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Texto de pré-visualização
Aspectos conceituais e raízes históricas das psicoterapias Nuno Pereira Castanheira Eugenio Horacio Grevet Aristides Volpato Cordioli Entre esses temas podemos encontrar 1 a natureza da alma ou da mente incluindo pers pectivas substancialistas e não substancialistas dualistas e monistas etc 2 a natureza da re lação entre a alma eou a mente e o corpo 3 os fundamentos da diferenciação entre estados mentais sensações percepções etc 4 a de terminação e a análise das faculdades do ego pensante uma psicologia racional distinta de uma psicologia empírica 5 a natureza da re lação dos diferentes estados mentais e sua in fluência sobre os estados físicos dada a sua aparente capacidade de influenciar o compor tamento 6 a natureza e os fundamentos da consciência e 7 muitos outros tópicos que atravessam os campos da ontologia da teolo gia da ética e da epistemologia Traçar um histórico claro das psicoterapias não é uma tarefa fácil Há poucas publicações sobre o assunto e muitas das existentes não apresen tam uma linha temporal muito clara É possível que essa quase inexistência de recursos biblio gráficos seja devida não tanto à dificuldade do tema e do levantamento de fontes historiográ ficas mas ao fato de as abordagens filosófica e científica não terem sofrido uma separação cla ra até o final do século XIX Antes disso os es critos sobre a psique manifestam em geral al gum tipo de dependência de posicionamentos ou terminologias metafísicas ou teológicas que seriam rejeitados de imediato pelos atuais pra ticantes de uma psicologia orientada em âmbi to científico como também privilegiam temáti cas marcadamente filosóficas As psicoterapias têm suas raízes na história da filosofia da medicina da psiquiatria e da psi cologia Neste capítulo descrevemos a evolução do conhecimento que nos permitiu ter um conceito de mente ligada ao funcionamento cerebral passo essencial para o surgimento de intervenções psicoterapêuticas racionais para o tratamento dos transtornos mentais São abordados conceitos como mente dualismo monismo e método científico Dessa forma o leitor poderá ter uma visão sucinta dos pressupostos filosóficos e científicos que são as bases teóricas das diferentes formas de psicoterapia Entender tais pressupostos é essen cial para uma leitura crítica dos capítulos que se seguem a este assim como para iniciar a construção de uma racionalidade mínima necessária para o exercício do papel de psico terapeuta Também são descritas as origens históricas das principais correntes de psicote rapia a psicanálise a terapia comportamental a terapia cognitivocomportamental TCC e a terapia existencial 1 CordioliCapitulo01indd 3 04092018 190828 4 Cordioli Grevet Orgs Não deixa de ser significativo que ainda hoje a reflexão filosófica acerca da psique re tome muitos desses temas justamente porque boa parte deles continua a habitar o espaço de indistinção entre filosofia e ciência Prova dis so são as diferentes perspectivas que povoam o campo da filosofia da mente Considerando a relativa novidade da separação entre as abor dagens filosóficas da psicologia e a abordagem atualmente classificada como científica da psi que qualquer tentativa de falar de psicoterapia em momentos históricos prévios a esse predo mínio da visão científica terá forçosamente que assumir a forma da analogia Sabese que alguns autores referindose a momentos históricos mais distantes costumam sugerir que formas primitivas de psicoterapias sempre existiram fazendo alusões a curandei ros ou xamãs como psicoterapeutas primor diais1 Tal tipo de analogia só é possível por que a empatia o entendimento e a necessidade de darmos e recebermos auxílio são elementos fundamentais do gregarismo humano e do pro cesso civilizatório Não obstante dificilmente poderemos falar nesses casos de psicoterapia senão à custa da neutralização das especificida des da visão de mundo de cada um desses mo mentos históricos Seguindo essa mesma linha de raciocínio analógico alguns autores veem um paralelo en tre os efeitos benéficos sobre o sofrimento exis tencial de certos rituais religiosos ou manifes tações culturais e aquilo a que atualmente cha maríamos de seus efeitos psicoterapêuticos2 Na Grécia Antiga a representação teatral tinha como um de seus objetivos a produção de uma reação emocional catártica grupal entendida como purificadora da alma3 Outro exemplo ilustrativo é o sacramento da confissão da reli gião católica no qual o pecador obtém alívio de seu sofrimento ao confessar seus pecados a um sacerdote consagrado que o ajuda a atingir um padrão cristão de virtude4 Por fim há os que preferem vincular o sur gimento das psicoterapias ao surgimento da medicina Esses autores advogam que na an tiguidade quando não havia muitos tratamen tos eficazes o efeito terapêutico era obtido pela qualidade da relação médicopaciente Contu do ao traçar uma associação direta entre a re lação médicopaciente e as psicoterapias esta mos superestimando os efeitos de fatores ines pecíficos como causa de seu funcionamento e desvalorizando a efetividade e a relevância his tórica e conceitual que tiveram os idealizadores das diferentes técnicas psicoterapêuticas ver Cap 4 Cabe ressaltar também que até o final do século XIX quando começaram a surgir inter venções eficazes para as infecções fazia pouca diferença quem estivesse a cargo do tratamen to de uma pessoa doente Todos tinham pou co a oferecer de concreto diferindo apenas em termos conceituais independentemente da ra cionalidade ou irracionalidade dos argumen tos utilizados Além disso esses exemplos nun ca consideram que tipo de sofrimento está sen do aliviado tornando vaga a pertinência de tais afirmações Temos de convir que há enormes diferenças entre tratar câncer terminal pneu monia dor de dente ataques de pânico sofri mento existencial e questões da espiritualidade pessoal Levandose em conta que existe uma distância enorme entre esses exemplos e as in tervenções psicoterapêuticas reais podemos concluir que eles servem apenas como elemen tos pictóricos úteis para demonstrar que as re lações interpessoais são importantíssimas para dirimir o sofrimento físico e psíquico5 Dessa forma para compreender como sur giram as psicoterapias não basta fazermos con jecturas históricas simplistas que apenas criam mitos sobre seu surgimento Pelo contrário acreditamos que o mais importante é entender o longo caminho epistemológico que nos per mitiu abandonar explicações míticas para os fe nômenos mentais e chegarmos a sistemas ex plicativos racionais e científicos6 Devemos esse processo que é por vezes chamado do mito ao logos mais à filosofia do que à medicina As sim descrevêlo permite contextualizar o leitor conceitualmente o que também facilita a com preensão dos eventos históricos que circunda ram o surgimento da psicanálise a primeira forma de psicoterapia estruturada que de for ma consistente pode ser considerada o fato his tórico que dá início à profissão RAÍZES FILOSÓFICAS DAS PSICOTERAPIAS Conforme mencionado antes de descrevermos os fatos históricos específicos às psicoterapias precisamos entender o longo caminho que per correu o conhecimento humano até o encontro CordioliCapitulo01indd 4 04092018 190828 Psicoterapias 5 de uma visão racional do homem e de seu es pírito Esse conhecimento foi conquistado por meio de um doloroso processo que intercalou revoluções e estagnações e que custou a vida de muitos de seus defensores Na cultura ociden tal na qual estão inseridas as psicoterapias esse processo se iniciou na Grécia Antiga há apro ximadamente 3 mil anos perdurando até hoje Antiguidade os filósofos gregos Etimologicamente a palavra psique tem ori gem no termo grego psukhe que assumiu di versos sentidos interrelacionados dependen do dos contextos em que era utilizado mas que podem ser sintetizados como sopro vital vi da espírito princípio vital alma si mes mo e pessoa7 O processo que conduziu de uma visão mí tica do mundo e da mente a uma visão racio nal e científica teve seu início na Grécia Antiga 1100 aC a 146 aC período durante o qual diferentes pensadores propuseram que estudos sistemáticos e racionais constituíam a melhor forma para se chegar a conceitos mais próxi mos da verdade sobre o universo o homem e sua psique que constituem as diferentes esco las filosóficas Aristóteles8 em seu influente tratado So bre a alma Peri psukhes no original grego mas mais conhecido por sua nômina latina De ani ma afirma que as opiniões de seus predeces sores se assentam na ideia de que a psique é aquilo que distingue um ente animado de um ente inanimado em dois aspectos o movimen to ação e a percepção sensível relativa ao que chamaríamos atualmente de funções cognitivas da mente ou da consciência A psukhe era con siderada portanto como aquilo que faz mover e constituía naquele período o correlato psí quico do corpo enquanto unidade ou agregado físico de seus diversos membros e partes Os filósofos présocráticos ou fisiólogos9 os predecessores a que Aristóteles se refere são assim chamados devido ao fato de busca rem fundamentos naturais para os fenômenos nomeadamente nos chamados elementos pri mordiais a terra o fogo a água e o ar Embora a designação filósofos présocráticos seja usa da em ampla escala ela não é exatamente rigo rosa uma vez que alguns desses pensadores fo ram contemporâneos de Sócrates Ela será uti lizada aqui para designar aqueles pensadores da Grécia Antiga que não foram influenciados por Sócrates Entre esses pensadores encontramse Heráclito 535475 aC Anaxágoras 500428 aC Demócrito 460370 aC e Epicuro 341271 aC Anaxágoras acreditava que a alma era cons tituída por ar e Heráclito considerava que a alma é a exalação a partir da qual tudo se constitui 8 permanecendo de vigília e par ticipando do processo cognitivo durante o so no quando os demais sentidos estão adorme cidos Já Epicuro acreditava que o universo fo ra constituído pela ação das forças da natureza regidas pelo acaso Essa ação não premeditada e randômica teria permitido à matéria assumir as formas conhecidas inclusive a do homem Refutava a ideia de existir algum motivo pre determinado teleológico ou metafísico além da matéria para a existência humana susten tando que o espírito humano era um produto direto do corpo físico e que sua existência esta va atrelada aos limites existenciais deste Mui tos tinham uma interpretação ou visão unicista e monista da relação entre a alma mente e o corpo10 que ainda é a visão preponderante nas neurociências da atualidade Para aqueles que como Demócrito acredi tavam em que a realidade era constituída por átomos e por vazio os atomistas a alma era a fonte de todo o movimento sendo constituí da por um agregado de átomos esféricos seme lhantes ao fogo os quais eram os mais móveis e capazes de ser causa de movimento8 Sendo um princípio primordial o fogo não só é causa do movimento de outras coisas mas também causa do próprio movimento sendo portanto imortal Disso resulta uma dificuldade básica para os atomistas para os quais a alma é uma combinação da capacidade de mover e da ca pacidade de conhecer a relação almacorpo e a relação almamente11 Outros como os pitagóricos consideravam que todas as coisas inclusive a alma como princípio de movimento e a alma como per cepção sensível eram redutíveis ao número o qual seria o princípio primordial de tudo aqui lo que é Para os pitagóricos a alma tem uma natureza divina e sobrevive à morte do corpo9 fundando o antagonismo entre alma e corpo que atravessará os mais de 25 séculos da cultu ra ocidental As filosofias de Sócrates 470399 aC Pla tão 427347 aC e Aristóteles 384322 aC marcam um distanciamento relativo de visões CordioliCapitulo01indd 5 04092018 190829 6 Cordioli Grevet Orgs fisiológicas e mecanicistas da mente dando iní cio ao Período Clássico Neste mantiveramse e desenvolveramse os aspectos da filosofia na tural porém foram colocados em segundo pla no em relação às questões centradas na ética e na política que também incluem a poética a história a retórica e em muitos aspectos a ló gica a psicologia e a metafísica Antes de abordarmos alguns elementos das teorias da alma do Período Clássico é impor tante mencionar um aspecto da filosofia de Só crates que influenciou diretamente a psicotera pia a maiêutica o método utilizado pelo filó sofo nos diálogos com seus concidadãos e que está presente nos textos que nos deixou Pla tão Os diálogos socráticos começam em ge ral com opiniões cuja verdade é pressuposta sem que seus fundamentos sejam questiona dos Afirmando metodicamente sua ignorân cia o célebre Só sei que nada sei 12 Sócra tes apresentase sempre diante de seus interlo cutores despojado de doutrinas prévias con duzindoos por meio da inquirição ao exame das próprias opiniões as quais invariavelmente revelam ser infundadas Se inicialmente todos parecem saber o que são a justiça a felicidade a coragem ou a beleza por exemplo logo seu co nhecimento se revela infundado o que promo ve uma nova procura pela verdade dessas e de outras noções13 A perplexidade ou aporia com que termi nam os diálogos socráticos não é por parte da queles que deles participam uma constatação resignada de sua ignorância mas uma intensi ficação de sua vida Efetivamente para Sócra tes uma vida que não é sujeita a exame é uma vida que não está sendo plenamente vivida que se petrificou e que ficou prisioneira de noções sem sentido diríamos hoje alienadas da rea lidade Assim esse método de exame faz os concidadãos de Sócrates tornaremse mais vir tuosos pois só a consciência da sua ignorân cia permitirá retomar o movimento em busca de um sentido para o seu estar vivo um sen tido que se descobre sempre dialogicamente14 Estar consciente da própria ignorância é já uma forma de saber uma dimensão crucial da ins crição Conhecete a ti mesmo no frontispício do templo de Apolo deus da harmonia no san tuário de Delfos e que serviu de inspiração a Sócrates Esse método teve enorme influência em técnicas psicoterapêuticas atuais O diálo go racional como método de tratamento por meio da correção de crenças erradas ou distorcidas é adotado até hoje na tera pia comportamental racional e emotiva e na TCC Agora vamos retomar as teorias acerca da natureza da psique As reflexões de Platão a res peito da natureza da alma procuram reconciliar um conjunto de noções que estão associadas ao fato de a alma ser a causa da vida orgânica in clusive do ser humano e de ser responsável pe las faculdades cognitivas assim como pelas vir tudes morais A concepção platônica de alma é devedora da perspectiva pitagórica uma vez que Platão concebe a alma como uma unidade de natureza divina e portanto imortal que reencarna ciclicamente em um corpo mortal o qual estando sujeito a necessidades era res ponsável por todos os males de que ela era aco metida O corpo físico era considerado um me ro receptáculo da alma e responsável por todo desvio ético ação a serviço do bem comum O corpo e seus desejos eram entendidos como obstáculos a serem transpostos ou domestica dos15 Portanto a filosofia era para Platão um processo de catarse ou de purificação que pre parava o ser humano para a morte e para o re gresso da alma a sua condição natural Esse processo possibilita também o acesso do ser humano às formas os princípios de tudo aqui lo que é por via da anamnese12 uma vez que a alma partilha com aqueles a imortalidade e a imaterialidade Se no Fédon Platão apresenta uma pers pectiva da alma principalmente separada dos sentidos e associada a funções exclusivamente cognitivas já na República e no Fedro12 a alma integra também funções somáticas e está divi dida em partes as quais correspondem a cada uma de suas funções racional espiritual e ape titiva O resultado disso é que todas as funções psicológicas descobrem na alma a sua unidade a alma constitui a unidade mental sendo res ponsável não só pelo pensamento ou pelo de sejo mas também por funções vitais como as nutritivas e as reprodutivas11 O modo de rela ção da alma com as funções vitais é um aspec CordioliCapitulo01indd 6 04092018 190829 Psicoterapias 7 to da teoria platônica que fica por clarificar o que contribuirá para a crítica dirigida por Aris tóteles O tratado De anima de Aristóteles apre senta a mais completa teoria sobre a natureza e as funções da alma da Antiguidade fornecendo uma síntese entre a noção da alma como princí pio de movimento e como princípio responsá vel pelos diferentes tipos de experiência dos se res vivos inclusive a experiência mental huma na em suas diversas manifestações Para Aris tóteles a alma é um tipo peculiar de natureza um princípio que dá conta a mudança e repou so nos corpos vivos plantas animais não hu manos e seres humanos8 A teoria aristotélica das entidades é carac terizada pelo hilomorfismo isto é pela relação entre um princípio formal e um princípio ma terial16 e a alma não é exceção todos os cor pos vivos devem ser compreendidos de acordo com essa relação A alma é portanto o princí pio formal de todo o corpo vivo determinan do até mesmo sua função distintiva A função de uma entidade é aquilo que a torna comple ta Por exemplo para Aristóteles a função do ser humano é ser eudaimon termo que normal mente se traduz por felicidade e o Estagirita define essa função como uma atividade da al ma engendrada de acordo com a virtude17 Na linha do que Platão já havia feito Aris tóteles também parte de uma divisão da alma No entanto não fala de partes e sim de potên cias dunameis faculdades ou capacidades que colocam em movimento um conjunto de fun ções vitais que organismos deste ou daquele ti po naturalmente realizam Essas potências ou capacidades da alma são a nutritiva comum a plantas animais não humanos e seres huma nos a perceptiva e a desiderativa animais não humanos e seres humanos e a locomotiva e raciocinativa seres humanos Cada uma des sas potências pressupõe a potência situada em um nível mais abaixo ou seja a interdependên cia das potências constituintes da alma implica que seu exercício demanda algum tipo de vín culo ao corpo8 Em suma para Aristóteles e ao contrário do que acontecia para Platão a alma não tem existência além do corpo e atividades mentais como a percepção e até o pensamento são pas síveis de explicação por meio dos mesmos prin cípios que explicam os fenômenos naturais11 Isso implica também que não há lugar para a imortalidade pessoal em Aristóteles pois a al ma não sobrevive à separação do corpo Um aspecto interessante relacionado com a teoria aristotélica da alma aparece no tratado intitulado Poética3 e diz respeito à noção de ca tarse a qual Aristóteles associa a experiências de tipo religioso ou médico A catarse é uma maneira de purificação da alma produzida pela descarga de uma dor emocional gerada por um trauma ou acontecimento trágico Diferentemente do que se possa pensar es sa purificação não constitui apenas uma liber tação emocional Uma vez que as emoções pa ra Aristóteles são respostas de base cognitiva à experiência e ocupam um lugar central em sua ética a catarse desencadeia um processo de compreensão dos acontecimentos que se revela psicológica e eticamente benéfico3 Sua doutri na da catarse ensinava por exemplo que os te mores podem ser transferidos ao herói da tra gédia ideia que muito mais tarde veio formar uma das teses da psicanálise e da terapia do jo go Como podemos perceber devemos muito conceitos que são utilizados nas psicoterapias modernas aos filósofos socráticos Os estoicos No que se refere às raízes das psicoterapias um destaque especial deve ser feito aos filósofos es toicos Para eles as emoções negativas resulta vam de erros de julgamento e uma pessoa sá bia era aquela que não deixava que as emoções guiassem seu comportamento tentando viver em sintonia com o que o destino oferecesse e dessa forma em harmonia com as leis da na tureza o cosmos Para Epicteto 55135 dC o que perturba as pessoas não são as coisas em si mas o que elas pensam sobre as coisas Os estoicos pregavam a indiferença apatia como caminho para se ter uma vida feliz e a serenida de como atitude tanto diante de tragédias co mo de coisas boas Uma pessoa que agisse dessa forma atingiria a perfeição intelectual e moral e se tornaria um sábio Para Epicteto um exem plo sábio teria sido Sócrates que mesmo diante da possibilidade de fugir depois de ter sido jul gado e condenado à morte se recusou e com calma enfrentou a morte por envenenamento ingerindo cicuta afirmando por fim que mais se prejudica aquele que comete do que quem sofre a injustiça proferindo segundo Platão CordioliCapitulo01indd 7 04092018 190829 8 Cordioli Grevet Orgs tranquilamente suas últimas palavras Críton devo um galo a Asclépio ie Lembrate de saldar minha dívida A escola cognitiva moderna se apropriou da afirmativa de Epicteto utilizando sua máxima e tendo como princípio que as emoções pertur badoras são decorrentes de erros de avaliação e percepção levam a crenças disfuncionais e quando corrigidas possibilitam o desapareci mento dos sintomas Também terapias da ter ceira onda cognitivista como a de aceita ção e compromisso preconizam que pensamentos estoicos são úteis para enfrentar momentos di fíceis que não podemos modificar Além dis so em suas reuniões os Alcoólicos Anônimos AA utilizam a Oração da Serenidade que diz Senhor daime a serenidade para aceitar as coisas que eu não posso mudar coragem para mudar as coisas que eu possa e sabedoria para que eu saiba diferenciar entre uma e outra vi vendo um dia a cada vez aproveitando um mo mento de cada vez aceitando as dificuldades como um caminho para a paz Idade Média A Idade Média é normalmente tida como um período de trevas e de uma ignorância avessa à inquirição racional promovida por seu vínculo à mundividência cristã Tais posições negligen ciam o fato de se tratar de uma época plural que atravessa cerca de 1500 anos a época em que nos encontramos tem apenas 500 anos durante a qual surgiram diversas e sofisticadas posições em todos os campos do conhecimento humano algumas das quais são objeto de inte resse e de discussão ainda hoje A psicologia é um desses campos no sen tido clássico de inquirição acerca da natureza e da função da psique próximo daquilo a que atualmente se chama de filosofia da mente Um exemplo da relevância atual do pen samento medieval para a psicologia e para a filosofia da mente é a noção de intencio nalidade a ideia de que o pensamento ou a consciência são sempre a respeito de algo e envolvem um tipo de relação que não é meramente redutível às relações físicas Tal noção foi desenvolvida por Tomás de Aquino 12251274 e contribuiu de forma