Segundo os docu mentos citados por E Grisebach na introdução biográfica às obras de Hoffmann a relação com o pai sempre foi um dos pontos mais delicados da vida emocional do autor 5 O Rank Der Doppelgänger Imago v 3 1914 Em alemão Bewußtsein designa o estado da consciência e Gewissen a consciência moral 6 Acho que quando os poetas lamentam que duas almas habitem o peito humano e quando os psicólogos populares falam da cisão do Eu no ser humano eles têm em mente essa divisão que faz parte da psicologia do Eu entre a instância crítica e o resto do Eu e não a oposição entre o Eu e o reprimido e inconsciente desvendada pela psicanálise É certo que a diferença é um tanto apagada pelo fato de que em meio àquilo rejeitado pela crítica do Eu achamse primeiramente os derivados do reprimido James Strachey lembra que Freud havia abordado essa instância crítica na parte iii da Introdução ao narcisismo de 1914 e que ela seria 281311 ampliada e denominada ideal do Eu IchIdeal e Supereu ÜberIch no capítulo ix da Psicologia das massas 1921 e no capítulo iii de O Eu e o Id 1923 7 Em O estudante de Praga de H H Ewers que foi o ponto de partida para o ensaio de Rank sobre o duplo o herói promete à amada não matar o seu adversário num duelo Mas no cam inho para o local do duelo encontra seu duplo que já cuidou do adversário 8 P Kammerer Das Gesetz der Serie A lei da série Viena 1919 Referência a Além do princípio do prazer publicado em 1920 Conhecido poema de Friedrich Schiller Observações sobre um caso de neurose obsessiva O homem dos ratos 1909 Gesammelte Werke vii 9 S Seligmann Der Böse Blick und Verwandtes O mauolhado e coisas afins 2 vols Berlim 1910 e 1911 10 Cf a parte iii Animismo magia e onipotência do pensamento do meu livro Totem e tabu de 1913 onde se acha a seguinte nota Parece que dotamos de caráter inquietante as im pressões que tenderiam a confirmar a onipotência do pensamento e a forma de pensar animista em geral quando em nosso julgamento já nos afastamos deles 11 Cf O tabu e a ambivalência em Totem e tabu Literalmente o lançador de má sorte ou mauolhado subentendese No original Sie fühlt daß ich ganz sicher ein Genie Vielleicht wohl gar der Teufel bin Go ethe Fausto i O jardim de Marta citado por Freud com uma ligeira imprecisão sogar em vez de wohl gar que não alterava o sentido 12 Como também o caráter inquietante do duplo é desse tipo será interessante verificar o efeito da própria imagem quando surge inesperadamente Ernst Mach relata duas observações assim em Analyse der Empfindungen Análise das sensações 1900 p 3 Certa vez espantouse consideravelmente ao notar que o rosto que via era o seu em outra ocasião fez um juízo bastante desfavorável de um suposto estranho que entrava no seu ônibus Que professor de crépito está entrando aqui Posso contar um episódio semelhante Viajava só no vagão de 282311 leitos de um trem quando numa brusca mudança da velocidade abriuse a porta que dava para o toalete vizinho e apareceume um velho senhor de pijamas e gorro de viagem Imaginei que ele tivesse errado a direção ao deixar o gabinete que ficava entre dois compartimentos e entrasse por engano no meu compartimento e erguime para explicarlhe isso mas logo re conheci perplexo que o intruso era minha própria imagem refletida no espelho da porta de comunicação Ainda lembro que a figura me desagradou profundamente Portanto em vez de apavorarse com o duplo os dois tanto Mach como eu simplesmente não o reconhe ceram Mas talvez aquele desagrado fosse um vestígio da reação arcaica que percebe o duplo como algo inquietante Numa passagem dos Três ensaios de uma teoria da sexualidade parte iii 1905 283311 DEVESE ENSINAR A PSICANÁLISE NAS UNIVERSIDADES 1919 O ORIGINAL ALEMÃO DESTE ARTIGO É CONSIDERADO PERDIDO ELE FOI PUBLICADO PRIMEIRAMENTE NUMA VERSÃO HÚNGARA KELLE AZ EGYETEMEN A PSYCHOANALYSIST TANITANI NA REVISTA MÉDICA GYÓGYÁSZAT V 59 N 13 EM MARÇO DE 1919 A PRESENTE VERSÃO FOI FEITA COTEJANDOSE QUATRO DIFERENTES TRADUÇÕES A ESPANHOLA A INGLESA A ITALIANA E A ALEMÃ SENDO QUE AS DUAS PRIMEIRAS FORAM FEITAS DIRETAMENTE DO HÚNGARO ELAS SE ACHAM RESPECTIVAMENTE EM OBRAS COMPLETAS AMORRORTU V XVII PP 16971 STANDARD EDITION V XVII PP 1713 OPERE BORINGHIERI V 9 PP 335 GESAMMELTE WERKE NACHTRAGSBAND PP 7003 Se a psicanálise deve ou não ser ensinada nas universidades é uma questão a ser considerada de dois pontos de vista o da psicanálise e o das universidades 1 No tocante à psicanálise sua inclusão no currículo acadêmico seria motivo de satisfação para um psicanalista mas ao mesmo tempo é evidente que ele pode prescindir da universidade sem prejuízo para sua formação Pois o que ele necessita teoricamente pode ser obtido na literatura especializada e aprofundado nas reuniões científicas das sociedades psicanalíticas assim como na troca de ideias com os membros mais experientes Quanto à experiência prática além do que aprende na análise pessoal ele a adquire ao tratar pa cientes sob aconselhamento e supervisão de colegas já reconhecidos A existência de uma tal organização se deve justamente ao fato de a psic análise estar excluída das universidades e ela continuará a exercer uma função decisiva enquanto se mantiver essa exclusão 2 Quanto às universidades a questão depende de elas decidirem se estão dispostas a atribuir algum valor à psicanálise na formação de médicos e cientis tas Caso afirmativo a questão seguinte será onde e de que forma ela deve ser incluída no currículo acadêmico A importância da psicanálise para o conjunto da formação médica e acadêmica se baseia nos seguintes fatos a Nas últimas décadas essa formação tem sido justamente