de cisiva para o desenvolvimento de uma das cor rentes filosóficas mais influentes do século XX a fenomenologia primeiro com sua apropria ção por parte de Franz Brentano 18381917 no quadro de sua psicologia descritiva e posteriormente por Edmund Husserl 1859 19381819 É também importante ressaltar que Agostinho foi um pensador profundamen te original e importante para a construção do conceito de mente por ter forjado o conceito de mundo interior O texto de referência no campo das inqui rições a respeito da natureza da psique foi pa ra os autores medievais o De anima o tratado de psicologia de Aristóteles No entanto foram Agostinho de Hipona 354430 dC e Boécio 480525 dC autores de influência platônica e neoplatônica que introduziram duas noções dualistas cruciais para compreender a psicolo gia da Idade Média e que ainda ressoam nos de bates atuais relativos à constituição da pessoa humana respectivamente a noção de que a alma humana é uma substância racional que governa o corpo e a noção de que uma pessoa é uma substância individual de natureza racio nal20 Aristóteles foi redescoberto na Alta Idade Média séculos XI a XIII uma retomada que foi promovida pelas novas traduções de seus trabalhos para o latim entre as quais do De anima e isso contribuiu para o desenvolvi mento da pesquisa em psicologia nomeada mente por intermédio de autores da escolásti ca como Tomás de Aquino A perspectiva mais naturalista do texto aristotélico levou os autores medievais profundamente vinculados a cren ças religiosas e dependentes de doutrinas teoló gicas a respeito da criação da alma por Deus e de sua eternidade a debates cujo objetivo era reconciliar a recémredescoberta teoria aristo télica da alma com o dualismo agostiniano no meadamente no que diz respeito à determina ção da natureza das pessoas humanas20 Conforme já mencionado a obra de Aris tóteles é caracterizada pelo hilomorfismo isto é para ele todas as entidades são constituídas pelo binômio matériaforma dois aspectos de uma e apenas uma entidade De modo simpli ficado uma pessoa é composta por um corpo sua matéria e uma alma a forma que faz ela ser aquilo que é Nesse sentido parece que alma e corpo são dependentes entre si e que a primeira não pode sobreviver sem o segundo Tal perspectiva tendencialmente monista parece incompatível com o dualismo de inspi CordioliCapitulo01indd 8 04092018 190829 Psicoterapias 9 ração agostiniana de acordo com o qual alma e corpo são elementos distintos e as pessoas são almas que usam os corpos A necessidade de compatibilização da perspectiva aristoté lica com as doutrinas teológicas produziu um conjunto diferenciado de teses a respeito dessa questão Boaventura afirma o dualismo alma corpo ao mesmo tempo que defende que a al ma resulta da composição de forma e matéria espiritual Já Tomás de Aquino adota uma posição dis tinta da posição de Boaventura preservando o hilomorfismo aristotélico ao mesmo tempo que afirma a subsistência da alma independente mente do corpo embora de modo incompleto pois a alma é apenas a forma da matéria corpo Para compatibilizar o hilomorfismo com o dua lismo Tomás de Aquino defende que as pessoas são entidades possuidoras de almas racionais e que a alma é uma entidade subsistente por si mesma No entanto alma em si mesma en quanto forma separável do corpo não constitui uma pessoa já que esta é uma entidade psi cofísica e sim uma espécie de subjetividade mínima20 Idade Moderna Racionalismo Filosófico e Descartes Os desenvolvimentos medievais das teses de Aristóteles particularmente por parte da esco lástica foram sujeitos à crítica no Renascimen to séculos XIV a XVI coincidindo com um interesse renovado em Platão e seus seguidores Essas críticas foram acompanhadas por descobertas revolucionárias nas ciências natu rais entre as quais se destacam o heliocentris mo de Nicolau Copérnico 14731543 e as ex periências de Galileu Galilei 15641642 que conduziram a dúvida cética acerca do real que orienta tradicionalmente a iniciativa científica à sua mais radical implicação ontológica pon do em questão tudo aquilo que até ali era tido como verdadeiro O que mudou com Galileu não foi só a ciên cia mas a própria articulação fundamental que guiava a compreensão da realidade Ao apontar o telescópio para os céus Galileu descobriu que diferentemente do que afirmavam antigos e medievais o céu não era imutável as suas verdades não eram eternas Diferentemente do que acontecia na Grécia Antiga o ser não é mais aquilo que aparece por si mesmo sem necessidade de interferência mas um proces so em devir contínuo no qual ele mesmo nunca aparece sendo representável em relações mate máticas obtidas por intermédio da experiência e de dispositivos de medição14 Isso conduziu à chamada matematização do real a qual go verna ainda hoje a visão científica do mundo e a uma recusa dos princípios imateriais de orga nização e de causação que orientam a escolásti ca de inspiração aristotélica O projeto filosófico de René Descartes 15961650 deve ser compreendido no contex to dessa revolução O projeto cartesiano é por tanto um projeto de refundação das ciências e da própria metafísica e o texto mais represen tativo desse ímpeto refundador cartesiano são as Meditações sobre filosofia primeira21 No cen tro desse projeto encontrase a dúvida hiper bólica cuja finalidade é suprimir a mais inaba lável das certezas a respeito da realidade e de seu conhecimento desde os dados dos senti dos à geometria e à aritmética permitindo assim a reconstrução das ciências a partir de novas fundações21 A dúvida cartesiana constitui a resposta filosófica à nova realidade revelada pe las descobertas de Galileu uma realida de descoberta por uma nova ciência para a qual todas as mudanças de estado dos corpos são explicáveis por meio de rela ções mecânicas O ponto arquimediano sobre o qual se apoia tal reconstrução do conhecimento é o Cogito ergo sum ie Penso logo existo22 Não obstante a sua crítica à filosofia da Idade Média nomeadamente à escolástica a obra de Descartes foi influenciada quer ele reconheça ou não pela obra de Agostinho de Hipona De fato o Cogito ergo sum descobre um preceden te na filosofia medieval a saber no Si fallor sum ie Se me engano é porque existo de Agos tinho23 Para Descartes posso duvidar da existência de tudo exceto de que eu próprio existo uma vez que o duvidar tal como o crer o imaginar o conhecer etc é uma modalidade do pen samento e este último tem de existir em uma substância ou coisa pensante res cogitans que os subjaz que é o seu subiectum o seu sujeito e reúne tais processos em uma unidade cons ciente de si mesma em um eu ego Em oposi ção à coisa pensante como seu obiectum co CordioliCapitulo01indd 9 04092018 190829 10 Cordioli Grevet Orgs mo seu objeto como aquilo que faz frente e re siste ao ego e à dúvida está o mundo carac terizado como coisa extensa res extensa cuja natureza é a extensão21 Essa é muito resumidamente a base do dualismo cartesiano de acordo com o qual é possível a mente e o corpo existirem de forma independente uma vez que são substâncias de natureza distinta Para garantir que a mente é de fato uma natureza distinta do corpo e que suas percepções são verdadeiras e não apenas ilusões produzidas pela própria atividade Des cartes vêse obrigado a introduzir uma terceira instância um Deus omnipotente e infinitamen te bom que funda o ser das substâncias finitas21 Apesar de ser uma visão dualista que con cebe a mente como algo totalmente separado do corpo cérebro a visão cartesiana foi revo lucionária pois permitiu que todos os aspec tos da vida mental consciente inclusive senti mentos desejos pensamentos e comportamen tos pudessem vir a ser estudados pelo método científico24 O dualismo cartesiano é o mais importante representante do interacionismo o qual afirma que mente e corpo são fundamentalmente dis tintos mas capazes de interagir um sobre o ou tro25 O problema central do dualismo intera cionista reside justamente na determinação do modo de relação entre mente e corpo Descar tes aborda essa questão em seu Tratado sobre as paixões da alma dizendo que os seres hu manos têm uma alma racional capaz de receber sensações a partir do cérebro agindo por sua vez sobre o cérebro e controlando o corpo por meio da vontade A relação entre mente e cére bro é mediada pela glândula pineal localizada no centro do cérebro26 Essa tese foi já rejeitada em termos científi cos permanecendo em aberto esclarecer que ti po de nexo causal possibilitaria a interação en tre a mente uma entidade não física do ponto de vista cartesiano e o corpo uma entidade física sem violar as leis da física25 No entan to isso abriu portas para o estudo das manifes tações da mente como parte do mundo físico as quais devem ser entendidas e estudadas le vandose em conta as leis naturais Descartes é considerado um dos principais filósofos do racionalismo corrente filosófica que privilegia a razão como principal instru mento para se chegar ao conhecimento verda deiro Como critério de verdade propôs em seu Discurso do método a ideia clara e distinta Se eu duvido eu penso se penso logo existo o famoso Cogito ergo sum Seu racionalismo afir ma que tudo o que existe tem uma causa inteli gível mesmo que essa causa não possa ser de monstrada Contudo como caminho para o co nhecimento dá prioridade à introspecção em detrimento da experiência Considera a dedu ção um método superior à indução Seu racio nalismo filosófico teve influência marcante nas terapias que usam a introspecção o raciocínio lógico e a dedução como métodos para se che gar ao conhecimento e à cura Sua influência é particularmente importante na terapia cog nitiva sobretudo na terapia racional emotiva que acredita no poder da razão e da lógica e no exame das evidências questionamento socráti co para corrigir crenças disfuncionais e con sequentemente alterações emocionais e com portamentais Em relação ao estudo da mente e da psico logia a principal vantagem que essa mudança paradigmática trouxe foi possibilitar que os es tudiosos da mente pudessem manter suas con vicções religiosas sem perderem a objetivida de científica Os fenômenos mentais saudáveis e patológicos passaram a ser considerados co mo resultantes de uma relação intrincada e in separável que a mente tem com o corpo físico O comportamento humano passou a ser enten dido como determinado pelo livrearbítrio re sultante de uma luta constante entre a vontade e a capacidade reflexiva As afecções mentais pas saram a ser entendidas como alterações neuro lógicas que afetam funções na esfera da men te e da subjetividade Dessa forma um paciente com esquizofrenia não seria mais considerado possuído por uma entidade sobrenatural quan do referia estar ouvindo vozes do demônio tal fenômeno passou a ser entendido como um sin toma neurológico alucinação auditiva Embora o trabalho filosófico de Descartes tenha ocorrido em um período histórico que resultou no abandono gradual da visão teo lógica e dogmática em vários campos do co nhecimento a já referida Revolução Científi ca 15431687 seu método só foi introduzido no estudo da psicologia no final do século XIX dando origem à psicologia científica por opo sição à psicologia filosófica que usava a intros peção no estudo das funções mentais No âmbito da psicoterapia a nova metodo logia teve forte influência no estudo do com CordioliCapitulo01indd 10 04092018 190829 Psicoterapias 11 portamento humano e posteriormente no de senvolvimento da terapia comportamental que adotou muitos de seus princípios O empirismo inglês A partir do século XVIII uma escola filosófi ca ganhou prestígio na Inglaterra o empiris mo O empirismo defendia a experiência como fonte de todo o conhecimento e era representa do principalmente pelos filósofos John Locke 16321704 e David Hume 17111776 Locke que também estudou medicina e ciências naturais postulou que a mente era uma tábua rasa ou folha em branco onde se riam gravadas as sensações e percepções cap tadas do mundo externo pelos sentidos27 Pa ra Locke a experiência levava ao aprendizado que era a fonte do conhecimento humano o qual advinha da experiência captada pelos sen tidos Um dos maiores contributos de Locke para a psicologia e a filosofia da mente foi sua teoria da identidade pessoal Para Locke o ser humano distinguese da pessoa uma vez que a constituição física do humano não é suficiente para dar con ta da pessoa a qual apresenta característi cas de ordem psicológica em particular a memória que criam a continuidade tem poral das experiências subjetivas A cons tituição física permite que sejamos identi ficados como seres pertencentes à espécie humana mas não como pessoas2728 A perspectiva de Locke assentase em sua concepção de identidade na qual substância ser humano e pessoa assumem significados dis tintos falamos de uma e a mesma massa quan do seus átomos permanecem em conjunto fa lamos de um e o mesmo ser humano ou de um e o mesmo animal quando estamos na presença de um mesmo corpo vivo organiza do cuja vida é transmitida às diferentes partes de matéria que o constituem e falamos de uma e a mesma pessoa quando nos referimos a um ser possuidor de razão e reflexão capaz de cons ciência de si isto é capaz de ser para si mes mo uma e a mesma coisa pensante em diferen tes tempos e lugares27 A identidade pessoal é constituída para Locke por essa mesmidade de consciência Hume também contribuiu para a teoria da identidade pessoal mas não parte do princípio como faz Locke de que a identidade pessoal é algo real fundada em uma substância Para Hume pelo contrário a identidade pessoal é uma ficção resultante de ilusões do pensar fun dadas nos princípios gerais de associação que estão na base da sua teoria do conhecimento29 particularmente da crítica ao princípio de cau salidade29 De acordo com Hume a conexão necessá ria constitutiva do princípio de causalidade entre um acontecimento A causa e um acon tecimento B efeito não pode ser descoberta a partir de dados empíricos Aquilo a que nós as sistimos na experiência é apenas a sucessão de acontecimentos primeiro A e depois B sem que a conexão entre ambos seja dada de mo do necessário Ilustrando sua posição de fundo Hume diz que o fato de o Sol ter nascido hoje e de o ter feito todos os dias até este momen to não nos permite afirmar que é absolutamen te necessário que nasça amanhã30 Esses são os termos gerais daquilo que ficou conhecido em epistemologia como o problema da indução ou da inferência indutiva Assim embora todos os nossos raciocínios acerca daquilo que existe factualmente estejam fundados na experiência passada a afirmação de um nexo causal e portanto da necessidade futura da conexão entre A e B é efeito daquilo a que Hume chama de costume30 O costume consiste em uma disposição do entendimento humano para inferir a existência de objetos a partir da experiência repetida de uma conjunção de acontecimentos na qual um acontecimento efeito se segue ao outro cau sa O costume é um princípio da natureza hu mana uma espécie de instinto natural que não encontra fundamento último nas coisas Isso significa que o raciocínio provável é o único meio e descobrirmos algo a respeito do mundo obrigandonos a regressar sistematicamente à experiência para testar nossas hipóteses O mesmo pode ser afirmado relativamente a uma noção de identidade pessoal que se as sente em uma concepção do ego como substân cia ver posição cartesiana e não apenas como uma ilusão que reúne um conjunto de expe riências mentais aparentemente similares ain da que distintas entre si Hume é um proponen te da seguinte posição a identidade pessoal se constitui um conjunto de experiências assentes no costume29 A convicção a respeito da reali dadesubstancialidade da identidade pessoal CordioliCapitulo01indd 11 04092018 190830 12 Cordioli Grevet Orgs nasce dessa identidade ficcional criada a par tir do costume a expectativa de regularidade constitutiva do aparato cognitivo humano Hume abriu assim a possibilidade de que todo conhecimento pudesse ser repensado e modificado por uma nova experiência como ocorre nas psicoterapias bemsucedidas Tais teorias foram utilizadas na década de 1950 por psicoterapeutas como justificativa para a indi cação de abordagens psicoterapêuticas pro cessos que seriam curativos por representarem uma nova experiência emocional corretiva Immanuel Kant e a crítica transcendental O projeto crítico de Immanuel Kant 1724 1804 tem início com a Crítica da razão pu ra Kant 1994 e é parcialmente inspirado pe las teses apresentadas por Hume acerca do co nhecimento Embora Kant tenha reconhecido a pertinência das objeções de Hume ao princípio de causalidade em particular quando dirigidas aos dogmas do racionalismo afirmando inclu sive que este o havia despertado do seu sono dogmático ele não se identificou com a res posta cética encontrada por Hume no costume uma vez que ela parecia pôr em questão a vali dade de todo o conhecimento31 Assim Kant dispõese a realizar uma críti ca da faculdade cognitiva de modo a evitar a tendência da razão humana a fazer afirmações que transcendem aquilo que é permitido pela experiência isto é a fazer afirmações de tipo metafísico Para tanto decide realizar uma re volução copernicana no modo de olhar para a atividade cognitiva assumindo a perspectiva transcendental a qual consiste na determina ção das condições de possibilidade de todo o conhecimento com origem na experiência in dependentemente de considerações de ordem metafísica31 O primeiro passo nesse processo foi a dis tinção entre conhecer uma operação da facul dade do entendimento e pensar uma operação da faculdade da razão Kant 1994 Bxxvxx vii vinculando o primeiro aos dados espaço temporais isto é aos fenômenos recebidos pe la sensibilidade e o segundo à atividade espe culativa que ultrapassa os limites da experiên cia possível A consequência da posição kantiana no que diz respeito ao conhecimento com origem na experiência é uma espécie de relação bidire cional só há experiência e consequentemen te conhecimento para o ser humano porque seu aparato cognitivo estabelece as condições de aparecimento dos objetos da experiência No entanto esse conhecimento não é arbitrá rio porque os fenômenos se dão no espaço e no tempo isto é sensivelmente uma vez que o ser humano não cria a realidade sendo apenas ca paz de a acolher de acordo com os limites im postos por sua constituição mental31 Tal perspectiva tem implicações na psicolo gia e no conhecimento da alma reunindo em um só o problema da relação entre mente e cor po e a questão da identidade pessoal Tal como acontece em Descartes também em Kant to dos os pensamentos ou representações devem ser acompanhados pelo ego constituindose assim a unidade da autoconsciência Contudo essa unidade é em Kant apenas uma condição formal do conhecimento não sendo possível afirmar com certeza cognitiva sua existência como substância como uma res cogitans conforme em Descartes31 Podemos contudo pensar e dar sentido a essa unidade pessoal como possibilidade cuidando sempre para não chegarmos a conclusões a seu respei to que confundam conhecer e pensar e que as sim ultrapassem os limites impostos pela expe riência isto é conclusões metafísicas acerca de sua existência Esse tipo de posição crítica do conhecimen to da identidade pessoal é importante pois per mite em psicoterapia manter uma posição de neutralidade relativa sobre as teorias predomi nantes que fundamentam seu funcionamento Tal tipo de visão não deixa de ser uma releitu ra da máxima socrática Só sei que nada sei a qual também deveria ser a postura crítica de to do psicoterapeuta O positivismo A partir do século XIX a abordagem filosófi ca e científica dos fenômenos mentais como a percepção a memória a inteligência e a aqui sição do conhecimento também passaram por uma mudança profunda com o abandono gra dual do método analítico e da introspecção Defendendo ideias ainda mais radicais que os empiristas ingleses positivistas como Augusto Comte 17981857 passaram a defender que tudo deveria ser provado e verificado inclu CordioliCapitulo01indd 12 04092018 190830 Psicoterapias 13 sive a existência de Deus taxando aquilo que não pudesse ser verificado como um conheci mento teórico e não científico Os positivistas se opunham ao idealismo e ao romantismo que valorizava as emoções e a subjetividade e pro punham como único método geral de aquisi ção do conhecimento a observação dos fenô menos e a primazia da experiência única capaz de produzir a partir dos dados concretos po sitivos a verdadeira ciência subordinando a imaginação à observação e tomando como base apenas o mundo físico ou material O positivismo coincidiu com um momen to de grande sucesso da ciência e do mé todo científico os quais ajudaram a des vendar vários questionamentos da física da química e da biologia Por exemplo nessa época Darwin propôs sua teoria sobre as origens e a evolução das espécies com base em suas observações cuidado sas afrontando com argumentos científi cos as teorias criacionistas defendidas pe la Bíblia há milênios A metodologia que teve tanto sucesso nas ciências naturais também passou a ser empregada na me dicina ajudando a desvendar as funções dos diferentes órgãos e revelando as cau sas das doenças e seu tratamento Esse clima favorável criou as condições pa ra o surgimento da psicologia científica que se deu com a fundação do primeiro laboratório de pesquisa na área criado por Wilhelm Wundt 18321920 em 1879 na Alemanha Wundt foi um dos primeiros psicólogos de orientação científica que seguiam a teoria evolucionista de Darwin defendendo que o comportamento humano e o comportamento animal eram re gidos pelas mesmas leis naturais contrariando a visão idealista e superior que se tinha do psi quismo humano anima nobili ou animal racio nal sobre as demais espécies anima vili ou ir racionais Tal concepção abria a possibilidade de aplicar em humanos conhecimentos adquiri dos em experimentos com animais Um bom exemplo prático dessa transposição de acha dos laboratoriais em animais para a clínica foi o surgimento da psicoterapia comportamental que baseava suas técnicas nos experimentos de condicionamento aprendido em cães realizados por Pavlov Fenomenologia O termo fenomenologia surgiu no século XVIII aparecendo por exemplo nas obras de Immanuel Kant e de Georg Wilhelm Friedrich Hegel 17701831 No entanto a fenomenolo gia assume no século XX outra dimensão che gando a tornarse para alguns de seus propo nentes não apenas uma parte da filosofia mas a própria prática filosófica Edmund Husserl foi o fundador do movi mento fenomenológico inspirandose na psi cologia descritiva de Franz Brentano seu pro