criticada pelo modo unilateral como orienta o estudante nos campos da anatomia da física e da química enquanto não deixa claro para ele o significado dos fatores psíquicos nas diversas funções vitais assim como nas enfermidades e em seu tratamento Essa lacuna na educação médica se faz sentir mais tarde como flagrante deficiência do profissional médico A consequência disso é por um lado o desinteresse pelos problemas mais interessantes da vida humana seja sadia ou enferma e por outro a inabilidade ao tratar o paciente de modo que até mesmo charlatães e curandeiros terão mais influência sobre este Essa óbvia carência do ensino levou algum tempo atrás à inserção de cursos de psicologia médica no currículo universitário mas na medida em que o teor desses cursos era determinado pela psicologia acadêmica ou pela psico logia experimental com um enfoque apenas fragmentário eles não po diam satisfazer as necessidades da formação do estudante nem avizinhálo dos problemas humanos gerais e daqueles de sua profissão Daí a posição desse tipo de psicologia médica no currículo universitário ter se revelado insegura até o momento Um curso de psicanálise bem poderia responder a essas exigências Antes de se chegar à psicanálise propriamente seria necessário um curso introdutório que tratasse das relações entre a vida psíquica e a somática fundamento de qualquer psicoterapia que descrevesse os vários procedimentos sugestivos e por fim demonstrasse como a psicanálise representa o término e coroamento dos métodos anteriores de tratamento psíquico Mais do que outros métodos de fato a psicanálise é adequada para ensinar psicologia ao estudante de medicina b Uma outra função da psicanálise seria oferecer uma preparação para o estudo da psiquiatria Em sua forma atual a psiquiatria é de caráter meramente descritivo apenas ensina o estudante a reconhecer uma série de quadros clínicos capacitandoo a distinguir quais deles são incuráveis e quais são peri gosos para a comunidade Seu único vínculo com os outros ramos da ciência médica está na etiologia orgânica ou seja no tocante ao organismo e à anato mia Mas a psiquiatria não proporciona o entendimento dos fatos observados algo que apenas a psicologia profunda pode fazer Na América pelo que estou informado já se reconhece que a psicanálise como a primeira tentativa de psicologia profunda fez bemsucedidas in cursões nessa área inexplorada da psiquiatria Por isso muitas escolas médicas organizaram cursos de psicanálise como introdução ao estudo da psiquiatria 286311 O ensino da psicanálise teria de proceder em dois estágios um curso ele mentar destinado a todos os estudantes de medicina e um curso especializado para psiquiatras c Ao investigar os processos psíquicos e as funções intelectuais a psicanál ise segue um método próprio cuja aplicação não se limita ao âmbito dos dis túrbios psíquicos mas se estende igualmente à resolução de problemas na arte na filosofia e na religião Nesse sentido ela já forneceu novos pontos de vista e trouxe importantes esclarecimentos em questões de história da literatura mito logia história das civilizações e filosofia da religião Portanto esse curso geral deveria também ser aberto aos estudantes dessas áreas da ciência A fec undação dessas outras disciplinas pela psicanálise certamente contribuirá para forjar um vínculo mais sólido entre a medicina e os ramos de saber da filosofia e das artes no sentido de uma universitas literarum Em suma podemos dizer que uma universidade só teria a ganhar com a in clusão do ensino da psicanálise em seu currículo É verdade que este ensino somente poderia ser ministrado de forma dogmática em aulas teóricas pois quase não haveria oportunidade para experimentos ou demonstrações práticas Para a pesquisa que o professor de psicanálise deverá realizar bastaria ele ter acesso a um ambulatório com pacientes neuróticos e quanto à psiquiatria psicanalítica um serviço de internação também deveria estar disponível Por fim cabe considerar a objeção de que dessa forma o estudante de medi cina jamais aprenderá realmente a psicanálise Isso é verdadeiro se pensamos no efetivo exercício da psicanálise mas para os propósitos em vista é suficiente que ele aprenda algo sobre e com a psicanálise Afinal tampouco se espera que o estudo universitário transforme o estudante de medicina num cirurgião háb il quem escolhe a cirurgia como profissão não pode escapar a vários outros anos de trabalho e especialização no departamento cirúrgico de um hospital 287311 INTRODUÇÃO A PSICANÁLISE DAS NEUROSES DE GUERRA 1919 TÍTULO ORIGINAL EINLEITUNG ZUR PSYCHOANALYSE DER KRIEGSNEUROSEN PUBLICADO PRIMEIRAMENTE NO VOLUME COM ESSE TÍTULO PELA INTERNATIONALER PSYCHOANALYTISCHER VERLAG LEIPZIG E VIENA 1919 PP 37 TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XII PP 3214 QUE TRAZ ESTE LONGO SUBTÍTULO DEBATE NO V CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE BUDAPESTE 28 E 29 DE SETEMBRO DE 1918 CONTRIBUIÇÕES DE FREUD A PRESENTE INTRODUÇÃO FERENCZI SIMMEL JONES INTERNATIONALE PSYCHOANALYTISCHE BIBLIOTHEK NR 1 SEGUIDO DA INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA JÁ MENCIONADA Este pequeno livro sobre as neuroses de guerra com que é inaugurada a Bib lioteca Psicanalítica Internacional trata de um assunto que até bem pouco tempo gozava da prerrogativa de ser muito atual Quando esse tema foi dis cutido no v Congresso Psicanalítico em Budapeste setembro de 1918 com pareceram representantes oficiais das mais altas instâncias das Potências Cen trais a fim de inteirarse das comunicações e dos debates e o auspicioso res ultado desse primeiro encontro foi