fessor Para Brentano os fenômenos são tu do aquilo que se dá à consciência fenômenos mentais isto é os atos de consciência voli ções percepções juízos emoções etc e seus conteúdos e fenômenos físicos isto é objetos da percepção externa como cores ou formas De acordo com Brentano todo fenômeno men tal ou ato de consciência se dirige a um objeto e nisso se constitui a intencionalidade da cons ciência a qual constitui o centro da sua psico logia descritiva noção que como já vimos tem sua origem em Tomás de Aquino A psicologia descritiva tinha como tarefa definir e classifi car os diferentes tipos de fenômenos mentais18 A fenomenologia husserliana surge como resposta ao desafio epistemológico colocado pelo positivismo no campo das ciências parti cularmente no campo da psicologia Em nos sa atividade cognitiva usamos formas lógicas como o princípio de identidade e o princípio de não contradição que servem de fundamento e de garantia para a validade do conhecimento Mas quais são os fundamentos das próprias for mas lógicas19 Será que são meras generaliza ções de relações particulares dadas empirica mente meras representações simbólicas Se assim for com que legitimidade podemos afir mar que são necessariamente válidas para to dos os casos e não apenas para os casos concre tos a partir dos quais foram abstraídas A proposta fenomenológica de Husserl procura determinar as fundações experimen tais das condições de possibilidade de todo ato cognitivo de modo que descobre antecedentes em Descartes e Kant Husserl se propõe a rea lizar uma refundação radical do conhecimento o que exigirá um conjunto de tarefas infinitas de análise no campo da consciência Isso requer uma mudança radical de ponto de vista impli cando aquilo a que Husserl seguindo Descar tes chama de epoché uma suspensão dos juí CordioliCapitulo01indd 13 04092018 190830 14 Cordioli Grevet Orgs zos a respeito do mundo e da crença na exis tência do mundo que põe entre parênteses tudo aquilo que existe32 Nessa perspectiva encontrase a redução fe nomenológica um processo que reconduz toda experiência à esfera de certeza da subjetividade transcendental ao ego transcendental Tal co mo em Descartes apenas o eu pensante a cons ciência resiste à dúvida mas diferentemente de Descartes e de forma semelhante a Kant o ego transcendental não é uma substância é apenas uma estrutura formal e vazia de conteúdo que acompanha todos os atos conscientes19 A fenomenologia virase portanto para a vida da consciência propondo estabelecerse como uma ciência da consciência das estrutu ras intencionais dos atos conscientes e de seus correlatos objetivos Diferentemente do que acontecia em Descartes e em seu dualismo res cogitansres extensa a fenomenologia supera a divisão sujeitoobjeto por meio da intencio nalidade concebida como uma unidade entre o sujeito os atos conscientes e os objetos des ses atos Tal unidade constitui a vivência inten cional ou dito de outro modo o fenômeno19 o qual deve ser compreendido no modo de seu aparecimento à consciência evitando a impo sição de pressupostos de qualquer natureza O objetivo é reavivar nosso contato com a rea lidade apelando a um retorno à vida do sujeito vivo a uma experiência humana concreta que tente captar a vida enquanto a vivemos Sob tal ponto de vista a fenomenologia é a ciência das vivências ou dos conteúdos de cons ciência dos indivíduos e desse modo ela defi ne a psicologia moderna Essa ciência baseiase na intencionalidade de acordo com a qual todo fenômeno psíquico se refere a um conteúdo se dirige a um objeto19 A consciência é portanto um modo de referência a um conteúdo Inde pendentemente da existência real do objeto do ato intencional o próprio ato tem um conteúdo e um sentido abrese assim um novo domí nio de análise o dos significados dos atos cons cientes e de seus conteúdos suas interconexões e leis vinculativas como é o caso dos princípios lógicos de identidade e de não contradição Além disso uma vez que todo ato conscien te é acompanhado de sentido todo ato cons ciente é dotado por uma intenção de comuni cação explícita ou implícita de um falante para um ouvinte Superando a dicotomia sujeito ob jeto todo ato intencional todo fenômeno mostra ser constitutivamente intersubjetivo funcionando como signo de vivências que ma nifestam a intenção do falante ao ouvinte19 Embora com algumas diferenças que não poderemos abordar aqui podese dizer que es sa estrutura correlacional se estende à esfera da subjetividade por um lado temos o ego trans cendental meramente formal e vazio de con teúdo que reúne os diversos atos de consciên cia no feixe da vida consciente por outro lado temos o ego empírico o sujeito com seus con teúdos experienciais significativos o qual é pa ra si próprio um fenômeno estando exposto assim enquanto sujeito concreto à análise fe nomenológica32 A fenomenologia fornece acesso privilegiado à experiência vivida na primeira pessoa na qual a subjetividade deve ser compreendida como in separavelmente envolvida no processo de cons tituição da objetividade Tal questão bem como o lugar central da intencionalidade na fenome nologia foi sujeita a debate e reformulação pe las diferentes figuras do movimento fenomeno ló gico entre as quais se encontram Martin Heidegger 18891976 responsável pela vira gem existencial da fenomenologia Max Scheler 18741928 JeanPaul Sartre 19051980 Emmanuel Lévinas 19051995 Maurice Mer leauPonty 19081961 e Hannah Arendt 19061975 Os conceitos da fenomenologia foram utili zados por Karl Jaspers 18831969 psiquiatra e filósofo alemão para criar um sistema descri tivo da psicopatologia com base em princípios existencialistas de se colocar na pele do outro no intuito de perceber a realidade a partir de sua perspectiva Além disso usou a fenomeno logia para dar forma psicopatológica a fenôme nos mentais abstratos em seu famoso tratado Psicopatologia geral33 O existencialismo e a fenomenologia fo ram importantes influências para Carl Rogers 19021987 desenvolver uma forma de psico terapia humanística centrada no aqui e agora do paciente e que usava elementos de psicoedu cação Além disso a correlação apoiada no bi nômio falanteouvinte é central para a fenome nologia e revelouse particularmente relevante para a terapia psicanalítica tendo sido apro priada e desenvolvida por Melanie Klein 1882 1960 Donald Winnicott 18961971 Wilfred Bion 18971979 entre outros psica nalistas CordioliCapitulo01indd 14 04092018 190830 Psicoterapias 15 Pósmodernismo Essas ideias pavimentaram a estrada para o que viria a ser denominado pósmodernidade e que se consolidou como corrente filosófica a partir da segunda metade do século XX para a qual contribuíram filósofos como Friedrich Nietzsche 18441900 Martin Heidegger 18891976 Michel Foucault 19261984 e Jacques Derrida 19302004 Michel Foucault é particularmente relevan te para uma apreciação histórica do campo da psicoterapia considerando suas teses relativas à constituição das subjetividades as quais par tem justamente da superação da dicotomia su jeitoobjeto e do dualismo cartesiano Efetivamente a virada existencial no cam po da fenomenologia levada a cabo por Heidegger inscreveu a estrutura correla cional constitutiva do fenômeno previa mente limitada à esfera da consciência no campo das relações materiais de um su jeito situado no mundo imerso em uma cultura em uma linguagem em discursos em normas em um tempo e em um lugar Assim a história e a política tornamse fundamentais para uma compreensão da subjetividade e de sua constituição Em vez de se fundar em princípios mera mente formais como por exemplo uma sub jetividade transcendental o sujeito pósmo derno é um sujeito encarnado passível de ser controlado e administrado por diversas técni cas de sujeição à norma As dicotomias mentecorpo e sujeitoobje to são superadas por uma correlação que ma nifesta esses tópicos fenomenicamente em suas codependência e interrelação isto é em sua constituição mútua Agora abrese espaço para analisar essa mesma correlação desconstruíla em seus elementos e questionála em seu sen tido Essa correlação traduzse no fato de estar vivo na própria vida E é essa vida que se torna o foco da inquirição Uma das figuras de tal cor relação abordada por Foucault em sua obra é o sexo nomeadamente o sexo a partir do século XVII até nosso tempo momento em que para o autor a Idade da Repressão tem origem34 A tese moderna ou tradicional sobre a re pressão do sexo assentase na premissa da ne cessidade de recondução de toda a força de tra balho dissipada futilmente para o trabalho no contexto de um modo de produção capitalista Consequentemente os prazeres advenientes do sexo deveriam ser reduzidos a um mínimo ca paz de garantir a reprodução da força de traba lho34 Daí teria resultado a remissão do sexo ao quarto do casal uma certa injunção de silêncio sobra a prática sexual e a associação da trans gressão da norma a toda atividade sexual que excede o horizonte reprodutivo34 Entretanto Foucault apresenta uma hipóte se alternativa ou complementar à hipótese re pressiva tradicional E se a repressão do sexo e sua proibição fora dos domínios reconhecidos pela norma estivessem acopladas à sensação de transgressão produzida pelo mero falar sobre sexo E se os discursos sobre o sexo trouxessem consigo certa subversão relativamente ao poder instituído certa promessa de revolta de liber dade e de felicidade por vir34 Em vez de mera repressão teríamos um re forço recíproco de repressão e de discurso so bre o sexo um reforço recíproco de poder e de sexo ou melhor de poder e de discursosaber sobre sexo Para Foucault parece mesmo haver em nossa sociedade uma superabundância de discurso sobre sexo de tal forma que já não há quem o escute tendo o ouvinte de ser procura do também ele no mercado de trocas e pago por seus serviços34 Temos aqui portanto o aparente parado xo de uma sociedade composta por indivíduos que se revoltam contra a opressão falando sobre sexo e que em virtude de sua loquacidade aca bam falando sozinhos votados a um isolamen to extremo e cada vez mais expostos e sujeitos ao controle dos dispositivos de subjetivação do poder vigente O objetivo primordial de Fou cault não é portanto demonstrar a falsidade da hipótese repressiva mas reconsiderála em uma economia dos discursos sobre sexo34 A valorização do discurso sobre o sexo isto é sua transformação em medida das rela ções sociais teve efeitos de deslocamento e de intensificação do próprio desejo34Isso não só estendeu o domínio daquilo que pode ser dito sobre o sexo mas constituiu dispositivos autô nomos de produção discursiva que se estende ram às mais diversas áreas do saber ampliando as relações de poder sobre os prazeres e as téc nicas de sua administração Para Foucault da medicina e da psiquiatria passando pela etiologia das doenças mentais e terminando na justiça penal34 foram desenvol CordioliCapitulo01indd 15 04092018 190830 16 Cordioli Grevet Orgs vidos conjuntos de controles sociais e de admi nistração fundamentados na produção não de um silêncio como na hipótese repressiva mas de muitos silêncios que servem de outros tan tos pontos de apoio aos mais diversos discursos e a seus processos de normalização e institucio nalização34 Foucault chama de biopolítica esse do mínio aberto pela administração da vida e por sua sujeição ao cálculo um domínio no qual o binômio podersaber se constitui em agente de transformação da vida humana34 Diz Fou cault O homem durante milênios permane ceu o que era para Aristóteles um animal vivo e além disso capaz de existência política o ho mem moderno é um animal em cuja política sua vida de ser vivo está em questão34 Surgiu dessa forma no campo da medici na uma série de patologias orgânicas funcio nais e mentais com origem nas práticas sexuais bem como a classificação e a gestão dos praze res Não se impõe o silêncio sobre o sexo mas o controle das manifestações de prazer e da vida por via da produção de discursos e da dissemi nação dos diferentes silêncios O discurso sobre sexo e seu ímpeto normalizador procura incor porar nos indivíduos e em seus comportamen tos aquilo que neles escapa a toda a norma por via de um mecanismo de dupla incitação o po der persegue o prazer e afirmase neste último o prazer intensificase por escapar ao poder ao mesmo tempo que se realiza no exercício des te último34 Tal visão filosófica propiciou o aparecimen to de movimentos alternativos dentro da saú de mental a partir da década de 1960 servin do como base teórica para o surgimento da antipsiquiatria movimento que se opunha fe rozmente ao diagnóstico psiquiátrico aos tra tamentos farmacológicos às internações e aos manicômios Esse movimento considera que as doenças mentais não existem e são apenas ró tulos fictícios utilizados para excluir indivíduos com comportamentos indesejados do convívio social Tal concepção social das doenças men tais serviu como catalisadora de importantes mudanças na abordagem em saúde mental co mo a desinstitucionalização a ressocialização e o atendimento concentrado em centros multi disciplinares e comunitários apoiados por in ternações de curta duração em hospitais gerais Além disso ideias libertárias desses mo vimentos ajudaram a corrigir erros histó ricos fazendo a Associação Americana de Psiquiatria 1972 e a Associação Ameri cana de Psicologia 1973 retirarem o ró tulo patológico da homossexualidade To davia quando os defensores desse tipo de ideias tiveram a oportunidade de geren ciar os serviços de saúde mental propi ciaram muito mais um estado de tensão e luta de poder do que o desenvolvimento de abordagens racionais e efetivas para os grupos de pessoas que sofrem de doenças mentais graves Esse tipo de pensamento filosófico também possibilitou o surgimento de psicoterapias que se contrapunham aos modelos tradicionais co mo a terapia centrada no cliente de Carl Rogers a terapia humanista ou logoterapia de Viktor Frankl a terapia sistêmica e de grupos e a teo ria dos fatores comuns Esta última propõe que fatores comuns a todas as terapias seriam os in gredientes críticos para a mudança terapêuti ca e não as técnicas propostas pelas diferentes escolas ou modelos de psicoterapia Contudo muitas dessas técnicas nunca comprovaram sua efetividade não se consolidando como méto dos psicoterapêuticos bem estabelecidos Teorias da localização anatômica da mente Outro assunto de intenso debate entre filósofos e médicos helênicos foi o da localização anatô mica da alma Se na atualidade não temos dú vida de que a atividade mental é um fenôme no resultante da atividade cerebral durante mi lênios essa associação não era tão óbvia tendo havido propostas de inúmeras localizações en tre elas nos pulmões no timo no coração no cérebro e nos intestinos Entretanto duas escolas polarizaram o de bate que duraria séculos dividindose entre aqueles que defendiam o coração e aqueles que defendiam o cérebro como o assento da alma humana35 Entre os defensores da teoria cardio cêntrica encontravamse Aristóteles Diócles 375295 aC e Zenão 333264 aC enquan to Alcmeão século VI aC Pitágoras 569475 aC Hipócrates 460370 aC e Platão eram defensores da teoria encefalocêntrica36 CordioliCapitulo01indd 16 04092018 190830 Psicoterapias 17 Filósofos naturalistas ou présocráticos de fendiam que existiam vários tipos de almas com funções distintas e compostas por diferen tes elementos naturais como a terra o fogo a água e o ar os quais estariam localizados em di ferentes partes do corpo Por exemplo Anaxí menes 588524 aC acreditava que o prin cípio primordial arkhé era o ar e que a alma também era feita dessa substância e estaria lo calizada nos pulmões no advento da morte se ria expelida por pequenos poros existentes na pele o último suspiro Já Empédocles 495 435 aC sustentava que a alma se sentava no sangue que circulava ao redor do coração pro duzindo os pensamentos As ideias unitárias da existência de uma única alma passaram a pre dominar com Aristóteles um crítico do pensa mento animista présocrático mas que defen dia o coração como o local anatômico da al ma35 Os defensores da teoria encefalocêntrica basearam muito de suas conclusões em obser vações de mudança de comportamento em pes soas que sofriam lesões cranianas ou em expe rimentos com animais O médico Alcmeão usando possivelmente técnicas de dissecção percebeu que os órgãos do sentido direciona vam suas terminações nervosas ao crânio e que entravam nele por orifícios ligandose ana tomicamente com a massa cerebral Da mes ma forma Hipócrates defendia o cérebro co mo centro da mente e afirmava que as afec ções neurológicas como a epilepsia e as doen ças mentais não eram causadas por entidades demoníacas mas que tinham causas naturais Além disso seus tratados contêm descrições de lesões cerebrais em áreas específicas que acar retavam perda de função em áreas distantes do corpo dando início à localização e à especifi cidade de diferentes funções cerebrais No Re nascimento Leonardo da Vinci 14521519 ajudou a resolver o impasse milenar ao reali zar seus famosos estudos anatômicos provan do que a função cardíaca era bombear o sangue ao longo do sistema circulatório enquanto re lacionou o cérebro com os movimentos os sen timentos e a cognição36 A visão dualista e monista nos dias atuais Apesar de não haver mais dúvidas sobre a lo calização cerebral da mente diversos debates sobre concepções monistas e dualistas ainda persistem no campo teórico das psicoterapias O modelo monista ganhou força hegemônica a partir dos resultados inquestionáveis de traba lhos clássicos do final do século XIX como os de Paul Broca 18241880 que determinou a região do córtex responsável pela fala John Hughlings Jackson 18351911 que propôs um sistema de controle hierárquico das áreas infe riores do cérebro por regiões corticais superio res fundamentando suas conclusões nos déficits ocasionados por focos epiléticos em diferen tes partes do córtex cerebral e Alois Alzheimer 18641915 que descreveu as lesões neurofi brilares como causadoras dos quadros de demência que atualmente levam seu nome No final da primeira metade do século XX foram produzidos fármacos que têm ação dire ta no sistema nervoso central SNC e conse guem esbater sintomas dos transtornos men tais Ainda no final do século XX e início do século XXI surgiram os estudos de neuroima gem funcional que demonstraram a ação cen tral das psicoterapias com efeitos neurofisio lógicos semelhantes aos demonstrados pelos psicofármacos37 Mais recentemente no século XXI casos de depressão resistente e de trans torno obsessivocompulsivo TOC grave pu deram ser tratados com eletrodos implantados profundamente no cérebro dos pacientes sen do que seu efeito pode ser observado em tem po real Contudo concepções dualistas persistem até os dias de hoje no campo das psicoterapias pelo valor heurístico prático por permitirem conceitualmente que trabalhemos no âmbi to da subjetividade dos indivíduos Na prática diária não precisamos a todo tempo pensar no efeito cerebral que nossas intervenções es tão exercendo no SNC Além disso quando são idealizados modelos de intervenções específi cas ninguém pensa a priori qual área cerebral ou tipo de receptor eles atingirão Entretanto se na prática podemos traba lhar em psicoterapia como se a mente fosse uma dimensão separada de sua neurofisiologia subja cente sempre devemos ter em mente que a ação das psicoterapias ocorre necessariamente das alterações que produzem conexões neuronais que se dão por mecanismos semelhantes aos das intervenções educacionais de aprendizado39 Ver reportagem da CNN publicada no Youtube38 CordioliCapitulo01indd 17 04092018 190831 18 Cordioli Grevet Orgs AS PSICOTERAPIAS MODERNAS Fatos históricos relevantes às psicoterapias Durante a Idade Média e parte do Renascimen to século XIV ao XVI os loucos ou os alie nados eram considerados seres que viviam em uma existência próxima à de animais por terem perdido a razão que desde os tempos aristoté licos era considerada o elemento determinan te sine qua non da condição humana Sob es sa prerrogativa teórica desumanizante pessoas com quadros de doenças mentais graves eram afastadas do convívio social e encarceradas em masmorras com prisioneiros comuns ou quei madas por serem acusadas de praticantes de bruxaria Somente no século XVIII quando o ideário humanístico da Revolução France sa 17891799 passou a predominar cultural mente na Europa ocorreu uma transformação na abordagem das doenças mentais que passa ram a ser encaradas como entidades médicas A famosa cena de Philippe Pinel 1745 1826 tirando os grilhões dos pacientes interna dos no Hospital da Salpêtrière é uma espécie de Liberdade de Eugène Delacroix 17981863 da psiquiatria moderna As propostas de Pi nel marcam uma inflexão humanística no tra tamento dos doentes mentais Pinel propunha que os alienados deveriam ser tratados huma namente porque eram pessoas que sofriam de doenças médicas defendendo que essas pato logias deveriam ser estudadas da mesma forma que eram estudadas as outras doenças na medi cina Advogava que a observação clínica a des crição detalhada e a classificação dos fenôme nos e das doenças ajudariam a traçar o curso e o prognóstico dos transtornos mentais além de indicar a melhor forma de tratamento Ele tinha uma visão moralista e idealista das doenças mentais usando o homem racional co mo a normalidade a ser alcançada Considera va que as causas psicológicas e sociais eram as mais importantes propondo que era necessário coletar uma história pessoal detalhada para se obter os elementos cruciais para o diagnóstico assim como para guiar o tratamento correto Os tratamentos propostos por Pinel consistiam ge ralmente em uma abordagem muito semelhan te a uma psicoterapia deixando medicamentos contenções mecânicas e isolamento para casos extremos e não responsivos O tratamento psicossocial que propunha envolvia ensinar os padrões moralmente acei táveis de amor ternura compaixão e autocon trole de comportamentos disruptivos ou não aceitáveis no âmbito social Em resumo sua vi são pode ser considerada humanística do pon to de vista institucional observacional e médi ca na esfera nosológica e psicossocial na esfera terapêutica Tal visão inspirou gerações de psi quiatras das duas principais escolas europeias de psiquiatria do século XIX a escola francesa e a escola alemã A escola alemã encabeçada por psiquiatras e neurologistas como Karl Wernicke 1848 1905 Alois Alzheimer Arnold Pick 1851 1924 e Emil Kraepelin 18561926 focou os aspectos neurológicos e descritivos de doenças graves como as demências e psicoses Já a es cola francesa representada por Jean Esquirol 17721840 JeanMartin Charcot 18251893 e