a promessa de instituir centros psicanalíti cos onde médicos de formação analítica teriam oportunidade de estudar a natureza dessas misteriosas doenças e seu possível tratamento com a psicanál ise Antes que esses propósitos fossem realizados a guerra chegou ao fim as organizações estatais entraram em colapso o interesse pelas neuroses de guerra deu lugar a outras preocupações Mas significativamente ao cessarem as condições de guerra também desapareceram em sua maioria as enfermid ades neuróticas provocadas pela guerra Assim foi perdida a ocasião para uma pesquisa aprofundada dessas afecções E acrescentemos é de esperar que ela não ressurja tão cedo No entanto esse episódio não deixou de influir na difusão da psicanálise Ao se ocupar das neuroses de guerra por exigência do serviço militar aproximaramse das teorias psicanalíticas também aqueles médicos que até en tão guardavam distância delas No comunicado de Ferenczi o leitor percebe com que hesitações e dissimulações se realizou tal aproximação Alguns dos fatores que a psicanálise havia descoberto e descrito nas neuroses dos tempos de paz a origem psicogênica dos sintomas a importância dos impulsos in stintuais inconscientes o papel do ganho primário da doença na resolução dos conflitos psíquicos fuga na doença foram constatados também nas neuroses de guerra e admitidos quase de maneira geral Os trabalhos de E Simmel mostraram além disso o êxito obtido quando se tratam os neuróticos de guerra com o auxílio da técnica da catarse que como se sabe foi o estágio preliminar da técnica psicanalítica Mas não devemos atribuir a esse avizinhamento da psicanálise o valor de uma reconciliação ou de liquidação das diferenças para com ela Imaginese al guém que despreza um conjunto de afirmações relacionadas entre si e que de repente vem a convencerse da correção de parte desse todo É de se acreditar então que hesitará em sua rejeição e admitirá uma certa expectativa respeitosa de que também a outra parte da qual até então não possui experiência própria e portanto juízo próprio possa revelarse igualmente verdadeira Essa outra porção da teoria psicanalítica não tocada pelo estudo das neur oses de guerra sustenta que são forças instintuais sexuais que se manifestam na formação de sintomas e que a neurose nasce do conflito entre o Eu e os instin tos sexuais por ele repudiados Nisso sexualidade deve ser entendida no sentido lato que é usual na psicanálise não devendo ser confundida com a noção mais estrita de genitalidade É verdadeiro como observa Ernest Jones na sua contribuição que até agora essa parte da teoria não foi comprovada nas neuroses de guerra Os trabalhos que poderiam comprovar isso não foram ainda realizados Talvez as neuroses de guerra sejam um material inadequado para essa prova Mas os adversários da psicanálise nos quais a aversão à sexu alidade se mostrou mais forte do que a lógica apressaramse a declarar que a investigação das neuroses de guerra refutou definitivamente essa porção da teoria psicanalítica Nisso incorreram numa pequena confusão Se o estudo das neuroses de guerra ainda muito incipiente não leva a concluir que a teoria sexual das neuroses é correta isso é algo bem diferente de ele levar a concluir que essa teoria não é correta Com atitude imparcial e alguma boa vontade não deve ser difícil achar o caminho para uma clarificação do problema Na medida em que se diferenciam das neuroses comuns do tempo de paz por certas peculiaridades as neuroses de guerra devem ser compreendidas como neuroses traumáticas que foram possibilitadas ou favorecidas por um conflito do Eu A contribuição de Karl Abraham traz boas indicações acerca desse conflito do Eu também os autores ingleses e americanos citados por 290311 Jones o perceberam Ele se dá entre o velho Eu pacífico e o novo Eu guerreiro dos soldados e tornase agudo assim que o Eudepaz enxerga o enorme perigo de vida que lhe trazem as audácias de seu parasítico sósia recémform ado Tanto podemos dizer que o velho Eu se protege do risco de vida medi ante a fuga na neurose traumática como que se defende do novo Eu perce bido como ameaçador para sua vida Assim a precondição o solo nutriz para as neuroses de guerra seria o exército nacional de conscritos em mercenários em soldados profissionais não haveria possibilidade de elas surgirem A outra coisa nas neuroses de guerra é a neurose traumática que sabida mente ocorre também durante a paz depois de um choque e de acidentes graves sem nenhuma relação com um conflito do Eu A teoria da etiologia sexual das neuroses ou como preferimos dizer a teoria libidinal das neuroses foi originalmente formulada apenas para as neuroses de transferência de épocas de paz e nelas é de fácil comprovação mediante o uso da técnica psicanalítica Mas encontra dificuldades a sua ap licação a outros distúrbios que depois reunimos sob a designação de neuroses narcísicas Uma dementia praecox comum uma paranoia uma melancolia são no fundo material bastante inadequado para provar a teoria da libido e para iniciar alguém na sua compreensão motivo pelo qual também os psiquiatras que negligenciam as neuroses de transferência não conseguem admitila A neurose traumática de tempos de paz sempre foi considerada a mais refratária nesse aspecto de modo que o surgimento das neuroses de guerra não trouxe nenhum elemento novo à situação existente Apenas com a formulação e o uso do conceito de uma libido narcísica ou seja de uma medida de energia sexual que é ligada ao próprio Eu e nele se sat isfaz como geralmente sucede só com o objeto pudemos estender a teoria da libido também às neuroses narcísicas e esse legítimo desenvolvimento do con ceito de sexualidade promete fazer por essas neuroses severas e pelas psicoses tudo aquilo que se espera de uma teoria que avança tentativamente e de modo empírico Também a neurose traumática de paz se inscreverá nesse quadro 291311 quando alcançarem bom termo as pesquisas sobre as relações que sem dúvida existem entre terror angústia e libido narcísica Se as neuroses traumáticas e as neuroses de guerra anunciam em alta voz a influência do perigo de vida e se calam ou pouco dizem sobre o da frustração amorosa nas comuns neuroses de transferência de épocas de paz por outro lado não há qualquer pretensão etiológica daquele primeiro fator tão poder oso naquelas Chegase a pensar que essas últimas são apenas promovidas pela excessiva indulgência pelo bemestar e a inatividade o que mais uma vez oferece um interessante contraste com as circunstâncias de vida em que surgem as neuroses de guerra Seguindo o exemplo de seus adversários os psicanalistas cujos pacientes adoeceram por frustração amorosa pelas insat isfeitas exigências da libido teriam que afirmar que não pode haver neuroses de perigo ou que as afecções que surgem após uma vivência aterradora não são neuroses Jamais lhes ocorreu fazer isso naturalmente Veem isto sim uma boa oportunidade de reunir numa só concepção os dois fatos que apar entemente divergem Nas neuroses traumáticas e de guerra o Eu do indivíduo se defende de um perigo que o ameaça desde fora ou que é corporificado numa postura do próprio Eu nas neuroses de transferência o Eu toma sua própria libido como um inimigo cujas reivindicações lhe parecem ameaçador as Em ambos os casos o Eu teme ser ferido neste último pela libido naquele pelos poderes externos Poderíamos até dizer que nas neuroses de guerra diferentemente da pura neurose traumática e analogamente às neuroses de transferência o que se teme é afinal um inimigo interno As dificuldades teóricas que se acham no caminho de uma tal concepção unificadora não pare cem insuperáveis afinal a repressão subjacente a toda neurose pode ser enten dida com todo o direito como reação a um trauma como neurose traumática elementar 292311 PREFÁCIOS E TEXTOS BREVES 1919 PREFÁCIO A PROBLEMAS DE PSICOLOGIA DA RELIGIÃO DE THEODOR REIK A psicanálise se originou da carência médica surgiu da necessidade de ajudar os doentes nervosos que não experimentavam alívio mediante repouso hidro patia e eletricidade Uma singularíssima observação de Josef Breuer havia des pertado a esperança de que quanto mais compreendêssemos a gênese até então inexplorada de seus sintomas tanto mais poderíamos ajudálos Assim ocorreu que a psicanálise uma técnica puramente médica em sua origem viuse desde o começo direcionada para a pesquisa para o descobri mento de nexos amplos e ocultos Sua trajetória posterior a desviou do estudo dos determinantes somáticos da doença nervosa de modo a causar estranheza nos médicos Em com pensação foi levada a se ocupar de todo o conteúdo psíquico que preenche a vida humana também a dos sadios dos normais e supernormais Teve de lidar com os afetos e paixões sobretudo aqueles que os escritores não se cansam de descrever e celebrar os afetos da vida amorosa Conheceu o poder das re cordações a insuspeitada importância dos primeiros anos na configuração da vida adulta e a força dos desejos que falseiam o juízo do ser humano e pre screvem linhas fixas para seu empenho Por um momento parecia destinada a se incorporar à psicologia incapaz de dizer por que a psicologia do doente se distingue da do homem normal Mas deparou em sua trajetória com o problema do sonho um produto psíquico anormal criado por pessoas normais em condições fisiológicas que se dão reg ularmente Quando a psicanálise solucionou o enigma dos sonhos encontrou no elemento psíquico inconsciente o solo comum em que têm raízes tanto os mais altos como os mais baixos impulsos da alma do qual saem as produções psíquicas mais normais e as mais patologicamente extravagantes Assim foi se formando sempre mais nítido e mais completo o quadro da oficina da psique Forças instintuais obscuras oriundas do orgânico que se empenham em at ingir metas inatas acima delas um grupo de instâncias de formações psíquicas mais altamente organizadas aquisições do desenvolvimento humano sob a coação da história humana que acolheram desenvolveram ou atribuíram metas mais elevadas a porções desses impulsos instintuais mas que de toda forma ligamnos mediante conexões firmes e governam suas forças instintuais segundo suas próprias intenções Mas essa organização superior conhecida como Eu afastou de si como inaproveitável uma outra porção dos mesmos impulsos instintuais elementares pois eles não podiam encaixarse na unidade orgânica do indivíduo ou porque se rebelavam contra as suas metas culturais O Eu não é capaz de extirpar esses poderes psíquicos que não lhe são sujeitados distanciase deles deixaos no mais primitivo nível psicológico protegese de suas exigências com enérgicas formações protetoras e opositoras ou busca ajeitarse com elas mediante satisfações substitutivas Indomados e indestrutíveis mas inibidos para qualquer atividade esses instintos que su cumbiram à repressão formam juntamente com sua primitiva representação psíquica o submundo psíquico o núcleo do inconsciente propriamente falando sempre dispostos a fazer valer suas reivindicações e conduzilos à satisfação por qualquer via Daí a instabilidade da orgulhosa superestrutura psíquica o noturno aparecimento em sonhos do proibido e reprimido a inclinação a adoe cer de neuroses e psicoses assim que a relação de forças entre o Eu e o