Pierre Janet 18591947 centrouse nos de terminantes sociais e psicológicos das doen ças menos graves por exemplo as histerias e os transtornos somatoformes Dessa forma en quanto a primeira foi o modelo dominante no que diz respeito ao tratamento médico de pa cientes graves e que necessitavam de interna ções hospitalares a escola francesa foi o modelo de abordagem para os pacientes ambulatoriais e consequentemente para as psicoterapias Por exemplo o austríaco Sigmund Freud 18561939 formado na mais pura tradição médica alemã interessouse tanto pelo traba lho de Charcot com histéricos que em 1885 fez um estágio em Paris com o médico francês Freud era médico do ambulatório de pacien tes psicossomáticos do Hospital Geral de Vie na onde trabalhava com histéricos com qua dros de cegueira paralisias e mutismos e pa ra os quais as abordagens com hipnotismo de Charcot se mostravam muito úteis A estada francesa de Freud se mostraria essencial para os primeiros insights daquilo que viria a ser sua maior obra e que pode ser considerada a pri meira psicoterapia estruturada da história Origens do termo psicoterapia Muitas das tentativas de intervenções psicoló gicas ocorreram na transição do século XVIII para o século XIX e quase todas estavam na esfera ou muito próximas do charlatanismo A mais famosa delas foi a do magnetismo ani mal proposta pelo médico austríaco Franz An CordioliCapitulo01indd 18 04092018 190831 Psicoterapias 19 ton Mesmer 17341815 Ele defendia que a doença mental surgia a partir de um desequi líbrio do campo magnético corporal que des regulava os elementos como ferro contidos no sangue o qual podia ser revertido com o uso de pedras com propriedades magnéticas Jun to com o método magnético Mesmer também utilizava longas sessões catárticas grupais que envolviam técnicas hipnóticas Rapidamente suas técnicas foram usadas por médicos e lei gos ao longo de toda a Europa o que desenca deou uma forte reação dos meios acadêmicos que acusaram seus praticantes de pseudocien tíficos e charlatães O uso da sugestão e da hipnose de modo heurístico foi a inspiração para cunhar o termo psicoterapêutico empregado pelo médico in glês Daniel Hack Tuke em um capítulo de seu livro intitulado Illustrations of the Influence of the Mind upon the Body in Health and Disease Designed to Elucidate the Action of the Imagina tion de 1872 Tuke argumentava que a ciência e a medicina deveriam estudar o efeito curativo de técnicas que usavam a sugestão e a hipnose porque era evidente que elas poderiam auxiliar no tratamento de determinadas afecções O ele mento revolucionário de Tuke encontrase no fato de propor que haveria uma comunicação evidente entre a mente psique e o corpo que deveria ser desvendada40 O termo popularizouse quando Hippoly te Bernheim 18371919 famoso professor da escola médica de Nancy citou em seu famoso livro as ideias de Tuke40 Entretanto é impor tante ressaltar que enquanto o termo era uti lizado por Tuke no sentido que hoje chamaría mos de placebo Bernheim empregou o termo mais próximo do sentido de psicoterapia Isso ocorreu porque além do uso de hipnose Bernheim sugeriu o emprego de longas sessões de conversas com pacientes como abordagem terapêutica Médicos respeitados como Jean Martin Charcot 18251893 e Pierre Janet 18591947 aprimoraram o uso da hipnose em quadros dissociativos tornando a técnica menos suspeita e aceita no meio médico no fi nal do século XIX A explosão das psicoterapias no século XX Em 2017 174 tipos diferentes de psicoterapias são citados na Wikipédia41 Contudo se as psi coterapias fossem agrupadas de acordo com suas orientações teóricas encontraríamos seis modelos gerais 1 o modelo psicanalítico criado por Freud que leva em conta o determi nismo dos conflitos psíquicos inconscientes e dos mecanismos de defesa do ego sobre os sin tomas mentais e a conduta humana 2 o mo delo comportamental que foca as formas de comportamento aprendido e condicionado de Pavlov Watson Skinner Wolpe e Bandura 3 o modelo cognitivo desenvolvido por Ellis e Aaron Beck que enfatiza o papel de cognições disfuncionais como fator responsável pelos sin tomas principalmente depressivos e ansiosos 4 o modelo existencialhumanistacentrado na pessoa de Carl Rogers e Viktor Frankl que fundamentado na fenomenologia e no existen cialismo propõe que o sofrimento humano de corre da perda de significado existencial 5 o modelo dos fatores comuns ou não específi cos proposto por Jerome Frank que preconiza que a boa relação a empatia e o calor humano com o paciente são suficientes para melhorar os sintomas e 6 o modelo dos fatores biopsi cossociais proposto originalmente por George Engel 19131999 que preconiza que fatores biológicos psicológicos e sociais determinam todas as doenças mentais e que fundamentou intervenções específicas para os diferentes fato res como a terapia interpessoal a terapia fami liar e a terapia de grupo O modelo psicodinâmico ou a psicanálise o primeiro modelo de psicoterapia estruturada Em 1886 depois de abandonar sua carreira co mo neurocientista e professor assistente de psi quiatria na Universidade de Viena por causa do baixo salário Freud passou a trabalhar na clí nica privada junto com um colega mais velho e bem estabelecido chamado Josef Breuer 1842 1925 Breuer e Freud atendiam a comunida de judaica abastada de Viena e seus pacien tes eram geralmente mulheres que apresen tavam quadros neuróticos e psicossomáticos as quais eram tratadas com longas conversas e sessões de hipnose Como muitas delas relata vam vivências traumáticas que tinham aconte cido na infância ou pouco antes de desenvolver seus sintomas Freud passou a defender a ideia de que além da biologia constitucional fatores psicológicos e eventos traumáticos eram os res ponsáveis pelo surgimento de sintomas histé ricos Além disso como muitos desses eventos CordioliCapitulo01indd 19 04092018 190831 20 Cordioli Grevet Orgs traumáticos eram de âmbito sexual p ex abu so iniciação precoce da sexualidade assédio por uma pessoa mais velha Freud concluiu que a sexualidade era um tema central na etio logia das neuroses Como seus pacientes não se lembravam dos fatos que revelavam sob hipnose Freud pro pôs que uma dimensão mental inconsciente influenciava dinamicamente o estado de cons ciência humano Contudo após anos de práti ca convenceuse de que o tratamento hipnóti co dos quadros neuróticos não era efetivo por que muitos pacientes não entravam em estado dissociativo ou se recusavam a ser hipnotiza dos Em virtude disso Freud passou a desen volver um método que consistia basicamente em forçar as memórias reprimidas do incons ciente a se tornarem conscientes pela rememo ração forçada Percebendo que esse método também não era muito eficaz Freud passou a solicitar a seus pacientes que tentassem falar tu do o que vinha a sua cabeça sem censu ra criando uma técnica que passaria a ser chamada de associação livre Freud notou que por meio desse método os pacien tes contavam sonhos cometiam atos fa lhos ou faziam associações que ajudavam a desvendar o conteúdo inconsciente de suas mentes sem a necessidade da hipno se O resultado final foi um método tera pêutico que ele chamou de psicanálise Apesar de a psicanálise sofrer críticas e for te resistência nos meios acadêmicos da Europa continental na Inglaterra e nos Estados Unidos ela rapidamente encontrou adeptos e se propa gou como técnica psicoterapêutica tornando se um modelo quase hegemônico de psicote rapia até a primeira metade do século XX Na Inglaterra a fundação da Sociedade Psicanalí tica Britânica por Ernest Jones 18791958 em 1913 e a tradução das obras de Freud por James Strachey 18871967 em 1925 contribuíram enormemente para a rápida difusão da psicaná lise na língua inglesa Outro fator determinan te para seu crescimento na GrãBretanha foi o fato de Jones auxiliar inúmeros psicanalistas do continente europeu a se exilarem na Inglater ra durante a Segunda Guerra Mundial entre eles Sigmund Freud Anna Freud 18951982 e Melanie Klein 18821960 Anna Freud e Me lanie Klein tiveram um papel importantíssi mo na propagação das ideias psicanalíticas no mundo anglosaxão Além disso a visita que Freud fez aos Estados Unidos em 1911 foi de fundamental importância para a divulgação de sua obra e a difusão de sua técnica no conti nente norteamericano Pouco tempo depois de sua visita aos Esta dos Unidos ocorreu a fundação da Associação Psicanalítica de Nova York 1911 e da Associa ção Psicanalítica Americana 1912 esta última criada por Ernest Jones Diferentemente do que ocorreu na Europa a psicanálise conseguiu um lugar de destaque nas grandes universidades norteamericanas o que determinou o domí nio de suas teorias na psiquiatria durante toda a primeira metade do século XX Independen temente do problema conceitual que isso possa ter significado para outras formas de entendi mento das doenças mentais foi um fator cabal para a difusão das psicoterapias como método terapêutico em todo o mundo Contudo o declínio da psicanálise como método hegemônico ocorreu a partir da se gunda metade do século XX quando descober tas no campo das neurociências e da medici na passaram gradualmente a dominar os mo delos teóricos e conceituais das doenças men tais Além disso somaramse críticas devido ao longo tempo de formação ao custo dos trata mentos e à baixa efetividade da psicanálise em certas patologias como na depressão recorren te Esses problemas fizeram muitos terapeutas como Aaron Beck 1921 que originalmen te tinham formação psicodinâmica pensarem em formas mais objetivas de psicoterapia Es sas novas modalidades psicoterapêuticas cog nitivistas e comportamentais que lidavam ape nas com aspectos conscientes da personalida de eram mais fáceis de ser aprendidas além de preconizarem tratamentos de curta duração e focados na redução dos sintomas Da mesma forma essas psicoterapias eram manualiza das adaptandose muito mais facilmente ao modelo empírico da medicina e ao ensaio clí nico randomizado ECR Essas características permitiram que rapidamente dados empíricos embasassem sua eficácia o que acarretou indi cações precisas e custeio por seguros de saúde nos Estados Unidos Como reação a esses entraves formas mais curtas de tratamentos psicodinâmicos foram propostas e escolas com modelos mais sim CordioliCapitulo01indd 20 04092018 190831 Psicoterapias 21 plificados de psicanálise surgiram como a es cola da psicologia do ego defendida por Anna Freud e a escola americana ou a mentalização de Peter Fonagy 1952 Ainda a Associação Mundial de Psicanálise passou a apoiar intensa mente a pesquisa em psicoterapia de orientação analítica e a interlocução entre a psicanálise e a psiquiatria promovida por figuras de destaque na Associação Americana de Psiquiatria como Glen Gabbard 1949 A terapia comportamental Com suas raízes datadas do final do século XIX o behaviorismo ou comportamentalismo teve seu início com os trabalhos teóricos e experi mentais do russo Ivan P Pavlov 18491936 que por meio de pesquisas com cães descobriu o reflexo condicionado e do norteameri cano Edward L Thorndike 18741949 que propôs a lei do efeito segundo a qual os efeitos de um comportamento afetam a probabilidade de que ele ocorra novamente tendendo a ser repetido se acompanhado por recompensa ou evitado se seguido por um castigo Posteriormente em experimentos que seriam considerados com pletamente antiéticos nos dias de hoje John Watson 18781958 usou o modelo pavloviano de aprendizagem para desenvolver fobias em crianças e comprovar que não havia necessidade de trauma no passado para o aparecimento dos sintomas Na contramão desses experimentos Mary Covers Jones 18971987 usou as mes mas ideias para desenvolver um método para curar as fobias Ainda usando as ideias de Thorndike que propunham que o meio ambiente exercia pres são para que ocorresse o aumento ou a extin ção de comportamentos humanos por meio do condicionamento operante Burrhus F Skinner 19041990 criou uma forma de psicoterapia chamada de behaviorismo radical Esses com portamentalistas radicais como Watson e Skin ner consideravam que apenas poderíamos le var em conta em psicologia fatos observáveis negando qualquer papel às cognições e às emo ções sobre o comportamento humano Nos anos de 1950 Joseph Wolpe 1915 1997 um médico sulafricano desenvolveu uma técnica de dessensibilização sistemáti ca para tratar fobias produzidas em gatos por meio de condicionamento clássico que depois eram eliminadas com a exposição gradual Es sa técnica teve enorme sucesso também no tra tamento de fobias em seres humanos até ser substituída pela exposição in vivo Muitos com portamentalistas menos radicais passaram a propor que era inegável que a cognição deter minava ou influenciava o comportamento o que propiciou o desenvolvimento de técnicas mistas denominadas cognitivocomportamen tais Terapia existencialhumanista e centrada na pessoa Nos anos de 1950 também como alternati va à psicanálise surgiu uma técnica centrada na pessoa que valorizava fatores inespecíficos das psicoterapias como a pessoa do terapeu ta a empatia o calor humano e a autenticidade desenvolvida por Carl Rogers 19021987 Na mesma época Viktor Frankl propôs uma forma de psicoterapia existencialhumanista inspira da no existencialismo que salientava o valor da liberdade de escolha Frankl que foi prisioneiro de campo de concentração durante a Segunda Guerra Mundial estabeleceu que o objetivo de sua psicoterapia logoterapia era a descoberta de um sentido para a vida defendendo que de vemos encontrar um motivo para a realização pessoal mesmo nas condições mais adversas Para ele o desespero e o suicídio seriam a saída escolhida por aqueles indivíduos que não en contram significado para a vida Frankl se con trapôs a Sartre que considerava a vida um absurdo que deveria ser suportado heroica mente Há uma entrevista em que o próprio Frankl explica esses princípios42 Apesar de altamente atrativas do ponto de vista filosófico as psicoterapias focadas na pes soa e existencialista tiveram pouco sucesso co mo métodos efetivos Contudo as terapias da terceira onda as cognitivocomportamentais também usam muitos dos conceitos da aceita ção e da realização pessoal O modelo cognitivo e as terapias cognitivas e cognitivocomportamentais A TCC surgiu em razão do descontentamen to que existia com a psicanálise e com o beha viorismo radical nos Estados Unidos no final dos anos de 1950 Seus principais idealizadores Albert Ellis 19132007 e Aaron Beck 1921 criaram uma psicoterapia baseada no poder das cognições pensamentos e crenças e crenças em provocar emoções adequadas ou perturba CordioliCapitulo01indd 21 04092018 190831 22 Cordioli Grevet Orgs doras e induzir comportamentos adaptativos ou patológicos Na terapia cognitiva o alvo te rapêutico encontrase nos aspectos conscientes do indivíduo por meio de um vínculo de traba lho com o paciente e focado em problemas do aqui e agora A terapia cognitiva por trabalhar com os aspectos conscientes e mensuráveis da mente possibilita o teste empírico de suas hi póteses teóricas além de permitir aferir de for ma mais confiável a eficácia de suas técnicas As psicoterapias cognitivas não são neces sariamente um corpo unificado de psicotera pias sendo possível que variações em sua téc nica sejam incorporadas por diferentes grupos de trabalho Nesse sentido a incorporação de técnicas comportamentais foi fundamental pa ra o sucesso terapêutico em transtornos de an siedade Tal associação de técnicas passou a ser chamada de terapia cognitivocomportamen tal Entretanto historicamente Ellis e Beck de vem ser destacados como seus maiores ideali zadores Ellis fundou a terapia racionalemoti va comportamental TREC que defende que o pensamento e as emoções são determinados pelos sistemas de crenças básicas e irracionais das pessoas e continuamente ativados em situa ções do dia a dia A TREC tem como objetivo identificar e desafiar as crenças irracionais e substi tuílas por outras mais realistas Utiliza o poder da razão e da argumentação lógi coempírica o desafio e o debate racio nal para tal finalidade o que por sua vez acarreta mudanças no comportamento Aaron Beck era um psicanalista que tenta va comprovar a teoria de Freud sobre a depres são descrita em Luto e melancolia em pacien tes clínicos De acordo com a referida teoria a melancolia seria decorrente da raiva contra o objeto retrofletida contra si mesmo traduzin dose em culpa excessiva depressão e desejos de morte Ao atender pacientes deprimidos em vez de confirmar as ideias de Freud Beck te ve sua atenção voltada para a forma negativa de pensar e interpretar a realidade desses pa cientes visão negativa de si mesmo sou infe rior sou incompetente não tenho valor visão negativa do mundo injusto hostil e visão ne gativa do futuro desesperança fracasso For mulou a hipótese de que o humor deprimido seria a consequência não de conflitos incons cientes mas de pensamentos negativos caracte rísticos da depressão que estavam à margem da atividade mental consciente e que eram facil mente acessíveis É uma reformulação do prin cípio estoico de que o que perturba não são as coisas em si mas o que as pessoas pensam so bre as coisas Beck também acreditava como os racionalistas no poder da razão da argumenta ção lógica para modificar comportamentos e do questionamento de evidências como forma de corrigir crenças disfuncionais e melhorar os sintomas depressivos que eram consequência de visões negativas de si próprio do mundo e do futuro Em homenagem a Sócrates essa téc nica é denominada de questionamento socráti co A TCC de Beck também incorporou funda mentos teóricos aprendizagem como méto dos e procedimentos da terapia comportamen tal como a prescrição de tarefas de casa a es truturação das sessões e metas para cada sessão agenda e para o longo prazo maior atividade por parte do terapeuta e mensuração sistemáti ca de variáveis e desfechos Por ser uma técnica de duração breve e estruturada foi possível de senvolver protocolos e manuais que permiti ram a reprodução de pesquisas e de ensaios clí nicos tornandose a terapia com maiores estu dos e evidências de eficácia da atualidade O modelo interpessoal a terapia sistêmica e a terapia de grupo Nos anos de 1970 surgiu a terapia interpessoal de Weissman e Klerman na esteira de autores muito influentes como Adolf Meyer e Harry S Sullivan os quais passaram a valorizar os as pectos sociais p ex perdas mudanças de pa péis conflitos de papéis mais especificamente as relações interpessoais como fatores que in fluenciam tanto a gênese quanto a manutenção de transtornos como a depressão A correção de problemas nessa área pode contribuir para a melhora dos sintomas Na mesma linha as te rapias de grupo e de família embora com en foque psicodinâmico ou cognitivocomporta mental valorizam a contribuição de fatores sis têmicos para os transtornos do indivíduo e da família e dos fatores de grupo como aspectos terapêuticos Fatores comuns ou não específicos Apesar da profusão de técnicas e enquadra mentos teóricos um fato interessante é a obser vação empírica de que a eficácia das diferentes CordioliCapitulo01indd 22 04092018 190831 Psicoterapias 23 psicoterapias é relativamente semelhante43 Is so já havia sido levantado de forma teórica em um artigo clássico de Saul Rosenzweig 1907 200444 no qual era proposto que os benefícios de várias terapias eram decorrentes de fatores comuns a todas elas e não das técnicas espe cíficas que elas utilizavam Rosenzweig defen deu que qualquer terapia desde que praticada por um terapeuta competente e que acreditas se em seu método de tratamento resultaria em desfechos semelhantes Ele usou a metáfora do veredito do pássaro Dodô personagem do li vro Alice no País das Maravilhas que ao inter romper a corrida de diferentes animais procla mou Todos venceram e todos devem ganhar prêmios para se referir a essa semelhança de resultados Desde essa época a eficácia seme lhante das diferentes psicoterapias tem sido co nhecida como o veredito do pássaro Dodô Tal veredito tem sido utilizado como suporte em pírico àqueles como Jerome Frank45 que acre ditam em que os fatores comuns seriam os ver dadeiros responsáveis pela eficácia das psicote rapias Esses fatores também são chamados de não específicos em oposição aos específicos e seriam comuns a todas as terapias Esse tópico foi ampliado no Cap 4 Fatores comuns e es pecíficos das psicoterapias CONSIDERAÇÕES FINAIS As psicoterapias são fruto de um processo his tórico ligado à própria construção do conhe cimento científico que tem aproximadamen te 3 mil anos Durante esse período passamos de uma visão mítica e fantasiosa dos processos mentais e seus determinantes para uma em que as relações complexas entre o ser humano sua biologia seus ideais seus sentimentos e sua conduta e seu meio ambiente familiar social político e ecológico são determinantes para a saúde ou a doença Sob tal contexto de extrema complexidade é que trabalhamos com as dife rentes técnicas existentes para dirimir o sofri mento emocional Nesse sentido para poder mos extrair todo o potencial que essas técnicas têm precisamos como terapeutas ter em men te essa complexidade e fazer um esforço cons tante de racionalidade REFERÊNCIAS 1 Wallerstein R S Psicanálise e psicoterapia de orientação analítica raízes históricas e situação atual In Eizirik CL Aguiar RW Schestatsky SS Psicoterapia de orientação analítica fundamentos teóricos e clínicos 2 ed Porto Alegre Artmed 2005 2 CostaRosa A Práticas de cura místicoreligiosas psicoterapia e subjetividade contemporânea Psicol USP 200819456190 3 Aristoteles PseudoLonginus Demetrius Poetics Cambridge Harvard University 1995 4 Jung CG Psychology and religion the terry lectures New Haven Yale University 1938 5 William B The history of medicine a very short introduction Oxford Oxford University 2008 6 Bunge M Ardila R Philosophy of psychology New York Springer 1987 7 Peters FE Greek philosophical terms a historical lexicon New York New York University 1967 p 16676 8 Aristoteles De anima Oxford Clarendon 2016 p 246 9 Kirk GS Raven JE Schofield M Os filósofos préso crá ticos história crítica com selecção de textos 7 ed Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 2010 10 Waterfield R The first philosophers the presocratics and sophists Oxford Oxford University 2000 11 Lorenz H Ancient theories of soul Stanford Encyclopedia of Philosophy 2009 12 Plato Cooper JM Hutchinson DS Complete works Indianapolis Hackett 1997 13 Arendt H The promise of politics New York Schocken Books 2005 14 Castanheira NP Estar em casa no mundo Hannah Arendt crise do sentido e ser do humano dissertação