reprim ido se modifica em detrimento do Eu Um pouco mais de reflexão mostraria que uma tal concepção da vida psíquica humana não podia ficar restrita ao âmbito do sonho e das doenças nervosas Se havia dado com algo certo tinha que valer também para o funcio namento psíquico normal e mesmo as realizações máximas do espírito hu mano deviam ter relação com os fatores encontrados na patologia com a repressão com os esforços para lidar com o inconsciente com as 295311 possibilidades de satisfação dos instintos primitivos Tornouse uma irres istível tentação um mandamento científico aplicar os métodos de investigação da psicanálise às mais diversas ciências do espírito bem longe de seu solo nat al E mesmo o trabalho clínico psicanalítico lembrava incessantemente essa nova tarefa pois era evidente que as formas da neurose traziam claras ressonâncias das mais valiosas criações de nossa cultura O histérico é um in egável poeta embora apresente suas fantasias de modo essencialmente mimético e sem consideração pelo entendimento dos outros o cerimonial e os interditos do neurótico obsessivo nos impõem o julgamento de que ele criou para si uma religião particular e mesmo as formações delirantes dos para noicos mostram indesejada semelhança externa e parentesco interno com os sistemas de nossos filósofos Não se pode fugir à impressão de que os enfermos empreendem de modo associal as mesmas tentativas de solução de seus con flitos e mitigação de suas necessidades prementes que são chamadas de poesia religião e filosofia quando realizadas de forma aceitável e indispensável para uma maioria Em 1913 Otto Rank e Hans Sachs juntaram numa rica obra Die Bedeutung der Psychoanalyse für die Geisteswissenschaften A importância da psicanálise para as ciências humanas os resultados até então obtidos com a aplicação da psicanálise às ciências humanas Mitologia história da literatura e história da religião parecem ser os campos mais facilmente acessíveis Quanto ao mito ainda não foi encontrada a fórmula definitiva que indique o seu lugar nesse contexto Num volumoso livro sobre o complexo do incesto1 O Rank demonstrou de maneira surpreendente que a escolha do tema em especial nas obras dramáticas é determinada sobretudo pelo âmbito daquilo que a psicanál ise chama de complexo de Édipo Elaborandoo nas mais variadas modificações deformações e disfarces o escritor busca resolver sua própria personalíssima relação com esse tema afetivo O complexo de Édipo ou seja a postura afetiva para com a família para com pai e mãe no sentido mais estrito é o material 296311 que o neurótico fracassa em dominar e que por isso sempre forma o núcleo de sua neurose Mas sua importância não se deve a alguma conjunção inin teligível para nós ocorre que os fatos biológicos da longa dependência e da lenta maturação do novo ser humano assim como o complicado desenvolvi mento de sua capacidade de amar traduzemse nessa ênfase na relação com os pais e têm por consequência que a superação do complexo de Édipo coincide com o modo mais adequado de lidar com a herança arcaica animal do ser hu mano É verdade que esta contém todas as forças necessárias para o desenvol vimento cultural posterior do indivíduo mas elas têm de ser primeiramente separadas e trabalhadas Tal como o indivíduo a traz consigo essa herança ar caica não serve para os fins da vida social no interior de uma cultura Um passo adiante e chegamos ao ponto de partida da concepção psicanalít ica da vida religiosa O que hoje é herança para o indivíduo foi um dia uma nova aquisição antes de uma longa série de gerações que a transmitiram uma à outra Também o complexo de Édipo pode ter sua história evolutiva portanto e o estudo da préhistória pode levar a compreendêla A pesquisa supõe que a vida familiar humana configuravase de modo bem diferente do que hoje con hecemos e confirma essa hipótese com achados feitos entre os primitivos atuais Submetendo o material préhistórico e etnológico a uma elaboração psicanalítica obtemos um resultado inesperadamente preciso de que outrora Deus Pai andava em carne e osso pela terra e exercia seu poder senhorial como chefe de uma horda humana primeva até que os seus filhos o mataram conjun tamente E que por efeito desse crime liberador e como reação a ele surgiram as primeiras ligações sociais as restrições morais básicas e a mais antiga forma de religião o totemismo Mas também que as religiões posteriores possuem o mesmo conteúdo e se empenham por um lado em desfazer as pistas daquele crime ou expiálo introduzindo outras soluções para a luta entre pai e filhos mas por outro lado não podem deixar de repetir a eliminação do pai Tam bém nos mitos percebemos os ecos desse enorme evento que lança a sua som bra sobre todo o desenvolvimento da humanidade 297311 Essa hipótese fundamentada nas concepções de Robertson Smith e por mim desenvolvida em Totem e tabu 1912 serve de base para Theodor Reik nos seus estudos sobre problemas da psicologia da religião dos quais o primeiro volume é aqui dado ao público Conformes à teoria psicanalítica esses trabalhos partem de peculiaridades da vida religiosa não compreendidas até agora a fim de chegar com sua elucidação aos pressupostos profundos e objetivos últimos das religiões e jamais perdem de vista a relação entre o pré histórico e o primitivo de hoje assim como o nexo entre realização cultural e formação substitutiva neurótica De resto cabe remeter à introdução do autor e enunciar a expectativa de que a obra mesma se recomendará à atenção dos especialistas Título original Vorrede zu Probleme der Religionspsychologie Publicado primeiramente na obra com esse título de Theodor Reik Leipzig e Viena Internationaler Psychoanalytischer Verlag 1919 Traduzido de Gesammelte Werke xii pp 3259 1 O Rank Das Inzestmotiv in Dichtung und Sage O tema do incesto na literatura e nas lendas Leipzig e Viena 1912 298311 E T A HOFFMANN E A FUNÇÃO DA CONSCIÊNCIA No romance O elixir do Diabo que é rico em magistrais descrições de estados anímicos patológicos o personagem Schönfeld consola o herói de consciência temporariamente perturbada com as seguintes palavras parte ii edição Hesse p 210 Que lhe resta agora disso Quero dizer da função especial do espírito que chamamos de consciência e que não é senão a maldita atividade de um atroz fiscal oficial de aduana auxiliar de controle que montou seu infame escritório no pequenino cômodo superior e diz a cada mercadoria que pretende sair Opa não pode sair tem que ficar no país Título original E T A Hoffmann über die Bewußtseinsfunktion Publicado com as inici ais S F na seção Varia Diversos em Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse Revista Internacional de Psicanálise v 5 1919 traduzido de Gesammelte Werke Nachtragsband volume suplementar p 769 Freud se ocupou mais detidamente desse romance de Hoffmann em O inquietante também neste volume A EDITORA PSICANALÍTICA INTERNACIONAL E OS PRÊMIOS PARA TRABALHOS PSICANALÍTICOS No outono de 1918 um membro da Associação Psicanalítica de Budapeste me informou que havia sido criado um fundo para fins culturais a partir dos gan hos da indústria durante a guerra e que a decisão relativa ao seu uso cabia a ele e ao prefeito da cidade o doutor Stephan Bárczy Eles resolveram dedicar a considerável soma aos objetivos do movimento psicanalítico e confiar a mim sua administração Aceitei o encargo e cumpro aqui o dever de publicamente agradecer ao prefeito que pouco depois deu uma acolhida tão honrosa ao con gresso psicanalítico realizado em Budapeste e ao colega que prestou tão grande serviço à causa da psicanálise Esse fundo colocado à minha disposição e a que foi dado meu nome eu o destinei à fundação de uma Editora Psicanalítica Internacional Pareceume a coisa mais necessária em nossa atual situação Nossas duas publicações periódicas a Internationale Zeitschrift für ärztliche Psychoanalyse Revista Internacional de Psicanálise Médica e Imago não desa pareceram durante a guerra como sucedeu a muitos empreendimentos científicos Conseguimos mantêlas mas devido à carestia às complicações e dificuldades de trânsito do tempo de guerra elas experimentaram uma sensível redução no volume e grandes intervalos entre os números individuais Dos quatro editores das duas revistas Ferenczi Jones Rank e Sachs um ficou isolado de nós por pertencer a um Estado inimigo dois foram mobilizados e absorvidos por deveres militares e apenas o dr Sachs prosseguiu no trabalho que realizou inteiramente só e com abnegação Alguns dos grupos psicanalíti cos locais se viram obrigados a suspender as reuniões o número de colabor adores encolheu bastante e assim também o dos assinantes a compreensível insatisfação do editor era de se prever logo questionaria a existência das duas publicações tão preciosas para nós E no entanto chegavamnos muitos indí cios até mesmo das trincheiras do front de que o interesse pela psicanálise não diminuíra Penso que se justificava a intenção de pôr fim a esses problemas e dificuldades com a fundação de uma Editora Psicanalítica Internacional Hoje ela já existe como sociedade limitada e é dirigida pelo dr Otto Rank há muito tempo secretário da Sociedade Psicanalítica de Viena e coeditor das duas revis tas psicanalíticas que após alguns anos de ausência no serviço de guerra re tornou à sua prévia atividade a serviço da psicanálise A nova editora sustentada pelos meios da instituição de Budapeste propõese garantir o aparecimento regular e uma distribuição confiável das duas publicações Tão logo permitam as circunstâncias devem também recu perar o volume anterior ou havendo demanda ultrapassálo sem aumento do valor para os assinantes Além disso e independentemente dessa melhora a editora promoverá a publicação de livros e opúsculos do âmbito da psicanálise médica e psicanálise aplicada e não sendo uma empresa que visa ao lucro poderá atender melhor os interesses dos autores do que costumam fazer os ed itores comerciais Simultaneamente à instituição de uma editora psicanalítica decidiuse premiar a cada ano com os juros da fundação de Budapeste dois trabalhos ex cepcionais um no campo da psicanálise médica e outro no da psicanálise ap licada Esses prêmios no montante de mil coroas austríacas não serão concedidos aos autores mas aos trabalhos de modo que será possível que o mesmo autor seja premiado mais de uma vez A decisão a respeito de qual dos trabalhos publicados em certo período receberá o prêmio não foi reservada para um comitê e sim a uma única pessoa ao administrador do fundo naquele período De outro modo se o júri fosse composto dos mais experientes e capazes analistas os trabalhos desses teriam de ser ignorados e a instituição faltaria ao seu objetivo de assinalar realizações exemplares da literatura psic analítica No caso de o juiz vir a hesitar entre dois trabalhos de 301311 aproximadamente o mesmo valor deve lhe ser facultado dividir o prêmio entre os dois sem que a atribuição de metade do prêmio signifique uma menor estima das obras em questão A intenção é que os prêmios sejam concedidos todos os anos e que o ma terial para a seleção seja constituído de todas as publicações relevantes para a psicanálise feitas naquele período não importando se o autor da obra pertence ou não à Associação