Lisboa Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 2015 15 Zilioli U From the Socratics to the Socratic Schools classical ethics metaphysics and epistemology London Routledge 2015 16 Aristóteles Metafísica Martinez TC tradutor Madrid Gredos 1994 p2627 17 Aristoteles Griechenland P The Nicomachean ethics Rackham H tradutor London William Heinemann 1962 18 Moran D Introduction to phenomenology London Routledge 2013 19 Hussel E Investigações lógicas investigações para a fenomenologia e a teoria do 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Aspectos conceituais e raízes históricas das psicoterapias Nuno Pereira Castanheira Eugenio Horacio Grevet Aristides Volpato Cordioli Entre esses temas podemos encontrar 1 a natureza da alma ou da mente incluindo pers pectivas substancialistas e não substancialistas dualistas e monistas etc 2 a natureza da re lação entre a alma eou a mente e o corpo 3 os fundamentos da diferenciação entre estados mentais sensações percepções etc 4 a de terminação e a análise das faculdades do ego pensante uma psicologia racional distinta de uma psicologia empírica 5 a natureza da re lação dos diferentes estados mentais e sua in fluência sobre os estados físicos dada a sua aparente capacidade de influenciar o compor tamento 6 a natureza e os fundamentos da consciência e 7 muitos outros tópicos que atravessam os campos da ontologia da teolo gia da ética e da epistemologia Traçar um histórico claro das psicoterapias não é uma tarefa fácil Há poucas publicações sobre o assunto e muitas das existentes não apresen tam uma linha temporal muito clara É possível que essa quase inexistência de recursos biblio gráficos seja devida não tanto à dificuldade do tema e do levantamento de fontes historiográ ficas mas ao fato de as abordagens filosófica e científica não terem sofrido uma separação cla ra até o final do século XIX Antes disso os es critos sobre a psique manifestam em geral al gum tipo de dependência de posicionamentos ou terminologias metafísicas ou teológicas que seriam rejeitados de imediato pelos atuais pra ticantes de uma psicologia orientada em âmbi to científico como também privilegiam temáti cas marcadamente filosóficas As psicoterapias têm suas raízes na história da filosofia da medicina da psiquiatria e da psi cologia Neste capítulo descrevemos a evolução do conhecimento que nos permitiu ter um conceito de mente ligada ao funcionamento cerebral passo essencial para o surgimento de intervenções psicoterapêuticas racionais para o tratamento dos transtornos mentais São abordados conceitos como mente dualismo monismo e método científico Dessa forma o leitor poderá ter uma visão sucinta dos pressupostos filosóficos e científicos que são as bases teóricas das diferentes formas de psicoterapia Entender tais pressupostos é essen cial para uma leitura crítica dos capítulos que se seguem a este assim como para iniciar a construção de uma racionalidade mínima necessária para o exercício do papel de psico terapeuta Também são descritas as origens históricas das principais correntes de psicote rapia a psicanálise a terapia comportamental a terapia cognitivocomportamental TCC e a terapia existencial 1 CordioliCapitulo01indd 3 04092018 190828 4 Cordioli Grevet Orgs Não deixa de ser significativo que ainda hoje a reflexão filosófica acerca da psique re tome muitos desses temas justamente porque boa parte deles continua a habitar o espaço de indistinção entre filosofia e ciência Prova dis so são as diferentes perspectivas que povoam o campo da filosofia da mente Considerando a relativa novidade da separação entre as abor dagens filosóficas da psicologia e a abordagem atualmente classificada como científica da psi que qualquer tentativa de falar de psicoterapia em momentos históricos prévios a esse predo mínio da visão científica terá forçosamente que assumir a forma da analogia Sabese que alguns autores referindose a momentos históricos mais distantes costumam sugerir que formas primitivas de psicoterapias sempre existiram fazendo alusões a curandei ros ou xamãs como psicoterapeutas primor diais1 Tal tipo de analogia só é possível por que a empatia o entendimento e a necessidade de darmos e recebermos auxílio são elementos fundamentais do gregarismo humano e do pro cesso civilizatório Não obstante dificilmente poderemos falar nesses casos de psicoterapia senão à custa da neutralização das especificida des da visão de mundo de cada um desses mo mentos históricos Seguindo essa mesma linha de raciocínio analógico alguns autores veem um paralelo en tre os efeitos benéficos sobre o sofrimento exis tencial de certos rituais religiosos ou manifes tações culturais e aquilo a que atualmente cha maríamos de seus efeitos psicoterapêuticos2 Na Grécia Antiga a representação teatral tinha como um de seus objetivos a produção de uma reação emocional catártica grupal entendida como purificadora da alma3 Outro exemplo ilustrativo é o sacramento da confissão da reli gião católica no qual o pecador obtém alívio de seu sofrimento ao confessar seus pecados a um sacerdote consagrado que o ajuda a atingir um padrão cristão de virtude4 Por fim há os que preferem vincular o sur gimento das psicoterapias ao surgimento da medicina Esses autores advogam que na an tiguidade quando não havia muitos tratamen tos eficazes o efeito terapêutico era obtido pela qualidade da relação médicopaciente Contu do ao traçar uma associação direta entre a re lação médicopaciente e as psicoterapias esta mos superestimando os efeitos de fatores ines pecíficos como causa de seu funcionamento e desvalorizando a efetividade e a relevância his tórica e conceitual que tiveram os idealizadores das diferentes técnicas psicoterapêuticas ver Cap 4 Cabe ressaltar também que até o final do século XIX quando começaram a surgir inter venções eficazes para as infecções fazia pouca diferença quem estivesse a cargo do tratamen to de uma pessoa doente Todos tinham pou co a oferecer de concreto diferindo apenas em termos conceituais independentemente da ra cionalidade ou irracionalidade dos argumen tos utilizados Além disso esses exemplos nun ca consideram que tipo de sofrimento está sen do aliviado tornando vaga a pertinência de tais afirmações Temos de convir que há enormes diferenças entre tratar câncer terminal pneu monia dor de dente ataques de pânico sofri mento existencial e questões da espiritualidade pessoal Levandose em conta que existe uma distância enorme entre esses exemplos e as in tervenções psicoterapêuticas reais podemos concluir que eles servem apenas como elemen tos pictóricos úteis para demonstrar que as re lações interpessoais são importantíssimas para dirimir o sofrimento físico e psíquico5 Dessa forma para compreender como sur giram as psicoterapias não basta fazermos con jecturas históricas simplistas que apenas criam mitos sobre seu surgimento Pelo contrário acreditamos que o mais importante é entender o longo caminho epistemológico que nos per mitiu abandonar explicações míticas para os fe nômenos mentais e chegarmos a sistemas ex plicativos racionais e científicos6 Devemos esse processo que é por vezes chamado do mito ao logos mais à filosofia do que à medicina As sim descrevêlo permite contextualizar o leitor conceitualmente o que também facilita a com preensão dos eventos históricos que circunda ram o surgimento da psicanálise a primeira forma de psicoterapia estruturada que de for ma consistente pode ser considerada o fato his tórico que dá início à profissão RAÍZES FILOSÓFICAS DAS PSICOTERAPIAS Conforme mencionado antes de descrevermos os fatos históricos específicos às psicoterapias precisamos entender o longo caminho que per correu o conhecimento humano até o encontro CordioliCapitulo01indd 4 04092018 190828 Psicoterapias 5 de uma visão racional do homem e de seu es pírito Esse conhecimento foi conquistado por meio de um doloroso processo que intercalou revoluções e estagnações e que custou a vida de muitos de seus defensores Na cultura ociden tal na qual estão inseridas as psicoterapias esse processo se iniciou na Grécia Antiga há apro ximadamente 3 mil anos perdurando até hoje Antiguidade os filósofos gregos Etimologicamente a palavra psique tem ori gem no termo grego psukhe que assumiu di versos sentidos interrelacionados dependen do dos contextos em que era utilizado mas que podem ser sintetizados como sopro vital vi da espírito princípio vital alma si mes mo e pessoa7 O processo que conduziu de uma visão mí tica do mundo e da mente a uma visão racio nal e científica teve seu início na Grécia Antiga 1100 aC a 146 aC período durante o qual diferentes pensadores propuseram que estudos sistemáticos e racionais constituíam a melhor forma para se chegar a conceitos mais próxi mos da verdade sobre o universo o homem e sua psique que constituem as diferentes esco las filosóficas Aristóteles8 em seu influente tratado So bre a alma Peri psukhes no original grego mas mais conhecido por sua nômina latina De ani ma afirma que as opiniões de seus predeces sores se assentam na ideia de que a psique é aquilo que distingue um ente animado de um ente inanimado em dois aspectos o movimen to ação e a percepção sensível relativa ao que chamaríamos atualmente de funções cognitivas da mente ou da consciência A psukhe era con siderada portanto como aquilo que faz mover e constituía naquele período o correlato psí quico do corpo enquanto unidade ou agregado físico de seus diversos membros e partes Os filósofos présocráticos ou fisiólogos9 os predecessores a que Aristóteles se refere são assim chamados devido ao fato de busca rem fundamentos naturais para os fenômenos nomeadamente nos chamados elementos pri mordiais a terra o fogo a água e o ar Embora a designação filósofos présocráticos seja usa da em ampla escala ela não é exatamente rigo rosa uma vez que alguns desses pensadores fo ram contemporâneos de Sócrates Ela será uti lizada aqui para designar aqueles pensadores da Grécia Antiga que não foram influenciados por Sócrates Entre esses pensadores encontramse Heráclito 535475 aC Anaxágoras 500428 aC Demócrito 460370 aC e Epicuro 341271 aC Anaxágoras acreditava que a alma era cons tituída por ar e Heráclito considerava que a alma é a exalação a partir da qual tudo se constitui 8 permanecendo de vigília e par ticipando do processo cognitivo durante o so no quando os demais sentidos estão adorme cidos Já Epicuro acreditava que o universo fo ra constituído pela ação das forças da natureza regidas pelo acaso Essa ação não premeditada e randômica teria permitido à matéria assumir as formas conhecidas inclusive a do homem Refutava a ideia de existir algum motivo pre determinado teleológico ou metafísico além da matéria para a existência humana susten tando que o espírito humano era um produto direto do corpo físico e que sua existência esta va atrelada aos limites existenciais deste Mui tos tinham uma interpretação ou visão unicista e monista da relação entre a alma mente e o corpo10 que ainda é a visão preponderante nas neurociências da atualidade Para aqueles que como Demócrito acredi tavam em que a realidade era constituída por átomos e por vazio os atomistas a alma era a fonte de todo o movimento sendo constituí da por um agregado de átomos esféricos seme lhantes ao fogo os quais eram os mais móveis e capazes de ser causa de movimento8 Sendo um princípio primordial o fogo não só é causa do movimento de outras coisas mas também causa do próprio movimento sendo portanto imortal Disso resulta uma dificuldade básica para os atomistas para os quais a alma é uma combinação da capacidade de mover e da ca pacidade de conhecer a relação almacorpo e a relação almamente11 Outros como os pitagóricos consideravam que todas as coisas inclusive a alma como princípio de movimento e a alma como per cepção sensível eram redutíveis ao número o qual seria o princípio primordial de tudo aqui lo que é Para os pitagóricos a alma tem uma natureza divina e sobrevive à morte do corpo9 fundando o antagonismo entre alma e corpo que atravessará os mais de 25 séculos da cultu ra ocidental As filosofias de Sócrates 470399 aC Pla tão 427347 aC e Aristóteles 384322 aC marcam um distanciamento relativo de visões CordioliCapitulo01indd 5 04092018 190829 6 Cordioli Grevet Orgs fisiológicas e mecanicistas da mente dando iní cio ao Período Clássico Neste mantiveramse e desenvolveramse os aspectos da filosofia na tural porém foram colocados em segundo pla no em relação às questões centradas na ética e na política que também incluem a poética a história a retórica e em muitos aspectos a ló gica a psicologia e a metafísica Antes de abordarmos alguns elementos das teorias da alma do Período Clássico é impor tante mencionar um aspecto da filosofia de Só crates que influenciou diretamente a psicotera pia a maiêutica o método utilizado pelo filó sofo nos diálogos com seus concidadãos e que está presente nos textos que nos deixou Pla tão Os diálogos socráticos começam em ge ral com opiniões cuja verdade é pressuposta sem que seus fundamentos sejam questiona dos Afirmando metodicamente sua ignorân cia o célebre Só sei que nada sei 12 Sócra tes apresentase sempre diante de seus interlo cutores despojado de doutrinas prévias con duzindoos por meio da inquirição ao exame das próprias opiniões as quais invariavelmente revelam ser infundadas Se inicialmente todos parecem saber o que são a justiça a felicidade a coragem ou a beleza por exemplo logo seu co nhecimento se revela infundado o que promo ve uma nova procura pela verdade dessas e de outras noções13 A perplexidade ou aporia com que termi nam os diálogos socráticos não é por parte da queles que deles participam uma constatação resignada de sua ignorância mas uma intensi ficação de sua vida Efetivamente para Sócra tes uma vida que não é sujeita a exame é uma vida que não está sendo plenamente vivida que se petrificou e que ficou prisioneira de noções sem sentido diríamos hoje alienadas da rea lidade Assim esse método de exame faz os concidadãos de Sócrates tornaremse mais vir tuosos pois só a consciência da sua ignorân cia permitirá retomar o movimento em busca de um sentido para o seu estar vivo um sen tido que se descobre sempre dialogicamente14 Estar consciente da própria ignorância é já uma forma de saber uma dimensão crucial da ins crição Conhecete a ti mesmo no frontispício do templo de Apolo deus da harmonia no san tuário de Delfos e que serviu de inspiração a Sócrates Esse método teve enorme influência em técnicas psicoterapêuticas atuais O diálo go racional como método de tratamento por meio da correção de crenças erradas ou distorcidas é adotado até hoje na tera pia comportamental racional e emotiva e na TCC Agora vamos retomar as teorias acerca da natureza da psique As reflexões de Platão a res peito da natureza da alma procuram reconciliar um conjunto de noções que estão associadas ao fato de a alma ser a causa da vida orgânica in clusive do ser humano e de ser responsável pe las faculdades cognitivas assim como pelas vir tudes morais A concepção platônica de alma é devedora da perspectiva pitagórica uma vez que Platão concebe a alma como uma unidade de natureza divina e portanto imortal que reencarna ciclicamente em um corpo mortal o qual estando sujeito a necessidades era res ponsável por todos os males de que ela era aco metida O corpo físico era considerado um me ro receptáculo da alma e responsável por todo desvio ético ação a serviço do bem comum O corpo e seus desejos eram entendidos como obstáculos a serem transpostos ou domestica dos15 Portanto a filosofia era para Platão um processo de catarse ou de purificação que pre parava o ser humano para a morte e para o re gresso da alma a sua condição natural Esse processo possibilita também o acesso do ser humano às formas os princípios de tudo aqui lo que é por via da anamnese12 uma vez que a alma partilha com aqueles a imortalidade e a imaterialidade Se no Fédon Platão apresenta uma pers pectiva da alma principalmente separada dos sentidos e associada a funções exclusivamente cognitivas já na República e no Fedro12 a alma integra também funções somáticas e está divi dida em partes as quais correspondem a cada uma de suas funções racional espiritual e ape titiva O resultado disso é que todas as funções psicológicas descobrem na alma a sua unidade a alma constitui a unidade mental sendo res ponsável não só pelo pensamento ou pelo de sejo mas também por funções vitais como as nutritivas e as reprodutivas11 O modo de rela ção da alma com as funções vitais é um aspec CordioliCapitulo01indd 6 04092018 190829 Psicoterapias 7 to da teoria platônica que fica por clarificar o que contribuirá para a crítica dirigida por Aris tóteles O tratado De anima de Aristóteles apre senta a mais completa teoria sobre a natureza e as funções da alma da Antiguidade fornecendo uma síntese entre a noção da alma como princí pio de movimento e como princípio responsá vel pelos diferentes tipos de experiência dos se res vivos inclusive a experiência mental huma na em suas diversas manifestações Para Aris tóteles a alma é um tipo peculiar de natureza um princípio que dá conta a mudança e repou so nos corpos vivos plantas animais não hu manos e seres humanos8 A teoria aristotélica das entidades é carac terizada pelo hilomorfismo isto é pela relação entre um princípio formal e um princípio ma terial16 e a alma não é exceção todos os cor pos vivos devem ser compreendidos de acordo com essa relação A alma é portanto o princí pio formal de todo o corpo vivo determinan do até mesmo sua função distintiva A função de uma entidade é aquilo que a torna comple ta Por exemplo para Aristóteles a função do ser humano é ser eudaimon termo que normal mente se traduz por felicidade e o Estagirita define essa função como uma atividade da al ma engendrada de acordo com a virtude17 Na linha do que Platão já havia feito Aris tóteles também parte de uma divisão da alma No entanto não fala de partes e sim de potên cias dunameis faculdades ou capacidades que colocam em movimento um conjunto de fun ções vitais que organismos deste ou daquele ti po naturalmente realizam Essas potências ou capacidades da alma são a nutritiva comum a plantas animais não humanos e seres huma nos a perceptiva e a desiderativa animais não humanos e seres humanos e a locomotiva e raciocinativa seres humanos Cada uma des sas potências pressupõe a potência situada em um nível mais abaixo ou seja a interdependên cia das potências constituintes da alma implica que seu exercício demanda algum tipo de vín culo ao corpo8 Em suma para Aristóteles e ao contrário do que acontecia para Platão a alma não tem existência além do corpo e atividades mentais como a percepção e até o pensamento são pas síveis de explicação por meio dos mesmos prin cípios que explicam os fenômenos naturais11 Isso implica também que não há lugar para a imortalidade pessoal em Aristóteles pois a al ma não sobrevive à separação do corpo Um aspecto interessante relacionado com a teoria aristotélica da alma aparece no tratado intitulado Poética3 e diz respeito à noção de ca tarse a qual Aristóteles associa a experiências de tipo religioso ou médico A catarse é uma maneira de purificação da alma produzida pela descarga de uma dor emocional gerada por um trauma ou acontecimento trágico Diferentemente do que se possa pensar es sa purificação não constitui apenas uma liber tação emocional Uma vez que as emoções pa ra Aristóteles são respostas de base cognitiva à experiência e ocupam um lugar central em sua ética a catarse desencadeia um processo de compreensão dos acontecimentos que se revela psicológica e eticamente benéfico3 Sua doutri na da catarse ensinava por exemplo que os te mores podem ser transferidos ao herói da tra gédia ideia que muito mais tarde veio formar uma das teses da psicanálise e da terapia do jo go Como podemos perceber devemos muito conceitos que são utilizados nas psicoterapias modernas aos filósofos socráticos Os estoicos No que se refere às raízes das psicoterapias um destaque especial deve ser feito aos filósofos es toicos Para eles as emoções negativas resulta vam de erros de julgamento e uma pessoa sá bia era aquela que não deixava que as emoções guiassem seu comportamento tentando viver em sintonia com o que o destino oferecesse e dessa forma em harmonia com as leis da na tureza o cosmos Para Epicteto 55135 dC o que perturba as pessoas não são as coisas em si mas o que elas pensam sobre as coisas Os estoicos pregavam a indiferença apatia como caminho para se ter uma vida feliz e a serenida de como atitude tanto diante de tragédias co mo de coisas boas Uma pessoa que agisse dessa forma atingiria a perfeição intelectual e moral e se tornaria um sábio Para Epicteto um exem plo sábio teria sido Sócrates que mesmo diante da possibilidade de fugir depois de ter sido jul gado e condenado à morte se recusou e com calma enfrentou a morte por envenenamento ingerindo cicuta afirmando por fim que mais se prejudica aquele que comete do que quem sofre a injustiça proferindo segundo Platão CordioliCapitulo01indd 7 04092018 190829 8 Cordioli Grevet Orgs tranquilamente suas últimas palavras Críton devo um galo a Asclépio ie Lembrate de saldar minha dívida A escola cognitiva moderna se apropriou da afirmativa de Epicteto utilizando sua máxima e tendo como princípio que as emoções pertur badoras são decorrentes de erros de avaliação e percepção levam a crenças disfuncionais e quando corrigidas possibilitam o desapareci mento dos sintomas Também terapias da ter ceira onda cognitivista como a de aceita ção e compromisso preconizam que pensamentos estoicos são úteis para enfrentar momentos di fíceis que não podemos modificar Além dis so em suas reuniões os Alcoólicos Anônimos AA utilizam a Oração da Serenidade que diz Senhor daime a serenidade para aceitar as coisas que eu não posso mudar coragem para mudar as coisas que eu possa e sabedoria para que eu saiba diferenciar entre uma e outra vi vendo um dia a cada vez aproveitando um mo mento de cada vez aceitando as dificuldades como um caminho para a paz Idade Média A Idade Média é normalmente tida como um período de trevas e de uma ignorância avessa à inquirição racional promovida por seu vínculo à mundividência cristã Tais posições negligen ciam o fato de se tratar de uma época plural que atravessa cerca de 1500 anos a época em que nos encontramos tem apenas 500 anos durante a qual surgiram diversas e sofisticadas posições em todos os campos do conhecimento humano algumas das quais são objeto de inte resse e de discussão ainda hoje A psicologia é um desses campos no sen tido clássico de inquirição acerca da natureza e da função da psique próximo daquilo a que atualmente se chama de filosofia da mente Um exemplo da relevância atual do pen samento medieval para a psicologia e para a filosofia da mente é a noção de intencio nalidade a ideia de que o pensamento ou a consciência são sempre a respeito de algo e envolvem um tipo de relação que não é meramente redutível às relações físicas Tal noção foi desenvolvida por Tomás de Aquino 12251274 e contribuiu de forma de cisiva para o desenvolvimento de uma das cor rentes filosóficas mais influentes do século XX a fenomenologia primeiro com sua apropria ção por parte de Franz Brentano 18381917 no quadro de sua psicologia descritiva e posteriormente por Edmund Husserl 1859 19381819 É também importante ressaltar que Agostinho foi um pensador profundamen te original e importante para a construção do conceito de mente por ter forjado o conceito de mundo interior O texto de referência no campo das inqui rições a respeito da natureza da psique foi pa ra os autores medievais o De anima o tratado de psicologia de Aristóteles No entanto foram Agostinho de Hipona 354430 dC e Boécio 480525 dC autores de influência platônica e neoplatônica que introduziram duas noções dualistas cruciais para compreender a psicolo gia da Idade Média e que ainda ressoam nos de bates atuais relativos à constituição da pessoa humana respectivamente a noção de que a alma humana é uma substância racional que governa o corpo e a noção de que uma pessoa é uma substância individual de natureza racio nal20 Aristóteles foi redescoberto na Alta Idade Média séculos XI a XIII uma retomada que foi promovida pelas novas traduções de seus trabalhos para o latim entre as quais do De anima e isso contribuiu para o desenvolvi mento da pesquisa em psicologia nomeada mente por intermédio de autores da escolásti ca como Tomás de Aquino A perspectiva mais naturalista do texto aristotélico levou os autores medievais profundamente vinculados a cren ças religiosas e dependentes de doutrinas teoló gicas a respeito da criação da alma por Deus e de sua eternidade a debates cujo objetivo era reconciliar a recémredescoberta teoria aristo télica da alma com o dualismo agostiniano no meadamente no que diz respeito à determina ção da natureza das pessoas humanas20 Conforme já mencionado a obra de Aris tóteles é caracterizada pelo hilomorfismo isto é para ele todas as entidades são constituídas pelo binômio matériaforma dois aspectos de uma e apenas uma entidade De modo simpli ficado uma pessoa é composta por um corpo sua matéria e uma alma a forma que faz ela ser aquilo que é Nesse sentido parece que alma e corpo são dependentes entre si e que a primeira não pode sobreviver sem o segundo Tal perspectiva tendencialmente monista parece incompatível com o dualismo de inspi CordioliCapitulo01indd 8 04092018 190829 Psicoterapias 9 ração agostiniana de acordo com o qual alma e corpo são elementos distintos e as pessoas são almas que usam os corpos A necessidade de compatibilização da perspectiva aristoté lica com as doutrinas teológicas produziu um conjunto diferenciado de teses a respeito dessa questão Boaventura afirma o dualismo alma corpo ao mesmo tempo que defende que a al ma resulta da composição de forma e matéria espiritual Já Tomás de Aquino adota uma posição dis tinta da posição de Boaventura preservando o hilomorfismo aristotélico ao mesmo tempo que afirma a subsistência da alma independente mente do corpo embora de modo incompleto pois a alma é apenas a forma da matéria corpo Para compatibilizar o hilomorfismo com o dua lismo Tomás de Aquino defende que as pessoas são entidades possuidoras de almas racionais e que a alma é uma entidade subsistente por si mesma No entanto alma em si mesma en quanto forma separável do corpo não constitui uma pessoa já que esta é uma entidade psi cofísica e sim uma espécie de subjetividade mínima20 Idade Moderna Racionalismo Filosófico e Descartes Os desenvolvimentos medievais das teses de Aristóteles particularmente por parte da esco lástica foram sujeitos à crítica no Renascimen to séculos XIV a XVI coincidindo com um interesse renovado em Platão e seus seguidores Essas críticas foram acompanhadas por descobertas revolucionárias nas ciências natu rais entre as quais se destacam o heliocentris mo de Nicolau Copérnico 14731543 e as ex periências de Galileu Galilei 15641642 que conduziram a dúvida cética acerca do real que orienta tradicionalmente a iniciativa científica à sua mais radical implicação ontológica pon do em questão tudo aquilo que até ali era tido como verdadeiro O que mudou com Galileu não foi só a ciên cia mas a própria articulação fundamental que guiava a compreensão da realidade Ao apontar o telescópio para os céus Galileu descobriu que diferentemente do que afirmavam antigos e medievais o céu não era imutável as suas verdades não eram eternas Diferentemente do que acontecia na Grécia Antiga o ser não é mais aquilo que aparece por si mesmo sem necessidade de interferência mas um proces so em devir contínuo no qual ele mesmo nunca aparece sendo representável em relações mate máticas obtidas por intermédio da experiência e de dispositivos de medição14 Isso conduziu à chamada matematização do real a qual go verna ainda hoje a visão científica do mundo e a uma recusa dos princípios imateriais de orga nização e de causação que orientam a escolásti ca de inspiração aristotélica O projeto filosófico de René Descartes 15961650 deve ser compreendido no contex to dessa revolução O projeto cartesiano é por tanto um projeto de refundação das ciências e da própria metafísica e o texto mais represen tativo desse ímpeto refundador cartesiano são as Meditações sobre filosofia primeira21 No cen tro desse projeto encontrase a dúvida hiper bólica cuja finalidade é suprimir a mais inaba lável das certezas a respeito da realidade e de seu conhecimento desde os dados dos senti dos à geometria e à aritmética permitindo assim a reconstrução das ciências a partir de novas fundações21 A dúvida cartesiana constitui a resposta filosófica à nova realidade revelada pe las descobertas de Galileu uma realida de descoberta por uma nova ciência para a qual todas as mudanças de estado dos corpos são explicáveis por meio de rela ções mecânicas O ponto arquimediano sobre o qual se apoia tal reconstrução do conhecimento é o Cogito ergo sum ie Penso logo existo22 Não obstante a sua crítica à filosofia da Idade Média nomeadamente à escolástica a obra de Descartes foi influenciada quer ele reconheça ou não pela obra de Agostinho de Hipona De fato o Cogito ergo sum descobre um preceden te na filosofia medieval a saber no Si fallor sum ie Se me engano é porque existo de Agos tinho23 Para Descartes posso duvidar da existência de tudo exceto de que eu próprio existo uma vez que o duvidar tal como o crer o imaginar o conhecer etc é uma modalidade do pen samento e este último tem de existir em uma substância ou coisa pensante res cogitans que os subjaz que é o seu subiectum o seu sujeito e reúne tais processos em uma unidade cons ciente de si mesma em um eu ego Em oposi ção à coisa pensante como seu obiectum co CordioliCapitulo01indd 9 04092018 190829 10 Cordioli Grevet Orgs mo seu objeto como aquilo que faz frente e re siste ao ego e à dúvida está o mundo carac terizado como coisa extensa res extensa cuja natureza é a extensão21 Essa é muito resumidamente a base do dualismo cartesiano de acordo com o qual é possível a mente e o corpo existirem de forma independente uma vez que são substâncias de natureza distinta Para garantir que a mente é de fato uma natureza distinta do corpo e que suas percepções são verdadeiras e não apenas ilusões produzidas pela própria atividade Des cartes vêse obrigado a introduzir uma terceira instância um Deus omnipotente e infinitamen te bom que funda o ser das substâncias finitas21 Apesar de ser uma visão dualista que con cebe a mente como algo totalmente separado do corpo cérebro a visão cartesiana foi revo lucionária pois permitiu que todos os aspec tos da vida mental consciente inclusive senti mentos desejos pensamentos e comportamen tos pudessem vir a ser estudados pelo método científico24 O dualismo cartesiano é o mais importante representante do interacionismo o qual afirma que mente e corpo são fundamentalmente dis tintos mas capazes de interagir um sobre o ou tro25 O problema central do dualismo intera cionista reside justamente na determinação do modo de relação entre mente e corpo Descar tes aborda essa questão em seu Tratado sobre as paixões da alma dizendo que os seres hu manos têm uma alma racional capaz de receber sensações a partir do cérebro agindo por sua vez sobre o cérebro e controlando o corpo por meio da vontade A relação entre mente e cére bro é mediada pela glândula pineal localizada no centro do cérebro26 Essa tese foi já rejeitada em termos científi cos permanecendo em aberto esclarecer que ti po de nexo causal possibilitaria a interação en tre a mente uma entidade não física do ponto de vista cartesiano e o corpo uma entidade física sem violar as leis da física25 No entan to isso abriu portas para o estudo das manifes tações da mente como parte do mundo físico as quais devem ser entendidas e estudadas le vandose em conta as leis naturais Descartes é considerado um dos principais filósofos do racionalismo corrente filosófica que privilegia a razão como principal instru mento para se chegar ao conhecimento verda deiro Como critério de verdade propôs em seu Discurso do método a ideia clara e distinta Se eu duvido eu penso se penso logo existo o famoso Cogito ergo sum Seu racionalismo afir ma que tudo o que existe tem uma causa inteli gível mesmo que essa causa não possa ser de monstrada Contudo como caminho para o co nhecimento dá prioridade à introspecção em detrimento da experiência Considera a dedu ção um método superior à indução Seu racio nalismo filosófico teve influência marcante nas terapias que usam a introspecção o raciocínio lógico e a dedução como métodos para se che gar ao conhecimento e à cura Sua influência é particularmente importante na terapia cog nitiva sobretudo na terapia racional emotiva que acredita no poder da razão e da lógica e no exame das evidências questionamento socráti co para corrigir crenças disfuncionais e con sequentemente alterações emocionais e com portamentais Em relação ao estudo da mente e da psico logia a principal vantagem que essa mudança paradigmática trouxe foi possibilitar que os es tudiosos da mente pudessem manter suas con vicções religiosas sem perderem a objetivida de científica Os fenômenos mentais saudáveis e patológicos passaram a ser considerados co mo resultantes de uma relação intrincada e in separável que a mente tem com o corpo físico O comportamento humano passou a ser enten dido como determinado pelo livrearbítrio re sultante de uma luta constante entre a vontade e a capacidade reflexiva As afecções mentais pas saram a ser entendidas como alterações neuro lógicas que afetam funções na esfera da men te e da subjetividade Dessa forma um paciente com esquizofrenia não seria mais considerado possuído por uma entidade sobrenatural quan do referia estar ouvindo vozes do demônio tal fenômeno passou a ser entendido como um sin toma neurológico alucinação auditiva Embora o trabalho filosófico de Descartes tenha ocorrido em um período histórico que resultou no abandono gradual da visão teo lógica e dogmática em vários campos do co nhecimento a já referida Revolução Científi ca 15431687 seu método só foi introduzido no estudo da psicologia no final do século XIX dando origem à psicologia científica por opo sição à psicologia filosófica que usava a intros peção no estudo das funções mentais No âmbito da psicoterapia a nova metodo logia teve forte influência no estudo do com CordioliCapitulo01indd 10 04092018 190829 Psicoterapias 11 portamento humano e posteriormente no de senvolvimento da terapia comportamental que adotou muitos de seus princípios O empirismo inglês A partir do século XVIII uma escola filosófi ca ganhou prestígio na Inglaterra o empiris mo O empirismo defendia a experiência como fonte de todo o conhecimento e era representa do principalmente pelos filósofos John Locke 16321704 e David Hume 17111776 Locke que também estudou medicina e ciências naturais postulou que a mente era uma tábua rasa ou folha em branco onde se riam gravadas as sensações e percepções cap tadas do mundo externo pelos sentidos27 Pa ra Locke a experiência levava ao aprendizado que era a fonte do conhecimento humano o qual advinha da experiência captada pelos sen tidos Um dos maiores contributos de Locke para a psicologia e a filosofia da mente foi sua teoria da identidade pessoal Para Locke o ser humano distinguese da pessoa uma vez que a constituição física do humano não é suficiente para dar con ta da pessoa a qual apresenta característi cas de ordem psicológica em particular a memória que criam a continuidade tem poral das experiências subjetivas A cons tituição física permite que sejamos identi ficados como seres pertencentes à espécie humana mas não como pessoas2728 A perspectiva de Locke assentase em sua concepção de identidade na qual substância ser humano e pessoa assumem significados dis tintos falamos de uma e a mesma massa quan do seus átomos permanecem em conjunto fa lamos de um e o mesmo ser humano ou de um e o mesmo animal quando estamos na presença de um mesmo corpo vivo organiza do cuja vida é transmitida às diferentes partes de matéria que o constituem e falamos de uma e a mesma pessoa quando nos referimos a um ser possuidor de razão e reflexão capaz de cons ciência de si isto é capaz de ser para si mes mo uma e a mesma coisa pensante em diferen tes tempos e lugares27 A identidade pessoal é constituída para Locke por essa mesmidade de consciência Hume também contribuiu para a teoria da identidade pessoal mas não parte do princípio como faz Locke de que a identidade pessoal é algo real fundada em uma substância Para Hume pelo contrário a identidade pessoal é uma ficção resultante de ilusões do pensar fun dadas nos princípios gerais de associação que estão na base da sua teoria do conhecimento29 particularmente da crítica ao princípio de cau salidade29 De acordo com Hume a conexão necessá ria constitutiva do princípio de causalidade entre um acontecimento A causa e um acon tecimento B efeito não pode ser descoberta a partir de dados empíricos Aquilo a que nós as sistimos na experiência é apenas a sucessão de acontecimentos primeiro A e depois B sem que a conexão entre ambos seja dada de mo do necessário Ilustrando sua posição de fundo Hume diz que o fato de o Sol ter nascido hoje e de o ter feito todos os dias até este momen to não nos permite afirmar que é absolutamen te necessário que nasça amanhã30 Esses são os termos gerais daquilo que ficou conhecido em epistemologia como o problema da indução ou da inferência indutiva Assim embora todos os nossos raciocínios acerca daquilo que existe factualmente estejam fundados na experiência passada a afirmação de um nexo causal e portanto da necessidade futura da conexão entre A e B é efeito daquilo a que Hume chama de costume30 O costume consiste em uma disposição do entendimento humano para inferir a existência de objetos a partir da experiência repetida de uma conjunção de acontecimentos na qual um acontecimento efeito se segue ao outro cau sa O costume é um princípio da natureza hu mana uma espécie de instinto natural que não encontra fundamento último nas coisas Isso significa que o raciocínio provável é o único meio e descobrirmos algo a respeito do mundo obrigandonos a regressar sistematicamente à experiência para testar nossas hipóteses O mesmo pode ser afirmado relativamente a uma noção de identidade pessoal que se as sente em uma concepção do ego como substân cia ver posição cartesiana e não apenas como uma ilusão que reúne um conjunto de expe riências mentais aparentemente similares ain da que distintas entre si Hume é um proponen te da seguinte posição a identidade pessoal se constitui um conjunto de experiências assentes no costume29 A convicção a respeito da reali dadesubstancialidade da identidade pessoal CordioliCapitulo01indd 11 04092018 190830 12 Cordioli Grevet Orgs nasce dessa identidade ficcional criada a par tir do costume a expectativa de regularidade constitutiva do aparato cognitivo humano Hume abriu assim a possibilidade de que todo conhecimento pudesse ser repensado e modificado por uma nova experiência como ocorre nas psicoterapias bemsucedidas Tais teorias foram utilizadas na década de 1950 por psicoterapeutas como justificativa para a indi cação de abordagens psicoterapêuticas pro cessos que seriam curativos por representarem uma nova experiência emocional corretiva Immanuel Kant e a crítica transcendental O projeto crítico de Immanuel Kant 1724 1804 tem início com a Crítica da razão pu ra Kant 1994 e é parcialmente inspirado pe las teses apresentadas por Hume acerca do co nhecimento Embora Kant tenha reconhecido a pertinência das objeções de Hume ao princípio de causalidade em particular quando dirigidas aos dogmas do racionalismo afirmando inclu sive que este o havia despertado do seu sono dogmático ele não se identificou com a res posta cética encontrada por Hume no costume uma vez que ela parecia pôr em questão a vali dade de todo o conhecimento31 Assim Kant dispõese a realizar uma críti ca da faculdade cognitiva de modo a evitar a tendência da razão humana a fazer afirmações que transcendem aquilo que é permitido pela experiência isto é a fazer afirmações de tipo metafísico Para tanto decide realizar uma re volução copernicana no modo de olhar para a atividade cognitiva assumindo a perspectiva transcendental a qual consiste na determina ção das condições de possibilidade de todo o conhecimento com origem na experiência in dependentemente de considerações de ordem metafísica31 O primeiro passo nesse processo foi a dis tinção entre conhecer uma operação da facul dade do entendimento e pensar uma operação da faculdade da razão Kant 1994 Bxxvxx vii vinculando o primeiro aos dados espaço temporais isto é aos fenômenos recebidos pe la sensibilidade e o segundo à atividade espe culativa que ultrapassa os limites da experiên cia possível A consequência da posição kantiana no que diz respeito ao conhecimento com origem na experiência é uma espécie de relação bidire cional só há experiência e consequentemen te conhecimento para o ser humano porque seu aparato cognitivo estabelece as condições de aparecimento dos objetos da experiência No entanto esse conhecimento não é arbitrá rio porque os fenômenos se dão no espaço e no tempo isto é sensivelmente uma vez que o ser humano não cria a realidade sendo apenas ca paz de a acolher de acordo com os limites im postos por sua constituição mental31 Tal perspectiva tem implicações na psicolo gia e no conhecimento da alma reunindo em um só o problema da relação entre mente e cor po e a questão da identidade pessoal Tal como acontece em Descartes também em Kant to dos os pensamentos ou representações devem ser acompanhados pelo ego constituindose assim a unidade da autoconsciência Contudo essa unidade é em Kant apenas uma condição formal do conhecimento não sendo possível afirmar com certeza cognitiva sua existência como substância como uma res cogitans conforme em Descartes31 Podemos contudo pensar e dar sentido a essa unidade pessoal como possibilidade cuidando sempre para não chegarmos a conclusões a seu respei to que confundam conhecer e pensar e que as sim ultrapassem os limites impostos pela expe riência isto é conclusões metafísicas acerca de sua existência Esse tipo de posição crítica do conhecimen to da identidade pessoal é importante pois per mite em psicoterapia manter uma posição de neutralidade relativa sobre as teorias predomi nantes que fundamentam seu funcionamento Tal tipo de visão não deixa de ser uma releitu ra da máxima socrática Só sei que nada sei a qual também deveria ser a postura crítica de to do psicoterapeuta O positivismo A partir do século XIX a abordagem filosófi ca e científica dos fenômenos mentais como a percepção a memória a inteligência e a aqui sição do conhecimento também passaram por uma mudança profunda com o abandono gra dual do método analítico e da introspecção Defendendo ideias ainda mais radicais que os empiristas ingleses positivistas como Augusto Comte 17981857 passaram a defender que tudo deveria ser provado e verificado inclu CordioliCapitulo01indd 12 04092018 190830 Psicoterapias 13 sive a existência de Deus taxando aquilo que não pudesse ser verificado como um conheci mento teórico e não científico Os positivistas se opunham ao idealismo e ao romantismo que valorizava as emoções e a subjetividade e pro punham como único método geral de aquisi ção do conhecimento a observação dos fenô menos e a primazia da experiência única capaz de produzir a partir dos dados concretos po sitivos a verdadeira ciência subordinando a imaginação à observação e tomando como base apenas o mundo físico ou material O positivismo coincidiu com um momen to de grande sucesso da ciência e do mé todo científico os quais ajudaram a des vendar vários questionamentos da física da química e da biologia Por exemplo nessa época Darwin propôs sua teoria sobre as origens e a evolução das espécies com base em suas observações cuidado sas afrontando com argumentos científi cos as teorias criacionistas defendidas pe la Bíblia há milênios A metodologia que teve tanto sucesso nas ciências naturais também passou a ser empregada na me dicina ajudando a desvendar as funções dos diferentes órgãos e revelando as cau sas das doenças e seu tratamento Esse clima favorável criou as condições pa ra o surgimento da psicologia científica que se deu com a fundação do primeiro laboratório de pesquisa na área criado por Wilhelm Wundt 18321920 em 1879 na Alemanha Wundt foi um dos primeiros psicólogos de orientação científica que seguiam a teoria evolucionista de Darwin defendendo que o comportamento humano e o comportamento animal eram re gidos pelas mesmas leis naturais contrariando a visão idealista e superior que se tinha do psi quismo humano anima nobili ou animal racio nal sobre as demais espécies anima vili ou ir racionais Tal concepção abria a possibilidade de aplicar em humanos conhecimentos adquiri dos em experimentos com animais Um bom exemplo prático dessa transposição de acha dos laboratoriais em animais para a clínica foi o surgimento da psicoterapia comportamental que baseava suas técnicas nos experimentos de condicionamento aprendido em cães realizados por