Psicanalítica Internacional A primeira distribuição dos prêmios já ocorreu tendo contemplado obras publicadas durante a guerra entre 1914 e 1918 O prêmio para psicanálise médica foi dividido entre o ensaio de Karl Abraham Untersuchungen über die früheste prägenitale Entwickungstufe der Libido Investigações sobre o primeiro estágio de desenvolvimento prégenital da libido Internationale Zeitschrift v 4 2 1916 e o opúsculo de Enst Simmel Kriegsneurosen und Psychisches Trauma Neuroses de guerra e trauma psíquico 1918 o de psicanálise aplicada coube ao trabalho de Theodor Reik Die Pubertätsriten der Wilden Os ritos de puberdade dos selvagens Imago v 4 34 1915 Título original Internationaler Psychoanalytischer Verlag und Preiszuteilungen für Psy choanalytische Arbeiten publicado primeiramente na Internationale Zeitschrift für ärztliche Psychoanalyse Revista Internacional de Psicanálise Médica v 5 1919 Traduzido de Gesam melte Werke xii p 333 302311 JAMES J PUTNAM 18461918 Entre as primeiras informações que nos chegam dos países anglosaxões após o fim do bloqueio está a dolorosa notícia do falecimento de Putnam o presid ente do considerável grupo psicanalítico panamericano Ele alcançou a idade de 72 anos manteve até o fim a vivacidade de espírito e morreu placidamente de uma parada cardíaca durante o sono em novembro de 1918 Putnam que até poucos anos atrás era professor de neuropatologia na Universidade Har vard foi o grande arrimo da psicanálise na América Seus numerosos trabalhos teóricos dos quais alguns foram publicados primeiramente na Internationale Zeitschrift contribuíram bastante por sua clareza riqueza de ideias e decidido posicionamento para o alto apreço que a psicanálise agora desfruta no ensino psiquiátrico e na opinião pública americana Seu exemplo pessoal pode haver igualmente contribuído Todos estimavam seu caráter irrepreensível e sabia se que para ele contavam apenas as mais elevadas considerações éticas Quem o conhecia mais proximamente não podia deixar de ver que era uma dessas pessoas do tipo neuróticoobsessivo felizmente compensadas para quem a nobreza se tornara uma segunda natureza e a concessão à baixeza uma impossibilidade A figura de J J Putnam tornouse conhecida dos analistas europeus quando de sua participação no congresso de Weimar em 1912 Os editores da Zeitschrift esperam poder apresentar no próximo número da revista um perfil de nosso estimado amigo e uma apreciação detalhada de suas realizações científicas Título original James Putnam Publicado primeiramente em Internationale Zeitschrift für ärztliche Psychoanalyse Revista Internacional de Psicanálise Médica v 5 1929 assinado Der Herausgeber O Editor ou Diretor Traduzido de Gesammelte Werke xii p 315 VICTOR TAUSK 18791919 Entre as vítimas felizmente pouco numerosas que a guerra colheu nas fileiras dos psicanalistas devemos incluir também o extraordinariamente tal entoso psiquiatra vienense Victor Tausk que pôs fim à própria vida antes que fosse firmada a paz O dr Tausk que contava apenas 42 anos fazia parte do círculo imediato de seguidores de Freud havia mais de uma década Formado em direito desde algum tempo exercia o cargo de juiz na Bósnia quando sob o influxo de graves experiências pessoais abandonou a carreira e voltouse para o jornalismo para o qual era particularmente habilitado graças à sua ampla cultura geral Após trabalhar algum tempo como jornalista em Berlim nessa mesma condição veio para Viena onde travou conhecimento com a psicanálise e a ela resolveu dedicarse inteiramente Embora já homem maduro e pai de família não se in timidou ante as grandes dificuldades e os sacrifícios de uma nova mudança de profissão que implicaria uma interrupção de vários anos em sua atividade re munerada Pois o demorado estudo da medicina havia de ser para ele apenas o meio que lhe permitiria praticar a psicanálise Pouco antes da irrupção da guerra Tausk obteve o segundo doutorado e estabeleceuse como psiquiatra em Viena onde começou a formar em tempo relativamente curto uma clientela notável na qual alcançou belos resultados A guerra o arrancou subitamente dessa atividade que prometia plena satis fação e meio de subsistência ao jovem e ambicioso médico Imediatamente convocado para o serviço ativo e logo promovido a médicochefe o dr Tausk realizou com abnegação seus deveres médicos em diferentes locais de guerra no Norte e nos Bálcãs em Belgrado por fim e por isso ganhou também o re conhecimento oficial Deve ser aqui destacado em seu louvor que durante a guerra o dr Tausk se empenhou abertamente com toda a sua pessoa e sem a menor hesitação contra os inúmeros abusos que tantos médicos toleraram si lenciosamente ou de que foram até mesmo cúmplices Os anos de extenuante serviço no campo de guerra não podiam deixar de produzir sério dano psíquico num homem tão consciencioso Já no último con gresso psicanalítico em setembro de 1918 em Budapeste que reuniu os analis tas após demorados anos de separação o dr Tausk que havia anos padecia fisicamente demonstrou sinais de incomum excitabilidade Quando pouco depois no outono do ano passado ele deixou o serviço mil itar e retornou a Viena encontrouse pela terceira vez intimamente esgotado ante a difícil tarefa de construir uma nova existência dessa vez nas mais des favoráveis condições externas e internas Além do mais ele que deixa dois fil hos adolescentes para quem era um pai devotado achavase diante de um novo matrimônio Já não conseguia lidar com as múltiplas exigências que a dura realidade impunha em seu estado doentio e na manhã do dia 3 de julho despediuse da vida O dr Tausk que desde o outono de 1909 era membro da Sociedade Psic analítica de Viena é conhecido dos leitores desta revista por várias con tribuições que se distinguem pelo agudo poder de observação juízo certeiro e particular clareza de expressão Nesses trabalhos se mostra nitidamente o pre paro filosófico que o autor sabia combinar de maneira feliz com os métodos exatos da ciência natural Sua necessidade de fundamentação filosófica e clareza epistemológica o levava a querer apreender e tentar resolver problemas difíceis em toda a sua profundidade e abrangente significado Às vezes em seu ansioso ímpeto investigativo ele pode ter ido longe demais nessa direção talvez também não tivesse chegado o momento de dar à ciência da psicanálise ainda em formação uma fundamentação geral desse tipo A consideração psicanalítica dos problemas filosóficos para a qual ele mostrou talento especial promete se tornar cada vez mais fecunda um dos últimos 305311 trabalhos do falecido sobre a psicanálise da função do juízo inédito por ele apresentado no último congresso psicanalítico evidencia essa direção do seu interesse Além de talento e inclinação filosófica Tausk mostrava excelente aptidão médicopsicológica e alcançou belas realizações também nesse campo Sua atividade clínica à qual devemos pesquisas valiosas sobre diferentes psicoses melancolia esquizofrenia justificava as maiores esperanças e deulhe a per spectiva de um cargo docente na universidade ao qual ele se candidatava A psicanálise tem um débito especial para com o dr Tausk que possuía esplêndidos dotes de orador pelas séries de conferências que ministrou dur ante anos em que introduziu muitos ouvintes de ambos os sexos nos funda mentos e nos problemas da psicanálise Esses ouvintes apreciavam tanto a destreza pedagógica e a clareza de suas palestras como a profundidade com que ele abordava temas específicos Todos os que o conheceram mais proximamente admiravam seu caráter franco sua honestidade para consigo e com os outros e sua natureza nobre marcada pelo anseio da perfeição Seu temperamento apaixonado manifestava se na crítica pungente às vezes em demasia que se combinava porém com um esplêndido dom de exposição Essas particularidades exerciam grande at ração em muitos mas também podem ter afastado outros Ninguém no ent anto escapava à impressão de estar diante de um homem notável O que a psicanálise significou para ele até o último momento é atest ado por algumas cartas que deixou em que professa incondicional adesão a ela e exprime a esperança de que seja reconhecida numa época não muito distante Prematuramente arrebatado à nossa ciência e ao público vienense Tausk cer tamente contribuiu para que esse objetivo seja alcançado Na história da psic análise e de suas primeiras lutas um lugar honroso lhe está assegurado 306311 Título original Victor Tausk Publicado primeiramente em Internationale Zeitschrift ärzt licher Psychoanalyse Revista Internacional de Psicanálise Médica v 5 1929 assinado Die Redaktion A Redação Traduzido de Gesammelte Werke v xii pp 31618 Tausk tinha apenas quarenta anos ao morrer na verdade 307311 SIGMUND FREUD OBRAS COMPLETAS EM 20 VOLUMES COORDENAÇÃO DE PAULO CÉSAR DE SOUZA 1TEXTOS PRÉPSICANALÍTICOS 18861899 2ESTUDOS SOBRE A HISTERIA 18931895 3PRIMEIROS ESCRITOS PSICANALÍTICOS 18931899 4A INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS 1900 5PSICOPATOLOGIA DA VIDA COTIDIANA E SOBRE OS SONHOS 1901 6TRÊS ENSAIOS DE UMA TEORIA DA SEXUALIDADE FRAGMENTO DA ANÁLISE DE UM CASO DE HISTERIA O CASO DORA E OUTROS TEXTOS 19011905 7O CHISTE E SUA RELAÇÃO COM O INCONSCIENTE 1905 8O DELÍRIO E OS SONHOS NA GRADIVA ANÁLISE DA FOBIA DE UM GAROTO DE CINCO ANOS O PEQUENO HANS E OUTROS TEXTOS 19061909 9OBSERVAÇÕES SOBRE UM CASO DE NEUROSE OBSESSIVA O HOMEM DOS RATOS UMA RECORDAÇÃO DE INFÂNCIA DE LEONARDO DA VINCI E OUTROS TEXTOS 19091910 10OBSERVAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE UM CASO DE PARANOIA RELATADO EM AUTOBIOGRAFIA O CASO SCHREBER ARTIGOS SOBRE TÉCNICA E OUTROS TEXTOS 19111913 11TOTEM E TABU HISTÓRIA DO MOVIMENTO PSICANALÍTICO E OUTROS TEXTOS 19131914 12INTRODUÇÃO AO NARCISISMO ENSAIOS DE METAPSICOLOGIA E OUTROS TEXTOS 19141916 13CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS À PSICANÁLISE 19151917 14HISTÓRIA DE UMA NEUROSE INFANTIL O HOMEM DOS LOBOS ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER E OUTROS TEXTOS 19171920 15PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EU E OUTROS TEXTOS 19201923 16O EU E O ID ESTUDO AUTOBIOGRÁFICO E OUTROS TEXTOS 19231925 17INIBIÇÃO SINTOMA E ANGÚSTIA O FUTURO DE UMA ILUSÃO E OUTROS TEXTOS 19261929 18O MALESTAR NA CIVILIZAÇÃO NOVAS CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS E OUTROS TEXTOS 19301936 19MOISÉS E O MONOTEÍSMO COMPÊNDIO DE PSICANÁLISE E OUTROS TEXTOS 19371939 20ÍNDICES E BIBLIOGRAFIA Copyright da tradução 2010 by Paulo César Lima de Souza Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 que entrou em vigor no Brasil em 2009 Os textos deste volume foram traduzidos de Gesammelte Werke volumes x xii e xiii Londres Imago 1946 1947 e 1940 Os títulos originais estão na página inicial de cada texto A outra edição alemã referida é Studienausgabe Frankfurt Fischer 2000 Capa e projeto gráfico warrakloureiro Imagens das pp 3 e 4 Buda Ásia sd Imhotep Egito Último período sécs viii iv aC Freud Museum London Preparação Célia Euvaldo Revisão Márcia Moura Huendel Viana ISBN 9788580860382 Todos os direitos desta edição reservados à editora schwarcz ltda Rua Bandeira Paulista 702 cj 32 04532002 São Paulo sp Telefone 11 37073500 Fax 11 37073501 wwwcompanhiadasletrascombr Created by PDF to ePub