Pavlov Fenomenologia O termo fenomenologia surgiu no século XVIII aparecendo por exemplo nas obras de Immanuel Kant e de Georg Wilhelm Friedrich Hegel 17701831 No entanto a fenomenolo gia assume no século XX outra dimensão che gando a tornarse para alguns de seus propo nentes não apenas uma parte da filosofia mas a própria prática filosófica Edmund Husserl foi o fundador do movi mento fenomenológico inspirandose na psi cologia descritiva de Franz Brentano seu pro fessor Para Brentano os fenômenos são tu do aquilo que se dá à consciência fenômenos mentais isto é os atos de consciência voli ções percepções juízos emoções etc e seus conteúdos e fenômenos físicos isto é objetos da percepção externa como cores ou formas De acordo com Brentano todo fenômeno men tal ou ato de consciência se dirige a um objeto e nisso se constitui a intencionalidade da cons ciência a qual constitui o centro da sua psico logia descritiva noção que como já vimos tem sua origem em Tomás de Aquino A psicologia descritiva tinha como tarefa definir e classifi car os diferentes tipos de fenômenos mentais18 A fenomenologia husserliana surge como resposta ao desafio epistemológico colocado pelo positivismo no campo das ciências parti cularmente no campo da psicologia Em nos sa atividade cognitiva usamos formas lógicas como o princípio de identidade e o princípio de não contradição que servem de fundamento e de garantia para a validade do conhecimento Mas quais são os fundamentos das próprias for mas lógicas19 Será que são meras generaliza ções de relações particulares dadas empirica mente meras representações simbólicas Se assim for com que legitimidade podemos afir mar que são necessariamente válidas para to dos os casos e não apenas para os casos concre tos a partir dos quais foram abstraídas A proposta fenomenológica de Husserl procura determinar as fundações experimen tais das condições de possibilidade de todo ato cognitivo de modo que descobre antecedentes em Descartes e Kant Husserl se propõe a rea lizar uma refundação radical do conhecimento o que exigirá um conjunto de tarefas infinitas de análise no campo da consciência Isso requer uma mudança radical de ponto de vista impli cando aquilo a que Husserl seguindo Descar tes chama de epoché uma suspensão dos juí CordioliCapitulo01indd 13 04092018 190830 14 Cordioli Grevet Orgs zos a respeito do mundo e da crença na exis tência do mundo que põe entre parênteses tudo aquilo que existe32 Nessa perspectiva encontrase a redução fe nomenológica um processo que reconduz toda experiência à esfera de certeza da subjetividade transcendental ao ego transcendental Tal co mo em Descartes apenas o eu pensante a cons ciência resiste à dúvida mas diferentemente de Descartes e de forma semelhante a Kant o ego transcendental não é uma substância é apenas uma estrutura formal e vazia de conteúdo que acompanha todos os atos conscientes19 A fenomenologia virase portanto para a vida da consciência propondo estabelecerse como uma ciência da consciência das estrutu ras intencionais dos atos conscientes e de seus correlatos objetivos Diferentemente do que acontecia em Descartes e em seu dualismo res cogitansres extensa a fenomenologia supera a divisão sujeitoobjeto por meio da intencio nalidade concebida como uma unidade entre o sujeito os atos conscientes e os objetos des ses atos Tal unidade constitui a vivência inten cional ou dito de outro modo o fenômeno19 o qual deve ser compreendido no modo de seu aparecimento à consciência evitando a impo sição de pressupostos de qualquer natureza O objetivo é reavivar nosso contato com a rea lidade apelando a um retorno à vida do sujeito vivo a uma experiência humana concreta que tente captar a vida enquanto a vivemos Sob tal ponto de vista a fenomenologia é a ciência das vivências ou dos conteúdos de cons ciência dos indivíduos e desse modo ela defi ne a psicologia moderna Essa ciência baseiase na intencionalidade de acordo com a qual todo fenômeno psíquico se refere a um conteúdo se dirige a um objeto19 A consciência é portanto um modo de referência a um conteúdo Inde pendentemente da existência real do objeto do ato intencional o próprio ato tem um conteúdo e um sentido abrese assim um novo domí nio de análise o dos significados dos atos cons cientes e de seus conteúdos suas interconexões e leis vinculativas como é o caso dos princípios lógicos de identidade e de não contradição Além disso uma vez que todo ato conscien te é acompanhado de sentido todo ato cons ciente é dotado por uma intenção de comuni cação explícita ou implícita de um falante para um ouvinte Superando a dicotomia sujeito ob jeto todo ato intencional todo fenômeno mostra ser constitutivamente intersubjetivo funcionando como signo de vivências que ma nifestam a intenção do falante ao ouvinte19 Embora com algumas diferenças que não poderemos abordar aqui podese dizer que es sa estrutura correlacional se estende à esfera da subjetividade por um lado temos o ego trans cendental meramente formal e vazio de con teúdo que reúne os diversos atos de consciên cia no feixe da vida consciente por outro lado temos o ego empírico o sujeito com seus con teúdos experienciais significativos o qual é pa ra si próprio um fenômeno estando exposto assim enquanto sujeito concreto à análise fe nomenológica32 A fenomenologia fornece acesso privilegiado à experiência vivida na primeira pessoa na qual a subjetividade deve ser compreendida como in separavelmente envolvida no processo de cons tituição da objetividade Tal questão bem como o lugar central da intencionalidade na fenome nologia foi sujeita a debate e reformulação pe las diferentes figuras do movimento fenomeno ló gico entre as quais se encontram Martin Heidegger 18891976 responsável pela vira gem existencial da fenomenologia Max Scheler 18741928 JeanPaul Sartre 19051980 Emmanuel Lévinas 19051995 Maurice Mer leauPonty 19081961 e Hannah Arendt 19061975 Os conceitos da fenomenologia foram utili zados por Karl Jaspers 18831969 psiquiatra e filósofo alemão para criar um sistema descri tivo da psicopatologia com base em princípios existencialistas de se colocar na pele do outro no intuito de perceber a realidade a partir de sua perspectiva Além disso usou a fenomeno logia para dar forma psicopatológica a fenôme nos mentais abstratos em seu famoso tratado Psicopatologia geral33 O existencialismo e a fenomenologia fo ram importantes influências para Carl Rogers 19021987 desenvolver uma forma de psico terapia humanística centrada no aqui e agora do paciente e que usava elementos de psicoedu cação Além disso a correlação apoiada no bi nômio falanteouvinte é central para a fenome nologia e revelouse particularmente relevante para a terapia psicanalítica tendo sido apro priada e desenvolvida por Melanie Klein 1882 1960 Donald Winnicott 18961971 Wilfred Bion 18971979 entre outros psica nalistas CordioliCapitulo01indd 14 04092018 190830 Psicoterapias 15 Pósmodernismo Essas ideias pavimentaram a estrada para o que viria a ser denominado pósmodernidade e que se consolidou como corrente filosófica a partir da segunda metade do século XX para a qual contribuíram filósofos como Friedrich Nietzsche 18441900 Martin Heidegger 18891976 Michel Foucault 19261984 e Jacques Derrida 19302004 Michel Foucault é particularmente relevan te para uma apreciação histórica do campo da psicoterapia considerando suas teses relativas à constituição das subjetividades as quais par tem justamente da superação da dicotomia su jeitoobjeto e do dualismo cartesiano Efetivamente a virada existencial no cam po da fenomenologia levada a cabo por Heidegger inscreveu a estrutura correla cional constitutiva do fenômeno previa mente limitada à esfera da consciência no campo das relações materiais de um su jeito situado no mundo imerso em uma cultura em uma linguagem em discursos em normas em um tempo e em um lugar Assim a história e a política tornamse fundamentais para uma compreensão da subjetividade e de sua constituição Em vez de se fundar em princípios mera mente formais como por exemplo uma sub jetividade transcendental o sujeito pósmo derno é um sujeito encarnado passível de ser controlado e administrado por diversas técni cas de sujeição à norma As dicotomias mentecorpo e sujeitoobje to são superadas por uma correlação que ma nifesta esses tópicos fenomenicamente em suas codependência e interrelação isto é em sua constituição mútua Agora abrese espaço para analisar essa mesma correlação desconstruíla em seus elementos e questionála em seu sen tido Essa correlação traduzse no fato de estar vivo na própria vida E é essa vida que se torna o foco da inquirição Uma das figuras de tal cor relação abordada por Foucault em sua obra é o sexo nomeadamente o sexo a partir do século XVII até nosso tempo momento em que para o autor a Idade da Repressão tem origem34 A tese moderna ou tradicional sobre a re pressão do sexo assentase na premissa da ne cessidade de recondução de toda a força de tra balho dissipada futilmente para o trabalho no contexto de um modo de produção capitalista Consequentemente os prazeres advenientes do sexo deveriam ser reduzidos a um mínimo ca paz de garantir a reprodução da força de traba lho34 Daí teria resultado a remissão do sexo ao quarto do casal uma certa injunção de silêncio sobra a prática sexual e a associação da trans gressão da norma a toda atividade sexual que excede o horizonte reprodutivo34 Entretanto Foucault apresenta uma hipóte se alternativa ou complementar à hipótese re pressiva tradicional E se a repressão do sexo e sua proibição fora dos domínios reconhecidos pela norma estivessem acopladas à sensação de transgressão produzida pelo mero falar sobre sexo E se os discursos sobre o sexo trouxessem consigo certa subversão relativamente ao poder instituído certa promessa de revolta de liber dade e de felicidade por vir34 Em vez de mera repressão teríamos um re forço recíproco de repressão e de discurso so bre o sexo um reforço recíproco de poder e de sexo ou melhor de poder e de discursosaber sobre sexo Para Foucault parece mesmo haver em nossa sociedade uma superabundância de discurso sobre sexo de tal forma que já não há quem o escute tendo o ouvinte de ser procura do também ele no mercado de trocas e pago por seus serviços34 Temos aqui portanto o aparente parado xo de uma sociedade composta por indivíduos que se revoltam contra a opressão falando sobre sexo e que em virtude de sua loquacidade aca bam falando sozinhos votados a um isolamen to extremo e cada vez mais expostos e sujeitos ao controle dos dispositivos de subjetivação do poder vigente O objetivo primordial de Fou cault não é portanto demonstrar a falsidade da hipótese repressiva mas reconsiderála em uma economia dos discursos sobre sexo34 A valorização do discurso sobre o sexo isto é sua transformação em medida das rela ções sociais teve efeitos de deslocamento e de intensificação do próprio desejo34Isso não só estendeu o domínio daquilo que pode ser dito sobre o sexo mas constituiu dispositivos autô nomos de produção discursiva que se estende ram às mais diversas áreas do saber ampliando as relações de poder sobre os prazeres e as téc nicas de sua administração Para Foucault da medicina e da psiquiatria passando pela etiologia das doenças mentais e terminando na justiça penal34 foram desenvol CordioliCapitulo01indd 15 04092018 190830 16 Cordioli Grevet Orgs vidos conjuntos de controles sociais e de admi nistração fundamentados na produção não de um silêncio como na hipótese repressiva mas de muitos silêncios que servem de outros tan tos pontos de apoio aos mais diversos discursos e a seus processos de normalização e institucio nalização34 Foucault chama de biopolítica esse do mínio aberto pela administração da vida e por sua sujeição ao cálculo um domínio no qual o binômio podersaber se constitui em agente de transformação da vida humana34 Diz Fou cault O homem durante milênios permane ceu o que era para Aristóteles um animal vivo e além disso capaz de existência política o ho mem moderno é um animal em cuja política sua vida de ser vivo está em questão34 Surgiu dessa forma no campo da medici na uma série de patologias orgânicas funcio nais e mentais com origem nas práticas sexuais bem como a classificação e a gestão dos praze res Não se impõe o silêncio sobre o sexo mas o controle das manifestações de prazer e da vida por via da produção de discursos e da dissemi nação dos diferentes silêncios O discurso sobre sexo e seu ímpeto normalizador procura incor porar nos indivíduos e em seus comportamen tos aquilo que neles escapa a toda a norma por via de um mecanismo de dupla incitação o po der persegue o prazer e afirmase neste último o prazer intensificase por escapar ao poder ao mesmo tempo que se realiza no exercício des te último34 Tal visão filosófica propiciou o aparecimen to de movimentos alternativos dentro da saú de mental a partir da década de 1960 servin do como base teórica para o surgimento da antipsiquiatria movimento que se opunha fe rozmente ao diagnóstico psiquiátrico aos tra tamentos farmacológicos às internações e aos manicômios Esse movimento considera que as doenças mentais não existem e são apenas ró tulos fictícios utilizados para excluir indivíduos com comportamentos indesejados do convívio social Tal concepção social das doenças men tais serviu como catalisadora de importantes mudanças na abordagem em saúde mental co mo a desinstitucionalização a ressocialização e o atendimento concentrado em centros multi disciplinares e comunitários apoiados por in ternações de curta duração em hospitais gerais Além disso ideias libertárias desses mo vimentos ajudaram a corrigir erros histó ricos fazendo a Associação Americana de Psiquiatria 1972 e a Associação Ameri cana de Psicologia 1973 retirarem o ró tulo patológico da homossexualidade To davia quando os defensores desse tipo de ideias tiveram a oportunidade de geren ciar os serviços de saúde mental propi ciaram muito mais um estado de tensão e luta de poder do que o desenvolvimento de abordagens racionais e efetivas para os grupos de pessoas que sofrem de doenças mentais graves Esse tipo de pensamento filosófico também possibilitou o surgimento de psicoterapias que se contrapunham aos modelos tradicionais co mo a terapia centrada no cliente de Carl Rogers a terapia humanista ou logoterapia de Viktor Frankl a terapia sistêmica e de grupos e a teo ria dos fatores comuns Esta última propõe que fatores comuns a todas as terapias seriam os in gredientes críticos para a mudança terapêuti ca e não as técnicas propostas pelas diferentes escolas ou modelos de psicoterapia Contudo muitas dessas técnicas nunca comprovaram sua efetividade não se consolidando como méto dos psicoterapêuticos bem estabelecidos Teorias da localização anatômica da mente Outro assunto de intenso debate entre filósofos e médicos helênicos foi o da localização anatô mica da alma Se na atualidade não temos dú vida de que a atividade mental é um fenôme no resultante da atividade cerebral durante mi lênios essa associação não era tão óbvia tendo havido propostas de inúmeras localizações en tre elas nos pulmões no timo no coração no cérebro e nos intestinos Entretanto duas escolas polarizaram o de bate que duraria séculos dividindose entre aqueles que defendiam o coração e aqueles que defendiam o cérebro como o assento da alma humana35 Entre os defensores da teoria cardio cêntrica encontravamse Aristóteles Diócles 375295 aC e Zenão 333264 aC enquan to Alcmeão século VI aC Pitágoras 569475 aC Hipócrates 460370 aC e Platão eram defensores da teoria encefalocêntrica36 CordioliCapitulo01indd 16 04092018 190830 Psicoterapias 17 Filósofos naturalistas ou présocráticos de fendiam que existiam vários tipos de almas com funções distintas e compostas por diferen tes elementos naturais como a terra o fogo a água e o ar os quais estariam localizados em di ferentes partes do corpo Por exemplo Anaxí menes 588524 aC acreditava que o prin cípio primordial arkhé era o ar e que a alma também era feita dessa substância e estaria lo calizada nos pulmões no advento da morte se ria expelida por pequenos poros existentes na pele o último suspiro Já Empédocles 495 435 aC sustentava que a alma se sentava no sangue que circulava ao redor do coração pro duzindo os pensamentos As ideias unitárias da existência de uma única alma passaram a pre dominar com Aristóteles um crítico do pensa mento animista présocrático mas que defen dia o coração como o local anatômico da al ma35 Os defensores da teoria encefalocêntrica basearam muito de suas conclusões em obser vações de mudança de comportamento em pes soas que sofriam lesões cranianas ou em expe rimentos com animais O médico Alcmeão usando possivelmente técnicas de dissecção percebeu que os órgãos do sentido direciona vam suas terminações nervosas ao crânio e que entravam nele por orifícios ligandose ana tomicamente com a massa cerebral Da mes ma forma Hipócrates defendia o cérebro co mo centro da mente e afirmava que as afec ções neurológicas como a epilepsia e as doen ças mentais não eram causadas por entidades demoníacas mas que tinham causas naturais Além disso seus tratados contêm descrições de lesões cerebrais em áreas específicas que acar retavam perda de função em áreas distantes do corpo dando início à localização e à especifi cidade de diferentes funções cerebrais No Re nascimento Leonardo da Vinci 14521519 ajudou a resolver o impasse milenar ao reali zar seus famosos estudos anatômicos provan do que a função cardíaca era bombear o sangue ao longo do sistema circulatório enquanto re lacionou o cérebro com os movimentos os sen timentos e a cognição36 A visão dualista e monista nos dias atuais Apesar de não haver mais dúvidas sobre a lo calização cerebral da mente diversos debates sobre concepções monistas e dualistas ainda persistem no campo teórico das psicoterapias O modelo monista ganhou força hegemônica a partir dos resultados inquestionáveis de traba lhos clássicos do final do século XIX como os de Paul Broca 18241880 que determinou a região do córtex responsável pela fala John Hughlings Jackson 18351911 que propôs um sistema de controle hierárquico das áreas infe riores do cérebro por regiões corticais superio res fundamentando suas conclusões nos déficits ocasionados por focos epiléticos em diferen tes partes do córtex cerebral e Alois Alzheimer 18641915 que descreveu as lesões neurofi brilares como causadoras dos quadros de demência que atualmente levam seu nome No final da primeira metade do século XX foram produzidos fármacos que têm ação dire ta no sistema nervoso central SNC e conse guem esbater sintomas dos transtornos men tais Ainda no final do século XX e início do século XXI surgiram os estudos de neuroima gem funcional que demonstraram a ação cen tral das psicoterapias com efeitos neurofisio lógicos semelhantes aos demonstrados pelos psicofármacos37 Mais recentemente no século XXI casos de depressão resistente e de trans torno obsessivocompulsivo TOC grave pu deram ser tratados com eletrodos implantados profundamente no cérebro dos pacientes sen do que seu efeito pode ser observado em tem po real Contudo concepções dualistas persistem até os dias de hoje no campo das psicoterapias pelo valor heurístico prático por permitirem conceitualmente que trabalhemos no âmbi to da subjetividade dos indivíduos Na prática diária não precisamos a todo tempo pensar no efeito cerebral que nossas intervenções es tão exercendo no SNC Além disso quando são idealizados modelos de intervenções específi cas ninguém pensa a priori qual área cerebral ou tipo de receptor eles atingirão Entretanto se na prática podemos traba lhar em psicoterapia como se a mente fosse uma dimensão separada de sua neurofisiologia subja cente sempre devemos ter em mente que a ação das psicoterapias ocorre necessariamente das alterações que produzem conexões neuronais que se dão por mecanismos semelhantes aos das intervenções educacionais de aprendizado39 Ver reportagem da CNN publicada no Youtube38 CordioliCapitulo01indd 17 04092018 190831 18 Cordioli Grevet Orgs AS PSICOTERAPIAS MODERNAS Fatos históricos relevantes às psicoterapias Durante a Idade Média e parte do Renascimen to século XIV ao XVI os loucos ou os alie nados eram considerados seres que viviam em uma existência próxima à de animais por terem perdido a razão que desde os tempos aristoté licos era considerada o elemento determinan te sine qua non da condição humana Sob es sa prerrogativa teórica desumanizante pessoas com quadros de doenças mentais graves eram afastadas do convívio social e encarceradas em masmorras com prisioneiros comuns ou quei madas por serem acusadas de praticantes de bruxaria Somente no século XVIII quando o ideário humanístico da Revolução France sa 17891799 passou a predominar cultural mente na Europa ocorreu uma transformação na abordagem das doenças mentais que passa ram a ser encaradas como entidades médicas A famosa cena de Philippe Pinel 1745 1826 tirando os grilhões dos pacientes interna dos no Hospital da Salpêtrière é uma espécie de Liberdade de Eugène Delacroix 17981863 da psiquiatria moderna As propostas de Pi nel marcam uma inflexão humanística no tra tamento dos doentes mentais Pinel propunha que os alienados deveriam ser tratados huma namente porque eram pessoas que sofriam de doenças médicas defendendo que essas pato logias deveriam ser estudadas da mesma forma que eram estudadas as outras doenças na medi cina Advogava que a observação clínica a des crição detalhada e a classificação dos fenôme nos e das doenças ajudariam a traçar o curso e o prognóstico dos transtornos mentais além de indicar a melhor forma de tratamento Ele tinha uma visão moralista e idealista das doenças mentais usando o homem racional co mo a normalidade a ser alcançada Considera va que as causas psicológicas e sociais eram as mais importantes propondo que era necessário coletar uma história pessoal detalhada para se obter os elementos cruciais para o diagnóstico assim como para guiar o tratamento correto Os tratamentos propostos por Pinel consistiam ge ralmente em uma abordagem muito semelhan te a uma psicoterapia deixando medicamentos contenções mecânicas e isolamento para casos extremos e não responsivos O tratamento psicossocial que propunha envolvia ensinar os padrões moralmente acei táveis de amor ternura compaixão e autocon trole de comportamentos disruptivos ou não aceitáveis no âmbito social Em resumo sua vi são pode ser considerada humanística do pon to de vista institucional observacional e médi ca na esfera nosológica e psicossocial na esfera terapêutica Tal visão inspirou gerações de psi quiatras das duas principais escolas europeias de psiquiatria do século XIX a escola francesa e a escola alemã A escola alemã encabeçada por psiquiatras e neurologistas como Karl Wernicke 1848 1905 Alois Alzheimer Arnold Pick 1851 1924 e Emil Kraepelin 18561926 focou os aspectos neurológicos e descritivos de doenças graves como as demências e psicoses Já a es cola francesa representada por Jean Esquirol 17721840 JeanMartin Charcot 18251893 e Pierre Janet 18591947 centrouse nos de terminantes sociais e psicológicos das doen ças menos graves por exemplo as histerias e os transtornos somatoformes Dessa forma en quanto a primeira foi o modelo dominante no que diz respeito ao tratamento médico de pa cientes graves e que necessitavam de interna ções hospitalares a escola francesa foi o modelo de abordagem para os pacientes ambulatoriais e consequentemente para as psicoterapias Por exemplo o austríaco Sigmund Freud 18561939 formado na mais pura tradição médica alemã interessouse tanto pelo traba lho de Charcot com histéricos que em 1885 fez um estágio em Paris com o médico francês Freud era médico do ambulatório de pacien tes psicossomáticos do Hospital Geral de Vie na onde trabalhava com histéricos com qua dros de cegueira paralisias e mutismos e pa ra os quais as abordagens com hipnotismo de Charcot se mostravam muito úteis A estada francesa de Freud se mostraria essencial para os primeiros insights daquilo que viria a ser sua maior obra e que pode ser considerada a pri meira psicoterapia estruturada da história Origens do termo psicoterapia Muitas das tentativas de intervenções psicoló gicas ocorreram na transição do século XVIII para o século XIX e quase todas estavam na esfera ou muito próximas do charlatanismo A mais famosa delas foi a do magnetismo ani mal proposta pelo médico austríaco Franz An CordioliCapitulo01indd 18 04092018 190831 Psicoterapias 19 ton Mesmer 17341815 Ele defendia que a doença mental surgia a partir de um desequi líbrio do campo magnético corporal que des regulava os elementos como ferro contidos no sangue o qual podia ser revertido com o uso de pedras com propriedades magnéticas Jun to com o método magnético Mesmer também utilizava longas sessões catárticas grupais que envolviam técnicas hipnóticas Rapidamente suas técnicas foram usadas por médicos e lei gos ao longo de toda a Europa o que desenca deou uma forte reação dos meios acadêmicos que acusaram seus praticantes de pseudocien tíficos e charlatães O uso da sugestão e da hipnose de modo heurístico foi a inspiração para cunhar o termo psicoterapêutico empregado pelo médico in glês Daniel Hack Tuke em um capítulo de seu livro intitulado Illustrations of the Influence of the Mind upon the Body in Health and Disease Designed to Elucidate the Action of the Imagina tion de 1872 Tuke argumentava que a ciência e a medicina deveriam estudar o efeito curativo de técnicas que usavam a sugestão e a hipnose porque era evidente que elas poderiam auxiliar no tratamento de determinadas afecções O ele mento revolucionário de Tuke encontrase no fato de propor que haveria uma comunicação evidente entre a mente psique e o corpo que deveria ser desvendada40 O termo popularizouse quando Hippoly te Bernheim 18371919 famoso professor da escola médica de Nancy citou em seu famoso livro as ideias de Tuke40 Entretanto é impor tante ressaltar que enquanto o termo era uti lizado por Tuke no sentido que hoje chamaría mos de placebo Bernheim empregou o termo mais próximo do sentido de psicoterapia Isso ocorreu porque além do uso de hipnose Bernheim sugeriu o emprego de longas sessões de conversas com pacientes como abordagem terapêutica Médicos respeitados como Jean Martin Charcot 18251893 e Pierre Janet 18591947 aprimoraram o uso da hipnose em quadros dissociativos tornando a técnica menos suspeita e aceita no meio médico no fi nal do século XIX A explosão das psicoterapias no século XX Em 2017 174 tipos diferentes de psicoterapias são citados na Wikipédia41 Contudo se as psi coterapias fossem agrupadas de acordo com suas orientações teóricas encontraríamos seis modelos gerais 1 o modelo psicanalítico criado por Freud que leva em conta o determi nismo dos conflitos psíquicos inconscientes e dos mecanismos de defesa do ego sobre os sin tomas mentais e a conduta humana 2 o mo delo comportamental que foca as formas de comportamento aprendido e condicionado de Pavlov Watson Skinner Wolpe e Bandura 3 o modelo cognitivo desenvolvido por Ellis e Aaron Beck que enfatiza o papel de cognições disfuncionais como fator responsável pelos sin tomas principalmente depressivos e ansiosos 4 o modelo existencialhumanistacentrado na pessoa de Carl Rogers e Viktor Frankl que fundamentado na fenomenologia e no existen cialismo propõe que o sofrimento humano de corre da perda de significado existencial 5 o modelo dos fatores comuns ou não específi cos proposto por Jerome Frank que preconiza que a boa relação a empatia e o calor humano com o paciente são suficientes para melhorar os sintomas e 6 o modelo dos fatores biopsi cossociais proposto originalmente por George Engel 19131999 que preconiza que fatores biológicos psicológicos e sociais determinam todas as doenças mentais e que fundamentou intervenções específicas para os diferentes fato res como a terapia interpessoal a terapia fami liar e a terapia de grupo O modelo psicodinâmico ou a psicanálise o primeiro modelo de psicoterapia estruturada Em 1886 depois de abandonar sua carreira co mo neurocientista e professor assistente de psi quiatria na Universidade de Viena por causa do baixo salário Freud passou a trabalhar na clí nica privada junto com um colega mais velho e bem estabelecido chamado Josef Breuer 1842 1925 Breuer e Freud atendiam a comunida de judaica abastada de Viena e seus pacien tes eram geralmente mulheres que apresen tavam quadros neuróticos e psicossomáticos as quais eram tratadas com longas conversas e sessões de hipnose Como muitas delas relata vam vivências traumáticas que tinham aconte cido na infância ou pouco antes de desenvolver seus sintomas Freud passou a defender a ideia de que além da biologia constitucional fatores psicológicos e eventos traumáticos eram os res ponsáveis pelo surgimento de sintomas histé ricos Além disso como muitos desses eventos CordioliCapitulo01indd 19 04092018 190831 20 Cordioli Grevet Orgs traumáticos eram de âmbito sexual p ex abu so iniciação precoce da sexualidade assédio por uma pessoa mais velha Freud concluiu que a sexualidade era um tema central na etio logia das neuroses Como seus pacientes não se lembravam dos fatos que revelavam sob hipnose Freud pro pôs que uma dimensão mental inconsciente influenciava dinamicamente o estado de cons ciência humano Contudo após anos de práti ca convenceuse de que o tratamento hipnóti co dos quadros neuróticos não era efetivo por que muitos pacientes não entravam em estado dissociativo ou se recusavam a ser hipnotiza dos Em virtude disso Freud passou a desen volver um método que consistia basicamente em forçar as memórias reprimidas do incons ciente a se tornarem conscientes pela rememo ração forçada Percebendo que esse método também não era muito eficaz Freud passou a solicitar a seus pacientes que tentassem falar tu do o que vinha a sua cabeça sem censu ra criando uma técnica que passaria a ser chamada de associação livre Freud notou que por meio desse método os pacien tes contavam sonhos cometiam atos fa lhos ou faziam associações que ajudavam a desvendar o conteúdo inconsciente de suas mentes sem a necessidade da hipno se O resultado final foi um método tera pêutico que ele chamou de psicanálise Apesar de a psicanálise sofrer críticas e for te resistência nos meios acadêmicos da Europa continental na Inglaterra e nos Estados Unidos ela rapidamente encontrou adeptos e se propa gou como técnica psicoterapêutica tornando se um modelo quase hegemônico de psicote rapia até a primeira metade do século XX Na Inglaterra a fundação da Sociedade Psicanalí tica Britânica por Ernest Jones 18791958 em 1913 e a tradução das obras de Freud por James Strachey 18871967 em 1925 contribuíram enormemente para a rápida difusão da psicaná lise na língua inglesa Outro fator determinan te para seu crescimento na GrãBretanha foi o fato de Jones auxiliar inúmeros psicanalistas do continente europeu a se exilarem na Inglater ra durante a Segunda Guerra Mundial entre eles Sigmund Freud Anna Freud 18951982 e Melanie Klein 18821960 Anna Freud e Me lanie Klein tiveram um papel importantíssi mo na propagação das ideias psicanalíticas no mundo anglosaxão Além disso a visita que Freud fez aos Estados Unidos em 1911 foi de fundamental importância para a divulgação de sua obra e a difusão de sua técnica no conti nente norteamericano Pouco tempo depois de sua visita aos Esta dos Unidos ocorreu a fundação da Associação Psicanalítica de Nova York 1911 e da Associa ção Psicanalítica Americana 1912 esta última criada por Ernest Jones Diferentemente do que ocorreu na Europa a psicanálise conseguiu um lugar de destaque nas grandes universidades norteamericanas o que determinou o domí nio de suas teorias na psiquiatria durante toda a primeira metade do século XX Independen temente do problema conceitual que isso possa ter significado para outras formas de entendi mento das doenças mentais foi um fator cabal para a difusão das psicoterapias como método terapêutico em todo o mundo Contudo o declínio da psicanálise como método hegemônico ocorreu a partir da se gunda metade do século XX quando descober tas no campo das neurociências e da medici na passaram gradualmente a dominar os mo delos teóricos e conceituais das doenças men tais Além disso somaramse críticas devido ao longo tempo de formação ao custo dos trata mentos e à baixa efetividade da psicanálise em certas patologias como na depressão recorren te Esses problemas fizeram muitos terapeutas como Aaron Beck 1921 que originalmen te tinham formação psicodinâmica pensarem em formas mais objetivas de psicoterapia Es sas novas modalidades psicoterapêuticas cog nitivistas e comportamentais que lidavam ape nas com aspectos conscientes da personalida de eram mais fáceis de ser aprendidas além de preconizarem tratamentos de curta duração e focados na redução dos sintomas Da mesma forma essas psicoterapias eram manualiza das adaptandose muito mais facilmente ao modelo empírico da medicina e ao ensaio clí nico randomizado ECR Essas características permitiram que rapidamente dados empíricos embasassem sua eficácia o que acarretou indi cações precisas e custeio por seguros de saúde nos Estados Unidos Como reação a esses entraves formas mais curtas de tratamentos psicodinâmicos foram propostas e escolas com modelos mais sim CordioliCapitulo01indd 20 04092018 190831 Psicoterapias 21 plificados de psicanálise surgiram como a es cola da psicologia do ego defendida por Anna Freud e a escola americana ou a mentalização de Peter Fonagy 1952 Ainda a Associação Mundial de Psicanálise passou a apoiar intensa mente a pesquisa em psicoterapia de orientação analítica e a interlocução entre a psicanálise e a psiquiatria promovida por figuras de destaque na Associação Americana de Psiquiatria como Glen Gabbard 1949 A terapia comportamental Com suas raízes datadas do final do século XIX o behaviorismo ou comportamentalismo teve seu início com os trabalhos teóricos e experi mentais do russo Ivan P Pavlov 18491936 que por meio de pesquisas com cães descobriu o reflexo condicionado e do norteameri cano Edward L Thorndike 18741949 que propôs a lei do efeito segundo a qual os efeitos de um comportamento afetam a probabilidade de que ele ocorra novamente tendendo a ser repetido se acompanhado por recompensa ou evitado se seguido por um castigo Posteriormente em experimentos que seriam considerados com pletamente antiéticos nos dias de hoje John Watson 18781958 usou o modelo pavloviano de aprendizagem para desenvolver fobias em crianças e comprovar que não havia necessidade de trauma no passado para o aparecimento dos sintomas Na contramão desses experimentos Mary Covers Jones 18971987 usou as mes mas ideias para desenvolver um método para curar as fobias Ainda usando as ideias de Thorndike que propunham que o meio ambiente exercia pres são para que ocorresse o aumento ou a extin ção de comportamentos humanos por meio do condicionamento operante Burrhus F Skinner 19041990 criou uma forma de psicoterapia chamada de behaviorismo radical Esses com portamentalistas radicais como Watson e Skin ner consideravam que apenas poderíamos le var em conta em psicologia fatos observáveis negando qualquer papel às cognições e às emo ções sobre o comportamento humano Nos anos de 1950 Joseph Wolpe 1915 1997 um médico sulafricano desenvolveu uma técnica de dessensibilização sistemáti ca para tratar fobias produzidas em gatos por meio de condicionamento clássico que depois eram eliminadas com a exposição gradual Es sa técnica teve enorme sucesso também no tra tamento de fobias em seres humanos até ser substituída pela exposição in vivo Muitos com portamentalistas menos radicais passaram a propor que era inegável que a cognição deter minava ou influenciava o comportamento o que propiciou o desenvolvimento de técnicas mistas denominadas cognitivocomportamen tais Terapia existencialhumanista e centrada na pessoa Nos anos de 1950 também como alternati va à psicanálise surgiu uma técnica centrada na pessoa que valorizava fatores inespecíficos das psicoterapias como a pessoa do terapeu ta a empatia o calor humano e a autenticidade desenvolvida por Carl Rogers 19021987 Na mesma época Viktor Frankl propôs uma forma de psicoterapia existencialhumanista inspira da no existencialismo que salientava o valor da liberdade de escolha Frankl que foi prisioneiro de campo de concentração durante a Segunda Guerra Mundial estabeleceu que o objetivo de sua psicoterapia logoterapia era a descoberta de um sentido para a vida defendendo que de vemos encontrar um motivo para a realização pessoal mesmo nas condições mais adversas Para ele o desespero e o suicídio seriam a saída escolhida por aqueles indivíduos que não en contram significado para a vida Frankl se con trapôs a Sartre que considerava a vida um absurdo que deveria ser suportado heroica mente Há uma entrevista em que o próprio Frankl explica esses princípios42 Apesar de altamente atrativas do ponto de vista filosófico as psicoterapias focadas na pes soa e existencialista tiveram pouco sucesso co mo métodos efetivos Contudo as terapias da terceira onda as cognitivocomportamentais também usam muitos dos conceitos da aceita ção e da realização pessoal O modelo cognitivo e as terapias cognitivas e cognitivocomportamentais A TCC surgiu em razão do descontentamen to que existia com a psicanálise e com o beha viorismo radical nos Estados Unidos no final dos anos de 1950 Seus principais idealizadores Albert Ellis 19132007 e Aaron Beck 1921 criaram uma psicoterapia baseada no poder das cognições pensamentos e crenças e crenças em provocar emoções adequadas ou perturba CordioliCapitulo01indd 21 04092018 190831 22 Cordioli Grevet Orgs doras e induzir comportamentos adaptativos ou patológicos Na terapia cognitiva o alvo te rapêutico encontrase nos aspectos conscientes do indivíduo por meio de um vínculo de traba lho com o paciente e focado em problemas do aqui e agora A terapia cognitiva por trabalhar com os aspectos conscientes e mensuráveis da mente possibilita o teste empírico de suas hi póteses teóricas além de permitir aferir de for ma mais confiável a eficácia de suas técnicas As psicoterapias cognitivas não são neces sariamente um corpo unificado de psicotera pias sendo possível que variações em sua téc nica sejam incorporadas por diferentes grupos de trabalho Nesse sentido a incorporação de técnicas comportamentais foi fundamental pa ra o sucesso terapêutico em transtornos de an siedade Tal associação de técnicas passou a ser chamada de terapia cognitivocomportamen tal Entretanto historicamente Ellis e Beck de vem ser destacados como seus maiores ideali zadores Ellis fundou a terapia racionalemoti va comportamental TREC que defende que o pensamento e as emoções são determinados pelos sistemas de crenças básicas e irracionais das pessoas e continuamente ativados em situa ções do dia a dia A TREC tem como objetivo identificar e desafiar as crenças irracionais e substi tuílas por outras mais realistas Utiliza o poder da razão e da argumentação lógi coempírica o desafio e o debate racio nal para tal finalidade o que por sua vez acarreta mudanças no comportamento Aaron Beck era um psicanalista que tenta va comprovar a teoria de Freud sobre a depres são descrita em Luto e melancolia em pacien tes clínicos De acordo com a referida teoria a melancolia seria decorrente da raiva contra o objeto retrofletida contra si mesmo traduzin dose em culpa excessiva depressão e desejos de morte Ao atender pacientes deprimidos em vez de confirmar as ideias de Freud Beck te ve sua atenção voltada para a forma negativa de pensar e interpretar a realidade desses pa cientes visão negativa de si mesmo sou infe rior sou incompetente não tenho valor visão negativa do mundo injusto hostil e visão ne gativa do futuro desesperança fracasso For mulou a hipótese de que o humor deprimido seria a consequência não de conflitos incons cientes mas de pensamentos negativos caracte rísticos da depressão que estavam à margem da atividade mental consciente e que eram facil mente acessíveis É uma reformulação do prin cípio estoico de que o que perturba não são as coisas em si mas o que as pessoas pensam so bre as coisas Beck também acreditava como os racionalistas no poder da razão da argumenta ção lógica para modificar comportamentos e do questionamento de evidências como forma de corrigir crenças disfuncionais e melhorar os sintomas depressivos que eram consequência de visões negativas de si próprio do mundo e do futuro Em homenagem a Sócrates essa téc nica é denominada de questionamento socráti co A TCC de Beck também incorporou funda mentos teóricos aprendizagem como méto dos e procedimentos da terapia comportamen tal como a prescrição de tarefas de casa a es truturação das sessões e metas para cada sessão agenda e para o longo prazo maior atividade por parte do terapeuta e mensuração sistemáti ca de variáveis e desfechos Por ser uma técnica de duração breve e estruturada foi possível de senvolver protocolos e manuais que permiti ram a reprodução de pesquisas e de ensaios clí nicos tornandose a terapia com maiores estu dos e evidências de eficácia da atualidade O modelo interpessoal a terapia sistêmica e a terapia de grupo Nos anos de 1970 surgiu a terapia interpessoal de Weissman e Klerman na esteira de autores muito influentes como Adolf Meyer e Harry S Sullivan os quais passaram a valorizar os as pectos sociais p ex perdas mudanças de pa péis conflitos de papéis mais especificamente as relações interpessoais como fatores que in fluenciam tanto a gênese quanto a manutenção de transtornos como a depressão A correção de problemas nessa área pode contribuir para a melhora dos sintomas Na mesma linha as te rapias de grupo e de família embora com en foque psicodinâmico ou cognitivocomporta mental valorizam a contribuição de fatores sis têmicos para os transtornos do indivíduo e da família e dos fatores de grupo como aspectos terapêuticos Fatores comuns ou não específicos Apesar da profusão de técnicas e enquadra mentos teóricos um fato interessante é a obser vação empírica de que a eficácia das diferentes CordioliCapitulo01indd 22 04092018 190831 Psicoterapias 23 psicoterapias é relativamente semelhante43 Is so já havia sido levantado de forma teórica em um artigo clássico de Saul Rosenzweig 1907 200444 no qual era proposto que os benefícios de várias terapias eram decorrentes de fatores comuns a todas elas e não das técnicas espe cíficas que elas utilizavam Rosenzweig defen deu que qualquer terapia desde que praticada por um terapeuta competente e que acreditas se em seu método de tratamento resultaria em desfechos semelhantes Ele usou a metáfora do veredito do pássaro Dodô personagem do li vro Alice no País das Maravilhas que ao inter romper a corrida de diferentes animais procla mou Todos venceram e todos devem ganhar prêmios para se referir a essa semelhança de resultados Desde essa época a eficácia seme lhante das diferentes psicoterapias tem sido co nhecida como o veredito do pássaro Dodô Tal veredito tem sido utilizado como suporte em pírico àqueles como Jerome Frank45 que acre ditam em que os fatores comuns seriam os ver dadeiros responsáveis pela eficácia das psicote rapias Esses fatores também são chamados de não específicos em oposição aos específicos e seriam comuns a todas as terapias Esse tópico foi ampliado no Cap 4 Fatores comuns e es pecíficos das psicoterapias CONSIDERAÇÕES FINAIS As psicoterapias são fruto de um processo his tórico ligado à própria construção do conhe cimento científico que tem aproximadamen te 3 mil anos Durante esse período passamos de uma visão mítica e fantasiosa dos processos mentais e seus determinantes para uma em que as relações complexas entre o ser humano sua biologia seus ideais seus sentimentos e sua conduta e seu meio ambiente familiar social político e ecológico são determinantes para a saúde ou a doença Sob tal contexto de extrema complexidade é que trabalhamos com as dife rentes técnicas existentes para dirimir o sofri mento emocional Nesse sentido para poder mos extrair todo o potencial que essas técnicas têm precisamos como terapeutas ter em men te essa complexidade e fazer um esforço cons tante de racionalidade REFERÊNCIAS 1 Wallerstein R S Psicanálise e psicoterapia de orientação analítica raízes históricas e situação atual In Eizirik CL Aguiar RW Schestatsky SS Psicoterapia de orientação analítica fundamentos teóricos e clínicos 2 ed Porto Alegre Artmed 2005 2 CostaRosa A Práticas de cura místicoreligiosas psicoterapia e subjetividade contemporânea Psicol USP 200819456190 3 Aristoteles PseudoLonginus Demetrius Poetics Cambridge Harvard University 1995 4 Jung CG Psychology and religion the terry lectures New Haven Yale University 1938 5 William B The history of medicine a very short introduction Oxford Oxford University 2008 6 Bunge M Ardila R Philosophy of psychology New York Springer 1987 7 Peters FE Greek philosophical terms a historical lexicon New York New York University 1967 p 16676 8 Aristoteles De anima Oxford Clarendon 2016 p 246 9 Kirk GS Raven JE Schofield M Os filósofos préso crá ticos história 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